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Aula 3. Ideologia e Filosofia

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IDEOLOGIA E FILOSOFIA

“Os ideólogos são os encarregados do grupo dominante para o exercício das funções subalternas
da hegemonia social e do governo político” (Gramsci)

A Filosofia sofre uma rejeição muito forte por parte da sociedade tecnológica e de
consumo, enquanto a Ideologia exerce um domínio quase absoluto. Por que acontece
isto? E o que é mesmo ideologia?

Por ideologia podemos entender muitas coisas. Num sentido amplo e também positivo,
ideologia é um conjunto de ideias ou de concepções da realidade. Não existe nenhuma
pessoa inserida e que aja na sociedade que não seja guiada por ideias-força, ideias
embutidas de valores. Neste sentido, ideologia pode ser identificada como doutrina.

Ideologia também pode significar uma teoria, entendida como uma organização
sistemática de conhecimentos destinados a orientar uma ação, a fim de alcançar
determinados objetivos. Podemos perguntar, por exemplo, qual a teoria de tal sindicato
ou de determinado partido político.

O termo Ideologia foi criado por Destutt de Tracy em 1796 e, etimologicamente,


significa estudo das ideias. Com esta palavra, ele queria montar uma nova disciplina
filosófica que substituísse a disciplina metafísica, já desgastada, segundo seu entender.
Mas ainda em vida, Tracy viu cair em desuso o sentido específico de ideologia e este
termo passou a significar tanto o pensamento filosófico como a atividade intelectual em
geral, de tal modo que os pensadores do século XVIII eram também chamados de
ideólogos. Atualmente, o conceito de ideologia que se impôs na nossa cultura é a
concepção marxista de Ideologia.

O significado Marxista de Ideologia

Marx e Engels deram um sentido de vontade de lucro e de dominação ao termo


Ideologia, próprio da subjetividade moderna. Estes pensadores, na sua época, fizeram
ardente crítica ao capitalismo que se implantava socialmente a ferro e a fogo. A
implantação do capitalismo agravou a crise social, devido, sobretudo, ao alto índice de
miséria da classe trabalhadora. Estando nas mãos dos mais ricos a ordem econômica,
por consequência os produtos da consciência social resultam de interesse deles e para
eles. A ideologia resulta naturalmente das relações de dominação. A ideologia

“é mentira com ares de verdade, é defesa de interesses particulares com ares de interesses
públicos” (HRYNIEWICZ, 2001, p. 94).

Segundo Marx,

“ideologia é o conjunto das idéias políticas, religiosas, econômicas, jurídicas, estéticas,


filosóficas e do senso comum que se desenvolvem a partir dos interesses (nem sempre tornados
conscientes) da classe economicamente dominante. Seu objetivo é, justamente, defender tais
interesses” (idem, 94)
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Também numa linha de crítica à sociedade marcadamente capitalista, Marilena Chauí


assim define a ideologia:

“A ideologia é um conjunto lógico, sistemático de representações (ideias e valores) e de normas


ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem
pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem
sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer. Ela é, portanto, um corpo
explicativo (representações) e prático (normas, regras, preceitos) de caráter prescritivo,
normativo, regulador, cuja função é dar aos membros de uma sociedade dividida em classes
uma explicação racional para as diferenças sociais, políticas e culturais, sem jamais atribuir tais
diferenças à divisão da sociedade em classes, a partir das divisões na esfera da produção. Pelo
contrário, a função da ideologia é a de apagar as diferenças como de classes e de fornecer aos
membros da sociedade o sentimento da identidade social, encontrando certos referenciais
identificadores de todos e para todos, como, por exemplo, a Humanidade, a Liberdade, a
Igualdade, a Nação, ou o Estado” (CHAUÍ, 1980, p. 113).

Ideologia: Característica da Modernidade

A ideologia sempre esteve presente na história dos homens, mas na modernidade ela é a
característica mais ostensiva e ao mesmo tempo mais oculta. Nas suas origens a ciência
e a técnica estavam a serviço do homem e este colaborava com a natureza servindo-se
delas para sua utilidade. Com o advento da modernidade, a ciência e a técnica passaram
para outras mãos. Foram encampadas pela vontade de dominação. Ciência e técnica
tornaram-se tecnologia, agora a serviço do poder, em mãos de quem exerce a vontade
de dominação.

A ideologia

“consiste na subjetivação da vontade de dominação. Esta não anda nas nuvens, longe dos
homens. Ela faz sua morada entre nós, apodera-se da razão humana, aninha-se soberana no
coração da modernidade” (BUZZI, 1990, p. 140).

É a vontade de dominação que produz a subjetividade moderna que, por sua vez,
produz a ideologia.

As sociedades modernas são consideradas sociedades industriais, o que permitiria


pensar que o seu interesse maior é a produção de bens de consumo. Mas na verdade, diz
Bussi, o que as sociedades modernas

“mais se empenham em produzir e conservar é a própria subjetividade sempre cheia de vontade


de dominação” (BUZZI, 1990, p. 140).

Para estas sociedades a produção de subjetividade talvez seja mais importante do que
qualquer outro tipo de produção. Arcângelo Buzzi diz que a subjetividade moderna, ou
seja, a ideologia, está toda fascinada e visceralmente comovida por três projetos:

1º Projeto: A produção de subjetividade:


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Este projeto é imperceptível, mas sempre presente e atuante. Por este projeto o homem
se atribui o direito de determinar o sentido da realidade, o sentido das coisas. E
existência não só de si, mas de todos e de tudo é determinada pela subjetividade. E ela
está tão bem montada que parece existir pela lei da oferta e da procura. A subjetividade
parece que nem sequer existe, mas comanda a todos.

No seio da sociedade moderna os ideólogos

“são os intelectuais da subjetividade do grupo social hegemônico. O que mais pretendem não é
a ciência, mas o aproveitamento do saber em benefício da hegemonia do grupo social mais
forte” (BUZZI,1990, p. 142).

O filósofo empirista Francis Bacon, ainda no começo da modernidade entendeu muito


bem este “espírito” e mostrou que a sociedade, voltada a interesses imediatos, não
procura a verdade, mas o saber utilitário, quase mesquinho. Por causa disso, ela
favorece os ideólogos e não os filósofos.

Na execução deste projeto, os poderosos grupos sociais se servem intelectualmente dos


ideólogos. Esses elaboram a doutrina que justifica a ordem social dominante, mostram a
sua eficácia para toda a sociedade. A doutrina, elaborada diretamente para expandir os
benefícios daquela ordem, é chamada de ideologia. Ela sublima a dominação, acenando
para uma ordem social de bem-estar para toda a sociedade.

2º Projeto:

Produção e consumo de bens úteis: Este é a aspecto mais visível da ideologia. As


ordens sociais de hoje com suas ideologias se debatem na aritmética do útil. Útil neste
sentido significa bens materiais. Estas sociedades aliciam mais adeptos quando
conseguem mostrar que distribuem o útil social ao maior número possível de pessoas.

Por mais bens materiais que produza e consuma, a ordem dominante é de interesse
particular, ou seja, de classe, por isto beneficia a poucos enquanto a maioria é
desfavorecida. Este processo gera a exclusão do sistema de produção e consumo grande
parte da sociedade. Outro aspecto a ser considerado neste projeto, é que ele só
contempla a produção de bens materiais. É, por isto, reducionista e empobrecedor da
realidade humana.

3º Projeto:

Projeto industrial de niilismo: A meta da vontade de dominação, na verdade, não tem


nenhuma meta concreta para além da produção de mercadorias. Para a realidade do ser
humano isto desemboca no niilismo. Em busca da dominação, nenhum valor moral é
respeitado e por isto o homem é despersonalizado. A natureza por sua vez é destruída. O
resultado é a vontade de dominação mergulhada nas águas do narcisismo, afogada no
nada de sua falsa imagem.

Filosofia e Ideologia.
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A filosofia e a ideologia são diferentes, mas andam juntas. Na opinião de Reale (cf.
REALE, 1999, p.68) não foi Marx o criador do núcleo essencial do ideologismo, pois já
Platão havia denunciado de maneira inequívoca este mal, ou seja, o mal do “considerar
verdadeiro”, ou do “acreditar no simples nível de opinião”, contra o valor da própria
verdade. Na obra de Platão vemos Sócrates em debates sem fim com os sofistas. Estes
eram homens de muita ciência e habilidade, capazes de dar lições úteis sobre qualquer
profissão, especialmente sobre a arte de discutir e de falar para convencer. Os sofistas -
ideólogos daquela época - não eram pesquisadores, mas aproveitadores do saber e
ensinavam a usá-lo habilmente. Observem bem:

A filosofia busca conhecer a verdade nas coisas, e relacionar-se com as coisas no que
são. A ideologia busca a afeição ao útil, ao prestígio, ao poder. Para o pensador
Arcângelo Buzzi a ideologia considera tudo a partir do útil e a filosofia a partir da
afeição à verdade das coisas. Vejamos o que diz:

“A filosofia usa o conhecimento para aproximar homens e coisas. E só a filosofia é verdadeira


retórica, arte e técnica da persuasão, porque mostra no conhecimento como são os homens e as
coisas. A ideologia usa o conhecimento para aproximar os homens e as coisas a uma ordem de
interesses. Por isso, sua retórica é uma prática adulatória que visa ao proveito da ordem”
(BUZZI, 1990, p. 136).

A ideologia tem “vantagem” sobre a filosofia porque é um saber que tem como
referência um valor muito cobiçado: a utilidade. E o útil mais cobiçado é o poder
político. Um útil cambiante e muito móvel (cf. Buzzi 137).

E ainda para mostrar a diferença existente entre o filósofo e o sofista (ideólogo)


queremos transcrever esta estória bem caracterizada e relatada por Diógenes Laércio
(séc. III d.C.). A citação é de Buzzi:

“Um famoso sofista, ao voltar de uma viagem de conferências pela Ásia Menor, encontrou
Sócrates no mercado de Atenas, perguntando a um sapateiro: ‘Que é isto, o sapato?’ E o
interpelou indagando: ‘Ainda está aí, Sócrates, dizendo a mesma coisa sobre a mesma coisa?’
Sócrates o encarou e lhe respondeu: ‘É o que eu sempre faço. Você, porém, que é sofista,
certamente nunca disse a mesma coisa sobre a mesma coisa”. (BUZZI, 1990, p. 137-8).

Platão dizia: a verdade não admite contestação. E Jesus Cristo: A verdade vos fará
livres (Jo, 8,32). Segundo Reale, não pode haver uma terapia mais consistente, do ponto
de vista filosófico, que essa mensagem da sabedoria antiga para o sofrimento do homem
de hoje, tão convencido de que, como pretendia Nietzsche, o importante não é o
“verdadeiro”, mas o “considerar verdadeiro” (Cf. REALE, 1999, p.78).

Na sua época os sofistas exerceram prodigiosa atividade pedagógica, incitando os


jovens a buscarem o saber útil, a sagacidade nos negócios públicos e privados. A
sofística continua. Só que mudou de nome. Ela hoje se chama ideologia.

Referências
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BUZZI, Arcângelo R. Introdução ao Pensar – O ser, o Conhecimento, a Linguagem.


Petrópolis: Vozes, 1990.

CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. São Paulo: Brasiliense, 1980.

HRYNIEWICZ, Severo. Para Filosofar Hoje. Rio: Edição do Autor, 2001.

REALE, Giovanni. O Saber dos Antigos – Terapia para os Tempos Atuais. São Paulo:
Loyola, 1999.

Atividade: O texto seguinte é de Giovanni Reale. Estude-o e depois escreva um


parágrafo comentando o projeto niilista da sociedade atual.

A Análise Niilista da Ideologia

“Sem dúvida, é possível resumir a ideologia no slogan que se assemelha a uma paródia
de uma frase evangélica: ‘buscai o poder, e todo o resto virá por si’.

Isso significa que a única coisa que vale é o poder e só o poder.

Eu dizia anteriormente que a ideologia perde quase por inteiro o sentido da verdade: o
que conta é aquilo que se considera verdadeiro ou que se faz com que seja considerado
verdadeiro.

A ideologia é uma forma de fé imanente: uma massa de homens abraça essa fé


acreditando que seja fé em coisas verdadeiras, outros fingem acreditar que é assim.
Outros ainda (os ideólogos) utilizam todos os meios para fazer com que se acredite que
seja verdadeiro aquilo que eles convidam a crer (quer eles mesmos acreditem nisso,
quer não, isso é irrelevante!).

Já nos Fragmentos Póstumos de Nietzsche, encontramos análises pertinentes e


impiedosas sobre esse ponto: “é necessário que algo seja considerado verdadeiro; não
que algo seja verdadeiro (9[38]). Na denúncia do que é ideologia Nietzsche é, portanto,
mais consequente que o próprio Marx.

Eis o aforismo que exprime o pensamento de Nietzsche modo mais radical: ‘O que é
uma fé? Como se forma? Toda fé é considerar verdadeiro. A forma extrema do niilismo
seria sustentar que toda fé, todo considerar verdadeiro seja necessariamente falso:
porque não existe de fato um mundo verdadeiro. Portanto: é uma ilusão de perspectiva,
cuja origem está em nós (uma vez que nós temos necessidade de um mundo restrito,
abreviado, simplificado). Nesse caso, a medida da força é constituída pelo ponto até o
qual podemos admitir, sem nos prejudicar, o caráter ilusório e a necessidade da mentira.
Nesse sentido, o niilismo, como negação de um mundo verdadeiro, de um ser, poderia
ser um modo de pensar divino...’(9[41]).
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Nietzsche, aqui, não se refere às ideologias políticas em geral, nem à marxista em


particular, mas àquilo que diz, a meu ver, diz respeito ao que lhes serve de fundamento:
a história das últimas décadas o demonstra. Além disso, uma leitura imparcial de
Nietzsche poderia insinuar a suspeita de que a própria “explicação” marxista de
ideologia seja por sua vez ideológica (para não falar do caráter abertamente ideológico
no sentido dos escritos originários de Marx e de Engels que têm muitas das teses
comumente aceitas pela Vulgata do marxismo-leninismo). É natural perguntar, portanto,
se a concepção marxista de ideologia consegue evitar a armadilha da auto-referência.
Como se sabe, o cético cai nessa armadilha quando sustenta que nada pode ser
conhecido (não é este, ainda que negativamente, um conhecimento?). Analogamente,
não será ‘ideológica’ também a tese marxista de que todo produto intelectual é
‘ideologia?” (REALE, 1999, p. 66-68).

REALE, Giovanni. O Saber dos Antigos – Terapia para os Tempos Atuais. São Paulo:
Loyola, 1999.

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