A Jornada Do Herói em The Last of Us
A Jornada Do Herói em The Last of Us
A Jornada Do Herói em The Last of Us
So Paulo
2016
Pedro Pires Sciarotta
Trabalho de Ps-Graduao
apresentado Universidade
Presbiteriana Mackenzie, como requisito
para a concluso do curso Comunicao
e Prticas de Produo de Imagens:
Fotografia e Audiovisual
So Paulo
2016
RESUMO
Este trabalho realiza uma anlise da estrutura narrativa do jogo eletrnico The Last
of Us, lanado em 2013 pela produtora Naughty Dog e distribuidora pela Sony
Interactive Entertainment. A anlise se d por meio da Jornada do Heri, estrutura
descrita por Christopher Vogler em seu livro A Jornada do Escritor: Estruturas
Mticas para Escritores, que usa como base as pesquisas do mitlogo Joseph
Campbell, sobretudo em seu livro O Heri de Mil Faces. A Jornada do Escritor a
principal base terica deste trabalho, cujo objetivo identificar como os conceitos da
Jornada do Heri so aplicados em The Last of Us. Isso inclui estabelecer paralelos
entre os estgios da estrutura com a narrativa do jogo, alm de entender a funo
arquetpica dos personagens e suas motivaes.
This thesis aims to make an analysis of the narrative structure of the video game The
Last of Us, released in 2013 by developer Naughty Dog and published by Sony
Interactive Entertainment. The analysis is conducted by the Heros Journey, a
structure described by Christopher Vogler in his book The Writers Journey: Mythic
Structure for Writers, that is based on the researches of Joseph Campbell, mainly in
his book The Hero with a Thousand Faces. The Writers Journey is the main
theoretical basis of this thesis, which aims to identify how the concepts of the Heros
Journey are applied in The Last of Us. This includes establishing parallels between
the stages of the structure and the narrative of the game, besides understanding the
archetypical function of the characters and their motivations.
INTRODUO 6
1 A JORNADA DO HERI 8
1.1.1 Heri 13
1.1.2 Mentor 16
1.1.3 Sombra 17
1.1.4 Arauto 19
1.1.6 Camaleo 20
1.1.7 Pcaro 21
3 CONSIDERAES FINAIS 88
4 REFERNCIAS 93
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INTRODUO
O que torna uma histria boa? Essa pergunta certamente feita por milhares
de escritores e roteiristas que desejam ver sua histria triunfar sobre as outras.
A questo tambm pode ser posta por aqueles apaixonados por livros, filmes
e videogames e que gostam de analisar suas obras preferidas.
Ento, o que faz uma pessoa gostar (ou no) de determinada histria? Claro
que existe a subjetividade de cada um, que faz com que o conhecimento e as
experincias passadas moldem a viso de mundo e a interpretao sobre uma
experincia nova. Porm, essa resposta no suficiente. As histrias parecem
conter algo de universal, que faz com que uma narrativa seja instigante ou
deplorvel para a maioria das pessoas o que determina se elas se tornaro obras
clssicas ou sero esquecidas pelo tempo.
Christopher Vogler, autor de A Jornada do Escritor, tambm se fez essa
pergunta em algum momento de sua vida. A partir dos estudos de Joseph Campbell,
que identificou padres na estrutura narrativa das histrias mitolgicas e arqutipos
de personagens, Vogler verificou a forma com a qual as histrias atuais poderiam
emocionar o pblico a partir dos conceitos universais do inconsciente humano.
A Jornada do Heri, nome que Vogler deu a esta estrutura, pode ser vista
em boa parte das histrias j produzidas. No se trata de copiar uma frmula, mas
de usar os estgios da jornada para transformar o protagonista, criar funes
definidas para os personagens e contar a histria de forma coesa e gradual.
O objetivo deste trabalho analisar como a Jornada do Heri acontece no
jogo eletrnico The Last of Us. Lanado em 2013 pela produtora Naughty Dog (e
distribudo pela Sony para o videogame PlayStation 3), The Last of Us (abreviado
como TLoU) sucesso de pblico e crtica como poucas vezes acontece.
Considerando como base o site Metacritic, que agrega notas de veculos
especializados e do grande pblico, o jogo possui a mdia 9,5 em 98 anlises da
imprensa. Apenas quatro jogos possuem uma nota mais alta entre os jogos de
PlayStation 3, mas todos ficam com uma mdia abaixo se a nota do pblico for
considerada. The Last of Us possui mdia de 9,1 em anlise de 7.401 de usurios,
sendo o nico jogo com uma nota superior a nove nesse quesito.
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1 A JORNADA DO HERI
Uma boa histria faz a gente achar que viveu uma experincia
completa e satisfatria. [...] Terminamos uma histria com a sensao
de que aprendemos alguma coisa sobre a vida ou sobre ns mesmos.
Como que os autores conseguem isso?. (VOGLER, 2006, p. 36).
produo em massa dos grandes estdios, mas avisa que o artifcio deve ser
empregado com parcimnia e sensibilidade em relao s necessidades especficas
de uma histria. De acordo com Vogler, a percepo consciente desses padres
pode ter resultado adverso, pois fcil criar clichs e esteretipos descuidados. [...]
A utilizao proposital e desastrada deste modelo pode gerar algo entediante e
previsvel (VOGLER, 2006, p. 19).
Para o autor, os escritores devem usar a Jornada do Heri para criar formas
novas e originais a partir de elementos antigos e imutveis. Segundo ele, a Jornada
do Heri se estabelece como uma ideia platnica: um modelo divino no qual cpias
infinitas e variadas podem ser produzidas, cada uma repercutindo o esprito
essencial da forma sua prpria maneira.
1.1.1 Heri
O heri (independentemente do gnero) o protagonista da aventura. Na
essncia da palavra, aquele disposto a sacrificar suas prprias necessidades em
14
benefcio dos outros (Vogler, 2006, p. 75). Por esse motivo, em diversas ocasies o
heri voltado para o grupo, a sociedade da qual faz parte. Nesse caso, sua histria
geralmente traz a separao desse grupo (primeiro ato), sua aventura solitria em
um lugar remoto (segundo ato) e, muitas vezes, sua reintegrao final com o grupo
(terceiro ato) (VOGLER, 2006, p. 85) a relao que Joseph Campbell
estabeleceu entre as histrias mitolgicas e os rituais primitivos. Embora a
reintegrao sociedade seja comum (principalmente na cultura ocidental), ela no
obrigatria. O heri pode optar por ficar no mundo do segundo ato, elemento mais
usual em contos asiticos e indgenas.
Por ser o personagem principal, o arqutipo de heri talvez seja o que tenha
mais funes dramticas, o que faz com que o papel possa ser exercido de diversas
formas. Em contrapartida ao heri voltado ao grupo, por exemplo, temos o heri
solitrio arqutipo bastante usado em filmes de faroeste. Esse tipo de heri
basicamente uma inverso em relao ao heri orientado ao grupo. O estado natural
do protagonista a solido e a histria comea com o seu afastamento da
sociedade. A jornada de retorno ao grupo (primeiro ato), aventura dentro do
grupo, no ambiente normal do grupo (segundo ato), e retorno ao isolamento na
natureza (terceiro ato) (Vogler, 2006, p. 85). A escolha final tambm se trata de
voltar origem (de solido) ou permanecer no mundo do segundo ato (nesse caso,
terminando como um heri ligado ao grupo ao optar por permanecer na sociedade).
A principal funo do heri (pelo menos no comeo da narrativa) fazer com
que a plateia se identifique com ele. Para Vogler (2006), os heris precisam ter
qualidades admirveis para que queiramos ser como eles, j que a histria ser
contada por meio de sua perspectiva. Alm disso, eles devem ter motivaes que
causem empatia:
Outro fator que pode ser identificado em um heri a sua disposio para a
jornada. Enquanto alguns heris so decididos e automotivados, outros tero
dvidas e hesitaes, o que cria a necessidade de personagens que o empurrem
para a aventura. No entanto, independentemente do tipo de heri que esteja em
uma histria, inevitvel que em determinado momento haja um confronto com a
morte, mesmo que apenas de forma metafrica. Alguns exemplos incluem o heri
morrer simbolicamente para renascer transformado, lidar com a perda de algum
prximo ou encarar a morte no sentido mais heroico possvel: sacrificar-se por um
ideal, uma causa ou um grupo.
1.1.2 Mentor
O heri nunca est sozinho, pois ao seu lado h o arqutipo de mentor. A
relao entre Heri e Mentor um dos temas mais comuns da mitologia, e um dos
mais ricos em valor simblico. Representa o vnculo entre pais e filhos, mestre e
discpulo, mdico e paciente, Deus e o ser humano (VOGLER, 2006, p. 56). Em
relao ao heri, esse arqutipo responsvel por treinar, proteger ou oferecer
conselhos e entregar itens importantes. A figura do mentor a representao do que
o heri pode se tornar caso ele continue em sua jornada. Para Vogler (2006), o
mentor muitas vezes o heri que sobreviveu aos obstculos do passado e agora
compartilha seu conhecimento e sabedoria com algum mais jovem.
A principal funo do mentor ajudar o heri. Na hesitao inicial do
protagonista, o mentor responsvel por motiv-lo ou ajud-lo a superar o medo
para embarcar em sua jornada. A funo pode ser exercida de diferentes formas. O
mentor pode funcionar como a conscincia do heri ou servir para lembr-lo de um
cdigo moral a ser seguido.
Outro atributo comum aos mentores a tendncia a dar um presente que
ser til em um momento decisivo. No por acaso, alguns mentores podem ser
cientistas ou inventores, que entregam um equipamento ou compartilham
conhecimento com o protagonista. Geralmente esse presente entregue no comeo
da aventura, mas usado apenas posteriormente:
Nas anlises de contos de fadas, Vladimir Propp (2006) definiu esse papel
como o de doador ou provedor aquele que provm um item mgico (ou conselho
vital) que ser usado no pice do confronto do heri contra o vilo. Nesse caso, o
heri deve passar por algum tipo de teste para que o presente seja merecido.
Existem diferentes tipos de mentor. Em um universo com valores invertidos,
um anti-mentor pode ajudar um anti-heri a evoluir no mundo do crime ou da mfia.
Outro exemplo de inverso acontece quando o mentor se sente inseguro pela
possibilidade de ser superado pelo heri e adquire traos do arqutipo de guardio
de limiar. Nesse caso, ele se torna um obstculo e faz o oposto de sua funo
primordial: cria dvidas para o heri em vez de motiv-lo.
Outro modelo o mentor cado. Esse tipo de personagem vive uma crise
(como envelhecimento ou aproximao da morte) que coloca em cheque a sua
capacidade de ajudar o heri. possvel que esse mentor tenha de encarar a sua
prpria Jornada do Heri para se reerguer e estar apto a fornecer o seu auxlio.
Assim como os outros arqutipos, a funo de mentor pode ser dividida entre
vrios personagens cada qual com uma contribuio diferente para o heri e se
manifestar em personagens improvveis, que ensinem sem querer ou sirvam apenas
como exemplo a no ser seguido. Da mesma forma, a funo nem sempre precisa
ser externalizada. Personagens experientes e calejados geralmente dures e
reclusos, como os heris de faroeste podem no precisar de um mentor, mas j
trazem o arqutipo internalizado em um cdigo de conduta ou noo de honra.
Nesse caso, o heri pode apenas mencionar um mentor do passado ou possuir um
objeto que represente essa lembrana.
1.1.3 Sombra
Durante uma narrativa, habitual que o heri enfrente a fora negativa do
arqutipo de sombra geralmente representado pelo vilo ou antagonista, que se
dedica morte, destruio ou derrota do heri (Vogler, 2006, p. 123). A
principal funo do arqutipo trazer um adversrio preo para o protagonista, que,
ao ser desafiado e ter a vida ameaada, forado a mostrar o que possui de melhor.
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Uma representao muito forte do arqutipo de sombra pode vir por meio de
sentimentos reprimidos. Um trauma profundo ou sentimento de culpa guardado no
inconsciente pode justificar as aes do vilo ou explicar o lado sombrio do
protagonista.
1.1.4 Arauto
Na maioria das histrias, o heri vive em sua rotina at receber um chamado
para a aventura. Trata-se de uma fora que desafia o protagonista e sinaliza a
mudana no enredo. Esse o arqutipo do arauto, cujo nome vem da Idade Mdia e
era usado para designar os mensageiros oficiais dos reinos (vale notar que a palavra
em ingls, herald, ainda hoje comumente usada em nomes de jornais pelo
mundo).
O arauto responsvel por fornecer a motivao que tira o heri de sua zona
de conforto e o coloca no caminho da aventura. Uma nova pessoa, condio ou
informao desequilibra de vez o heri; da por diante, nada, nunca mais, ser igual.
preciso tomar uma deciso, agir, enfrentar o conflito (VOGLER, 2006, p. 110).
Qualquer personagem capaz de vestir a mscara de arauto, seja ele uma
figura positiva, neutra ou negativa. Um vilo pode atrair o heri para o perigo,
enquanto um aliado pode convocar o protagonista a uma aventura necessria para
restaurar a ordem do mundo. Tambm possvel que o arqutipo seja uma fora da
natureza, como uma tempestade que sinalize uma grande alterao ou algum outro
tipo de aviso. Um telefonema ou uma mensagem que afete o equilbrio do heri e
desperte um chamado interior podem bastar para indicar a mudana em sua vida.
heri provar seu valor. Essa provao pode ser explcita, como resolver um enigma,
ou mais sutil, como superar uma adversidade na carreira de trabalho.
Para Vogler (2006), existe a tendncia de que o guardio de limiar se torne
um aliado caso o heri seja plenamente desenvolvido. Nesse caso, o protagonista
se compadece de seu adversrio e prefere transcend-lo a destru-lo. Em vez de ser
derrotado, o guardio de limiar incorporado pelo heri, que absorve seus truques
antes de seguir em frente.
O guardio de limiar pode assumir diversas formas, desde algo mais prximo
ao nome do arqutipo, como o guardio de um lugar ou um sentinela, at um
professor que aplica uma prova. Assim como os arautos, esse arqutipo no precisa
necessariamente estar encarnado em um personagem, podendo ser identificado
como uma fora da natureza ou um elemento arquitetnico que obstrua o heri.
1.1.6 Camaleo
Ao longo da jornada, possvel que o heri se depare com um personagem
que parea estar sempre mudando. Esse o arqutipo de camaleo, cuja principal
funo dramtica confundir o protagonista, adicionando dvida e suspense ao
enredo.
O camaleo um personagem instvel, que se transforma e se disfara. Com
essa essncia malevel, geralmente difcil dizer de que lado da histria ele
realmente est. O arqutipo pode aparecer como potencial par romntico do
protagonista, justamente por bagunar a mente do heri com o jogo da conquista.
No entanto, quando o camaleo comea a modificar sua identidade (que pode ser
notado por uma mudana de aparncia ou comportamento), sua fidelidade passa a
ser colocada em xeque.
Um tipo bastante conhecido do arqutipo a femme fatale. Trata-se de uma
personagem sedutora que usa seu charme para manipular os homens ao seu redor.
comum que ela esconda um segredo perigoso, como ser uma assassina que
espera a hora certa para atacar. Tambm existe o hommes fataux para designar os
personagens masculinos nesse estilo, apesar do termo ser menos conhecido.
Assim como nos outros arqutipos, diferentes personagens podem usar a
mscara de camaleo. Um heri pode se disfarar para superar um guardio de
limiar ou escapar de uma enrascada, enquanto um vilo pode se transformar para
ludibriar o protagonista.
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1.1.7 Pcaro
Outro tipo de personagem bem conhecido o pcaro. O arqutipo traz dentro
de si um desejo de mudana do status quo, a ordem atual do mundo em que vive.
Com suas tiradas ou tendncia a pregar peas, o pcaro atenta o pblico para o
desequilbrio ou estagnao da conjuntura. Sua principal funo, no entanto, trazer
o alvio cmico para o enredo, essencial at nas histrias mais srias.
O pcaro pode ser um aliado ou criado do protagonista, ajudante do vilo ou agir por
conta prpria. De forma geral, costuma ser um personagem catalisador, que
subverte a ordem e afeta a vida dos outros a sua volta, mas que muda pouco ao
longo da jornada. Isso vale para os heris picarescos no gnero de comdia. Em
outros casos, o personagem principal pode usar da mscara de pcaro para enganar
um guardio de limiar ou seu antagonista.
Em outras circunstncias, pode ser que o heri precise ser resgatado por
meio de auxlio externo. Nesse caso, o mundo natural vai ao seu encontro para
traz-lo de volta. Porm, independente da forma como o protagonista deixa a regio
sobrenatural, ele deve retornar para casa e, na posse do elixir, enfrentar a
sociedade. O heri tem de receber o choque do retorno, que vai de queixas
razoveis e duros ressentimentos atitude de pessoas boas que dificilmente o
compreendem (CAMPBELL, 1997, p. 213). Aps o retorno, o heri, renascido pela
jornada, pode ter a liberdade de ir e vir pelos dois mundos (a liberdade para viver).
Os 17 estgios da Aventura do Heri no so rgidos para cada histria. Os
elementos podem ser ampliados, duplicados, fundidos, reprimidos, distorcidos e
eliminados. A estrutura bsica, no entanto, possui poucas variaes. Campbell
resume:
par em uma comdia romntica. Esse estgio estabelece o motivo da aventura a ser
percorrida. O Chamado Aventura [...] deixa claro qual o objetivo do heri:
conquistar o tesouro ou o amor, executar vingana ou obter justia, realizar um
sonho, enfrentar um desafio ou mudar uma vida (VOGLER, 2006, p. 55).
normal que o heri mostre relutncia em deixar o Mundo Comum para
entrar na aventura. A Recusa do Chamado marca a hesitao em sair para o
desconhecido. Muitas vezes, necessria outra influncia para que o heri deixe de
recuar, como uma mudana nas circunstncias, uma nova ofensa ordem natural
das coisas, ou o encorajamento de um Mentor (VOGLER, 2006, p. 56).
O mentor, alis, desempenha um papel importante em qualquer histria. Ele
responsvel por preparar o heri para o Mundo Especial, seja ao oferecer conselhos,
treinamento, orientao, motivao, equipamentos ou itens mgicos. O Encontro
com o Mentor geralmente se d como quarto estgio da jornada, embora o
personagem que cumpra a funo do arqutipo possa j ter sido apresentado ou
aparea novamente mais tarde. Segundo Vogler, a apario de um mentor uma
considerao prtica ao mbito do enredo. Pode ser necessrio, em qualquer ponto
da histria, a presena de um personagem [...] que possa dar ao heri a informao
vital no momento exato (VOGLER, 2006, p. 100-101).
A Travessia do Primeiro Limiar marca a passagem do primeiro para o
segundo ato. o momento em que o heri decide responder ao Chamado
Aventura e parte para o Mundo Especial. A jornada tem incio: o balo sobe, o navio
faz-se ao mar, o romance comea, o avio levanta voo, a espaonave lanada, o
trem parte (VOGLER, 2006, p. 57).
Enquanto o primeiro ato estabelece a deciso do heri em agir, no segundo
que a ao se desenrola at por isso, este ato costuma ter o dobro de tempo em
relao aos outros dois. Os estgios que compe o segundo ato so: 6) Testes,
Aliados, Inimigos; 7) Aproximao da Caverna Oculta; 8) Provao; e 9)
Recompensa (Apanhando a Espada).
Aps a Travessia do Primeiro Limiar, o heri deve conhecer as regras do
Mundo Especial e encarar seu primeiro teste, algo que o preparar para os desafios
futuros. Esse o momento em que o heri conhece os adversrios aqueles que
impedem o caminho para o objetivo da jornada , e os aliados, os que estaro ao
lado dele durante a aventura. Bares costumam ser um local propcio para esse tipo
de interao, principalmente nos saloons de filmes de faroeste. comum que o
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Nem sempre essa morte significa que o heri esteja (ou parea estar) morto.
Ela pode ser simblica, como o aparente fim de um relacionamento nas comdias
romnticas, com o protagonista testemunhando a morte de algum prximo (que ele
sente, dentro de si, como sendo a sua prpria) ou com o personagem principal
matando algum e tendo de lidar com o fato. De qualquer forma, essa relao com a
morte precisa ser algo de impacto, que altere a essncia do heri, para que ele
possa renascer transformado.
O estgio da Provao marca a crise do enredo: o auge do embate entre o
heri e as foras hostis, que acontece no principal ponto da histria, como, por
exemplo, quando o protagonista chega no topo da montanha, ao ponto mais
profundo da caverna, ao corao da floresta, ao interior mais ntimo de um pas
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estrangeiro, ao lugar mais secreto de sua prpria alma (VOGLER, 2006, p. 234). A
Provao divide a histria em duas partes. Aps esse momento, tudo o que sucede
o retorno do heri. A crise se d no segundo ato e diferente do clmax, que
acontece como consequncia dessa ao e arremata a histria no terceiro ato.
Vogler (2006) cita dois exemplos de como a Provao pode ser posicionada na
narrativa: a crise central e a crise retardada. A primeira, colocada bem no meio do
enredo, possui a vantagem da simetria e concede bastante tempo para os efeitos da
Provao se desenrolarem. J o retardamento da crise permite maior durao para
os preparativos (a Aproximao da Caverna Oculta) at o grande momento, que se
d ao final do segundo ato. Nesse caso, a crise fica mais prxima do clmax ou
seja, a consequncia principal da ao acontece mais rpido do que na crise central.
Aps ter sobrevivido Provao, o heri recompensado. O estgio da
Recompensa (Apanhando a Espada) mostra o xito do protagonista em obter o
tesouro que ele estava procurando e serve como um alvio na tenso da histria.
Vogler (2006) usa a ideia de apanhar a espada para representar qualquer objeto,
como o elixir que, nos mitos, possui a capacidade de cura. s vezes, o
conhecimento pode levar o heri a expandir sua conscincia, o que faz com que a
recompensa seja o aprendizado dele durante a aventura. Em outros casos, o prmio
pode ser a reconciliao com o par romntico, com algum membro da famlia ou
mesmo com as foras hostis.
Depois de obter a Recompensa, o protagonista precisa voltar para casa.
Comea o terceiro ato, que marca o retorno do heri e traz as consequncias das
aes do ato anterior. Os estgios que compe esse arco da histria so: 10)
Caminho de Volta; 11) Ressurreio; e 12) Retorno com o Elixir.
O Caminho de Volta o momento em que o heri toma a deciso de voltar
ao Mundo Comum. No entanto, os efeitos da Provao vm tona. Aps a obteno
da Recompensa na Caverna Oculta, o antagonista ou outras foras hostis que ainda
habitam o Mundo Especial perseguem o protagonista e dificultam o seu retorno.
A seguir, o heri passa pela Ressurreio um segundo momento de vida
ou morte. basicamente uma repetio do estgio da Provao: o protagonista
deve se deparar com a morte para ressuscitar purificado e transformado antes do
seu retorno para o Mundo Comum. Nesse ponto ocorre o clmax da histria o
momento mais importante , que pode ser representado por uma batalha final ou
uma deciso difcil. uma espcie de exame final do heri, que deve ser posto
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prova, mais uma vez, para ver se realmente aprendeu as lies da Provao
(VOGLER, 2006, p. 64).
O ltimo estgio Retorno com o Elixir traz o protagonista voltando para
casa em posse da beno conquistada. O heri retorna ao Mundo Comum, mas a
jornada no tem sentido se ele no trouxer de volta um elixir, tesouro ou lio do
Mundo Especial (VOGLER, 2006, p. 65).
Com o objetivo cumprido e de volta para casa, o ciclo da jornada se encerra.
O heri retorna com uma beno, que pode ser uma recompensa fsica, como um
tesouro, ou algo imaterial, como a reconquista do amor ou da liberdade, a sabedoria
da experincia ou o simples conhecimento da existncia do Mundo Especial. No
entanto, se o heri tolo e retorna sem aprendizado, ele est fadado a repetir a
aventura (tipo de final geralmente usado em comdias).
Vogler resume os 12 estgios da Jornada do Heri:
2.1 Estgio Um
Uma Grande Perda
pede para Tommy ligar o rdio, e ele percebe que a transmisso assim como os
celulares j no funcionam. No entanto, antes de chegar casa de Joel, ele ouviu
que o exrcito estava montando barreiras na rodovia. Tommy avisa que outras
cidades esto lidando com a mesma situao. Em um dado momento, eles veem um
casal com uma criana na beira da estrada. Tommy faz meno de parar para ajud-
los, mas Joel prefere no correr o risco e fala para ele seguir dirigindo. Sarah fica
ressentida por no terem parado.
Uma das funes do Mundo Comum apresentar o heri plateia e
estabelecer um vnculo entre o heri e o pblico. Tommy e Sarah ajudam no
propsito de mostrar Joel como uma pessoa normal, integrante de uma famlia. O
heri deve sempre ser reconhecido como semelhante, para que o pblico aceite
entrar na pele do heri e ver o mundo com seus olhos (Vogler, 2006, p. 148).
Tambm importante apresentar Tommy (e sua relao com Joel), j que ele
reaparecer mais tarde na histria.
Ao chegarem na sada para a rodovia, o trio percebe que muitas pessoas
tiveram a mesma ideia: o trfego est parado devido quantidade de veculos. O
motorista do carro em frente deixa o veculo para reclamar e atacado por dois
infectados. Joel manda Tommy sair dali; o irmo usa a marcha r e comea a
procurar uma rota alternativa. Em um cruzamento, o carro deles atingido com fora
por outro veculo e a tela fica toda preta.
A cena seguinte mostra Joel desacordado no carro virado de lado. Sarah, no
banco de trs, acorda o pai, que v o motorista infectado do outro carro atacando o
passageiro (o que explica o acidente). Sem ferimentos graves, Joel percebe a
urgncia da situao e, agora sob comando do jogador, quebra o vidro da frente
para sair do veculo. Assim que se levanta, atacado por um infectado, mas Tommy
que j estava fora do carro o acerta com um tijolo na cabea.
Joel ajuda Sarah a deixar o veculo e passa a carregar a garota nos braos
devido a um ferimento na perna dela. Tommy avisa que eles precisam correr: a rea
est cheia de infectados e pessoas fugindo deles. Joel entrega seu revlver para
Tommy e pede que ele garanta a segurana. A situao catica: humanos sendo
atacados pelas criaturas, carros batidos em todos os lugares e locais pegando fogo.
O trio segue por um beco e Tommy lida com infectados que aparecem. Eles
encontram um restaurante e entram rapidamente, mas Tommy no consegue fechar
a porta por conta das criaturas que tentam entrar. Ele diz para o irmo seguir em
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frente at a rodovia, j que Joel est carregando Sarah, enquanto ele pode correr
mais rpido que os infectados se for o caso. Joel avisa que esperar por Tommy e
sai pelo outro lado do restaurante.
Sendo perseguido por dois infectados, Joel corre para uma ponte pela qual a
rodovia passa. Ao se aproximar do local, as criaturas so abatidas com disparos de
um soldado que protege a passagem. Joel diz que precisa de ajuda e que Sarah
deve estar com a perna quebrada. O guarda diz com veemncia para ele parar de
avanar e Joel avisa que eles no esto doentes. O soldado transmite por rdio a
informao de que dois civis esto no permetro. Aps receber a resposta, que nem
os personagens nem o jogador podem ouvir, o homem tenta argumentar (Senhor,
h uma garota pequena), mas acaba acatando a ordem e atira.
Joel se vira para tentar proteger Sarah ainda em seus braos , mas os
dois caem. O soldado se aproxima para matar Joel. No entanto, prximo a efetuar o
disparo fatal, ele leva um tiro na cabea dado por Tommy. Joel no est ferido, mas
o jogador pode ouvir gemidos de sofrimento por parte de Sarah. O pai logo percebe
o que aconteceu e se aproxima na tentativa de estancar o sangramento causado
pela bala. Joel coloca a garota em seu colo, tentando confort-la de que tudo ficar
bem. Sarah morre nos braos de Joel.
Apesar de ter uma participao pequena (mas decisiva) na histria, esse
soldado um guardio de limiar, exemplo de personagem responsvel por impedir a
passagem do heri. Nesse caso, porm, ele no representa um desafio que deve ser
superado por Joel, mas realiza a ao que ser determinante para moldar a
personalidade do protagonista no restante da narrativa.
O personagem principal de The Last of Us se encaixa no conceito de heri
ferido. Como ser visto no decorrer da histria, Joel passa a ter uma profunda ferida
psicolgica por conta da morte de Sarah. Tal fato humaniza o personagem,
igualando-o maioria das pessoas, j que quase todos possuem uma velha dor ou
machucado em que no pensam a toda hora, mas est sempre ali, vulnervel, em
algum nvel da conscincia (Vogler, 2006, p. 151-152).
narrados sobre a condio atual do mundo. Essa montagem informa o caos que se
sucede aps a ecloso da epidemia.
O enredo avana vinte anos no tempo e inicia-se o arco do vero. Sem
considerar o prlogo, a histria de The Last of Us acontece aproximadamente no
perodo de um ano e dividida em quatro arcos, cada um representado por uma
estao do ano. Alm de marcar a passagem de tempo, a sucesso das estaes
indica o ciclo de desenvolvimento de Joel. Na definio de Jean Chevalier e Alain
Gheerbrant, autores do Dicionrio dos Smbolos (1982), as estaes simbolizam a
alternncia cclica e os perptuos reincios, ilustrando assim o mito do eterno
retorno.
Em 2033, cerca de 60% da populao mundial j foi atingida pela Infeco
Cerebral do Cordyceps (ICC). A infeco comum em insetos e invertebrados
sofreu uma alterao e comeou a afetar o sistema nervoso dos humanos,
transformando-os em criaturas que perdem a humanidade. A origem da doena
nunca foi descoberta, mas ela se espalhou devido a plantaes contaminadas.
Duas dcadas aps o surto pandmico, o sistema de organizao da
sociedade mudou muito. Aps a Organizao Mundial da Sade falhar na tentativa
de criar uma vacina contra a infeco do Cordyceps, a Agncia Federal de Resposta
a Desastres (FEDRA) assumiu as foras militares dos Estados Unidos e decretou lei-
marcial, onde no existe nenhuma outra forma de governo. Em diversas cidades
foram criadas zonas de quarentena comandadas com rigor pela FEDRA, com
autoritarismo militar sobre a entrada e sada de pessoas, regulao de comida para
os civis e controle para evitar pessoas infectadas nas imediaes. Em contrapartida,
foi criada uma organizao rebelde chamada Vagalumes, com intuito de derrubar a
FEDRA do poder e reestabelecer a ordem padro. Contra a tirania militar, eles
realizam ataques s zonas de quarentena com o intuito de enfraquecer o novo
governo. Os Vagalumes existem em grupos espalhados pelos Estados Unidos e
possuem outro grande ideal: buscar uma cura para a infeco, objetivo no
descartado apesar das tentativas frustradas de se criar uma vacina.
Joel agora vive na zona de quarentena de Boston com Tess, sua parceira. Os
dois fazem negcios juntos: saem ilegalmente da cidade para trocar e vender
recursos com outros sobreviventes. Como o dinheiro no faz mais sentido no mundo
ps-apocalptico, cartes que valem rao de comida na zona de quarentena
costumam ser usados como moeda.
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A primeira cena nesse novo cenrio Joel sendo acordado com batidas na
porta de seu apartamento. Tess entra. Apesar de ainda ser manh, ela se serve do
usque que est em cima da mesa. Tess avisa que traz notcias interessantes e Joel,
impaciente, pergunta onde ela estava. A mulher diz que foi ao distrito de West End,
onde eles tinham uma entrega para fazer. Joel se queixa que ela foi sem ele e Tess
responde voc queria ficar sozinho, lembra?, indicando uma briga anterior entre os
dois.
O tipo de relao entre Joel e Tess nunca fica muito claro na histria. Os dois
so muito parecidos: so dures o que julgam ser necessrio para sobreviver ,
no hesitam caso precisem matar algum, no falam de sentimentos e no mostram
afeto. Apesar de confiarem um no outro para os negcios e estarem sempre juntos,
no explcito se a relao deles tambm amorosa.
Tess est machucada no rosto e Joel, irnico, acredita que a entrega deu
errado e o cliente fugiu sem pagar. Tess fala que deu tudo certo e mostra os cartes
de comida obtidos na troca. Joel ento pede para explicar o machucado e ela diz
que foi atacada por dois homens. Joel passa a limpar as feridas de Tess e pergunta,
de forma indireta, se ela matou os sujeitos. Tess d uma resposta evasiva (que pode
ser entendida como bvio que matei). Joel pergunta, ento, se ela sabe quem eram
os homens. Ela diz que isso no interessa; o que importa que eles foram
mandados por Robert, um negociante de armas que prejudicou Joel e Tess fica
subentendido que ele no entregou armas pelas quais a dupla pagou. Tess sabe
onde Robert est escondido e ela e Joel decidem ir atrs dele.
Nesse momento, sabemos muito pouco sobre o que aconteceu durante o
intervalo de vinte anos que se passou na histria. O perodo compe a histria
pregressa, o conjunto de informaes sobre o passado do personagem. Segundo
Vogler (2006), melhor colocar o pblico direto na ao e deixar que ele venha
adivinhando as coisas medida que a histria se desenrola. The Last of Us faz isso
muitas vezes, sem uma narrao ou personagem para explicar o que aconteceu,
deixando o jogador explorar o mundo e entender por si mesmo fatos passados que
levaram ao momento atual.
no pode responder e Joel quebra seu brao. Tess pergunta novamente e ele diz
que est com os Vagalumes. Em uma ltima atitude de desespero, Robert prope se
aliar com Joel e Tess para atacar os Vagalumes e recuperar as armas. Tess diz que
essa uma ideia idiota e, sem hesitar, mata Robert com dois tiros. Joel pergunta o
que eles devem fazer a seguir. Tess responde que eles devem ir atrs da
mercadoria e tentar recuper-la de alguma forma: Vamos procurar um
Vagalume.
entender que Joel ainda leva consigo a dor pela perda da filha e no superou o seu
trauma, motivo pelo qual se tornou defensivo e sem mostrar sentimentos. O fato de o
relgio estar quebrado significativo, pois metaforiza a condio do prprio Joel: ele
tambm est quebrado, parado no tempo, e agora Sarah no est mais viva para
lhe dar um relgio novo. Joel precisa passar pela Jornada do Heri para que possa
ser "consertado", ou seja, para que o heri consiga superar a dor pela perda da filha
e reaprenda a demonstrar sentimentos e se importar com mais algum.
Aps um determinado tempo, Joel acorda no sof. Ellie, que aparentemente
no dormiu, observa a noite chuvosa pela janela e tenta puxar assunto. Ela conta
que Joel falava enquanto dormia. Odeio sonhos ruins, conclui a garota, e Joel
concorda. A seguir, ela comenta que nunca esteve to perto de sair da cidade e
pergunta se l fora pode ser pior do que a parte de dentro.
Joel fica quieto at perguntar o que diabos os Vagalumes querem com
voc?, o que contraria a afirmao anterior de que ele no se importava em saber.
Antes que a garota possa dar uma resposta, Tess chega sozinha ao local. Ela diz
para Ellie que Marlene ficar bem e conta para Joel que h bastante mercadoria
pela realizao do servio. Tess confirma se Joel quer fazer o trabalho. Ele responde
um sim sem animao e a dupla segue com Ellie.
comece de fato. Pode-se analisar que eles servem para mostrar se os heris
(principalmente Ellie, que demonstra mpeto e coragem) esto preparados para o
desafio.
Enquanto um soldado chama reforos para buscar o trio, o outro comea a
escane-los para ver se esto infectados. Ele examina Tess e Joel e se aproxima de
Ellie. Porm, no instante em que usa o aparelho na garota, Ellie rapidamente pega
uma faca e acerta a perna do soldado. Ele reage e mira o revlver nela, mas Joel
derruba o homem e o mata com um tiro Tess atira no outro guarda.
Em seguida, Tess pega o aparelho do cho e v que ele marca positivo.
Joel pergunta se Marlene tentou armar para cima deles ao entregar a tarefa de
contrabandearem uma garota infectada. No entanto, Ellie diz que no est infectada
e pode explicar a situao. Ela mostra uma mordida em seu brao e diz que j se
passaram trs semanas, quando o normal uma pessoa se transformar em dois
dias. Ela imune.
Eu no acredito, responde Joel de imediato, mostrando mais uma vez sua
tentativa de recusa ao Chamado Aventura. A situao de levar Ellie se mostra
cada vez mais perigosa e Joel quer se livrar desse problema. O terceiro estgio da
Jornada do Heri cumpre uma funo dramtica importante: mostrar que a aventura
possui riscos e ameaas.
Antes que o trio possa debater mais sobre a situao de Ellie, o reforo de
soldados se aproxima do local e cria uma situao de emergncia. Joel fala para
Tess correr e segue na frente. Tess acode Ellie para acompanh-los. O trio segue de
forma sorrateira por caminhos alternativos. Em uma longa travessia por prdios
abandonados, eles desviam de diversas patrulhas (embora o jogador possa optar
pelo conflito) e conseguem escapar. Em um momento de calma, Tess quer saber
qual o plano de Marlene. Ellie explica que os Vagalumes possuem uma zona de
quarentena prpria com mdicos que ainda procuram a cura para o Cordyceps. Para
Marlene, Ellie seria a chave para uma vacina, j que a infeco no afetou a garota.
Joel se mostra ctico (J ouvimos isso antes, no , Tess?) e ironiza as
falas da garota. Ellie se irrita com Joel e diz que no pediu por nada do que est
acontecendo. Joel rebate dizendo que ele tambm no, mostrando a insatisfao de
ter que lev-la, e questiona Tess sobre estarem seguindo em frente. E se for
verdade? J chegamos at aqui. Vamos at o fim, responde Tess, para
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No acredito que fizemos isso. Deixamos ela para morrer, lamenta Ellie,
culpada pelo sacrifcio de Tess. Joel se nega a conversar sobre isso e pede apenas
para que ela fique quieta. Tiros so ouvidos e o corpo de Tess pode ser visto
quando os personagens avanam pelo andar de cima do Congresso. Enquanto
enfrentam ou desviam de um grupo de soldados, possvel notar uma quantidade
maior de dilogo entre Joel e Ellie. Como Joel agora o responsvel pela garota, ele
a protege pedindo para que fique prxima, avance ou abaixe. Os dois conseguem
sair do prdio e avanam para uma estao de metr.
H esporos do Cordyceps na estao subterrnea e Joel coloca a sua
mscara anti-gs. Ele pergunta como Ellie consegue respirar sem esse tipo de
equipamento e ela responde que no estava mentindo sobre ser imune. Essa uma
comprovao que d a Joel a garantia para confiar na garota.
A seguir, eles precisam passar pela linha do metr, que est alagada. Ellie
revela no sabe nadar e Joel diz que eles daro um jeito. Ele entra na gua e
encontra uma plataforma de madeira. Ellie sobe e Joel leva-a at o outro lado em
segurana. Por sua vez, a garota coloca uma escada para Joel subir.
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paisagem e diz que nunca andou por um bosque. Essa nova experincia mostra a
garota como criana em seu senso de descoberta e estreita a viso paternal de Joel
(e do jogador) sobre ela. Alm disso, ao pensar que Ellie v um lugar desses pela
primeira vez, o jogador levado a imaginar como foi a vida da garota, que j nasceu
no mundo ps-apocalptico e cresceu sem nunca ter conhecido o mundo anterior.
A conversa muda de rumo. Por que voc no me leva de volta para
Marlene?, pergunta Ellie. Joel rebate com outra pergunta: Se ela pudesse cumprir
a tarefa, por que te deixaria conosco?. Ellie justifica que Marlene pode estar melhor
de seu ferimento agora, mas Joel diz que a chance de sobrevivncia dos Vagalumes
nunca foi muito alta. Ele ainda diz que, na verdade, isso no importa, porque pensa
que os dois no conseguiriam entrar de volta na cidade. Acredite, eu gostaria que
houvesse outra opo, finaliza.
Do ponto de vista de enredo, esse dilogo serve para justificar a continuao
da jornada aps a morte de Tess. Joel poderia simplesmente desistir, mas j se
preocupa com Ellie o suficiente para se convencer de que no existe alternativa a
no ser continuar com ela. Suas justificativas provam isso, pois baseiam-se em
considerar a si mesmo um melhor protetor para Ellie do que os Vagalumes. Mais do
que real ausncia de outra possibilidade, fica a sensao de que Joel comea a
apreciar a companhia de Ellie, mesmo dizendo que gostaria que houvesse outra
opo.
Os heris se aproximam da cidade de Bill. O nico jeito de entrar no local
pulando um porto alto que est trancado pelo outro lado. Ellie pede para ser
impulsionada como Joel fazia com Tess , mas Joel se preocupa em mand-la
sozinha para o lado de l. Ellie argumenta que no conseguiria empurr-lo e ele
acaba cedendo. Ela, ento, abre o porto.
Essa outra mecnica que se repete ao longo do jogo e funciona da mesma
forma como a plataforma de madeira para levar Ellie pela gua. A garota precisa de
Joel para sobreviver e avanar, o que simbolizado na ajuda para impulsion-la. Ao
mesmo tempo, Ellie abre a passagem para Joel, mostrando que ela tambm
necessria para ele. Um precisa do outro.
Joel e Ellie avanam pelo lugar, repleto de sistemas de defesa criados por
Bill. Esses so alguns indcios de como o homem paranoico com a sua segurana,
j que h inmeras barricadas e armadilhas explosivas para manter longe os
infectados e os invasores. Joel refora essa ideia com um alerta para Ellie, dizendo
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que Bill no um cara muito estvel. O protagonista diz para a garota deixar que ele
prprio explique a situao quando encontrarem o sujeito, j que Bill no gosta de
estranhos. O dilogo cria expectativa no jogador em conhecer esse personagem,
que mora sozinho em uma cidade inteira. No caminho, Joel encontra um arco-e-
flecha. Ellie diz que uma boa arqueira e pede para usar, justificando que, com os
dois armados, um pode cobrir o outro. Joel nega e mantm o arco para si,
mostrando que ainda no confia tanto na garota.
Ao abrir uma porta, Joel cai em uma armadilha de Bill. Seu p fica preso em
uma corda e, com uma geladeira como contrapeso, ele fica pendurado de cabea
para baixo. A situao fica tensa: enquanto Ellie tenta ajud-lo, Joel deve proteg-la
acertando tiros nos infectados que se aproximam. Quando ela consegue libert-lo e
Joel est no cho novamente, uma criatura o ataca. Ele salvo por Bill, que
decapita o infectado com um faco. Correndo para fugir dos infectados, Bill guia os
dois at seu local seguro.
Ellie agradece pelo herosmo e se apresenta, mas o anfitrio no mostra tanta
gentileza. Bill prende Ellie a um cano com uma algema e aponta uma arma para
Joel: ele quer se certificar de que os dois no foram mordidos. O ponto de virada da
cena acontece quando Ellie consegue soltar o cano da parede e acerta uma
pancada em Bill. Joel a contm.
Bill se zanga (Vocs entram na minha casa, detonam as armadilhas, quase
quebram meu brao bom), mas Ellie mostra seu lado agressivo. Dizendo palavres
algo natural para ela, por ter crescido em um mundo com valores apenas de
sobrevivncia , Ellie explica que eles esto ali por conta de favores que Bill deve a
Joel. Embora o jogador nunca saiba o que levou Bill a ter essa dvida, Joel, diante
das negativas iniciais de Bill, argumenta que os favores anteriores valem a
dificuldade de conseguir um carro. Bill avisa que o nico jeito para que ele possa
tentar consertar um veculo coletar peas espalhadas pela cidade. O trio parte
nessa busca.
A apario de Bill na narrativa cria uma tenso imediata entre ele e Ellie, o
que leva Joel a se tornar mais protetor em relao garota. O fato de Bill e Ellie
lidarem de forma agressiva um com o outro faz com que Joel (e o jogador),
emocionalmente, tenha de escolher um lado nessa disputa de personalidades.
Naturalmente, a escolha (inconsciente) recai sobre Ellie, aquela que devemos
proteger na jornada. A parte final dessa cena simboliza isso: Joel retira a algema que
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Bill colocou em Ellie. A tenso entre os dois se repete em vrios momentos desse
estgio. Bill usa um tom irnico ao saber que Joel est escoltando Ellie e repreende
a garota quando ela mexe em algumas revistas, por exemplo, mas a garota nunca
deixa barato e sempre responde de forma grosseira.
Bill pergunta por Tess, mas Joel evita contar a verdade, dizendo que ela est
ocupada. Bill sugere que h algum problema no relacionamento entre os dois e Joel
apenas concorda para encerrar o assunto. Mais uma vez, o protagonista mostra o
seu sentimento de negao ao lidar com a morte de pessoas prximas. Quando o
trio chega em um poro com armas (para se preparar para a tarefa de buscar as
peas do carro), Bill retoma o assunto e pergunta como Tess concordou com a
misso suicida de escoltar Ellie. Joel, sem contar que ela est morta, diz que a
ideia foi dela. O fato de atribuir a responsabilidade da misso Tess e no a si
mesmo demostra que Joel ainda no admite estar na jornada por escolha prpria.
A funo de Bill no estgio de Encontro com o Mentor comea a se
estabelecer nesse momento, embora ele no tenha a inteno de se encaixar nesse
arqutipo. Bill sugere que Joel leve Ellie de volta ou largue-a no mundo. Na tentativa
de convenc-lo, conta que havia uma pessoa com quem ele se importava e que
precisava proteger, mas que essa relao s serviu para aumentar as chances de
ele morrer e isso o fez perceber que deveria ficar sozinho. Se voc continuar
bancando a bab por muito tempo, vai acabar se dando mal, avisa Bill. Em suas
respostas, Joel expressa que no pode simplesmente deixar Ellie e no concorda
com a viso radical de Bill sobre a solido. Ao posicionar-se assim, Joel parece estar
finalmente assumindo sua jornada ao lado de Ellie, mesmo negando mais uma vez
que a garota leve uma arma consigo.
Mais tarde, ao explorar a cidade, possvel encontrar o corpo de Frank,
antigo parceiro de Bill. Ele se enforcou aps ser mordido por infectados. Ao lado do
cadver h um bilhete em que Frank diz ter se cansado do jeito de Bill e que preferia
morrer a continuar ao lado dele. Assim, entendemos a motivao de Bill para tentar
dissuadir Joel da jornada com Ellie: perder uma pessoa querida, como quando Frank
fugiu, fez com que ele se fechasse ainda mais para o mundo. O bilhete serve de
aviso para Joel, mostrando que Bill serve apenas como um exemplo a no ser
seguido. O jeito arrogante e sem se preocupar com os outros de o levou apenas
destruio (tanto das pessoas prximas quanto de si mesmo) e indica que Joel ter
o mesmo caminho se no souber lidar com seus problemas internos.
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O mentor, muitas vezes, o heri que j viveu a sua jornada e agora possui
experincia o suficiente para ensinar os outros. Bill passa por um trauma semelhante
ao que Joel viveu reforando a relao entre heri e mentor , mas d o conselho
ruim de que o protagonista deveria ficar sozinho em vez de tentar reaprender a se
importar com outra pessoa. Uma das funes do mentor motivar o heri a seguir
sua jornada. Nesse caso, Bill se mostra um mentor s avessas ao tentar dissuadir
Joel. A derrocada de um Mentor enfraquecido e tragicamente cheio de defeitos
pode mostrar ao heri as armadilhas que deve evitar (VOGLER, 2006, p. 95).
Antes de deixarem o poro, Bill mostra um lado mais tradicional do arqutipo
de mentor ao dar um presente para Joel. O heri recebe uma bomba de pregos,
arma que serve para retalhar inimigos que se aproximam do objeto, e uma escopeta.
Prontos para a misso, Bill conta o plano: recuperar a bateria de um caminho militar
que foi atacado por infectados algumas semanas antes.
O trio atravessa diversas reas com infectados e chega at uma escola na
qual est o veculo que procuram. No entanto, a bateria foi retirada do caminho.
Infectados ameaam os personagens, que entram no colgio para se proteger. Na
quadra da escola, eles enfrentam um Baiacu, quarto e ltimo estgio da infeco,
uma criatura enorme que j est infectada h muitos anos. Aps derrot-lo, o trio
deixa o local e se abriga em uma casa prxima. L eles encontram Frank enforcado
e descobrem um carro com a bateria que procuravam (que havia sido levada por
Frank) neste momento que o jogador pode entender o que aconteceu entre Bill e
seu parceiro. Bill diz que o veculo na garagem deve funcionar caso seja empurrado
para dar a partida.
Joel deixa Ellie encarregada de dirigir o veculo enquanto ele e Bill empurram.
De forma tmida, Joel mostra afeio por Ellie dizendo que ela est fazendo um bom
trabalho e a garota responde que no ir decepcion-lo. Joel e Bill empurram o carro
e, aps alguns confrontos com infectados, conseguem fazer o veculo pegar no
tranco e escapam. Em segurana, Ellie estaciona o carro para que Bill possa voltar
cidade enquanto ela e Joel seguem viagem.
Em sua despedida, Bill reafirma que Joel no vai conseguir, mas logo depois
entrega um equipamento para que o heri possa retirar gasolina de outros veculos.
Esse momento resume bem o papel de Bill: ao mesmo tempo em que cumpre a
funo de mentor s avessas, tentando desestimular Joel e servindo como mau
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oportunidades, como, por exemplo, ao ler piadas de um livreto que possui (em
dilogos opcionais que podem ser ativados pelo jogador em momentos pr-
estabelecidos). Segundo Vogler (2006), comum que os personagens pcaros
sejam catalisadores. Ou seja, afetam a vida dos outros, mas eles mesmos pouco
mudam. interessante notar que Ellie se encaixa nesse perfil. Apesar de ela evoluir
em certo grau ao longo da jornada, a garota causa muito mais influncia em Joel do
que o contrrio; Ellie responsvel por alterar de forma fundamental a vida do
protagonista.
Aps jogar a revista pela janela, Ellie sai do banco de trs e se senta no lugar
do passageiro. Essa uma mudana simblica que indica que a garota no ser
uma mera coadjuvante, mas ter um papel primordial na histria. Sua funo na
narrativa requer que ela esteja ao lado de Joel e no atrs dele.
Joel pergunta por que Ellie no tenta dormir um pouco. Ela desdenha e diz
que nem est cansada, mas, no instante seguinte, aparece dormindo. Essa uma
construo de humor criada pela montagem da cena. Mantendo a cmera na mesma
posio e ngulo, h uma elipse de tempo entre os dois momentos (identificada pelo
vidro molhado de chuva que d lugar iluminao pelo sol e a posio levemente
alterada dos personagens Joel mostrado com uma mo na cabea e o brao
oposto conduzindo o volante e Ellie est com a cabea abaixada e os olhos
fechados). Assim, a garota pode ter dormido muito tempo depois de dizer que no
estava cansada, mas a graa criada pela rpida contradio entre a fala e a
imagem. Apesar de o humor, nesse caso, no estar diretamente relacionado
personagem, essa montagem ajuda a estabelecer Ellie como personagem cmica
que cria um contrapeso austeridade de Joel.
A Travessia do Primeiro Limiar marca a passagem do Mundo Comum para o
Mundo Especial. Conforme deixa a cidade de Bill, Joel est entrando em um
territrio desconhecido. Uma placa na estrada indica que os heris se aproximam da
cidade de Pittsburgh e, a partir da, continuaro cruzando os Estados Unidos por
reas que Joel desconhece ainda mais aps a destruio causada pelo fungo.
Apesar de o Mundo Especial no se contrastar tanto com o Mundo Comum anterior
no que tange a ambientao, nesse caso, ele se justifica ao trazer perigos que at
ento no haviam sido enfrentados. No entanto, o Mundo Especial de Joel pode ter
um sentido mais figurado, sem uma barreira fsica, que seria a prpria relao com
Ellie. A intimidade do dilogo e das brincadeiras dentro do carro j estabelece uma
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matou muita gente inocente, mas Joel desconversa. Assim como o favor para Bill,
que nunca sabemos do que se trata, esse passado obscuro de Joel faz parte da
histria pregressa do personagem e s possvel especular sobre o que realmente
aconteceu. No entanto, interessante notar que Joel, alm de servir como mentor
para Ellie, mentor de si mesmo em boa parte da aventura, caracterizado em um
personagem calejado que j internalizou esse arqutipo por conta de suas
experincias anteriores.
tenha sido criar, tanto em Joel como no jogador, a constante preocupao em saber
se Ellie est segura.
Joel volta para a rea principal do hotel, mas abordado por um dos
Caadores. Os dois brigam corporalmente e disputam uma pistola que cai prxima a
eles, mas Ellie quem aparece e realiza um disparo na cabea do inimigo. A garota
se sente abalada por ter matado uma pessoa pela primeira vez, mas Joel parece
no se importar ou estar agradecido por ter sido salvo. Por que voc no esperou
como eu disse?, diz ele com aspereza, tomando a arma da mo de Ellie. A garota,
no entanto, sabe que sua atitude salvou a vida do companheiro e evita o conflito em
um primeiro momento: Ainda bem que eu no esperei, n?, responde, com a
expectativa de receber algum tipo de reconhecimento. Mas Joel implacvel: Ainda
bem que minha cabea no foi estourada por uma pirralha. Fora o estresse da
situao, possvel analisar que Joel se irrita por sentir uma perda de sua
independncia, mesmo que essa percepo seja inconsciente e ainda no
racionalizada. Ele comea a entender que precisa de Ellie para sobreviver, o que vai
contra tudo o que acredita desde sua circunspeco com o mundo pela morte de
Sarah.
Ellie no aceita a rispidez de Joel e confronta o heri pela primeira vez. Sabe
de uma coisa? No. Que tal: Ellie, eu sei que no foi fcil, mas era ele ou eu,
obrigado por salvar a minha vida. Por que no me diz algo assim, Joel?. Joel pensa
por um momento, mas responde apenas que eles tm que seguir em frente. Esse
dilogo mostra como a garota tambm possui sentimentos, emoes e dores
prprias, mas Joel se tornou alheio aos outros por conta de seu trauma e se nega a
conversar sobre o assunto.
Os momentos seguintes mostram como Ellie fica triste ao se abrir com Joel
enquanto ele se recusa a fazer o mesmo, o que demonstra pouca confiana na
garota. Joel explora o cenrio e Ellie espera sentada de forma cabisbaixa. Ela passa
a aceitar ordens sem contestao ou com ironia (tem certeza que confia em mim
com isso?). Alm disso, uma conversa opcional serve para reforar a posio dos
dois na relao. Ellie se justifica: Eu no estava querendo te desobedecer. Voc
estava demorando muito e eu pensei Talvez ele esteja com problemas, mas Joel
implacvel e responde que No importa o que voc pensou. Voc precisa me
escutar. A garota diz que escuta, mostrando que respeita Joel, mas desiste de
prolongar a discusso.
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eles andem juntos e Henry concorda. Apesar de uma certa desconfiana de Joel,
todos seguem para um esconderijo conhecido dos irmos.
Segundo Vogler, o estgio dos testes cria a oportunidade para que se formem
equipes. Esse o nico momento na histria em que pessoas fora do crculo de Joel
acompanham a dupla. Por serem desconhecidos, j se cria a dvida se eles so
confiveis ou no, uma ideia que ser trabalhada mais para frente. A formao da
equipe, no entanto, no ser duradoura. The Last of Us sobre a relao de Joel e
a Ellie e outros personagens no podem ficar no meio do caminho.
No trajeto para o esconderijo, o quarteto passa por uma loja de brinquedos.
Sam pega um pequeno rob, mas Henry fala para ele jogar fora. Sam argumenta
que sua mochila est vazia e o rob leve, mas Henry rgido. Qual a regra de
pegar coisas?, ele pergunta ostensivamente. S pegamos o que precisamos,
responde Sam, de forma resignada, e joga o brinquedo fora. O jeito austero do irmo
mais velho remete ao comportamento de Joel com Ellie, mas parece ser ainda mais
agressivo por se tratar de personagens que acabamos de conhecer. Como
jogadores, somos impactados de forma negativa pela rudeza de Henry e sentimos
que no assim que queremos tratar Ellie, intensificando o senso de proteo e
cuidado entre o jogador e a garota. Assim como Bill, que serviu como mau exemplo
por evitar relaes pessoais e se fechar em seu mundo, Henry cumpre um papel
parecido, mas do lado oposto dessa linha. Ele to protetivo em relao ao irmo
que torna a relao sufocante.
O grupo chega ao esconderijo, um escritrio em um dos prdios da cidade.
Ellie e Sam logo conversam de forma animada em um canto. Henry comenta que
fazia tempo que no ouvia a risada do irmo e diz que Ellie nem parece se
preocupar com a situao catica em que vivem, expondo a personalidade leve e
divertida da garota (essencial como contrapeso de Joel). O protagonista pergunta o
motivo de os irmos ainda estarem na cidade. Henry explica que eles esto
esperando uma boa oportunidade para escapar e mostra que Caadores guardam o
porto que leva ponte de sada. Depois, planejam encontrar os Vagalumes e se
filiar ao grupo. Joel desdenha sobre a esperana que todos colocam nos Vagalumes
e questiona o plano de Henry de atravessar o pas com Sam sem saber a
localizao exata do grupo. Henry se mostra agressivo com a descrena em seus
cuidados com o irmo menor, mas Joel pede calma e diz que eles tambm procuram
os Vagalumes. Henry conta que seu grupo, separado pela emboscada, havia
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combinado de se encontrar em uma torre de rdio prxima no dia seguinte caso algo
acontecesse e planeja escapar durante a noite, quando h menos guardas. Joel
topa o plano e eles descansam at o momento de sair.
Durante a escapada, o quarteto perseguido pelos Caadores e usa uma
escada para subir em um caminho. Porm, ela se quebra e deixa Joel para trs. No
momento de presso, Henry vai embora com seu irmo mais novo. Ellie volta para
ficar com seu companheiro. Os dois escapam por um caminho lateral e conseguem
chegar ponte de sada da cidade, mas so encurralados. Ellie considera que a
nica opo saltar para o rio, mas Joel diz que a distncia muito grande e a
garota no sabe nadar. Os Caadores se aproximam no veculo armado. Ellie no v
outra escapatria e salta. Joel a segue. Os dois so levados pela correnteza. Joel
segura Ellie para mant-la flutuando, mas bate com fora em uma pedra. A tela se
apaga em preto, mas logo em seguida mostra Joel acordando do desmaio na
margem do rio.
Segundo Vogler (2006), os testes do comeo do segundo ato costumam ser
obstculos difceis, mas sem a caracterstica de vida ou morte dos eventos
posteriores. A tela se apagar aps a coliso de Joel poderia representar o primeiro
momento de morte do heri (comum ao estgio da Provao), mas no parece ser o
caso. Alm de momentos crticos acorda surgirem mais tarde na histria, a tenso se
dissipa muito rpido quando Joel acorda na cena seguinte e a reao do
protagonista prova que ele no renasceu transformado. O uso da transio de
cena parece servir mais para reapresentar Henry e Sam, que esto junto com Ellie
na margem do rio.
Ao ter sua confiana trada, Joel se levanta irritado. A primeira coisa que faz
apontar uma arma para Henry, acusando-o de ter deixado ele e Ellie para morrer.
Henry argumenta que voltar colocaria a vida de Sam em risco e questiona se Joel
no faria o mesmo se a situao estivesse invertida. Alm disso, ele diz que salvou
os dois, pois haviam engolido muita gua e estavam desacordados. Ellie confirma a
verso e Joel cede.
Essa cena mostra Henry e Sam como personagens que vestem a mscara do
arqutipo de camaleo. Os irmos trazem um ar de incerteza para a histria,
apresentando a dvida sobre eles serem confiveis ou no. A atitude da dupla
parece estar sempre mudando de lado, o que confunde Joel e faz com que a
lealdade e sinceridade deles seja posta em questo.
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A cena seguinte traz uma passagem de tempo e j mostra Joel, Henry e Ellie
conversando confortavelmente no local. No havia outros sobreviventes por l. Joel
compartilha uma histria quando ele e Tommy pilotaram motos potentes e Henry se
mostra entusiasmado sobre o assunto. Esse um momento raro de segurana e
bem-estar no mundo catico de The Last of Us, que possibilita Joel estar mais
aberto do que o usual.
Ellie deixa os dois conversando e segue para encontrar Sam em outra sala. O
garoto pergunta se ela veio a pedido de Henry para ver se ele no estava fazendo
nada errado, o que indica a relao sufocante entre os irmos. Em seguida, os dois
dialogam de forma mais ntima. Sam pergunta do que Ellie tem medo. Ela comea
de forma mais divertida e diz escorpies, mas ento revela que teme ficar sozinha,
o que cria no jogador uma vontade maior de acolh-la. Sam conta que tem medo
dos infectados. Em tom mais filosfico e religioso, eles se questionam se ainda
existe alguma humanidade dentro das criaturas e mostram descrena sobre a
possibilidade de as pessoas infectadas estarem no Cu.
Antes de Ellie ir embora, ela ainda realiza um ato de bondade. Ela entrega
para Sam o rob de brinquedo pelo qual ele havia se interessado na loja de
brinquedos, mas que Henry no permitiu que ele pegasse. Esse ato mostra como
Ellie se preocupa com as outras pessoas e busca criar laos humanos. Quando a
garota deixa a sala, Sam joga o brinquedo no cho. Logo entendemos sua raiva: ele
levanta a barra de sua cala e vemos que ele foi mordido por um infectado na
canela. possvel especular que Sam no contou a ningum sobre sua situao por
conta da relao estrita com o irmo. Mesmo sendo vtima, provvel que o garoto
se sentisse culpado por ter sido mordido e no desejava compartilhar sua falha
com Henry.
Na manh seguinte, Ellie vai acordar o garoto, mas ele j est transformado e
ataca. Joel tenta pegar uma arma em sua mochila, mas Henry d um tiro de aviso e
o ameaa com o revlver apontado. Joel prefere assumir o risco e faz nova tentativa
de pegar uma arma para salvar Ellie, mas o prprio Henry atira no irmo. Sem
acreditar no que fez, Henry aponta o revlver para a sua cabea e se suicida.
Se Bill foi um mau exemplo para Joel por se recusar a criar laos humanos, a
relao abusiva de Henry com Sam serve para mostrar que o excesso asfixiante de
proteo no significa estabelecer um vnculo positivo (nem obter xito na
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o seu mago. Passam por uma regio intermediria, entre a fronteira e o prprio
centro da Jornada do Heri (VOGLER, 2006, p. 213).
David sugere que eles sigam para o seu acampamento, mas Ellie prefere que
James busque os remdios enquanto ela espera com David. A garota toma a arma
do sujeito e a mantm apontada para ele de forma hbil. David prope que eles se
abriguem do frio em uma das cabanas prximas e Ellie o faz carregar o cervo morto
para dentro. O sujeito faz uma fogueira e tenta puxar assunto. Ele diz que ela no
deveria sair sozinha, pergunta o nome da garota e diz que sabe que no fcil
confiar em estranhos. Ellie se mantm fechada. David ainda mostra empatia porque
percebe que a herona se importa com quem quer que esteja machucado e diz que
tudo ficar bem.
Como descobriremos depois, David o vilo principal da histria. Nesse
momento, ele utiliza a mscara de camaleo em cima do seu arqutipo de sombra
para tentar atrair Ellie para o perigo com a sua bondade dissimulada. No entanto, a
herona se mostra inflexvel e desconfia de David. Utilizando de seus aprendizados
com Joel, como manejar o rifle, ela toma os cuidados necessrios para se proteger e
no fornece nenhum tipo de informao ao sujeito.
Infectados aparecem quando Ellie e David esto na cabana. O sujeito mata
um estalador com uma pistola que manteve escondida, o que pesa em favor da
lealdade duvidosa do camaleo. Os dois agora devem trabalhar juntos para manter
as criaturas afastadas. David diz para Ellie fazer os tiros valerem a pena, mesmo
conselho de Joel para a garota anteriormente. Isso pode fazer com que o jogador
pense que David confivel, novamente criando um sentimento de dvida em
relao ao personagem.
Aps superarem uma longa e difcil seo de combate, David diz que eles
formam uma boa equipe. Ellie responde que eles deram sorte, mas o sujeito acredita
que tudo acontece por um motivo. David ento revela que, de certa forma, j
conhecia Ellie. Ele conta que enviou um grupo de homens para procurar comida
algumas semanas antes (na universidade), mas poucos voltaram. Os outros foram
assassinados por um louco, que estava acompanhado de uma garotinha.
Percebe? Tudo acontece por um motivo, conclui.
Ellie se sente ameaada e reage apontando o rifle para David. No entanto, o
sujeito se mostra compreensivo em vez de vingativo. No sua culpa. Voc
apenas uma criana, ele diz, aparentemente culpando somente Joel pela morte de
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dedo, ela responde. O vilo indica que ela ser morta no dia seguinte. Como voc
tinha dito? Pedacinhos? Vejo voc de manh, Ellie, diz David antes de ir embora.
Enquanto isso, Joel acorda repentinamente no vilarejo. Ainda com dores e
dificuldade para caminhar, ele percebe que Ellie no est no local e levanta para
procurar a garota. O controle do jogador volta para Joel. Esse momento marca a
superao da morte pelo protagonista, o que segue a lgica de Vogler (2006) de que
os heris tm que morrer para renascer.
Como voc fez aquilo?, questiona David. Eu sei que voc no est
infectada. Nenhum infectado luta tanto para ficar vivo, ele argumenta. Ellie se
esconde atrs das mesas e os dois fazem um jogo de gato e rato: enquanto David
procura a garota, Ellie se movimenta para acert-lo por trs. A garota consegue
cravar seu canivete no sujeito, mas ele reage jogando Ellie no cho e ambos caem
desmaiados ao mesmo tempo em que o fogo se alastra pelo restaurante. A tela se
apaga.
O controle do jogador volta para Joel, que chega ao local em que o grupo de
David vive. Ele ouve dilogos de capangas que procuram Ellie e encontra a mochila
da garota no abatedouro em que outros cadveres humanos so mantidos. Ao sair
pela porta, v o restaurante em chamas.
A cena seguinte mostra Ellie e David recobrando os sentidos. A garota se
recupera e rasteja para alcanar o faco de David que est cado embaixo de uma
mesa. No entanto, o sujeito levanta e a acerta com um chute na barriga. David a
desafia a continuar lutando. Ellie no se entrega e avana um pouco mais em
direo ao faco. O vilo d um novo chute e monta em cima da garota, em uma
possvel tentativa de estupro (embora a cena seja ambgua). David a ameaa
dizendo no saber do que ele capaz e comea a estrangul-la. A garota estica o
brao e consegue pegar o faco. Ellie mata David acertando diversos golpes com
raiva e violncia.
Joel chega ao restaurante e segura Ellie para ampar-la. A garota,
emocionalmente abalada, tenta se afastar. Ao perceber que se trata de seu
companheiro, ela comea a contar o que aconteceu (Ele tentou), mas Joel a
abraa e ela se acalma antes de completar a frase. So notveis o carinho paternal
do heri e a sensao de proteo que Ellie desenvolve na presena de Joel. A
situao de vida ou morte leva os personagens a ficarem mais prximos.
O heri no precisa morrer para que o momento de morte faa efeito. Ele
pode ser uma testemunha da morte ou, at mesmo, o causador (VOGLER, 2006, p.
239). O pice do momento de morte de Ellie a situao em que ela causa a morte
do vilo e impactada por sua ao. interessante notar como isso afasta a
personagem da temtica de donzela em apuros. Joel no o heri que mata o
drago e salva a princesa, mas a prpria Ellie, com sua determinao e
coragem, que vence o embate contra seu raptor. O momento tenso do aniquilamento
de David tambm vai de acordo com a ideia de Vogler (2006) de que a morte do
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vilo deve ser realista, no apenas uma convenincia do enredo. Por consequncia,
esta nunca pode ser uma tarefa fcil para o heri. A violncia e o desespero de Ellie
no embate com David deixam claro a intensidade da situao.
O confronto com o vilo marca a crise do enredo, quando as foras hostis
esto no estado mais tenso de oposio. Este o principal acontecimento do
segundo ato diferente do clmax, o grande momento da parte final. comum que a
crise seja central, dividindo a histria ao meio. The Last of Us, no entanto,
construdo em cima do retardamento de crise, quando o pico dramtico do segundo
ato acontece apenas em seu final, provendo mais tempo para os testes
preparatrios e menos para as consequncias da Provao. Entretanto, a durao
menor dos estgios posteriores e a morte do vilo no significam que o resto da
jornada ser tranquilo. O heri ainda pode ter que se confrontar com outras foras,
outras Sombras, antes que a aventura chegue ao fim (VOGLER, 2006, p. 241).
da garota, que d apenas uma resposta curta e sem vontade dizendo que seria
timo.
interessante notar como os papis se inverteram. Joel est mais
extrovertido e faz planos para o futuro com Ellie quando a jornada terminar,
enquanto ela se mantm introspectiva como era o heri no comeo da aventura. Joel
at comenta que a garota est muito quieta, mas ela apenas pede desculpas, sem
explicar seus motivos. No entanto, pode-se analisar que o recolhimento de Ellie faz
parte do processo de recuperao aps o encontro com a morte.
Outra explicao a incerteza sobre o xito da jornada. Com tantos percalos
para encontrar os Vagalumes, Ellie pode estar apreensiva de chegar ao hospital. Um
indcio disso outra conversa opcional. A garota sonhou que estava em um avio
caindo. No meio das pessoas desesperadas, Ellie conta que seguiu at a cabine e
viu que no havia piloto. Ela tenta controlar a aeronave sem sucesso e acorda logo
antes da coliso. Uma possvel anlise sobre o sonho da personagem seria
entender que o avio cheio de pessoas e sem piloto representa a humanidade, sem
rumo aps a epidemia do fungo Cordyceps. Ellie a esperana de cura, mas falha
em pilotar o veculo, o que representa a sua insegurana e apreenso em ser a
responsvel por salvar a civilizao.
Dentro de um prdio em Salt Lake City, Joel impulsiona Ellie para alcanar
uma escada. A garota entrega o objeto para o companheiro, mas some de vista ao
soltar uma exclamao ela viu algo que no sabemos o que . A preocupao
inicial d lugar curiosidade quando Joel sobe para a varanda do andar superior.
Voc precisa ver isso!, diz Ellie animada. necessrio seguir a garota para
descobrir do que se trata, o que atia o interesse do jogador.
Aps percorrer um trecho curto, os personagens se deparam com uma girafa
comendo folhas no mesmo nvel em que eles esto. Joel se aproxima para afag-la
e encoraja Ellie a fazer o mesmo. Quando o animal vai embora, Ellie, encantada com
a situao, corre para o topo do prdio. Ela e Joel observam uma famlia de girafas
passeando pelo cenrio.
Segundo Vogler (2006), o estgio da Recompensa traz momentos
tranquilos, de reflexo ou intimidade. Essas passagens mais calmas e lricas so
importantes para criar um vnculo com o pblico (VOGLER, 2006, p. 258). Alm
disso, elas so importantes porque permitem que a plateia se recupere aps uma
batalha emocionante ou uma provao difcil. Depois dos altos riscos no captulo do
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Joel pede para ver Ellie. Marlene diz que ele no precisa mais se preocupar
com a garota, mas ele responde que se importa e repete seu pedido. A mscara de
sombra comea a ficar evidente na lder dos Vagalumes. Aps dar uma olhada para
o sentinela que guarda a sala, ela responde que Joel no pode ver Ellie, justificando
que ela est sendo preparada para a cirurgia. Como assim cirurgia?, indigna-se o
heri, que agora se levanta da cama. Com a tenso crescente, o sentinela o
homem que aplicou a coronhada em Joel se aproxima de prontido, o que indica
que o resultado do dilogo no agradar o protagonista.
Marlene conta que, segundo os mdicos, o Cordyceps que cresceu em Ellie
sofreu um tipo de mutao e esse o motivo de ela ser imune. Quando ele for
removido, eles podero fazer engenharia reversa e criar uma vacina, explica
Marlene com brilho nos olhos. Joel se mostra desconfiado ao lembrar que o fungo
cresce por todo o crebro e Marlene concorda de forma reticente.
Joel no se conforma com a ideia de que Ellie ter que morrer para se criar
uma vacina. Irritado, manda Marlene encontrar outra pessoa para a cirurgia, mas ela
responde que no existe mais ningum. Joel se aproxima para exigir ver Ellie, mas o
sentinela aplica um golpe e derruba o heri no cho. Marlene manda o subordinado
parar e racionaliza sua deciso. A lder dos Vagalumes argumenta que a situao
pior para ela do que para Joel, pois ela conhece Ellie desde que a garota nasceu.
Alm disso, Marlene prometeu me de Ellie que tomaria conta da menina.
E por que voc vai deixar isso acontecer?, questiona Joel. Porque isso no
sobre mim. Ou mesmo sobre ela, responde Marlene, o que mostra todo o seu
comprometimento com a causa e o seu desejo de criar uma vacina a qualquer custo.
No existe outra opo, ela conclui. Joel ainda se mostra ctico e inconformado
(Continue falando essa bobagem para si mesma), mas Marlene tomou sua deciso
e no est aberta para argumentos. Ela pede para seu subordinado tirar Joel do
hospital e avisa: Se ele tentar alguma coisa, atire. Depois, voltada para Joel, diz
para ele no desperdiar o presente, no sentido de ir embora agradecido por estar
vivo.
Marlene, o arauto que apresentou a aventura para Joel no comeo da histria,
agora se coloca como antagonista para o clmax da jornada. Ela uma sombra
humanizada: a lder dos Vagalumes no essencialmente m, mas acredita
fortemente em sua viso de mundo e est disposta a fazer o que for preciso pela sua
causa maior. Marlene configura um tipo perigoso de vilo, em que a pessoa est
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vagando em crculos, estamos prestes a voltar para casa, fazer a diferena e colocar
a raa humana de volta ao controle de seu prprio destino.
possvel analisar que a deciso de manter Joel vivo seja movida pelo fato
de Marlene ter empatia com a dor que ele est sentindo e por seu sentimento de
culpa pelo sacrifcio de Ellie ou talvez at por um desejo escondido de que a
garota poderia ser salva. Para Vogler (2006), essa humanizao faz com que o vilo
deixe de ser uma mosca a ser esmagada e aparea como um ser humano de
verdade, com fraquezas e emoes. Matar algum assim passa a ser uma
verdadeira escolha moral, e no apenas um reflexo impensado. (VOGLER, 2006, p.
127).
O caminho para a sala de cirurgia no fcil. Joel enfrenta diversos
adversrios com armamento de alto calibre e bem protegidos atrs de coberturas.
Segundo Vogler (2006), o estgio da Ressurreio pode representar um ltimo
confronto com a morte, mas com a diferena de que agora o perigo surge em uma
escala muito maior em relao aos eventos anteriores da histria. No se trata
apenas de uma ameaa ao heri, mas ao mundo inteiro (VOGLER, 2006, p. 284)
interessante notar como isso funciona de forma inversa em The Last of Us: Ellie
representa a possvel cura para a humanidade (elixir), mas o heri deseja impedir
que isso acontea.
Joel chega sala de cirurgia, onde esto o cirurgio-chefe e dois enfermeiros.
Ellie est desacordada em uma maca. Eu no vou deixar voc lev-la. o nosso
futuro Pense em todas as vidas que vamos salvar, diz o mdico. Ele pega um
bisturi e aponta para Joel. Essa fala mostra como Ellie apenas um meio para
atingir um objetivo maior e levanta a questo: vale a pena trocar uma vida pela
possibilidade de salvar mais pessoas? Do ponto de vista de Joel, certamente que
no por conta de sua ligao emocional com a garota.
Este um momento crtico. Joel se aproxima do cirurgio e crava o bisturi em
sua garganta. Diante da iminncia da situao, o jogador tambm poderia ter atirado
e nem saberia que Joel usaria o bisturi para matar o mdico caso chegasse perto
dele. Esta a primeira vez que Joel mata um civil desarmado e que no representa
uma ameaa direta. Como jogador, sentimos o peso de matar um mdico, uma
profisso fundamental para a sociedade e escassa no mundo de The Last of Us. No
entanto, o envolvimento com o jogo nesse ponto to alto que sentimos a
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necessidade de realizar essa ao, pois o nico jeito de salvar Ellie o objetivo
acima de qualquer outra coisa (tanto de Joel quanto do jogador).
Para Vogler (2006), um clmax deve provocar a sensao de catarse. Essa
palavra grega, na verdade, significa vomitar ou purgar, mas a usamos para
designar uma liberao emocional purificadora ou uma expanso emocional
(VOGLER, 2006, p. 290). A catarse o clmax lgico do heri em seu arco de
personagem, que inclui as etapas graduais da transformao, as fases do
crescimento e os pontos em que ele muda de direo. A histria de The Last of Us
pareceria incompleta se Joel aceitasse a operao de Ellie e simplesmente fosse
embora do hospital. O clmax lgico que Joel lute por ela com todas as suas
foras, aps ter sido transformado pela jornada. Alm disso, The Last of Us acerta
em fazer com que a transformao de Joel seja gradual. Vogler (2006) considera
que a mudana abrupta de um personagem por conta de um nico incidente uma
falha dos escritores de roteiro. O mais comum que as pessoas mudem aos
poucos, crescendo em estgios graduais, da intransigncia para a tolerncia, da
covardia para a coragem, do dio para o amor (VOGLER, 2006, p. 292).
Aps matar o cirurgio, Joel pega Ellie em seus braos. Ele corre em busca
do elevador do prdio enquanto perseguido pelos Vagalumes. Joel expressa
mensagens de fora para Ellie e uma trilha sonora comovente toca ao fundo. Esse
momento simblico, pois funciona como um espelho do comeo do jogo. Durante a
ecloso da epidemia, o heri carregou Sarah no colo para fugir dos infectados.
Agora, a situao se repete de forma parecida com Ellie no lugar da filha.
Joel desce com Ellie para a garagem do hospital, mas ele surpreendido por
Marlene. Voc no pode salv-la, ela diz apontando uma arma para o heri.
Marlene argumenta que mesmo que Joel conseguisse tir-la do hospital, Ellie
poderia morrer a qualquer momento no mundo ps-apocalptico, seja por infectados
ou humanos hostis. Joel rebate que no cabe a Marlene decidir sobre a vida da
garota. Essa cena manifesta um qu de duelo, outro aspecto possvel do estgio da
Ressurreio. O heri e o vilo esto frente a frente, em um jogo final em que o
risco o maior possvel: vida ou morte (VOGLER, 2006, p. 285).
A lder dos Vagalumes tenta convencer Joel de outra forma. o que ela
gostaria. E voc sabe disso, diz Marlene referindo-se a um possvel desejo de Ellie.
O heri se mostra pensativo e fica calado. Marlene diz que Joel ainda pode fazer a
coisa certa. Ela levanta os braos e deixa de amea-lo com a arma. Ela no vai
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sentir nada, garante Marlene para convencer Joel de que Ellie no ir sofrer e que
esta a deciso correta.
No momento seguinte, Joel aparece dirigindo um carro. Ele est
aparentemente sozinho, j que a cmera mostra apenas o heri durante alguns
longos segundos. O jogador fica atnito, imaginando o que pode ter acontecido. A
seguir, o barulho de algum acordando ouvido e Ellie mostrada deitada no banco
de trs. O que diabos estou usando?, pergunta a garota referindo-se ao roupo do
hospital. Joel fala para ela no fazer muito esforo, pois ela ainda est sob efeito dos
remdios.
Ellie questiona o que aconteceu. Joel diz que eles encontraram os
Vagalumes, mas mente para a garota: Existem vrios outros que nem voc, Ellie.
Pessoas que so imunes. Dezenas, na verdade. Joel clama que, apesar disso, no
foram obtidos bons resultados com os exames e os Vagalumes pararam de procurar
uma cura para o Cordyceps. Vou nos levar para casa, diz o heri referindo-se
usina de Tommy. Ellie no fala nada, apenas vira para deitar com as costas voltadas
para Joel, o que demonstra seu desapontamento com a situao. Desculpe,
lamenta Joel.
Em flashback, vemos a continuao da cena na garagem do hospital (que
comea de forma intercalada com o dilogo entre Joel e Ellie, o que indica que o
heri estava se lembrando dos acontecimentos). Marlene se aproxima de Joel, mas
o protagonista atira com uma pistola que estava escondida atrs do corpo Ellie. Joel
coloca a garota no banco traseiro do carro e volta para Marlene. A lder dos
Vagalumes implora por sua vida. Voc viria atrs dela, diz Joel antes de matar
Marlene com um tiro na cabea.
Essa cena um retorno simblico para o incio da jornada. Joel, com Ellie nos
braos, est em situao similar que viveu com Sarah. Marlene funciona como um
guardio de limiar e cumpre a mesma funo do soldado que matou a filha do heri.
No entanto, a lder dos Vagalumes tambm representa a voz pelo rdio que ordenou
que o militar atirasse. Sua deciso de sacrificar Ellie para obter uma chance de
restaurar a humanidade equivale escolha de matar uma garota inocente para
proteger a sociedade quando a epidemia eclodiu. Se Joel aceitasse entregar Ellie
para a cirurgia, ele estaria concordando com a deciso que matou sua filha vinte
anos antes.
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naturalmente, sem a angstia e o tormento que sofria pela perda da filha. O fato de
acreditar que Sarah teria gostado de Ellie (e vice-versa) mostra como Ellie acolhe o
mesmo carinho que Joel guarda pela filha, afinal ela foi a responsvel para que o
heri aprendesse a amar e se importar com outra pessoa novamente.
Joel e Ellie se aproximam da usina e podem v-la distncia. Joel escala
uma parte do terreno e espera para puxar Ellie, algo que se difere do restante da
aventura. Durante toda a histria, Joel sempre impulsionava Ellie e a garota
encontrava uma escada ou algo do tipo para que o heri subisse. Agora, Ellie, sob
controle do jogador, impulsiona a si mesma. Esse um detalhe interessante que
simboliza a mudana dos personagens aps as provaes e o fato de que a vida
nunca mais ser como antes.
Joel continua a andar, mas Ellie chama a ateno do heri. Ela possui algo
importante para dizer, o que justifica seu comportamento fechado durante o eplogo.
L em Boston, quando eu fui mordida, eu no estava sozinha, comea Ellie. A
garota conta que estava com sua melhor amiga, Riley Abel, que tambm foi
infectada. As duas no sabiam o que fazer, mas decidiram apenas esperar tudo
acabar: ser poticas e enlouquecer juntas.
Eu ainda estou esperando a minha vez, desabafa Ellie. Joel tenta
interromp-la, mas a garota segue dizendo que sua amiga foi a primeira a morrer.
Depois veio Tess e ento Sam. Joel diz que nada do que aconteceu culpa de Ellie.
A garota diz que Joel no entende, mas o protagonista explicita a sua viso de
mundo de que sempre necessrio encontrar um motivo para seguir em frente. Eu
tive que lutar muito para sobreviver, comea Joel. Um detalhe sutil que o
personagem coloca a mo em seu relgio quebrado aps dizer essa frase, o que
remete essa linha de dilogo Sarah. E no importa o que acontea, voc sempre
encontra algo pelo qual lutar, continua. Eu sei que no o que voc quer ouvir
agora, mas.
Ellie interrompe e pede para Joel jurar que tudo o que ele disse sobre os
Vagalumes verdade. Joel hesita por um instante, mas olha para Ellie
profundamente e crava: Eu juro. Com um enquadramento fechado no rosto de
Ellie, a garota mostrada pensando por alguns segundos com uma cara enigmtica.
Ela olha levemente para baixo, retoma o contato visual com Joel, faz um pequeno
aceno com a cabea e responde apenas okay. Sobem os crditos.
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mundo ambguo, um lugar imperfeito que contrasta com os finais felizes em que
todos os problemas se resolvem. Para histrias mais sofisticadas, com tintas mais
fortes e realistas, o final aberto parece ser mais adequado (VOGLER, 2006, p. 308).
3 CONSIDERAES FINAIS
O final de The Last of Us cria duas perguntas principais: 1) Por que Joel
mentiu para Ellie sobre o que aconteceu no hospital? e 2) Ellie acreditou em Joel ou
sabe que ele est mentindo? Como o jogo possui um final aberto, as perguntas no
possuem uma resposta definitiva. No entanto, possvel analisar indcios para
formar uma concluso e, para isso, preciso recapitular a jornada.
A histria comea com Joel, o protagonista, perdendo a sua filha Sarah, morta
por um soldado durante a ecloso da epidemia do fungo Cordyceps. Esse momento
chave para que Joel torne-se uma pessoa fechada e amargurada, o que abre
caminho para que a sua Jornada do Heri possa faz-lo superar o trauma. A histria
continua vinte anos depois, no arco do vero (assim como os dias durante essa
estao so longos, esse arco representa a maior parte do jogo).
Joel, vivendo ao lado de sua parceira Tess, conhece Ellie, uma garota que
deve ser escoltada pela dupla. Durante boa parte da histria, Joel rejeita se
aproximar de Ellie pelo medo de sofrer novamente do mesmo modo como aconteceu
com Sarah. Concomitantemente, Ellie busca a aceitao de Joel. A garota cresceu
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sem ningum para acolh-la, j que sua me morreu um dia aps o parto e Marlene,
a lder dos Vagalumes, cuidava dela distncia.
Joel e Ellie criam uma relao cada vez mais prxima ao longo das
provaes, como no arco do outono, com a morte de Joel, e no inverno, o perodo
mais difcil da jornada. Do comeo ao fim, The Last of Us uma histria sobre Joel e
Ellie. Enquanto a histria evoluiu e tomou caminhos diferentes, o que sempre
esteve presente foi Joel e Ellie. Por conta disso, quase todo o resto foi criado em
cima dessa relao, explica o diretor criativo do jogo Neil Druckmann no
documentrio Grounded: The Making of The Last of Us.
O produtor conta que o pensamento inicial foi criar Ellie como filha de Joel,
mas isso j criaria uma ligao entre os dois e no haveria muito espao para
desenvolver os personagens. Segundo Druckmann, o objetivo de The Last of Us foi
se aproximar do sentimento de amor mais intenso que existe entre um pai e seu
filho , mas sem que eles tivessem essa relao direta.
encontradas, Ellie pode continuar a sua vida sem nenhum peso na conscincia por
no saber o que aconteceu de fato no hospital dos Vagalumes, incluindo a morte de
Marlene.
Mas Ellie acredita na mentira de Joel? Como o final de The Last of Us
aberto, a inteno deixar essa dvida no ar. No entanto, certos indcios sustentam
que Ellie sabia que Joel estava mentindo. Uma declarao do diretor criativo Neil
Druckmann para o site Kotaku revela a inteno por trs da cena. Ele diz que a ideia
original para o final da histria seria fazer algo mais esperanoso, com Ellie
acreditando totalmente na mentira de Joel e os dois chegando na usina de Tommy,
onde haveria a sensao de que tudo ficaria bem. No entanto, esse final no faria
mais sentido conforme Ellie foi se desenvolvendo como personagem. Ela sempre foi
boa em detectar quando havia alguma coisa errada ou tentavam engan-la, logo
deixou de parecer sincero que ela acreditasse facilmente na mentira.
A narrativa de The Last of Us comprova a anlise de Druckmann. Ellie
observadora para entender os acontecimentos ao seu redor e hbil em compreender
as pessoas. A garota compreendeu que Tess estava infectada antes de ela revelar
que havia sido mordida, teve a percepo que Joel a abandonaria na usina e
desconfiou de David no primeiro encontro entre eles. No eplogo, o fato de Ellie
ainda estar pensando se o que Joel disse sobre o hospital ser verdade e question-
lo a respeito j mostra suas dvidas quanto veracidade dos fatos.
O toque final a expresso de Ellie no momento que encerra o jogo. Ela ouve
Joel jurar sobre a mentira e demora alguns segundos pensando e olhando para
baixo antes de retomar o olhar e dizer okay em um tom de vamos seguir em
frente. possvel identificar na expresso de Ellie que ela sabe que Joel est
mentindo, mas aceita a mentira. Uma frase de Joel nessa cena de que no importa
o que acontea, deve-se encontrar algo para continuar lutando vai de encontro
com um bilhete da me de Ellie, nico item que a garota possui de Anna (que est
na mochila de Ellie e pode ser lido quando o jogador controla a personagem). Anna
diz que a vida vale a pena ser vivida e aconselha Ellie a encontrar o seu propsito
no mundo e lutar por ele. Ellie entende que se Joel mentiu porque se importa com
ela e quer proteg-la, em uma relao de afeto que Ellie sempre buscou em sua
vida. Ellie sabe que Joel est mentindo, mas aceita a mentira porque, no fim das
contas, tudo o que eles tm um ao outro.
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4 REFERNCIAS
Livros
VOGLER, Christopher. A Jornada do Escritor: estruturas mticas para escritores. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
Sites
Agents of Guard
Disponvel em: http://www.agentsofguard.com/the-disappointing-ending-for-the-last-
of-us/
Acesso em: 19h30, 15/01/2016
Kotaku
Disponvel em: http://kotaku.com/the-last-of-us-climactic-moments-could-have-been-
very-600685013
Acesso em: 20h30, 04/03/2016
Metacritic
Disponvel em: http://www.metacritic.com/game/playstation-3/the-last-of-us
Acesso em: 17h30, 26/03/2016
Vdeos
Grounded: The Making of The Last of Us
Disponvel em: https://www.youtube.com/watch?v=yH5MgEbBOps
Acesso em: 15h00, 15/01/2016