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HIstória, Histórias

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ISSN 2318-1729

UNB UNIVERSIDADE DE BRASLIA


REVISTA DO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA (PPGHIS)

DOSSI
Histria e Ensino de Histria: a produo de saberes na formao e na prtica
docente
VOLUME 5, NMERO 9, JAN. JUL 2017
UnB - Universidade de Braslia Marcelo de Souza Magalhes (UERJ)
PPGHIS - Programa de Ps-Graduao em Marcelo Fronza (UFMT)
Histria Margarida Maria Dias de Oliveira
Coordenador - Andr Gustavo de Melo Arajo (UFRN)
Coordenador adjunto - Marcelo Balaban Maria Lda Oliveira (USP)
Matthias Haake (Westflische Wilhelms-
Expediente Universitt Mnster)
Volume 5, nmero 9, jan.jul. 2017 Mauro Csar Coelho (UFPA)
Nilton Pereira (UFRS)
Editor Patrcia Melo Sampaio (UFAM)
Andr Cabral Honor (UnB) Sabrina Mara Sant'Anna (UFRB)
Srgio da Mata (UFOP)
Comit Executivo
Andr Cabral Honor, (UnB) Editorao
Henrique Modanez de Sant Anna (UnB) Andr Cabral Honor (UnB)

Conselho Editorial Reviso


Andr Cabral Honor (UnB) Andr Cabral Honor (UnB)
Andr Gustavo de Melo Arajo (UnB)
Diva do Couto Gontijo Muniz (UnB) Secretariado executivo
Elosa Pereira Barroso (UnB) Amanda do Couto e Silva Pinheiro (UnB)
Henrique Modanez de Sant Anna (UnB) Bruna Carvalho Sena (UnB)
Marcelo Balaban (UnB) Gabriela Pereira de Frana (UnB)
Maria de Deus Manso (Universidade de vora) Guilherme Braz de Oliveira (UnB)
Rodrigo Nunes Bentes Monteiro (UFF) Kairo Ham Freitas Campos (UnB)
Lucas Lucas Silva Novais (UnB)
Conselho Consultivo Marcos Paulo Teixeira(UnB)
Adriana Maria de Souza Zierer (UEMA) Rodrigo Souza Xavier Ruperto (UnB)
Carla Mary S Oliveira (UFPB) Joo Pedro Sales Fernandes (UnB)
Claiton Marcio da Silva (UFFS) Vanessa Aparecida Arajo Correia (UnB)
Cristiano Lus Christillino (UEPB)
Elizabeth Cancelli (USP)
Friedrich Jaeger (Universidade
Witten/Herdecke)
Gerson Galo ledezma Meneses (UNILA)
Henrique Espada Lima (UFSC)
Juara Luzia Leite (UFES)
Luiz Duarte Haele Arnaut (UFMG)
Macrio Lopes de Carvalho Jnior (UEAM)
Manuela Santos Silva (Universidade de Lisboa)
Marcelo Cndido da Silva (UnB)
Os dados, ideias, opinies e conceitos emitidos nos artigos e resenhas, assim como a exatido das
referncias, so de inteira responsabilidade do(s) autor(es).
A revista agradece imensamente aos pareceristas ad hoc que contriburam a essa edio

Amanda Rios Herane - Universidade de So Paulo - Brasil


Ana Carla Sabino - Universidade Federal do Cear - Brasil
Ana Maria Ferreira da Costa Monteiro - Universidade Federal do Rio de Janeiro - Brasil
Ana Maria Petraitis - Universidade Federal do Paran - Brasil
Anderson Oliva Universidade de Braslia - Brasil
Andr Luiz Bis Pirola Instituto Federal do Esprito Santo
Andria de Assis Ferreira - Universidade Federal de Minas Gerais - Brasil
Arnaldo Pinto JR - Universidade de Campinas - Brasil
Antonio Torres Montenegro - Universidade Federal de Pernambuco - Brasil
Carlos Eduardo Vidigal - Universidade de Braslia - Brasil
Claude Franklin Monteiro Santos - Universidade Federal de Sergipe - Brasil
Cristiani Bereta da Silva - Universidade do Estado de Santa Catarina - Brasil
Darlan de Oliveira Reis Junior Universidade Regional do Cariri - Brasil
Dcio Gatti Jnior - Universidade Federal de Uberlndia - Brasil
Dilton Cndido Santos Maynard - Universidade Federal de Sergipe - Brasil
Edlene Oliveira Silva - Universidade de Braslia - Brasil
Elison Paim - Universidade Federal de Santa Catarina - Brasil
Elizabeth Aparecida Seabra - Universidade Federal dos vales do Jequitinhonha e Mucuri - Brasil
Elizabeth Seabra Duque - Universidade Federal dos vales do Jequitinhonha e Mucuri - Brasil
Ernesto Cerveira de Sena - Universidade Federal do Mato Grosso - Brasil
Flvio Vilas Boas Trovo - Universidade Federal do Mato Grosso - Brasil
Ira Quelho de Castro - Universidade Federal do Mato Grosso do Sul - Brasil
Ione Oliveira - Universidade de Braslia - Brasil
Jaime Almeida - Universidade de Braslia - Brasil
Janete Flor de Maio Fonseca - Universidade Federal de Ouro Preto - Brasil
Jaison Lus Crestani - Instituto Federal do Paran
Juara Luzia Leite - Universidade Federal do Esprito Santo - Brasil
Juliana Miranda Filgueiras - Universidade Federal de Alfenas - Brasil
Leticia Costa Rodrigues Vianna Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional - Brasil
Liliane Faria Corra Pinto - Universidade Federal do Maranho - Brasil
Luis Fernando Cerri - Universidade Estadual de Ponta Grossa - Brasil
Marcelo Fronza - Universidade Federal do Mato Grosso - Brasil
Mrcia Almada - Universidade Federal de Minas Gerais - Brasil
Margarida Dias Oliveira - Universidade Federal do Rio Grande de Norte - Brasil
Maria da Vitria Barbosa Lima Ncleo de documentao histrica regional (NDHIR) - Brasil
Mauricio Cardoso - Universidade de So Paulo - Brasil
Patrcia Teixeira de S - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - Brasil
Rafael Hansen Quinsani - Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Brasil
Solange Pereira da Rocha - Universidade Federal da Paraba - Brasil
Vanicleia Silva Santos - Universidade Federal de Minas Gerais - Brasil
Virglio Caixeta Arraes - Universidade de Braslia - Brasil
Wilsa Ramos - Universidade de Braslia - Brasil
ISSN 2318-1729

SUMRIO

Editorial 1

Apresentao do dossi 3
ORIENTAO TEMPORAL E ENSINO DE HISTRIA: PERSPECTIVAS E PRTICAS
DE PROFESSORES DE HISTRIA DA REDE ESTADUAL DE ENSINO.
JACAREZINHO-PR. 2015
7
Andr Luiz da Silva Cazula/ Ana Helosa Molina
EXPERINCIAS AUSENTES NO ENSINO DE HISTRIA: INQUIETANTES
PRESSUPOSTOS PARA UMA REORIENTAO DA VIDA PRTICA 24
Astrogildo Fernandes Silva Junior/ Jos Josberto Montenegro de Sousa
OS NDIOS NA HISTRIA E O ENSINO DE HISTRIA: AVANOS E DESAFIOS
Edson Hely Silva 40
SUJEITOS DE EXPERINCIA: PROFESSORES DE HISTRIA NO USO
PEDAGGICO DO MUSEU DE ARTES E OFCIOS 57
Jezulino Lcio Mendes Braga
REPRESENTAES DOS NEGROS NOS LIVROS DIDTICOS DE HISTRIA DO
ESPRITO SANTO (1964-1997) 86
Leonardo Nascimento Bourguignon
ENSINO DE HISTRIA, ESPAOS E CULTURA POLTICA BANDEIRANTE: JOS
SCARAMELI E A ESCRITA DE LIVROS ESCOLARES DE HISTRIA PARA CRIANAS 104
Magno Francisco de Jesus Santos
O QUE NARRAM LICENCIANDOS DE HISTRIA SOBRE O IMPACTO DA
TECNOLOGIA EM SUA FORMAO INICIAL? 126
Marcella Albaine Farias da Costa
ENSINAR E APRENDER HISTRIA: REFLEXES EM TORNO DE EXPERINCIAS
DE FORMAO DOCENTE CONTNUA EM MEIOS VIRTUAIS NA PROVNCIA DE 148
BUENOS AIRES
Talia Meschiany/ Vernica Hendel
CINEMA E ENSINO DE HISTRIA ENTRE DEBATES E PRTICAS
Vitria Azevedo Fonseca 170
ALUNOS DA EJA FALAM SOBRE A HISTRIA ENSINADA: RELAES ENTRE
HISTRIA E VIDA PRTICA 190
Wilian Junior Bonete

ARTIGOS LIVRES
APONTAMENTOS ANALTICOS SOBRE A RELAO INTELECTUAL DE
MACHADO DE ASSIS COM O TEMPO 213
Luis Cludio Palermo
NARRATIVAS INDGENAS NA WEB: O QUE ISSO PODE NOS DIZER SOBRE
IDENTIDADES, CULTURAS E PROTAGONISMO INDGENA 234
Maria Prpetua Baptista Domingues

RESENHA
SILVA, Marclia Gama da. Informao, represso e memria: a construo do estado de exceo no
Brasil na perspectiva do DOPS-PE (1964-1985). Recife: Editora UFPE, 2014. 339 p. 252
Rafael Leite Ferreira

Revista histria, histrias, volume 5, nmero 9, jan.jul. 2017


ISSN 2318-1729

EDITORIAL

Foi um imenso desafio fazer um dossi sobre ensino de Histria nesse novo
nmero da Revista histria, histrias.
O processo de construo dessa edio foi marcado por um contexto histrico
completamente adverso pesquisa cientfica e ao ensino de Histria. O fim da
obrigatoriedade da Histria enquanto disciplina escolar no Ensino Mdio, vindo atravs de
uma Medida Provisria imposta por um governo ilegtimo sim, pois no foram essas as
diretrizes aprovadas pelas urnas na eleio de 2014 um duro golpe na tentativa de
conceber a formao de um aluno pensante, na diretriz oposta do aluno reprodutor. Alm
disso, o fim do MCTI e os posteriores cortes no oramento da pesquisa no Brasil reduzem
drasticamente a nossa capacidade de produo cientfica pondo-a em risco de extino.
Receber o presente dossi, dentro deste contexto desanimador e funesto para a
pesquisa e educao brasileiras, fez com que o Conselho Editorial dessa revista aliasse ao
seu compromisso de promoo acadmica da historiografia a luta poltica pelo
reconhecimento do carter formativo do conhecimento histrico em nossa sociedade e,
desse modo, pela permanncia da Histria nos currculos escolares brasileiros um papel
de combatividade na defesa do ensino pblico superior gratuito e da pesquisa acadmica.
Nesse sentido, a agora ex-editora chefe Susane Rodrigues a qual deixo aqui meus mais
sinceros agradecimentos foi pea chave em perceber as filigranas do processo que se
desenvolvia ao seu redor e realizar o convite para o dossi. Cabe destacar, que essa
sensibilidade caracterstica notria da professora, sempre atenta realidade que a cerca.
Assim, o dossi Histria e Ensino de Histria: a produo de saberes na formao e na
prtica docente organizado pelo professor doutor Carlos Augusto de Lima Ferreira docente
da Universidade Estadual de Feira de Santana mostrou que, para alm da propagao do
conhecimento no campo da Histria, a revista encontra-se imersa dentro das questes que
so urgentes na sociedade brasileira.
Tendo assumido o cargo de editor chefe dessa revista, a partir dessa edio, venho
realizando vrias mudanas para acelerar o processo de submisso dos artigos revista,
assim como para garantir a nota Qualis/Capes do peridico que j atende todos os
requisitos necessrios para uma melhora na avaliao. So inmeros os desafios impostos
nesse processo de reduo do apoio financeiro pesquisa e difuso da produo cientfica

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Revista histria, histrias, volume 5, nmero 9, jan.jul. 2017
ISSN 2318-1729

nas universidades pblicas federais, assim assumimos tal desafio com rduo compromisso
no lanamento deste volume.
Envolvendo pesquisadores estrangeiros, nacionais, e, principalmente, professores
de ensino superior, mdio e fundamental, no apenas como autores, mas como
colaboradores ad hoc, entregamos, com orgulho, um dossi que se realiza na competncia
acadmica e no dilogo com a realidade em que foi produzida.
Mas grande parte desses louros devem ser divididos com o professor Carlos
Augusto de Lima Ferreira que gentilmente topou a empreitada de organizar esse dossi, o
qual teve um nmero recorde de inscries, potencializando a excelncia acadmica desse
nmero com artigos de alta qualidade.
Entendo que a cincia, de qualquer ramo, um local de disputa poltica, mas que
prima quando se torna um veculo de resistncia. O conhecimento cientfico deve trazer
para si a responsabilidade de ser a vanguarda da mudana social, buscando uma melhora na
qualidade de vida da populao, seja atravs da tecnologia, seja conscientizando as pessoas
do seu papel no mundo.
Resta dizer, que dentro da expectativa de repensar a prtica docente e a pesquisa
em histria, entendendo-a como ferramenta fundamental para construir um mundo mais
justo e igualitrio, que orgulhosamente entregamos o nono nmero da revista histria,
histria.
!

Prof. Dr. Andr Cabral Honor


Brasil - Universidade de Braslia - UnB
Editor chefe da Revista histria, histrias
e-mail: cabral.historia@gmail.com

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Revista histria, histrias, volume 5, nmero 9, jan.jul. 2017
ISSN 2318-1729

APRESENTAO DO DOSSI

O dossi, intitulado Ensino de Histria, representa uma contribuio ao campo


da formao de professores de Histria. As discusses acerca do Ensino de Histria tm se
ampliando substantivamente o que, sem dvida, aponta para a importncia cada vez mais
crescente de uma rea que se consolida, pondo em relevo o trabalho daqueles que se
dedicam ao fazer docente.
Nesse sentido, trazemos um conjunto de artigos com discusses devidamente
contextualizadas que potencializam o debate da formao de professores de Histria, bem
como renovam o nosso fazer e nos fortalece no contexto social a partir de prticas
polticas, educativas e sociais muito amplas. So, portanto, produes que dotam de sentido
o papel docente.
O presente dossi aborda desde a prtica docente ao uso de linguagens, e, por certo,
contribuir para/com o cotidiano escolar. Isto se constituiu efetivamente em uma das
motivaes da sua elaborao, ou seja, termos uma produo que tambm tem a aspirao
de chegar aos Professores de Educao bsica. Isto certamente, possibilitar que as
investigaes acadmicas dialoguem com este universo, favorecendo o processo de
atualizao dos docentes, nos aspectos tericos, metodolgicos e historiogrficos.
Com a proposio da temtica, queremos que a edio seja mais um meio de
discusses sobre os processos de ensino e aprendizagem de histria, onde se analisem os
aportes mais recentes e sua contribuio para a formao dos profissionais de histria.
Notadamente, quando chegamos a segunda dcada do sculo XXI assistindo os mais
variados acontecimentos no contexto educacional e social, no s pelo nmero aterrador
de conflitos, polticos, sociais e econmicos, como tambm a imensa quantidade de
informaes que nos chegam, quer sejam pelos meios de comunicao, quer sejam pelas
chamadas redes sociais. Informaes rpidas e superficiais.
Dessa maneira, o ensino de Histria exerce um papel muito importante e
fundamental para poder compreender esse cenrio e a sociedade da qual fazemos parte.
Em vista disso, evidente que a histria, hoje, mais que nunca, requer compreenses
minuciosas acerca do contexto em que vivemos.
Em sendo assim, a Revista Histria, Histrias do programa de ps-graduao em
Histria da Universidade de Braslia - UnB, coloca o atual nmero disposio do pblico, em
particular aos leitores especializados, um conjunto de textos que est construdo para apoiar a

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Revista histria, histrias, volume 5, nmero 9, jan.jul. 2017
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reflexo e a renovao no contexto escolar e na formao docente na perspectiva de um ensino de


Histria atualizado e til que a sociedade est a exigir.
Astrogildo Fernandes Silva Junior e Jos Josberto Montenegro de Sousa, em seu
texto EXPERINCIAS AUSENTES NO ENSINO DE HISTRIA: INQUIETANTES
PRESSUPOSTOS PARA UMA REORIENTAO DA VIDA PRTICA, nos convidam
a compreender como o ensino de histria pode contribuir na formao dos jovens
estudantes. Os autores apresentam resultados de um projeto que teve como objetivo
analisar o potencial das diferentes fontes e das diferentes linguagens da cultura
contempornea no processo de ensino e aprendizagem em histria. Para eles, o ensino de
histria na educao bsica necessita reorientar suas prticas, abrangendo outras
perspectivas epistemolgicas, que possibilitem discutir a diversidade de experincias
histrico-culturais negligenciadas e silenciadas.
Andr Luiz da Silva Cazula e Ana Helosa Molina em ORIENTAO
TEMPORAL E ENSINO DE HISTRIA: PERSPECTIVAS E PRTICAS DE
PROFESSORES DE HISTRIA DA REDE ESTADUAL DE ENSINO.
JACAREZINHO-PR. 2015, convidam-nos a pensar sobre as diretrizes para o ensino de
Histria, publicadas pelo estado do Paran em 2008, e que possuem como principal
referncia norteadora a teoria da Histria engendrada por Jrn Rsen. Com reflexes
acerca das perspectivas e prticas docentes em relao s orientaes curriculares, o texto
resultado da pesquisa, realizada com dois professores da rede estadual no Ensino Mdio, na
cidade de Jacarezinho-PR, no ano letivo de 2015, apresentando as apropriaes e as
estratgias utilizadas na mediao do conhecimento em sala de aula a partir das discusses
propostas por Michel De Certeau.
Edson Hely Silva analisa OS NDIOS NA HISTRIA E O ENSINO DE
HISTRIA: AVANOS E DESAFIOS. Para ele os povos indgenas no Brasil nos ltimos
anos conquistaram e ocuparam espaos sociopolticos, questionando vises eurocntricas,
colonialistas e evolucionistas tratando os povos indgenas como primitivos, desaparecidos
ou vtimas impotentes em extino. O que alm de exigir reformulaes das teorias
explicativas sobre a histria e o destino desses povos, vem tambm exigindo discusses,
formulaes e efetivao de polticas pblicas respondendo as demandas de direitos
indgenas sociais especficos.
Jezulino Lcio Mendes Braga nos apresenta em seu artigo SUJEITOS DE
EXPERINCIA: PROFESSORES DE HISTRIA NO USO PEDAGGICO DO

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MUSEU DE ARTES E OFCIOS, parte de sua pesquisa de doutorado na qual investiga a


relao dos professores de histria com a exposio do Museu de Artes e Ofcios em Belo
Horizonte. Apresentando as experincias sensveis dos docentes no museu o autor discute
as escolhas que fazem para ensinar histria, nos afirmando que a potencialidade dos
museus para o ensino de histria est na forma que dispe os objetos, imagens e legendas e
analiso dados sobre as mediaes oferecidas pelo museu aos docentes.
Leonardo Nascimento Bourguignon, analisa, em seu artigo REPRESENTAES
DOS NEGROS NOS LIVROS DIDTICOS DE HISTRIA DO ESPRITO SANTO
(1964-1997), o papel do livro didtico enquanto instrumento de propagao e consolidao
de representaes, mais especificamente das representaes acerca do negro nos livros de
histria regional. O texto traz como constatao da pesquisa, que, apesar da permanncia
de uma escrita eurocntrica, os livros produzidos por autores capixabas apresentaram, em
diversos momentos, o negro como agente ativo na histria local, mesmo antes da existncia
de uma legislao que assim os exigisse, e a frente inclusive de uma tendncia nacional.
Magno Francisco de Jesus Santos em ENSINO DE HISTRIA, ESPAOS E
CULTURA POLTICA BANDEIRANTE: JOS SCARAMELI E A ESCRITA DE
LIVROS ESCOLARES DE HISTRIA PARA CRIANAS, nos traz a discusso sobre a
escrita da histria para crianas no Brasil, a partir da experincia de Scarameli. Intelectual
defensor dos ideais do movimento escolanovista, entre 1926 e 1934, Scarameli produziu
um nmero significativo de livros escolares de Histria e de Moral e Cvica. Trata-se, pois,
de uma discusso como estes livros expressaram as estratgias de difuso de uma cultura
poltica bandeirante e a construo de representaes acerca dos estados brasileiros com
um protagonismo paulista.
Marcella Albaine Farias da Costa O QUE NARRAM LICENCIANDOS DE
HISTRIA SOBRE O IMPACTO DA TECNOLOGIA EM SUA FORMAO
INICIAL?. A autora nos revela de que forma professores de Histria em formao inicial
alunos das turmas de Didtica Especial de Histria e Prtica de Ensino de Histria da
UFRJ e participantes do Programa Institucional de Bolsas de Iniciao Docncia (PIBID)
significam sua trajetria profissional no que tange temtica da tecnologia. A experincia,
foi pautada no olhar (auto) biogrfico e utilizou-se da plataforma do Museu da Pessoa
enquanto possibilidade metodolgica.
Talia Meschiany e Vernica Hendel enveredam pelos caminhos do ENSINAR E

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APRENDER HISTRIA: REFLEXES EM TORNO DE EXPERINCIAS DE


FORMAO DOCENTE CONTNUA EM MEIOS VIRTUAIS NA PROVNCIA DE
BUENOS AIRES. As autoras nos apresentam reflexes preliminares sobre um conjunto
de prticas e representaes do fazer de professores sobre o ensino da histria, parte do
Departamento de Educao Continuada (DFC) da Direco-Geral da Educao e Cultura
da provncia de Buenos Aires (DGCyE) durante os anos de 2015 e 2016. No texto analisam
como a formao de professores em exerccio atravs de Ambientes Virtuais de
Aprendizagem (EVA) promovem e fortalecem as boas prticas de ensino.
Vitria Azevedo Fonseca, em CINEMA E ENSINO DE HISTRIA ENTRE
DEBATES E PRTICAS, apresenta a partir de um rico debate sobre como usar filmes
em salas de aula, especificamente no ensino de histria, a experincia de exibio do
mesmo filme (Sonhos Tropicais, Andr Sturn, 2002) para diferentes turmas do 9 ano do
Ensino Fundamental, adotando procedimentos preparatrios diferenciados a fim de
discutir e defender a importncia de, alm da alfabetizao da linguagem cinematogrfica
refletir tambm sobre o desenvolvimento da compreenso dos estudantes dos debates e
dilogos historiogrficos estabelecidos pela narrativa audiovisual para compreenso das
intertextualidades presentes nos filmes.
Por fim, Wilian Junior Bonete, em seu texto ALUNOS DA EJA FALAM SOBRE
A HISTRIA ENSINADA: RELAES ENTRE HISTRIA E VIDA PRTICA,
busca identificar e analisar o pensamento de um grupo de 66 alunos da Educao de Jovens
e Adultos (EJA), de uma escola Estadual no Paran, sobre o conhecimento histrico e suas
relaes com a vida prtica. Para tanto, estabelece dilogos com a concepo de conscincia
histrica, tal como proposto por Jrn Rsen, bem como os pressupostos que embasam o
campo investigativo da Didtica da Histria.
Este dossi discute, a partir de diversos olhares, as dimenses polticas e didticas
que atravessam nossas concepes de pensar a formao de professores. A qualidade dos
textos resulta da soma de esforos de docentes de vrias localidades do Brasil para
produzirem um primeiro nmero da Histria, Histria dedicado ao Ensino de Histria,
permitindo que, pela primeira vez, professores pesquisadores da rea possam intercambiar
textos, experincias e estratgias de ensino e aprendizagem de Histria. Uma tima leitura!

Prof. Dr. Carlos Augusto Lima Ferreira


Brasil - Universidade Estadual de Feira de Santana UEFS
e-mail: calfferreira@gmail.com

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ORIENTAO TEMPORAL E ENSINO DE HISTRIA:


PERSPECTIVAS E PRTICAS DE PROFESSORES DE HISTRIA DA
REDE ESTADUAL DE ENSINO. JACAREZINHO-PR. 2015

TIME FRAMES AND HISTORY TEACHING: PERSPECTIVES AND


PRACTICES OF STATE SCHOOLS HISTORY TEACHERS.
JACAREZINHO-PR. 2015

Andr Luiz da Silva Cazula


Tcnico-administrativo da Universidade Estadual do Norte do Paran (UENP) - Brasil
Mestre em Histria Social pela Universidade Estadual de Londrina
e-mail: cazula@uenp.edu.br

Ana Helosa Molina


Professora da Universidade Estadual de Londrina (UEL) - Brasil
Doutora em Histria pela Universidade Federal do Paran
e-mail: anaheloisamolina@yahoo.com.br

RESUMO

As diretrizes para o ensino de Histria, publicadas pelo estado do Paran em 2008, possuem como
principal referncia norteadora a teoria da Histria engendrada por Jrn Rsen, que indica a
necessidade da orientao temporal do ser humano em sua vida cotidiana conforme a peculiaridade
do conhecimento histrico. Com reflexes acerca das perspectivas e prticas docentes em relao s
orientaes curriculares, o presente texto resultou de pesquisa do tipo etnogrfica, realizada com
dois professores da rede estadual no Ensino Mdio, na cidade de Jacarezinho-PR, no ano letivo de
2015, apresentando as apropriaes, as tticas e as estratgias utilizadas na mediao do
conhecimento em sala de aula a partir das discusses propostas por Michel De Certeau.

Palavras-chave: currculo; orientao temporal; prtica docente.

ABSTRACT

The guidelines for History teaching, published by the state of Paran in 2008, have as a main
reference the theory of History engendered by Jrn Rsen, indicating the need for the temporal
orientation of the human being in his everyday life according to the peculiarity of historical
knowledge. With reflections on the perspectives and teaching practices in relation to curriculum
guidelines, this study resulted from ethnographic research performed with two state teachers in
high school, in the city of Jacarezinho-PR, in the school year 2015, presenting the appropriation,
tactics, and strategies used in the mediation of knowledge in the classroom from the
discussions proposed by Michel De Certeau.

Keywords: curriculum; temporal orientation; teaching practice

O termo currculo encontrado em diversos registros ao longo do tempo,


especialmente aqueles que abordam o conhecimento e a escola e normalmente, relaciona-se
a um projeto de controle do ensino e da aprendizagem, ou seja, da atividade prtica da

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escola. Por muito tempo, vinculou-se ao iderio de ordem e mtodo, caracterizando-se


como um instrumento facilitador da administrao escolar. Muitas outras abordagens
compreendem o currculo escolar como espao de poder, de lutas de interesses e culturas
diversos.
Consideramos que os currculos dialogam com os tempos, os espaos e os
mltiplos grupos de atores sociais que circundaram sua produo.
As Diretrizes Curriculares Estaduais de Histria do estado do Paran (DCEs),
publicadas em 2008, propem aos professores que o Ensino de Histria seja pautado na
orientao temporal, com base em Rsen1. Com o objetivo de refletir sobre como a
referida orientao se realiza na prtica, este texto apresenta e discute uma pesquisa do tipo
etnogrfica realizada em 2015, no Ensino Mdio da periferia do municpio de Jacarezinho,
interior do Paran. Colaboraram com o estudo dois professores do colgio estadual
parceiro da investigao2.
Para compreendermos a ao realizada pelos professores em seu cotidiano em sala
de aula, considerando a orientao temporal til vida prtica por via do conhecimento
histrico, elaboramos, com base nas DCEs, alguns protocolos de anlise, dentre os quais,
neste artigo, destacamos dois: a utilizao da subjetividade do aluno e a utilizao dos contedos
meta-histricos3.
Alm de problematizarmos o currculo 4, consideramos os saberes docentes5 e os
conceitos de Michel De Certeau6, dando sustentao investigao para discutir o

1
Sobre o tema ver: RSEN, Jrn. Didtica da Histria: passado, presente e perspectivas a partir do caso
alemo. Prxis Educativa, Ponta Grossa, v. 1, n. 2, p. 07-16, jul./dez. 2006; RSEN, Jrn. Razo
histrica: teoria da histria: fundamentos da cincia histrica. Braslia: Editora Universidade de Braslia,
2010.
2
O Colgio possui alunos de vrios bairros, est situado numa comunidade de classe mdia baixa.
Mantido pelo poder pblico estadual, foi criado no ano de 1949 com a denominao de Grupo Escolar, o
Projeto Poltico Pedaggico do Colgio (2014) informa que a equipe dispe de 7 Pedagogas e 2
professoras readaptadas, mais 76 funcionrios entre docentes e agentes I e II, sendo que atende
diretamente um total de 930 alunos.
3
Os outros protocolos de anlise presentes na pesquisa so: utilizao de fontes histricas e do livro
didtico; utilizao de historiografia; utilizao dos contedos estruturantes, bsicos e especficos.
4
Entre outros autores: SILVA, Tomaz Tadeu da. O Currculo como fetiche: A potica e a poltica do
texto curricular. Belo Horizonte: Autntica, 2003; LOPES, Alice Casemiro. Polticas Curriculares:
continuidade ou mudana de rumos. Revista Brasileira de Educao, n. 26, maio/jun/jul/ago, 2004;
LOPES, Alice Casemiro. Teorias ps-crticas, poltica e currculo. Educao, Sociedade & Cultura, n. 39,
p. 7-23, 2013; MACEDO, Elizabeth. Currculo e conhecimento: aproximaes entre educao e ensino.
Cadernos de Pesquisa, v. 4, n. 147, p. 716-737, set./dez. 2012; FORQUIN, Jean-Claude. Escola e
Cultura: as bases sociais e epistemolgicas do conhecimento escolar. Porto Alegre: Artes Mdicas, 1993.
5
TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formao profissional. Petrpolis: Vozes, 2002.
6
CERTEAU, Michel de. A inveno do cotidiano: Artes de fazer. Petrpolis: Vozes, 1994.

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cotidiano escolar. Dessa forma, discorremos sobre as diferentes tticas e os diversos


saberes utilizados pelos professores que, em sala de aula, significam a Histria no presente,
mesmo em ambiente recheado de prticas e sequncias entendidas como tradicionais. O
potencial reflexivo dos professores evidenciado por ser hbrido e ecltico e por ser
astucioso na retrica. Todavia destacam-se tambm orientaes curriculares um tanto
academicistas7.
As fontes consideradas foram (i) a Proposta Curricular para o Ensino de Histria
(2014), retirada do Projeto Poltico Pedaggico do Colgio colaborador da investigao; (ii)
os Planos de Trabalho Docente dos dois professores participantes, ano de 2015, das quatro
sries envolvidas na pesquisa (no caso, primeira e terceira sries), dos perodos matutino e
noturno do Ensino Mdio; (iii) o Caderno de Campo 1 (relatrios de observao em sala de
aula, Professor 1, perodo matutino); (iv) o Caderno de Campo 2 (relatrios de observao
em sala de aula, Professor 2, perodo noturno)8; (v) a entrevista com o Professor 1
(transcrio de gravao em udio); e (vi) o Questionrio com o Professor 2 (transcrio de
respostas dissertadas).
A investigao realizada foi do tipo etnogrfica9, tendo como preocupao principal
o significado das aes e dos eventos para os sujeitos nela envolvidos.

A observao chamada de participante porque parte do princpio de


que o pesquisador tem sempre um grau de interao com a situao
estudada, afetando-a e sendo por ela afetado. As entrevistas tm
finalidade de aprofundar as questes e esclarecer os problemas
observados. Os documentos so usados no sentido de contextualizar o
fenmeno, explicitar suas vinculaes mais profundas e completar as
informaes coletadas atravs de outras fontes10.

O Professor 1, com 37 anos de idade e 10 anos de carreira em 2015, licenciou-se


em Histria com 27 anos, sendo que trabalhou no comrcio e como professor substituto
antes de iniciar a carreira docente pblica/estatal. O professor 2, com 56 anos de idade e 20
anos de carreira em 2015, graduou-se com 33 anos, sendo que no mencionou trabalho

7
Utilizamos esse termo no sentido de pautar-se amplamente na articulao de saberes acadmicos,
possuindo teor terico e metodolgico que por vezes no se vincula diretamente prtica.
8
As observaes das aulas ocorreram de maro a setembro de 2015.
9
A partir dos apontamentos de ANDR, Marli Eliza Dalmazo Afonso de. Etnografia da Prtica Escolar.
Campinas, SP: Papirus, 1995.
10
A partir dos apontamentos de ANDR, 1995, p. 28.

9
Revista histria, histrias, volume 5, nmero 9, jan.jul. 2017
ISSN 2318-1729

anterior docncia11.
O Professor 2 preferiu responder por escrito ao questionrio, o que fez suas
respostas serem menores. Vimos que os dois professores gostam da profisso, mesmo com
o Professor 2, em alguns momentos, demonstrando pequenos desprazeres. O Professor 1
teceu crticas quanto formao superior que teve, alegando necessitar de complementao
da base, sem relao com a prtica12. O Professor 2 tambm criticou sua formao inicial,
entendendo que no foi uma preparao integral para a docncia. Todavia, elogiou13
algumas disciplinas.
A motivao para essa pesquisa nasceu das indicaes curriculares das DCEs, as
quais defendem que o currculo deve nascer de amplos debates, envolvendo professores,
alunos, comunidades, e no ser produto de discusses centralizadas, feitas em gabinetes,
sem a participao dos sujeitos diretamente interessados em sua constituio final. No
caso de um currculo imposto s escolas, a prtica pedaggica dos sujeitos que ficaram
margem do processo de discusso e construo curricular, em geral, transgride o currculo
documento14.
questionvel a forma de participao ou a representao de todos professores,
alunos, comunidades no processo de construo curricular das Diretrizes paranaenses. Mas,
independentemente do envolvimento dos professores no processo de discusso curricular,
o currculo documento no ser praticado como uma reproduo programada, com todos
os professores executando de forma idntica. Considerando Michel de Certeau15, o sujeito
sempre transgride, desvia, cria.
Focamos neste trabalho a orientao temporal com base em Rsen, indicada
oficialmente pela Secretaria de Educao do Paran, e assim fomos ao Colgio colher
indcios para discutir a questo. O Currculo Bsico do Paran, de 199016, j colocava a
questo temporal como principal ponto para a reforma necessria ao ensino de Histria.
Assim, pretende-se recuperar a dinmica prpria de cada sociedade, uma viso crtica,

11
O trabalho preserva a identidade dos professores e do colgio, sendo que o Professor 1 do sexo
masculino e o Professor 2 do sexo feminino. Utilizamos as denominaes Professor 1 e Professor 2 para
que as interpretaes apresentadas no sejam associadas ao gnero.
12
Entrevista. Professor 1. 18 de setembro de 2015.
13
Questionrio. Professor 2. setembro/outubro de 2015.
14
PARAN. Secretaria de Estado da Educao. Departamento de Educao Bsica. Diretrizes
Curriculares da Educao Bsica Histria. Curitiba, 2008, p. 16.
15
CERTEAU, 1994.
16
Assessorado pelas professoras Judite Maria Barboza Trindade e Maria Auxiliadora Moreira dos Santos
Schmidt, ambas da UFPR.

10
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problematizando o passado a partir da realidade imediata, dos sujeitos concretos que vivem
e fazem a Histria do presente17.
As DCEs 2008 possuem a orientao temporal como ponto central de sua
indicao terica metodolgica e propem o ensino temtico pautado nos seguintes
contedos estruturantes: Relao de Trabalho; Relao de Poder e Relaes Culturais.
Destacam trs correntes historiogrficas: a Nova Histria; a Nova Histria Cultural,
incluindo a Micro-Histria, e a Nova Esquerda Inglesa. Citam ainda os brasileiros Sergio
Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Caio Prado Junior, Nelson Werneck Sodr e Celso
Furtado como referncias aos contedos estruturantes18.
Os contedos estruturantes e as correntes historiogrficas so orientados ao ensino
de Histria segundo a perspectiva da conscincia histrica, guiada principalmente pela
teoria do alemo Jrn Rsen, que analisa a narrativa histrica por meio de uma matriz
curricular que se refere organizao temporal do pensamento do sujeito, ao seu cotidiano
e sua prtica social no tempo. As finalidades de orientaes da prtica social dos sujeitos
retomam as interpretaes das necessidades da orientao no tempo, a partir de teorias e
mtodos historiogrficos apontados19. O procedimento metodolgico proposto pelas
DCEs indica a utilizao das ideias de processo, mudana, permanncia, ruptura,
simultaneidade, transformao, descontinuidade, deslocamento, recorrncia20.
Por outro lado, Cerri tece crticas s Diretrizes. O autor entende que conscincia
histrica conceito, parte de uma teoria, no uma indicao metodolgica, e esse conceito
no capaz de engendrar as articulaes propostas entre vertentes historiogrficas.
Existem referncias gerais sobre o mtodo histrico sem consideraes especficas sobre
seu funcionamento recomposto para uso escolar21.

Observemos, por exemplo, a proposta do estado do Paran. Ela est


centrada na perspectiva da formao da conscincia histrica, devedora
da nova histria social alem, que tem Rsen como figura de proa. No
entanto para eleio dos contedos estruturantes (...) os autores das
expectativas reivindicam a contribuio de Eric Hobsbawn e Edward
Thompson (trabalho), Norberto Bobbio e Michel Foucault (poder),

17
PARAN. Secretaria de Estado da Educao. Superintendncia de Educao. Departamento de Ensino
de Primeiro Grau. Currculo Bsico Para a Escola Pblica do Estado do Paran. Curitiba, PR:
SEED/SUED/DEPG, 1990, p. 82.
18
PARAN, 2008.
19
PARAN, 2008, p. 46.
20
PARAN, 2008.
21
CERRI, Lus Fernando. Diretrizes Curriculares Estaduais Histria: Legitimidade, Autonomia
Docente e Currculo Oculto. Rev. Teoria e Prtica, v. 10, n. 1, p. 41-49, jan./abr. 2007, p. 47.

11
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Raymond Willians, Roger Chartier e Carlos Ginzburg (cultura)22.

Mas como a orientao temporal - enquanto um saber - est sendo engendrada? O


Professor 1 relatou que teve dificuldades, a princpio, com a histria temtica contida nas
DCEs, porm afirmou que realiza as conexes com os contedos estruturantes23. Ele foi
cuidadoso ao abordar as Diretrizes, demonstrando um fetiche quanto ao conhecimento,
informao, aos fatos, pelo currculo ser algo que se carrega, que se transmite, por ser
uma lista de tpicos, de temas, de autores. Por outro lado, o Professor 2 enalteceu o
Documento como construo coletiva, afirmando que o utiliza na prtica24, possuindo um
fetiche mais relacionado ao currculo amuleto, poderoso, que d segurana25.
Rsen defende a cientificidade da Histria a partir da peculiaridade do
conhecimento histrico: a orientao temporal, que prpria da conscincia histrica. Sua
matriz composta de cinco fatores interdependentes organizados em um sistema dinmico:
interesses (vida prtica); ideias (cincia especializada); mtodos (cincia especializada);
formas (cincia especializada) e funes (vida prtica)26. Quando o terico aborda a questo
da experincia do tempo e autoidentidade ele fala da origem da conscincia histrica.

A conscincia histrica ser analisada como fenmeno do mundo vital, ou


seja, como uma forma da conscincia humana que est relacionada
imediatamente com a vida humana prtica. este o caso quando se
entende por conscincia histrica a suma das operaes mentais com as
quais os homens interpretam sua experincia da evoluo temporal de
seu mundo e de si mesmos, de forma tal que possam orientar,
intencionalmente, sua vida prtica no tempo 27.

Para o autor, (...) a conscincia histrica se constitui tambm como a constituio


do sentido da experincia do tempo28. A proposta do colgio est alinhada com as DCEs:
Espera-se que, por meio dessas orientaes, a prtica do professor contribua para a
formao da conscincia histrica nos alunos a partir de uma racionalidade histrica no-

22
OLIVEIRA, Margarida; FREITAS, Itamar. Currculo de Histria e expectativa de aprendizagem para
os anos finais do ensino fundamental no Brasil (2007 2012), Revista Histria Hoje, v. 1, n. 1, p. 272-
273, 2012.
23
Entrevista. Professor 1. 18 de setembro de 2015.
24
Questionrio. Professor 2. setembro/outubro de 2015.
25
Interpretaes a partir da obra: SILVA, Tomaz Tadeu da. O Currculo como fetiche: a potica e a
poltica do texto curricular. Belo Horizonte: Autntica, 2003.
26
RSEN, 2010.
27
RSEN, 2010, p. 56-57.
28
RSEN, 2010.

12
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linear e multitemporal29.
Na Proposta Pedaggica, os contedos para o Ensino Mdio no esto divididos
em sries, mas, conforme direciona as DCEs, em contedos estruturantes, contedos
bsicos e contedos especficos. Todavia, os contedos bsicos nos Planos de Trabalho
Docente so reproduzidos do sumrio do livro didtico adotado pelos professores30, sendo
este, grosso modo, o selecionador dos contedos nas quatro sries participantes da
pesquisa.
Os dois professores afirmaram que trabalham com os contedos histricos de
forma linear e no temtica, contrariando as Diretrizes e a Proposta de Histria do Projeto
Poltico Pedaggico do colgio. O Professor 1 comentou que complicada a prtica da
orientao temporal, destacando que o passado no ser mudado por ele e que, em suas
aulas, refora o entendimento do presente por meio do conhecimento do passado31. O
Professor 2 afirmou que o passado constitutivo do conhecimento, o presente aceito
pela sociedade e o futuro so as incertezas32. Os professores apresentaram preocupaes
sobre pensar historicamente o futuro.
Antes de passarmos aos protocolos de anlise, importante fundamentar que
utilizamos conceitos de De Certeau, de forma que aqui destacaremos dois: ttica e
estratgia33. O autor discute o raio de ao do sujeito, que no se reduz vigilncia nem a
pr-programaes. Assim, (...) a ordem exercida por uma arte que se exerce e se
burla34. Nesse sentido, discorre Silva: A prtica disseminante e produtiva da significao,
da cultura, entretanto, no pode ser estancada. Mesmo que contida, ela espirra, transborda,
excede, revolta-se, rebela-se, espalha-se incontrolavelmente35.
Para De Certeau, estratgia (...) postula um lugar capaz de ser circunscrito como
um prprio e, portanto capaz de servir de base a uma gesto de suas relaes com uma
exterioridade distinta36. Esse modelo estratgico mais prximo da viso de conjunto, da

29
Projeto Poltico Pedaggico do Colgio, 2014, p. 502.
30
Histria Sociedade e Cidadania, de Alfredo Boulos Junior, Editora FTD, do PNLD para os anos de
2015/16/17.
31
Entrevista. Professor 1. 18 de setembro de 2015.
32
Questionrio. Professor 2. setembro/outubro de 2015.
33
Demais conceitos a partir de Michel De Certeau utilizados na pesquisa: economia escriturstica, o oral,
o ordinrio, espao, lugar e relato.
34
CERTEAU, 1994, p. 20.
35
SILVA, Tomaz Tadeu da. O Currculo como fetiche: A potica e a poltica do texto curricular. 2
reimpresso. Belo Horizonte: Autntica, 2003, p. 15.
36
CERTEAU, 1994, p. 46.

13
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coletividade, mas no de uma ideologia que no permite e/ou aceita aes, uma estratgia
que sabe da existncia das astcias da ao individual que ocorrem naturalmente, mas, se
delimita, cria uma hierarquia, possui burocracia, possui fiscalizao, regras, locais de ao
predeterminados, um o que fazer para cada um. Na pesquisa de Jeferson Rodrigo da Silva 37,
a estratgia o admitido, autorizado, institucional e, podemos acrescentar aqui, as DCEs
so um documento estratgico por mais que tenha individualidades em sua construo.

(...) denomino, ao contrrio, ttica, um clculo que no pode contar


com um prprio, nem, portanto com uma fronteira que distingue o
outro como totalidade visvel. A ttica s tem por lugar o do outro. Ela
a se insinua, fragmentariamente, sem apreend-lo por inteiro, sem poder
ret-lo distncia. Ela no dispe de base onde capitalizar os seus
proveitos, preparar suas expanses e assegurar uma independncia em
face das circunstncias. O prprio uma vitria do lugar sobre o
tempo. Ao contrrio, pelo fato de seu no-lugar, a ttica depende do
tempo, vigiando para captar no vo possibilidades de ganho38.

Os professores criam enquanto praticam, so astuciosos, realizam desvios. Vejamos


trechos dos cadernos de campo sobre como agem na utilizao da subjetividade do aluno.
Pesquisamos a valorizao da subjetividade do aluno porque as DCEs destacam a
necessidade do professor problematizar as narrativas produzidas pelo estudante. Conhecer
a subjetividade dos alunos torna-se, ento, um desafio para o professor, pois esta
considerada como fundamental para a elaborao do Plano de Trabalho Docente.
Os pesquisadores Ana Maria Monteiro e Fernando de Arajo Penna definem que
os professores, muito frequentemente, realizam movimentos para relacionar os fatos
estudados com a realidade dos alunos, com vista a significar o contedo histrico39. Em
nossa pesquisa percebemos diversas vezes esse movimento, que no aborda diretamente a
subjetividade individual dos alunos, mas recorre aos contextos que os cercam.
Destacaremos primeiro alguns trechos referentes ao Professor 1. Perguntamos a
ele como analisa sua prtica docente em relao subjetividade dos alunos:

Eu penso assim, os nossos alunos aqui, eles tm, ... eles tm um


conhecimento e acho que de forma geral os alunos tm. uma pena,

37
SILVA, Jeferson Rodrigo da. Artes de fazer o ensino de histria: professor, aluno e livro didtico
entres os saberes admitido e inventivo. Dissertao (Mestrado em Histria Social) Universidade
Estadual de Londrina, Londrina, 2012.
38
CERTEAU, 1994, p. 46-47.
39
MONTEIRO, Ana Maria Ferreira da Costa; PENNA, Fernando de Araujo. Ensino de Histria: saberes
em lugar de fronteira. Educ. Real., Porto Alegre, v. 36, n. 1, p. 191-211, jan./abr. 2011. Disponvel em:
<http://www.ufrgs.br/edu_realidade>. Acesso em: 09/10/2016.

14
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n... uma pena... uma tristeza, digamos assim, que a gente no consiga, ...
ter mais tecnologia, porque se tivesse tecnologia ficaria muito mais fcil
em alguns pontos, que da a gente mostraria pra eles que a escola pode
ser interessante, n, porque... lgico, como que eu... eu... falando...
assunto que pra eles s vezes no interessante vou chamar a ateno
deles, n, sendo que ali no celular, no computador, ele vai achar a forma
do que eu t falando de maneira muito mais interessante. Ento ... E da,
n... eu no desestimulo no, mas posso dizer assim, a partir disso eu
avalio que eles tm essa questo de trazer... essa questo de assimilar,
conseguir fazer relaes, eles... eles conseguem fazer isso, sim. Eles tm
o conhecimento, pelo menos uma parte, lgico que nunca cem por
cento40.

O professor, para tratar das administraes capitalistas desenvolvidas aps a


Revoluo Industrial, citou as indstrias da cidade e da regio, como a Yoki em Cambar,
municpio vizinho, contando que a prefeitura concedeu alguns benefcios, como parte do
terreno e tratamento diferenciado em questes de impostos, para que a empresa se
instalasse no local41.
Apresentando o tema Canudos, fez relao com o Movimento Sem-Terra, que
possui acampamento em Jacarezinho. Explicou que Antnio Conselheiro dava as diretrizes
administrativas e os conselhos espirituais, comparou Canudos com o Movimento Sem-
Terra, explicando que nesses movimentos existem pessoas que contestam as estruturas
mantidas pelo governo42.
Sobre o Cangao, ensinou que algumas de suas caractersticas existem ainda hoje,
comparando o cangaceiro a Robin Hood43, personagem famoso da literatura:

Sobre o Cangao, o professor explicou que quase atemporal, porque


algumas caractersticas existem ainda hoje. Ensinou que o Cangao era
uma forma de banditismo social para realizao de solues prprias,
pela falta de condies sociais, momento em que o professor realizou
uma comparao: Como se fosse Robin Hood, mas havia mortes,
brigas, disputas de poder. E at hoje falta muita estrutura social. Dizem
que nessas regies as condies de misria foram superadas, mas
continuam pobres. E alguns se aproveitam dessa situao nas estruturas

40
Entrevista. Professor 1. 18 de setembro de 2015.
41
Caderno de Campo 1, observao do dia 23 de maro de 2015, 3 Ano, Ensino Mdio, Perodo
Matutino.
42
Caderno de Campo 1, observao do dia 9 de julho de 2015, 3 Ano, Ensino Mdio, Perodo Matutino.
43
No objetivo deste trabalho discutir se determinado contedo ou o modo como trabalhado est
correto ou incorreto, mas apresentar to somente as relaes estabelecidas e as mediaes engendradas
nos saberes que circulam na sala de aula.

15
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de poder44.

O professor falando de si um item que podemos mencionar como parte da


discusso sobre a proximidade com o aluno. Ele contou acerca de seu trabalho anterior
docncia para ilustrar o capitalismo, fez menes s novelas e aos comerciais de TV.
amigo de vrios alunos nas redes sociais virtuais, pois comentavam sobre postagens. Ele j
conhecia a maioria dos alunos, porque j tinham sido seus educandos ou porque ele era
pedagogo do Ensino Fundamental.
Passemos agora para algumas anlises dessa proximidade nas aulas do Professor 2.
Perguntado sobre a valorizao do conhecimento prvio dos discentes, ele respondeu
sobre a dificuldade causada pelo desinteresse.

Diante da realidade em que vivemos hoje com alunos desmotivados,


desinteressados e alunos que apresentam dificuldades no aprendizado,
torna-se mais difcil eles se tornarem crticos diante dos processos
histricos e das relaes de poder existentes nesses processos. Com isso
o meu trabalho fica dificultado45.

No caderno de campo 2, existem menos passagens nas quais podemos identificar


a relao do contedo com os conhecimentos dos alunos. Abordando a Idade dos Metais,
o Professor 2 interagiu com os discentes:

A professora perguntou: Quem que faz histria? O prprio homem, e


a geografia tambm, o homem um ser transformador de onde mora.
Os alunos interagiram com a professora, disseram dos ndios e suas
moradas. A professora comentou sobre a evoluo das tcnicas de
construo. Um aluno contou que, no stio do tio dele, quando ele era
pequeno, um ndio foi trabalhar l e construiu sua prpria casa, com
bambu, cip, foi jogando barro com a mo: muito louco, comentou. A
professora disse que, na cidade, Jacarezinho, muita casa antiga, sem
cimento, s com barro entre os tijolos46.

A partir da meno s casas antigas de Jacarezinho, o Professor 2 contou sobre sua


infncia: Meu pai sempre trabalhou na roa e criou porco, a gente pegava a bexiga do
porco e enchia de gua pra brincar, principalmente se passar limo, sai tudo47. Tambm
observamos menes s redes sociais virtuais em conversas do Professor 2 com os alunos.

44
Caderno de Campo 1, observao do dia 13 de julho de 2015, 3 Ano, Ensino Mdio, Perodo
Matutino.
45
Questionrio. Professor 2. setembro/outubro de 2015.
46
Caderno de Campo 2, observao do dia 10 de julho de 2015, 1 Ano, Ensino Mdio, Perodo Noturno.
47
Caderno de Campo 2, observao do dia 10 de julho de 2015, 1 Ano, Ensino Mdio, Perodo Noturno.

16
Revista histria, histrias, volume 5, nmero 9, jan.jul. 2017
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Nessa questo da proximidade, destacamos um relato pessoal:

Relatou que antes, quando ficava sozinha, fazendo algo, tinha a


impresso que algum a observava, s que, quando olhava, no via
ningum, rezou, pediu missa e perdeu essa sensao. Advertiu: Existem
os anjos de luz e os anjos de Satans. Os alunos abordaram histrias de
assombrao. Tocou o sinal48.

O Professor 2, em aula na qual o contedo abordava os Hebreus, tematizou a


escravido:

A professora comentou sobre imagem de maquete do templo de


Jerusalm constante no livro didtico. Explicou que impostos e
explorao deixavam o povo desanimado: Gente, j expliquei para
vocs, escravido no tem nada a ver com cor de pele. Um aluno negro
perguntou: No s os negros?. A professora contou sobre o tempo
da colonizao do Brasil, que primeiro os europeus comearam a
escravizar os ndios, mas como eles no eram acostumados a trabalhar
comeou o trfico negreiro. Argumentou tambm que a escravido
existe at hoje, contando que viu recentemente na televiso reportagem
sobre empreiteiras de So Paulo, que vo a cidades pobres do nordeste
para trazerem pessoas para trabalhar por muito pouco. Momento em que
a professora se referiu ao livro didtico, dizendo: No podemos nos
prender nesse livrinho. Afirmou que quem quer passar no vestibular e
continuar estudando precisa pesquisar muito49.

Percebemos que o movimento feito pelos professores para aproximar o contedo


histrico da realidade dos alunos, em maior escala, oriundo de relatos da vida pessoal, de
menes s indstrias e ao comrcio da cidade e regio, bem como de recorrncias
televiso e internet. Nesse trnsito, s vezes contraditrios, a complexificao dos saberes
mediados fica mais explcita.
Passemos s observaes quanto utilizao de contedos meta-histricos, de contedos
que difundem os procedimentos do engendramento da Histria. As metanarrativas, para
Rsen, so filosficas e explicativas, pertencem s formas especficas que o pensamento
histrico toma ao produzir conhecimento histrico. A teoria da histria uma metateoria,
uma teoria (reflexiva) da teoria, um pensar sobre o pensamento histrico, cujo eixo a
racionalidade50.

48
Caderno de Campo 2, observao do dia 28 de agosto de 2015, 1 Ano, Ensino Mdio, Perodo
Noturno.
49
Caderno de Campo 2, observao do dia 11 de setembro de 2015, 1 Ano, Ensino Mdio, Perodo
Noturno.
50
RSEN, 2010, p. 15.

17
Revista histria, histrias, volume 5, nmero 9, jan.jul. 2017
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A aprendizagem histrica se d quando os professores e alunos


investigam as ideias histricas. Essas podem ser tanto ideias substantivas
da Histria, tais como os contedos histricos (Revoluo Francesa,
escravido na Amrica portuguesa, democracia, etc.), como as categorias
estruturais ligadas epistemologia da Histria (temporalidade,
explicao, evidncia, inferncia, empatia, significncia, narrativas
histricas, etc.)51.

Na entrevista, foi afirmado ao Professor 1 que os contedos meta-histricos dizem


respeito reflexo sobre os procedimentos da operao historiogrfica e da construo do
texto histrico, com a utilizao de categorias estruturais ligadas epistemologia da
Histria, com uso de um vocabulrio com significado especializado. Em seguida, ele
respondeu como e com que frequncia so utilizados os referidos contedos em suas aulas:

Professor 1: ... Eu penso mostrar pra eles que... eu pensei duas coisas a
respeito disso: primeiro que, eles fazem parte de uma histria, no sei se
nesse sentido essa questo do contedo meta-histrico, n, que,
mostrar que a histria vai se desenvolvendo, mas que os indivduos so
importantes pra que isso acontea. No sei se eu t entendendo isso. E
nessa questo de trazer mesmo... uma ampliao... no sei se entra nisso.
Entrevistador: a reflexo sobre a Histria. Meta-histrico refletir
sobre a construo cientfica da Histria.
Professor 1: Ento ... eu penso que quando eu fao essa reflexo,
mostrando que eles so indivduos da histria, a gente est refletindo, n,
mostrar: olha, se desenvolveu assim, mesmo que voc no est l, voc
constri aqui, ... tem relao, consequncia, n... Tem causa e
consequncia. Causa, desenvolvimento e consequncia. Acho que fao
eles pensarem que eles fazem parte da Histria, que eles se reconhecem.
Lgico que mais fcil com histria do presente, mas procuro criar essa
conscincia neles, sim52.

O Professor 1 associou o entendimento de meta-histrico ao reconhecer-se na


Histria, todavia, alm desse reconhecimento, buscamos encontrar nos cadernos de campo
ideias e conceitos necessrios ao texto historiogrfico. Nesse vis, o Professor 1 aplicou
atividades extras:

Hoje vou fazer uma atividade especial valendo nota. Escreveu no


quadro: Atividade Extra: Produo de Texto: Tema: histria e vida:
processo de construo, transformao e entendimento histrico.
Colocar ttulo. 25 linhas. Em seguida, disse: De tudo que foi visto at
agora, como vocs entendem, no se esqueam de que vocs so sujeitos
histricos.. (...) s 09h26, a sala estava em silncio e os alunos
concentrados. O professor disse: Pessoal, se tiver alguma dvida s

51
PARAN, 2008, p. 57.
52
Entrevista. Professor 1. 18 de setembro de 2015.

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pensar assim, a histria como transformao da sociedade e voc em seu


espao como participante da construo, transformao e entendimento
histrico, da importncia da histria na vida das pessoas.. Os alunos
prosseguiram em silncio, pesquisando no caderno e no livro didtico,
produzindo o texto53.

Em determinada aula, este mesmo Professor criticou as imagens do livro didtico


que retratavam a Antiguidade dizendo, de alguma forma, que a histria a verso de quem
escreve. A histria relatada na verso de quem faz, que nem castelos na Europa, no
tudo perfeito. Dom Joo VI era quase um porco. No que nem essas imagens bonitinhas
do livro de histria54. Em outro momento, mencionou o conceito de simultaneidade: s
10h21 iniciou a explicao, abordando que a crise de 1929 simultnea ao perodo de
fascismo e nazismo55.
Ao abordar o contedo acerca dos Hebreus, o professor passou uma viso mais
histrica que religiosa da Bblia. Disse que ela no se comprova totalmente, pois foi escrita
por homens. Lecionou sobre o poder da Igreja, viso capitalista e manipulao da
sociedade:

O professor reproduziu a questo que est no livro: A bblia serve


histria?, explicando que preciso diferenciar a bblia como livro
religioso da bblia como documento histrico. Discorreu que, na bblia,
constam indcios de organizao de civilizaes. Afirmou que no d
para comprov-la cem por cento, mas que pela arqueologia e genealogia
se chega prximo dos cls citados. Argumentou que Deus e Jesus no
escreveram nada, que foram os homens. Um aluno comentou que o
primo dele viu na Sky, tv a cabo, que antes do terceiro Papa da histria,
os padres frequentavam os bordis e s depois que foi cortado o sexo. O
professor ensinou que o sexo foi cortado entre os membros da Igreja
Catlica devido diviso de bens, por questes de herana. Informou
que antes homossexualismo e poligamia eram normais e que tinham os
banhos pblicos. Disse que, durante o processo de estruturao e
organizao da sociedade, a Igreja tinha muito poder. O professor
argumentou que a Igreja usa o receio da morte para manipular e moldar a
sociedade. Comentou que por um curto perodo teve a Papisa Joana, mas
que a Igreja escondeu. Tocou o sinal56.

Quanto utilizao dos contedos meta-histricos, o Professor 2 respondeu: No

53
Caderno de Campo 1, observao do dia 14 de abril de 2015, 1 Ano, Ensino Mdio, Perodo Matutino.
54
Caderno de Campo 1, observao do dia 16 de abril de 2015, 1 Ano, Ensino Mdio, Perodo Matutino.
55
Caderno de Campo 1, observao do dia 3 de agosto de 2015, 3 Ano, Ensino Mdio, Perodo
Matutino.
56
Caderno de Campo 1, observao do dia 28 de julho de 2015, 1 Ano, Ensino Mdio, Perodo
Matutino.

19
Revista histria, histrias, volume 5, nmero 9, jan.jul. 2017
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Ensino Mdio, muito difcil encontrarmos uma turma onde a maioria absoluta dos alunos
demonstrem interesse e principalmente gostem de histria o suficiente para trabalharmos a
metodologia da cincia57. Ele nega, de certa forma, a utilizao de contedos meta-
histricos. Todavia, selecionamos trechos do caderno de campo 2 que podem ser
associados a uma discusso meta-histrica.
Ponto a ser mencionado o fato de o Professor 2 possuir a viso de uma Histria
esttica: Na histria, o que muda s o contemporneo, o resto s aprender uma vez,
no muda58. Em aula posterior:

s 19h34, a professora disse: Pronto, gente? Eu no sei se vocs


perceberam, mas a histria repetitiva tambm, isso aqui matria do
sexto ano, depois v no Ensino Mdio e na Faculdade um pouquinho a
mais.. Contou que o que muda a histria contempornea. Orientou
aos alunos para lerem jornais, verem TV, sempre se atualizarem na
histria59.

A diferena entre o Professor 1 e o Professor 2 se evidencia na abordagem do


contedo acerca dos Hebreus. O Professor 2 comentou a teoria de Darwin e disse que por
ser catlico acredita na teoria divina. Argumentou que as teorias existem e acredita quem
quiser, reforando que o homem no cresceu da terra como uma batatinha60.
Em outra aula, discorreu sobre a Bblia, disse que seus relatos foram vivenciados
por pessoas na Terra. Segundo aprendemos, sabemos que a histria verdade, mas alguns
historiadores acham que a Bblia passou por modificaes em seus textos com o passar do
tempo61. Mesmo aps leitura de texto, no livro didtico, que discorreu sobre o fato de a
bblia no ser um relato fiel dos acontecimentos e que os milagres so questionveis:

A professora comentou que atravs da Bblia podemos compreender o


dia a dia e os mitos do passado, disse que alguns possuem dvidas
quanto aos fatos milagrosos. (...) Para ns a bblia fonte de
informao sagrada, h pessoas que no acreditam, mas eu no consigo
acreditar que as pessoas no acreditam. O homem no faria a natureza,
s pode ser um ser supremo62.

57
Questionrio. Professor 2. Setembro/outubro de 2015.
58
Caderno de Campo 2, observao do dia 26 de junho de 2015, 3 Ano, Ensino Mdio, Perodo Noturno.
59
Caderno de Campo 2, observao do dia 10 de julho de 2015, 1 Ano, Ensino Mdio, Perodo Noturno.
60
Caderno de Campo 2, observao do dia 31 de julho de 2015, 1 Ano, Ensino Mdio, Perodo Noturno.
61
Caderno de Campo 2, observao do dia 28 de agosto de 2015, 1 Ano, Ensino Mdio, Perodo
Noturno.
62
Caderno de Campo 2, observao do dia 28 de agosto de 2015, 1 Ano, Ensino Mdio, Perodo
Noturno.

20
Revista histria, histrias, volume 5, nmero 9, jan.jul. 2017
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Essencial na meta-histria so as hermenuticas a respeito do tempo histrico. O


Professor 1 passou no quadro uma sntese das datas e marcos das idades antiga, medieval,
moderna e contempornea. A ltima frase do texto no quadro era: O tempo histrico,
portanto, acompanha os ritmos de transformao de cada sociedade, umas mais rpidas
outras extremamente lentas63.
Na aula seguinte, o professor levou texto da Revista de Histria da Biblioteca
Nacional, sobre a histria do calendrio e contagens de tempo em diferentes culturas e
apresentou diferentes percepes a partir do livro didtico.

Escreveu no quadro: Tempo cronolgico: medidas. Tempo histrico:


mudanas, permanncias, continuidades. Usou como exemplo a
eucaristia na igreja catlica como uma permanncia. Continuando sobre
catolicismo, o professor disse que a missa sofreu algumas alteraes, que
hoje em dia alguns momentos so cantados. O professor abordou outros
tempos: olhem a, na pgina 13, tempo da natureza, dizendo de
calendrios indgenas, cheias de rios, colheitas, etc. Tambm abordou o
tempo das fbricas, principalmente aps a revoluo industrial, que
desenvolveu mudanas nas condies de trabalho. Ainda disse do tempo
da informtica, que hoje se trabalha em casa, que a tecnologia est em
quase todos os lugares64.

Explicou que cada acontecimento pode ser classificado em curta, mdia ou longa
durao e exemplificou: curta como a eleio para presidente; mdia como o mandato
poltico e longa so as mudanas na estrutura como nos comportamentos ou na viso de
famlia, por exemplo65.
No perodo noturno, a abordagem do Professor 2 ocorreu de variadas formas, mas
priorizou o cristo e o tradicional. Nosso calendrio o cristo, depois de Cristo,
crescente66. A professora disse que a pr-histria dividida em trs partes e a histria em
quatro67. Em certas aulas, discutiu sobre a incerteza que o futuro, sendo pertencente a
Deus: A professora (...) voltou a conversar com os alunos evanglicos (...), disse a eles:
Que bom que vocs esto sendo o exrcito de Deus. Hoje estamos aqui, amanh pertence

63
Caderno de Campo 1, observao do dia 24 de maro de 2015, 1 Ano, Ensino Mdio, Perodo
Matutino.
64
Caderno de Campo 1, observao do dia 31 de maro de 2015, 1 Ano, Ensino Mdio, Perodo
Matutino.
65
Caderno de Campo 1, observao do dia 31 de maro de 2015, 1 Ano, Ensino Mdio, Perodo
Matutino.
66
Caderno de Campo 2, observao do dia 17 de abril de 2015, 1 Ano, Ensino Mdio, Perodo Noturno.
67
Caderno de Campo 2, observao do dia 19 de junho de 2015, 1 Ano, Ensino Mdio, Perodo Noturno.

21
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a Deus68. No final do ms seguinte, o Professor 2 reforou a incerteza quanto ao futuro e


a necessidade de estudos:

Futuro sem conhecimento apavorante. Precisamos acreditar nos


jovens. T uma podrido. O governo gosta. Quanto mais ignorante o
povo, melhor para os polticos. Os professores de Histria tm que
instigar os alunos. No deixar a bandeira cair. (...). s 20h15, a conversa
seguia sobre Jesus Cristo e o Apocalipse. Nosso tempo hoje diferente.
Nosso tempo era contado de outra forma. Nossa histria religiosa diz
que estamos no fim dos tempos. Temos que viver bem, ajudar, no
causar prejuzo. O que estamos falando aqui faz parte de nossa histria,
da histria da humanidade. uma histria sagrada69.

Segundo Cunha, so mltiplos os usos da oralidade na reinveno das narrativas


histricas dos docentes, de forma que no se pode atribuir aos professores o pertencimento
exclusivo perspectiva conservadora ou perspectiva inovadora 70, ou seja, a reduo a
determinado modelo explicativo no atende complexidade do ensino de Histria
praticado em sala de aula. Em nossas anlises, conclumos que as orientaes temporais
ocorreram em momentos das observaes, em maior medida, nas aulas do Professor 1. De
acordo com os protocolos de anlise elencados, mesmo sem o conhecimento aprofundado
por parte dos professores sobre a teoria pautada em Rsen e das metodologias que
embasam as DCEs, a significao da Histria no presente foi fomentada.
O protocolo de anlise protagonizado pela subjetividade do aluno, ou seja, pela
capacidade do professor de explicar o contedo a partir de elementos conhecidos pelos
discentes, ratifica que os docentes mobilizam seus saberes de forma astuciosa a fim de
propiciar sentido Histria.
Os professores no compreenderam com clareza os contedos meta-histricos. O
Professor 1, em vrios momentos, deu destaque aos conceitos histricos e o Professor 2
possui uma viso da histria como contedo pronto junto a, grosso modo, uma viso
religiosa que conflita com o surgimento dos contedos meta-histricos. Diante das anlises,
apreendemos que as DCEs possuem uma consistente carga terica, mas de difcil
recomposio didtica para a sala de aula.

68
Caderno de Campo 2, observao do dia 31 de julho de 2015, 1 Ano, Ensino Mdio, Perodo Noturno.
69
Caderno de Campo 2, observao do dia 28 de agosto de 2015, 1 Ano, Ensino Mdio, Perodo
Noturno.
70
CUNHA, Andr Victor Cavalcanti Seal da. O Professor de Histria como um narrador escolar ou os
mltiplos usos da oralidade na (re)inveno das narrativas histricas escolares, Prxis Educativa, Ponta
Grossa, v. 1, n. 2, p. 107-124, jul.-dez. 2006.

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No podemos classificar as prticas dos professores como tradicionais nem como


temticas, pois constatamos o ecletismo docente e a hibridizao entre o tradicional e o
temtico. Em viso panormica, elas seriam tradicionais porque seguem uma sequncia no
livro didtico e temticas porque aproximam os contedos com aquilo que se supe que os
alunos conheam, alm de eventualmente abordarem contedos meta-histricos.
O currculo, documento estratgico para a poltica e para a administrao do
ensino, fica submetido s tticas dos docentes. Sendo assim, refora-se a necessidade de
processos frequentes de encontros dos professores, visando contnuas reflexes sobre as
prticas em relao aos currculos.
No caso das Diretrizes Paranaenses de Histria, continua a necessidade de
ampliao da construo da orientao temporal com base na peculiaridade do
conhecimento histrico como um saber. Que ela conste em currculos, mas que se torne
prtica visvel para os professores e alunos. Nessa linha, importante se revela a pesquisa do
tipo etnogrfica no ensino de Histria, pois amplia conhecimentos acerca da realidade
escolar cotidiana, necessrios para o direcionamento de polticas pblicas curriculares.

Recebido em: 11 de novembro de 2016


Aprovado em: 10 de abril de 2017

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EXPERINCIAS AUSENTES NO ENSINO DE HISTRIA:


INQUIETANTES PRESSUPOSTOS PARA UMA REORIENTAO DA
VIDA PRTICA1

EXPERIENCE AWAY IN HISTORY TEACHING: DISTURBING


ASSUMPTIONS FOR REORIENTATION LIFE PRACTICE

Astrogildo Fernandes Silva Junior


Professor da Universidade Federal de Uberlndia (UFU) - Brasil
Doutor em Educao pela Universidade Federal de Uberlndia
e-mail: silvajunior_af@yahoo.com.br

Jos Josberto Montenegro de Sousa


Professor da Universidade da Integrao Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB) - Brasil
Doutor em Histria pela Pontifica Universidade Catlica de So Paulo
e-mail: jms@yahoo.com.br

RESUMO

Este texto busca compreender como o ensino de histria pode contribuir na formao dos jovens
estudantes. Apresenta resultados de um projeto que teve como objetivo analisar o potencial das
diferentes fontes e das diferentes linguagens da cultura contempornea no processo de ensino e
aprendizagem em histria. Em relao aos procedimentos metodolgicos, recorreu observao de
cunho etnogrfico, histria oral e didtica da histria. O cenrio da pesquisa foi uma escola
pblica estadual da cidade de Ituiutaba, MG, Brasil. Fizeram parte direta da investigao os jovens
estudantes do primeiro ano do ensino mdio. Concluiu-se que o ensino de histria na educao
bsica precisa reorientar suas prticas, abranger outras perspectivas epistemolgicas, que
possibilitem discutir a diversidade de experincias histrico-culturais negligenciadas e silenciadas.
Nesse processo, os usos de diferentes fontes e linguagens nas aulas de histria podem constituir
iniciativas para promover articulao entre saberes escolares e a vida prtica.

Palavras-chave: ensino de Histria; diferentes fontes e linguagens; jovens estudantes.

ABSTRACT

This paper seeks to understand how the teaching of history can contribute to the education of
young students. It presents the results of an ongoing project which aims to analyze the potential of
different sources and different languages of contemporary culture in the process of teaching and
learning in history. Regarding the methodological procedures, recourse to ethnographic
observation, oral history and historical education. The setting of research is a public school of the
city of Ituiutaba, MG, Brazil. Made direct part of the investigation the young students of the first
year of high school. It was concluded that history teaching in basic education need to reorient their
practice, cover other epistemological perspectives, enabling discuss the diversity of historical and
cultural experiences neglected and silenced. In the process, the use of different fonts and languages
in history lessons can be initiatives to promote coordination between school knowledge and
practical life.

1
Este texto apresenta resultados de uma pesquisa em andamento apoiada pela FAPEMIG/ CAPES/CNPq
Editais: MCTI/CNPq/MEC/CAPES n. 18/2012 e 13/2012 Pesquisa na Educao Bsica Acordo CAPES e
FAPEMIG; FAPEMIG Universal/2013.

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Keywords: History teaching; different fonts and languages; young students.

INTRODUO

Ao longo da histria do ensino de histria no Brasil, verificamos uma verso


excludente, opressora e silenciadora de diversos sujeitos que fizeram e fazem parte da
constituio do pas. Prevaleceu um ensino eurocntrico, um olhar enviesado por
esteretipos e vises pouco informadas sobre outras realidades, como, por exemplo, sobre
os afros descendentes e indgenas.
Como rea escolar obrigatria, o ensino de histria surgiu com a criao do Colgio
Pedro II, em 1837, inspirado no modelo francs. O objetivo era a formao de cidados
proprietrios e escravistas. A proposta de ensino de histria voltava-se para uma formao
moral e cvica. Os contedos passaram a ser elaborados para construir uma imagem de
nao associada de ptria, integradas como eixos indissolveis. Deveriam inculcar
determinados valores para a preservao da ordem, da obedincia hierarquia, de modo
que o pas pudesse chegar ao progresso, modernizando-se consoante com o modelo dos
pases europeus2.
No final do sculo XIX, com a Proclamao da Repblica, passou a ser funo da
escola denunciar os atrasos impostos pela monarquia, inspirados nas ideias positivistas, a
educao escolar deveria regenerar os indivduos e a prpria nao, e, dessa forma,
colocaria o pas na rota do progresso e da civilizao. Sendo assim, o ensino de histria
passou a ocupar, no currculo, um duplo papel: civilizatrio e patritico. Deveria modelar
um novo tipo de trabalhador, o cidado patritico. A Histria Nacional identificava-se com
a Histria Ptria, cuja finalidade era integrar o povo brasileiro moderna civilizao
ocidental, reforando a viso linear, determinista, e eurocntrica da histria. Seus contedos
enfatizavam as tradies de um passado homogneo de lutas, de feitos gloriosos de
personagens identificados com ideais republicanos. Apesar das sucessivas reformas dos
governos republicanos, pouco foi feito para alterar a escola pblica. O ensino de histria
permaneceu como instrumento de desenvolvimento do patriotismo e da unidade tnica,
administrativa, territorial e cultural da nao.

2
BITTENCOURT, Circe Maria. Ensino de Histria: fundamentos e mtodos. So Paulo: Cortez, 2004.

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No contexto da democratizao do Brasil, ps Segunda Guerra Mundial, o ensino


de histria tornou-se uma disciplina significativa na formao de uma cidadania para a paz.
A proposta era de um ensino revestido de um contedo mais humanstico e pacifista,
voltando-se ao estudo dos processos de desenvolvimento econmico das sociedades, bem
como dos avanos tecnolgicos, cientficos e culturais.
Nos anos de 1950 e 1960, sob a inspirao do nacional-desenvolvimentismo,
voltou-se para as temticas econmicas. Em 1964, com a implantao da ditadura militar
no Brasil, desvalorizaram-se as reas de Humanas em favor de um ensino tcnico.
Privilegiou-se um contedo voltado para a formao moral e cvica e o ajustamento
ideolgico dos jovens aos objetivos e interesses do Estado, moldados pela doutrina de
segurana nacional e de desenvolvimento econmico.
O caminho da democratizao dos anos de 1980 foi caracterizado por uma srie de
transformaes. Porm, prevaleceu ao longo da histria do ensino de histria, a finalidade
de construir um determinado projeto de sociedade em consonncia com os valores
dominantes. No mbito deste empreendimento, o ensino exerceria funo primordial para
a formao de uma identidade nacional, assim como uma concepo de cidadania.
As relaes entre cidadania e ensino de histria seguem sendo fundamentais. De
um lado, mantm-se o enfoque cvico relacionado com a formao patritica, por outro, o
enfoque mais vinculado a uma cidadania crtica, autnoma e capacitada para participar de
uma sociedade e decidir o futuro que quer para si e para o mundo3.
Como professores, formadores de professores de histria, defendemos que, ao
ensino de histria imprescindvel abranger a diversidade de experincias constituintes do
patrimnio de histrico-cultural das sociedades sem hierarquiz-las. Insistimos que a
compreenso do mundo excede os parmetros estabelecidos pela presuno de
superioridade disseminada pela modernidade ocidental.
Concordamos com Boaventura de Sousa Santos ao defender a necessidade
questionar o que define como colonialidade do saber. Buscamos inspirarmo-nos nesta
perspectiva para elaborarmos propostas de aulas de histria para a disciplina Estgio
Curricular Supervisionado, do curso de histria da Faculdade de Cincias Integradas do
Pontal, Universidade Federal de Uberlndia FACIP/UFU.

3
PAGS, Joan. Educacin, ciudadana y enseanza de la Historia. In: GUIMARES, Selva; GATTI
JNIOR, Dcio (Orgs.). Perspectiva do Ensino de Histria: ensino, cidadania e conscincia histrica.
Uberlndia: Edufu, 2011.

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Concomitante as aulas na universidade, coordenamos um projeto de pesquisa que


teve como objetivo analisar o potencial de diferentes fontes e linguagens da cultura
contempornea - filmes, canes, quadrinhos, obras de fico, poesias, internet,
documentos, histria oral, dentre outras -, frequentemente utilizadas em aulas como parte
do processo de ensino e aprendizagem em histria. Mobilizamos iniciativas de abordagens
intencionalmente dispostas a pensar outras histrias, pelas quais atores sociais inquietam-se
e questionam a temporalidade, reivindicam suas presenas no passado narrado.
Neste artigo, propomo-nos a apresentar e refletir sobre os resultados deste projeto.
De forma mais especfica, compreender como o ensino de histria pode contribuir para
uma formao de jovens capazes de fazer uso de argumentos histricos como pressupostos
de orientao da vida prtica.

A PERSPECTIVA TERICA METODOLGICA

Entendemos que o ensino de histria um campo de investigao que mantm


uma relao, ao mesmo tempo, ntima e estranha com a produo do conhecimento da
historiografia profissional. A produo particular de conhecimentos histricos dentro da
escola tem vnculos com a historiografia profissional e tambm se caracteriza por estar fora
dela. Possui uma lgica distinta, susceptvel de se converter em objeto de investigao.
Neste sentido, apresenta-se em um espao de fronteira entre histria e ensino. No que se
refere s semelhanas, retomamos o conceito de operao historiogrfica de Michel de
Certeau: 1) referncia a um conjunto de tcnicas e anlises; 2) a construo de um texto
com aspectos formais e lingusticos particulares; 3) as condies polticas, socioeconmicas
e culturais em que se desenvolve a investigao histrica profissional. Tais caractersticas
podem ser identificadas tanto na investigao histrica quanto no ensino 4.
Quanto s especificidades da pesquisa no ensino de histria, destacamos que este se
caracteriza pela nfase no tempo presente. Com isso, no pretendemos tirar o olhar da
historiografia profissional, ao contrrio, consideramos fundamental que os historiadores
observem como um uso da histria, cuja procedncia no necessariamente a produo
dos historiadores. Uma das implicaes desta perspectiva a exigncia de construir
categorias de anlises particulares para o ensino de histria como objetivo de investigao.

4
CERTEAU, Michel de. A escrita da Histria. Rio de Janeiro: Forense-Universitria, 1982.

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O mtodo do historiador insuficiente para compreender os processos de ensino e


aprendizagem da histria na atualidade. Em primeira instncia, a fonte recai,
predominantemente, no sujeito (professor ou estudante).
Concordamos com Sebastian Pl ao afirmar que a construo do ensino de histria
como objeto de investigao vai alm das fronteiras disciplinares da histria profissional.
Ao mesmo tempo, esta variedade de procedimentos disciplinares, de mtodos de
interpretao e obteno de dados e de criao de fontes, reflete a impossibilidade de um
saber especfico, e refora a dimenso de um saber fronteirio. Investir na pesquisa sobre o
ensino de histria requer categorias analticas e ferramentas metodolgicas variadas, que se
aproximam e se distanciam da historiografia profissional. Isto por que o ensino de histria
nunca perde o vnculo com a produo de conhecimento histrico dos historiadores,
porm apropria-se de fontes e pressupostos terico-metodolgicos que a desdobram.
Podemos destacar: a observao de cunho etnogrfico; a histria oral; a didtica da
histria5.
Antes de nos determos nas trs perspectivas metodolgicas supracitadas,
consideramos relevante assinalar que, ao longo do desenvolvimento do projeto, optamos
por problematizar o modelo conservador de cincia, caracterizado pelos mtodos
cristalizados, fundamentados na neutralidade e previsibilidade. Boaventura de Sousa Santos
refere-se a esse modelo de cincia como razo indolente. O autor critica essa racionalidade
em quatro formas distintas: 1) uma razo impotente, pois no se exerce, porque pensa que
nada pode fazer contra uma necessidade concebida como exterior a ela prpria; 2) uma
razo arrogante, porque se imagina incondicionalmente livre, e, assim, livre da necessidade
de demonstrar sua prpria liberdade; 3) uma razo metonmica, que se reivindica como
nica forma de racionalidade; 4) uma razo prolptica, que no se aplica a pensar o futuro,
porque julga que sabe tudo a respeito dele e o concebe como uma superao linear,
automtica e infinita do presente. O autor defende a necessidade de desafiar essa razo
indolente. Neste sentido, almeja-se uma cincia no linear que contemple as diversidades,
as singularidades, as complexidades do pensamento e da realidade 6.

5
PL, Sebastin. La enseanza de la historia como objeto de investigacin, Secuencia, n. 84, set/dez
2012.
6
SANTOS, Boaventura de. Para uma sociologia das ausncias e uma sociologia das emergncias. In:
______ (Org). Conhecimento prudente para uma vida decente. Um discurso sobre as cincias revisitado.
So Paulo: Cortez, 2004.

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Boaventura de Sousa Santos prope substituir o modelo que denomina razo


indolente por uma razo cosmopolita. O autor parte de trs pontos: 1) da compreenso de
que o mundo excede em muito a compreenso ocidental de cosmoviso; 2) a compreenso
do mundo e a forma como a razo indolente cria e legitima o poder social tem muito que
ver com concepes do tempo e da temporalidade; 3) a caracterstica mais fundamental da
concepo ocidental de racionalidade, por um lado, contrai o presente e, de outro, expande
o futuro. Segundo o autor, a contrao do presente, ocasionada por uma peculiar
concepo de totalidade, a qual transformou o presente num instante fugidio,
entrincheirado entre o passado e o futuro7.
Consideramos fundamental a construo de outras epistemologias que considere a
diversidade de saberes que foram negligenciados, silenciados, colocados na condio de
subalternidade. Na cultura ocidental, adotou-se uma conduta pautada pela hierarquizao
de formas de conhecimento no europeias, assim como ignorou suas narrativas, visto que
estas, supostamente, no condiziam com parmetros preestabelecidos pelas concepes de
cunho cientificistas de matriz ocidental. Com isto, as populaes submetidas ao processo
de colonizao foram interditadas, suas culturas e modos de ser e viver, desarticulados. O
eurocentrismo funcionou como se no houvesse outras narrativas alm das
macronarrativas da civilizao ocidental ou da modernidade europeia8.
Este epistemicdio tem sido denunciado por estudiosos vinculados ao
pensamento da ps-colonialidade como uma das violncias mais duradouras efetivadas
durante o perodo colonial. Contrapondo-se ao colonialismo, Boaventura de Sousa Santos
defende a ecologia dos saberes na medida em que essa reconhece a existncia de uma
pluralidade de formas de conhecimento alm do conhecimento cientfico. Para o autor, a
ecologia dos saberes expande o carter testemunhal dos conhecimentos de forma a abarcar
igualmente as relaes entre o conhecimento cientfico e no-cientfico, alargando, deste
modo, o alcance da intersubjetividade como interconhecimento e vice-versa. A proposta da
descolonizao dos saberes caracterizada por um dilogo hermenutico entre os diversos

7
SANTOS, 2004.
8
MIGNOLO, Walter. Os esplendores e as misrias da cincia: colonialidade, geopoltica do
conhecimento e pluri-versalidade epistmica. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). Conhecimento
Prudente para uma vida decente. Um discurso sobre as cincias. Porto: Afrontamento, p. 631-671.

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saberes. Parte do princpio de que a incompletude, prpria de qualquer cultura ou


conhecimento, seja no minorada, mas complexificada, em busca de sentidos9.
Fundamentados nesse referencial, partimos para a pesquisa de campo. Recorremos,
inicialmente, a elementos da pesquisa etnogrfica em educao. A etnografia tem sua
origem na Sociologia e na Antropologia e, por isso, utiliza-se de relatos descritos de
pessoas, situaes e acontecimentos. Por meio de tcnicas etnogrficas de observao
participante e de entrevistas intensivas, possvel documentar o no-documentado, ou seja,
desvelar os encontros e desencontros que permeiam o cotidiano escolar.
Nessa perspectiva, no trabalho de campo, valemo-nos de instrumentos que nos
auxiliaram na coleta de dados, como anotaes em dirio de campo, a partir da imerso na
escola investigada e das observaes de aulas de histria e da anlise de uma atividade
realizada com os jovens estudantes do ensino mdio. A observao uma das mais
importantes fontes de informaes em pesquisas qualitativas em educao. Para o autor,
sem acurada observao no h cincia. Dessa forma, procuramos registrar as anotaes
realizadas nas visitas s escolas e, em particular, das aulas de histria, de forma detalhada,
com o intuito de reunir os dados brutos das observaes10.
Nossa pesquisa ainda recorreu a contribuies da didtica da histria, por
acreditarmos que um dos lugares da pesquisa de campo didtico-histrica o cotidiano das
aulas de histria. A pesquisa didtico-histrica no o discurso de um antroplogo sobre
um contexto familiar que ele precisa estranhar ou a crtica de um pedagogo forma de
organizao das aulas do ponto de vista das cincias da educao. Ela um discurso de um
profissional da cultura histrica sobre essa mesma cultura, que tem um grande impacto.
Uma pesquisa de campo didtico-histrica jamais ignora ou mesmo relega a
segundo plano os contedos tratados numa aula. O que ocorre na sala de aula apenas
parte de um todo mais amplo, que engloba todas as elaboraes da Histria sem forma
cientfica. s parte da cultura histrica, chamada de histria escolar, que mantm relaes
indissociveis com outras expresses dessa cultura11.
O desenvolvimento da investigao pressupe dilogos constantes entre escola e
universidade, por defendermos que a aproximao destes dois espaos pode contribuir para

9
SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. (Orgs.) Epistemologias do Sul. So Paulo:
Cortez, 2010.
10
VIANNA, Heraldo Marelim. Pesquisa em educao: a observao. Braslia: Lber Livro Editora, 2007.
11
CARDOSO, Oldimar. Para uma definio de Didtica da Histria. Revista Brasileira de Histria, So
Paulo, v. 28, n. 55, p. 153-170, 2008.

30
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o processo de ensino e aprendizagem, bem como para a constituio de sentido na


apreenso do passado por parte de jovens estudantes da educao bsica, pois a sala de aula
no se limita a um lugar de reproduo, mas tambm de produo de conhecimentos.
Sendo assim, propomos-nos ouvir professores e alunos e juntos com os colaboradores da
pesquisa, planejar aulas rompendo com a perspectiva eurocntrica e recorrendo ao
potencial de diferentes fontes e linguagens.

A ESCOLA, ESTUDANTES E PROFESSOR: ALGUMAS CONSIDERAES

A pesquisa foi realizada na Escola Estadual Governador Israel Pinheiro, localizada


na Av. Geraldo Alves Tavares, n. 1338, Setor Universitrio, Ituiutaba, MG. Em 2014, a
escola atendia a uma mdia de 1500 alunos, distribudos em 39 turmas, sendo 16 no turno
matutino, 16 no vespertino e 7 noturno. Trabalhavam na escola 100 funcionrios, destes, 7
professores de Histria. Fizeram parte direta da nossa investigao os jovens estudantes do
primeiro ano do ensino mdio do turno vespertino, trs turmas com o total de 95 alunos e
o professor de Histria.
Na primeira parte da investigao, detivemo-nos nos estudos em documentos tais
como os Parmetros Curriculares Nacionais para o ensino de Histria (PCNs) , Diretrizes
Curriculares Nacionais para o ensino mdio (DCNEM), Plano Nacional de Educao, 2014
(PNE), Projeto Poltico Pedaggico da escola, Planejamento anual do professor.
Concomitante a anlise dos documentos, realizamos uma reviso bibliogrfica sobre o
ensino de histria, os estudos ps-coloniais e sobre o potencial de diferentes fontes e
linguagens da cultura contempornea. O professor, sujeito da pesquisa, participou
ativamente dos estudos efetuados. O segundo passo consistiu na produo e
desenvolvimento de sequncias de ensino recorrendo a diferentes fontes e linguagens.
Todas as atividades foram acompanhadas e registradas.
A partir das observaes e dilogos com os jovens estudantes, buscamos
compreender o que pensavam sobre a escola e sobre o ensino de histria. Os jovens
possuam de 15 a 17 anos, parte destes trabalhadores, dado que comprova a afirmao de
Juarez Dayrell12, quando ressalta que a juventude brasileira no pode ser caracterizada pela

12
DAYRELL, Juarez. A escola faz as juventudes? Reflexes em torno da socializao juvenil. Educ.
Soc., Campinas, v. 28, n. 100, p. 1105-1128, out. 2007. Disponvel em: <http://www.cedes.unicamp.br>.
Acesso em: 10/09/2015.

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moratria em relao ao trabalho. Para esses jovens, o trabalho o que garante manter a
condio juvenil. Constatamos, ainda, que a maioria acessa e utiliza com frequncia
ferramentas tecnolgicas como internet, jogos eletrnicos, dentre outros. Consideram a
famlia uma instituio importante para a formao de suas identidades. Afirmaram que a
televiso e a msica so meios culturais muito procurados em seus cotidianos.
A leitura no faz parte do cotidiano da maioria dos jovens investigados, l apenas o
livro didtico, poucos disseram ler livros de romance, aventuras ou suspense. Alguns
afirmaram que sempre leem histrias em quadrinhos ou mangs. Estes dados evidenciam a
importncia da escola em empreender aes com o intuito de mobilizar os jovens
estudantes para a leitura. Ao final do ensino mdio, imperativo que os jovens estudantes
tenham desenvolvido o raciocnio lgico, a capacidade argumentativa e discursiva, pois tais
habilidades s podem ser efetivadas por meio do desenvolvimento de uma leitura crtica.
Consideramos que, muito embora as sociedades contemporneas sejam marcadas
pelo uso intensivo das tecnologias, assim como da informao via meios de comunicao, a
escola permanece como lcus formativo para a juventude brasileira. A instituio escolar
um espao que, ao se expandir, constituiu um lugar de intensificao e abertura das
interaes com o outro. Portanto, um caminho privilegiado para a ampliao da experincia
de vida dos jovens13. No entanto, para muitos jovens, a escola se mostra distante dos seus
interesses, reduzida a um cotidiano enfadonho, com contedos, prticas pedaggicas e
professores que pouco acrescentam sua formao.
Os jovens pesquisados afirmaram que a escola no recorria a diferentes fontes
culturais no seu cotidiano. A roda de amigos e os esportes constituam meios aos quais os
jovens tinham mais acesso. Tais constataes evidenciam a necessidade de iniciativas que
promovam e ampliem o dilogo entre escola e outros espaos de convivncia dos jovens, e,
deste modo, desperte interesse e sentido na busca de novos conhecimentos capazes de
transformar suas vises de mundo. Lembramos que a escola s desempenhar com
legitimidade seu papel se vier a ser, antes de tudo, um espao de reconhecimento recproco.
Pensamos que a escola deve ser um espao instigante, que propicie aos jovens a religao
dos saberes.
Em relao ao ensino de histria, a maioria afirmou que era excelente. Para a
maior parte dos jovens, a histria um meio de entender a vida. Muitos alunos
13
GUIMARES, Selva; SILVA JNIOR, Astrogildo Fernandes. Ser jovem no Brasil: trajetrias no
campo e na cidade. Campinas: Alnea, 2012.

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declararam que o professor ensinava histria buscando relacionar a matria com a vida dos
jovens. Trabalhava com o livro didtico, canes e filmes. O professor de histria,
colaborador da investigao, lecionava em dois colgios, sendo um na rede pblica estadual
e o outro particular com preceitos catlicos.
Observamos que o professor era bastante respeitado pelos alunos, detentor de
postura carismtica e uma narrativa envolvente. Procurava, com frequncia, introduzir em
suas aulas os estudos realizados ao longo do projeto, valer-se da representao de ideias,
analogias, ilustraes, exemplos e explicaes como meio de representar e formular os
contedos com o intuito de torn-los compreensveis para os estudantes.
Ao longo do desenvolvimento do projeto, foi possvel evidenciar o
comprometimento do professor com o projeto desenvolvido. Produzimos e
desenvolvemos diversos diversos materiais didticos recorrendo a diferentes fontes e
linguagens com o intuito de problematizar a histria oficial e relacionar a histria com a
vida prtica dos jovens estudantes. Na continuao deste artigo, apresentamos e analisamos
os resultados de duas propostas de ensino e aprendizagem produzidas na perspectiva de
potencializar a apropriao histrica dos jovens estudantes.

OUTROS OLHARES NO ENSINO DE HISTRIA: PRESSUPOSTOS PARA


UMA REORIENTAO DA VIDA PRTICA

Optamos por produzir materiais didticos tendo como modelo a sequncia de


ensino. Entendemos por sequncia de ensino uma organizao coerente de atividades que
consista em mobilizar os jovens estudantes a aprenderem histria. Esta sequncia compe
de 4 momentos: problematizao, desenvolvimento da narrativa, aplicao de novos
conhecimentos, reflexo/sntese. A primeira etapa tem como objetivo captar os saberes
dos estudantes sobre a temtica abordada e mobiliz-los a ampliar seus conhecimentos. A
segunda o momento em que se desenvolve a explorao dos contedos e conceitos,
pode-se recorrer s aulas expositivas dialogadas, leitura individual e trabalhos coletivos. Na
terceira, buscamos a diferentes fontes e linguagens para que os jovens possam articular os
conhecimentos apreendidos. Por fim, os estudantes realizam uma atividade final, buscando
sintetizar os conhecimentos adquiridos14.

14
AGUIAR JNIOR, Orlando. O planejamento de Ensino. Projeto de Desenvolvimento Profissional de
Educadores, Mdulo II. Belo Horizonte: Secretaria de Estado de Educao de Minas Gerais, 2005.

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O professor, colaborador da pesquisa, enfatizava a importncia trabalhar os


contedos estipulados pelos programas curriculares, especialmente, o Contedo Bsico
Comum CBC , que consiste na proposta curricular no Estado de Minas Gerais. Foi
institudo pela Resoluo da SEE-MG, n. 833, em 24 de novembro de 2006. A anlise do
CBC revela a predominncia de uma perspectiva eurocntrica. Porm, com criatividade e
senso crtico, possvel transgredir e sublinhar outras histrias. O documento destacava
com uma das temticas a formao do mundo burgus, a colonizao, revoluo e relaes
tnico-culturais. O tema especfico que foi trabalhado intitulava: O Encontro das
Diferenas e a Construo da Imagem do Outro. Dessa forma, a obra de Tzvetan
Todorov, A conquista da Amrica A questo do outro, foi fundamental para nossos
estudos. Esse autor analisa a descoberta que o eu faz do outro. Para o desenvolvimento da
sequncia, estabelecemos os seguintes objetivos: refletir sobre o olhar do indgena no
processo de colonizao e ler e analisar fontes histricas. Ao longo das aulas, procuramos
mediar a construo, por parte dos alunos, dos seguintes conceitos histricos: colonizao,
cultura, etnocentrismo e resistncia. A compreenso dos conceitos imprescindvel para
que os estudantes da educao bsica adquiram uma formao histrica15.
Na primeira etapa da sequncia, com o intuito de conhecer os saberes dos jovens
estudantes sobre a temtica, questionamos: Como vivem os indgenas brasileiros? Como se
deu o processo de colonizao no olhar do indgena? As respostas que predominaram
estavam relacionadas ao processo de colonizao, no qual os indgenas foram vencidos e,
praticamente, desaparecidos do territrio nacional. Apenas um jovem comentou, de forma
fragmentada, fundamentada em uma reportagem televisiva, sobre o movimento de luta dos
indgenas na regio norte do pas.
Tantos os livros didticos como a historiografia tradicional reproduzem de modo
simplificador e estereotipado, a imagem das populaes autctones do territrio definido
como brasileiro. Tal perspectiva acentuou grande evidncia Viso dos Vencidos. As
obras que se filiam a esta corrente tratam de testemunhos dos sobreviventes, abatidos
por um profundo trauma, bem como os efeitos da destruio da cultura indgena
tiveram forte aceitao no mbito escolar. Embora simptica aos ndios, esta viso do
passado perpetua, inadvertidamente, uma compreenso que acaba por se mostrar muito
pouco favorvel a eles. preciso destacar que os povos que eram tidos como fadados
15
BEZERRA, Holien Gonalves. Ensino de Histria: contedos e conceitos bsicos. In: KARNAL,
Leandro (Org.). Histria na sala de aula: conceitos, prticas e propostas. So Paulo: Contexto, 2012.

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extino hoje esto vivos, atuantes, presentes, organizados e cobrando do Poder Pblico a
implementao de seus direitos, no so apenas sobreviventes, mas viventes16.
Na continuao das aulas recorremos a canes, leitura crtica do livro didtico,
anlise de documentos sempre com a inteno de problematizar a histria oficial,
privilegiando outros sujeitos e buscando relao com a vida prtica dos jovens. Ensinar
Histria por meio de canes um grande desafio e requer algumas consideraes:

A linguagem potica expressa outra forma de ver, escrever e expressar


sentimentos sobre variados temas, questes, fatos, sujeitos e prticas
sociais e culturais. Seduz, age sobre ns, intervm, nos provoca. Assim,
pode fornecer pistas para alargar a compreenso dos temas histricos
com beleza e sensibilidade. A incorporao de canes desperta o
interesse dos alunos, motiva-os para as atividades, sensibiliza-os em
relao aos diversos temas e desenvolve a criatividade17.

O livro didtico utilizado pelos estudantes foi HISTRIA Das sociedades sem
Estado s monarquias absolutistas. Volume 1, de autoria de Ronaldo Vainfas, Sheila de
Castro Faria, Jorge Ferreira e Georgina dos Santos18. O livro foi publicado pela editora
Saraiva, So Paulo, 2010. Referente anlise do livro didtico, atentamos para as
consideraes da Professora Circe Bittencourt ao destacar o carter polifnico deste
recurso, acentuando suas caractersticas quanto a: avaliar a aquisio de saberes e
competncias; oferecer uma documentao completa proveniente de suportes diferentes;
facilitar aos alunos a apropriao de certos mtodos que possam ser usados em outras
situaes e em outros contextos19.
Para compreender um documento, convm que se faa uma anlise de seu
contedo como sujeito de uma ao e tambm como objeto, formulando trs nveis de
indagao: 1) sobre a existncia em si do documento: o que vem a ser documento? O que
capaz de dizer? Como podemos recuperar o sentido do seu dizer? Por que tal documento
existe? Quem o fez, em que circunstncias e para que finalidade foi feito? 2) sobre o
significado do documento como objeto: o que significa como simples objeto (isto fruto
do trabalho humano)? Como e por que foi produzido? Para que e para quem se fez esta

16
MARTINS, Maria Cristina Bohn. As sociedades indgenas, a histria e a escola, Antteses, v. 2, n. 3, p.
. 153-167, jan-jun de 2009.
17
GUIMARES, Selva. Didtica e prtica de ensino de Histria: experincia, reflexes e aprendizado.
13 ed. Campinas: Papirus, 2012.
18
Todos os autores so doutores em Histria Social pela Universidade de So Paulo e professores do
departamento de Histria da Universidade Federal Fluminense.
19
BITTENCOURT, 2004.

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produo? Qual a relao do documento (como objeto particular) no universo da


produo? Qual a finalidade e o carter necessrio que comandam sua existncia? 3) sobre
o significado do documento como sujeito: por quem fala tal documento? De que histria
particular participou? Que ao e que pensamento esto contidos em seu significado? O
que fez perdurar como depsito da memria? Em que consiste seu ato de poder?20
Fazer a anlise e comentrio de um documento corresponde a: descrever o
documento, isto , indicar as informaes que ele contm. Mobilizar os diversos saberes
para: explicar o documento, isto , associar essas informaes aos saberes anteriores; situar
o documento no contexto, em relao ao seu autor; identificar a natureza desse documento
e tambm explorar esta caracterstica. Para chegar a identificar os limites e o interesse do
documento, isto , critic-lo.
Alm de avaliar todo o processo de desenvolvimento da sequncia de ensino
solicitamos a produo de um texto no qual os estudantes deveriam recorrer aos conceitos
histricos discutidos ao longo das aulas. Pela anlise dos textos produzidos,
constatamos que os estudantes conseguiram apreender os conceitos histricos propostos.
De modo geral, verificamos o desafio de ensinar em aprender histria na perspectiva que
desenvolver uma escrita argumentativa. Um exerccio necessrio ao longo da educao
bsica, pois inadmissvel que estudantes concluam esta etapa da educao escolar sem
conseguir ler e escrever com fluncia, pois so competncias fundamentais para leitura do
mundo. Quem l interpreta o mundo e que escreve o transforma.
A segunda sequncia de ensino produzida e desenvolvida com os jovens
estudantes teve como objetivo relacinar aspectos da histria local com a histria nacional
em diferentes tempos, buscando evidenciar os aspectos econmicos, polticos e
scioculturais. Na problematizao foi explorado os saberes prvios dos estudantes sobre
aspectos da histria local e nacional. O professor desenvolveu aulas dialogadas enfatizando
os aspectos polticos, econmicos e socioculturais em diferentes dcadas (1960, 1970, 1980,
1990, 2000 at os dias atuais).
A Histria Local e Regional passou a ser valorizada em virtude da possibilidade de
fornecimento de explicaes na configurao, transformao e representao social do
espao nacional, uma vez que a historiografia nacional ressalta as semelhanas, enquanto a
regional e local trata das diferenas e da multiplicidade. Proporciona, na dimenso do

20
BITTENCOURT, 2004.

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singular, um aprofundamento do conhecimento sobre a histria nacional, ao estabelecer


relaes entre as situaes histricas diversas que constituem a nao. Contribui para uma
compreenso mais inclusiva da histria, de modo a salientar as caractersticas e
peculiaridades prprias de dada localidade, no a inserindo em teorias ou modelos
globalizantes e reducionistas. Porm, necessrio ter certo cuidado, sempre estabelecendo
relaes entre local e o global, caso contrrio, iria substituir um modelo reducionista por
outro21.
As turmas foram divididas em grupos os quais cada um ficou responsvel por
determinada dcada. Os grupos foram orientados sobre o significado e importncia de
trabalhar e problematizar as fontes histricas. A segunda atividade consistia em pesquisas
em arquivos, bibliotecas pblicas buscando nas fontes primrias e secundrias elementos
sobre a cidade de Ituiutaba, MG, Brasil. A maior parte dos grupos optou pelo trabalho com
os jornais e outros com a Histria Oral, entrevistando diferentes sujeitos que viveram na
cidade de Ituiutaba. Esta fase da pesquisa contou com o apoio da estudante bolsista do
projeto bem como de estudantes voluntrios do curso de Histria da FACIP/UFU.
Ao discutirmos com os estudantes sobre as fontes histricas, particularmente os
jornais, reforamos que, assim como outras fontes, no so passveis de uma verdade
absoluta e neutra, mas, sim, uma produo da subjetividade do sujeito ou grupo que os
produziu, e das caractersticas de seu momento histrico. Portanto, so produtores da
hegemonia social, construindo a memria e a histria coletiva, criam valores e
comportamentos, agem como prtica constituinte da realidade social, modelam formas de
pensar e agir.
Sobre as fontes orais consideramos importante no trabalho dos estudantes pois
consideramos que o registro de testemunhos de sujeitos histricos por meio da tcnica da
entrevista se justifica pela possibilidade de incorporar no ensino e aprendizagem da histria
de seus protagonistas vivos, pessoas que esto vivendo e fazendo histria no meio
prximo, para que os estudantes compreendam que toda experincia tem valor para a
histria. Ao longo das aulas ressaltamos a subjetividade das fontes orais. As lembranas, os
relatos, esto impregnados de silncios, contradies, selees, incoerncias e, algumas
vezes, distores. Assim, requerem problematizaes, anlise, crticas e interpretao. As

21
BITTENCOURT, 2004.

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narrativas, as histrias particulares no podem ser tomadas como verdades absolutas, mas
vises, interpretaes da experincia individual e coletiva.
Os estudantes que optaram pelo trabalho com as fontes orais foram orientados
para considerarem algumas etapas: a preparao da entrevista, a problematizao do tema, a
definio dos objetivos, a definio coletiva do para que entrevistar, a escolha dos
entrevistados, o contato com eles, a preparao do roteiro e das questes; a realizao da
entrevista; a anlise dos dados; estabelecimento de relaes entre o relato, a narrativa, as
informaes do entrevistado com o contexto histrico estudado e atividades orais e escritas
de sistematizao e integrao dos contedos.
Na ltima fase da sequncia de ensino os estudantes produziram um texto
estabelecendo relaes entre a histria local e histria do nacional, enfatizando os aspectos
polticos, econmicos e socioculturais e preparam a apresentao recorrendo ao power
point. Em dia previamente marcado pelo professor os trabalhos foram apresentados no
auditrio da escola para a comunidade escolar.
Os resultados do desenvolvimento das sequncias de ensino foram positivos. Nos
reforaram a ideias de seguir avanando em uma linha em que a construo dos saberes
histricos escolares e sua apropriao deve ser mais protagonizada pelo professor e pelos
estudantes.

CONSIDERAES FINAIS

A disciplina histria fundamentalmente educativa, formativa, emancipadora e


libertadora. Cumpre funo primordial de contribuir para a constituio de conscincia
histrica e possibilita a construo das identidades, a elucidao do vivido e a interveno
social. Ao ensino de histria, imprescindvel o compromisso com a dignidade da pessoa,
evidenciando o respeito aos direitos humanos e o repdio a qualquer forma de
discriminao. preciso discutir a igualdade de direitos e, ao mesmo tempo, a diferena
como direito.
Temos conscincia de que o debate sobre o ensino de histria processa-se, sempre,
no interior de lutas polticas e culturais. Sendo assim, insistimos em que as aulas de histria
na educao bsica devem privilegiar debates sobre a diversidade de experincias que foram
negligenciadas e silenciadas. Nesse processo, as diferentes fontes e linguagens nas aulas de

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histria so aliadas profcuas, pois permitem reconhecer a ligao entre os saberes escolares
e a vida prtica.
Ao acompanhar a produo e o desenvolvimento das sequncias de ensino
apresentadas neste texto, verificamos que os jovens estudantes perceberam que a histria
sempre reescrita. O exerccio de problematizao e construo de conceitos histricos
contribuiu para o aprendizado histrico da maioria dos estudantes, porm no de todos.
Alguns alunos possuem maior facilidade e outros, mais dificuldades em apreender os
conceitos bsicos e o contedo de histria. Consideramos que o domnio das formas de
linguagens e a leitura interpretativa so essenciais para os estudantes se situarem
temporalmente e conseguirem interpretar o passado. Nesse sentido, cabe ao professor
insistir no exerccio da leitura e da escrita.
Ao longo do planejamento das sequncias de ensino trabalhadas nas aulas de
Histria, consideramos de maneira equitativa as seguintes questes: o contedo histrico,
as questes contemporneas, os saberes e o interesse dos jovens estudantes. Ao recorrer s
vrias fontes e linguagens, mobilizamos os estudantes a explorar e analisar os documentos
buscando apreender outras histrias. Estimulamos a realizar um exerccio de investigao
mediante percursos construdos com a participao dos prprios alunos. Estes ao terem
contato com as diferentes fontes e linguagens e realizando uma anlise meticulosa, resultou
em conhecimentos da experincia temporal. Por fim, contriburam para a formao de
jovens capazes de fazer uso de argumentos histricos como pressupostos de orientao da
vida prtica.

Recebido em: 11 de novembro de 2016


Aprovado em: 12 de maio de 201

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OS NDIOS NA HISTRIA E O ENSINO DE HISTRIA: AVANOS E


DESAFIOS

INDIGENOUS GROUPS AND THE TEACHING OF HISTORY:


CHALLENGES AND IMPROVEMENTS

Edson Hely Silva


Professor do Colgio de aplicao da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) - Brasil
Doutor em Histria social pela Universidade de Campinas
e-mail: edson.edvila@hotmail.com

RESUMO

Os povos indgenas no Brasil nos ltimos anos conquistaram e ocuparam espaos sociopolticos,
questionando vises eurocntricas, colonialistas e evolucionistas tratando os povos indgenas como
primitivos, desaparecidos ou vtimas impotentes em extino. O que alm de exigir reformulaes
das teorias explicativas sobre a histria e o destino desses povos, vem tambm exigindo discusses,
formulaes e efetivao de polticas pblicas respondendo as demandas de direitos indgenas
sociais especficos. A Lei n 11.645/2008 determinou a incluso da histria e culturas indgenas nos
currculos da Educao Bsica, possibilitando novas abordagens no ensino da temtica indgena
para superao de desinformaes, equvocos e preconceitos generalizados sobre os ndios,
contribuindo com o reconhecimento e o respeito as sociodiversidades expressas pelos povos
indgenas em nosso pas.

Palavras-chave: ndios; Histria; ensino; Lei n 11.645/2008

ABSTRACT

Indigenous peoples in Brazil in recent years have conquered and occupied socio-political spaces,
questioning Eurocentric, colonialist and evolutionist visions treating indigenous peoples as
primitive, disappeared or helpless victims in extinction. In addition to demanding reformulations of
explanatory theories about the history and destiny of these peoples, it also requires discussions,
formulations and implementation of public policies responding to the demands of specific
indigenous social rights. Law 11.645/2008 determined the inclusion of indigenous history and
cultures in the curricula of Basic Education, enabling new approaches in teaching indigenous
subjects to overcome misinformation, misunderstandings and widespread prejudices about the
Indians, contributing to the recognition and respect of sociodiversities expressed by indigenous
peoples in our country.

Keywords: indian; History; education; Law 11.645/2008

ENTRE EXOTISMOS, FOLCLORIZAES E DESCONHECIMENTOS

ndios? Onde esto os ndios? Quem so os ndios? Observamos que as respostas a


essas e outras questes sobre os ndios, entre as pessoas em geral e mesmo ainda no
meio acadmico, aps alguns anos de pesquisa e de convivncia nesse ambiente com
colegas de diferentes reas do conhecimento, so respostas na maioria das vezes simplistas

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com referncias a cultura: o cocar, o colar, a dana, a religio. Constatamos, portanto,


que um dos maiores desafios a superao de vises exticas para abordagens crticas,
aprofundadas sobre a histria, as sociodiversidades indgenas e as relaes dos povos
indgenas com e na nossa sociedade em nosso pas.
Apesar das crticas ao termo ndio ou ainda indgena por remeterem a
equvocos histricos e tambm generalizaes, nesse texto adotamos essas expresses
como vem sendo usada por esses prprios atores para se definirem enquanto indivduos,
coletividades e tambm agentes sociopolticos, como escreveu Gersem Baniwa:

Com o surgimento do movimento indgena organizado a partir da


dcada de 1970, os povos indgenas do Brasil chegaram concluso de
que era importante manter, aceitar e promover a denominao genrica
de ndio ou indgena, como uma identidade que une, articula, visibiliza e
fortalece todos os povos originrios do atual territrio brasileiro e,
principalmente, para demarcar a fronteira tnica e identitria entre eles,
enquanto habitantes nativos e originrios dessas terras, e aqueles com
procedncia de outros continentes, como os europeus, os africanos e os
asiticos. A partir disso, o sentido pejorativo de ndio foi sendo mudado
para outro positivo de identidade multitnica de todos os povos nativos
do continente. De pejorativo passou a uma marca identitria capaz de
unir povos historicamente distintos e rivais na luta por direitos e
interesses comuns.1

Portanto, ndio ou indgena so nomeaes que dependendo de quem usa e o


sentido da utilizao, possuem um importante significado sociopoltico, expressando
sociodiversidades que reivindicam reconhecimentos.
Na elaborao desse texto partimos da ideia das discusses sobre as
sociodiversidades, especificamente as sociodiversidades indgenas, enquanto uma categoria
para pensarmos os povos indgenas como expresses socioculturais diferenciadas da nossa
sociedade. Propondo uma olhar sobre a Histria do Brasil e o ensino sobre a temtica
indgena, onde as sociodiversidades indgenas sejam (re)conhecidas. 2 O que exige,

1
BANIWA, Gersem dos Santos Luciano. O ndio brasileiro: o que voc precisa saber sobre os povos
indgenas no Brasil de hoje. Braslia: MEC/Secad/Museu Nacional/UFRJ, 2012, p. 30-31. O autor um
indgena Baniwa. Os Baniwa habitam as margens do rio Iana, em aldeias no Alto Rio Negro e nos
centros urbanos de So Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel e Barcelos/AM. Gersem Baniwa, como
conhecido, Mestre e Doutor em Antropologia pela UnB e Professor Adjunto da Faculdade de Educao
e Diretor de Polticas Afirmativas da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Com uma intensa e
reconhecida atuao nas discusses sobre Educao Escolar Indgena, foi Conselheiro do Conselho
Nacional de Educao entre 2006 a 2008 e Coordenador Geral de Educao Escolar Indgena do MEC no
perodo de 2008 a 2012.
2
SILVA, Edson; SILVA, Maria da Penha da. (Orgs.). A temtica indgena na sala de aula: reflexes para
o ensino a partir da Lei 11.645/2008. 2 ed. Recife: Edufpe, 2016.

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incialmente, questionamentos e crticas a ideia da mestiagem enquanto uma explicao


para Histria do Brasil, evidenciando os ndios como sujeitos na Histria e no de uma
histria dos indgenas pensada como uma suposta histria tnica, descolada dos processos
histricos onde esto inseridos os diferentes grupos humanos, tambm e inclusive os
ndios.
Em seguida, procuramos discorrer sobre as novas abordagens que refletem sobre
os ndios enquanto sujeitos histricos, inversamente as perspectivas anteriores onde os
indgenas foram pensados enquanto vtimas do processo colonial e colonizador. No
prximo tpico discutimos como essas novas abordagens vem recentemente sendo
apropriadas pelo ensino da temtica indgena. Concluindo que apesar de desafios como o
racismo institucional, a necessidade de uma formao docente especfica para a superao
de vises genricas e folclorizadas, a ausncia de subsdios didticos e de compreenso da
presena indgenas em contextos urbanizados, a efetivao da Lei n 11.645/2008
possibilita e favorece o (re)conhecimento das sociodiversidades indgenas no ensino.

SOCIODIVERSIDADES: SUPERANDO OS DISCURSOS DA MESTIAGEM

Com literatura realista e naturalista influenciada pelos pressupostos raciais


deterministas, em oposio ao Romantismo e ao indianismo, nas ltimas dcadas do Sculo
XIX a ideia da mestiagem como explicao do Brasil foi reafirmada. 3 Ocorreu a exaltao
das imagens do mestio e, portanto, as imagens negras e indgenas foram deixadas de lado
nos escritos literrios. O advogado e crtico literrio Slvio Romero em sua Histria da
Literatura Brasileira, que comeou a ser publicada no incio da ltima dcada daquele Sculo,
escreveu: O mestio o produto fisiolgico, tnico e histrico do Brasil; a forma nova
de nossa diferenciao nacional.4
Para Slvio Romero a Histria do Brasil era uma histria da mestiagem. A mestiagem que
seria superada pelo embranquecimento do portugus preponderante,

No quero dizer que constituiremos uma nao de mulatos; pois que a


forma branca vai prevalecendo e prevalecer; quero dizer apenas que o
europeu aliou-se aqui a outras raas, e desta unio saiu o genuno 4

3
CANDIDO, Antnio. Formao da Literatura Brasileira: momentos decisivos. 5 ed. v. 1. Belo
Horizonte, Itatiaia; So Paulo: Edusp, 1975.
4
ROMERO, Slvio. Histria da Literatura Brasileira. 7 ed. Rio de Janeiro, Jos Olympio: Braslia, INL,
1980, p. 120.

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brasileiro, aquele que no se confunde mais com o portugus e sobre o


qual repousa o nosso futuro.5

A mestiagem, portanto, seria uma condio transitria,

O mestio a condio desta vitria do branco, fortificando lhe o sangue


para habita-lo aos rigores do clima. uma forma de transio necessria e
til que caminha para aproximar-se do tipo superior. Pela seleo natural,
todavia, depois de apoderado do auxlio de que necessita, o tipo branco ir
tomando a preponderncia, at mostrar-se puro e belo como no velho
mundo.6

As ideias expressas por Slvio Romero foram retomadas em diferentes momentos


na Histria do Brasil: com o Modernismo e a Semana de Arte Moderna em 1922, na
Dcada de 1930 nos debates sobre a identidade do Brasil, com o nacionalismo e
desenvolvimentismo nos anos 1950 e no perodo da Ditadura Civil-Militar a partir de 1964,
por meio de narrativas que exaltavam a identidade monocultural do Brasil, quando outras
identidades e expresses socioculturais foram negadas, desconsideradas, omitidas.
O pesquisador negro jamaicano Stuart Hall que se tornou um renomado professor
lecionando em universidades na Inglaterra, a partir da perspectiva gramsciana discutiu o
conceito de hegemonia nas relaes socioculturais. Ao tratar sobre a ideia da nao
moderna, o autor discutiu as construes dos smbolos, discursos e representaes a
respeito de supostas culturas e identidades nacionais hegemnicas que buscam apagar as
diferentes expresses socioculturais.

As culturas nacionais so compostas no apenas de instituies culturais,


mas tambm de smbolos e representaes. Uma cultura nacional um
discurso um modo de construir sentidos que influencia e organiza
tanto nossas aes quanto a concepo que temos de ns mesmos. As
culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre a nao, sentidos com
os quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos
esto contidos nas estrias que so contadas sobre a nao, memrias
que conectam seu presente com o seu passado e imagens que dela so
construdas.7

A afirmao da mestiagem como identidade do Brasil pode ser compreendida a


partir da perspectiva apontada por Stuart Hall. Vejamos, por exemplo, a conhecida msica
Leo do Norte uma composio de Paulo Csar Pinheiro e Lenine, sendo cantada por esse

5
ROMERO, Slvio. Histria da Literatura Brasileira. v. 1. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1943, p. 104.
6
ROMERO, 1943, p. 23.
7
HALL, S. A identidade cultural na ps-modernidade. 3 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 1999, p. 50-51.

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ltimo que pernambucano. A letra dessa msica expressa construes de imagens


representativas com uma viso de identidade cultural geral.
Cabe lembrar que o prprio ttulo da msica remete aos discursos usados pela elite
pernambucana do Sculo XIX, para afirmar a soberania da Provncia nas disputas polticas
com as oligarquias no Sudeste do pas. Portanto, o ttulo e a letra da msica expressam
ufanismo, patriotismo e afirmaes identitrias. Observemos que na letra da referida
msica, seus autores alm de se identificarem, dizem de onde falam: Eu sou mameluco,
sou de Casa Forte, sou de Pernambuco, sou o Leo do Norte.
Ou seja, afora serem mestios moram em Casa Forte, tradicional bairro recifense
habitado pela aurocracia pernambucana, formada pelas famlias e seus descendentes de
senhores de engenho do passado e ricos usineiros do presente. O bairro conhecido por
ser uma espcie de ilha de conforto, suntuosidade e tranquilidade no Recife, no que diz
respeito s condies de moradia, centro comercial e servios pblicos. Porque os msicos
no afirmaram serem mestios moradores em uma das vrias comunidades pobres na
periferia da capital pernambucana?!
Mesmo tendo presente que os artistas tm a plena liberdade de expresses em se
tratando da msica vista com uma obra de arte, onde as metforas uma linguagem
intrnseca nos universos das Artes, a letra da msica em questo possibilita reflexes sobre
os sentidos do seu contedo a partir da temtica que estamos discutindo: a construo de
uma identidade cultural. Em uma breve anlise da letra dessa msica, observamos que os
autores evocam as muitas e diversas expresses socioculturais existentes em todo o estado
de Pernambuco. Citam personalidades renomadas no mbito da Cultura, sejam literatos
com Ariano Suassuna, msicos como Luiz Gonzaga ou animadores da chamada cultura
popular como o Velho Faceta, que ficou bastante conhecido por liderar as apresentaes
humorsticas do Pastoril do Velho Faceta em bairros do Recife.
Da mesma forma indistinta, foram citadas na letra da msica expresses
socioculturais de diferentes localidades, espaos e temporalidades em Pernambuco. Todas
colocadas lado a lado, em um mesmo plano supostamente valorativo. Transparece ainda na
leitura da letra da referida msica a evocao de uma tradio comum, de uma identidade
pernambucana, fundada em uma memria coletiva, mas, atemporal onde pessoas, lugares,
expresses, objetos, lembranas e eventos compem a cultura da nomeada

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pernambucanidade, a nao pernambucana, representada no que vem a ser o Leo do


Norte.8
O socilogo Stuart Hall afirmou que um dos aspectos principais que expressa a
cultura de uma nao seria as narrativas ao fornecer imagens, panoramas, cenrios, eventos
histricos, smbolos e rituais a representar a partilha de experincias e dando o sentido
nao como uma comunidade imaginada. Um conjunto de smbolos tornando o lugar
agradvel aos seus habitantes, o solo nativo que confere uma identidade a ser reafirmada
publicamente. Ocorrendo ainda uma nfase nas origens, na continuidade, na tradio e na
atemporalidade.9 A nosso ver, so reflexes pertinentes para anlises da letra da msica em
discusso.
Todavia, se faz necessrio descontruir uma suposta identidade nacional, ou outras
afirmaes tais como a regional, expressa em uma cultura hegemnica que nega, ignora e
despreza as diferenas socioculturais. Portanto, uma suposta identidade e cultura nacional
se constituem pelo discurso impositivo de um nico povo. Uma unidade anunciada muitas
vezes em torno de ideia de raa, um tipo biolgico. Pensemos no caso do Brasil as ideias
sobre o mulato, o mestio, o nordestino, o sertanejo, o pernambucano, dentre outras.
As ideias de uma identidade e cultura nacional escondem as diferenas sejam de
classes sociais, gnero e tnicas ao buscar uniformiz-las. Negando tambm os processos
histricos marcados pelas violncias de grupos politicamente hegemnicos.10 Negando
ainda as violncias coloniais e colonizadoras sobre grupos subalternos, a exemplo dos
povos indgenas e oriundos da frica que foram submetidos a viverem em ambientes
coloniais.11 Observemos ainda que as identidades nacionais alm de serem fortemente
marcadas pelo etnocentrismo, so tambm pelo sexismo: afirma-se o mulato, o mestio, o
pernambucano, acentuando-se o gnero masculino.
Faz-se necessrio, portanto, problematizar as ideias e afirmaes de identidades
generalizantes como a mestiagem no Brasil, um discurso para, negar, desprezar e suprimir

8
SILVA, Edson. Histria e diversidades: os direitos s diferenas. Questionando Chico Buarque, Tom
Z, Lenine... In: MOREIRA, Harley A. (Org.). Africanidades: repensando identidades, discursos e o
ensino de Histria da frica. Recife: UPE/Livro Rpido, 2012, p. 11-37.
9
HALL, 1999, p.52-53.
10
SOUZA, Ricardo L. de. Identidade nacional e modernidade brasileira: o dilogo entre Slvio Romero,
Euclides da Cunha, Cmara Cascudo e Gilberto Freyre. Belo Horizonte: Autntica, 2007.
11
GOMES, Nilma L. A questo racial na escola: desafios colocados pela implementao da Lei
10.639/2003. In: MOREIRA, Antnio F; CANDAU, Vera M. Multiculturalismo: diferenas culturais e
prticas pedaggicas. 2 ed. Petrpolis: Vozes, 2008, p. 67-89.

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a sociodiversidade existente no pas.12 Reconhecer e afirmar os direitos as diferenas ,


pois, questionar o discurso da mestiagem como identidade nacional, discurso usado para
esconder a histria e as expresses socioculturais de ndios/as e negros/as na Histria do
Brasil.

HISTRIA DOS POVOS INDGENAS OU OS POVOS INDGENAS NA


HISTRIA?

possvel falarmos da existncia de uma histria indgena? Com tal afirmao


expressamos que os ndios esto fora da Histria, enquanto histria da humanidade? Se
nenhum grupo humano vive totalmente isolado, sem estabelecer relaes com outros
grupos humanos, o que ser mais cabvel afirmarmos: uma histria indgena ou discutirmos
sobre os indgenas na Histria? Entendemos que cada povo indgena, em sua singularidade
e especificidade, est presente na Histria pensada enquanto um campo de relaes com e
entre os diversos e diferentes situaes, grupos sociais e atores sociohistricos: os indgenas
e a colonizao, os indgenas e os Estados nacionais, os indgenas e as mobilizaes
sociopolticas, dentre outras temticas.
Durante muito tempo, nos estudos sobre a Histria do Brasil, alm das referncias
ao ndio apenas nos primeiros anos da colonizao, predominou a viso sobre os povos
nativos como vitimados pelos inmeros massacres, extermnios, genocdios e etnocdios
provocados pelas invases e colonizao dos portugueses e outro povos vindos da Europa
a partir de 1500. E que os poucos ndios sobreviventes, estavam condenados ao
desaparecimento engolidos pela marcha colonizadora, pelo progresso e por meio da
aculturao, foram integrando-se nossa sociedade. Em geral, essas ideias que ainda so
ensinadas nas escolas e mesmo nas universidades, tambm aparecem em manuais didticos,
principalmente nos livros de Histria do Brasil e so tambm veiculadas pela mdia e
expressas pelo senso comum.
Contrariando todas as previses trgicas, os povos indgenas no Brasil ao longo dos
anos de colonizao, no somente elaboraram diferentes estratgias de resistncia seja
atravs das guerras ou dos confrontos, mas tambm por meio das alianas, das
acomodaes e adaptaes ou das simulaes diante das situaes criadas com a

12
SILVA, Edson; SILVA, Maria da Penha da. "J no se v 'ndios como antigamente": a abordagem da
temtica indgena na escola em discusso a partir da Lei 11.645/2008. In: SOUZA, Antnio C. B. de;
OLIVEIRA. Ariosvalber de S; LIMA, Marinalva V. de. (Orgs.). Educao para as relaes tnico-
raciais: identidades, etnicidades e alteridades. Joo Pessoa: CCTA/UFPB, 2016, p. 253-285

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colonizao, alcanando nas ltimas dcadas um considervel crescimento populacional


segundo estimativas do Censo IBGE/2010. Questionando assim as corriqueiras vises
eurocntricas, colonialistas e evolucionistas que tratavam os povos indgenas como
atrasados, vtimas impotentes em extino. Pois, os dados e informaes que evidenciam o
contrrio exigem reformulaes das teorias explicativas sobre o destino desses povos.
Foram tambm superadas as vises dos cronistas coloniais retomadas pelos
pensadores brasileiros no Sculo XIX e tambm muito presente nos livros didticos de
Histria, classificando os povos indgenas entre os Tupi e os Tapuia Essa ideia
equivocada que dividia os grupos indgenas em dois blocos monoltico antagnicos, sendo
os Tupi ao ndios considerados mansos aldeados no litoral, enquanto os Tapuia
chamados de brbaros eram os ndios selvagens habitantes nos sertes e por essas razes
bastante perseguidos. Essas classificaes escondiam as diversidades e as dinmicas
socioculturais dos povos indgenas em todas as regies do pas. 13
Portanto, mesmo considerando as violncias coloniais que provocaram a
significativa depopulao dos povos nativos, as discusses iniciadas na dcada de 1980 no
Brasil na rea da Antropologia, sobre as diferentes formas da colonizao, as relaes
socioculturais em uma situao de contato, sobre a identidade tnica de cada povo, as
vises sobre os territrios etc., como tambm as novas abordagens pelos estudos de
Histria, possibilitaram repensar a ideia atribuda aos indgenas como povos derrotados,
passivos, subjugados. Os indgenas passaram a ser pensados e discutidos como
sujeitos/agentes ativos no processo colonial, em contextos de dominao/imposio
sociocultural.
Esses estudos antropolgicos e histricos, a exemplo dos realizados por vrios
pesquisadores,14 buscaram compreender como os diversos povos em diferentes contextos e
situaes sociohistricas, elaboraram diferentes estratgias que possibilitaram a existncia
indgena nos mais de cinco sculos de colonizao. Nesse sentido, foi ampliado o prprio
conceito de resistncia, at ento vigente, enquanto confrontos e conflitos blicos, guerras

13
MONTEIRO, John M. Tupis, Tapuias e historiadores: estudos de histria indgena e de indigenismo.
Tese (Livre-Docncia). Instituto de Filosofia e Cincias Humanas, Universidade Estadual de Campinas,
Campinas/SP, 2001.
14
CUNHA, Manuela Carneiro da. (Org.). Histria dos ndios no Brasil. So Paulo: Cia. das Letras, 1998;
MONTEIRO, 2001; POMPA, Maria Cristina. Religio como traduo: missionrios, Tupi e Tapuia no
Brasil Colonial. Tese (Doutorado em Cincias Sociais) - Instituto de Filosofia e Cincias Humanas,
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001; OLIVEIRA, J. P. de. (Org.). A viagem de volta:
etnicidade, poltica e reelaborao cultural no Nordeste indgena. 2 ed. Rio de Janeiro: Contra Capa,
2004.

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com fins trgicos e a morte de milhares de indgenas, para uma concepo mais ampla de
relaes diferenciadas em um contexto de dominao e violncias socioculturais: as muitas
formas de resistncia do cotidiano, por meio de gestos, prticas, atitudes que quebraram
uma suposta totalidade, a hegemonia da dominao colonial.
Uma vez questionadas as vises a respeito dos indgenas como povos vencidos e
as ideias sobre o genocdio e do etnocdio, enquanto total destruio fsica e cultural,
por meio das novas abordagens vem sendo estudadas as diferentes estratgias utilizadas
pelos povos indgenas que traduziram, negociaram, adaptaram os cdigos dos
colonizadores para conviver no mundo colonial. Estratgias expressas nos acordos,
alianas, simulaes, acomodaes ou ainda as apropriaes simblicas por meio das quais
os povos indgenas transformaram ritos e expresses socioculturais dos colonizadores:
reformulando-as, adaptando-as, refazendo-as, influenciando-as, reinventando-as. Processos
que foi chamado por muitos autores como religiosidade popular, sincretismo, hibridismo
cultural, etc., que permeiam os anos de colonizao.

OS NDIOS NA HISTRIA: NOVAS ABORDAGENS

As pesquisas recentes na documentao de misses religiosas, 15 evidenciaram que


mesmo naqueles contextos de diversas violncias explcitas, os povos indgenas simularam-
se derrotados e sabotaram a dominao colonial. Estabelecendo uma resistncia invisvel,
por meio da persistncia de prticas religiosas ancestrais, com simulaes de adeso ao
Cristianismo, prticas estas consideradas como idolatrias pelos missionrios, deixando-os
bastante irritados ao perceberem os desvios da f apesar de anos da Catequese para os
indgenas.
Acordos negociados entre lderes indgenas e colonizadores garantiram a influncia
e o poder dos primeiros sobre seus grupos, bem como barganhar junto aos colonizadores
direitos e privilgios. Casos de rebelies em aldeamentos de ndios considerados mansos e
cristos, colocavam em questo o trabalho catequtico de anos, a servio do poder rgio,
que mantinha um suposto controle colonial sobre os povos indgenas. Negociaes
possveis em um contexto de dominao foram feitas em diferentes situaes e momentos,

15
POMPA, 2001.

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possibilitando aos povos indgenas manterem um convvio aparentemente pacfico no


mundo colonial, e assim, resistirem/sobreviverem na histria da colonizao.
Nessa perspectiva, no texto Redescobrindo os ndios da Amrica Portuguesa:
Antropologia e Histria, publicado pelo reconhecido historiador John Monteiro 16 alertava
a quem se interessasse pelos estudos sobre os ndios para ter presente s dinmicas
indgenas nos perodos anterior e posterior da colonizao europeia na Amrica.
Destacando as novas configuraes tnicas e sociopolticas indgenas que foram elaboradas
no interior do projeto colonizador, fossem por meio de alianas, combates ou fugas; e que
para alm da consagrada abordagem da resistncia indgena, importante perceber como
os diferentes grupos indgenas se inseriram nos espaos coloniais ou estiveram s margens
deles; observando que a despeito das estratgias de dominao dos colonizadores ao
atribuir aos ndios identidades genricas, como os grupos indgenas forjaram novas
categorias tnicas e socioculturais tomando esses etnmios como marcadores referenciais
para as suas mobilizaes sociopolticas.
Ou seja, mesmo no sendo tupi, guarani ou qualquer outro nome que tenha
recebido dos colonizadores, quando necessrio os povos indgenas apropriaram-se dessas e
outras nomeaes para estabelecer alianas, acordos, direitos, privilgios para as diversas
formas de viver no mundo colonial.
No conjunto dos estudos citados com novas abordagens, percebe-se algumas
concepes comuns como a desconstruo de ideias e imagens cristalizadas sobre os
ndios, vistos como vitimizados pelo processo colonial; contrariando essa ideia nas novas
abordagens os indgenas so tratados como sujeitos agentes da/na Histria. As pesquisas
evidenciam, portanto, o lugar e o significado dos indgenas na Histria. E dessa forma a
Histria do Brasil e reinterpretada em seus processos locais/regionais a partir da presena e
participao indgena em diferentes e diversos contextos sociohistricos.17
Observando os indgenas e os processos histricos ocorridos no Nordeste, no
sculo XIX, com maior nfase aps a Lei de terras de 1850, as cmaras municipais

16
MONTEIRO, John M. Redescobrindo os ndios da Amrica Portuguesa: Antropologia e Histria. In:
AGUIAR, Odlio Alves; BATISTA, Jos lcio; PINHEIRO, Joceny. (Orgs.). Olhares contemporneos:
cenas do mundo em discusso na universidade. Fortaleza: Edies Demcrito Rocha, 2001, p. 135-142.
17
OLIVEIRA, Joo Pacheco de; FREIRE, Carlos Augusto da Rocha. A presena indgena na formao
do Brasil. Braslia: MEC/Unesco, 2006; ALMEIDA, Maria R. C. de. Metamorfoses indgenas: identidade
e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. 2 ed. Rio de Janeiro: FVG/FAPERJ, 2013; OLIVEIRA,
J. P. de. (Org.). A presena indgena no Nordeste: processos de territorializao, modos de
reconhecimento e regimes de memria. Joo Pacheco de Oliveira (Org.) Rio de Janeiro Contra Capa,
2011.

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insistentemente solicitaram aos poderes pblicos as terras dos antigos aldeamentos para
patrimnio dos municpios, alegando a necessidade de expanso destes. Os vereadores
legislavam em causa prpria, uma vez que sendo a maioria deles invasores nas terras
indgenas, com a medio e demarcao das terras dos aldeamentos, tiveram suas posses
legitimadas. A partir de 1870 vrios aldeamentos foram declarados oficialmente extintos no
Nordeste, favorecendo os tradicionais esbulhos, legitimando-se os antigos invasores das
terras indgenas.
Os povos indgenas no Nordeste lembram em suas tradies orais que com as
invases sistemticas de suas terras e decretao das extines dos aldeamentos, ocorreram
casos de umas poucas famlias que migraram para terras de outros aldeamentos, tambm
oficialmente declarados extintos. Muitas famlias indgenas engrossaram o grande
contingente de mo-de-obra espalhado pelas regies vizinhas s aldeias, ora trabalhando
nas fazendas, como moradores, agregados, sem terras. Ora migrando para trabalhar na
lavoura sazonal da cana-de-acar na Zona da Mata nordestina, ora vagando pelas estradas,
como sem-terras e sem-teto vieram ocupar as periferias urbanas das capitais, das maiores
cidades no interior ou prximas aos antigos aldeamentos.18
Contudo, outras famlias indgenas conseguiram resistir s presses nos seus
tradicionais locais de moradias, ou s vezes em lugares das cercanias mas de difcil acesso.
E por meio das relaes e vnculos como casamentos, moradias em terras comuns, dentre
outros estabelecidos com outros grupos de marginalizados (negros, brancos pobres) pelo
sistema social vigente e das relaes culturais na sociedade onde estavam inseridas,
reelaboraram a identidade tnica afirmada pelos atuais povos indgenas no Nordeste.19
Para compreender esses processos significativa a leitura do texto Armas e
armadilhas: histria e resistncia dos ndios, publicado em 1999, onde John Monteiro
afirmou: Importa recuperar o sujeito histrico que agia (age) de acordo com a sua leitura
do mundo ao seu redor, leitura esta informada tanto pelos cdigos culturais da sua
sociedade como pela percepo e interpretao dos eventos que se desenrolavam. 20

18
SILVA, Edson. Ensino e Sociodiversidades indgenas: possibilidades, desafios e impasses a partir da
Lei 11.645/2008. In: Mneme - Revista de Humanidades, n. 35, jul./dez. 2014, p.21-37.
19
SILVA, Edson. Os caboclos que so ndios: histria e resistncia indgena no Nordeste. In: Portal do
So Francisco Revista do Centro de Ensino Superior do Vale do So Francisco/CESVASF. Belm de
So Francisco, ano III, n. 3, 2004, p.127-137
20
MONTEIRO, John M. Armas e armadilhas: Histria e resistncia dos ndios. In, NOVAES, Adauto.
(Org.). A outra margem do Ocidente. So Paulo: Cia. das Letras, 1999, p. 248.

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OS NDIOS NA HISTRIA E O ENSINO DA TEMTICA INDGENA

Um dos maiores desafios, de uma forma em geral, para tratar da temtica indgena
no ensino a superao de uma cultura escolar que perdura sobre os povos indgenas. A
escola uma das instituies responsveis pela veiculao de muitas ideias, imagens,
discursos e informaes equivocadas a respeito dos ndios no Brasil. Ainda comum na
maioria das escolas, principalmente no universo da Educao Infantil, que no Dia 19 de
abril, quando se comemora o Dia do ndio, em todos os anos vem se repetindo as
mesmas prticas: enfeitam as crianas, pintam seus rostos, confeccionam penas de cartolina
e as colocam nas suas cabeas. Remetendo a imagens e discursos pretritos, folclorizados,
homogeneizadores e desinformados sobre os indgenas.
As crianas nas escolas so vestidas com saiotes de papel geralmente verdes e no
faltam os gritos e os cenrios com ocas e florestas! Dizem que esto imitando os ndios,
numa tentativa de homenage-los! Entretanto, tais supostas homenagens se referem qual
ndio? As supostas imitaes correspondem s situaes dos povos indgenas no Brasil?
Como essas imagens ficaro gravadas na memria dos/as estudantes desde to cedo? Quais
sero suas atitudes quando se depararem com os ndios reais? Quais as consequncias da
reproduo dessas desinformaes sobre as diversidades tnicas existente no nosso pas?
Ao longo do sculo XIX e tambm no XX existiram uma diversidade e
pluralidade de imagens a respeito dos indgenas. Essas imagens corresponderam aos
diferentes momentos polticos e as mudanas sociohistricas que ocorreram no pas,
expressaram as oposies entre o Tupi como smbolo da nacionalidade e o Tapuia como
brbaro, selvagem. Entre o ndio dcil, catequizado, integrado a civilizao e o ndio feroz,
sem sentimentos, a ameaar a civilizao.
O que muitas das vezes aprendemos sobre os ndios na escola est associado
basicamente s imagens do que vem sendo na maioria dos casos veiculadas pela mdia: um
ndio genrico, ou seja, sem estar vinculado a um povo indgena. Ou ainda com um bitipo
de indivduos habitantes na Regio Amaznica e no Xingu. Com cabelos lisos, muitas
pinturas corporais e adereos de penas, nus, moradores das florestas, portadores de
culturas exticas, etc. Ou tambm os diversos povos indgenas so chamados de tribos,
uma viso do Sculo XIX a partir da perspectiva etnocntrica e evolucionista de uma
suposta hierarquia de raas, onde os ndios como primitivos, atrasados ocupariam
obviamente o ltimo nvel na escala em direo a uma chamada civilizao. Ou ainda

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imortalizados pela literatura romntica do Sculo XIX, como nos livros de Jos de Alencar,
onde so apresentados ndios belos e ingnuos, ou valentes guerreiros e ameaadores
canibais, ou seja, brbaros, bons selvagens ou heris.
As imagens e discursos que afirmam os indgenas na Amaznia como puros,
autnticos e verdadeiros em oposio aos habitantes em outros lugares do pas,
principalmente nas mais regies antigas da colonizao portuguesa, a exemplo do
Nordeste, se baseiam em uma ideia equivocada de culturas melhores, superiores ou
inferiores. Quando as pesquisas antropolgicas afirmam que as culturas so dinmicas e
apenas diferentes e mais do que isso: so resultados das relaes histricas entre os
diferentes grupos humanos. Ou seja, para melhor compreender-se os atuais povos
indgenas nas suas sociodiversidades, se faz necessrio perceber as diferentes experincias
vivenciadas por esses povos nos diversos processos de colonizao, que resultaram na
histria das relaes socioculturais ao longo mais de 500 anos no Brasil. Portanto,
buscando compreender as expresses socioculturais indgenas como produtos das relaes
histricas em cada regio do pas.21
As oposies entre o aldeamento e a selva; entre o cio, a liberdade e o trabalho/
entre o atraso e o progresso; entre a degenerao e a civilizao, so imagens que
expressaram/expressam o etnocentrismo presente nos vrios discursos construdos, a
partir da suposta supremacia da raa branca, representante da obra redentora da nomeada
civilizao. Imagens a respeito dos indgenas, que ao serem justificadas com os
pressupostos cientfico-filosficos, por meio das teorias explicativas das diferenas e
desigualdades raciais, legitimaram a ordem social vigente, as tradicionais prticas das
invases territoriais, a negao dos direitos histricos e a disperso de grupos indgenas,
enquanto outros reinventavam suas vidas a partir das suas prprias imagens.
Os discursos e imagens sobre os ndios vm mudando nos ltimos anos. E essa
mudana ocorre em razo da visibilidade poltica conquistada pelos prprios ndios. As
mobilizaes dos povos indgenas em torno das discusses e debates para a elaborao da
Constituio em vigor aprovada em 1988 e as conquistas dos direitos indgenas fixados na
Lei maior do pas possibilitaram a garantia dos direitos (demarcao das terras, sade e
educao diferenciadas e especficas, dentre outros), alm da nfase para que a sociedade
em geral (re)descubra os ndios.
21
SILVA, Edson. Dia do ndio: a folclorizao da temtica indgena na escola. In: Construir Notcias, v.
72, 2013, p. 35-41.

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Os ndios conquistaram o (re)conhecimento, o respeito aos seus direitos


especficos e diferenciados. E a partir dessa perspectiva o nosso pas a sociedade vem se
repensando e se vendo em sua multiplicidade, pluralidade e sociodiversidades, expressas
tambm pelos povos indgenas em diferentes contextos sociohistricos. Embora esse
reconhecimento exija tambm posturas e medidas das autoridades governamentais para
ouvir dos diferentes sujeitos sociais, com a necessidade de novas polticas pblicas que
reconheam, respeitem e garantam essas diferenas, as expresses socioculturais que
contribuem decisivamente para a nossa sociedade, para o mundo onde vivemos.
Significando que tratar sobre os grupos que se convencionou chamar-se
genericamente de ndios uma situao parecida ao olhar um caleidoscpio: so povos
em suas mltiplas expresses socioculturais, diversos entre si e diferentes de nossa
sociedade. Pensar os povos indgenas , portanto, pensar sempre em experincias
sociohistricas plurais e diferenciadas.
Portanto, alm da importncia em descontruir a ideia de uma suposta identidade
genrica do ndio, necessrio ainda questionar uma suposta identidade e cultura
nacional que constituiu o discurso impositivo de um nico povo brasileiro enquanto uma
unidade forjada ao longo da Histria do Brasil, como expressou o conhecido antroplogo
Darcy Ribeiro.22 O autor defendeu o amlgama, a fuso das raas que formaram o Brasil, o
povo brasileiro, e consequentemente o desaparecimento dos indgenas. 23
As pesquisas, reflexes e questionamentos nos estudos sobre os indgenas a partir
das novas abordagens, alm de contriburem para as mobilizaes sociopolticas dos povos
indgenas na conquista, reconhecimento e garantias de direitos, vem tambm contribuindo
para a elaborao de subsdios atendendo as exigncias da Lei n 11.645/2008, que
determinou a incluso no currculo das escolas pblicas e privadas no nvel da Educao
Bsica o ensino da Histria e Culturas dos ndios. Essa determinao legal para o caso do
Nordeste de fundamental importncia, uma vez que at bem recentemente era cristalizada
a ideia da inexistncia de povos indgenas na Regio.

22
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formao e o sentido do Brasil. 2 ed. So Paulo: Companhia das
Letras, 1995.
23
SILVA, Edson. Os povos indgenas e o ensino: reconhecendo as sociodiversidades nos currculos com
a Lei 11.645. In: ROSA, A; BARROS, N. (Orgs.). Ensino e pesquisa na Educao Bsica: abordagens
tericas e metodolgicas. Recife: EDUFPE, 2012a, p. 75-87.

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O ENSINO DA TEMTICA INDGENA E A LEI N 11.645/2008:


(RE)CONHECENDO AS SOCIODIVERSIDADES INDGENAS

A efetivao da Lei n 11.645/2008 alm favorecer mudanas em antigas prticas


pedaggicas equivocadas e preconceituosas, possibilitar novos olhares para a Histria e a
Sociedade.24 Se na nossa sociedade a escola tem um papel privilegiado na formao
humana, procurando responder as demandas sociais e ainda que se tenha presente as
dificuldades e desafios dos processos de ensino-aprendizagem, do fazer pedaggico, a
escola um lcus onde com a efetivao da Lei seja possvel no ambiente escolar viabilizar
espaos que favoream o reconhecimento da diversidade e uma convivncia respeitosa
baseada no dilogo entre os diferentes atores sociopolticos, oportunizando igualmente o
acesso e a socializao dos mltiplos saberes.25 E assim, contribuindo na formao de
cidados crticos, possibilitando o reconhecimento das diferenas socioculturais existentes
no Brasil, o (re)conhecimento dos direitos das sociodiversidades dos povos indgenas.

O ponto de partida para o ensino crtico da temtica indgena pensar sempre na


atualidade dos povos indgenas. Enfatizando as sociodiversidades indgenas,
desmistificando imagens genricas do ndio, da cultura indgena.
Sociodiversidades definidas como as diferentes formas de organizaes socioculturais
expressas pelos povos indgenas.
Discutindo as diferentes sociodiversidades, as expresses socioculturais indgenas
no passado e no presente, questionando a clssica dicotomia Tupi x Tapuia atribuda
aos ndios em nosso pas. Evidenciando a participao efetiva dos povos indgenas nos
diversos momentos histricos ao longo da Histria do Brasil. Desnaturalizando a ideia
equivocada da presena do ndio apenas na poca do Descobrimento ou somente na
formao do Brasil, problematizando o lugar pensado e o ocupado pelos indgenas na
Histria do pas.

24
BERGAMASCHI, Maria Aparecida. Povos indgenas e o Ensino de Histria: a Lei n 11.645/2008
como caminho para a interculturalidade. In: BARROSO, Vera L. M; BERGAMASCHI, Maria A;
PEREIRA, N. M; GEDOZ, S. T; PADRS, E. S. (Orgs.). Ensino de Histria: desafios contemporneos.
Porto Alegre: EST/Exclamaes/ANPUH/RS. 2010, p.151-166.
25
SILVA, Maria da Penha da. A presena dos povos indgenas nos subsdios didticos: leitura crtica
sobre as abordagens das imagens e textos impressos. In: Mnemosine Revista, v. 1, n 2, 2010, p. 268-290.

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Existem vrios desafios a serem enfrentados para o ensino da temtica indgena.26


Um deles consiste na superao do racismo institucional sutil ou explcito quando ocorre o
descrdito, a omisso e falta de apoio ou mesmo impedimento por parte de gestores
educacionais as iniciativas que tratam da temtica indgena. Todavia, talvez o desfaio mais
importante seja um maior investimento para o ensino da temtica indgena, nos cursos de
licenciaturas e formao para o magistrio, na formao professores e profissionais que
atuam na Educao. Como tambm na formao continuada de docentes em exerccio.
bastante recomendvel a participao de indgenas em cursos de formao sobre
a temtica indgena para docentes no ndios, pois o conhecimento das experincias, dos
ambientes onde vivem e das expresses socioculturais dos indgenas, contribuiro para
desmistificar vises equivocadas e folclorizadas. Visitas pedaggicas, previamente
preparadas, de docentes e discentes as aldeias indgenas ou de indgenas as instituies
escolares, so iniciativas que tambm contribuiro para a superao de preconceitos, bem
como a solidariedade com os indgenas em suas mobilizaes por seus direitos sociais.
A formao de professores pressupe a crtica ao livro didtico na sua abordagem
em geral simplista e equivocada sobre os povos indgenas, o investimento na produo de
subsdios didticos sobre a temtica indgena, principalmente enfocando os povos
indgenas mais prximos da unidade escolar. Significando ainda a constituio de um
acervo especializado na biblioteca escolar.27
Com a constatao pelo Censo IBGE/2010 da crescente urbanizao das reas
indgenas com o avano das cidades sobre as terras habitadas pelos ndios e a presena
indgena no universo urbano, inclusive enquanto discentes nas escolas, um desafio a ser
considerado a vivncia da interculturalidade. Onde indgenas e no indgenas em suas
expresses socioculturais, busquem superar todas as formas de racismos, discriminaes e
preconceitos, na construo de uma sociedade pluricultural, com o pleno (re)conhecimento
das sociodiversidades indgenas.

26
SILVA, Edson. Os povos indgenas e o ensino: possibilidades, desafios e impasses a partir da Lei
11.645/2008. In: FERREIRA, Gilberto Geraldo; SILVA, Edson Hely; BARBALHO, Jos Ivamilson
Silva. (Orgs.). Educao e diversidade: um dilogo necessrio na Educao Bsica. Macei: EDUFAL,
2015, p.161-180.
27
SILVA, Edson; SOUZA, Neimar M. Reviso bibliogrfica sobre o ensino da temtica indgena. In:
SOUZA, Fbio Feltrin; WITTMANN, Lusa Tombini. (Orgs.). Protagonismo indgena na Histria.
Tubaro, SC: UFFS, 2016, p. 255-285.

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Agradeo aos/as pareceristas annimos/as pelas leituras cuidadosas, comentrios e sugestes que
procurei incorpor-las na atual verso do texto.

Recebido em: 11 de agosto de 2016


Aprovado em: 12 de maro de 2017

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SUJEITOS DE EXPERINCIA: PROFESSORES DE HISTRIA NO USO


PEDAGGICO DO MUSEU DE ARTES E OFCIOS

AGENTS OF EXPERIENCE: HISTORY TEACHERS AS


PEDAGOGICAL ASSETS OF THE ARTS AND CRAFTS MUSEUM (MG)

Jezulino Lcio Mendes Braga


Professor da Universidade Federal de Minas Gerais - Brasil
Doutor em educao pela Universidade Federal de Minas Gerais
e-mail: luciohistoria@hotmail.com

RESUMO
Esse artigo apresenta parte de uma pesquisa de doutorado na qual investiguei a relao dos
professores de histria com a exposio do Museu de Artes e Ofcios em Belo Horizonte.
Apresento as experincias sensveis dos docentes no museu e discuto as escolhas que fazem para
ensinar histria. Afirmo que a potencialidade dos museus para o ensino de histria est na forma
que dispe os objetos, imagens e legendas e analiso dados sobre as mediaes oferecidas pelo
museu aos docentes. Discuto que a educao museal passa pelas experincias sensveis e que,
portanto, os programas e projetos dos setores educativos so potentes para formao docente que
processual critica e reflexiva. Como mtodo de pesquisa utilizamos questionrios e entrevistas
narrativas em contato com a exposio do museu.

Palavras chaves: museu; experincia; ensino de histria

ABSTRACT
The present article brings part of a doctoral research where the relationship between History
teachers and the exhibition at the Museu de Artes e Ofcios (Arts and Crafts Museum), in Belo
Horizonte city, is investigated. It presents the teachers sensory experiences at the museum, and the
choices they make to discuss and to teach History. This work states that the potential of museums
for teaching History lays in the form they displays objects, images and captions, and it analyzes data
on the mediation offered to teachers by those museums. It argues that museal education runs
through sensible experiences and that, therefore, the educational sector programs and projects are
potent for teachers training, which is procedural, critical, and reflective. As a research method,
questionnaires and narrative interviews have been done during the museum exhibition.

Keywords: museum; experience; history teaching

INTRODUO

Esse texto apresenta experincias sensveis dos professores de histria no Museu de


Artes e Ofcios, Belo Horizonte. Partimos da premissa que os museus fazem um convite
aprendizagem sensvel da cultura, um dos desafios colocados ao professor de histria, e,
por esse motivo, constitui-se um dos espaos para a formao docente que processual,
crtica e reflexiva.

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Os professores vivem experincias em situao de trabalho, no usufruto cultural,


nos ambientes familiares, partidos polticos, sindicatos, associaes de bairro e instituies
religiosas. Estas experincias adquiridas so interferentes nos saberes que mobilizam para
ensinar. Segundo Tardif1, o saber dos professores individual ao mesmo tempo social,
uma vez que resulta de experincias individuais e das confrontaes que ocorrem na
sociedade. A condio docente da ordem do humano e, como tal, nas relaes que
estabelece com o outro ocorrem tenses, conflitos e tambm partilhas, trocas, interaes
diversas expressas em seu modo de conceber a educao e de dar sentido sua profisso.
Para Teixeira, necessrio que as pesquisas em educao reconheam o lado
humano dos professores, pensando suas vidas, seu trabalho, suas experincias, identidades
e histrias, assim como suas formas de se posicionar no mundo. 2 Estudando a condio
docente, a autora nos informa que, antes de tudo, a profisso se estabelece na relao com
os estudantes. E nessa relao existem trocas, reinvenes, conflitos, resistncias, comuns a
qualquer relao de alteridade. O docente um sujeito scio cultural, historicamente
construdo, (...) cuja condio de existncia, cuja origem primeira est na corporeidade que
se inscreve, por sua vez, nas temporalidades do transcurso da existncia humana, em
rtmicas da vida bio-psico-social e nos ciclos vitais. 3 Segundo a autora, a formao docente
se desenvolve em contextos scio-histrico temporais, seja porque esta formao se realiza
nas relaes entre sujeitos com distintos posicionamentos nos ciclos da vida, ou pelo fato
de que o desenvolvimento cognitivo e emocional tem seus ritmos e temporalidades
peculiares.
Professores so sujeitos historicamente construdos e usam de suas experincias
em seu desenvolvimento profissional na avaliao de suas prticas e na mobilizao de
saberes para ensinar. E os museus so espaos formativos dos quais os professores dispe
para ensinar histria. Fazem uso pedaggico dessas instituies ao mesmo tempo em que
se formam em servio. Os museus so elementos constitutivos do trabalho docente e dessa
forma constituem-se espao potente para que os professores ressignifiquem suas prticas e
mobilizem suas experincias para ensinar.

1
TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formao profissional. Petrpolis: Vozes, 2011, p. 21.
2
TEIXEIRA, Ins Assuno de Castro. Tempos enredados: teias da condio professor. 420f. Tese
(Doutorado em Educao) Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Educao, Belo
Horizonte, 1998, p. 415.
3
TEIXEIRA, 1998, p. 130.

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Para anlise das experincias docentes no Museu de Artes e Ofcios utilizaremos do


conceito de experincia sensvel. Chamamos de experincia sensvel as aes humanas
acontecidas no museu que passam pela rememorao, imaginao, reafirmao identitria,
pelo encantamento, sofrimento, reposicionamento de concepes prvias, entre tantas
outras reaes provocadas pelos sentidos colocados em ao no uso pedaggico dos
museus.
A experincia sensvel corprea, pois com o corpo que garantimos nossa
presena no mundo. pelo corpo que se d a primeira aproximao com o acervo do
museu. Por se tratar de uma instituio que prope uma visualizao da histria por meio
de objetos tridimensionais, a experincia sensvel depende do contato visual com as
exposies dos museus. Pelo contato visual, o sujeitos elaboram percepes baseadas em
suas experincias e constroem uma narrativa autoral e emptica.
Para capturar essas experincias realizamos a pesquisa em duas etapas. Em uma
primeira etapa e com o apoio do setor educativo do museu, enviamos convites para
professores que realizaram mais de uma visita ao MAO entre os anos de 2011-2013. Aos
professores que aceitaram participar da pesquisa foi enviado um questionrio inserido em
um programa desenvolvido especialmente para a pesquisa e disponibilizado no site
http://www.jezulinolucio.com.br/. Este programa permitiu que os dados fossem
consolidados de forma mais rpida, minimizando algumas perdas eventuais quando os
questionrios so aplicados em papel.
Nesse questionrio formulamos 20 questes para investigar os usos pedaggicos
que os professores fazem da exposio do MAO. O objetivo desta primeira etapa era
conhecer os docentes frequentes ao MAO nos ltimos dois anos e a possibilidade de eles
participarem da pesquisa. O setor educativo do museu consultou 115 professores sobre
interesse e disponibilidade em participar da pesquisa. Obtiveram 45 retornos sendo 6 deles
negativos. Enviamos o questionrio para 39 professores na primeira etapa da pesquisa e
obtivemos 26 retornos.
A primeira etapa desenvolveu-se entre setembro de 2012 a maro de 2013. Com os
dados obtidos e sob anlise, optamos por uma entrevista narrativa com professores de
histria, dentre aqueles que responderam ao questionrio e os que aceitaram participar da
fase seguinte.

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O mtodo baseado na narrativa permite que os professores revivam suas


experincias em uma cadeia narrativa uma vez que:

(...) essa metodologia qualitativa de investigao prope-se a escutar os


sujeitos que, generosamente, emprestam e confiam suas vidas aos/as
entrevistadores/as, que delas recolhem no somente os fatos, mas os
sentidos, os sentimentos, os significados e interpretaes que tais sujeitos
lhes conferem.4

A narrativa se constitui tambm como um momento formativo, pois ao contar suas


experincias os professores do novos sentidos ao seu modo de ensinar e sua formao
docente. No foram raros os momentos em que os entrevistados usavam a expresso
corriqueira na lngua portuguesa Eu no tinha parado para pensar nisso, porquanto a
entrevista narrativa tambm momento no qual o professor constri seu ponto de vista
sobre sua atuao nas escolas e na sociedade.
A entrevista narrativa foi realizada no Museu de Artes e Ofcios, individualmente
com cada professor, em dia previamente agendado. Optamos por uma entrevista em
percurso de visitao. Assim, o/a professor/a juntamente comigo realizamos um percurso
dialogando por ambientes expositivos do museu enquanto a entrevista ocorria. O tempo da
entrevista foi, ento, o tempo do percurso, sendo altamente interferente em seu contedo.
Partindo do pressuposto de que a centralidade da pesquisa recai sobre as experincias dos
professores no museu, realizamos a entrevista como ato investigativo marcado por
situaes em que o professor exerceu seu papel narrador, viveu experincias e fez opes
de visitao na exposio do MAO. Decidimos que realizar a entrevista naquele lugar seria
uma oportunidade de dialogar com as experincias vividas pelos professores em aes
pedaggicas no museu, focalizando tambm a sua experincia pessoal dentro da instituio
e mesmo diante de outros museus. O professor foi convidado a percorrer a exposio do
MAO em confronto com suas prticas e memrias.
Este mtodo nos permitiu aproximar das experincias docentes que, muitas vezes,
foram expressas nos gestos, interrupes, confrontos, afirmaes, choro e outras emoes
prprias da condio humana que deixam:

4
TEIXEIRA, Ins Assuno de Castro; PDUA, Karla Cunha. Virtualidades e alcance da entrevista
narrativa. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DE PESQUISA (AUTO) BIOGRFICA, 2., 2006,
Salvador. Anais... Salvador: s.e., p. 34. CD-ROM.

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(...) escapar revelaes no s do lugar que o indivduo ocupa na


estrutura de produo, mas, principalmente, na forma como ele se
relacionou, ou ainda se relaciona com o seu universo de vida: o trabalho,
a religio, o corpo, o prazer, a dor, os sonhos.5

Ainda que tenham objetivos a cumprir em suas disciplinas, sistematizadas em


currculos e programas, os professores definem seus saberes em termos de experincias.
Professores experienciam situaes diversas que so confrontadas com saberes adquiridos
nos cursos de formao e com os saberes que lhes so propostos para ensinar. E este
experienciar no limitado pelos muros da escola, mas um ato de relao com a
sociedade que se expressa sob a forma de habitus e de habilidades de saber fazer e de
saber-ser.6
Estes saberes so plurais, heterogneos, compostos por experincias adquiridas
no trabalho e tambm na vida pessoal, uma vez que professores so homens e mulheres
que refletem, emocionam-se, fazem escolhas, tm posies ticas e polticas em relao ao
que acontece em sua vida pessoal e na sociedade; so portadores de experincias que se
modificam com o tempo, exercendo presses sobre a conscincia social existente.
Os museus instituem uma relao de alteridade e, potencialmente, podem
promover dilogos, confrontos, deslocamentos e afirmaes identitrias. So ambientes de
formao tanto para educadores que atuam diretamente na instituio museal, quanto para
professores que dele fazem uso educativo. Partimos da considerao de que o museu
permite uma experincia sensvel por meio da visualizao da histria narrada com objetos
tridimensionais, imagens e textos. Os professores relacionam-se de forma emptica com
essa narrativa mobilizando estratgias no processo de ensino e aprendizagem da histria.
No uso pedaggico dos museus, os professores resinificam sua prtica e constroem novas
concepes para a histria, baseada em suas experincias vividas.

MUSEUS E POTENCIALIDADES PARA O ENSINO DE HISTRIA

O Museu de Artes e Ofcios possui setor educativo e oferece suporte aos


professores que fazem visitas pedaggicas com estudantes. Do grupo de professores de
histria pesquisados, 69% realizam visitas regulares com estudantes a museus e, inclusive,

5
TEIXEIRA; PDUA, 2006, p. 36.
6
TARDIF,2011, p 39.

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foram mais de duas vezes ao MAO no ano de 2012, como podemos observar no Grfico
1.7

Grfico 1 - Docentes que declaram visitar regularmente museus

Fonte: Dados do questionrio respondido por 26 professores.8


A maior parte dos professores entrevistados incorpora os museus em sua prtica e
considera que essas instituies renem condies favorveis para o ensino de histria:

(...) as visitaes (no apenas em museus) conferem significado aos temas


trabalhados em sala e permitem que os sujeitos sintam-se construtores e
participantes da histria. As visitaes a museus provocam outros
sentidos e permitem ao estudante visualizar outras verses da histria
que no esto nos livros didticos. (Professor Bento- grifo nosso)
O ambiente do museu desperta a curiosidade dos estudantes, o acervo
transporta o visitante no tempo, as orientaes dos guias (quando bem
preparados) ampliam as possibilidades de explorao pedaggica da
visita. (Professor Mrio)

7
BRAGA, Jezulino Lcio Mendes. Professores de Histria em Cenrios de Experincia. 182 f. Tese
(Doutorado em Educao) - Universidade Federal de Minas Gerais,, Belo Horizonte, 2014, p. 235.
8
BRAGA, 2014, p. 235.

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O contato visual com o museu, com objetos histricos, com a


problemtica do monumento como sendo monumento histrico.
(Professora Hilda)
O aluno consegue apropriar-se do contedo pois tem contato com o
concreto indo alm da teoria escutada em sala de aula. (Professora
Hannah).

Em grande parte dos questionrios os docentes enfatizam o contato visual como


um dos diferenciais da educao por meio de visitaes a museus. As narrativas museais
so compostas de objetos, legendas, imagens, vdeos, focos de luz e vazios. Esse discurso
acionado pelos sujeitos no momento da visita. Para os professores, nesse ambiente de
formao os estudantes podero ter experincias que extrapolam a narrativa que usam em
sala de aula para ensinar histria. So experincias que vo alm das informaes
disponveis nos livros didticos e outros recursos disponibilizados na escola.
Despertar, ampliar, visualizar so verbos recorrentes na fala dos docentes que
fazem uso pedaggico do MAO. A exposio possibilita o contato visual com objetos
portadores de uma historicidade e dispostos de forma a construir uma narrativa da histria.
Esta narrativa usada para ensinar histria, pois possibilita ao estudante o contato com o
concreto, como afirma a professora Hannah. Como aponta a professora Hilda, os
processos de musealizao so potentes para dialogar sobre a problemtica do patrimnio
material e imaterial e os usos que so feitos do passado na contemporaneidade como no
caso dos monumentos histricos.
Muitas vezes o uso pedaggico do museu limita-se a esse processo ilustrativo dos
contedos escolares. Superar esta limitao requer dos professores criatividade,
problematizando a exposio e mobilizando ideias na continuidade da visita no retorno
sala de aula. Por meio de uma concepo de museu como morada bablica9 com suas
diversas linguagens, na qual o sujeito um andarilho e os objetos so ideias moventes,
tocantes e provocadoras, o museu deixaria de ser um espao apenas de curiosidade que
transporta o sujeito a outro tempo e possibilitaria sentir empaticamente as implicaes do
pretrito no presente.
O professor Bento chama ateno para a possibilidade de confrontar verses da
histria. Ao provocar sentidos diversos, a narrativa museal abre nova perspectiva de

9
Museu como espao da disperso, pluralidade, onde reside o paradoxo da salvaguarda e da irremedivel
perda que implica a prpria vida. Museu como espao das diversas linguagens e de possibilidade de
partilhar experincias.

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construo de conhecimento histrico afirmada na visualizao e no discurso dos


educadores de museu. Os visitantes escolares produzem narrativas na relao subjetiva com
a exposio. H um processo de construo de conhecimento cognitivo estabelecido pelas
sensibilidades no contato com a exposio e no dilogo intersubjetivo, em uma situao
relacional diferente da sala de aula. Em processo, o que vale so as experincias de abertura
para si e para os outros que o ambiente museal proporciona.10
Ainda que no tenha o poder de transportar o visitante no tempo, essa forma de
ensinar, por meio dos museus, desperta a curiosidade, como enfatiza o professor Mrio,
abrindo reflexes sobre a monumentalizao das fontes histricas, nesse caso, a
sacralizao dos objetos nas exposies e os litgios presentes nos museus. Sob esse ngulo,
o professor pode pensar o museu a partir da salvaguarda e da perda, pois o que est
exposto sempre fruto de uma escolha arbitrria, vestgios de como a sociedade quer ser
lembrada. A narrativa museal um recorte, uma seleo de rastros materiais e legendas em
cenrios propostos para a construo de um argumento.
O uso pedaggico do museu faz parte de uma concepo ampliada de educao em
que o sujeito est integrado de forma sensvel ao mundo e pode refletir sobre a sua histria
e sobre as tramas culturais nas quais est envolvido. No museu, o ato educativo diferente
do conhecimento que a escola constri, pois est localizado em espao e tempo curtos,
exigindo, assim, outros ritmos e outras linguagens. Abre-se espao para um conhecimento
sensvel, que localiza cada sujeito no seu universo cultural em dilogo com a pluralidade de
linguagens estticas do ambiente museal. Esse conhecimento construdo na relao
subjetiva e intersubjetiva que compe uma visita pedaggica a museus.
Os debates sobre o uso pedaggico de museus para a aprendizagem histrica
entram timidamente na formao inicial de futuros professores. A incorporao das
prticas de ensino nos currculos dos cursos de graduao ainda no consegue aliar o
debate sobre o ensino de histria s novas concepes de educao, o que reflete em uma
ideia de que essa rea do conhecimento estaria limitada didtica do ensino. Uma didtica
que privilegia critrios racionais de ensino, como se para ser um bom professor fosse
necessrio apenas dominar o contedo e os mtodos.

10
SCHEINER, Tereza Cristina. Comunicao, educao, exposio: novos saberes, novos sentidos.
Semiosfera - Revista de Comunicao e Cultura, Rio de Janeiro, ano 3, n. 4-5, jul., 2003.

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Os currculos esto ainda em uma perspectiva especializada, que desconsidera uma


formao ampla e reflexiva ancorada em saberes socialmente construdos e que no so
submetidos legitimao por determinado conceito de cincia. preciso que na formao
docente a parte terica esteja aliada ao conhecimento sensvel que vem do contato com as
coisas do mundo.
Duarte Jnior afirma que preciso envolver o cotidiano mais prximo dos sujeitos
em formao no estmulo dos sentidos em situao mais corriqueira do que aquelas que o
mundo moderno oferece em grande quantidade. Um sujeito que no vai apenas ocupar um
papel social como um ator, mas que se multiplica em suas dimenses ticas, estticas,
polticas e sensveis. De acordo com o autor preciso investir em:

(...) Uma educao que reconhea o fundamento sensvel de nossa


existncia e a ele dedique a devida ateno, propiciando o seu
desenvolvimento, estar, por certo, tornando mais abrangente e sutil a
atuao dos mecanismos lgicos e racionais de operao da conscincia
humana (...) 11

Na viso do professor Bento, as visitaes a museus ainda so orientadas por temas


que esto sendo discutidos na escola; so estabelecidas a partir de objetivos ligados ao
currculo, em uma aprendizagem que privilegia as dimenses cognitivas do sujeito. Mas ele
acredita que possvel romper com essa concepo por meio de uma prtica reflexiva do
uso dos museus:

Pesquisador: Voc acha que os professores procuram os museus de


acordo com o tema que esto desenvolvendo em sala de aula?
Professor Bento: As visitas so orientadas por temas. O Museu fica a
reboque das demandas da escola. meio complexo escapar dessa
nuance. Realmente tem questes que a gente discute na escola que a
gente gosta de ilustrar, gosta de discutir atravs do museu. Existem
outras possibilidades, e eu tenho aprendido a trabalhar com isso nos
ltimos anos. Tm possibilidade de deixar que os prprios alunos
conduzam a discusso, porque andando por aqui eles se lembram de um
objeto que foi significativo na vida dele, na infncia, e vo viajar naquilo
ali, vo dissertar sobre aquilo. E as vezes desvirtua uma ideia inicial
que foi trazer o aluno aqui para contextualizar um contedo. Mas
no nego que a inteno de dar significado ao contedo trabalhado esteja
presente no planejamento que fazemos. Agora o bacana quando isso
consegue ser desvirtuado pela experincia do prprio aluno. Esse
espao aqui muito rico nesse sentido, surpreende a gente pela
experincia que eles tm.

11
DUARTE-JUNIOR, Joo Francisco. O sentido dos sentidos: A educao (do) sensvel. Campinas:
UNICAMP, 2000.p 177

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o lugar do inesperado.12

Na entrevista caminhante, o professor Bento chama ateno para a riqueza do


acervo do MAO, que abre possibilidade de dialogar com a experincia de vida dos
estudantes. O docente admite que existe um planejamento para as visitas ligado ao
contedo disciplinar, mas que o ambiente museal o lugar do inesperado e a visitao
desvirtua, ou seja, vai alm da proposta inicial explicitada nos planejamentos de aula. Com
sua estratgia de visitao, Bento consegue romper com uma educao que privilegia
apenas as dimenses cognitivas, abrindo espao para as dimenses sensveis, ticas,
estticas e polticas, uma vez que as experincias dos estudantes ampliam a possibilidade de
uso pedaggico do museu, extrapolando os contedos curriculares.
Para o docente, o MAO o lugar do inesperado e, ao caminhar pela exposio, os
estudantes entram em contato com objetos que fazem parte do seu cotidiano; e na
caminhada ocorre um dilogo entre as experincias dos estudantes e a narrativa visual:

Pesquisador: possvel visualizar a histria nesse museu?


Professor Bento: Creio que possvel visualizar a histria,
principalmente daquele que o olhar no... como a gente chamaria de
memrias subterrneas n...Pollac n. Essas pessoas quando vm ao
museu, pessoas vm aqui achando que vo encontrar s velharia, no
entanto eles encontram a velharia, coisas que fazem parte do seu
cotidiano. Ento aquilo faz despertar aquelas lembranas e essas
lembranas fazem parte da histria. Eles vo revelando aspectos da
histria de vida deles que muitas vezes se confunde com a histria
social, com a histria coletiva. As vezes d para pegar o gancho de um
determinado momento histrico...isso era em que poca? O Que estava
acontecendo nessa poca? Da voc introduz o contedo, mas sempre
partindo das coisas que eles viram, daquilo que eles falaram aqui.13

O docente utiliza-se do conceito de memrias subterrneas, proposto por Michael


Pollak, para explicar a relao existente entre a experincia de vida dos estudantes e a
exposio do MAO. Michael Pollak postula a pulsao advinda das memrias construdas
no silenciamento e afirma o elemento contraditrio na confeco de uma teia de
lembranas majoritrias que so oficializadas em suportes materiais responsveis pela
manuteno de uma dada ordem vigente. Para Pollak, na sociedade contempornea a
fronteira entre o que se diz e o silncio separam (...) uma memria coletiva subterrnea da
sociedade civil dominada ou de grupos especficos, de uma memria coletiva organizada

12
Entrevista em HD 1h35, data 11/04/2012, local: MAO. Grifos nosso.
13
Entrevista em HD 1h35, data 11/04/2012, local: MAO. Grifos nosso.

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que resume a imagem que uma sociedade majoritria ou o Estado desejam passar e
impor.14
Estas memrias subterrneas so expressas nas histrias de vida como
ordenamento de acontecimentos que balizaram uma existncia e (...) atravs desse
trabalho de reconstruo de si mesmo o indivduo tende a definir seu lugar social e suas
relaes com os outros.15
Os objetos expostos ressoam as experincias dos sujeitos despertando lembranas
que criam outras narrativas, que esto silenciadas na exposio do museu. Greenblat 16
admite que os objetos so potentes, revelando foras culturais complexas e dinmicas nas
quais foram criados e das quais estabelece relaes com o sujeito que v, arrebatado pela
esttica que prende sua ateno. Pela ressonncia e encantamento so provocados gestos
imaginativos relacionados aos contedos propostos pelo professor no momento da visita.
O professor Bento afirma a importncia de dar vazo s histrias de vida
despertadas pelo contato visual com a exposio do MAO. No relato dessas histrias o
docente estabelece relaes com aspectos da histria social, abrindo um dilogo com os
estudantes e introduzindo contedos prximos s suas experincias.
Essa estratgia de ensino no limita os contedos de histria ao que est exposto
nos manuais didticos ou ao conhecimento do professor, mas estimula o questionamento
das narrativas e prope entender cada sujeito na construo do presente em dilogo com o
passado. A histria aproxima-se do sujeito do aprendizado no estmulo construo da
conscincia histrica em um processo de educao sensvel.
Na educao sensvel considera-se que o sujeito aprende na relao corprea que
estabelece com as coisas do mundo por meio de seus sentidos, antes mesmo do
pensamento e da reflexo. Como afirma Merleau-Ponty:

Tudo o que sei do mundo, mesmo devido cincia, o sei a partir de


minha viso pessoal ou de uma experincia do mundo sem a qual os
smbolos da cincia nada significariam. Todo o universo da cincia
construdo sobre o mundo vivido, e se quisermos pensar na prpria
cincia com rigor, apreciar exatamente o seu sentido e seu alcance,
convm despertarmos primeiramente esta experincia do mundo da qual

14
POLLAK, Michael. Memria, esquecimento e silncio. Estudos Histricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3,
p. 3-15, 1989, p. 6.
15
POLLAK, 1989, p. 7.
16
GREENBLATT, Stephen. O novo historicismo: ressonncia e encantamento. Estudos Histricos, Rio
de Janeiro, v. 4, n. 8, p. 244-261, 1991.

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ela expresso segunda. (...) Retornar s coisas mesmas retornar a este


mundo antes do conhecimento cujo conhecimento fala sempre, e com
respeito ao qual toda determinao cientfica abstrata, representativa e
dependente, como a geografia com relao paisagem onde aprendemos
primeiramente o que uma floresta, um campo, um rio.17

O autor afirma que o cognitivo depende de uma viso pessoal, ou seja, de uma
forma prpria de se posicionar no mundo. O inteligvel secundrio em relao a essa
experincia relacional despertada pelos sentidos.
As lembranas como fenmenos prprios da relao do homem com as coisas do
mundo fazem com que os estudantes ressignifiquem sua opinio sobre os museus, pois
percebem que os objetos esto muito mais prximos de suas vidas do que imaginavam.
Pelos aspectos relacionados vida dos estudantes, o docente faz um exerccio de
construo do conhecimento histrico, levantando problemas sobre a conjuntura,
dialogando com as temporalidades e ensinando histria de forma sensvel e emptica por
meio da exposio:

Pesquisador: Voc se lembra a primeira vez que visitou o MAO?


Professor Bento: Eu trabalhava, na rede particular, pouco depois de
inaugurar e ns fizemos um projeto de uso desse museu. Eu sempre
venho com aluno. J vim uma vez com minha me, e tal, mas a maioria
com estudantes do ensino mdio. Na primeira visita me surpreendeu o
fato de ter essa potencialidade virtual, esse tanto de objetos que a
gente trabalha em sala de aula, alguns eu nem conhecia, essa coisa do
mundo do trabalho, um tema importante e que atrai a ateno do
aluno, o tamanho e a dignidade com que os objetos so expostos, o
acervo.... tudo isso, at hoje me surpreende, cada vez eu venho
um aprendizado...principalmente quando venho com alunos adultos e
fico sabendo como alguma dessas peas funcionavam. interessante que
eles surpreendem o prprio educador do museu.. o cara as vezes est
falando do funcionamento de um objeto e o aluno fala no assim no!
desse e daquele outro jeito sempre surpreendente, Sempre um
aprendizado.
O barato da coisa esse, de trazer a memria, algo que ficou l
atrs, que normalmente j no esto mais nesse contexto, porqu
esto em uma vida urbana, e esse museu pr industrial, mas eles se
lembram daquilo, e trazem, parece que vm a tona em um momento
assim e desperta essas lembranas...18

Em sua experincia sensvel, o professor Bento se reconhece como sujeito


aprendente que se surpreende com a possibilidade de produzir conhecimento a partir da

17
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepo. So Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 6-7.
18
Entrevista em HD 1h35, data 11/04/2012, local: MAO. Grifos nosso.

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experincia de vida dos visitantes escolares. Os professores experienciam situaes


diversas, que so confrontadas com saberes adquiridos nos cursos de formao e com
saberes que lhes so propostos para ensinar.
Os museus so ambientes formativos que abrem possibilidade de partilhar
experincias. Por meio do uso pedaggico dos museus, os professores redimensionam sua
prtica, promovendo uma educao para as sensibilidades. Para Junia Sales Pereira a
educao como princpio formador e humanizador uma das finalidades dos museus,
apresentando-se como uma de suas faces mais desafiadoras e instigantes: o exerccio do
fazer educativo em Museus visto como oportunidade formativa porque rica de
experincias, contatos e trocas que proporcionam- quando significativos-situaes novas,
enriquecedoras e reinventivas. 19
O professor Bento destaca, tambm, a potencialidade virtual do museu, se
referindo aos objetos expostos, legendas, totens interativos e imagens que compem a
exposio do MAO. No decorrer das visitas, as relaes entre os estudantes e os objetos,
por meio das lembranas, prevalecem sobre o carter monumental do acervo. na relao
sensvel com o acervo que as lembranas vm tona, estabelecendo dilogo com a
exposio e produzindo novos sentidos para a experincia individual de cada estudante em
dilogo, no menos importante, com os contedos escolares.
Pelo Grfico 2 percebemos que a maior parte dos professores faz o agendamento
por meio do setor educativo, uma das formas de sistematizar a visita e conhecer
previamente o que o museu pode oferecer.

19
PEREIRA, Junia Sales. Escola e Museu: dilogos e prticas. Belo Horizonte: Secretaria de Estado da
Cultura/Superintendncia de Museus/CEFOR-PUC-Minas, 2007, p. 2.

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Grfico 2 - Agendamento de visitas por meio do servio educativo

Fonte: Dados do questionrio respondido por 26 professores.20


Ao contatarem o setor educativo do MAO, esses professores so convidados a
participar do Momento do Educador, quando tm a oportunidade de conhecer as aes
desenvolvidas pelo Museu e recebem o Guia do Educador. Com esta ao o setor
educativo pretende estabelecer parcerias com os docentes, na melhoria dos servios
educativos, e repensar as aes oferecidas para as escolas:

O acervo do MAO possui um amplo acervo que permite diversas


possibilidades de interpretao a partir da sua explorao. Para que todo
este potencial seja desenvolvido, foi criado o Momento do
Educador, um espao de interao e dilogo entre os educadores
interessados e a equipe do MAO. Nesta ocasio, so apresentadas as
aes educativas promovidas pelo Setor Educativo, realizada uma
atividade detonadora de reflexes sobre o Museu, seguida de uma visita
tcnica a um dos ofcios. Busca-se assim o aprimoramento destas
propostas educativas atravs da constante interao entre os educadores
e o museu, estabelecendo uma parceria cada vez mais slida. Concluindo
esta atividade cada educador recebe o Passe Livre do Educador (Museu
de Artes e Ofcios, online)

O Momento do Educador acontece na ltima semana do ms e na primeira segunda-


feira como requisito parcial para o agendamento de visitas orientadas ao MAO. Dos 26
professores da primeira etapa da pesquisa, 58% participaram do Momento do Educador antes
da realizao da visita.
Grfico 3 - Participao no Momento do Educador do MAO

20
BRAGA, 2014, p. 136.

70
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Fonte: Dados do questionrio respondido por 26 professores.21


O tempo desta ao limitado a uma hora e, geralmente, ocorre em horrio
noturno e, por isso, muitos docentes no conseguem participar do que poderia constituir-se
em espao para a troca de experincias com os educadores de museus. A condio docente
interdita participao neste processo, pois os professores raramente conseguem a liberao
de atividades para participar de formao que no seja ligada a uma poltica de Estado.

Pesquisador: O Momento do Educador voc j participou?


Professora Cora: No.
Pesquisador: Ainda no, n...
Professora Cora: No porque ano passado eu trabalhava noite e esses
eventos eram sempre noite. Ento, voc ser dispensado da escola
muito complicado. s vezes falta profissional, a gente no tem essa
dispensa e, alm disso, eu trabalhava todos os dias noite. 22
...........................................................................................................................
Pesquisador: E os cursos de formao so oferecidos aqui? J
participou?
Professora Ceclia: Sim.
Pesquisador: Ampliando horizontes?
Professora Ceclia: ... O que acontece o seguinte... Os debates que
acontecem fora do meu horrio de trabalho no tem jeito. Eu sou me,
tenho uma criana de quatro anos, ento, estou numa fase da minha vida
que tenho que privilegiar algumas coisas. Mas eu participei do 1
Congresso que eles fizeram de Museus, acho que em 2006...
Pesquisador: Isso, um Seminrio.
Professora Ceclia: Um Seminrio que foi excelente... Foi l que eu
descobri, por exemplo, o Museu dos Brinquedos... Eu no sabia que ele
existia, e foi o ano que foi inaugurado. Tinha uma pessoa l que me
falou, e a partir disto que eu fui.

21
BRAGA, 2014, p. 137.
22
Entrevista em HD 1h52, data 10/04/2012, local: MAO.

71
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As outras atividades... Eu fico com vontade, eu recebo os e-mails, mas eu


nunca vim. Eu venho nos encontros quando a gente marca uma visita...
o Momento do Educador.. No tinha Ampliando Horizontes no!23
....................................................................................................................
Pesquisador: Voc j participou de alguma formao oferecida pelo
museu?
Professora Clarice: Eu no consegui voltar por causa dos horrios, s
vezes eu estava trabalhando tarde. difcil quando voc est dobrando
pedir liberao pra sair pra formao.
Eu fiquei doida pra voltar numa Palestra do Francisco Regis que teve
aqui, mas no consegui porque estava trabalhando a noite.24

Com os trs relatos acima, percebemos uma dificuldade em participar das atividades
de formao oferecidas pelo MAO. As professoras Cora e Clarice trabalham em jornadas
duplas, uma caracterstica quase geral dos professores da rede pblica de ensino. Muitos
possuem dois cargos para contornar a situao atual de baixos salrios. A professora Ceclia
participou do primeiro seminrio ofertado pelo MAO quando o museu foi aberto em 2006,
mas, atualmente, como a formao acontece fora do horrio de trabalho e ela no consegue
liberao, em seus horrios de folga prefere estar com os filhos que considera prioridade
em sua vida.
A condio docente da ordem do humano e os professores devem ser entendidos
nessa perspectiva sociocultural. So sujeitos que constroem suas aes profissionais na
formao inicial e continuada, na experincia em sala de aula e nas relaes sociais e
familiares que mantm. Como mulher e me, a professora Ceclia afirma que est em uma
fase da vida em que prioriza a famlia. Considera que os processos formativos so muito
importantes, mas ainda que tenha vontade de participar, os horrios no so compatveis.
As professoras Clarice e Cora tm que cuidar de suas sobrevivncias e com os baixos
salrios que recebem, optam por dobrar o turno trabalhando em mais de uma escola.
Mesmo no conseguindo participar do Momento do Educador, estes docentes
conseguem agendar a visita por telefone ou e-mail. O agendamento abre a possibilidade de
o professor organizar as atividades que sero desenvolvidas e realizar a visita em parceria
com educadores que compem a equipe do MAO. H, ainda, a possibilidade de optar por

23
Entrevista em HD 1h18, data 20/04/2012, local: MAO.
24
Entrevista em HD 1h48, data 18/04/2012, local: MAO.

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uma das trilhas25 sugeridas no Guia do Educador, rompendo com a ideia de que necessrio
ver todo o museu em um em uma nica visita.
Como podemos observar no grfico 04, 42% dos professores possuem o Guia do
Educador e fazem uso do material para preparar sua visita ao MAO. O instrumento um
norteador e sugere algumas atividades que podem ser desenvolvidas no museu. Por meio
deste guia, os professores que optam por uma das trilhas so recebidos por um educador
que apresenta a exposio do museu:

As aulas prontas me deram ideias para adapt-las a realidade das


minhas turmas. A inteno era falar sobre os ofcios e depois compar-
los aos atuais. (Professora Laura)
Leio, mas sempre preparo a parte. (Professora Lucimar)
O material do MAO timo para sensibilizao do grupo. (Professora
Tereza)
Usei, e em todas as outras visitas irei usar e explor-lo mais.
(Professora Fran)

Grfico 4 - Em relao ao Guia do Educador

Fonte: Dados do questionrio respondido por 26 professores na primeira etapa da pesquisa.26


Segundo alguns professores entrevistados na primeira etapa da pesquisa, o Guia do
Educador um material para sensibilizao dos estudantes no momento que antecede as
visitas, alm de um excelente material para orientar a preparao de aulas desenvolvidas na
escola e os contedos provocados pela exposio do MAO, aps a visita. Alm do Guia, ao
participarem do Momento do Educador os professores recebem o Passe Livre do Educador, que
25
So sugeridas 6 trilhas: Trilha da minerao, Trilha do Gesto, Trilha Afro-brasileira, Trilha do
Comrcio, Trilha da Energia e Trilha das Artes.
26
BRAGA, 2014, p. 140.

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possibilita o acesso ao Museu, para que possam planejar atividades que sero realizadas
com os estudantes durante a visita. 27
Pereira & Carvalho afirmam que no h visibilidade plena nos museus e sim a
possibilidade de aprendizado da cultura e a sensibilizao histrica por meio do projeto
museal. Em processo, o museu forjado a partir de selees arbitradas de colees
produzindo visibilidade e invisibilidade. Desta forma preciso romper com:

(...) as iluses implicadas na suposio da visita total, a pretenso de


apreenso plena de significados histricos ou da aprendizagem da
histria como sucesso cadenciada, organizada e previsvel dos tempos.
Trata-se de uma aprendizagem de uso do museu para alm da notcia da
histria dos objetos que ele guarda, convidando ao exerccio de reflexo
sobre a histria do museu e do seu papel social, enfatizando suas
armadilhas de concepo e exposio museolgica, inclusive,
considerando seu jogo poltico no plano da cultura.28

O uso do Guia e a possibilidade de ir ao museu em qualquer horrio pode dar maior


objetividade visita de carter pedaggico, contando, claro, com o imprevisto em uma
situao relacional envolvendo professores, estudantes e educadores dos museus. De posse
do Guia do Educador, os professores podem selecionar uma trilha ou optar por outra forma
de visita mais livre a partir de um problema relacionado ao contedo disciplinar. Podem
tambm conhecer um pouco da histria do MAO, sua funo social, as atividades de
pesquisa e difuso realizadas pela instituio, dos usos que tinham o prdio antes de abrigar
a exposio e utilizar as proposies de atividades. E essa construo pode, tambm, ser
feita por meio da rede mundial de computadores com uma visita virtual. Segundo os
docentes entrevistados as atividades prvias mais comuns so:

Leitura de textos sobre o prprio Museu, catlogo e acervo. Organizao


do roteiro com objetivos da visita e instrumentos de registro durante e
aps a visita. (Professora Adlia)
Estudamos o que so ofcios, como so praticados e como eram
praticados, quais ofcios foram extintos e substitudos pela
industrializao e modernizao, qual a importncia dos ofcios.
(Professora Patrcia)

27
O agendamento de visitas orientadas ao MAO realizado com 1 ms de antecedncia de duas formas:
no "Momento do Educador" encontro realizado com professores na ltima semana do ms e na primeira
segunda-feira de cada ms, para o ms seguinte. O professor que comparece ao encontro tem a
possibilidade de agendar visitas e as vagas remanescentes do encontro, ficam disponveis para
agendamento na primeira segunda-feira. Museu de Artes e Ofcios, 2014, online.
28
PEREIRA, Junia Sales; CARVALHO, Marcus Vinicius Corra. Sentidos dos tempos na relao
museu/escola. Cadernos Cedes, Campinas, v. 30, n. 82, set./dez., 2010.p 390-391

74
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O professor se sentir mais a vontade para acompanhar os alunos pois j


ter conhecido o acervo e refletir sobre o aprendizado dos alunos no
sentido de relacionar a matria dada em sala com o contedo a ser
trabalhado no museu. (Professora Mayza)29

As atividades relatadas so feitas no pr-visita ainda nas escolas para aproximar os


estudantes do universo museal, destacando a importncia da visita e propondo relaes
com os contedos escolares. Esse tempo auxilia na compreenso de que possvel fazer
opes por objetos e cenrios no levantamento de problemas e questes de natureza
histrica rompendo com a ideia da visita total.
Ao que parece, a primeira aproximao dos docentes com o museu acontece de
maneira instrumental, ou seja, com finalidades de explorao pedaggica e histrica dos
temas que so desenvolvidos em sala de aula a partir do currculo. Esta aproximao
instrumental no significa que as dimenses ticas, estticas e polticas esto
desconsideradas.
A visita experiencial e, portanto, plena de sentidos que extrapolam o projeto
inicial do docente. Como disse o professor Bento, o MAO o lugar do inesperado e por
meio do encontro dos discentes com objetos que fazem parte de sua histria de vida so
tecidas narrativas inditas, em dilogo com a proposta dos educadores de museu.
A pretenso de objetividade pode ser comprovada por meio de projetos
socializados no MAO e os que foram disponibilizados pelos professores entrevistados para
esta pesquisa.
O professor Elair Sanches, por exemplo, desenvolveu o projeto Espao, Sociedade e
Ofcios, que foi socializado no MAO e publicado no Guia do Educador. Segundo o
professor, o projeto tinha como objetivos principais. 30

Propiciar aos alunos uma anlise do desenvolvimento das relaes


entre o homem e seus ofcios, permitindo-os identificar o contexto
histrico dos diversos ofcios percebidos durante as visitas e suas
diferentes condies de trabalho e lugares sociais, bem como analisar as
relaes sociais e as condies de trabalho no mundo contemporneo.
Desafiar e, paralelamente, facilitar aos alunos a compreenso de
diferentes conceitos que os ajudaro a construir uma prtica e uma
conscincia cidad realmente democrtica, ajudando-o a refletir sobre sua

29
BRAGA, 2014, p. 142.
30
BARBOSA, Neilia Marcelina. Olhares sobre a prtica docente no uso do Arte de Ofcios. (Relatrio
final de pesquisa de iniciao cientfica). Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Educao,
Belo Horizonte, 2010.

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prpria identidade e despertar sua curiosidade em relao a outras


culturas;
Aprimorar a percepo sobre a produo e utilizao de energia pelo
homem e a evoluo tecnolgica pelo e para ele (o homem);
Discutir o papel dos museus como elemento de preservao da
memria/histria;

Envolvendo outros docentes da escola em que leciona, o professor organizou suas


turmas em 5 grupos de estudos, divididos entre as reas de Sociologia, Histria, Lngua
Portuguesa, Geografia e Biologia. Cada grupo estudou um subtema escolhido por sorteio e
ficou sob orientao de um dos professores envolvidos no projeto. Organizados dessa
forma, os estudantes registram as informaes escritas no CIT (Caderno de Informaes
do Trabalho), juntamente com os registros em filmagens, fotografias e gravaes que foram
usadas na elaborao de um documentrio.
As estratgias de ao usadas pelo professor desde o envolvimento de outros
professores da escola at a organizao da turma em grupos foram baseadas em uma lgica
prpria da escola que prev finalidades das disciplinas escolares e prope projetos de forma
interdisciplinar.
O professor Elair tem 31 anos de magistrio e visitou um museu pela primeira vez
na dcada de 70, experincia que descreveu como impactante. Em sua carreira como
docente usa os espaos educativos da cidade como estratgia pedaggica e, no caso do
MAO, a visita foi precedida de atividades na Cidade Administrativa do Estado de Minas
Gerais e na Cidade dos Meninos, em Ribeiro das Neves.
Os objetivos sinalizados pelo professor seguem uma metodologia prpria do ensino
de histria, cujas competncias e habilidades so definidas em currculos estabelecidos pelo
Estado, e tensionadas nas salas de aula na relao com os estudantes. O professor conclui o
relato da experincia afirmando que:

Atravs desse projeto, o aluno pode reconhecer seu papel como cidado
ativo, sujeito da histria e responsvel pela preservao do patrimnio
material e imaterial da sociedade brasileira. O MAO, com seu rico e
diversificado acervo, mostra sociedade como o museu e, assim como a
escola, tem um papel educativo de conscientizao das novas geraes. A

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Cidade dos Meninos, por sua vez tambm cumpre essa funo educativa,
possibilitando a incluso social e a valorizao do seu humano. 31

O professor enfatiza a cidadania como um dos objetivos do projeto que


desenvolveu tendo o museu como espao de formao dos estudantes. Ressalta, ainda, a
importncia do MAO na conscientizao das novas geraes em relao ao patrimnio
material e imaterial da sociedade. No seu projeto existe uma preocupao de debater sobre
o papel dos museus na preservao da memria/histria.
Os museus operam com a memria e a histria. Ulpiano Bezerra de Menezes
afirma que a elaborao da memria d-se no presente para responder a demandas
colocadas pelo presente.32 O autor refere-se memria em litgio, construda socialmente
por determinados grupos e concretizada em nomes de ruas, monumentos, museus, livros
didticos e outras mdias.
Partindo das consideraes de Menezes, essa memria em litgio, que depende de
artifcios para sua manuteno, denominamos de memria elaborada. A memria
elaborada da ordem da ideologia: s vezes expressa o controle do Estado e dos grupos
dominantes sobre o passado, em um contexto no qual os usos do passado tornam-se cada
vez mais complexos. No se pode deixar de destacar que grupos silenciados por uma
memria oficial tambm possui estratgias de elaborao da memria. Nas palavras de
Michael Pollak:

O longo silencio sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento,


a resistncia que uma sociedade civil impotente ope ao excesso de
discursos oficiais. Ao mesmo tempo, ela transmite cuidadosamente as
lembranas dissidentes nas redes familiares e de amizades, esperando a
hora da verdade e da redistribuio de cartas polticas e ideolgicas.33

A memria elaborada interferente na memria social e individual. A memria


social um sistema organizado por meio das lembranas de grupos sociais, assegurando a
coeso e solidariedade do grupo. Para Ulpiano a memria social no espontnea,
precisando de ser reavivada, estando na ordem da vivncia e do mito. A memria
31
BARBOSA, Neilia Marcelina. Olhares sobre a prtica docente no uso do Arte de Ofcios. (Relatrio
final de pesquisa de iniciao cientfica). Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Educao,
Belo Horizonte, 2010.
32
MENEZES, Ulpiano Bezerra de. A exposio museolgica e o conhecimento histrico. In:
FIGUEIREDO, Betnia Gonalves; VIDAL, Diana Gonalves. Museu: Dos Gabinetes de Curiosidade a
Museologia Moderna. Belo Horizonte: Argumentum, 2005.
33
POLLAK, Michael. Memria, esquecimento e silncio. Estudos Histricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p.
3-15, 1989, p. 8.

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individual tambm sofre influncia da memria elaborada e compe a memria social.


Entretanto, a memria individual resistente, pois depende e reconstruda pela
experincia vivida.

VISITAS MEDIADAS AO MUSEU DE ARTES E OFCIOS

Outra discusso pertinente relao entre escolas e museus diz respeito ao


contedo da visita classicamente chamada de guiada. A visita guiada pode ser um momento
rico de enunciao da relao dos estudantes e professores com a cultura e com os
vestgios do museu e tambm com a sua proposta expositiva. Mas pode ser momento de
referendum de discursos unvocos e postos como definitivos, sem inquiries. Para o que nos
interessa, vale afirmar um exerccio profissional marcado pela noo de experincia, em que
dimenses subjetivas, objetivas e intersubjetivas so consideradas.
Do total de professores, 81% preferiu ser acompanhado por um educador de
museu na realizao de sua visita ao MAO. Este dado revela uma tendncia entre docentes
que fazem uso pedaggico dos museus. Ainda que tenham objetivos definidos a priori o
dilogo com os educadores do museu no dispensado.

Grfico 5 - Na visita ao MAO

Fonte: Dados do questionrio respondido por 26 professores.34


Na relao destes espaos formativos de educao com as escolas os termos visita
guiada, orientada e monitorada eram amplamente usados. Estes termos colocam o
visitante como receptor de informaes em uma lgica transmissiva na qual possvel

34
BRAGA, 2014, p. 150.

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obter o mximo de informaes em uma nica visita. Nas falas dos professores
recorrente o uso dessa concepo:

O educativo do museu muito eficiente e preparado. O horrio de


abertura do museu (8h15) facilita a visita no turno da manh. (Professora
Joana)
Destaco a qualidade do acervo e o acompanhamento dos monitores
que auxiliam informando alm do trabalho em sala (Professora
Anita)
O ambiente do museu desperta a curiosidade dos estudantes visitantes, o
acervo transporta o visitante no tempo, as orientaes dos guias
ampliam a possibilidade de explorao pedaggica da visita
(Professora Elisa).
Destaco o preparo do guia em todos os aspectos (contedo, crtica,
cidadania, didtica). (Professor Clsio)35

A palavra mediao est substituindo o termo visita guiada. Neste caso existe uma
diferena de concepo de educao adotada pelos museus. Os guias ou monitores, como
disseram os professores entrevistados, passam a ser vistos como educadores de museus,
uma vez que realizam uma atividade baseada nas relaes de ensino e aprendizagem. O
termo mediao amplia a viso de educao investindo em um processo dialgico e
reflexivo no qual o visitante estimulado a participar e trocar conhecimento e experincia.
Para Junia Sales Pereira:

Os museus tm na comunicao uma de suas finalidades e funes. Mas


eu falo de uma comunicao dialgica e reflexiva, concebida como
processo de mediao entre sujeitos, objetos e propostas. Por isso, eles
tambm so educadores, pois a comunicao que eles realizam pretende
possibilitar a construo de uma relao renovada dos sujeitos com os
registros de memria e o patrimnio, apresentando-se como instituio
portadora de uma postura tica, formativa e humanizadora. 36
A autora refere-se a processos educativos centrados no sujeito, rompendo com uma
exposio linear e dogmtica no investimento de atos mais reflexivos, uma vez que
professores e estudantes no chegam aos museus como vazios culturais. Os educadores
dos museus tambm tm seu modo de se posicionar no mundo a partir de suas dimenses
ticas, estticas e polticas. Eles prprios estabelecem uma relao sensvel com a exposio
que interferente na forma como constroem uma narrativa apresentada aos visitantes
escolares.

35
BRAGA, 2014, p. 152.
36
PEREIRA, Junia Sales. Escola e Museu: dilogos e prticas. Belo Horizonte: Secretaria de Estado da
Cultura/Superintendncia de Museus/CEFOR-PUC-Minas, 2007, p. 24.

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A coordenadora do setor educativo do MAO, Naila Mourth, afirma que:

Esta palavra mediao est a, mas est em construo. Eu acho muito


fcil a gente mudar o nome das coisas, mas difcil mudar a prtica que
d subsdio as nossas aes. Ento, tentando encontrar uma palavra
prxima daquilo que acreditamos, mas ainda distante daquilo que
efetivamente fazemos, com todas as crticas que existem a visita guiada,
visita orientada... O nosso desejo e nos estamos caminhando para chegar
a uma visita eminentemente mediada.37
A coordenadora expe o esforo da equipe na garantia de uma visita mediada que
dialogue com as experincias dos visitantes. No caso dos visitantes escolares necessrio
destacar que existe a mediao prvia com as intenes dos docentes, que chegam aos
museus com uma expectativa baseada em seus pressupostos educativos e, claro, em suas
concepes de cultura e sociedade. Como sujeitos de experincia, os docentes mobilizam
saberes em uma situao de visita que podero refletir na ao do educador de museus.
Os professores entrevistados falam da possibilidade de ampliar o uso pedaggico
do MAO a partir da relao com os educadores. A presena do educador entre os visitantes
escolares e a exposio em 81% dos casos significativo. Os docentes consideram que os
educadores possuem informaes que vo alm dos contedos escolares e, portanto, so
indispensveis no momento da visita.
Este foi o caso do educador que recebeu a professora Adlia e os estudantes do
curso de histria e construiu uma narrativa sobre o nicho expositivo em que est o fogo
lenha (Figura 01). A narrativa foi baseada em suas experincias das histrias que ouvia da
tia e da av. Quando recebeu os estudantes acompanhados da professora Adlia o
educador criou um personagem para apresentar o fogo. O educador criava uma
performance incorporando uma senhora idosa que usou aquele fogo e que, portanto,
conhecia todas as histrias relacionadas ao objeto.

Professora Adlia: Como eu via que ele saa muito do objeto... Saa
assim, metaforicamente, da eu falei... De onde ele tira? Ento, ele
tirava das histrias dele... Da av dele, das tias dele, e coisas que ele
inventava, e ele era muito famoso. Ele era um bom...
Pesquisador: Um bom educador...
Professora Adlia: ... [Risos]
A visita dele, diferente de outro monitor de histria, estudante de
histria... Que era muito preciso em relao s informaes

37
MOURTH, Naila. Palestra na II Jornada Formadora do MAO in: BARBOSA, Neilia Marcelina.
Olhares sobre a prtica docente no uso do Arte de Ofcios. (Relatrio final de pesquisa de iniciao
cientfica). Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Educao, Belo Horizonte, 2010.

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historiogrficas e tudo, mas que no causava empatia, principalmente pra


crianas.
............................................................................................................................
O menino que fazia a narrao histrica baseado na historiografia, e no
na fico, fazia uma narrativa boa tambm, mas o outro empolgava
muito.
Com diferentes pegadas para o acervo, pra discusso do que era a
proposta do museu...
Ele no desconsiderava o museu. A narrativa dele no era essa sala, mas
era do fogo.38

Para a docente, o educador baseava-se em suas histrias familiares criando uma


narrativa emptica, diferente de outro educador que se limitava a uma narrativa mais
ancorada na historiografia. A docente afirma que ele saa muito do objeto, ou seja, criava
uma narrativa que extrapolava as informaes de origem e uso da pea, inserindo sujeitos
que usaram o fogo. Os objetos expostos no MAO so extenses do corpo, expresses
materiais de uma sociedade e possuem significados que lhes so incorporados na relao
que estabelecem com os sujeitos.

Figura 01 - Fogo a lenha exposto no MAO. Acervo pessoal.

O educador usou de elementos fictcios para apresentar o objeto. Como afirmam


Junia Sales Pereira & Lana Mara de Castro:

(...) o objeto tambm pode provocar o saber narrativo, encenando o


exerccio dialgico de encontro de performances que no museu se
realizam ou podem realizar. As narrativas orais, ao ser aberta, mltipla,
sem enquadramento, exerce um poder de incitar os alunos s perguntas,

38
Entrevista gravada em HD, 2h18, data 03/04/2012, local: MAO.

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a se surpreenderem, a se espantarem, a suspeitarem da veracidade do


narrado e, portanto, a buscarem outros indcios (...)39

Os objetos esto em processo na relao subjetiva estabelecida pelos educadores e


visitantes ampliando as representaes possveis que so feitas em cada nicho expositivo. O
sentido no est encerrado na posio, legenda, iluminao ou outro artificio usado pela
museografia ao expor o objeto em uma cadeia narrativa. Os sentidos so construdos a
partir da experincia sensvel, encarnada, a convite das musas e seus cantos.40
So sentidos construdos por meio das lembranas armazenadas na memria e no
de forma mecnica e instrumental nas narrativas canonizadas. Dessa forma h
entrelaamentos entre as lembranas provocadas pela exposio e a narrativa histrica
conhecida por professores, estudantes e educadores de museus. Portanto, pode-se supor
que no museu tem-se uma narrativa hbrida constituda tambm por imaginaes, fices, e
outros fenmenos prprios da relao do homem com o mundo.
A exposio do museu pode ser espao para treinamento dos sentidos, tornando
possvel a liberdade de experincia na tomada da conscincia histrica. A professora Ceclia
relaciona a possibilidade de imaginar e de fruir em um espao potente como o MAO:

Professora Ceclia: Voc se lembra de uma novela... Eu no vou


lembrar o nome, mas tinha uma loja chamada Luxor sei l das
quantas... A menina escreveu no texto dela que isso aqui era
Luxor...
Ento, talvez a sua pergunta seja neste sentido... Como que o museu,
mas no histrias antigas porque eu no fiz esse trabalho, mas eu achei
muito interessante ela v aqui como aquela loja luxuosa, neste
espao aqui todo... Chamou muito minha ateno, e eu at mandei
para o pessoal do educativo... Eu falei... Nossa, quais os
sentimentos que vir aqui desperta nos meninos?
Aquilo que vai alm eu ainda no trabalhei... Eu sou professora de
histria, e eu tenho que trabalhar a imaginao...
Eu acho que sim, claro... A gente constri conhecimento assim.
claro que como historiadora a gente tem que de vez em quando puxar
tambm. Eu acho que se fizesse um trabalho com professor de literatura
ia ficar um negcio muito legal pra fluir dos dois lados. Ento, eu no
acho errado fluir a imaginao... Sem dvida nenhuma um aluno
de 6 ano est no tempo da imaginao. Tenho certeza que

39
PEREIRA, Junia Sales; SIMAN, L. M. C. Educadores em zonas de fronteira - Limiares da relao
museu-escola. In: NASCIMENTO, Silvania Souza; FERRETI, Carla Santiago. (Org.). Museu e Escola.
Anais. Belo Horizonte: Puc Minas/UFMG, 2009, v. 1, p. 11.
40
SCHEINER, Tereza Cristina. O museu como processo. Cadernos de Diretrizes Museolgicas 2:
mediao em museu: curadorias, exposies, ao educativa. Belo Horizonte: Secretaria de Estado da
Cultura de Minas Gerais, Superintendncia de Museus, 2008.

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desperta nos meninos essas coisas. Eu no vou tolhi isso


simplesmente no, tanto que essa menina que escreveu sobre
isso no interferia. Eu acho foi muito interessante a leitura que ela
fez.... Voc traz um aluno aqui pra conseguir enxergar a fonte histrica, e
o aluno traz um espao imaginativo da televiso pra c foi muito rico.
Eu no achei ruim...
Quando voc tira o aluno e o traz para um espao temtico desses... Eu
acho aqui uma magia de louco. Isso aqui em mim desperta uma
srie de sentimentos, quem sou eu pra tolhi este sentimentos...41

A despeito da organizao racional da exposio do museu, a professora Ceclia


entende que muitos sentimentos so despertados em uma situao de visita e que os
estudantes tm uma forma prpria de fruir que no est presa a lgica de aprendizagem
cognitiva. A estudante que acompanhava a professora comparou a arquitetura do MAO a
um cenrio de novela que estava sendo televisionada na poca da visita. Segundo a
professora, o conhecimento construdo assim: ainda que o contedo curricular seja o
foco preciso abrir espao para o encantamento, o deslumbramento e para a magia
causada pelas exposies museais. O olhar desperta dimenses invisveis da experincia que
esto alm da proposta curatorial. So dimenses relacionadas histria de vida, a
experincias adquiridas na famlia e na sociedade que so acionadas em contato visual com
a exposio.
Na concepo filosofica de Merleau-Ponty na relao com as coisas que o sujeito
reconhece sua existncia para, posteriormente, elaborar os pensamentos com base em sua
experincia vivida armazenada na memria. Pelo contato visual o sujeito elabora uma
percepo do que v. O movimento perceptivo intencional na busca de compreenso das
coisas no mundo, entretanto, o sujeito constri sentido intelectual sobre determinado
objeto quando o efetiva como experincia vivida. A experincia sensvel nos museus
acontece quando o sujeito est em contato visual com a exposio, submetido abertura
do mundo que prpria da sua existncia.42
No uso educativo dos museus, instituies que se justificam por sua materialidade,
o contato visual constri pontes com concepes previas dos visitantes e professores,
estimulando uma percepo criativa, inventiva, que no raro extrapola as intenes iniciais
da curadoria, dos educadores de museu e dos professores. A mediao faz parte de uma
concepo educativa em museus que considera primordialmente a experincia humana.

41
Entrevista em HD 1h18, data 20/04/2012, local: MAO. Grifos nosso.
42
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepo. So Paulo: Martins Fontes, 1999.

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momento de elucidao de vises de mundo, emergncia de relaes, troca de afetos,


sensibilidade em um processo de partilha que no dispensa a sistematizao, mas que no a
tenha como objetivo principal.

CONSIDERAES FINAIS

Consideramos que os professores so sujeitos apaixonados e apaixonantes e, por


isso, nossa metodologia privilegiou o sujeito em uma situao de experincia. A entrevista
caminhante foi uma oportunidade dos docentes refletirem sobre a prtica de uso
pedaggico de museus para o ensino de histria e de exporem suas concepes de
educao e sociedade.
Para Larrosa, o saber da experincia diferente das informaes, pois est
relacionado abertura e receptividade do sujeito. Resulta da capacidade do sujeito de
estar ex-posto, ou seja, de assumir toda a vulnerabilidade em uma situao que
desconhece, mas que por suas posies diante da educao e sociedade sente a necessidade
de arriscar. Para o autor:

Se a experincia o que nos acontece, e se o sujeito da experincia um


territrio de passagem, ento a experincia uma paixo. No se pode
captar a experincia a partir de uma lgica da ao, a partir de uma
reflexo do sujeito sobre si mesmo enquanto sujeito agente, a partir de
uma teoria das condies de possibilidade da ao, mas a partir de uma
lgica da paixo, uma reflexo do sujeito sobre si mesmo enquanto
sujeito passional.43

Os museus so ambientes de formao e seu uso proporciona reflexes sobre os


saberes e estratgias que sero mobilizadas, rompendo com limitaes conceituais e
prticas da educao. So ambientes que proporcionam experincias e trocas diferentes das
que acontecem em uma situao relacional em sala de aula.
Os professores de histria participantes dessa pesquisa confrontaram suas
memrias subjetivas com concepes de ensino e aprendizagem da histria. Em uma
situao de experincia sensvel, os docentes narraram as estratgias que usam para ensinar
e criaram significados para suas prticas. A entrevista por meio de questes geradoras foi

43
BONDA, Jorge Larossa. Notas sobre a experincia e o saber da experincia. Revista Brasileira de
Educao. Rio de Janeiro, n. 19, jan./abr., 2002, p. 24

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formativa. Em dilogo com o pesquisador, os professores refletiram sobre os saberes que


mobilizam para ensinar histria e os usos pedaggicos que fazem da exposio do MAO.

Recebido em: 11 de outubro de 2016


Aprovado em: 19 de maro de 2017

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REPRESENTAES DOS NEGROS NOS LIVROS DIDTICOS


DE HISTRIA DO ESPRITO SANTO (1964-1997)

REPRESENTATION OF THE BLACKS IN THE DIDATIC BOOKS


OF HISTORY IN THE ESPIRITO SANTO (1964-1997)

Leonardo Nascimento Bourguignon


Professor da rede estadual de ensino do estado do Gois - Brasil
Mestre em educao pela Universidade Federal do Esprito Santo
e-mail: leo.alice.marina@gmail.com

RESUMO

Neste artigo analisaremos o papel do livro didtico enquanto instrumento de propagao e


consolidao de representaes, mais especificamente das representaes acerca do negro nos livros
de histria regional. Com esse propsito, aps apresentarmos a permanncia de uma tendncia
preconceituosa e estereotipada nos livros didticos brasileiros nos sculos XIX e XX, optamos por
verificar se essas mesmas tendncias foram reiteradas nos livros escolares de histria do Esprito
Santo publicados no perodo de 1964 at 1997. Com o desenvolvimento da pesquisa, constatamos
que, apesar da permanncia de uma escrita eurocntrica, os livros produzidos por autores capixabas
apresentaram, em diversos momentos, o negro como agente ativo na histria local, mesmo antes da
existncia de uma legislao que assim os exigisse, e a frente inclusive de uma tendncia nacional.

Palavras-chave: negros; representaes; livros didticos; histria regional; Esprito Santo.

ABSTRACT

In this article we will concentrate on Textbook as an instrument of spreading and consolidating


representations, specifically the representations of black in regional history books. With this
purpose, after presenting the permanence of a biased and stereotyped tendency in the Brazilian
textbooks in the 19th and 20th centuries, we chose to verify if these same trends were reiterated in
the Esprito Santo history textbooks published between 1964 and 1997. With the development of
the research, we find that, despite the permanence of a Eurocentric writing, the books produced by
Capixabas authors presented at various moments the Negro as an active agent in local history, even
before the existence of legislation that required them, and even front of a national trend.

Keywords: black people; representations; textbooks; regional history; Esprito Santo

amalgamao muito difcil ser a liga de tanto metal heterogneo, como


brancos, mulatos, pretos livres e escravos, ndios etc. em um corpo
slido poltico.1

constatao de Jos Bonifcio de Andrada e Silva, os fundadores da Histria do


Brasil e de seu ensino, diante do compromisso de forjar uma identidade nacional,
construram no sculo XIX uma narrativa que privilegiava a ancestralidade portuguesa.

1
ANDRADA E SILVA, Jos Bonifcio de. Projetos para o Brasil (organizao de Miriam Dolhnikoff).
So Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 170.

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Naquela concepo foram os lusos os responsveis pela manuteno e integrao entre as


distintas, e distantes, provncias que formavam o imenso pas. Conseguiram ainda, afastar
os inimigos da unidade nacional que nas narrativas eram os outros povos europeus, os
quilombolas ou os povos indgenas.
Por vezes, a postura diante das diversas etnias, homogeneizadas e pejorativamente
denominadas ndios e negros, alterou-se para a evocao de aspectos pitorescos e
folclricos de suas culturas objetivando promover uma identificao e valorizao
nacional.2 Nesse sentido, apesar da intensa valorizao dos imigrantes europeus na
constituio do povo capixaba, foram a panela de barro e o congo, elementos das culturas
indgena e negra, os objetos adotados como smbolos do estado do Esprito Santo.
Outra atitude foi a homenagem a ndios e negros que de alguma forma contriburam para o
processo colonizador portugus, como podemos perceber no movimento indianista, no
qual o ndio tomado como modelo da nacionalidade era o que pertencera ao tronco tupi.
Sujeitos como Filipe Camaro, eleito heri por Francisco Adolfo de Varnhagen devido a
seus prstimos nos conflitos contra os holandeses e os povos indgenas locais que ficaram
do lado desses e outros invasores.
Mesmo com o advento do sculo XX, a instalao de um novo regime poltico e a
ascenso de autores como Joo Ribeiro e Capistrano de Abreu que inauguraram uma nova
fase da historiografia nacional visibilizando novos atores sociais na construo do pas, a
representao de ndios e negros na histria escolar e acadmica continuou inferiorizada,
afinal as representaes so sempre determinadas pelos interesses dos grupos que as
forjam.3 Desta forma, mesmo na histria renovada de Capistrano de Abreu e Joo
Ribeiro; que apontavam que nas suas feies e fisionomia prpria, o Brasil [...] deriva do
colono, do jesuta e do mameluco, da ao dos ndios e dos escravos negros; 4 uma suposta
hierarquia entre as raas, jamais foi negada.
Abordando a dcada de 1930, Schwartz concluiu que o predomnio do marxismo
sobre o pensamento historiogrfico brasileiro, que duraria at 1970, trouxe para o palco das
discusses nacionais problemas como classe e raa.5 Desta forma, trabalhos publicados na

2
WEHLING, Arno. Estado, Histria, Memria: Varnhagen e a construo da identidade nacional. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
3
CHARTIER, Roger. A histria cultural entre prticas e representaes. Lisboa: Difel, 1990, p. 17.
4
RIBEIRO, Joo. Histria do Brasil. Curso Superior. 9 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1920, p. 17.
5
SCHWARTZ, Stuart. A historiografia dos primeiros tempos do Brasil Moderno. Tendncias e desafios
das duas ltimas dcadas. Histria: Questes e Debates, n. 50, p. 175-216, 2009.

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dcada de 1950 como A pesquisa de esteretipos e valores nos compndios de Histria destinados ao
curso secundrio brasileiro, de Guy Holanda (1957); Preconceito racial e patriotismo em seis livros
didticos primrios, de Dante Moreira Leite (1950); Valores e esteretipos em livros de leitura, de
Bazzanella (1957) e o texto de Guiomar Ferreira de Mattos, O preconceito nos livros infantis
(1954) somados aos protestos das associaes negras, denunciaram que os livros escolares
apresentavam, de forma geral,

personagens negros em situao social inferior; superioridade da raa


branca em beleza e inteligncia; postura de desprezo e/ou piedade em
relao ao negro [...] figura do negro estava associada a funes
subalternas, escravido [...] justificada como uma necessidade
econmica.6

Na dcada de 1970, apesar das tentativas de cerceamento do regime militar, o


movimento de revisionismo, que marcou boa parte da produo historiogrfica acadmica
do perodo, alcanou a historiografia sobre o negro no Brasil, desdobrando-se
posteriormente nos livros didticos.7 Essa renovao historiogrfica, segundo Schwartz
provocada pelo advento em terras brasileiras da Histria Social e da Histria Econmica,
aumentou a produo de estudos que enfatizavam a resistncia e a rebeldia dos
escravizados.8
No campo das pesquisas sobre livros didticos, trabalhos como o de Circe
Bittencourt demonstraram que at a dcada de 1980 houve poucos estudos sobre esses
objetos.9 A renovao terico-metodolgica na produo historiogrfica, o aumento dos
cursos de ps-graduao em todo o pas e a implantao do Programa Nacional do Livro
Didtico (PNLD) alteraram esse cenrio, iniciando um movimento crescente na produo
acadmica acerca destes suportes pedaggicos. A partir de ento, os livros escolares
passaram a ser apontados como fonte histrica privilegiada para recuperao de parte da
cultura escolar, objeto mercadolgico e/ou instrumento de propagao e consolidao de

6
ROSEMBERG, Flvia; BAZILLI, Chirley; SILVA, Paulo Vincius Baptista da. Racismo em livros
didticos brasileiros e seu combate: uma reviso da literatura. Educao e Pesquisa, v. 29, n. 01, p.
134, 2003. Disponvel em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-
97022003000100010>. Acesso em: 08/11/2013.
7
OLIVEIRA, Almir Flix Batista de. A experincia do negro na historiografia didtica brasileira
(1840/2010). In: ENCONTRO NACIONAL DOS PESQUISADORES DO ENSINO DE HISTRIA:
Amrica Latina em perspectiva: culturas, memrias e saberes, IX, 2011, Florianpolis. Anais
Eletrnicos... Florianpolis: s.e., 2011, p. 02. CD-ROM.
8
SCHWARTZ, 2009.
9
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Produo didtica de Histria: trajetrias de pesquisas.
Revista de Histria, So Paulo, n. 164, p. 487-516, 2011.

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representaes. No entanto, apesar dessa ampliao, o estudo de Flvia Rosemberg,


Chirley Bazilli e Paulo Vincius Baptista da Silva ao analisar 114 pesquisas sobre livros
didticos publicados no Brasil, entre 1981 e 1998 sobre livros, constatou que apenas 04
referiam-se exclusivamente a questo do racismo nos livros escolares.10
Tambm analisando pesquisas sobre racismo em livros didticos Esmeralda Negro
identificou nos estudos produzidos at a dcada de 1980 uma prevalncia em denunciar
preconceitos, esteretipos e discriminaes explcitos e implcitos, concluindo que:

embora uma nova concepo da relao adulto/criana, que se


estabelece com a literatura, esteja surgindo, a imagem de criana
compondo o pblico desta produo ainda apresenta o trao cor branca.
[...] a discriminao racial no est presente somente no escamoteamento
da histria do povo negro, mas se faz presente na prpria definio deste
gnero de literatura, na medida em que o cotidiano e a experincia da
criana negra esto alijados do ato de criao dos personagens e do
enredo desta literatura.11

Vinte e trs anos aps a publicao daquele artigo, Oliveira concluiria que, apesar
dos avanos dos ltimos tempos, a historiografia didtica continua equivocada e omissa
em relao experincia negra brasileira. 12 E no caso da historiografia didtica regional
apresentada como um rinco marcado por permanncias, tradies e heranas, veiculando
uma narrativa factual, enfatizando nomes e personalidades e apresentando um passado
idealizado repleto de passagens romantizadas? 13 Que representaes acerca dos negros
localizaramos nos livros escolares de histria regional?
Objetivando contribuir para essa discusso optamos pelo estudo de um exemplo: a
histria escolar capixaba publicada entre os anos de 1964 a 1997. Recorte temporal
escolhido em funo de acreditarmos ser Brasil: edio especial para o Esprito Santo (1964)14 o
primeiro livro didtico lanado no Esprito Santo como parte de um modelo editorial que
abordava na mesma obra a histria regional e a histria do Brasil, e que perdurou por mais
de duas dcadas no mercado editorial capixaba. O outro limite 1997, ano de lanamento
de Nossa Histria, Nossa Gente, de Lea Brgida Rocha Alvarenga Rosa, Luiz Guilherme

10
ROSEMBER; BAZILLI; SILVA, 2003.
11
NEGRO, Esmeralda V. Preconceitos e discriminaes raciais em livros didticos. Cadernos de
Pesquisa, So Paulo, n. 65, p. 60, 1988.
12
OLIVEIRA, 2011, p. 06.
13
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Histria Regional e Transformao Social. In: SILVA, Marcos Antnio
da. Repblica em migalhas. So Paulo: Marco Zero, 1990.
14
MORAES, Joo Barbosa de. Brasil: edio especial para o Esprito Santo. So Paulo: Editora Brasil.
1964.

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Santos Neves e Renato Jos da Costa Pacheco, obra que consolidou importantes alteraes
na escrita didtica capixaba acerca do negro iniciadas pelos autores capixabas ainda na
dcada de 1970.
Alm dessas obras, neste artigo analisaremos: O Esprito Santo Assim,15 Esprito
Santo, esta a sua terra no Brasil,16 Geografia e Histria do Esprito Santo rea de Estudos Sociais,17
e Estado do Esprito Santo: estudos sociais,18 Gente, terra verde, cu azul Estudos Sociais,19 Esprito
Santo, Minha terra, minha gente20 e Meu Estado - Esprito Santo.21

MESMO CONTEXTO, DIFERENTES REPRESENTAES

Aps localizar 10.887 fontes em 52 acervos, Andr Luiz Pirola, produziu o mais
importante estudo sobre o livro didtico de histria no Esprito Santo publicado at o
momento.22 Conforme aquele pesquisador, na dcada de 1970 a histria escolar capixaba
passou por uma srie de transformaes.23 Alm das mudanas de ordem material, como a
passagem de um modelo de confeco artesanal para uma produo industrial, a narrativa
escolar naquele perodo consolidou uma representao de um presente desenvolvimentista
em contraste a um passado de atraso, simbolizado, entre outros, no mito da barreira verde.
A hiptese professava que, diante da descoberta de ouro no interior da ento Capitania do
Esprito Santo no final do sculo XVII, a Coroa portuguesa, pretendendo conter o
contrabando, criou uma nova capitania na regio a Capitania das Minas Gerais e
transformou o territrio capixaba, devido a sua localizao geogrfica, em uma barreira
natural. Para isso, proibiu a abertura de estradas para o interior e construiu ou reaparelhou
fortes no litoral. As medidas, ainda conforme aquela representao, lanaram a regio no

15
MORAES, Neida Lcia de. O Esprito Santo assim. s.e..: Rio de Janeiro, 1971.
16
MORAES, Neida Lcia de. Esprito Santo, esta a sua terra no Brasil. Lisa: So Paulo, 1973.
17
KILL, Miguel Arcanjo. Geografia e Histria do Esprito Santo. Vitria: s/ ed., 1974.
18
KILL, Miguel Arcanjo. Estado do Esprito Santo: estudos sociais. 5 ed. So Paulo: Saraiva, 1983.
19
MORAES, Ldia Maria; AROEIRA, Maria Luiza C.; CALDEIRA, Maria Jos. Gente, terra verde, cu
azul. Estudos Sociais Esprito Santo. So Paulo: tica, 1981.
20
NEVES, Luiz Guilherme Santos; PACHECO, Renato Jos da Costa; ROSA, Lea Brgida Rocha
Alvarenga. Esprito Santo: minha terra, minha gente. Histria regional para o 1 grau das escolas
estaduais. Vitria: SEDU, 1986.
21
BECHEPECHE, Morgana; ORDOEZ, Marlene; SALES, Geraldo. Coleo Meu Estado - Esprito
Santo. So Paulo: Scipione, 1997.
22
PIROLA, Andr Luiz B. O livro didtico no Esprito Santo e o Esprito Santo no livro didtico:
histria e representaes. 265 f. Dissertao (Mestrado em Educao) Programa de Ps Graduao em
Educao, Universidade Federal do Esprito Santo, Vitria, 2008.
23
PIROLA, 2008, p. 202.

90
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mais profundo isolamento e consequente pobreza. Apesar de estudos recentes


apresentarem dados que desautorizam essa interpretao,24 ela continua sendo reafirmada
mesmo nos livros mais recentes.25
A permanncia desse e outros temas, objetos, sujeitos e abordagens nos manuais
escolares, apesar da renovao da historiografia nas ltimas dcadas, pode ser
compreendida pelo fato de que:

As diferentes geraes de intelectuais que escreveram a Histria do


Esprito Santo, sendo aqui percebidas superpostas em uma mesma
temporalidade, embora em diferentes tempos cronolgicos, criavam para
si identidades. Estas eram consolidadas atravs de uma escrita da
Histria tambm com finalidade didtica, e no se anulavam ao se
sucederem, mas se adicionavam e se superpunham (...) [assim] as
representaes identitrias presentes nos atuais livros didticos de
Histria Regional do Esprito Santo, so tambm representaes
particulares do tempo histrico, snteses de debates anteriores
produzidas em um contexto especfico, mas que so interpretaes e
ideias acerca de um Esprito Santo e dos esprito-santenses.26

Entre esses intelectuais que escreveram a histria do Esprito Santo na segunda


metade do sculo XX encontramos Neida Lcia de Moraes e sua obra O Esprito Santo
Assim (1971). Apesar de no tratar-se especificamente de um livro didtico, nos
apropriamos da assertiva de Pirola de que no possvel compreendermos o Esprito Santo
representado no livro didtico a partir da dcada de 1970, sem tomarmos conhecimento
desta obra.27 Nos ltimos meses da gesto de Christiano Dias Lopes (1967-1971), o
governo estadual, pretendendo consolidar no plano literrio e histrico a representao
desenvolvimentista forjada durante aquele governo, publicou oficialmente O Esprito Santo
Assim.28 No que tange a questo do negro, ao apresentar a Insurreio de Queimado,
evento apontado pela historiografia capixaba como a maior revolta escrava ocorrida no

24
Entre esses estudos destacamos: BARROS, Niclio; RIBEIRO, Luiz Cludio; PROTTI, David. A
serventia da casa: a Alfndega do Porto de Vitria e os rumos do Esprito Santo. Vitria: Sindiex, 2008;
VITRIA SOBRINHO, Sueni. A Economia do Estanco e o Mercado Interno na Capitania do Esprito
Santo. Revista FACEVV, Vila Velha, v. 6, p. 111-130, 2011.
25
HEES, Regina; FRANCO, Sebastio Pimentel. Histria do Esprito Santo. So Paulo: Scipione, 2012,
p. 57.
26
LEITE, Juara Luzia. Prticas de leitura e escritas de si: livro didtico regional e identidade geracional.
In: OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de; STAMATTO, Maria Ins Sucupira. O livro didtico de
Histria: polticas educacionais, pesquisas e ensino. Natal: EDUFRN, 2007, p. 196.
27
PIROLA, 2008, p. 130-131.
28
PIROLA, 2008, p. 130-131

91
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Esprito Santo, a autora utilizou o mesmo tom romntico que marcaria toda a obra, como
podemos conferir no excerto a seguir:

Do ponto de vista militar, no foi mais que um motim realizado por


algumas dezenas de escravos e esmagado, em dois dias, por um peloto
de soldados. Mas, do ponto de vista histrico, deve ser considerada
mesmo uma insurreio pelo sentido de coragem na persecuo do ideal
de liberdade de uma raa qual se negara tudo qual se atribua plena
incapacidade para os sentimentos mais elevados. (...) O levante de
Queimado um documento de herosmo e de altivez de uma raa cada
na mais desgraada condio e que, do fundo do abismo a que fora
atirada gritava bem alto a nobreza que se lhe escondia na alma.29

Em 1973, Neida Lcia promove adaptaes em O Esprito Santo Assim (1971)


transformando-o no livro didtico, Esprito Santo, esta a sua terra no Brasil30. As semelhanas
entre as duas obras levaram Pirola a concluir que se trata de um texto nico,31 e nesse
sentido que a Insurreio de Queimado retratada, da mesma forma que na obra anterior,
como heroica exploso da nsia pela liberdade.32
Na narrativa de Neida Lcia nos deparamos com [...] um estado pintado com
cores fortes, em alguns casos, romntico e quixotesco, que, no obstante aponta para um
futuro desenvolvimentista.33 esse estado em Marcha para o desenvolvimento que tambm
localizamos nas obras Geografia e Histria do Esprito Santo rea de Estudos Sociais (1974) e
Estado do Esprito Santo: estudos sociais (1983), ambos de Miguel Arcanjo Kill, prolfico autor
capixaba com livros didticos de histria regional publicados durante trs dcadas.
Em Geografia e Histria do Esprito Santo, Kill acrescentou clssica ideia da barreira
verde outros entraves colonizao/civilizao do territrio capixaba, como os ndios, as
doenas e a natureza selvagem. E, diante daqueles desafios, apresentou os sujeitos
histricos que abrindo caminhos e clareiras nas matas, tornar-se-iam os maiores
povoadores do interior do Estado: os imigrantes europeus. 34 Nesta perspectiva, de um
Esprito Santo, fruto dos esforos do imigrante europeu, o papel do negro estava
claramente delineado e expresso no ttulo da nica seo em que o autor tratava

29
MORAES, 1971, p. 40
30
MORAES, 1973.
31
PIROLA, 2008, p. 154.
32
MORAES, 1973, p. 24.
33
MORAES, 1973, p. 188.
34
KILL, 1974, p. 57.

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especificamente dos africanos e seus descendentes: A contribuio dos escravos.35 Em outro de


seus livros, Estado do Esprito Santo (1983), Miguel Kill renomeia a seo como A boa ajuda
dos escravos.36 O negro ento era o auxiliar do projeto colonizador europeu, iniciado pelos
portugueses nos sculos XVI, XVII e XVIII e efetivado pelos imigrantes que
desembarcaram no Esprito Santo na segunda metade do sculo XIX.
Neste sentido, as duas obras de Kill, assim como a maior parte dos livros escolares
de Estudos Sociais daquele perodo, ao abordarem a contribuio dos africanos na
formao econmica, tnica e cultural do Esprito Santo, apresentam-na como
complemento empreitada europeia. Submisso reafirmada nas ilustraes em que
aparecem negros, todas elas relacionadas escravido. No mesmo sentido, a abolio
retratada como ao exclusiva da Princesa Isabel, 37 e que envolveu todos os intelectuais
capixabas.38
Mas, enquanto narrativa histrica, portanto portadora de mltiplas temporalidades,
inclusive as mais recentes, em Geografia e Histria do Esprito Santo, Kill, assim como Neida
Lcia de Moraes, relatava aos estudantes capixabas que: Houve tambm no Esprito
Santo, a exemplo de outros estados, muitas revoltas de escravos contra seus senhores. A
mais famosa delas foi a ocorrida no municpio da Serra, sob a denominao de Insurreio
de Queimado.39 Se a insero de revoltas escravas representou um fato inusitado nos
livros escolares publicados na dcada de 1970, 40 o mesmo no pode ser afirmado no campo
acadmico. Neste, uma intensa reviso historiogrfica impulsionava um aumento nas
pesquisas sobre o negro na histria do Brasil, especialmente de estudos relacionados a
revoltas e outras formas de resistncia dos escravizados. 41 No estado do Esprito Santo, a
federalizao da Universidade Estadual no incio da dcada de 1960 possibilitou que parte
da gerao de intelectuais da dcada de 70 e 80 do sculo XX, uma vez especializada,

35
KILL, 1974.
36
KILL, 1983
37
KILL, 1974.
38
MORAES, 1971, p. 42.
39
KILL, 1974, p. 65.
40
CONCEIO, M. T. A escrita didtica da histria do negro no Brasil na segunda metade do sculo
XX: Um olhar sobre a temtica na dcada de 1970. In: SIMPSIO NACIONAL DE HISTRIA, XXVI,
2011, So Paulo. Anais do XXVI ... So Paulo: ANPUH, 2011; ROSEMBERG; BAZILLI; SILVA, 2003.
41
OLIVEIRA, 2011; SCHWARTZ, 2009.

93
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superasse parte das representaes identitrias sobre as quais se fundaram as geraes


anteriores.42
Inseridos naquele contexto acadmico, Miguel Kill e Neida Lcia de Moraes
introduziram em seus livros didticos parte do que era discutido na academia e reivindicado
pelo movimento negro que, como demonstra o trabalho de Petrnio Domingues, desde a
dcada de 1930 sempre conseguiu uma importante capacidade de mobilizao em territrio
capixaba.43 Ao abordar a revolta escrava ocorrida na localidade de So Jos do Queimado,
em 1849, Kill, apesar de reproduzir conceitos pejorativos como a nfase na breve durao e
a desorganizao dos revoltosos,44 inseriu o tema reafirmando uma representao do
negro enquanto sujeito ativo e contestador. Confirmando, pois, a insero da Revolta de
Queimado nos livros escolares de histria do Esprito Santo fora obra de Neida Lcia de
Moraes e, a partir de ento, reiterada pelas geraes de intelectuais que produziram e
compartilharam uma escrita do Esprito Santo e dos esprito-santenses.
Situao distinta foi a que apreendemos nos livros escolares Brasil: edio especial para
o Esprito Santo (1964) do professor autor Joo Barbosa de Moraes destinada para o 3 ano
do antigo ensino primrio; Gente, terra verde, cu azul Estudos Sociais (1981)45 de autoria de
Maria de Moraes, Maria Lusa Aroeira e Maria Jos Caldeira e Meu Estado: Estudos Sociais -
Esprito Santo (1997), de Morgana Bechepeche, Marlene Ordoez e Geraldo Sales, obras
que, apesar da distncia temporal, suportam muitas caractersticas comuns. Partes de
colees nacionais,46 nos trs manuais as raras referncias aos africanos e seus descendentes
restringiram-se trs aspectos: escravido, Abolio e contribuies culturais. No caso da
escravido, no encontramos nas trs obras uma citao sequer sobre esse tema dentro da
histria do Esprito Santo, levando falsa ideia de que a mesma no ocorreu nesse Estado.
Ao tratarem da Abolio, Moraes, Aroeira e Caldeira a reduziram a uma ao exclusiva da
42
LEITE, Juara Luzia. Prticas de leitura e escritas de si: livro didtico regional e identidade geracional.
In: OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de; STAMATTO, Maria Ins Sucupira. O livro didtico de
Histria: polticas educacionais, pesquisas e ensino. Natal: EDUFRN, 2007. p. 194.
43
DOMINGUES, Petrnio. Movimento negro brasileiro: alguns apontamentos histricos. Tempo. [on-
line], Niteri, v. 12, n. 23, p. 104, 2007. Disponvel em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-
77042007000200007&script=sci_abstract&tlng=pt>. Acesso em: 05/05/2015.
44
KILL, 1974, p. 65; KILL, 1983, p. 44.
45
Pirola estima que a primeira edio foi publicada em 1980, mas o nico exemplar localizado em sua
pesquisa foi a 3 edio de 1981. PIROLA, 2008, p. 205.
46
Denominamos nacionais as colees publicadas por uma editora que em seus livros abordavam a
histria do Brasil e a do estado em que determinada obra fora publicada. o caso da Coleo Nosso
Brasil, lanada pela Bloch Editores em 1976 que era dirigida por Arnaldo Niskier e contava com autores
em diferentes estados como Acre, Amaznia, Distrito Federal, Gois, Mato Grosso, Minas Gerais,
Paraba, Esprito Santo, Paran, entre outros. PIROLA, 2008.

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Princesa Isabel47 a quem Joo Barbosa de Moraes acrescentaria outras pessoas bondosas
[que] passaram a se interessar pelos sofrimentos dos escravos negros e desejavam acabar
com a escravido,48 enquanto que Bechepeche, Ordoez e Sales sequer mencionam o
tema.49
Outro ponto comum nas trs obras a inexistncia de revoltas ou quaisquer outras
formas de resistncia escrava. Moraes ainda mais enftico ao justificar a opo portuguesa
pelo emprego da mo de obra africana em detrimento da indgena, devido a humildade e
docilidade do africano.

Os portugueses, precisando de braos para a lavoura, quiseram


aproveitar os indgenas. Estes porm, no se deixavam dominar
facilmente. Eram rebeldes, indolentes, pouco produziam. Os portugueses,
ento, passaram a empregar os negros africanos. Eram mais fortes,
resistentes [...] Alm disso, eram humildes, serviam sem protestar.50

Escrevendo sobre a histria didatizada do perodo da ditadura militar, Telles


identificou uma srie de tentativas do regime da poca em consolidar a representao de
um pas onde no havia racismo, com um passado harmonioso livre de revoltas ou outras
formas de conflitos raciais. 51 Este aspecto foi reiterado mesmo em manuais mais recentes
como em Meu Estado - Esprito Santo, publicado em 1997, portanto em pleno regime
democrtico. Consolidando o discurso de que vivemos em uma democracia racial, as obras
ressaltavam que cada povo trouxe a sua contribuio para a formao de nossos costumes,
nossa lngua e nossa cultura. 52 No entanto, ao apresentar as contribuies de ndios,
brancos e negros para formao tnica e cultural do Brasil, aquelas mesmas autoras
confirmam uma suposta superioridade branca quando, por exemplo, no captulo 6 - A
formao do nosso povo - aps apresentarem a participao de ndios, brancos portugueses,
negros africanos e imigrantes53 na constituio do povo capixaba, concluem a seo com
uma atividade de fixao onde todas as questes reportam-se unicamente as contribuies
dos imigrantes europeus.

47
MORAES; AROEIRA; CALDEIRA, 1981.
48
MORAES, 1964, p. 177.
49
BECHEPECHE; ORDOEZ; SALES, 1997.
50
MORAES, 1964, p. 176-177, grifo nosso.
51
TELLES, Edward. Racismo brasileira: uma nova perspectiva sociolgica. Rio de Janeiro: Relume
Dumar; Fundao Ford, 2003.
52
MORAES; AROEIRA; CALDEIRA, 1981, p. 53.
53
Notemos que as autoras distinguem as diferentes nacionalidades europeias, enquanto que homogeneza
os povos que habitavam o continente africano e americano.

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De forma semelhante, Bechepeche, Ordoez e Sales ao tratarem do folclore


capixaba informam que a banda do congo formada por grupos de homens e mulheres
que fazem um coro, cantando velhas e tradicionais toadas em que h referncias
escravido, Guerra do Paraguai, aos santos de devoo popular, s sereias do mar, ao
amor e morte.54

No bastasse a referncia esparsa a essa manifestao cultural enquanto herana negra, nas
duas imagens (Ilustraes 1 e 2) que ilustram o congo, os sujeitos retratados no
apresentam fentipo negro.

Ilustrao 2
Ilustrao 1 Fonte: BECHEPECHE; ORDOEZ;
Fonte: BECHEPECHE; ORDOEZ; SALES, SALES, 1997, p. 04.
1997, p. 42.
A hegemonia branca, que institura a escravido e seu trmino e que agradecera a
negros e ndios sua contribuio para construo econmica e cultural do Brasil,
manifesta ainda quando os autores traduzem povoamento como sinnimo de presena
europeia, afirmando que o povoamento do Esprito Santo foi muito lento nos trs
primeiros sculos de nossa histria.55 Essa situao reafirmada em todas as obras
analisadas neste artigo, seja quando tratam da colonizao do Esprito Santo - como as
terras do Estado comearam a ser exploradas e povoadas?56 - ou quando abordam o
presente. o que observamos no grfico que ilustra o crescimento da populao de
Vitria, capital do Esprito Santo, impresso em Meu Estado- Esprito Santo (Ilustrao 3). Na

54
BECHEPECHE; ORDOEZ; SALES, 1997, p. 42.
55
BECHEPECHE; ORDOEZ; SALES, 1997, p. 26.
56
MORAES; AROEIRA; CALDEIRA, 1981, p. 57.

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imagem, diversos sujeitos como idosos, crianas, operrios e mulheres representam a


populao de Vitria totalmente branca e sem nenhum negro.

Ilustrao 3
Fonte: BECHEPECHE; ORDOEZ; SALES, 1997, p.36.
Afinal, porque os livros, parte das colees nacionais, produziram representaes
do negro distintas das encontradas nos livros produzidos no mesmo perodo por autores
locais? Sugerimos que a resposta pode estar em um trecho de uma das obras didticas de
Luiz Guilherme Santos Neves, La Brgida Rocha de Alvarenga Rosa e Renato Jos Costa
Pacheco, onde se apresentam aos seus leitores como capixabas, ex-professores da
Universidade Federal do Esprito Santo, membros do Instituto Histrico e Geogrfico do
Esprito Santo (1997).57 Essas caractersticas, compartilhadas e reconhecidas por seus
pares e que legitimaram a escrita didtica de Neves, Rosa, Pacheco, Kill e Neida Lcia no
so encontradas entre os autores de Gente, terra verde, cu azul, Brasil: edio especial para o
Esprito Santo e Meu Estado - Esprito Santo. Entre aqueles autores, com exceo de Morgana
Bechepeche,58 nenhum deles capixaba, tampouco produziram outras obras didticas
sobre o Esprito Santo, e alm disso, no foram professores da UFES ou membros do

57
NEVES, Luiz Guilherme Santos; ROSA, La Brgida Rocha de Alvarenga; PACHECO, Renato Jos
Costa. Esprito Santo: Nossa histria, nossa gente. Vitria: Grafer, 1997, p. 85.
58
Observando outros livros da coleo, retratando a histria e geografia de Santa Catarina e Rio Grande
do Sul, percebemos que a estratgia adotada pela editora foi incentivar os paulistas Marlene Ordoez e
Geraldo Sales a reunirem-se a um autor local para produzirem esta obra.

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IHGES. Portanto, ao no fazerem parte das geraes de intelectuais que escreveram a


histria capixaba, no compartilharam as mesmas representaes que La Brgida Rosa,
Luiz Guilherme Santos Neves ou Renato Pacheco, autores com os quais nos deteremos a
seguir.

OUTRAS PERSPECTIVAS

Este livro no foi escrito para ser decorado pelos alunos. Os autores
tambm professores - se sentiro melancolicamente decepcionados, se
at simples frases desta obra forem decoradas por imposio dos
docentes.
O objetivo do texto de se prestar utilizao e leitura proveitosa,
inteligente e crtica. Que se preste discusso e formulao de questes
pelos alunos. Que leve os jovens a pensar, a concluir.59

Este trecho da Mensagem aos mestres no foi a nica das perspectivas didticas
diversas60 encontradas na obra Esprito Santo, Minha Terra, Minha Gente (1986), primeiro
livro didtico de La Brgida Rosa, Luiz Guilherme Santos Neves e Renato Pacheco.
Aqueles autores apoiados pela Secretaria Estadual de Educao adotaram uma escrita com
forte carter regionalista, o que para Pirola fazia parte de uma estratgia de rejeio s
imposies do regime militar.61 Importante ressaltarmos que a construo deste livro deu-
se no governo de Gerson Camata, um dos governadores eleitos em 1982 em um partido de
oposio ao governo militar, o PMDB, e que, no momento da publicao havia se
licenciado para concorrer a uma vaga de senador. Naquele contexto, superar e rejeitar tudo
que lembrasse o modelo educacional anterior era uma tendncia comum adotada nos
discursos e atitudes de alguns grupos polticos, dos intelectuais, das associaes de
professores e dos movimentos populares naquele momento de luta pela redemocratizao
do pas.
Foi nesse cenrio que o movimento negro, aps as tentativas do regime militar de
sufoc-lo na dcada de 1960 e da reestruturao e consolidao ocorrida no final da dcada
seguinte, baseado nas pesquisas que denunciavam o carter preconceituoso inscrito nos
livros didticos, exigiu uma reviso historiogrfica que inserisse os negros e suas vitrias em
uma narrativa oficial que at ento os havia folclorizado e/ou menosprezado. Assim, em

59
NEVES, ROSA, PACHECO, 1986, p. 53
60
PIROLA, 2008, p. 215.
61
PIROLA, 2008, p. 215

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1982, o Movimento Negro Unificado, que havia sido oficialmente criado em 1978,
reivindicou em seu Programa de Ao a luta pela introduo da Histria da frica e do
Negro no Brasil nos currculos escolares 62. No ano seguinte o deputado federal Abdias
Nascimento, um dos mais importantes nomes do movimento negro brasileiro, apresentou
o projeto de lei n. 1.332 que pretendia em seu artigo 8: Eliminar a utilizao de cartilhas
ou livros escolares que apresentem o negro de forma preconceituosa ou estereotipada.63
Em 1987 durante os trabalhos da Assembleia Constituinte as entidades negras
enviaram aos deputados uma agenda de reivindicaes exigindo, entre outros, a
Reformulao dos currculos escolares visando valorizao do papel do negro na histria
do Brasil e introduo de matrias como histria da frica e lnguas africanas. 64 Apesar
da no aprovao do projeto e da no incluso dessa proposta na Constituio de 1988, o
movimento negro acumulou significativas vitrias no campo educacional a partir de ento,
como a aprovao de leis que readequavam os currculos escolares e inseriam a histria da
frica e da cultura afro-brasileira em estados como a Bahia, 1989, e em cidades como Belo
Horizonte, 1990, e Vitria, 1998. 65 No nvel federal apesar de as Leis de diretrizes e Base
4.024/1961 e 5692/1971 j condenarem o preconceito de raa, a grande virada ocorreria
somente em 1995 quando, pressionado pelo Movimento Negro e pela Universidade, o
MEC instituiu a Avaliao pedaggica passando a excluir livros didticos inscritos no
PNLD que veiculassem preconceito de origem, raa, sexo, cor e idade. 66
Mesmo publicado em 1986, portanto, antes da aprovao de quaisquer das leis aqui
mencionadas, Esprito Santo, Minha Terra, Minha Gente introduziu em seus textos e imagens
uma representao do negro que a grande maioria dos livros didticos do perodo ainda
no havia incorporado. Se neste livro, e posteriormente em Nossa Histria, Nossa Gente,67
dos mesmos autores, persistiu a nfase ao trabalho escravo e aos castigos, esses temas
agora estavam acompanhados das diversas formas de resistncia protagonizadas pelos

62
DOMINGUES, 2007, p. 104.
63
NASCIMENTO, Abdias. Projeto de Lei n. 1.332 de 1983. Dirio do Congresso Nacional. Braslia:
Cmara dos Deputados, 15 de junho de 1983, p. 5162-5165.
64
HASENBALG, Carlos A. Entre o mito e os fatos: racismo e relaes raciais no Brasil, Dados - Revista
de Cincias Sociais, Rio de Janeiro, v. 38, n. 2, p. 360, 1995, apud PAULA, Cludia Regina ; LOPES,
Carla (org.) . O protagonismo negro: o Movimento Negro na luta por uma educao antirracista, Acervo,
Rio de Janeiro, v. 22, p. 111, 2009.
65
PAULA; LOPES, 2009.
66
BOULOS JNIOR, Alfredo. Imagens da frica, dos africanos e seus descendentes em colees de
didticos de Histria aprovadas no PNLD 2004. 204 f. Tese (Doutorado em Educao) Pontifcia
Universidade Catlica de So Paulo, So Paulo, 2008.
67
NEVES; ROSA; PACHECO, 1997.

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escravizados em territrio capixaba, indo desde as fugas, as revoltas, como a de Queimado,


e a formao de quilombos (termo destacado em fonte de formato negrito na obra de
1986).

Ilustrao 4
Fonte: NEVES, ROSA; PACHECO, 1986, p. 13.
Mesmo quando reiteram aspectos das representaes anteriormente consolidadas
como a contribuio cultural, Neves, Rosa e Pacheco ressaltam o papel do negro, como
verificamos nos textos e imagens que ilustram o folclore e as tradies capixabas
(Ilustrao 4). No caso especfico do livro de 1986, todas as imagens retratam
manifestaes culturais negras.
Outra inovao dessa obra o fato dos negros no estarem apenas relacionados a
eventos do passado.

Os negros vm tendo uma participao muito destacada na vida social,


econmica e cultural do Brasil, tendo marcado, tambm, a formao da
gente capixaba. Estes traos marcantes so notados, por exemplo, na
musicalidade do povo, no artesanato e culinria, nas letras e nas artes, no
campo da religiosidade, na existncia de elevado nmero de
descendentes e mestios que formam a nossa populao.68

Em Nossa Histria, Nossa Gente (1997), Neves, Rosa e Pacheco consolidaram essa
representao introduzida na obra anterior. Se os crticos apontariam que a obra remetia

68
NEVES, ROSA, PACHECO, 1986, p. 27.

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apenas ao excntrico, o folclrico, os agora afro-brasileiros69 destacam-se na msica e nas


festas, mas tambm:

Sua presena atuante pode ser registrada no magistrio, no servio


pblico, civil e militar, nos esportes, nas profisses liberais, nas chefias
do Poder Executivo e Judicirio, na Assembleia legislativa e nas Cmaras
Municipais.70

Desta forma, as representaes em que o negro auxiliava o projeto colonizador, o


negro coisificado, passam a conviver com o afro-brasileiro apresentado enquanto protagonista.
Nesse sentido, a lei [urea] foi o resultado de uma conquista demorada em que os negros,
com suas revoltas, suas fugas e quilombos, tiveram papel decisivo.71 O africano, antes
singular, substitudo pelo povo multitnico (Ilustrao 5), que nunca aceitou a escravido.

Ilustrao 5
Fonte: NEVES; ROSA; PACHECO, 1997, p. 35.
O fato ainda mais emblemtico se considerarmos que o livro Esprito Santo, Minha
Terra, Minha Gente foi publicado em 1986, portanto, antes dos trs episdios que Boulos
Junior aponta como cruciais na luta do movimento negro: a Constituio de 1988, as
comemoraes do Centenrio da Abolio em 1988, e a III Conferncia Mundial contra o
Racismo, Discriminao Racial, Xenofobia e Intolerncia em 2001. 72 Alm disso, a
narrativa inscrita em Esprito Santo, Minha Terra, Minha Gente destoa dos livros escolares
analisados por pesquisas publicadas nos anos 1980 e 1990 que denunciaram um quadro de
depreciao sistemtica de personagens negros, associada a uma valorizao sistemtica de
personagens brancos.73 Esses dados nos permitem concluir que, apesar de perpetuar uma
narrativa eurocntrica a historiografia didtica capixaba produzida por autores locais
incorporou as reivindicaes do movimento negro e a renovao historiogrfica, no que

69
A utilizao desse termo pela primeira vez em uma obra de histria do Esprito Santo simboliza essa
nova interpretao e a fora do movimento negro
70
NEVES; ROSA; PACHECO, 1997, p. 37.
71
NEVES; ROSA; PACHECO, 1997, p. 36.
72
BOULOS JUNIOR, 2008.
73
ROSEMBERG; BAZILLI; SILVA, 2003, p. 136.

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tange a questo negra, de forma muito mais intensa, do que as obras de histria do Brasil,
ou mesmo as obras de histria do Esprito Santo escrita por autores de outros estados.

CONSIDERAES FINAIS

Produzimos esta pesquisa objetivando verificarmos os tipos de representaes do


negro foram construdas nos livros didticos de histria publicados no perodo da ditadura
militar e nos primeiros, aproximadamente, quinze anos aps a redemocratizao do pas.
Em nossa hiptese inicial apostvamos na apurao de dois modelos distintos,
determinados, sobretudo, por aqueles dois contextos polticos. No entanto, medida que
avanamos na anlise das obras selecionadas, comeamos a delinear outra diviso que no
parecia tomar conhecimento do regime poltico que vigorava no momento em que foram
publicadas. De um lado, estavam os livros didticos escritos por autores capixabas,
professores da UFES e membros do IHGES - Miguel Kill, Neida Lcia de Moraes, La
Brgida Rosa, Luiz Guilherme Santos Neves e Renato Pacheco -, do outro, os livros
didticos produzidos por autores de outros estados e parte de colees nacionais.
Neida Lcia de Moraes inaugurou em O Esprito Santo Assim (1971) uma
representao do Esprito Santo enquanto um Estado que, a despeito de um passado
marcado pelo atraso e isolamento, caminhava a passos largos em direo ao
desenvolvimento, representao que influenciou a produo didtica capixaba nas prximas
quatro dcadas. Na questo especfica dos africanos e seus descendentes, Moraes iniciou
tambm uma escrita que acabaria ditando o modelo de narrativa sobre esses indivduos.
Em tom panfletrio, a autora introduzia na histria escolar capixaba a Insurreio de
Queimado, apontada e reconhecida pela historiografia capixaba como a maior revolta negra
da histria do Esprito Santo. A partir de ento, mesmo que no houvesse uma legislao
que assim os exigisse, os autores locais foram recondicionando e superpondo
representaes do negro nos livros escolares capixabas que iam desde o clssico auxiliar ao
projeto colonizador portugus at o inovador rebelde.
Na dcada de 1980, o livro Esprito Santo, Minha terra, minha gente (1986), de Rosa,
Neves e Pacheco; mesmo mantendo uma perspectiva eurocntrica; consolidou e
aprofundou a representao construda por Neida Lcia Moraes e Miguel Kill. Em Esprito
Santo, Minha terra, minha gente os africanos e seus descendentes, alm de contestadores,

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possuam uma histria anterior a chegada ao Brasil e posterior abolio, inclusive no


presente, fato inusitado nos livros publicados no mesmo perodo.74
Por outro lado, os livros escritos por autores de outros estados, apresentavam uma
narrativa distinta daquela apresentada pelos autores locais. Naquelas obras, inclusive em
Coleo Meu Estado - Esprito Santo, publicada em 1997, o negro era retratado apenas em
eventos restritos ao passado distante e exercendo papis subalternos, enquanto que as
revoltas ou qualquer outra forma de resistncia negra, sequer eram abordadas.75
Para Juara Luzia Leite, as permanncias marcam a historiografia do Esprito Santo
escrita por diferentes geraes de intelectuais que inseriram novas interpretaes sem negar
as anteriores, havendo um condensamento e sobreposio de representaes, sendo as
permanncias, e no as rupturas, que ditaram o tom dessa escrita. 76 No caso especfico do
negro, essa caracterstica reiterou e perpetuou uma representao inovadora, especialmente
se comparada com o que aconteceu, no mesmo perodo, a nvel nacional.

Recebido em: 11 de novembro de 2016


Aprovado em: 24 de maio de 2017

74
NEVES; PACHECO; ROSA, 1986.
75
MORAES, 1964.
76
LEITE, 2007.

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ENSINO DE HISTRIA, ESPAOS E CULTURA POLTICA


BANDEIRANTE: JOS SCARAMELI E A ESCRITA DE LIVROS
ESCOLARES DE HISTRIA PARA CRIANAS1

HISTORY OF TEACHING, CULTURE AND SPACES BANDEIRANTE


POLITICS: JOS SCARAMELLI AND WRITING SCHOOL BOOKS OF
HISTORY FOR CHILDREN

Magno Francisco de Jesus Santos


Professor de Histria da Universidade Federal do Rio Grande do Norte - Brasil
Doutor em Histria pela Universidade Federal Fluminense
e-mail: magnohistoria@gmail.com

RESUMO

Este artigo tem como escopo a discusso sobre a escrita da histria para crianas no Brasil, a partir
da experincia de Scarameli. Intelectual defensor dos ideais do movimento escolanovista, entre
1926 e 1934, Scarameli produziu um nmero significativo de livros escolares de Histria e de Moral
e Cvica. Neste artigo, nos propomos a discutir como tais livros expressaram as estratgias de
difuso de uma cultura poltica bandeirante e a construo de representaes acerca dos estados
brasileiros com um protagonismo paulista.

Palavras-chave: livros escolares; escrita da histria; ensino de histria, cultura poltica bandeirante.

ABSTRACT

This article is scope to discuss the writing of history to children in Brazil, from Scarameli
experience. Intellectual proponent of the ideals of School movement, between 1926 and 1934,
Scarameli produced a significant number of school history books and Moral and Civic. In this
article, we propose to discuss how such books expressed the dissemination strategies of a pioneer
political culture and the construction of representations about the Brazilian states of So Paulo with
a role.

Keywords: school books; writing of history; teaching history, bandeirante political culture.

INTRODUO

As crianas no tm a noo do passado, nem a de pases, viagens,


descobrimentos, etc. Poder-se-ia dizer, em linguagem vulgar, que o
ensino no encontra o ponto de apoio no esprito infantil. uma velha

1
Esse artigo apresenta os resultados parciais do Projeto de Pesquisa Lies de Histria Ptria: livros
escolares e ensino de Histria para crianas na experincia de Jos Scarameli (1932), contemplado pelo
Edital N 03/2016 de Apoio Financeiro a Novos Pesquisadores. A ideia de trabalhar com essa temtica
surgiu a partir das discusses na disciplina Histria do Ensino de Histria, na graduao em Histria da
UFRN, em 2016/1. Agradeo aos discentes da turma pelas provocaes e inspirao.

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lei pedaggica a que manda partir do conhecido para o desconhecido,


mas em tais crianas, tudo desconhecido.2

No prefcio do livro Pequenas Lies Ptria para a Infncia nas Escolas, Jos
Scarameli apresenta um dilema que perpassa pela questo do ensino da disciplina. Ele no
somente problematiza sobre qual seria a idade ideal para introduzir o ensino de histria na
formao das crianas, como tambm aponta para outra questo de grande relevncia:
como ensinar histria para crianas. Certamente, esse desafio proposto pelo intelectual
paulista nos idos de 1926, expressa uma inquietao que atravessou o tempo, tornando-se
ponto de confluncia entre as diferentes reformas curriculares no pas ao longo dos
decnios subsequentes. Do mesmo modo, apontou para uma discusso relevante acerca do
papel atribudo ao ensino de histria no processo de construo e reconstruo de
identidades, tendo como foco o ensino para crianas.
Esse processo ocorria em duas frentes. De um lado, a escrita da histria
procurava fortalecer a ideia de unidade nacional, com a construo dos mitos de origem, de
um passado de unio e luta em defesa de interesses comuns. Como os ttulos de suas obras
de teor histrico j elucidavam, Scarameli defendia a escrita de uma histria ptria. O
Brasil, na condio de nao, era o grande protagonista da narrativa infantil. Por outro lado,
essa histria ptria voltada para crianas partia de um lugar, enaltecia o passado nacional a
partir de um palco especfico, com sujeitos que deveriam ser tidos como heris. Trata-se de
uma leitura paulista acerca do passado brasileiro. O paulista emerge como o protagonista
na histria do Brasil, ora aventurando-se na conquista dos sertes, ora assumindo o
controle da poltica.
Com isso, percebe-se uma construo do nacional entendido a partir de um
horizonte paulista. A Federao interpretada pelo vis de uma unidade especfica, da
experincia histrica das elites paulistas e de seus mitos fundadores. Desse modo, os livros
escolares podem ser vislumbrados como um instrumento de construo e difuso de uma
cultura poltica especfica, na qual intelectuais e polticos paulistas dos anos 20 e 30
tentavam construir uma leitura comum do passado e forjar um projeto comum de futuro,
ou no qual So Paulo emergia como o lcus da vanguarda.

2
SACARAMELI, Jos. Pequenas Lies de Histria Ptria para a infncia das escolas. 31 ed. So
Paulo: Saraiva, 1951, p. 7.

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Os usos do conceito de cultura poltica tm contribudo para a renovao das


pesquisas histricas, especialmente ao propiciar o retorno da histria poltica em uma
perspectiva mais complexa e plural. Como bem salienta Berstein, a cultura poltica implica
em uma leitura comum e normativa do passado histrico com conotao positiva ou
negativa (...) e supre ao mesmo tempo uma leitura comum do passado e uma projeo no
futuro vivida em conjunto.3 De acordo com ngela Gomes, uma cultura poltica tambm
inclui na cultura histrica o balano historiogrfico e a trajetria de conceito, de tratamento
da literatura, ou seja, so representaes construdas por grupos sociais de dimenses
variadas sobre sua prpria histria.4
Neste sentido, a historiografia escolar pode ser vista como um importante
instrumento de difuso dessas leituras comuns do passado e projetos de futuro. Sem
reforar a antiga discusso acerca do papel dos livros escolares como como instrumento
da antieducao, da dominao ideolgica ou do cancelamento da autonomia do
professor,5 a compreenso da historiografia escolar a partir da concepo de cultura
poltica pode elucidar uma leitura na qual se torne possvel entender questes que
extrapolem o universo da escrita da histria e dos embates educacionais.6
Essa concepo refora a relevncia de compreender os livros escolares como
fonte histrica. So registros de uma poca, referendados por diferentes sujeitos imersos na
questo do ensino, como educadores, historiadores, editores e polticos. Esses agentes
ocultos no processo de construo e difuso de culturas polticas, so de fundamental
importncia para a constituio dos saberes escolares e a definio dos parmetros de
escrita. Os livros concatenam os interesses imersos de uma poltica pblica da educao e
delineiam uma cultura poltica.
Diante disso, esse artigo tem como escopo compreender a escrita da histria
para crianas no perodo entre o final dos anos 20 e o incio dos anos 30 do sculo XX, a
partir da experincia de escrita de Scarameli. Trata-se de um perodo marcado por fortes
transformaes sociais, polticas e econmicas no Brasil, bem como delimita a emergncia

3
BERSTEIN, Serge. A cultura poltica. In: RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean-Franois. Para uma
Histria Cultural. Lisboa: Estampa, 1998, p. 351.
4
GOMES, ngela de Castro. Cultura poltica e cultura histrica no Estado Novo. In: SOIHET, Rachel;
GONTIJO, Rebeca; GOMES, ngela de Castro. Culturas Polticas e leituras do passado: historiografia e
ensino de Histria. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2007, p. 50.
5
MUNAKATA, Kazumi. O livro didtico como indcio da cultura escolar. Revista Histria da Educao,
Porto Alegre, v. 20, n. 50, 2016, p. 121.
6
RMOND, Ren. Por uma histria poltica. 2 ed. Trad. Dora Rocha. Rio de Janeiro: FGV, 2003, p. 13.

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de um dos mais importantes movimentos intelectuais da educao brasileira, com o


Manifesto dos Pioneiros da Educao Nova.7 A discusso tem como lastro documental os
livros escolares de histria produzidos por Scarameli, Pequenas Lies de histria ptria
para a infncia nas escolas8 e Lies dehistria do Brasil para o primeiro ano do curso
primrio.9 So as duas principais obras de teor histrico produzidas pelo autor, voltadas
para os primeiros contatos da criana com os contedos histricos. Essas fontes foram
cotejadas pelas ideias apresentadas em outras obras do autor, como Pequena Seleta de
leitura moraes e cvicas10 e Escola Nova Brasileira. 11 Certamente, o conjunto
bibliogrfico do autor elucida acerca do pensar a construo da narrativa em articulao
com as novas ideias pedaggicas.
Por meio dessas obras se torna possvel problematizar as estratgias de escrita da
histria para crianas no Brasil ao longo da primeira metade do sculo XX, alm de
reforar a necessidade de entendimento dos livros escolares como instrumento na difuso
de culturas polticas e alicerce para a edificao de culturas escolares. Nos livros escolares
de histria so perceptveis os sinais da confluncia entre uma renovao da pesquisa
histrica e a influncia dos embates pedaggicos. Neste sentido, a histria ensinada tornou-
se uma zona propulsora de novos olhares investigativos, margeados pelas inquietaes
oriundas tanto do campo pedaggico como do histrico. Por esse motivo, os mesmos
apresentam um papel relevante para as discusses acerca da histria do ensino de histria
no Brasil.12 Por esse mbito, os livros escolares mesmo que por si s no possibilitem a
compreenso das prticas de ensino, podem contribuir para uma leitura sobre os diferentes
projetos atinentes educao.13

7
Jos Scarameli foi um precursor e mostrou-se um entusiasta das novas ideias difundidas pelos
intelectuais vinculados ao movimento escolanovista. Um indcio consistente acerca desta acepo a
publicao da srie de livros Escola Nova Brasileira, na qual discutiu questes como o esboo do sistema
(Volume 1), as lies ativas (2), a transio entre a escola tradicional e a nova (3), a didtica (4) e os
testes (5). Cf. SILVA, Dbora Alfaro So Martinho da. Jos Scarameli: um bandeirante do ensino
paulista na implementao e divulgao de uma didtica e metodologia da educao nova para a infncia
brasileira. So Carlos-SP, 226f. Dissertao (Mestrado em Educao), UFSCar, 2013, p. 162.
8
SCARAMELI, 1951 [1926].
9
SCARAMELI, Jos. Lies de histria do Brasil para o primeiro ano do curso primrio. 5 ed. So
Paulo: Brasileira, 1934.
10
SCARAMELI, Jos. Pequena Seleta de leitura Moraes e Cvicas. So Paulo: Zenith, 1926.
11
SCARAMELI, Jos. Escola Nova Brasileira: testes. So Paulo: Zenith, 1931.
12
MUNAKATA, 2016, p. 124.
13
ZAMBONI, Ernesta. Panorama das pesquisas no ensino de Histria. Saeculum: revista de Histria,
Joo Pessoa, n. 6/7, 2001, p. 106.

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As pesquisas acerca do ensino de histria no Brasil emergiram no contexto do


processo de redemocratizao, nos idos da dcada de 80 do sculo XX. Para Circe
Bittencourt, a emergncia do campo de pesquisa atinente ao ensino no se constituiu um
fenmeno exclusivo do Brasil, pois ocorria em outros pases indicando um momento de
tenses e disputas em torno da Histria escolar.14 A emergncia das pesquisas no mbito
do ensino de histria no Brasil resultou na constituio de uma rea de estudos complexa,
polissmica, com uma ampla variedade de enfoques e permeada de lacunas. Para Itamar
Freitas, na verdade, no tanto o pluralismo, mas o carter fragmentrio das iniciativas de
investigao em termos espaciais, temporais e temticos. 15
Diante disso, a proposta desse artigo elucida a compreenso da escrita da histria
em um perodo ainda pouco estudado, bem como tematiza sobre uma questo relevante de
entender como o ensino de histria para crianas foi pensado pelos intelectuais da primeira
metade do sculo XX. Para isso, veremos como Scarameli esteve envolvido com as
questes da educao brasileira e contribuiu para atender as demandas das polticas
pblicas de educao.

JOS SCARAMELI E O ENSINO DE HISTRIA PTRIA

Jos Scarameli pode ser visto como um dos principais nomes da educao paulista
na primeira metade do sculo XX.16 Sua trajetria marcada pela formao na Escola
Normal Secundria de So Paulo, entre 1914 e 1917, pela forte atuao na defesa da

14
BITTENCOURT, Circe Fernandes. Abordagens histricas sobre a histria escolar. Educao e
Realidade, Porto Alegre, v. 36, n. 1, 2011, p. 89.
15
FREITAS, Itamar. Histria do Ensino de Histria no Brasil. Vol. 2. So Cristvo-SE: EDUFS, 2010,
p. 8.
16
Jos Scarameli nasceu no ano de 1894, na cidade de Serra Negra, em So Paulo e faleceu em 1955. Era
filho de Egydio Scarameli e Nelly Scarameli. Em sua trajetria, alm das importantes obras publicadas
em defesa da implantao das ideias escolanovista no Brasil, ele tambm participou de algumas
misses de intelectuais paulistas na difuso das reformas educacionais no Brasil, com uma atuao em
Pernambuco (1929-1931) e no interior paulista. Dbora Silva entende esse movimento das misses de
tcnicos paulistas para outros estados (Paran, Santa Catarina, Gois, Pernambuco, Piau e Sergipe) e
pases como bandeirismo. Neste artigo o termo bandeirante utilizado em outra acepo, a da busca por
um passado protagonizado pelos desbravadores paulistas, ou seja, seria uma cultura histrica bandeirante
produzida por intelectuais e polticos paulistas dos anos 20 e 30. Cf. SILVA, Dbora Alfaro So Martinho
da. Jos Scarameli: um bandeirante do ensino paulista na implementao e divulgao de uma didtica e
metodologia da educao nova para a infncia brasileira. So Carlos-SP, 226f. Dissertao (Mestrado em
Educao), UFSCar, 2013, p. 23.

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renovao do ensino17 e por uma vasta produo bibliogrfica, voltada para a


sistematizao das ideias da escola nova e por livros escolares.
No tocante produo de livros escolares interessante perceber que os mesmos
eram voltados para um pblico especfico: as crianas. Scarameli tornou-se um exmio
escritor de textos didticos para o mundo infantil, para um pblico que ele mesmo
reconhecia que a tudo desconhecia. Ressaltam-se entre essas obras, os textos com uma
conotao voltada para a formao cidad, com um teor histrico e cvico.
A histria emergia com um desfile de heris que deveriam ser vistos como
exemplos dignos de serem seguidos. Talvez, por esse motivo, ele tenha intitulado seus dois
principais livros de histria de Lies de histria ptria. A histria era o instrumento de
construo do patriotismo, de fortalecimento do civismo. Alm disso, era tambm uma
lio, uma preleo acerca de como o cidado deveria comportar-se, realizar as suas
escolhas. Neste sentido, perceptvel uma confluncia de objetivos entre os livros de
histria e dos de moral e cvica. Em ambos os casos, destacava-se o propsito formador do
patriotismo.
Possivelmente, a inspirao fundante desses elementos de uma histria ptria
tenha emergido em suas aulas na Escola Normal da Praa. 18 No perodo de sua formao, a
cadeira de histria era ocupada pelo Professor Djalma Forja, enquanto as cadeiras de
Pedagogia e Educao Cvica estavam com os professores Manuel Borges e Antnio
Sampaio Dria.19 De acordo com Dbora Silva, foi ainda na condio de aluno da Escola
Normal que Scarameli iniciou suas atividades como escritor. Essa publicao, intitulada A
beira do tmulo, teria sido apresentada na Revista O Estmulo, no dia 12 de setembro
de 1914, ou seja, ainda no primeiro ano de estudos. Trata-se de um peridico escolar,
voltado para a divulgao de textos dos alunos. O primeiro artigo produzido por Scarameli
foi um necrolgio em homenagem ao lente da cadeira de Histria e ex-diretor da Escola
Normal de So Paulo, Jos Estcio Corra de S e Benevides. 20 Nesse texto o ento

17
ARCE, Alessandra; BALDAN, Merilin. Coleo Escola Nova Brasileira de Jos Scaramelli (1931):
primeiras aproximaes. Histedbr Online. N 33. Campinas-SP, 2009, p. 264-275.
18
MONACHA, Carlos. A Escola Normal da Praa: o lado noturno das luzes. Campinas-SP: Unicamp,
1999.
19
SILVA, Dbora Alfaro So Martinho da. Jos Scarameli: um bandeirante do ensino paulista na
implementao e divulgao de uma didtica e metodologia da educao nova para a infncia brasileira.
226 f. Dissertao (Mestrado em Educao), Universidade Federal de So Carlos, So Carlos, 2013, p.
42.
20
SILVA, 2013, p. 58.

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normalista defende a sua concepo acerca do ensino de histria, como pedra angular do
futuro de nossa Ptria.21
Esse texto expressa uma preocupao atinente ao papel do docente no processo
de formao da sociedade brasileira, como instrumento de transformao de brutos em
modelos de bondade. A educao deveria exercer o protagonismo no processo de
constituio de mundo civilizado, de uma populao irradiadora de luz e livre dos vcios
torpes. Outra questo relevante a escolha do jovem aluno para produzir o texto em
homenagem a um importante ator da Escola Normal, que j havia atuado inclusive como
diretor da instituio. importante lembrar que no incio do sculo XX, a Escola Normal
paulista era uma das principais instituies do estado, com a formao da elite intelectual
paulista. Um indcio disso o fato de Scarameli ter sido companheiro de classe de
Loureno Filho, que posteriormente tambm se tornaria um dos principais expoentes da
Escola Nova no Brasil e das reformas educacionais. Neste caso, a escolha de Scarameli para
homenagear o ex-diretor elucida o seu destaque como aluno e intelectual promissor.
Esses valores patriticos permearam a escrita de seus livros escolares. O livro O
Nosso Governo, publicado nos idos de 1928, era tido como um esplndido compndio
de educao cvica destinado aos candidatos dos exames dos ginsios do Estado.22 Era
uma obra salutar para a formao de uma cultura cvica paulista, com a valorizao dos
governantes nacionais e estaduais. Alm disso, o livro foi adotado pelo governo do Estado
de So Paulo, para a leitura das turmas do 3 ano do ensino primrio e, em 1934, a terceira
tinha sido publicada com uma tiragem de 15 mil exemplares. A Editora Brasileira, nos idos
de 1934, ao apresentar o autor, ressalta as virtudes patriticas de sua escrita histrica:

Pequenas Lies de Histria Ptria para a Infncia das escolas pelo prof.
Jos Scarameli. Compiladas de acordo com o programa do segundo ano
do curso primrio das escolas paulistas. Este livro, escrito com
meticuloso cuidado e sob a orientao pedaggica moderna, nica obra
didtica, destinada a infncia, que expe os fatos histricos relacionando-
os e mostrando-lhes a sequncia lgica, de sorte que a Histria Ptria
constitui um todo e no, apenas, uma reunio de fragmentos, quase
sempre inexpressivos e sem ligao uns com os outros. Fartamente
ilustrado e de fcil compreenso, um livro til na escola, mas ,
sobretudo, indispensvel, nas casas de crianas brasileiras, cujos pais as
queiram educar no amor da Ptria e nos sentimentos de brasilidade.

21
SILVA, 2013, p. 58.
22
SCARAMELI, Jos. O Nosso Governo. So Paulo: Zenith, 1928.

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Livro aprovado e adotado, pela Diretoria Geral da Instruo Pblica do


Estado de So Paulo, para a leitura suplementar do 2 ano. 23

O anncio das obras de Scarameli pelos editores elucidam questes relevantes,


pois a estratgia de venda permeada pela vinculao da obra aos anseios sociais acerca de
um livro escolar de histria. Afinal, o que se poderia esperar de um manual didtico de
histria voltado para a formao de crianas? Quais eram as virtudes que poderiam destacar
a obra de Scarameli entre os demais autores? Essas questes foram apresentadas e
enaltecidas pelos editores. O livro de Lies de Histria Ptria aparece como uma obra
inovadora, que corroborava com o propsito de formao de uma sociedade imbuda do
sentimento de amor a Ptria. Vejamos as qualificaes da obra.
O primeiro ponto ressaltado o legal. Na capa e em vrios momentos da
apresentao e dos anncios, os livros produzidos por Scarameli so apontados como
obras que estavam de acordo com o programa de ensino das escolas primrias do estado de
So Paulo. Neste caso, Scarameli mostrou-se est atento s normativas do campo
pedaggico e s diretrizes das polticas pblicas da Educao. Prova disso a aprovao de
seus livros para serem adotados pelo estado para a instruo da infncia, como leitura
bsica ou suplementar.
O segundo ponto a ser ressaltado o carter pedaggico. Isso se deu em dois
mbitos. O primeiro, por meio da valorizao da chamada pedagogia moderna. O livro
enquadra-se nos valores defendidos pelo prprio autor acerca da introduo das ideias da
Escola Nova no Brasil. Tratava-se de um livro escrito com meticuloso cuidado e sob a
orientao pedaggica moderna. A outra questo refere-se a uma especificidade. Suas
histrias foram escritas nomeadamente para crianas, pensadas como uma estratgia de
insero do mundo infantil no universo da leitura. A narrativa histrica est atrelada a uma
pretenso de letramento, de alfabetizao. Os elementos diferenciadores de uma obra de
histria para crianas eram enunciadas por meio de qualificaes como de fcil
compreenso e fartamente ilustrado.
No prefcio de Lies de Histria Ptria para o primeiro ano do ensino
primrio, Scarameli explicita as peculiaridades de um livro para crianas, no qual busca
explorar a curiosidade, a capacidade sensorial e a imaginao. No seu entender:

23
EDITORA BRASILEIRA. Edies escolares. In: SCARAMELI, 1934.

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Um livrinho de histria do Brasil para o primeiro ano? No.


A creana, que acaba de aprender a ler, gosta de folhear os livros que
esto ao seu alcance para encontrar trechos fceis de ser lidos.
E eu creio que ela aqui encontrar alguns pedacinhos no difceis de
decifrar.
Se gostar, no sei. Quem poder penetrar a alminha infantil?!
O Autor.24

O prefcio refora os elementos apresentados pelos editores acerca dos elementos


que deveriam nortear os livros escolares de histria para o ensino primrio, com nfase
para o uso de trechos que pudessem ser codificados facilmente. Outra caracterstica
importante e de grande relevncia era a concepo acerca do encadeamento da narrativa
histrica. Scarameli mostra-se preocupado com a possibilidade de se construir um discurso
histrico fragmentado, frgil e, por conseguinte, desprovido de sentido histrico. O seu
livro apontado como inovador, o nico destinado a infncia, que expe os fatos
histricos relacionando-os e mostrando-lhes a sequncia lgica. Ele busca conectar os
fatos, criar uma ligao entre os diferentes episdios, atribuir um sentido histria. Neste
caso, de sorte que a Histria Ptria constitui um todo. Com isso, a ptria apresentada
como um elemento natural, inquestionvel, visvel por meio da histria e do mapa do
Brasil, como pode ser observado nas Figuras I e II.25

24
SCARAMELI, 1934, p. 1.
25
Figuras I e II: Mapa do Brasil e texto explicativo sobre o Brasil. Cf. SCARAMELI, 1934, p. 10-11.

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A apresentao do Brasil ocorre em pgina dupla, na qual primeiramente


expressa a imagem do mapa e na pgina seguinte descreve o que seria o pas. Essa ttica
revela uma tentativa de construir uma visibilidade para o Brasil. O pas revelado pelo seu
mapa, sem conexo com as sucessivas transformaes histricas. O mapa aparece como
um mito, um elemento a-histrico, naturalizado. O pas identificado geograficamente e
no construdo. Alm disso, o autor busca transformar uma visibilidade em uma
dizibilidade.
Parte do mapa para explicitar o que era o Brasil. importante salientar que essa
estratgia repetida ao longo de todo o livro, no qual os atores histricos so apresentados
inicialmente por meio de um registro fotogrfico e posteriormente com a descrio dos
seus feitos. Partindo dessa acepo, plausvel afirmar que o mapa exerce o papel
fotogrfico. Por esse motivo ele afirma categoricamente que bonito mapa! neste sentido,
o patriotismo partiria do despertar do sentimento de identificao do mapa e de sua beleza.
Outra questo relevante atinente valorizao de uma perspectiva federalista.
Scarameli mostra o Brasil como um todo, o resultante de uma soma das partes (os estados),
que por sua vez era tambm resultado da soma dos municpios. Por esse ngulo, a
propositura descritiva do autor coaduna com a pedagogia moderna, na qual deveria partir

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do conhecido para o desconhecido, da parte para o todo. O Brasil seria ento o resultado
de um esforo federalista.
Contudo, neste processo somatrio de integrao, o livro expressa um elemento
inquietante. Jos Scarameli afirma que o Brasil est na Amrica do Sul, mas no afirma o
que seria a mesma e nem elucida que o Brasil da Amrica do Sul. O elemento sul-
americano aparece como uma questo transitria, pois at mesmo o mapa no revela a
presena dos vizinhos, apresentados de modo amorfo. Neste sentido, o passado da ptria
costurado ao mundo europeu, mais precisamente a Portugal. A capa do livro j elucida essa
ideia de histria ptria como uma narrativa das aventuras portuguesas no mundo
americano. O Brasil tido como a continuao da histria de Portugal. Observe a Figura
III:26

A caravela em preto e branco, com a cruz de malta em vermelho ressalta um


protagonismo portugus na histria do Brasil. Todavia, o fomento ao patriotismo tecido
por meio de uma narrativa que busca defender um carter lgico, associando a ptria, os
brasileiros e o sentimento de amor. As lies de amor ptria so sintomticas ao longo de
todo o texto. Observe a descrio:

O Brasil a nossa Ptria

26
Figura III: Capa do Livro de Jos Scarameli da edio de 1934, pela Editora Brasileira. Cf.
SCARAMELI, 1934.

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Quem nasce no Brasil brasileiro.


Todos os meninos da escola nasceram no Brasil.
So todos brasileiros.
Eu nasci no Brasil.
Eu sou brasileiro.
O Brasil a nossa terra.
O Brasil a nossa ptria.
Os brasileiros so patriotas
Todos os brasileiros amam o Brasil.
Todos os brasileiros amam a ptria.
Quem ama a ptria patriota.
Os brasileiros so patriotas.
Eu amo o Brasil.
Eu amo a minha ptria.
Eu sou patriota.
Viva a ptria!
Viva o Brasil!27

Destaca-se no texto o uso do pronome nosso, como instrumento de coligir um


sentimento de pertena. Trata-se de nossa terra, nossa ptria, minha ptria. O coletivo que
integra o Brasil e o cultua. A ptria cultuada e amada, tambm apresentava um retrato, a
bandeira nacional.

A Bandeira Brasileira
Ns conhecemos a Bandeira Nacional.
A bandeira o retrato da ptria.
Quando a bandeira passa, no meio dos soldados ou dos escoteiros, todos
tiram o chapu.
As pessoas que esto sentadas levantam-se.
Quando passamos em frente da bandeira tambm tiramos o chapu.
A Bandeira Brasileira representa o Brasil.
A bandeira o smbolo da ptria.28

Essa mesma ideia de grupo est presente na apresentao sobre o hino. Se a


bandeira era tida como o retrato do pas, a configurao visvel de mostrar a ptria, o hino
emergia como o canto das belezas do Brasil, a forma perspicaz de constituir uma
dizibilidade.

O Hino Nacional
Aos sbados cantamos o Hino Nacional.
Que lindo hino!
Todos os alunos do grupo escolar se renem numa sala e cantam belos
hinos.

27
SCARAMELI, 1934, p. 20-21.
28
SCARAMELI, 1934, p. 53.

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O que eu acho mais belo o Hino Nacional.


Voc j sabe ler.
Leia o nosso lindo hino.29

Na discusso sobre o hino o texto aparece em forma de dilogo, mas com uma
orientao visvel acerca das prticas do cotidiano escolar. O autor elucida sobre as prticas
pedaggicas dos grupos escolares paulistas, mesmo sabendo que nem todos os alunos do
ensino primrio estudavam nesse tipo de escola. Isso revela uma preocupao em revelar
um modelo ideal de ensino, reformador, na escola tida como a vanguarda da educao
brasileira. Outra questo importante a informao de que todos os alunos j sabem ler,
mostrando que ao final do primeiro ano do curso primrio os alunos j deveriam saber ler e
terem a habilidade de ler textos mais extensos como o do Hino Nacional.
A assertiva de carameli mostra-se totalmente voltada para a construo de um
sentimento patritico. Por ordem lgica, seria praticamente impossvel um brasileiro no
ser patriota, no amar o seu pas ou no compartilhar esse sentimento de congraamento
sistmico. Utilizando-se de frases breves e de um raciocnio lgico, o autor envereda por
uma ordem na qual no h espao para a dvida, para o questionamento. Nascer no Brasil
seria o invlucro do patriotismo. A histria ptria da escola nova proposta por Scarameli
seria, paradigmaticamente, a assertiva inquestionvel, inviolvel e natural.

OS DIFERENTES ESPAOS NO ENSINO DE HISTRIA PTRIA

Percebemos como a escrita da histria para crianas de Scarameli buscava


atender a um preceito voltado para a construo de um sentimento patritico. Contudo, o
xito do ensino de histria no dependeria exclusivamente de uma renovao na escrita e
na apresentao dos contedos. O autor acreditava e defendia a ideia de que a renovao
da educao brasileira deveria passar por uma ampla discusso acerca da didtica, da prtica
docente do professorado nacional. Ao apresentar o volume sobre a didtica de sua
coletnea Escola Nova Brasileira, Scarameli defendeu de forma categrica:

Sou dos que pensam que um professorado, sem solida base didtica, no
poder cumprir a misso que lhe incumbe com a proficincia necessria.
A maioria dos fracassos do nosso ensino seno todos tm suas razes no
terreno mal acanhado pela didtica.30

29
SCARAMELI, 1934, p. 46.
30
SCARAMELI, Jos. Escola Nova Brasileira: didtica. So Paulo: Zenith, 1931, p. 7.

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A transio entre a escola tradicional e a escola nova deveria ter como fulcro a
renovao didtica, a preparao dos professores, como iniciativa para aniquilar o fracasso
escolar. Esse discurso condiz com a trajetria do autor, marcada pelas excurses em
Pernambuco, nas escolas do interior paulista e at mesmo na direo de inmeros grupos
escolares em seu estado natal.31 Contudo, essa postura didtica, alm de implicar na forma
de apresentar os contedos, refere-se tambm na seleo dos mesmos. Isso se dar tanto no
mbito do ensino, como no processo de escrita da histria. Margarida Oliveira alerta sobre
a questo de que a histria escrita um recorte desse passado, no por incompetncia dos
profissionais de Histria, mas porque este objetivo da produo do conhecimento
histrico: problematizar o passado.32
Esse recorte expressa interesses do tempo de escrita, do grupo ao qual o autor
encontra-se vinculado, as demandas contemporneas. Tudo isso explicita competncias
para orientar a vida prtica ou competncia narrativa da conscincia histrica. De acordo
com Jrn Rsen, a conscincia histria a capacidade das pessoas de constituir sentido
histrico, com a qual organizam temporalmente o mbito cultural da orientao de sua vida
prtica e da interpretao de seu mundo e de si mesmas. 33
No caso da escrita de Scarameli, percebe-se a histria como um instrumento de
construo de uma conscincia histrica da ptria, do lugar. O passado utilizado para
unir, revelar os vnculos, imprimir uma unidade nacional. Os tempos pretritos so
apresentados como lies para a formao de uma conscincia cidad e patritica, na qual a
Ptria se torna protagonista da histria, assim como os homens da poltica so tidos como
os heris de um passado que necessitava ser recuperado. Alm disso, a narrativa sobre o
passado transmuta-se em instrumento para revelar diferentes ngulos e escalas do espao
brasileiro. Imagens do mapa do Brasil e de smbolos nacionais so utilizadas como
instrumento para reforar a construo de uma identidade nacional.
Entretanto, os smbolos nacionais no so apresentados como mais um elemento
a ser memorizado, identificado. Eles so apresentados com uma atribuio de sentido, por

31
SILVA, Dbora Alfaro So Martinho da. Jos Scarameli: um bandeirante do ensino paulista na
implementao e divulgao de uma didtica e metodologia da educao nova para a infncia brasileira.
226 f. Dissertao (Mestrado em Educao) Universidade Federal de So Carlos, So Carlos, 2013.
32
OLIVEIRA, Margarida Maria Dias. Introduo. In: OLIVEIRA, Margarida Maria Dias (Org.).Histria:
ensino fundamental. Braslia: Ministrio da Educao, 2010, p. 10.
33
RUSEN, Jorn. Histria viva: teoria da histria III formas e funes do conhecimento histrico.
Braslia: UNB, 2010, p. 103-104.

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meio da construo de uma conscincia histrica acerca do Brasil. Um caso elucidativo a


discusso sobre o Distrito Federal, explicitada por meio da anlise da bandeira nacional.

O Distrito Federal
Na bandeira do Brasil esto 21 estrelinhas.
Cada estrelinha representa um Estado.
Ento o Brasil tem 21 Estados?
No. O Brasil s tem 20 Estados.
E porque esto na bandeira 21 estrelinhas?
A ltima estrelinha representa o Distrito Federal.
Porque se chama Distrito Federal?
Porque l que est a capital do Brasil.34

A relao entre o todo e as partes novamente utilizada como recurso


metodolgico para explicar e construir sentido na aprendizagem. Mas esse sentido perpassa
pela construo imagtica dos diferentes espaos que constituem o territrio brasileiro
Scarameli valoriza o pas na qualidade de nao, mas tenta aproximar o aluno do contedo
a partir da insero de uma realidade microscpica, com um recorte estadual. Neste caso,
pode-se afirmar que a ptria vista de um lugar, a partir da experincia histrica de uma
unidade da federao, do leito paulista. A assertiva histrica construda a partir da
diferena do espao, de l e do aqui, pois o Rio de Janeiro a capital do Brasil porque l
que est o governo do Brasil. 35
O discurso histrico acerca dos espaos estaduais em Scarameli permeado pela
caracterizao, pela apresentao de atributos que tornam visveis o discurso da diferena.
Salienta-se o fato do autor apresentar fotografias ao lado do texto, promovendo mais uma
vez a conjuno de uma visibilidade com uma dizibilidade.36 A cidade apresentada como
outra espacialidade, distante, como um elo de alteridade. Ao partir da realidade paulista, as
demais unidades da federao so tidas como os outros. Observe as Figuras IV e V.37

34
SCARAMELI, 1934, p. 13.
35
SCARAMELI, 1934, p. 15.
36
ALBUQUERQUE JNIOR, Durval Muniz de. A Inveno do Nordeste e outras artes. 4 ed. So Paulo:
Cortez Editora, 2009.
37
Figuras IV e V: textos e imagens sobre os outros estados brasileiros. Cf. SCARAMELI, 1934, p. 18-19.

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As outras espacialidades, na escrita da histria de Scarameli, emergem a partir do


uso de cartes postais e da descrio de seus produtos agrcolas. So apresentados como os
fornecedores, curiosidades, com imagens que remetem para o passado. Algo totalmente
oposto descrio e s imagens apresentadas no captulo sobre o estado de So Paulo, tido
como a vanguarda, o epicentro da histria do Brasil, como pode ser observado nas Figuras
VI e VII.38

38
Figuras VI e VII: textos e imagens sobre o estado de So Paulo. Cf. SCARAMELI, 1934, p. 16-17.

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Esse captulo sobre So Paulo revela a confluncia de elementos discutidos at


ento. a assertiva que situa o aluno em um espao especfico, com ns estamos no
Estado de So Paulo, revela a preponderncia do mundo urbano, por meio da listagem
das principais cidades e mais uma vez no abre espao para a opinio do aluno, com o
direcionamento de que a cidade mais bonita do estado a capital. Na construo de uma
visibilidade espacial, Scarameli no deixa brechas para questionamentos. Mas o espao
paulista apresentado imageticamente revela outra nuance instigante. As imagens
fotogrficas expressam duas dimenses atribudas ao estado paulista: o da vanguarda com a
arquitetura moderna e o da centralidade paulista como palco da histria do Brasil, por meio
do monumento da independncia. O livro escolar construa uma narrativa sobre o espao e
defendia uma cultura poltica paulista ou bandeirante.

UMA CULTURA POLTICA BANDEIRANTE

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Se So Paulo era o lugar de escrita de Scarameli,39 torna-se salutar entender a


profuso de uma possvel cultura poltica. O intelectual que se destacava pela defesa de
uma renovao do ensino, trazendo uma discusso acerca dos usos dos testes no processo
de avaliao,40 tambm estava imbudo de valores compartilhados pela elite intelectual
paulista do limiar dos anos 20, de uma cultura poltica bandeirante. Certamente, essa
cultura poltica apresentada de forma diluda ao longo de toda a escrita da histria dos
livros escolares de Scarameli, aparece com maior vigor na edio revisada de Lies de
Histria Ptria para o primeiro ano do curso primrio de 1934. Isso ocorre principalmente
na discusso sobre os presidentes do Brasil, que de acordo com o autor cada presidente
deve governar quatro anos.41
O referido livro apresenta uma lista de todos os presidentes do Brasil republicano
e ainda elucida um captulo exclusivo sobre D. Pedro II, tido como brasileiro ilustre, que
governou o Brasil quando o mesmo era monarquia. 42 Alis, a obra apresenta uma aparente
incongruncia. No texto sobre Washington Luiz, Scarameli diz: Ele um grande
brasileiro. Foi Presidente da Repblica. Que que faz o Presidente da Repblica? ele que
governa o Brasil. O doutor Washington Luiz governar o Brasil quatro anos. 43 O poltico
que foi presidente apresentado como o homem que governar o Brasil por quatro
anos. Essa incoerncia no uso dos tempos verbais no apareceu como erro, mas sim como
denncia da poltica nacional, uma resistncia a situao vivenciada no incio dos anos 30.
Essa afirmativa se torna plausvel se considerarmos a forma pela qual o texto
apresenta o governo de Getlio Vargas, no qual elucida o rompimento da democracia e da
sucesso presidencial. De acordo com Scarameli:

A Ditadura e a Constituinte
O doutor Washington Luiz deveria ter governado desde 15 de novembro
de 1926 at 15 de novembro de 1930.
fora eleito para o substituir o doutor Jlio Prestes de Albuquerque,
presidente do Estado de So Paulo.

39
CERTEAU, Michel de. A escrita da Histria. Trad. Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro:
Forense-Universitria, 1982.
40
MONARCHA, Carlos. O triunfo da razo psicotcnica: medida humana e equidade social. In:
STEPHANOU, Maria; BASTOS, Maria Cmara (Orgs.). Histrias e Memria da Educao no Brasil. v.
3. Petrpolis: Vozes, 2005, p. 136.
41
SCARAMELI, 1934, p. 25.
42
SCARAMELI, 1934, p. 37.
43
SCARAMELI, 1934, p. 23.

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Mas em outubro de 1930 houve uma revoluo que no deixou o doutor


Washington Luiz acabar o seu governo, nem, por conseguinte, o doutor
Jlio Prestes tomar posse.
Os revolucionrios tiveram, como chefe do governo, o ditador doutor
Getlio Vargas.44

Interessante a forma utilizada no texto para no atribuir legitimidade ao governo


de Vargas, apresentado como ditador e chefe dos revolucionrios, sem a atribuio do
termo presidente. O livro escolar, adotado nas escolas paulistas, expressa um discurso que
defende a resistncia. O tempo presente tido como momento de luta, de esperana de
apoio oriundo de outros estados contra as mazelas da ditadura. So Paulo transformado
em um sujeito da histria, um elemento que extrapola o sentido de uma unidade da
Federao. o ator que luta em defesa da ptria, contra a ditadura:

O nosso querido Estado de So Paulo esperou muito tempo pelas


providncias prometidas. (...)
So Paulo, porm, sendo um centro de grande atividade comercial,
industrial e intelectual, achava que todos os negcios podiam ser
resolvidos (...).
Diante disso, e confiando em que todos os estados o secundariam no seu
grande ideal, o Estado de So Paulo levantou-se para obrigar a ditadura a
convocar a Constituinte que devia elaborar a nova Constituio.
Com grande desapontamento s se viu apoiado pelo Estado de Mato
Grosso.
Nem por isso desanimou, porm.
Todo o seu povo, nacionais e estrangeiros, numa solidariedade
inesquecvel, desdobrou-se numa grande atividade, dando ao Estado o
aspecto de um verdadeiro pas em guerra.
Mas as foras da ditadura eram muito superiores e S. Paulo teve que
perder.45

O estado paulista personificado, transformado em heri da histria, por meio da


luta de resistncia. O livro elucida o papel que deveria ser atribudo s demais unidades do
pas: secundrio. So Paulo, por sua vez, seria o guia, o propositor do grande ideal. A
ausncia de apoio no somente apresentada, mas lamentada e tida como uma das causas
da derrota para a ditadura. Essa derrota, todavia, louvada como um ato de glria dos
paulistas, pois revelou o esforo de solidariedade entre os diferentes grupos que viviam no

44
SCARAMELI, 1934, p. 31.
45
SCARAMELI, 1934, p. 34.

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estado. Esse tema apresentado em um texto muito mais denso e extenso, expressando
tambm uma preocupao com o processo de isnero do aluno no mundo da leitura.
Mas a alfabetizao do aluno no era exclusivamente por meio da leitura. Era
tambm uma questo de formao cidad, patritica. O paulista era transformado no
condutor da histria do Brasil. Chama a ateno o registro na qual as aes de resistncia
dos paulistas teceram um aspecto de guerra. Algumas pginas posteriores, ao caracterizar o
Brasil, tambm em perspectiva personalista, Scarameli atribui como elemento de distino
o fato de ser pacfico.

O Brasil um pas pacfico, quer ser amigo de todos e no quer lutar


contra outros pases.
S onde h ordem pode haver progresso e o Brasil, para progredir, quer
que todos os brasileiros sejam amigos da ordem.
por isso que est escrito na bandeira Ordem e Progresso.46

Diante disso, emerge a dvida se na escrita de Scarameli o estado de So Paulo


no seria parte do Brasil. Apesar das contradies entre o ser pacfico como essncia do
Brasil e a guerra em So Paulo, o autor evidencia que para existir progresso necessrio
ser amigo da ordem. Neste caso, a ditadura poderia ser vista como uma ruptura dessa
ordem, e a luta passa a ser legitimada como uma tentativa de reestabelecer o progresso no
pas. A guerra, neste caso, emerge como um instrumento da ordem, do mundo civilizado.
Isso no ocorre em relao s descries sobre os indgenas, apresentados no livro
como o elemento do passado brasileiro, o elo perdido.Na cultura poltica bandeirante, o
indgena tido como o passado superado e rural, o contraponto ao mundo urbano e
civilizado. Na trama dos espelhos, os indgenas emergem como o reflexo oculto, esquecido.
Antes de D. Pedro II
Muitos anos antes de D. Pedro II ser imperador no havia cidades no
Brasil.
Havia mato por toda a parte.
No mato se encontravam onas, jacars, lagartos, raposas, macacos.
E no morava gente no mato?
Morava, sim. No mato viviam os indgenas.
Eles no se vestiam como ns, andavam quase nus.
Os indgenas eram tambm chamados aborgenes, selvagens ou bugres.
(...)
Os indgenas sabiam atirar muito bem as suas flexas.
Com suas flexas matavam pssaros voando.47

46
SCARAMELI, 1934, p. 55.

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O bugre aparece na narrativa histrica como o outro, o sujeito do passado.


Todos os verbos elucidam os tempos idos. Alm disso, os indgenas so designados como
eles e no ns. Esse outro emerge em meio a natureza, como um universo selvagem,
rural, cercado de mato. Em suma, o bugre, na cultura poltica bandeirante defendida por
Scarameli, o passado derrotado, selvagem, cercado pela natureza e que no a respeita.
Pelo contrrio, atira-lhe uma flexa para matar o pssaro que voa livremente.
O indgena o elemento da guerra, da crueldade, pois os vencedores queimavam
as casas dos vencidos. Quando os indgenas pegavam um inimigo, eles o matavam para
comer.48 Neste patamar, eles estariam reverberando uma oposio a civilizao dos
anseios paulistas. Se o Brasil era um pas pacfico, amigo de todos, os selvagens eram os
atores que queimavam casas e matavam os inimigos para com-los. O ndio aparecia no
ensino de histria como um contraponto, a imagem inversa da civilizao.

CONSIDERAES FINAIS

Os livros escolares de histria no ensino primrio no perodo da primeira metade


do sculo XX ainda uma lacuna relevante no mbito das discusses da histria do ensino
de histria no Brasil. A experincia de escrita empreendida por Scarameli, entre os anos 20
e 30 do sculo XX, expressa alguns indcios relevantes para pensar o processo de
construo e difuso de uma cultura poltica bandeirante, na qual intelectuais e polticos
paulistas tentavam construir uma leitura comum de passado na qual So Paulo era vista
como o palco central dos episdios da histria ptria.
Os livros escolares de histria produzidos por Scarameli revelam questes
inquietantes acerca do mtodo de escrita da histria para crianas, da apropriao da
pedagogia escolanovista e do papel da histria como uma lio na orientao e formao
do cidado patriota. As lies mostravam um passado a ser cantado, dos heris-polticos
que foram tomados como exemplos, bem como revelava o passado superado, o
contraponto do mundo civilizado, dos indgenas imersos nas matas no mais existentes.
Por fim, os livros tambm elucidaram um projeto de futuro, com um guia que orientava as
aes no presente, por meio da defesa da resistncia a ditadura de Getlio Vargas. Os
cnones da educao implementados pelo governo paulista coadunavam com os interesses

47
SCARAMELI, 1934, p. 38-39.
48
SCARAMELI, 1934, p. 43.

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em defesa de uma cultura poltica bandeirante, na edificao de um monumento chamado


lies de histria ptria.

Recebido em: 22 de novembro de 2016


Aprovado em: 06 de maro de 2017

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O QUE NARRAM LICENCIANDOS DE HISTRIA SOBRE O IMPACTO DA


TECNOLOGIA EM SUA FORMAO INICIAL?

WHAT DO HISTORY STUDENTS HAVE TO SAY ABOUT THE IMPACT OF


TECHNOLOGY ON THEIR EARLY STUDIES?

Marcella Albaine Farias da Costa


Doutoranda na Universidade Federal do Rio de Janeiro - Brasil
Mestra em Educao pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
e-mail: marcellaalbaine@gmail.com

RESUMO

O presente texto procura entender de que forma professores de Histria em formao inicial
alunos das turmas de Didtica Especial de Histria e Prtica de Ensino de Histria desenvolvidas
em 2014 na Faculdade de Educao (FE) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e
participantes do Programa Institucional de Bolsas de Iniciao Docncia (PIBID) significam sua
trajetria profissional no que tange temtica da tecnologia. A experincia aqui trazida foi pautada
no olhar (auto) biogrfico e utilizou-se da plataforma do Museu da Pessoa enquanto possibilidade
metodolgica. Foi possvel perceber que o digital, na viso desses alunos, no pensado para alm
de recurso auxiliar da aprendizagem, ou seja, no questionado como algo que possa modificar a
epistemologia do conhecimento histrico.

Palavras-chave: Histria; tecnologias digitais; formao de professores.

ABSTRACT

This paper aims to understand how history teachers in training students of Didtica Especial de
Histria and Prtica de Ensino de Histria classes developed in 2014 at Faculdade de
Educao (FE) of Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) and Programa Institucional
de Bolsas de Iniciao Cientfica de Iniciao Docncia (PIBID) participants signify their
professional trajectory in terms of Technology theme. The experience brought here was based on
the (self) biographical and used the Museum of the Person platform as a methodological possibility.
It was possible to perceive that digital, in the view of these students, is not thought beyond auxiliary
learning, that is, it is not questioned as something that can modify the epistemology of historical
knowledge.

Key-words: History; digital technologies; teachers training.

INTRODUO

O presente texto, fruto de trabalho dissertativo, procura entender de que forma


professores de Histria em formao inicial alunos das turmas de Didtica Especial de
Histria e Prtica de Ensino de Histria desenvolvidas em 2014 na Faculdade de Educao
(FE) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e participantes do Programa

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Institucional de Bolsas de Iniciao Docncia (PIBID)1 significam sua trajetria


profissional no que tange temtica da tecnologia. Adotou-se como procedimento
metodolgico a utilizao da plataforma digital do Museu da Pessoa2, cuja inteno foi
possibilitar a um universo de 8 licenciandos / bolsistas PIBID de Histria da UFRJ a
narrativa das suas histrias de vida profissional a respeito do referido tema.
Diante da percepo da fraca presena dessa discusso, ao menos diretamente, no
currculo acadmico da formao em Histria da UFRJ, a partir da anlise prvia dos
programas dos professores das disciplinas de Didtica Especial de Histria e Prtica de
Ensino de Histria da referida universidade, optou-se pela realizao de uma oficina
pedaggica, intitulada Narrativas de si no ambiente online: trajetria profissional do docente de
Histria, como estratgia de produo de dados para a anlise pretendida.

NARRATIVAS DE SI NO AMBIENTE ONLINE: QUAL O LUGAR


ATRIBUDO TECNOLOGIA NA TRAJETRIA DE FORMAO DOS
DOCENTES DE HISTRIA?

A experincia aqui trazida, pautada no olhar (auto) biogrfico, entendendo-o como


uma aposta metodolgica para pensar a interface docncia/tecnologia, foi desenvolvida em
formato de oficina por se compreender que estas podem se constituir enquanto espaos
legtimos de formao e pesquisa. Cabe explicitar que os relatos dos licenciandos sobre o
impacto da tecnologia em sua formao inicial sero problematizados, distanciando-os,
porm, das perspectivas que tendem a consider-los como fontes de verdades.
Ao procurar compreender suas escolhas, opinies e aes sociopolticas em meio
aos complexos jogos da linguagem, problematizando alguns silenciamentos e entendendo
que lembrar e esquecer so atos polticos, objetivou-se no fazer uma mera anlise de
contedo da escrita dos sujeitos escolhidos, mas mostrar a articulao narrativa tecida por
eles. Para isso, operou-se com a categoria de narrativa e de identidade narrativa enquanto
estrutura temporal que incorpora noes de instabilidade, fluidez e incompletude3,

1
Programa voltado para o aperfeioamento e a valorizao da formao de professores para a educao
bsica. Disponvel em: <http://www.capes.gov.br/educacao-basica/capespibid>. Acesso em:
02/08/2016.
2
Plataforma que permite ao usurio contar a sua histria. Disponvel em:
<http://www.museudapessoa.net/pt/home>. Acesso em: 02/08/2016.
3
COSTA, Warley da. Currculo e produo da diferena: negro e no negro na sala de aula de Histria.
302 f. Tese (Doutorado em Educao) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.

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trazendo concluses parciais e provisrias sobre o lugar atribudo tecnologia na trajetria


de formao desses docentes.
Em relao ao ttulo da oficina, importante dizer que, em primeiro lugar, a escolha
do nome narrativas de si se deu em consonncia com a abordagem (auto)biogrfica 4 e
que, nesta ocasio, no ser aprofundada. Em segundo lugar, o ambiente online no caso,
a plataforma digital do Museu da Pessoa, conforme dito foi apenas o caminho, ou seja, a
possibilidade metodolgica que se optou por investir. Por fim, trajetria profissional foi
o fio condutor da produo das narrativas de si, sendo a lgica norteadora da mobilizao e
da tessitura de articulaes para falar de uma rea de formao.
Sobre o pblico participante, optou-se por trabalhar com alunos da licenciatura em
Histria da UFRJ que estivessem cursando as disciplinas de Didtica Especial de Histria e
Prtica de Ensino de Histria. Esse pblico foi priorizado, recorrendo-se citao de
Monteiro, por estarem em um momento estratgico que pode representar uma
experincia fundamental na formao profissional dos professores5. Tendo em vista, na
maioria dos casos, ser o ltimo ano de graduao e, portanto, por esses sujeitos j terem a
vivncia de quase todo curso, esse costuma ser um perodo de profunda reflexo
profissional perante a prxima etapa depois de formado, com mais questionamentos e
incertezas com relao ao futuro, na qual as escolhas e decises profissionais so, muitas
vezes, colocadas em dvida. Em sntese: um momento propcio em que emergem
concepes de formao.
Conversando com os cinco professores que ministravam as disciplinas de Didtica
Especial de Histria e Prtica de Ensino de Histria na UFRJ, anotou-se que no ano de
2014 havia, em mdia, 125 licenciandos cursando tais disciplinas. Tomou-se cincia da
inviabilidade de trabalhar com esse grande quantitativo de alunos e que seria preciso fazer

4
ARFUCH, Leonor. A vida como narrao. In: ARFUCH, Leonor. O espao biogrfico: dilemas da
subjetividade contempornea. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010; CARVALHO, Isabel Cristina Moura.
Biografia, identidade e narrativa: elementos para uma anlise hermenutica. Horizontes antropolgicos,
Porto Alegre, n. 19, jul. 2003, p. 283-302. Disponvel em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-71832003000100012>. Acesso em
03/08/2016; DELORY-MOMBERGER, Christine. A pesquisa biogrfica: projeto epistemolgico e
perspectivas metodolgicas. In: ABRAHO, Maria Helena Menna Barreto; PASSEGI, Maria da
Conceio. Dimenses epistemolgicas e metodolgicas da pesquisa (auto)biogrfica. Natal: EDUFRN;
Porto Alegre: EDIPUCRS; Salvador: EDUNEB, 2012; PASSEGI, Maria da Conceio; SOUZA, Elizeu
Clementino de; VICENTINI, Paula Perin. Entre a vida e a formao: pesquisa (auto)biogrfica, docncia
e profissionalizao. Educao em Revista, Belo Horizonte, v. 27, n. 01, p. 369-386, abr. 2011,.
5
MONTEIRO, Ana Maria. A prtica de ensino e a produo de saberes na escola. In: CANDAU, Vera
Maria. Didtica, currculo e saberes escolares. Rio de Janeiro: DP&A, 2000, p. 140.

128
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um recorte, escolhendo-se, por isso, aqueles que fossem afetados por um segundo espao
de formao, o PIBID, considerado um espao importante nos processos de fixao de
sentidos ligados docncia.
Daqueles 125 alunos, percebeu-se que 8 se encontravam nessa interseo, nesse
entre-lugar de formao, escolhendo-os assim como pblico privilegiado dos 8 bolsistas,
5 participavam do PIBID na Faculdade de Educao (FE) e 3 no Instituto de Histria (IH)
da referida Universidade. Na elaborao das perguntas que nortearam a oficina procurou-se
trabalhar em uma lgica temporal que misturasse passado, presente e futuro nas suas
trajetrias profissionais, no sendo necessrio, pois, responder a todas. Como o objetivo
era pensar a interface docncia-tecnologia, das 20 questes6, em 4 foram trabalhadas
aspectos mais gerais como, por exemplo: as motivaes da escolha pela docncia em
Histria, os momentos marcantes da graduao que eles gostariam de guardar e esquecer e
as expectativas e reivindicaes desses alunos como professores de Histria em formao.
Em todas as outras 16, foram mobilizados subtemas ligados tecnologia,
instigantes para estimular a reflexo dos discentes sobre a sua formao. Entre tais
subtemas foram privilegiadas: a ideia deles sobre aula inovadora e/ou atraente; a
frequncia com que utilizam dispositivos digitais e o que costumam acessar; a utilizao de
tais dispositivos nas dimenses de ensino, pesquisa e divulgao cientfica; as mudanas nas
formas de acesso e usos do passado; as diretrizes proibitivas da tecnologia na sala de aula;
as informaes que circularam predominantemente via web; as mudanas na noo de
tempo e espao; as possibilidades de se estudar os diferentes contextos scio-histricos a
partir da internet; a discusso sobre arquivo, patrimnio e memria na interface com o
debate digital, assim como a temtica dos jogos virtuais e da metodologia de ensino das
webquests; o dilogo da Universidade com a tecnologia; a utilizao de recursos digitais por
parte dos professores regentes durante a observao das aulas nos seus locais de estgio; o
momento de incio do seu contato com a tecnologia; as lembranas das suas aulas da
educao bsica no que tange ao uso da mesma; a opinio deles sobre o futuro da sua
profisso em um mundo tecnolgico; a incorporao das demandas tecnolgicas no
contexto das prticas escolares; as situaes de plgio (cultura do CTRL C + CTRL V) e,
finalmente, o uso das tecnologias digitais visando a participao dos alunos nas suas futuras

6
Algumas perguntas se subdividiram em mais de uma.

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aulas de Histria j como professores formados. Evitaram-se perguntas de sim ou no


para que os sujeitos escolhidos pudessem se sentir mais instigados.
Portanto, com a criao desse dispositivo de memria desejava-se que eles se
narrassem, colocassem em ao as suas identidades narrativas docentes, contassem suas
histrias do lugar de licenciandos tendo como foco o tema da tecnologia, e sabendo que a
estava em jogo a tenso memria / esquecimento. Como Guimares coloca, preciso ter
clareza que lembrana e esquecimento caminham juntos, como processos ativos e
necessrios vida social, e que a escrita pode ser a forma mais rpida para o fcil
esquecimento7.

A PLATAFORMA DIGITAL DO MUSEU DA PESSOA

Segundo as informaes que constam no site do referido Museu, este:

[...] um museu virtual e colaborativo de histrias de vida fundado em


So Paulo, em 1991. Desde sua origem tem como objetivo registrar,
preservar e transformar em informao histrias de vida de toda e
qualquer pessoa da sociedade. No Museu da Pessoa, alm de visitante,
toda pessoa pode tambm tornar-se parte do acervo ao registrar sua
histria de vida, assim como tambm ser um curador, na medida em que
pode publicar suas prprias colees de histrias, imagens e vdeos8.

Expe-se que a sua misso ser um museu aberto e colaborativo que transforme
as histrias de vida de toda e qualquer pessoa em fonte de conhecimento, compreenso e
conexo entre pessoas e povos. Alm disso, coloca-se que em 22 anos de histria, o
Museu da Pessoa inspirou a construo de trs museus fora do Brasil (Portugal, Canad e
Estados Unidos) e liderou campanhas e internacionais para a valorizao de histrias de
vida9.
Lucchesi comenta que essa plataforma:

[...] organiza-se, sobretudo, em torno da oralidade, reunindo


testemunhos pessoais em formato audiovisual. H testemunhos de
personalidades conhecidas no Brasil (como Laerte Coutinho e Ziraldo),
mas tambm de pessoas annimas. O projeto tem patrocnio das

7
GUIMARES, Manoel Lus Salgado. O presente do passado: as artes de Clio em tempos de memria.
In: ABREU, M., SOIHET, R. e GONTIJO, R. (orgs.). Cultura poltica e leituras do passado:
historiografia e ensino de Histria. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2003, p. 27-28.
8
Disponvel em: <http://www.museudapessoa.net/pt/entenda/o-museu>. Acesso em: 03/08/2016.
9
Disponvel em: <http://www.museudapessoa.net/pt/entenda/o-museu>. Acesso em: 03/08/2016.

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iniciativas privada e pblica. A fundao do museu esteve associada


experincia de sua idealizadora, a historiadora Karen Worcman, em
projetos de memria e histria oral no perodo de 1984 a 1990, quando
ainda estava na graduao10.

Arruda & Arruda, que faz uma distino entre os chamados cibermuseus, existentes
exclusivamente no meio virtual, e os museus digitais, sendo estes uma verso do museu
presencial, entende que:

O Museu da Pessoa [...] transporta o visitante tanto para o conhecimento


e reconhecimento do passado, quanto o torna ativo no processo de
construo do prprio passado, por meio das histrias de vida. O Museu
da Pessoa, apesar de possuir um endereo fsico, possui acervo
construdo e acessvel basicamente pela web e incorpora caractersticas
tpicas da web que so, ao mesmo tempo, discutidas e analisadas no
mbito da historiografia e do ensino de histria: a de que todos so
partcipes da Histria e podem registrar fatos e acontecimentos
pertinentes sua vida, acessveis a qualquer um que disponha de acesso
web 11.

Evidentemente, a plataforma no neutra. Tampouco sua escolha para a execuo


da referida oficina se deu de forma aleatria e/ou ingnua. Ressalta-se na sua pgina que a
narrativa de cada um singular e que todos os que desejarem tm o direito de eternizar e
integrar sua histria memria social. Essa proposio vai ao encontro do tpico levantado
por Pimenta12 a respeito do desafio entre a informao e a memria na sociedade digital
no caso, informaes sobre a prpria vida. J para Kenski, na atualidade, as novas
tecnologias de comunicao no apenas alteram as formas de armazenamento e acesso das
memrias humanas como, tambm, mudam o prprio sentido do que memria 13. Os
relatos so produtos de uma inteno, de qual memria se deseja perpetuar e, por isso,
esto ligados a jogos de poder, consciente ou inconscientemente.
O Museu da Pessoa desenvolveu, em mais de duas dcadas de atividades, uma
metodologia prpria de trabalho. A chamada tecnologia social da memria entendida

10
LUCCHESI, Anita. Conversas na antessala da academia: o presente, a oralidade e a histria pblica
digital. Histria Oral, v. 17, n. 1, jan./jun. 2014, p. 45.
11
ARRUDA, Durcelina Ereni Pimenta; ARRUDA, Eucidio Pimenta. Museu virtual: construo e
desconstruo de e das histrias. Ensino Em Re-Vista, n. 1, v. 20, p. 223, jan./jun. 2013.
12
PIMENTA, Ricardo. O futuro do passado: desafios entre a informao e a memria na sociedade
digital. In: ALBAGLI, Sarita. Fronteiras da Cincia da Informao. Braslia: IBICT, 2013.
13
KENSKI, Vani Moreira. Novas tecnologias: o redimensionamento do espao e do tempo e os impactos
no trabalho docente. Revista Brasileira de Educao, n. 8, p. 59, mai./ago. 1998.

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como um instrumento que pode ser usado em larga escala para captao de storytelling14,
uma tcnica que pode ser utilizada tanto em comunidades, como com grupos, escolas e
empresas, sendo aplicvel sem distino a toda e qualquer pessoa ou instituio. Em
entrevista realizada com a criadora do Museu, ela diz que:

Essa tecnologia inclui trs etapas essenciais que se complementam:


construir, organizar e socializar histrias. Comea com cada pessoa
contando sua prpria histria. Essa histria se relaciona com outras do
seu grupo e compe uma histria coletiva. E esta, por sua vez, faz parte
de uma rede mais ampla de histrias dos indivduos e grupos que
compem a sociedade atual. Durante a fase de construo da histria, o
grupo pode utilizar diversas ferramentas para produzir registros, como a
entrevista individual (com roteiro e registro em vdeo ou udio), seleo
e coleta de objetos e fotografias (materiais significativos da trajetria da
pessoa), linhas do tempo e roda de histrias15.

Para Lucchesi, ao lanar mo dessa metodologia utilizada em diferentes ambientes e


aplicada a qualquer sujeito, o museu acaba por assumir um papel bastante significativo na
montagem e curadoria de seu arquivo, afastando-se de uma perspectiva que permita maior
espontaneidade ao usurio. Indicaes do tipo Uma boa histria bem diferente de um bom
relatrio. Histria bem contada tem clima, tenso, ritmo, revelaes. Tente no contar o fato de um jeito
linear, previsvel e sem emoo e Antes de contar a histria, confirme se ela tem comeo, meio e fim.
Geralmente, o comeo introduz o assunto; o meio desenvolve a histria; e o final apresenta alguma
concluso, presentes no site do Museu16 marcam certo engessamento e carter prescritivo da
plataforma.
Acredita-se, porm, que existam formas de subverso a isso, cabendo ao usurio a
escolha do caminho a ser trilhado na construo da sua narrativa e que, mesmo com os
entraves apontados anteriormente, o mesmo pode estar a servio de propostas pedaggicas
e de pesquisas instigantes. A escolha pela sua utilizao com os licenciandos no se deu
para dizer que suas narrativas no ambiente online seriam melhores ou piores, mais
complexas ou menos complexas, do que se feitas presencialmente, apesar de apostar que
alguns elementos, potencialmente enriquecedores, como vdeos e imagens sobre docncia,

14
LUCCHESI, 2014, p. 47.
15
BANDEIRA, 2011 apud LUCCHESI, Anita. Conversas na antessala da academia: o presente, a
oralidade e a histria pblica digital. Histria Oral, v. 17, n. 1, p. 47, jan./jun. 2014.
16
Disponvel em: <http://www.museudapessoa.net/pt/intro-conte-sua-historia>. Acesso em:
03/08/2016.

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poderiam demarcar diferenas em relao s conversas presencias17. Sua escolha, ento, foi,
antes de tudo, um caminho e uma possibilidade metodolgica a se investir.

O QUE NARRAM OS LICENCIANDOS DE HISTRIA SOBRE O IMPACTO


DA TECNOLOGIA EM SUA FORMAO INICIAL?

Mas: o que esses licenciandos-bolsistas falaram da tecnologia? O que lhes


comum? O que os diferenciam? Quais so os discursos que eles privilegiaram em suas
narrativas (auto)biogrficas? Que sentidos de tecnologia estiveram sendo investidos, que
sentidos estiveram sendo reatualizados? Qual foi, afinal, o impacto da tecnologia nas suas
trajetrias de formao?
Explora-se a significao da ao social desses sujeitos posicionados como
professores em formao inicial, tentando compreender como articularam e operaram com
a questo tecnolgica, mostrando as suas articulaes narrativas em torno das suas
identidades do lugar da docncia em formao:

contando nossas prprias histrias que damos a ns mesmos uma


identidade. Reconhecemo-nos nas histrias que contamos sobre ns
mesmos. E pequena a diferena se essas histrias so verdadeiras ou
falsas, tanto a fico como a histria verificvel nos provm de uma
identidade18.

Tecer a anlise desse material construdo por sujeitos que tiveram a especificidade
de estarem em um contexto discursivo curricular hbrido de formao docente, quais
sejam, o espao da Prtica de Ensino e do PIBID foi, pois, afirmar uma trama na qual as
suas concepes interagem com outras formas de ver a temtica docente articulada ao
debate digital. Considera-se os pontos abordados por eles extremamente interessantes para
se avanar nas discusses sobre a historiografia didtica, o ensino de Histria e o debate
sobre o currculo acadmico de Histria. Assume-se, entretanto, a impossibilidade de
explorar todos os pontos levantados, demarcando a anlise a partir de recortes e selees e
nos limites do presente artigo.

17
Nenhum dos participantes da pesquisa props imagens ou vdeos relacionados docncia.
18
RICOEUR, 1997 apud COSTA, Warley da. Currculo e produo da diferena: negro e no negro na
sala de aula de Histria. 302 f. Tese (Doutorado em Educao) - Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2012, p. 83.

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Cabe dizer tambm que a plataforma digital escolhida oferecia a possibilidade dos
participantes postarem imagens e vdeos, mas estas opes no foram utilizadas,
restringindo-se expresso escrita / textual. Como no havia mnimo nem mximo de
caracteres, os relatos tiveram variao em tamanho. Na anlise do material, procurou-se
observar o ttulo, a sinopse e as palavras-chave que os licenciandos atriburam s suas
narrativas19. Acredita-se que esses so espaos interessantes de serem observados porque
so locais privilegiados de sntese, de seleo, de destaque, de fixao de sentido e de
legitimao do que eles consideram mais relevante de ser dito.
Nos ttulos, a palavra tecnologia apareceu em apenas um deles, qual seja, S sei que
nada sei... sobre tecnologia, sendo que seu autor diz que quando usei Plato em meu ttulo foi
justamente nesse sentido, que em relao tecnologia no sei nada (Licenciando 8). Em relao s
sinopses a palavra tecnologia no se fez presente em nenhum momento; j palavras-chave,
os termos privilegiados foram: Licenciatura em Histria, graduao em Histria,
relatos pessoais, docncia; trajetria profissional, Ensino de histria, tecnologias
em sala, trajetria no ensino, histria, tecnologia , UFRJ; ensino superior,
graduao, escola, transformao aparecendo, pois, duas vezes. No h dvida de
que a reduzida expressividade e visibilidade do termo nesses espaos estratgicos de sntese
seja bastante significativa, tornando-se ainda mais acentuada pelo fato de 16 das 20
questes elaboradas no dispositivo de memria remeterem tecnologia.
Seguindo a sequncia de anlise a partir das perguntas norteadoras feitas com o
intuito de servir como mecanismo disparador para a construo de seus relatos, a primeira
coisa que chamou a ateno foi a opinio deles sobre o que seria uma aula inovadora
e/ou atraente. Grande parte dos estudantes respondeu a esta questo associando-a
realidade do aluno sem necessariamente mobilizar nessa cadeia equivalencial algo
relacionado ao uso de tecnologias. Exemplifica-se a seguir:

Um dos meios encontrados por mim para atrair o aluno so as


brincadeiras e a transposio do contedo para a realidade do aluno, enquanto
uma aula inovadora seria aquela que foge do padro alunos
observando/professor falando. Por exemplo, posso dar uma aula sobre
Isl e trazer fatos do cotidiano para a aula, levantando conhecimentos
prvios e usando matrias de jornal para atra-los, e nisso fazer uma

19
A plataforma do Museu da Pessoa permite ao internauta inserir o ttulo, a histria, a sinopse e as tags
(palavras-chave) de sua narrativa. No caso, dos 8 alunos participantes, todos escolheram um ttulo, apenas
3 redigiram a sinopse e 5 incluram palavras-chave.

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oficina pedaggica sobre o assunto, fazendo uma aula atrativa e


inovadora (Licenciando 3, grifos meus).

A atrao do aluno, nesse caso, defendida por meio da execuo de brincadeiras e


do direcionamento do olhar para a realidade vivida pelo educando, enquanto que
inovao atribudo um sentido de quebra lgica esttica de mera observao das aulas.
O uso de fontes histricas como peridicos e a adoo da metodologia de oficinas
pedaggicas tambm so vistos como mecanismos de atrao e inovao por esse
licenciando. Essa concepo repetida na fala de outro participante, para quem uma aula
inovadora aquela que consegue dialogar com a realidade do aluno e faz-lo sujeito do processo de
ensino-aprendizagem, podendo-se incluir a o uso de recursos como o celular para fins
didticos, mas que, para ser atraente, o aluno tem que se sentir tocado e participar do que
est sendo ensinado (Licenciando 6, grifos meus). Da mesma forma:

Como docente eu acredito que uma aula inovadora uma aula que
contextualiza o aluno para a sua realidade cotidiana. Quanto mais tornamos o
currculo ativo e ao mesmo tempo flexvel, no que tange aos contedos,
a aula flui com mais naturalidade e maior interesse dos alunos
(Licenciando 7, grifos meus).

A mobilizao dessa questo de forma reiterada, fez lembrar da pesquisa


desenvolvida por Velasco20 sobre grupos de fluxos de discursos que se hibridizam na
mobilizao de sentidos de realidade do aluno. Na empiria aqui trazida, tal expresso
apareceu por diversas vezes, mas, possivelmente por no ser o foco, no foi explicitado em
maior profundidade o que os licenciandos entendem por realidade do aluno.
Para outro licenciando, uma aula inovadora :

[...] aquela que utiliza de diversos instrumentos didticos para auxiliar os processos
de ensino e aprendizagem. Ainda, considero atraente, at revolucionria, uma
aula que aponte as diferentes perspectivas sobre o mesmo tema e/ou que desenvolva
proveitosamente uma interdisciplinaridade entre a Histria e as outras disciplinas
escolares, rompendo assim com os perigos de uma histria nica e com a
distino entre os campos de conhecimentos. Acredito, desse modo, que
utilizar diferentes ferramentas, desde o livro didtico, passando pela utilizao de
vdeos, msicas, jogos, at o uso de sites, blogs, redes sociais na internet como forma de
ilustrar e aproximar o contedo debatido em sala com a vida do educando
(Licenciando 4, grifos meus).

20
VELASCO, Diego Bruno. Realidade do aluno, cidado crtico, conhecimento escolar: que
articulaes possveis no currculo de Histria?. 180 f. Dissertao (Mestrado em Educao) -
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Ps-graduao em educao, Rio de Janeiro, 2013.

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Neste caso, os sentidos atribudos inovao referem-se utilizao de


instrumentos didticos diversificados, enquanto que a atratividade liga-se ao trabalho do
professor de Histria com diferentes perspectivas interpretativas sobre uma mesma
temtica, assim como realizao de atividades que, de alguma forma, busquem a
interdisciplinaridade. A tecnologia mediante a utilizao de vdeos, sites, blogs e redes
sociais na internet aparece pontualmente e justamente como algo capaz de ilustrar e tecer
a aproximao do contedo trabalhado em sala com a vida do educando, com a sua
realidade.
Em outro trecho da fala desse mesmo bolsista, ao comentar sobre da atuao dos
professores regentes em seu local de estgio, pode-se observar novamente a atribuio de
sentido de aula atraente, agora mais fortemente ligado ao uso de dispositivos tecnolgicos:

Os professores regentes utilizam diversas tecnologias para facilitar suas


aulas, como projetor, computador e outras coisas, para propiciar exibio
de filmes, slides, documentos histricos e etc. Tudo isso possibilita uma aula
mais atraente e traz o aluno para fazer parte como um agente ativo nas
discusses em aula (Licenciando 4, grifos meus).

Enquanto alguns alunos mobilizam, mesmo que pontualmente, o debate


tecnolgico na atribuio de sentidos ligados ideia de inovao e atratividade, h aqueles
que declaram que as inovaes nas quais penso no passam tanto por inovaes de
recursos, como, por exemplo, o uso de novos aparelhos e a incorporao da internet no
corpo da aula (Licenciando 1), mostrando abertamente que os seus sentidos atribudos
inovao no priorizam o uso da tecnologia.
Em relao frequncia de utilizao dos dispositivos tecnolgicos em seu
cotidiano, sobre o que costumam acessar, um dos estudantes diz:

Eu utilizo cotidianamente recursos digitais. bem verdade que minha


internet no a de melhor qualidade, mas pelo celular e de casa sempre
estou utilizando redes sociais, acessando e-mails e buscando informao
em sites de pesquisa que possam me ajudar em algo. J houve casos de
eu utilizar internet da faculdade por conta da minha estar ruim no
momento. Na maioria das vezes, acesso de casa e do meu celular
(Licenciando 6).

A utilizao diria, inclusive no espao da universidade, corroborada nesta outra


fala:

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Eu costumo acessar a internet diariamente, pelo computador e pelo


celular. Respondo e-mails, leio blogs e redes sociais, alm de jornais
digitais tambm. Geralmente fao essas consultas da minha casa, mas
quando estou na faculdade tambm uso o laboratrio de l. Utilizo os
recursos tecnolgicos basicamente para qualquer atividade acadmica,
tanto como pesquisa e busca por fontes digitalizadas, como para
divulgao e conhecimentos de Congressos e oficinas na rea de
educao (Licenciando 7).

Essas e outras narrativas deixam entrever, ento, que redes sociais, emails, sites de
pesquisa, acesso a jornais e revistas digitais, navegao em dicionrios e enciclopdias online,
leitura de blogs, etc. costumam ser as atividades mais privilegiadas pelos futuros professores.
Um deles chega a exemplificar algumas tenses ligadas s facilidades advindas pelo uso da
internet:

A prpria compra de livros, para mim, muito facilitada pela


possibilidade de realizar a compra online, atravs de busca em sites e
comparaes de preo. O lado negativo, porm, que voc fica menos
aberto a encontros, como os que podem acontecer quando se procura
por um livro em uma livraria. Por vezes procuramos o livro X e achamos
o Y, do qual nem sabamos da existncia. Isso mais difcil de acontecer
quando temos facilidade para encontrar exatamente o que procuramos
(Licenciando 1).

Penso que minha gerao a gerao da transio tecnolgica (Licenciando 1),


escreveu esse mesmo estudante. Com idades variando entre 21 e 27 anos, percebe-se em
suas falas que esses sujeitos tiveram contato com a tecnologia em momentos variados de
suas vidas. Esse mesmo licenciando, reflete, inclusive, sobre o impacto de tal contato na
sua socializao: Na adolescncia (...) a computao e a internet comearam a se
popularizar. No incio da dcada de 2000 nos meses finais de 2002, para ser mais exato ,
passei a ter internet de banda larga em casa, e isso representou uma grande mudana na
minha vida e socializao (Licenciando 1).
Outro aluno diz que o seu contato com a tecnologia foi tardio, chegando a
relacionar tal fato com a pergunta sobre a utilizao dos dispositivos tecnolgicos nas suas
aulas de Histria na educao bsica:

Tive meu primeiro computador com acesso internet de m qualidade


aos 15 anos. Hoje tenho 22 anos e ainda no possuo uma internet
excelente e isso, em certos momentos, uma problemtica. Enquanto
aluna, somente no ensino mdio (2007-2009) pude ver a utilizao de
data-show para projetar filmes e vdeos e isso se deu com frequncia na
escola tcnica que possua mais recursos. Na minha escola do ensino

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fundamental, nos anos de 2003 a 2006, havia apenas duas salas com
televiso de DVD. Nesse sentido, posso descrever minhas aulas na educao
bsica no que tange aos recursos tecnolgicos como regular, pois esta utilizao de dava
esporadicamente. Somente no F pude ver uma maior utilizao e aqui que possuo
uma boa lembrana. Pude conhecer diversos filmes com temticas diversas
que a professora nos proporcionou (Licenciando 6, grifos meus).

A anlise desses registros autoriza afirmar que todos os sujeitos so familiarizados


com a tecnologia, fazem usos sociais dela, mas essa familiarizao no se deu nos processos
de escolarizao. Tanto na citao acima quanto na que est adiante, a utilizao da
tecnologia nos espaos em que estudaram na educao bsica foi rarefeita:

Eu lembro que a primeira vez que entrei em contato com um recurso


tecnolgico foi aos 8 anos na casa de uma grande amiga que tinha
computador. Com ela aprendi a ter acesso a internet, ainda discada
naquela poca, e a jogar vrios jogos para diverso. As minhas aulas de
Histria do ensino bsico poucas vezes tiveram recursos tecnolgicos como auxlio do
professor. Como estudei em colgios pequenos, na poca o data show
ainda era algo muito mais caro que atualmente e nem todas as escolas do
meu bairro tinham o aparelho (Licenciando 7, grifos meus).

Entretanto, apesar de a maioria declarar que usa os artefatos digitais


frequentemente em seu cotidiano, a viso positiva sobre eles no partilhada por todos,
como pode ser visto no caso a seguir em que um dos estudantes deixa claro que a
tecnologia uma questo incontornvel, mas que, para ele, pens-la articulada Histria
mostra-se como um movimento incongruente:

Em relao tecnologia no sei nada [...] no gosto dela, mas no d pra


viver sem ela. Histria e tecnologia parecem palavras incongruentes e distantes [...].
No h como escapar da tecnologia. [...] Espero que com o incio de
minha carreira consiga trazer a tecnologia pra dentro da minha sala de
aula, pois a tecnologia faz parte da vida dos alunos e um gancho importante para
se falar de histria (Licenciando 8, grifos meus).

A leitura atenta desses relatos permite concluir posicionamentos divergentes,


pautados em mecanismos discursivos distintos nas prticas articulatrias que estabelecem o
uso e o no uso de dispositivos tecnolgicos. Os trechos acima selecionados na fala do
Licenciando 8 quando ele assume a sua falta de conhecimento sobre o tema e que no
gosta de tecnologia so de suma importncia, pois permite desfazer a ideia hegemnica
de que uma pessoa, por ser jovem, necessariamente a adora, domina e a usa.

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Atendo-se estritamente questo etria variante, no caso, entre 21 e 27 anos,


como falei acima poderia-se dizer que todos esses sujeitos so digitalmente alfabetizados.
Todavia, grande parte do que foi exposto at o momento, sobretudo a partir do ltimo
trecho destacado, no qual se reconhece que a tecnologia um importante gancho para se
falar de Histria, manifestando-se um desejo que com o incio da sua atuao como
professor ele seja capaz de us-la em sala de aula, d insumos para afirmar que mesmo
sendo nativos digitais esses sujeitos no necessariamente operam e pensam em termos de
uma ciberliteracidade21.
Alm de nem todos gostarem de tecnologia, falando diretamente sobre a sua
formao, foi possvel encontrar narrativas que negaram por completo a existncia da
discusso digital ao menos, em relao aos temas de arquivo, patrimnio e memria
afirmando que ela nunca aconteceu no bacharelado, tampouco na licenciatura:

Tomando como exemplo minha formao, no tive nenhuma discusso acerca


de arquivo, patrimnio e memria em dilogo com o debate digital, nem na
formao no bacharelado e nem na licenciatura. Desta forma posso
sintetizar minha escrita dizendo que o dilogo da Universidade com a temtica
tecnolgica insuficiente. Na minha experincia enquanto licencianda posso afirmar
que a utilizao de recursos digitais no ampla (Licenciando 6, grifos meus).

Entretanto, esse mesmo licenciando, em outro momento, traz sua lembrana uma
aula no Instituto de Histria em que teve que fazer um trabalho em grupo sobre ensino de
Histria e novas tecnologias, a partir de exemplos de docentes do ensino bsico que as
utilizavam como forma de otimizar o ensino. A estudante chega a citar uma referncia
terica para fazer a distino entre informao e aquilo que se entende por formao,
chamando a ateno para o papel do professor nesse processo:

[...] lembro-me de fazer uma disciplina com temtica da Educao no


prprio Instituto de Histria com uma professora da casa e ter
desenvolvido um trabalho em grupo sobre uso de novas tecnologias da
informao e ensino de Histria. Ns procuramos explorar o tema
ressaltando exemplos de professores da Educao Bsica que utilizam a
internet para otimizar o ensino. Uma frase marcante que lembro at hoje
foi a de Circe Bittencourt, autora lida para a execuo do trabalho, que
afirmava que informao no formao. Assim, cabe sempre a atuao do

21
LIVINGSTONE, Sonia. Internet literacy: a negociao dos jovens com as novas oportunidades on-line.
Matrizes, So Paulo, ano 4, n. 2, jan./jun. 2011, p. 11-42. Disponvel em:
<http://www.matrizes.usp.br/index.php/matrizes/article/view/66/99>. Acesso em: 02/08/2016.

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professor em lidar com a multiplicidade de contedos da internet e transform-los em


formao. Isso ficou guardado (Licenciando 6, grifos meus).

Na faculdade quase no vi nada ligado tecnologia, somente um professor


pesquisava blogs neonazistas, dava aula com o Google aberto, mas sempre foi
ridicularizado por isso (Licenciando 8). Como esse e os exemplos adiante reforam, para a
maioria a discusso da temtica digital aconteceu pontualmente, sendo o dilogo da
Universidade com tal temtica tido como insuficiente, nfimo ou irrisrio:

Nas disciplinas que fiz, nenhuma abordou a questo de como usar a


tecnologia para melhorar a compreenso do aluno no ensino de histria.
Para no dizer que em todas, em duas aulas de prtica, discutimos um
texto onde a autora narrava a histria de um menino do ensino
fundamental que, a partir do momento que a professora levou os jogos
de RPG para a sala de aula, conseguiu melhorar seu rendimento na
disciplina e se interessar por histria medieval (Licenciando 2).

Enquanto no trecho acima essa discusso, inicialmente negada, aparece


posteriormente em uma aula de Prtica de Ensino, no exemplo a seguir ela acontece
mediante a realizao de um trabalho na disciplina de Psicologia da Educao e como uma
unidade a ser estudada na Didtica Especial de Histria, manifestando-se o desejo de que
tanto o espao escolar quanto a universidade incorporem mais essa reflexo sobre a
internet:

Pouco ouvi falar sobre o uso da tecnologia na educao na minha


formao, apenas em um trabalho de Psicologia da Educao e numa
futura unidade de Didtica especial. Eu acho que a escola e a academia
deveriam trabalhar melhor com a questo da internet, pq ela existe e no h nada
que se possa fazer para control-la, e importante ensinar ao professor e
ao aluno filtrar as informaes e fazerem bom uso dela (Licenciando 3,
grifos meus).

Em relao ao assunto dos jogos virtuais temtica que vem sendo refletida por
pesquisadores como Alves22, Mattar23 e Santos, sendo que para este ltimo a unio entre
jogos e Histria um fenmeno que vem se intensificando e que o videogame hoje j pode

22
ALVES, Lynn Rosalina Gama. Game over: jogos eletrnicos e violncia. 249 f. Tese (Doutorado em
Educao) Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2004.
23
MATTAR, Joo. Games em educao: como os nativos digitais aprendem. So Paulo: Pearson Prentice
Hall, 2010.

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ser considerado um legtimo monumento virtual da realidade, lugar de memria e,


inclusive, ferramenta de ensino na sala de aula24 um dos PIBIDs diz:

Eu mesma confesso que teria uma grande dificuldade de levar para


minha sala de aula uma atividade dessas com jogos online e videogames.
Primeiro porque no me interesso e segundo porque, como no
conheo, no saberia fazer uma ponte com as atividades de sala de aula
que fossem produtivas ao aluno. Admiro muito quem faz (Licenciando
2).

Alm do entrave em pens-los no mbito das atividades de ensino, seja por falta de
interesse, seja por falta de conhecimento, esse assunto tambm suscita dificuldades quando
pensado como objeto de estudo a ser investigado em um possvel trabalho monogrfico:

[...] pensei em fazer minha monografia sobre um jogo chamado


Assassin's creed que possui temticas como as cruzadas, renascena,
histria de independncia das treze colnias, pirataria, e o ltimo sobre
revoluo francesa. Mas nenhum dos professores se interessou em me
ajudar, nem os que estudam cinema (Licenciando 8)

Sobre metodologias de ensino como as webquests, nenhum dos bolsistas opinou.


Indagados se / em que medida as tecnologias digitais mudam as suas formas de acesso e
usos do passado, apenas um deles responde: as tecnologias digitais esto mudando as
formas de acesso do passado, na minha opinio. Hoje podemos acessar arquivos digitais
(Licenciando 6). J em relao s possibilidades de se estudar os diferentes contextos scio-
histricos a partir da internet, apenas dois pontuaram suas ideias o primeiro diz que a
internet pode ser muito importante para (...) saber da existncia deles [os diferentes
contextos scio-histricos], mas que isso negligenciado pela escola (Licenciando 3) e o
segundo que hoje podemos acessar fontes confiveis, alcanadas atravs da pesquisa, e
conhecer sociedades diversas, seus modos de vida e prticas desconhecidas por ns
(Licenciando 6).
Nota-se, ento, que esses trs itens no foram alvo de maiores reflexes e
aprofundamentos. O mesmo no acontece com a pergunta sobre as diretrizes legislativas
proibitivas de tecnologia na sala de aula, vigentes na rede pblica de ensino no Rio de
Janeiro, que, se por um lado foi compreendida e vista como uma necessidade, por outro foi
reconhecida como algo polmico e complexo:

24
Disponvel em: <http://oglobo.globo.com/sociedade/historia/games-abordam-eras-reais-despertando-
interesse-mas-muitas-vezes-distorcem-os-fatos-15079091>. Acesso em: 03/08/2016.

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Penso ser lgico que no se permita ao aluno que fique a aula inteira
mexendo no celular, mas soa irreal, e mesmo ridculo, querer proibir/exigir que
os alunos no faam uso em momento nenhum. Talvez fosse mais interessante
integrar essas ferramentas apesar de no saber como e, sobretudo,
entender que, com ou sem celular, alunos se dispersaro da aula, e no
necessariamente isso significa um problema tanto da aula quanto do
aluno. Devemos, pois, cuidar dos exageros, seja por parte dos alunos,
seja por parte dos professores, que numa manuteno de um
autoritarismo dmod, tentam fazer com que em suas aulas o aluno faa
uma imerso no passado, de uma maneira torta, pelo fingimento de que
tais tecnologias no foram desenvolvidas. Dessa forma, acredito que o nico
caminho realista para lidar com as tecnologias aprender diferentes usos delas,
aprender a pensar com elas, assim como aprendemos h dcadas a pensar
com o quadro negro (Licenciando 1, grifos meus).

No se deve proibir algo que est cada vez mais presente (Licenciando 6), diz
outro aluno. Nesses dois depoimentos, a proibio no parece ser o melhor caminho.
Concorda-se aqui com o Licenciando 1 de que preciso reconhecer a existncia dessas
tecnologias e aprender a us-las de maneiras as mais diversas, assim como aprender a
pensar com elas. Acredita-se que essa ltima ressalva feita por ele marca um deslocamento
importante na viso desse futuro professor, sendo justamente essa a defesa que o presente
texto visa sustentar, qual seja, de que mediante o ato de pensar com a tecnologia que
podemos pensar em mudar a natureza do conhecimento histrico e no apenas ampliar as
formas de lhe ter acesso25.
Ainda sobre essa questo da medida proibitiva, o Licenciando 7 se manifesta
reconhecendo-a como algo complicado, mas que compreende:

[...] as dificuldades de se manter a ateno dos alunos em aula diante de


tantas opes mais atrativas no meio virtual. Ao mesmo tempo
acredito que os professores e, assim, a escola, deveriam utilizar dessa
ferramenta to potente como o uso de celulares, tabletes e computadores
a seu favor. Imagino que acordos devem ser feitos entre alunos e
professores para se manter uma boa dinmica em sala de aula, dentre
esses acordos esto o uso das tecnologias. Penso que seria interessante,
quem sabe, se os professores estabelecessem a hora da consulta s
ferramentas digitais de maneira a orient-los em como fazer uma boa
pesquisa, quais sites procurar, como avaliar se aquela fonte digital
confivel e de interesse da pesquisa (Licenciando 7).

25
COSTA, Marcella Albaine Farias da; GABRIEL, Carmen Teresa. Sentidos de digital em disputa no
currculo de histria: que implicaes para o ensino desta disciplina?. Revista Tempo e Argumento,
Florianpolis, v. 6, n. 12, p. 165-185, mai./ago. 2014.

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A tecnologia posta, assim, como algo que pode ser utilizado a favor do ensino,
mediante acordos entre docentes e discentes. Entretanto, a maioria dos professores no
sabe como lidar com elas e, em grande em parte dos casos, os alunos [as] usam para
distrao, o que causa mais repulsa dos professores (Licenciando 8).
Sobre o tpico de como os licenciandos consideram as informaes que circularam
predominantemente via web, um deles pondera essa forma de circulao ser inevitvel, mas
afirma: no sei como elas podero ficar para a posteridade enquanto fontes do passado
(Licenciando 6). Para outro, a maioria das informaes via web so parciais, so mais
opinio, no fonte de pesquisa e estudo e, portanto, devem ser utilizadas com cautela,
sempre questionando o que est escrito em blogs (Licenciando 8). Perante a enorme gama
de informaes virtuais disponveis na atualidade, o papel do professor destacado, como
pode ser visto a seguir:

O papel do professor de fundamental funo no sentido da formao


do aluno que lida com uma gama de informaes virtuais sobre qualquer
assunto, sendo esta informao, em muitos casos, de pssima qualidade.
O professor deve ser capacitado para utilizar essas novas mdias digitais e ter recursos
de qualidade para utiliz-las em sala de aula. Esse um dos grandes desafios,
bem como saber fazer uma escolha correta e sbia dos recursos a serem
utilizados que possam ajudar no ensino. O uso das tecnologias deve fomentar a
participao do aluno. Nesse sentido, o recurso no deve substituir a fala ou
atuao do professor. Antes, deve proporcionar meios para que o contedo
trabalhado se transforme em um aprendizado significativo (Licenciando
6, grifos meus).

A partir do que foi levantado acima sobre o papel do professor, traz-se abaixo o
alerta de Ferreira & Marques, para quem:

O professor, embora atento a essas mudanas, ainda no modificou


epistemologicamente a sua prtica, apenas tem alterado
metodologicamente as aulas. Exibies de vdeos, documentrios, filmes
ou iconografias, com direcionamentos que reproduzem os mesmos
questionamentos das tradicionais aulas de Histria, o contedo pelo
contedo, no estimulam nos alunos o interesse pelo conhecimento
histrico. Para integrar as NTIC no mundo escolar necessrio que o
professor tenha conhecimento das suas potencialidades com base na
ao e nas prticas educativas26.

26
FERREIRA, Carlos Augusto Lima; MARQUES, Edicarla dos Santos. Espao e tempo como dimenses
do conhecimento e objeto de ensino-aprendizagem em Histria. Revista Histria Hoje, v. 1, n. 2, p. 240,
2012.

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Notou-se que o tpico de como a tecnologia pode mudar as suas prprias noes
de tempo e espao, importantes dimenses do conhecimento e objeto de ensino-
aprendizagem em Histria, tambm no foi privilegiado pelos futuros professores
aparecendo pontualmente apenas no relato de um deles ao dizer que uma excelente
possibilidade que a internet nos traz o encurtamento das distncias (Licenciando 6).
Acredita-se que esse silenciamento no acontece ao acaso, pois talvez esta fosse uma das
questes de maior complexidade dentre as formuladas.
Autores que pensam a cibercultura, como Couto Junior27, Kenski28, Lvy29 e
Santaella30, perpassam por essa questo do espao-tempo em suas produes, todavia, na
rea de Histria, no h estudos empricos que aprofundem nesse tpico, pensando de que
forma essa mudana espao-temporal acontece por meio do uso da tecnologia e que
implicaes isso pode trazer na aprendizagem histrica.
Solicitou-se a esses futuros professores que falassem tambm sobre os seus locais
de estgio e o uso ou no uso da tecnologia pelos professores regentes. Segundo o
Licenciando 1: Muitos professores, apesar de no serem to velhos como vi no A so
totalmente resistentes ao fato de alunos olharem o celular dentro da sala de aula
(Licenciando 1). Outro bolsista, que estagia nessa mesma instituio, tece crticas, fixando o
que, para ele, significa a potencialidade tecnolgica: No A, onde fao estgio, no h
muita diferena no uso de tecnologia, o uso se d apenas no uso do vdeo projetor para
passar vdeos ou slide. Para mim o forte do uso da tecnologia est em promover interao: vdeo
projetor s uma TV maior (Licenciando 8, grifos meus).
O posicionamento crtico a essa escola foi reafirmado ainda por outro estudante
que a reconhece como um espao de excelncia, mas que l no h nenhuma conexo wifi,
nem para os alunos nem para os professores, e o nico recurso minimamente tecnolgico
so data shows (Licenciando 3). Um deles toca nessa questo mais detidamente, chegando a
exemplificar esse uso e falando, inclusive, da iniciativa de construo de um blog pelos
licenciandos:

27
COUTO JUNIOR, Dilton Ribeiro do. Cibercultura, juventude e alteridade: aprendendo-ensinando com
o outro no Facebook. Jundia: Paco Editorial, 2013.
28
KENSKI, 1998.
29
LVY, Pierre. Cibercultura. So Paulo: Ed. 34, 1999.
30
SANTAELLA, Lucia. Comunicao ubqua: repercusses na cultura e na educao. So Paulo: Paulus,
2013.

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Dos dois professores que acompanho, apenas um utiliza muito bem os


recursos digitais disponveis. Um exemplo desse uso foi em uma
atividade em grupo em que o professor solicitou que os alunos
buscassem na internet, atravs dos seus prprios aparelhos de celular,
significados de determinadas palavras. Esse mesmo professor utiliza um
blog criado pelos licenciandos cujo objetivo disponibilizar os recursos
utilizados em aula, como vdeos, filmes e imagens (Licenciando 6).

Ainda falando sobre seus locais de estgio, um dos PIBIDs trouxe uma vivncia sua
nesse espao em relao a uma situao de plgio (cultura do CTRL C + CTRL V) e de
falta de autoria e originalidade na execuo de um trabalho, explicitando sua postura caso
venha a presenciar uma situao dessas. Diz ele:

Vi isso em meu estgio de prtica: os alunos entregando trabalhos sobre


Revoluo Francesa exatamente da forma que encontrou da internet,
sem se preocupar em dar a autoria. uma situao lamentvel. Se eu
tiver uma situao dessas, vou desconsiderar o trabalho. o certo a se
fazer. uma situao lamentvel. Eles tm que criar o hbito de
escrever, mesmo que seja fazendo um resumo das pginas da internet
que leram (Licenciando 2).

Outro bolsista tambm toca nesse assunto, propondo solues:

[...] muitos problemas que vemos hoje nos trabalhos escolares so as


colas dos textos digitais, ento talvez tirar um tempinho da aula para
trabalhar a importncia da ferramenta digital, mas principalmente
orient-los em como a pesquisa e os trabalhos devem ser feitos, so
fundamentais para um trabalho de sucesso (Licenciando 7).

Resta-se, por fim, buscar nessas narrativas (auto) biogrficas sobre suas trajetrias a
articulao desses licenciandos sobre o futuro de sua profisso, considerando o mundo
tecnolgico que ora vivemos, os desafios expostos por eles na incorporao das demandas
tecnolgicas no contexto das suas futuras prticas escolares enquanto professores e as
possveis contribuies das tecnologias digitais para a participao dos alunos nas suas
futuras aulas de Histria. Um deles imagina que um mundo tecnolgico ir facilitar o universo de
sala de aula e fadar melhoria das relaes estabelecidas (Licenciando 4, grifos meus). J outro, elenca
como um daqueles desafios a dificuldade de planejamento, demonstrando receio em
subutilizar a tecnologia:

Minhas dificuldades em relao ao uso da tecnologia durante a aula


talvez estejam mais ligadas a no saber planejar um uso produtivo desses
recursos, porque penso que o uso pelo uso, a subutilizao das ferramentas tende
a tornar o que poderia ser melhor em ainda pior (Licenciando 1, grifos meus).

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A existncia de contedos que, muitas vezes, so atrativos, mas no confiveis


aparece como outro desafio:

Acredito que as tecnologias devem ser obrigatoriamente inseridas no


cotidiano da escola. No temos como fugir disso. Est inserido na vida
social do aluno. Penso at que eles esperam por isso. Em relao
disciplina de histria, h vrias pginas no facebook, sites, blogs super
interessantes para trabalhar com material srio e profissional, porm seus
grandes textos e design no so to atrativos para os alunos, que
preferem algo mais voltado para o entretenimento. A que mora o
perigo. Nessas pginas h todo o tipo de contedo que os alunos acabam
incorporando por serem atrativos (Licenciando 2).

Em relao s suas expectativas como docentes e s possveis contribuies das


tecnologias digitais para a participao dos alunos nas suas futuras aulas de Histria, um
deles fecha sua fala dizendo:

[...] minhas expectativas como professora poder proporcionar a


curiosidade e o prazer que eu tinha ao assistir as aulas de meu professor
no C. Esse meu objetivo. Para isso tenho que aprimorar minha
metodologia. Claro que pretendo recorrer s tecnologias, mas confesso
que ser um exerccio de peg-las, estud-las e usar de acordo com minha
necessidade. Como farei isso? No saberia responder agora (Licenciando
2).

CONSIDERAES FINAIS

Como se procurou mostrar neste texto, ao falarem do lugar social de alunos da


licenciatura em Histria da UFRJ que vo gradativamente constituindo-se professores e de
suas respectivas trajetrias profissionais ligadas docncia, inmeras questes instigantes
foram trazidas. Buscou-se analisar suas narrativas a partir das suas vivncias e de seus
processos de subjetivao, procurando-se compreender suas escolhas, opinies e aes
sociopolticas em meio aos complexos jogos da linguagem, tendo como fio condutor a
interface docncia-tecnologia.
A grande pergunta que se tinha era: qual o lugar da tecnologia nessas narrativas?
Elas reforam os discursos hegemnicos da tecnologia apenas enquanto recurso ou
subvertem a relao tecnologia currculo? Muitos dos trechos aqui trazidos parecem
deixar em evidncia que ao articularem Histria, ensino de Histria e tecnologia em seus
processos formativos, os licenciandos reforam e privilegiam significantes ligados ideia de
recurso, ferramenta auxiliar, facilitador de aprendizagem, etc.

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Portanto, de uma forma geral, a cadeia definidora de digital na viso desses alunos
no parece trazer proposies que pensem a tecnologia para alm daquelas ideias de
auxiliar da aprendizagem, ou seja, como algo que possa modificar a epistemologia do
conhecimento histrico. Questiona-se se isso no aconteceu em funo de uma induo no
momento de elaborao das perguntas, que, por diversas vezes, tambm a fixou enquanto
recurso; no se a nega enquanto artefato recursivo, mas busca-se ir alm dessa viso,
transcender esse posicionamento, o que no aconteceu nos relatos desses sujeitos.
Falando ainda do dispositivo de memria que serviu de roteiro para que eles
contassem sobre suas trajetrias profissionais, questiona-se tambm que se no se
trouxesse o tema da tecnologia nas perguntas, se ele apareceria como algo na pauta das suas
trajetrias de formao alis, na narrativa do Licenciando 5, cujo foco manteve-se na sua
relao com a UFRJ e seu ingresso na instituio, ela totalmente renegada, no
aparecendo em nenhum momento.
Refletindo sobre o que determina a ao social desses sujeitos que se encontram em
uma posio hbrida de formao, buscando-os compreender em suas singularidades e
escolhas individuais, procurando dar visibilidade s suas experincias, visto que a
experincia docente no est dada, e levando em considerao tambm as estruturas sociais
que lhes so comum do lugar de alunos inseridos em um mesmo contexto discursivo de
formao, passa-se a crer no peso da estrutura do currculo acadmico de formao inicial
da Universidade escolhida, no qual o debate do digital no ocupa uma posio de destaque,
como apontado anteriormente.
Ao olhar para o currculo acadmico de formao inicial de professores de Histria
da UFRJ como um espao biogrfico que articula diferentes escalas de anlise, pode-se
concluir que o contato com a tecnologia, fixada predominantemente como recurso e no
como um elemento profissional, pouco tem impacto na constituio desses sujeitos
enquanto docentes, no os afeta como professores, deixando em aberto diversos desafios
na articulao discursiva entre currculo e tecnologia para (re) construir sentidos para a
Histria e seu ensino.

Recebido em: 10 de novembro de 2016


Aprovado em: 21 de fevereiro de 2017

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ENSINAR E APRENDER HISTRIA: REFLEXES EM TORNO DE


EXPERINCIAS DE FORMAO DOCENTE CONTNUA EM MEIOS
VIRTUAIS NA PROVNCIA DE BUENOS AIRES

ENSEAR Y APRENDER HISTORIA: REFLEXIONES EN TORNO A


EXPERIENCIAS DE FORMACIN DOCENTE CONTINUA EN
ENTORNOS VIRTUALES EN LA PROVINCIA DE BUENOS AIRES

Talia Meschiany
Profesora Adjunta Ordinaria de la Universidad Nacional de la Plata, Argentina (UNLP) - Argentina
Mestra em Educao pela Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales
e-mail: vero_hendel@yahoo.com

Vernica Hendel
Profesora de Sociologa de la Universidad de Buenos Aires (UBA) - Argentina
Doutora em Cincias Soicias pela Universidad de Buenos Aires
e-mail: taliameschiany@gmail.com

RESUMO

Este artigo apresenta algumas reflexes preliminares sobre um conjunto de prticas e


representaes da prtica de professores sobre o ensino da histria, parte do Departamento de
Educao Continuada (DFC) da Direco-Geral da Educao e Cultura da provncia de Buenos
Aires (DGCyE) durante os anos de 2015 e 2016. Analisamos como a formao de professores em
exerccio atravs de Ambientes Virtuais de Aprendizagem (EVA) promove e fortalece as boas
prticas de ensino. Ns exploramos a troca coletiva no campus virtual da DFC e do uso de redes
sociais (Facebook) Estes espaos permitem gravar alguns pensamentos que os professores fazem
sobre si mesmos, a sua formao e prticas. Neste sentido, eles funcionam como uma possibilidade
de anlise e diagnstico do que acontece hoje nas aulas de histria no ensino secundrio, a partir da
troca coletiva entre os colegas. Por outro lado, sugere o ensino de histria na escola, incluindo as
possibilidades oferecidas pelas TIC nos processos de reflexividade professoral sobre ensino e
aprendizagem desta disciplina.

Palavras-chave: ensino de Histria; ambientes virtuais de aprendizagem (EVA); formao


contnua de professores; tecnologia de informao e comunicao.

RESUMEN

Este trabajo presenta algunas reflexiones preliminares sobre un conjunto de prcticas y


representaciones de docentes en ejercicio acerca de la enseanza de la Historia, en el marco de la
Direccin de Formacin Continua (DFC) de la Direccin General de Cultura y Educacin de la
provincia de Buenos Aires (DGCyE) durante los aos 2015 y 2016. Nos proponemos analizar de
qu modo la capacitacin de docentes en ejercicio a travs de Entornos Virtuales de Aprendizaje
(EVA) promueve y fortalece buenas prcticas de enseanza. Exploramos el intercambio colectivo
en el campus virtual de la DFC y el uso de redes sociales (Facebook). Estos espacios permiten
registrar algunas reflexiones que los docentes realizan sobre s mismos, su formacin y sus prcticas.
En este sentido, operan como una gran posibilidad de anlisis y diagnstico de lo que sucede hoy en
las clases de Historia en el nivel de enseanza secundaria, a partir del intercambio colectivo entre
colegas. Por otra parte, permite pensar la enseanza de la Historia en la escuela secundaria,

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incluyendo las posibilidades que ofrecen las TIC en los procesos de reflexividad profesoral sobre la
enseanza y el aprendizaje de dicha asignatura.

Palabras clave: enseanza de la Historia; entornos virtuales de aprendizaje (EVA); formacin


docente continua; tecnologas de la comunicacin y la informacin.

INTRODUCCIN

Esta perspectiva es la que Bossuet haba adoptado para formar al


futuro rey de Francia. l trataba la historia como un repertorio de
situaciones presentadas de modo que el joven prncipe se peguntar: Y
yo que hubiese hecho?. Este ejercicio de ficcin lo obligaba a clarificar
principios, definir prioridades, combinar datos heterogneos, imaginar
varias situaciones de accin. Lo conduca tambin a considerar que lo
que tuvo lugar slo era una de las salidas posibles, pero los hechos
constituyen un nuevo reparto ineludible Acaso no es eso formarse en
cualquier oficio donde se debe tomar decisiones y actuar? (). Por eso,
si quieren contribuir a su formacin () deben tratar a los futuros
docentes como si fueran los futuros reyes1.
Las TIC no son la panacea, no van a solucionar por s solas todos los
problemas educativos, ni por su presencia en las aulas se reinventarn
automticamente las metodologas y los sistemas organizacionales. Lo
que ofrecen a las instituciones formadoras es una buena oportunidad de
cuestionarse a s mismas y repensar la relacin alumno-profesor-
conocimiento2.

A travs de un relato de experiencia situado en el contexto de acciones destinadas a


la formacin docente continua, este trabajo presenta algunas reflexiones preliminares sobre
un conjunto de prcticas y representaciones de docentes en ejercicio acerca de la enseanza
de la Historia, a partir de la experiencia que hemos desarrollado durante los aos 2015 y
2016, como parte de la Direccin de Formacin Continua de la Direccin General de
Cultura y Educacin de la provincia de Buenos Aires (DGCyE), en tanto miembros del
Equipo Tcnico Regional y el Equipo Tcnico Central. 3
Para ello analizaremos slo dos de los dispositivos de formacin actualmente en
danza en la provincia de Buenos Aires para el rea de Historia, a saber un curso de

1
CHARTIER, Anne-Marie. Con qu historia de la educacin debemos formar a los docentes? Historia
de la Educacin Anuario, Ciudad Autnoma de Buenos Aires, v. 9, p. 34, 2008.
2 ESPAA, M. Elena; FORESI, M. Fernanda. Las prcticas y el desarrollo profesional ante las
tecnologas de la comunicacin. In: SANJURJO, Liliana (coord.). Los dispositivos para la formacin en
las prcticas profesionales. Rosario: HomoSapiens, 2012, p. 183.
3
Este artculo fue escrito y enviado para su publicacin en el ao 2016. A partir del ao 2017, dentro de
la Direccin de Formacin Continua se produjeron algunos cambios que no estn contemplados en este
texto.

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capacitacin virtual, referido a la enseanza de Historia argentina y otro presencial que


aborda temticas que hacen a cuestiones centrales de la planificacin escolar. El primer
curso se llama Ensear Historia argentina: trabajadores y trabajadoras en los orgenes del
peronismo y el segundo Planificacin y enseanza en Historia y continuidad
pedaggica. Vale aclarar que hoy en da el Equipo formador de formadores de Historia
para el nivel secundario en la Provincia de Buenos Aires cuenta con ms de una treintena
de cursos virtuales y presenciales con una amplia variedad de temas, elaborados por el
grupo de profesionales constituido por alrededor de 25 docentes representantes de todo el
territorio provincial.
Ya sea en la instancia de capacitacin virtual como en la presencial que analizamos,
se implementaron espacios de trabajo compartidos como es el caso de un foro y una red
social, Facebook, correspondientemente. Consideramos que estos espacios permiten
registrar un conjunto de reflexiones que los docentes realizan sobre s mismos, su
formacin inicial y sus prcticas ulicas. En este sentido, operan como una gran posibilidad
de anlisis y diagnstico de lo que sucede hoy en las clases de Historia en el nivel de
enseanza secundaria, a partir del intercambio colectivo entre colegas - entre los profesores
y entre ellos y el equipo docente formador-. Por otra parte, les otorga a s mismos la
posibilidad de narrarse, contarse y legarse un conjunto de saberes, estrategias y prcticas que, en
trminos generales, suelen quedar en la soledad del aula. Por ltimo, habilita tambin a dar
cuenta de una didctica de la capacitacin que se elabora y reelabora en dilogo con los
docentes.
Partimos del argumento que sostiene que las aulas de capacitacin, ya sea en las
instancias virtuales o presenciales, constituyen lugares de experiencia, si por ello
entendemos un pasaje, una atravesamiento de formacin y transformacin a travs de la
cual los sujetos se reconocen a ellos mismos y a los otros y modifican su existencia. 4 Por
otra parte, en ellas circulan imaginarios docentes y representaciones profesorales sobre la
enseanza pero tambin sobre sentidos ms amplios acerca de la escuela, los jvenes, la
sociedad, la cultura, la poltica, etc.
Quines asisten de manera presencial o cursan virtualmente los cursos de
Formacin Continua? Debemos decir que la poblacin es heterognea, tanto como lo es la
provincia de Buenos Aires. Algunos docentes tienen una amplia trayectoria profesional y
4
LARROSA, Jorge. La experiencia de la lectura. Estudios sobre Literatura y Formacin. Barcelona:
Laertes, 1996, p. 8.

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otros, en cambio, una ms reciente; lo mismo sucede con la formacin inicial. A propsito
y tal como sostiene Andrea Alliaud, por la particularidad histrica de nuestro sistema
educativo, conviven los que llegan de las universidades y aquellos que llegan de los
institutos de formacin docente (ISFD).5 Otros, y no en menor medida, an cursan sus
estudios de grado pero pueden dictar clase dependiendo de la cantidad de materias
aprobadas.
En los apartados que siguen desarrollaremos algunas lneas de pensamiento que se
desprenden de la experiencia de formacin y que habilitan futuras rutas de trabajo para
pensar la enseanza de la Historia en la escuela secundaria, incluyendo las posibilidades que
ofrecen las TIC en los procesos de reflexividad profesoral sobre la enseanza y el
aprendizaje de la Historia.

LAS CULTURAS ESCOLARES Y LAS TRADICIONES INSTITUCIONALES


FRENTE A LAS TIC: NUEVOS MODOS DE RELACIN CON LA
PRODUCCIN DE LOS SABERES Y LOS CONOCIMIENTOS.

La literatura sobre el vnculo entre TIC y educacin es cada vez ms amplia y


prolfica. Por lo cual, no nos detendremos en ella, menos an considerando que no resulta
objeto primordial de nuestro trabajo. Slo tomaremos algunos aspectos sealados por la
bibliografa que hoy circula en diferentes mbitos (acadmicos, cientficos, escolares, etc.)
para circunscribir nuestras propias reflexiones.
Partimos de la premisa que acuerda con los argumentos de los especialistas en
Tecnologas de la Informacin y la Comunicacin quienes sostienen que las TIC favorecen
la ubicuidad, es decir, el uso de la tecnologa en todo tiempo y lugar y el aula aumentada, la
posibilidad de combinar la clase en su formato escolar tradicional con otras formas de
concebir y acceder al conocimiento, modificando las formas de relacin con el saber.
Cuando hablamos del aula tradicional nos referimos a aquella que emerge,
persiguiendo los estudios de Dussel y Caruso, en el seno de las transformaciones
producidas en Europa hacia los siglos XV y XVI con la formacin del mundo moderno y
la necesidad de generar dispositivos de (auto) regulacin, control y disciplinamiento de la

5
ALLIAUD, Andrea. La formacin de los docentes. In: ROMERO, Claudia (coord..). Claves para
mejorar la escuela secundaria. La gestin, la enseanza y los nuevos actores. Buenos Aires: Noveduc,
2009, p. 198.

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poblacin, que hacia finales del siglo XIX se encuentra ya desarrollada y en pleno
funcionamiento.6
En este tipo de aulas, y en relacin con las estrategias de gobierno de los individuos
(de las almas, los cuerpos, las mentes, los gestos), las formas de transmisin del saber se
identificaban con el mtodo catequstico, basado en una serie ordenada de interrogantes
formulados por el docente hacia el alumno, donde la respuesta ya estaba, de algn modo,
anticipada. En contraste, el avance de las TIC y su inclusin en el terreno educativo ofrece
procesos de formacin de docentes en ejercicio a travs de espacios virtuales promoviendo
verdaderos cambios significativos respecto a los modos de relacin con el saber.
En este sentido, los entornos virtuales de enseanza y aprendizaje rompen con
algunas matrices legatarias de la escuela republicana7. Primera ruptura: la idea de carrera o
cursus de los estudios: la concepcin progresiva, lineal y gradual en la organizacin de los
saberes resulta trastocada por una forma de producir y apropiarse del conocimiento de
manera colaborativa. La metfora del cambio podra sugerir ms bien una relacin con el
saber como la de un abanico que abre distintos caminos, todos potentes para aprender en
colectivo. Segunda ruptura: la matriz de encierro de la escuela moderna: la penetracin de las
TIC y la ubicuidad de los procesos de enseanza y aprendizaje que ella genera hace temblar
la imagen de los muros, los claustros, las paredes altas que separaban lo que pasaba dentro
de la institucin escolar de lo que suceda en el mundo exterior y que la escuela
decimonnica heredaba de la poca medieval.8 Esta representacin del formato escolar aislado
se desvanece frente a la cantidad de informacin que penetra a travs de diversos
dispositivos (computadoras, celulares, internet, etc.) generando ambientes de alta
disposicin tecnolgica.9 Tercera ruptura: las formas de comunicacin en el aula.10 Si la metfora
de Comenio en el siglo XVII, al calor de los descubrimientos que se desarrollaban en el
marco de la Revolucin Cientfica, era la del docente como un sol, alrededor del cual el
resto de los planetas giraban (el saber, los alumnos, el mtodo, la disciplina), actualmente ya

6
DUSSEL, Ins; CARUSO Marcelo. La invencin del aula. Una genealoga de las formas de ensear.
Buenos Aires: Santillana, 1999, p. 48.
7
DARCOS, Xavier. La escuela republicana en Francia: obligatoria, gratuita y laica. La escuela de Jules
Ferry, 1880-1905. Zaragoza: Prensas Universitarias de Zaragoza, 2008.
8
PINEAU, Pablo. Por qu triunf la escuela?, o la modernidad dijo: Esto es la educacin, y la escuela
respondi: Yo me ocupo. In: PINEAU, Pablo; DUSSEL, Ins; CARUSO, Marcelo. La Escuela como
Mquina de Educar. Tres escritos sobre un proyecto de la modernidad. Buenos Aires: Paids, 2000.
9
MAGGIO, Mariana. Enriquecer la enseanza. Los ambientes con alta disposicin tecnolgica como
oportunidad. Buenos Aires: Paids, 2012, p. 186
10
DUSSEL; CARUSO, 1999, p. 48.

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no existe un solo portador del saber y un solo poder autorizante -el del maestro-, sino
saberes que se pasan y traspasan entre mltiples y diversos interlocutores que producen -
juntos- conocimiento. Podramos decir que todos se mueven, inclusive los portadores del
saber, movimiento que rompe con un modo de construccin del vnculo pedaggico
asimtrico entre el maestro y el alumno.11
El escenario de rupturas que sealamos de modo general da cuenta, entre otros
aspectos no detallados aqu, del estallido que ha sufrido el aula tradicional frente al avance
de las TIC, an cuando todava existen muchas resistencias para adaptarse a las nuevas
condiciones tecnolgicas que atraviesan los procesos de enseanza y aprendizaje. Las
instancias de formacin docente continua a travs de distintos entornos virtuales de
aprendizaje (EVA) se constituyen en tanto testigos de esas mutaciones y permiten articular
en los espacios de formacin los cambios producidos en la relacin con el saber y el
conocimiento y las experiencias de los profesores en trminos de sus trayectorias escolares
y biografas profesionales.

UNA EXPERIENCIA DE FORMACIN A DISTANCIA: EXPLORANDO LA


ENSEANZA GENUINA Y POTENTE

En Argentina y, particularmente, en la provincia de Buenos Aires, se desplegaron


procesos de reforma educativa acompasados a procesos de escala global, regional y local-
en los cuales la capacitacin docente ha sido uno de los ejes centrales.12 Si bien dicho
aspecto tiene una larga historia, fue recin en el ao 2005 que el estado provincial cre la
Direccin de Formacin Continua (DFC) con las caractersticas y competencias actuales. 13
En el marco de la DFC, las primeras experiencias de educacin a distancia datan del ao
2007 y dos aos ms tarde, en 2009, se lanz el Plan de Alfabetizacin Digital.
El campus virtual de la DFC consiste en un entorno virtual de aprendizaje que
permite brindar cursos de capacitacin a distancia para los/as docentes del estado
provincial, desarrollado a partir del software Moodle.

11
GRECO, Maria Beatriz. La autoridad (pedaggica) en cuestin. Una crtica al concepto de autoridad
en tiempos de transformacin. Rosario: HomoSapiens, 2007, p. 80.
12
BIRGIN, Alejandra (coord..). Ms all de la capacitacin. Debates acerca de la formacin de los
docentes en ejercicio. Buenos Aires: Paids, 2012, p. 256.
13
Desde entonces, la capacitacin se organiz bajo el supuesto que capacitar consiste en analizar la
prctica para modificarla a la luz de los conocimientos y habilidades aprendidos, teniendo en cuenta el
contexto adnde esa prctica se desarrolla. Concepcin inspirada en el escrito: ZAPPETTINI, M. Cecilia;
RODRIGUEZ, Laura. Los dilemas de la capacitacin. Un estudio de caso. XIV Jornadas Argentinas de
Historia de la Educacin. La Plata: FAHCE-UNLP, 2006.

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Los campus virtuales, tambin conocidos como plataformas, son sitios web
especializados que poseen herramientas comunicativas que posibilitan la gestin de la
enseanza y del aprendizaje () en relacin a su funcin proporcionan un entorno que
permite maneras nuevas de relacionarse y de interactuar entre docentes y alumnos, brindan
la posibilidad de desplegar a travs del monitor de una computadora espacios como aulas
(con sus correspondientes clases, trabajos prcticos, bibliografa, recursos), bibliotecas, salas
de reuniones, intercambio de experiencias y otras instancias14. Para los recorridos de
desarrollo profesional pueden promover nuevas reflexiones acerca de las formas de ensear
y una recuperacin tanto de cuestiones epistemolgicas como didcticas. La formacin
docente continua en entornos virtuales habilita procesos de construccin de conocimientos
donde resulta primordial el trabajo de y entre los profesores.
Hasta el ao 2016, el rea de Historia tena a su cargo tres aulas virtuales 15, donde se
encontraban los siguientes espacios, creados, proyectados y diseados por el equipo
docente formador, constituido por la tutora virtual, el tutor asistente TIC y la coordinadora
del equipo provincial de Historia del nivel secundario:
- El texto de la clase para descargar, donde se desarrollan los contenidos, seleccionados y
escritos por la tutora virtual y la coordinadora del equipo.
- Una carpeta de Bibliografa (con los materiales bibliogrficos de la clase)
- Las consignas de las actividades a realizar.
- Un Foro de Intercambio (donde se socializan las actividades y los docentes se leen y
comentan entre s).
- Un Foro de Consultas TIC (solo para consultas sobre problemas de uso de la plataforma:
cmo subir un archivo?; cmo descargarlo?, etc.).

14
ESPAA, M. Elena; FORESI, M. Fernanda. Las prcticas y el desarrollo profesional ante las
tecnologas de la comunicacin. In: SANJURJO, Liliana (coord.). Los dispositivos para la formacin en
las prcticas profesionales. Rosario: HomoSapiens, 2012, p. 215.
15
A partir del ao 2017 la cantidad de aulas por Tutor Virtual pas a ser de tres a dos, pero se agregaron
cursos nuevos y ms Tutores Virtuales, con el propsito de escalabilizar el Campus Virtual de la
Direccin de Formacin Continua. Asimismo, el diseo de las aulas tambin ha cambiado a los fines de
fortalecer la identidad institucional del Campus Virtual. Segn el actual Director del Campus, Ezequiel
Layana, Tecnlogo Educativo (UTN), la cantidad de inscriptos durante el ao 2015 fue de 13.874 y en
2016, se anotaron para cursar 16.292 docentes, distribuidos en tres cohortes. Para el ao 2017 se proyecta
el dictado de 4 cohortes, dato que eleva y garantiza una gran cantidad de plazas disponibles para aquellos
docentes que aspiran a recorrer el trayecto formativo de desarrollo profesional para la carrera docente en
el marco de la DFC. Para el rea de Historia los docentes cursantes en esos aos fueron aproximadamente
810, aprob el curso un 40 %.

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- Foro de Consultas de cada Clase (espacio para hacer consultas sobre los temas que se
desarrollan en la clase de esa semana).
En las aulas se disearon, a su vez, dos espacios a los que se acceda en forma
permanente: el Banco de Fuentes y el Diario de Registro de Experiencia.
La construccin de un Banco de Fuentes ha sido una actividad que plantemos
tanto en el ao 2015 como en el ciclo 2016 y constituye un espacio en el que los profesores
compartan sus actividades. A medida que transcurran las clases semanales, incorporaban
las devoluciones que reciban en los foros por parte de la tutora y el resto de los colegas.
All tambin reunan fuentes histricas, recursos audiovisuales y materiales bibliogrficos
que iban seleccionando. Se trataba de un espacio individual a la vez que colectivo en el cual,
como sealamos, reciban devoluciones peridicas por parte de la profesora a cargo y los
docentes cursantes.
El Diario de Registro de Experiencia lo llevamos adelante solamente en el ao
2015 y fue concebido como un espacio personal (a travs de una wiki) donde los profesores
podan expresar/contar/escribir sobre el desarrollo de su experiencia en el curso y sus
prcticas docentes en general.16 A veces encontraban consignas concretas, formuladas por
los responsables del curso; en otras ocasiones, en cambio, podan aprovechar el Diario para
expresar el modo en el cual iban transitando el trayecto de formacin continua.

EJEMPLO DE TRABAJO 1: LA CONSTRUCCIN DE UN BANCO DE


FUENTES

A lo largo del curso, dictado en su modalidad virtual, denominado Ensear


historia argentina: trabajadores y trabajadoras en los orgenes del peronismo, se les
propuso a los/as profesores/as que realicen un Trabajo Prctico de carcter indito sobre
la base de bibliografa del curso, proporcionada por el equipo capacitador. La consigna
consista en seleccionar un conjunto de fuentes histricas escritas, visuales, flmicas y

16
La Wiki es un sitio web colaborativo que puede ser editado por varios usuarios. El diario de clase, que
nosotras llamamos Diario de Registro de Experiencia, funciona como un documento personal y
autobiogrfico del docente. Es un registro escrito que incluye opiniones, sentimientos, interpretaciones,
reflexiones acerca de las prcticas pedaggicas puestas en acto en el saln de clase. Se lo utiliza como
instrumento para la construccin reflexiva del conocimiento profesional y como recurso de anlisis de la
teora o supuestos que sustentan las decisiones docentes. Para profundizar: CAPOROSSI, Alicia. La
narrativa como dispositivo para la construccin de conocimiento profesional de las prcticas docentes. In:
SANJURJO, Liliana (coord.). Los dispositivos para la formacin en las prcticas profesionales. Rosario-
Santa Fe: HomoSapiens, 2012.

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estadsticas, buscar un principio ordenador de las fuentes en funcin de contenidos y


conceptos a ensear y secuenciarlas segn una fundamentacin articulada por un eje
estructurante - hiptesis- de enseanza vinculado con algunas de las entradas que le dimos
al tema de los orgenes del peronismo. Sobre esta base, la perspectiva didctica de la
propuesta de enseanza formulada a los docentes se inscribe dentro de lo que llamamos la
historia-problema y el enfoque historiogrfico de la Nueva Historia Social.
El proceso de elaboracin del Trabajo Prctico se socializa y comenta en los foros
especficos, puesto que all se comparten las fuentes histricas que los docentes
seleccionan. Por otra parte, aqu expresan sus inquietudes, el estado de avance de su trabajo
mientras que, a la vez, intervienen sobre las fuentes histricas y los anlisis de las mismas
que el resto de los colegas comparte en los foros. El lugar de la profesora tutora como
orientadora del proceso de formacin, capacitacin y reflexin en este espacio y en esta
instancia resulta fundamental, pues opera de modo tal que genera condiciones propicias
para crear un ambiente estimulante, reconocido ampliamente por el conjunto de
profesores17:

Docente cursante: Buenas noches compaeros, adjunto mi trabajo


realizado para la clase 3. Espero que les resulte interesante, como a m
me ocurri con los de ustedes, especialmente con el de Guido y el de
Mara Fernanda.
Saludos para todos!
Tutora: Me parecieron muy interesantes las preguntas que propusiste.
Para poder dar inicio a una clase imagino que se pueden emplear las
imgenes junto a las preguntas, lo cual sera un excelente disparador...
Docente cursante: puntualmente me pareci un curso muy interesante
en cuanto a la perspectiva planteada. Me cost llegar a los plazos porque
las actividades tenan su complejidad... sumado al ritmo de trabajo que
mantengo y una fuerte gripe, se me complic un tanto...De todos modos
tu muy buena predisposicin Vernica es para destacar, como tambin el
tiempo que te has tomado en mirar cada actividad, realizar sugerencias,
etc., por lo tanto, muchas gracias por la buena onda!!! A todos les deseo
una muy buena finalizacin del curso!!! Nos leemos!!!18

Se genera, como podemos leer, adems de un intercambio de orientaciones,


opiniones, sugerencias, perspectivas de abordaje, testimonio del valioso aporte colectivo en
la construccin del conocimiento histrico escolar, cierta empata entre los docentes donde,

17
ABENDAO LOPEZ, Sandra (coord). El profesor tutor en la escuela secundaria. Herramientas para
la formacin y la capacitacin. Buenos Aires: Noveduc, 2013, p. 96.
18
Curso virtual Ensear Historia argentina: trabajadores y trabajadoras en los orgenes del peronismo,
Segunda Cohorte, Direccin de Formacin Continua, 2016.

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adems de las cuestiones especficas, comparten situaciones personales pero con un tono
amistoso y de cordialidad. Tomamos nota de este hecho porque creemos que en las aulas
secundarias sera muy fructfero crear situaciones de enseanza y aprendizaje amables y de
confianza.
La construccin de un trabajo colectivo y colaborativo resulta realmente
significativo porque pone en tensin ciertos argumentos que sostienen que la tarea
profesional de los docentes radica en la reproduccin de una serie de teoras formuladas en
otros mbitos como, por ejemplo, el acadmico. Por otro lado, existen quienes afirman que
los profesores leen y traducen de manera literal lo que dicen los manuales. Si bien es cierto
que existe cierta tendencia generalizada al uso de libros escolares ms que bibliografa y
literatura histrica, igualmente cierto es el hecho de que ninguna traduccin es literal.
Existe una amplia cuota de creatividad por parte de los docentes a la hora de ensear.

EJEMPLO DE TRABAJO 2: EL DIARIO DE REGISTRO DE EXPERIENCIA.


LA VOZ DE LOS DOCENTES.

En el campus virtual se habilit un espacio para que los profesores expresen all su
experiencia de formacin, de modo tal que oficiara como un diario o registro de clase que
los habilitara a dejar por escrito no slo su proceso de formacin y opiniones sobre la
modalidad de enseanza sino, sobre todo, las expectativas respecto del curso y una
autoevaluacin acerca del desarrollo de su propia formacin. Por esta razn, tenan la
opcin de ir completando este espacio desde el comienzo del curso hasta el final, a partir
de una serie de reflexiones relativas a sus expectativas y, finalmente, mediante la
elaboracin de una evaluacin cualitativa sobre la cursada. El registro de experiencia ha
sido importante porque, entre otras cosas, arroja luz sobre los modos a travs de los cuales
el curso impact sobre su propia trayectoria formativa y las formas de concebir y llevar a
cabo la enseanza con sus estudiantes en las escuelas.

El trayecto del curso me result muy significativo para ampliar mi


formacin y replantear mis prcticas ulicas. Durante su trayecto fui
implementando en mis clases o intent aproximarme a la Historia
problema, aunque con contenidos diferentes al origen del peronismo por
tratarse de diferentes aos.
Incorpor el uso de un banco de fuentes y el planteo de preguntas
problemas. Esto result muy provechoso. La pauta de este
enriquecimiento lo pude advertir a travs de los interrogantes que
planteaban los alumnos, y el nivel de relaciones que establecan. Adems,

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contribuy a que profundice ms en la Historia social, alejndome un


poco de los libros de texto que utilizan los estudiantes, en los que en
general abordan ms la Historia fctica. Por ltimo, me permiti
repensar la forma de abordar la planificacin. Realizar un recorte de
contenidos, seleccionar conceptos y categoras de anlisis, plantear una
hiptesis o un problema de enseanza como eje vertebrador, constituy
un desafo y una ruptura frente a seguir en forma lineal una lista de
contenidos a ensear. Sigo trabajando en ello19.
Respecto del modo en el que me fue enseado el peronismo desde mi
educacin secundaria y terciaria, el curso dista mucho y es interesante el
abordaje ya que nos muestra una variedad de textos, fuentes, donde
podemos conformar un ideario del peronismo como ideologa muy rico
y transmitirlo a nuestros alumnos20.

Ya sea a travs de los foros donde manifestaron el desarrollo de su trabajo (ejemplo


de trabajo 1) como el registro de experiencia (ejemplo de trabajo 2), los profesores se hacen
visibles a travs de la escritura. En tanto herramienta intelectual, ella favorece procesos de
objetivacin y distanciamiento respecto del propio pensamiento que, al materializarse y
fijarse en un texto, favorece en el lector la revisin crtica de sus ideas y las posibilidades de
transformacin. Como herramienta cultural, habilita a la elaboracin de gneros escritos
(secundarios) que suponen determinada maduracin (prctica y de entrenamiento) para
producir una comunicacin propicia, orientada al intercambio.21
Asimismo, estas escrituras iluminan algunas cuestiones fundamentales acerca del
estado de la enseanza de la historia en las escuelas de la Provincia de Buenos Aires, debido
a que estos espacios habilitaron dinmicas de alta reflexividad sobre el propio trabajo
docente:

Principalmente la trayectoria por este curso me llev a reflexionar sobre


la importancia y significancia que tiene encarar nuestra prctica desde
una perspectiva problematizadora. Considero que el planteo de
interrogantes o ejes problematizadores como parte de nuestras
estrategias didcticas ayuda a los alumnos a comprender la complejidad
de cualquier hecho o proceso histrico analizado. A nosotros como
docentes nos permitir "conocer" qu es lo que realmente los alumnos
aprenden sobre ese hecho o proceso enseado22.

19
Curso virtual Ensear Historia argentina: trabajadores y trabajadoras en los orgenes del peronismo,
Segunda Cohorte, Direccin de Formacin Continua, 2016.
20
Curso virtual Ensear Historia argentina: trabajadores y trabajadoras en los orgenes del peronismo,
Primera Cohorte, Direccin de Formacin Continua, 2016.
21
ALVARADO, M. y Corts, M. La escritura en la Universidad: repetir o transformar, Ciencias Sociales,
Buenos Aires, n. 43, p. 1-3, 2000.
22
Curso virtual Ensear Historia argentina: trabajadores y trabajadoras en los orgenes del peronismo,
Segunda Cohorte, Direccin de Formacin Continua, 2016.

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ISSN 2318-1729

Creo que analizar crticamente las fuentes y poder abordar


comprensivamente las representaciones sociales en el aula es sumamente
rico e importante. No solo para abordar un proceso histrico como el
peronismo, sino tambin para trasladarlo a la realidad cotidiana23.

Estas reflexiones nos conducen a pensar en cierta circulacin de la enseanza de la


historia como un saber revelado, objetivado, acontecimental, en detrimento de un abordaje
de la historia en el aula en tanto una de las formas posibles de producir un relato sobre el
pasado y su reposicin en el presente con relacin a problemas actuales. La historia como
un saber que se elabora en torno a hiptesis, preguntas, debates historiogrficos, entre
otros. A propsito, un docente expresaba:

Considero que lo ms complejo fue la construccin de problemas de


enseanza que rompan con la unilateralidad y permitan construir saberes
significativos (trato de esforzarme sobre todo en este punto, aunque no
siempre logre los resultados esperados) y crticos identificando los
factores que intervienen en la explicacin de este proceso histrico,
estableciendo la red de conexiones entre estos factores y evaluando su
incidencia con respecto al primer y segundo gobierno peronista 24.

La historia-problema como enfoque de enseanza, y en tanto orientadora de una


propuesta didctica diferente al modo tradicional, tambin produce en los/as profesores
una necesidad de evaluar los sentidos que adquiere para ellos/as ensear historia:

Aprend, que se puede ensear problematizando, a re-preguntar sobre los


hechos y sucesos. A que, dada determinada situacin, darle una vuelta y
no dejar que sea algo lineal, sin sobresaltos, a ver que se puede
engrandecer la enseanza con una sola pregunta, con sembrar una duda,
a que los/as estudiantes puedan ir y venir sobre lo que van a aprender25.
(...) he aprendido que la historia no se puede ensear de memoria y que
es necesario que nuestros alumnos aprendan a investigar, para poder
analizar la historia desde otra perspectiva y no solamente por un autor
determinado26.

Frente al desafo de trabajar de una manera renovada con las fuentes histricas, los
docentes sealan cierta novedad respecto del uso de diversostipo de informacin:

23
Curso virtual Ensear Historia argentina: trabajadores y trabajadoras en los orgenes del peronismo,
Primera Cohorte, Direccin de Formacin Continua, 2016.
24
Curso virtual Ensear Historia argentina: trabajadores y trabajadoras en los orgenes del peronismo,
Segunda Cohorte, Direccin de Formacin Continua, 2016.
25
Curso virtual Ensear Historia argentina: trabajadores y trabajadoras en los orgenes del peronismo,
Segunda Cohorte, Direccin de Formacin Continua, 2016.
26
Curso virtual Ensear Historia argentina: trabajadores y trabajadoras en los orgenes del peronismo,
Segunda Cohorte, Direccin de Formacin Continua, 2016.

159
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En mi experiencia como docente soy de utilizar imgenes para trabajar


pero nunca estadsticas o propaganda eso me pareci interesante y lo voy
a aplicar, durante mi cursada en la carrera trabajamos con imgenes fijas,
vdeos, recortes pero no fuentes estadsticas27.
Hace muy poco tiempo retome mi prctica docente, y mi experiencia con
respecto a la enseanza del tema "peronismo" es muy limitada. Sin
embargo, comparando mi experiencia como alumna de nivel secundario
y la manera como se aborda la temtica en la actualidad, la mirada se
enfoca mucho ms en los cambios sociales y sus consecuencias. El
desarrollo del tema a partir de imgenes, o del anlisis de distintas
fuentes nos permite una visin menos fragmentada del proceso y es un
intento por despertar el espritu crtico de los alumnos 28.
Me alegra mucho poder compartir con Uds. este espacio que a travs de
la pluralidad permite resignificar nuestras prcticas. Me sumo al aporte
de Natalia en cuanto a la relevancia que cobra en nuestra seleccin y
jerarquizacin las fuentes histricas iconogrficas29.

Se hacen presentes las reflexiones relativas a la incorporacin de nuevos sujetos a


la enseanza de una Historia que ya no fija su mirada exclusivamente en los grandes lderes
y figuras.

Pensando estos temas desde el abordaje de una historia desde abajo, es


que inevitablemente hay que incluir a las mujeres para un estudio ms
cualitativo y completo. Y los motivos son varios, ya que al incluir la
cuestin del gnero se profundizan las visiones sobre las relaciones
socio-econmicas y polticas de tiempos pasados. Al mismo tiempo se le
da voz a las mujeres como grupo que ha sido postergado y omitido
intencionalmente por la Historia Tradicional30.

En este sentido, hallamos alusiones al curso como experiencia que les permite
replantear o repensar sus prcticas ulicas y proyectar modos de enseanza u abordajes
que no conocan o nunca haban implementado. Motivo por el cual, los criterios
historiogrficos interpelan a los docentes en su propia formacin:

Al trabajar peronismo en la escuela secundaria no me animaba a plantear


la utilizacin de la propaganda no slo como generadora de consenso
sino como herramienta para manipular o crear imaginarios. Luego de
trabajar las interpretaciones regionales sobre el fenmeno peronista y los
nuevos aportes a este campo de estudio, creo que puede trabajarse este

27
Curso virtual Ensear Historia argentina: trabajadores y trabajadoras en los orgenes del peronismo,
Tercera Cohorte, Direccin de Formacin Continua, 2015.
28
Curso virtual Ensear Historia argentina: trabajadores y trabajadoras en los orgenes del peronismo,
Segunda Cohorte, Direccin de Formacin Continua, 2016.
29
Curso virtual Ensear Historia argentina: trabajadores y trabajadoras en los orgenes del peronismo,
Segunda Cohorte, Direccin de Formacin Continua, 2016.
30
Curso virtual Ensear Historia argentina: trabajadores y trabajadoras en los orgenes del peronismo,
Segunda Cohorte, Direccin de Formacin Continua, 2016.

160
Revista histria, histrias, volume 5, nmero 9, jan.jul. 2017
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problema como hiptesis con un marco terico que lo fundamente, lo


confronte y lo ponga en discusin31.
En cuanto a lo que fue el curso en s, me pareci muy enriquecedor, me
abri la mente en cuanto a las distintas fuentes histricas que puede
utilizar en mis clases, as como tambin la posibilidad de que el alumno
sea sujeto activo de nuestra historias32.
He realizado varios cursos (Geografa, Economa, TIC, etc.) pero es mi
primer curso de Historia y la dinmica conceptual es muy enriquecedora,
ya que generalmente realizaba secuencias didcticas a partir del anlisis
del enfoque de la historia: social, desde abajo y de la cultura. Sin
embargo, la historia de las mujeres, constituye en lo personal, un nuevo
paradigma que este curso me dio la posibilidad de abordar, desarrollar y
resignificar en futuros procesos de enseanza33.

La experiencia de intercambio en los foros, tanto con colegas de diversos lugares de


la provincia de Buenos Aires como con la tutora, tambin ha sido valorada positivamente
como un espacio que les gustara poder sostener o profundizar.

Teniendo en cuenta lo ya mencionado, puedo decir que, todos si bien


tenemos, y hemos pasado y hemos sido atravesados por diferentes
instituciones que nos han formado. He visto en esta aula virtual y a lo
largo de la cursada, diferentes puntos de vista y conceptos de los cuales,
puedo decir, y no caer en la obsecuencia; que uno aprende no de solo de
su propia experiencia, sino de las experiencia y puntos de vista, aun de
aquellos que son contradictorios de nuestras instituciones que nos
formaron, pero no por ello, menos enriquecedoras34.
El curso me permiti reflexionar sobre las clases que he dado sobre el
peronismo. Gracias a este camino transitado, not que me centr muchas
veces ms en lo poltico (por cuestiones de tiempo y de programa) ms
que en el aspecto de la historia desde abajo. He obtenido recursos
nuevos, al mismo tiempo que el trabajo de mis colegas me abri varias
puertas para tratar el tema (preguntas replanteos, etc.)35.

La necesidad de ser ledos y la valoracin de las devoluciones que reciben al


compartir sus actividades con el resto de los colegas, da cuenta de la soledad con la que
muchas veces se trabaja. El quehacer docente, sobre todo en el nivel secundario, transcurre

31
Curso virtual Ensear Historia argentina: trabajadores y trabajadoras en los orgenes del peronismo,
Segunda Cohorte, Direccin de Formacin Continua, 2016.
32
Curso virtual Ensear Historia argentina: trabajadores y trabajadoras en los orgenes del peronismo,
Segunda Cohorte, Direccin de Formacin Continua, 2016.
33
Curso virtual Ensear Historia argentina: trabajadores y trabajadoras en los orgenes del peronismo,
Segunda Cohorte, Direccin de Formacin Continua, 2016.
34
Curso virtual Ensear Historia argentina: trabajadores y trabajadoras en los orgenes del peronismo,
Segunda Cohorte, Direccin de Formacin Continua, 2015.
35
Curso virtual Ensear Historia argentina: trabajadores y trabajadoras en los orgenes del peronismo,
Segunda Cohorte, Direccin de Formacin Continua, 2016.

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en muchos casos sin la posibilidad de compartir e intercambiar los modos de aprender y


ensear.

Me pareci muy buena la propuesta de solicitar la participacin en los


foros comentado a los compaeros. A veces esto no se da porque no nos
conocemos, es difcil repreguntar o cuestionar el trabajo de un colega,
por eso los intentos son tmidos y de aprobacin, pero creo que es una
cuestin de prctica. Con el tiempo los debates virtuales van a ser tan
ricos como si se estuvieran dando en el aula36.

Tambin, aparecen descripciones del contexto institucional como una limitante: la


falta de tiempo para el dictado de clases ms ricas y complejas, la excesiva cantidad de
horas frente a los cursos, la escasez de recursos. De todos modos, en la mayora de los
casos, es posible observar la voluntad y el deseo de los docentes de re-pensar y enriquecer
sus prcticas. Es decir, la condicin de surgimiento de nuevas formas de enseanza.

Hoy nuestros alumnos (no en su totalidad) estn sumergidos en una


problemtica social cada vez ms absorbente. Ms all de eso no todos
los docentes, y ac cuestiono la vocacin de algunos, dan lo suficiente en
los diferentes tramos de la escuela en general. El alumno llega a los
diferentes aos sin las herramientas necesarias para una redaccin o
simplemente el entendimiento de texto, entendiendo tambin la difcil
labor del docente que muchas veces es sin apoyo familiar de los alumnos.
Esto nos imposibilita dar unos materiales un poco ms complejos, ya que
tambin estamos presionados con el tiempo y los contenidos a
desarrollar, nos impide el detenimiento en ciertas cosas que deberan
estar desarrolladas. Desde mi punto de vista, para seleccionar un
material, sea el trabajado en este curso u otros es depende del grupo al
que vamos a ensear. Respecto a los contenidos trabajados son
totalmente aplicables para el trabajo ulico y as lograr que no solamente
exista la historia de personajes o sujetos especficos, dar cuenta que
nosotros como sociedad, HOY estamos escribiendo la historia 37.

En concordancia con los aspectos sealados, emergen reflexiones vinculadas al


curso como una instancia de potenciacin de prcticas innovadoras.

Lo que este curso me aport fue la reflexin de mi propio trabajo para


pensar en cmo potenciar eso que vena trabajando. Una mirada ms
integral, concreta para pensar no slo el contenido sino la forma en que
se plantea. Pensar en el anlisis de diferentes fuentes, cmo se analiza un
documento (creo que este es un punto central para nuestros alumnos y

36
Curso virtual Ensear Historia argentina: trabajadores y trabajadoras en los orgenes del peronismo,
Primera Cohorte, Direccin de Formacin Continua, 2016.
37
Curso virtual Ensear Historia argentina: trabajadores y trabajadoras en los orgenes del peronismo,
Segunda Cohorte, Direccin de Formacin Continua, 2016.

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ISSN 2318-1729

que los acerca un poco al trabajo que realiza un historiador) la


vinculacin entre lo poltico-cultural-econmico-social y el plano
nacional y local son cuestiones que en trminos de la metfora de la
autopista me hacen pensar que llegu a destino en mejores condiciones
de las que arranqu38.
Siempre me result difcil la enseanza del peronismo, debido a la
complejidad del histrico movimiento, su actualidad, su constante
apelacin y resignificacin, y la abundancia de interpretaciones
acadmicas y subjetivas. Siempre fue difcil no movilizar o sentirse
movilizado y, al mismo tiempo, presentar un tema acabado. Sin embargo,
hace un par de aos que la decisin de apoyar las clases en diversas
fuentes me ha servido para darle coherencia al conjunto y sentido al
aspecto estudiado. Este curso no hace ms que reafirmar mi idea, mi
estrategia, en funcin de la consideracin de la fuente visual como un
recurso efectivo para la enseanza del peronismo y de la unidad en
general39.

Como puede percibirse a travs de las voces de los docentes, algunas reflexiones
estn orientadas por la especificidad de la enseanza de la disciplina y otros factores por el
orden institucional, ambas dimensiones se entrecruzan y resultan fundamentales analizarlas
as, imbricadas, a la hora de pensar polticas de formacin docente.
Los espacios de reflexin sobre el curso, entonces, emergen como lugares
privilegiados en los cuales se puede volver sobre las prcticas y re-leerlas a la luz de la
experiencia de formacin en curso o interrogarlas a partir de reconocer su propio
accionar.40 En este sentido, los entornos virtuales, en los cuales la palabra se expresa,
fundamentalmente, en forma escrita, potencian las habilidades reflexivas de los docentes
sobre su trayectoria y el quehacer cotidiano en las aulas.

UNA EXPERIENCIA DE FORMACIN ATRAVS DE LAS REDES SOCIALES

Para el curso presencial basado en la temtica de la planificacin escolar, tambin


realizado en 2015 en un distrito de la Provincia de Buenos Aires llamado Brandsen, situado
a unos 85 Km de la ciudad de Buenos Aires, se propuso a los docentes participar, adems,
en una red social, en este caso a travs de Facebook.

38
Curso virtual Ensear Historia argentina: trabajadores y trabajadoras en los orgenes del peronismo,
Segunda Cohorte, Direccin de Formacin Continua, 2016.
39
Curso virtual Ensear Historia argentina: trabajadores y trabajadoras en los orgenes del peronismo,
Segunda Cohorte, Direccin de Formacin Continua, 2016.
40
LITWIN, Edith. El oficio de ensear. Buenos Aires: Paids, 2008, p. 121.

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A esta altura, no caben dudas que la cultura digital nos coloca frente a nuevos
desafos pedaggicos y, el uso de Facebook en el aula, es uno de ellos. Como seala Ins
Dussel:

Las redes sociales tienen algunos rasgos que las convierten en mbitos
novedosos: la conectividad, la comunicacin casi inmediata, la
sociabilidad extensa y la gran visibilidad. Todo eso est permitiendo
organizar mundos de experiencia muy distintos a los que conocamos.
Tambin es una novedad la combinacin de palabras e imgenes: si bien
Facebook y Twitter son plataformas con codificaciones y gneros un
poco distintos, ambos comparten (y pugnan por intensificar) esa mezcla
de signos que puedan expresar ideas y, sobre todo, sensaciones
momentneas41.

Otras de las bonanzas que podemos sealar del uso de Facebook en la clase radica
en la capacidad que tiene esta red social para producir una circulacin horizontal de los
mensajes; promover mayor colaboracin debido al intercambio de contenidos; trascender,
como sealamos anteriormente, el espacio del aula y seguir comentando, descargando
materiales y publicando a cualquier hora y desde cualquier lugar. 42 Asimismo, el espacio de
los comentarios estimula la conversacin y profundizacin de procesos cognitivos
generados, en este caso, a travs de los vnculos que se establecen entre los profesores y
entre ellos/as y el/la docente capacitador/a.43 Nos referimos, junto con la autora Mariana
Maggio, al enriquecimiento de las prcticas que se produce en estos espacios informales
pero no por eso menos formativos, al poder revisitarlas a partir de alguna sugerencia de
textos, videos u otros recursos, los interrogantes que se formulan entre los mismos
docentes o las sugerencias que se realizan entre ellos y la posibilidad de evaluar el sentido y
la orientacin de sus propios trabajos, que implementan o implementarn en el futuro.
Por otra parte, el hecho de compartir documentos (trabajos prcticos, materiales,
bibliografa, otros), permite que estos textos, en tanto escrituras de los docentes, queden
disponibles, visibles, para todos los participantes (e inclusive para otros en caso de que el
grupo de Facebook sea abierto) y recurrir a ellas cuando as lo necesiten o deseen. Vale en
este sentido retomar la categora de memorias docentes para dar cuenta de que estos

41
DUSSEL, Ins y J. A. QUEVEDO. Educacin y nuevas tecnologas, los desafos pedaggicos ante el
mundo digital. Buenos Aires: Santillana, 2010, p. 23.
42
ROMERO MANCO, Ins. Facebook. Aprendizaje en red: de lo social a lo educativo, 2011 Disponvel
em: <http://portal.educ.ar/debates/educacionytic/nuevos-alfabetismos/facebook-aprendizaje-en-red-de-
1.php>. Acesso em:
43
MAGGIO, Mariana. Enriquecer la enseanza. Los ambientes con alta disposicin tecnolgica como
oportunidad. Buenos Aires: Paids, 2012, p. 186.

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ISSN 2318-1729

escritos (junto con documentos burocrticos, planes de estudios, discursos escolares, etc.)
producidos en el mbito escolar pueden iluminar aspectos de la vida de los profesores y
sobre el sentido que le imprimen a su trabajo44. De este modo, se evidencia que los
profesionales de la educacin no se limitan slo a ensear a leer y a escribir. Son
productores de textos que proyectan formas de enseanza, expresan dificultades, eternizan
prcticas o las subvierten. Estas escrituras ganan importancia no slo para comprender la
cultura escolar sino, especialmente, la cultura docente.45 En definitiva, textos que
operacionalizan de algn modo la produccin, transmisin y circulacin de saberes y
conocimientos. Sin embargo, en la medida que estos documentos se renuevan y/o se
reescriben en el espacio virtual, resultan una muestra bien interesante acerca del carcter
incompleto y provisorio del conocimiento, pero dejan huella, registro, de los saberes que
han pasado por all y cmo han sido resignificados en un intercambio colectivo entre
colegas docentes y capacitadores.
A diferencia del curso virtual, donde se propuso a los docentes elaborar un banco
de fuentes con distinto tipos de recursos (bibliogrficos, pictricos, fotogrficos, etc.) se
solicit a los profesores que compartan en el espacio de comentarios un Trabajo Prctico
ya elaborado por ellos mismos, que considerasen su mejor produccin, queriendo decir con
ello un trabajo que considerara valioso por las posibilidades que generaba de aprender, de
alcanzar los contenidos o que, simplemente, les gustara. No es motivo de este texto pero el
gusto, el placer, las emociones deberan entrar con ms nfasis en los estudios sobre la
didctica especfica porque sin ese aspecto afectivo-sensitivo mucho de lo que sucede en las
aulas, sobre todo la disposicin de los docentes para ensear, no sera posible.
El propsito de la consigna estaba orientado a provocar, poner en movimiento una
actitud de bsqueda, reconocimiento y seleccin de sus propios materiales de trabajo, as
como generar empata con sus documentos y asumirse en tanto hacedores-productores de
los saberes que transmiten y arquitectos de los contextos de enseanza que promueven.
De este modo, la relacin con el saber de la experiencia era diferente. No se
parta de una consigna del equipo formador sino de sus propias elaboraciones y
reelaboraciones en funcin de los intercambios entre colegas en el espacio de los

44
CATANI, Denice Brbara.; BUENO, Belmira Oliveira; SOUSA, Cynthia Pereira de. Os homens e o
magistrio: as vozes masculinas nas narrativas de formao, Revista Portuguesa de Educao, Braga, v.
11, n. 1, p. 5-22, 1998.
45
MIGNOT, Ana Chrystina Venancio; CUNHA, Maria Teresa Santos (org.). Prcticas de memoria
docente. So Paulo: Cortez Editorial, 2003.

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comentarios. Sin embargo, no todo es la panacea. Algunos de los intercambios quedaban


inconclusos, sin producir los efectos deseados sobre la prctica del trabajo colaborativo.
Algunos ejemplos:

Docente cursante: Buen da!! El trabajo prctico que voy a compartir


con ustedes, es para 2 ao de secundaria. Est pensado desde el
proyecto de trabajo: "Ensear Historia a travs del cine". El tema
abordado es: la Conquista y la Colonizacin. Trabajo prctico pelcula:
1492. La conquista del paraso.

Frente a esta propuesta, la tutora del curso comparti en el espacio comentarios


una bibliografa como orientacin para el encuadre de su trabajo. La profesora agradeci el
aporte pero no pudimos observar el modo en que esa bibliografa fue significativa para la
docente. No recibi, en cambio, comentarios de colegas, pero s dos me gusta.
En otra oportunidad, la profesora del curso dej planteadas las siguientes
preguntas:

Siempre en la historia hay respuestas correctas o incorrectas? La


seguimos y espero se sumen a este debate! o en todo caso tambin, las
respuestas son correctas para quin? Cmo se construye el pensamiento
y el conocimiento histrico? Espero intercambio.

Lo que suceda, en general, era que los/as docentes retomaban los interrogantes en
la instancia presencial del curso, puesto que era la primera vez que una red social era
utilizada con sentido pedaggico. De todos modos, esos interrogantes actuaban como
estmulo para provocar su pensamiento, porque en los encuentros presenciales se
retomaban y se trabajaba sobre ellos.
Creemos, en principio, que dar a conocer las voces de los/as docentes resulta
fundamental si aspiramos a conocer qu piensan, qu sienten, qu tienen para decir, para a
partir de all, proyectar polticas de capacitacin capaces de acompaar y satisfacer
expectativas de los/as profesores que luego se traduzcan en un verdadero impacto en la
transformacin de la enseanza. Sin dudas, los entornos virtuales, habilitan por aparicin o
por omisin a que esas voces aparezcan (o no) de manera espontnea. Y all radica su valor.
Si aparecen, ponen a rodar ideas, pensamientos, sensaciones y si no (como en la propuesta
de la red social) tambin permite a los "formadores de formadores" reflexionar sobre el
lugar donde intervenir para producir los cambios esperados.

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Ya sea las propuestas de participar en los foros o las redes sociales, habilitan a
reflexionar y promover el mejoramiento de las prcticas de enseanza. En el primer caso,
porque crear un TP nuevo (aunque nunca es nuevo del todo) basado en las potencialidades
del uso de fuentes histricas como textos posibles a partir de los cuales construir
aprendizajes histricos de manera razonada, puede sacarle el vicio, por decirlo de algn
modo, a prcticas reiterativas y habituales. Sabemos que, por el tipo de trabajo que atraviesa
a los docentes (el vrtigo del da a da, el calendario escolar, la cantidad de horas, la cantidad
de evaluaciones para corregir, etc.), muchas veces no cuentan con tiempo disponible para
ponerse a crear. Y, en este sentido, el espacio virtual se convierte en un ambiente
estimulante. En el segundo caso, an cuando la participacin en el espacio comentarios
result difcil, compartir y revisar esas escrituras otorga certezas a los/as docentes y, sobre
ellas, los profesores pueden volver a contextualizar sus producciones en el marco de las
condiciones proporcionadas por las redes respecto a la produccin del conocimiento y
enriquecerlas, revisarlas, ajustarlas, etc.

CONCLUSIONES

La experiencia de formacin docente continua que desarrollamos durante el ao


2015 y lo que va de 2016 se bas en el dictado de un curso de modalidad virtual donde el
foro constitua un espacio fundamental de intercambio colectivo y un curso presencial en el
que, adems de las instancias de encuentro en la clase presencial, se les propuso a los
docentes trabajar en una red social, en este caso particular, en Facebook.
Respecto de las posibilidades que estos espacios ofrecen para producir
conocimiento colectivo, socializar, reescribir textos y compartir experiencias, no
encontramos demasiadas diferencias, an cuando existen para el primer caso reglas ms
formales, por decirlo de algn modo, relacionadas sobre todo con las formas de
participacin, evaluacin y acreditacin. Ya sea a travs del espacio de comentarios en
Facebook como en el espacio del foro (en el campus virtual), estas modalidades de
intervencin y participacin resultan escenarios formativos donde, no slo se produce el
intercambio sino tambin la socializacin, posibilitando el anlisis y la interpretacin de
situaciones didcticas, identificar y contrastar puntos de vista propios y ajenos, articular la

167
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teora con la prctica, explicitar marcos conceptuales, conformar comunidades de


aprendizaje dispuestas a seguir aprendiendo sobre su propia enseanza.
La experiencia nos autoriza a sostener la premisa de que los docentes se visibilizan,
paradjicamente, en las instancias virtuales. Con ello no queremos decir que los EVA son
la panacea. Pero, an con sus diferencias (estilos, personalidades, etc.) en los distintos
espacios (foros de la clase, de consulta, registro de experiencia, etc.) se expresan,
reflexionan, comentan, hacen aparecer su voz por medio de la escritura. Y podemos
afirmar que en la gran mayora de los casos lo hacen con un gran compromiso en el que
emerge, a contrapelo, la propia evaluacin del recorrido de su formacin.
Los intercambios, sin embargo, no significan necesariamente acuerdos. Las voces
que se expresan a travs de la escritura no dejan de ser, tambin, lugares de litigio.46 Se
litigan representaciones profesorales acerca de la enseanza, los hechos de la historia, los
modos de aprender y ensear. Se disputan los saberes y la presencia del Estado a travs de
los textos curriculares. Arrojan, a su vez, cuestiones ms amplias sobre las culturas
escolares, la sociedad, la poltica y la cultura. De all que se vuelve imprescindible la
generacin de espacios colectivos de intercambio que democraticen la palabra.
Por otra parte, a travs de las voces de los/as docentes, estamos en condiciones de
demostrar algunas cuestiones preliminares del estado de la enseanza de la Historia en la
provincia de Buenos Aires. Estas voces permiten registrar situaciones referidas a los
desafos que les genera a los /as docentes elaborar planificaciones didcticas basada en la
historia-problema y enfoques historiogrficos no convencionales, a la hora de seleccionar,
jerarquizar y secuenciar contenidos. En este sentido, an notamos la persistencia de
prcticas tradicionales de lectura y escritura tales como la repeticin, memorizacin,
fijacin, etc. El cuestionario gua con preguntas cerradas, el crucigrama y la sopa de letras
perviven todava en algunas prcticas de enseanza. Nosotros apostamos a que las prcticas
de escritura y lectura que propusimos en el campus virtual y en las redes sociales se
constituyan en prcticas significativas posibles de traspolar a las aulas, con el objetivo de
que propicien una resignificacin potente de la enseanza orientada a los/as jvenes,
centrada en las buenas prcticas.
Los cursos de capacitacin junto con otros dispositivos de formacin y
actualizacin permanente de docentes en ejercicio que emanan de la Direccin de

46
RANCIRE, Jacques. El desacuerdo, Poltica y Filosofa. Buenos Aires: Nueva Visin, 1996.

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Formacin Continua de la Provincia de Buenos Aires, en tanto una poltica de promocin y


regulacin promovida por el Estado, que garantiza el derecho de capacitacin a todos y
todas las/los docentes del territorio provincial, tiene como propsito fundamental mejorar
la enseanza e inspirar buenas prcticas docentes capaces de transmitir a los/as jvenes
saberes socialmente significativos para su insercin en el campo laboral y ejercer su
ciudadana de pleno derecho. Es cierto que creemos que la transformacin es posible, pero
suponer que la modificacin y el mejoramiento de las prcticas (y toda la educacin) recae
slo en profesores y en dispositivos de formacin continua, es olvidar la fuerte incidencia
de la formacin inicial, los modelos profesorales, los factores contextuales de las
instituciones que los atraviesan (estructurales y estructurantes), el peso de las culturas
escolares y una gramtica escolar que se resiste a las reformas educativas 47. An as, los
espacios que permiten a los/as docentes aprender a ensear resultan fundamentales para,
como expresa Chartier en el epgrafe inicial, generar situaciones donde clarificar principios,
definir prioridades, combinar datos heterogneos e imaginar varias situaciones de accin en
el terreno, agregamos, de sociedades democrticas.

Recebido em: 11 de novembro de 2017


Aprovado em: 22 de maro de 2017

47
TYACK, David; CUBAN, Larry. Ciclos de poltica y Corrientes institucionales Cmo las escuelas
cambian a las reformas. In: ______. En bsqueda de la utopa. Un siglo de reformas de las escuelas
pblicas. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 2001.

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CINEMA E ENSINO DE HISTRIA ENTRE DEBATES E PRTICAS

CINEMA AND HISTORY TEACHING AMONGST PRACTICE AND


DEBATES

Vitria Azevedo Fonseca


Professora da Secretaria de Estado de Educao de So Paulo - Brasil
Doutora em Histria pela Universidade Federal Fluminense
e-mail: vitoria.azevedo@gmail.com

RESUMO

Tendo em vista debates sobre como usar filmes em salas de aula, especificamente no ensino de
histria, apresento a experincia de exibio do mesmo filme (Sonhos Tropicais, Andr Sturn, 2002)
para diferentes turmas do 9 ano do Ensino Fundamental, adotando procedimentos preparatrios
diferenciados a fim de debater e defender a importncia de, alm da alfabetizao da linguagem
cinematogrfica refletir tambm sobre o desenvolvimento da compreenso dos estudantes dos
debates e dilogos historiogrficos estabelecidos pela narrativa audiovisual para compreenso das
intertextualidades presentes nos filmes. Finalizo com a anlise comparativa entre as diferentes
metodologias e seus diferentes resultados.

Palavras-chave: filmes; ensino de Histria; educao; cinema-Histria

ABSTRACT

In this paper, I present an experience of exhibition of the same movie (Sonhos Tropicais, Andr
Sturn, 2002) for different classes adopting different methodologies. In one group, studants are
doing activities about audiovisual language, in another group of studants the activities are focusing
in understanding of the debates and dialogues "historiographical" established, and, in the last group,
there is no activities before the exibihition of film. I conclude with a comparative analysis of the
different methodologies and their different results.

Keywords: movies; teaching history; education; cinema-history

Um dos motivos do cinema ser um meio muito rico no processo de formao


exatamente o fato de estimular as emoes do espectador, e esta um elemento
fundamental na educao. Ao assistir um filme, todos os sentidos esto abertos para que
no se perca a compreenso da histria representada, por isso, a linguagem de fico
perfeita para o ensino. Segundo Marlia Franco, Cinema e prazer so quase inseparveis, a
perspectiva educacional pode encontrar incontveis possibilidades unidas a essa
dobradinha.1 Ela acredita na linguagem audiovisual como sedutora dos sentidos: O
binmio sentidos-emoo, acionado pelo contato com as imagens em movimento, torna-se

1
FRANCO, Marlia. Prazer audiovisual. Revista Comunicao e Educao, So Paulo, Ano I, n. 2, 1995,
p. 52.

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o primeiro degrau para se chegar aos nveis racionais mais altos que podem proporcionar
uma aprendizagem slida dos conceitos e sua aplicao.2. Enquanto a educao se debate
nas linguagens apropriadas para o ensino "...os meios audiovisuais continuam sendo
consumidos largamente pelas pessoas, proporcionando um derrame de informao que,
mesmo sem tratamento pedaggico, transforma-se em formao."3
Conforme indicou Ktia Abud4, as facilidades tecnolgicas e, principalmente, as
iniciativas dos professores, geradas pelo fascnio do cinema, fazem com que a exibio de
filmes nas salas de aula, e nas aulas de histria, seja algo crescente. Usar filmes na escola e,
especificamente, nas aulas de histria, alm de uma prtica comum disseminada, tambm
vem sendo defendido por educadores e pesquisadores como meios de dinamizar a sala de
aula para alm de um formato tradicional.
No entanto, considerando a especificidade do uso de filmes no ensino de histria,
proponho que, para alm da questo metodolgica de como utilizar filmes no ensino em
geral, pensemos sobre as caractersticas dos filmes exibidos, a especificidade do filme
histrico e as experincias mltiplas possveis no ambiente escolar na aprendizagem
histrica.
Os debates acadmicos em torno da questo Cinema e Histria nem sempre
enfocam as especificidades do filme histrico e as questes especficas do ensino de
histria. Nesse sentido, os filmes com temticas histricas acabam sendo deixados de lado
e so comumente descartados pois carregam uma carga pejorativa em funo de uma
tradio de anlise. As crticas no seu uso voltam-se para a possibilidade de uso ilustrativo,
e, por outro lado, pesquisadores enfatizam a argumentao de Marc Ferro5 sobre a
impregnao do presente em qualquer filme. No entanto, no ensino de histria, entre usar
o filme como ilustrativo de uma verdade do passado, e, por outro lado, limitar sua
abordagem ao presente, existem outras possibilidades do mesmo como dispositivo
pedaggico e catalisador de aprendizagens.
De acordo com Marcia Landy a abordagem de filmes histricos, que chegou
tarde no roll de anlises dos historiadores, permaneceu durante algum tempo como uma

2
FRANCO, Marlia. Linguagens audiovisuais e cidadania. Revista Comunicao e Educao, So Paulo,
Ano III, n. 9, 1997, p. 27.
3
FRANCO, 1997, p. 34
4
ABUD, Ktia Maria. A construo de uma Didtica: algumas ideias sobre a utilizao de filmes no
ensino. Histria [online], So Paulo, v. 22, n. 1, 2003, p. 183-193.
5
FERRO, Marc. Existe uma viso cinematogrfica da histria? in: FERRO, Marc. A Histria Vigiada.
So Paulo: Martins Fontes, 1989.

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anlise de historiadores tradicionais buscando preciso historiogrfica, o que acabou por


tornar-se um dos maiores obstculos para uma avaliao mais apropriada dos usos do
passado no cinema.

O crtico no pode simplesmente ignorar a eliminao de determinadas


informaes, a distoro de certos personagens, e a mistura de fato e
fico; um crtico escrevendo sobre a histria em filme deve encontrar
um mtodo para descrever e analisar esses desvios a partir de dados
empricos6.

Os trabalhos de Robert Rosenstone, Pierre Sorlin, e outros, por exemplo,


procuram compreender o texto cinematogrfico a partir dos seus prprios meios ao
invs de interpretar pura e simplesmente os eventos a partir de parmetros externos ao
filme, ou, analisa-los como documentos em busca de informaes sobre o presente.
Buscando ampliar a compreenso do filme com temtica histrica, Robert
Rosenstone7 classifica-o em trs categorias: tradicional, documental e experimental. Os
filmes experimentais mesclam tanto documentrios quanto fices e possuem a semelhana
de no seguirem o velho estilo naturalista de Hollywood. Para explicar como a
interpretao histrica construda nos filmes experimentais, o autor elenca alguns
elementos presentes nos filmes histricos tradicionais e suas contraposies possveis. De
acordo com ele, o filme tradicional cria uma narrao, com incio, meio e fim embutido
numa ideia de evoluo humana. Da mesma forma, contra a ideia do filme tradicional no
qual o passado parece fechado e simples, alguns cineastas optam, por exemplo, por filmes
pensamentos, filmes teses, ou episdicos, para criar uma variedade de pontos de vista,
criando, desta forma, uma imagem do passado mais ampla e complexa. Se os filmes
tradicionais optam pela constante criao de emoes, os filmes experimentais podem criar
representaes desdramatizadas, sem apelos emocionais. Rosenstone demonstra que
existem diversas maneiras do cinema construir interpretaes histricas sem limitar-se
forma de um filme histrico tradicional.
Para alm de uma anlise do filme como documento, alguns autores brasileiros
debruam-se sobre as relaes entre as construes cinematogrficas e seus dilogos com

6
LANDY, Mrcia. The Historical Film: History and Memory in Media,. London: The Athlone Press,
2001, p. 12.
7
ROSENSTONE, Robert A.. El pasado en imgenes: El desafo del cine a nuestra idea de la historia.
Barcelona: Ariel, 1997

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tradies historiogrficas, tais como trabalhos de Eduardo Morettin, Alcides Freire Ramos8
e Vitria Fonseca9. Conforme apresentado por Fonseca10, na utilizao de filmes no ensino
de histria, pelo menos cinco questes devem ser consideradas em funo da
especificidade deste objeto cultural. Em primeiro lugar, os livros didticos reproduzem
orientaes pautadas por debates acadmicos datados11, nesse sentido, a ideia de enfatizar a
linguagem cinematogrfica na anlise de filmes no deve ser a nica abordagem. Outro
aspecto, a compreenso de que filmes histricos estabelecem dilogos com diferentes
tradies de interpretaes dos temas que enfocam, e, alm disso, pode ser considerado um
tipo de adaptao. Os filmes histricos brasileiros tambm podem ser inseridos na
compreenso da arte com papel social, e, muitas vezes, podem apresentar interpretaes do
passado vlidas historicamente.
Assim, podemos ampliar a noo de filme histrico e compreender suas diferentes
estticas e problemticas ao longo do ltimo sculo. Embora o passado tenha sido
tematizado diacronicamente na cinematografia brasileira, com momentos de maior ou
menor expresso, sempre esteve presente nas telas de cinema, mas, nem sempre em forma
tradicional de filme histrico. Para Jean Claude Bernardet, o gnero histrico no Brasil
"... quase to antigo como o prprio cinema de fico"12.
No incio do sculo XX, existem referncias a filmes sobre Tiradentes, D. Pedro e
a independncia e a guerra do Paraguai. Filmes realizados por imigrantes italianos visando
sua integrao cultura brasileira, segundo Bernardet. Nas dcadas de 1930 e 1940, com
incentivos a realizao de filmes educativos, foi criado o Instituto Nacional de Cinema
Educativo (INCE), em 1937, onde Humberto Mauro dirigiu vrios curtas metragens
educativos, dentre eles, O Descobrimento do Brasil (1937) e Os Bandeirantes (1940)13. Na dcada

8
RAMOS, Alcides Freire. Canibalismo dos Fracos - Cinema e Histria do Brasil. So Paulo: Edusc,
2001.
9
FONSECA, Vitria Azevedo da. A Monarquia no cinema: metodologia e anlise de filmes histricos.
So Paulo: Paco Editorial, 2017.
10
FONSECA, Vitria Azevedo da. Filmes histricos e o ensino de histria: dilogos e controvrsias.
Revista Locus, Juiz de Fora, v. 22, n. 2, p. 415-434, 2016. Disponvel em:
<http://https://locus.ufjf.emnuvens.com.br/locus/article/view/2915>. Acesso em: 01 fev. 2017.
11
FONSECA, Vitria Azevedo da. Filmes no ensino de Histria na viso dos livros didticos: use com
moderao. Revista Labirinto, Porto Velho, Ano XVI, v. 24, n. 2, p. 57-70, jan./jun. 2016. Tratando
tambm da questo: PEREIRA, Lara R., SILVA, Cristiane B. Como utilizar o cinema em sala de aula?
Notas a respeito das prescries para o ensino de Histria. Espao Acadmico, Passo Fundo, v. 21, n. 2, p.
318-335, jul./dez. 2014.
12
BERNARDET, Jean Claude. Qual a histria?. In: ______. Piranha no mar de rosas. So Paulo:
Nobel, 1982, p. 57.
13
Sobre estes filmes veja: MORETTIN, Eduardo Victorio. Cinema e histria: uma anlise do filme Os
bandeirantes. Dissertao (Mestrado em Artes) Universidade de So Paulo, So Paulo, 1994; ______.

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de 1950, a mesma tendncia de tematizao da histria como cultura e construo de uma


nacionalidade est presente. No Cinema Novo, a temtica histrica tambm aparece como
forma de questionamento do presente, utilizando uma esttica particular, que contesta a
esttica naturalista. A partir da dcada de 1970, o Ministrio da Educao incentivou a
produo de filmes com temticas histricas, e algumas produes foram realizadas. Em
meados da dcada de 1980, a produo cinematogrfica brasileira volta-se para a temtica
histrica, principalmente atravs do gnero documentrio.
A partir de um levantamento14 realizado pela autora, foi possvel identificar, nos
ltimos vinte anos, englobando produes de 1996 a 2016, em torno de 240 filmes, entre
fices e documentrios cuja temtica tem alguma relao com o passado, ou, com a
dinmica do tempo na interface entre passado e presente. Analisando os ttulos dos filmes e
suas sinopses, observamos que nesse universo, 60% dos filmes so documentrios, dos
mais variados tipos e 40% adotam a esttica ficcional, com um grande nmero de filmes
tematizando o perodo da Ditadura Militar. Existem variados filmes, em diferentes
momentos da histria do cinema brasileiro, que propem interpretaes sobre o passado,
que dialogam com memrias histricas e que constroem, eles prprios, memrias 15.
Um filme histrico, mesmo com seu alto grau de ficccionalizao carrega,
necessariamente, diversas temporalidades. Nas suas propostas, Marc Ferro aborda uma das
temporalidades que pode ser analisada em todos os filmes, que o presente. No entanto, o
filme com temtica histrica dialoga com o presente, mas tambm com a memria
histrica, com tradies de representaes visuais, aborda o presente das obras de base
passadas, e pode, inclusive, problematizar a histria.
der Cristiano Souza, analisando o cinema a partir de referenciais da educao
histrica, prope como abordagem, para alm da anlise do filme como documento, ou,
como forma de escrita da histria, uma terceira forma de anlise.

Temos ento dois enfoques principais: os filmes como documentos


histricos, aos quais se recorre para aprofundar a reflexo sobre o
perodo em que as pelculas foram produzidas. Os filmes como discursos
sobre a histria, aos quais se constroem crticas historiogrficas sobre

Os limites de um projeto de monumentalizao cinematogrfica: anlise do filme Descobrimento do


Brasil (1937), de Humberto Mauro. Tese (Doutorado em artes) Universidade de So Paulo, So Paulo,
2001.
14
O levantamento foi realizado em publicaes da Ancine (http://www.ancine.gov.br/) e no portal
Histria do Cinema Brasileiro (http://www.historiadocinemabrasileiro.com.br/).
15
FONSECA, Vitria Azevedo da. Histria escolar, cinema brasileiro e histria pblica: caminhos de
uma memria. Revista Observatrio, Franca, v. 3, n. 2, p. 92-112, 2017.

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suas abordagens histricas. Mas h um terceiro enfoque importante, que


deve ser tambm levado em considerao, que se trata de entender os
filmes como agentes da histria.16.

Esse terceiro enfoque est relacionado a compreender de que maneira o cinema


contribui para construo de uma cultura histrica, e, no ambiente escolar, compreender as
leituras dos filmes histricos realizadas pelos alunos e professores. O autor defende a
importncia de pesquisas para compreender de que maneira so realizadas as leituras dos
filmes, tanto por parte de estudantes quanto por parte de professores.
Considerando essas reflexes, e, principalmente, questionando as orientaes
presentes em livros didticos, a experincia apresentada neste texto dialoga com os debates
sobre Cinema e Histria, incorporando aspectos relacionados ao ensino de Histria. Os
livros didticos, bases ainda importantes na prtica docente em diferentes lugares do pas,
em geral, orientam aos professores que utilizem os filmes no ensino de Histria, mas, com
algumas ressalvas, como aponta a anlise de Fonseca17. Pautados cada vez mais por
dilogos com a tradio acadmica em relao anlise flmica, os livros didticos acabam
por disseminar, acriticamente, algumas premissas que so historicamente construdas no
campo cinematogrfico. Assim, a utilizao de filmes no ensino de Histria geralmente
permeado por interdies. H quem defenda que no se deva exibir o filme sem uma
preparao, sem que os alunos pesquisem antes, etc.

Essa nfase constante dada pelas orientaes de uso de filmes em sala de


aula, na necessidade, quase imprescindvel, de direcionar a leitura dos
alunos, pode no ser aplicvel e nem interessante em toda e qualquer
situao. Em alguns casos, pode ser muito mais interessante observar as
leituras realizadas pelos alunos a partir de suas prprias percepes. E, a
partir da, iniciar o processo de ensino-aprendizagem. Nesse aspecto, o
filme pode servir como catalizador de aprendizagem e tambm como
sensibilizao. 18

A partir da inquietao sobre metodologias de utilizao de filmes com temtica


histrica na sala de aula, propus uma atividade comparativa na inteno de observar as
diferentes respostas dadas pelos estudantes. Nesse sentido, neste texto, apresento
consideraes sobre, especificamente, o uso de filmes com temtica histrica no ensino de

16
SOUZA, der Cristiano. Cinema e didtica da histria: um dilogo com o conceito de cultura de Jrn
Rsen. Histria Revista, v. 17, n. 1, 2012, p. 19.
17
FONSECA, 2016.
18
FONSECA, 2016, p. 67

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histria e possibilidades de utilizao em sala de aula a partir de uma experincia realizada


com alunos do 9 ano.

FILMES NA SALA DE AULA: E AGORA?

Aqueles que possuem a prtica de exibir filmes aos alunos sabem que esse uso do
cinema uma experincia temporal, tanto para os jovens quanto para os docentes, na qual
vai se construindo aos poucos uma anlise crtica e proveitosa. Ou seja, nem o primeiro
filme exibido pelo professor, nem a primeira exibio para os alunos, faro milagres. Cada
professor vai aprendendo com sua experincia, criando seus prprios mtodos a partir das
suas possibilidades. Por outro lado, dependendo do grupo de alunos para o qual o filme
exibido o professor poder encontrar diferentes possibilidades de aprendizagens.
Assim, partindo da proposta de compreender as leituras dos alunos importante
desenvolver, alm da teoria sobre os prprios filmes, tambm anlise das possibilidades
geradas nas exibies. Apresento abaixo uma experincia inicial que, no entanto, nos
aponta para algumas reflexes. Diante das diversas possibilidades, tornava-se premente
refletir sobre as respostas dadas pelos estudantes a diferentes metodologias de preparao
ao filme. Na prtica de sala de aula, foi possvel experimentar diversas formas de utilizar os
filmes no processo de ensino/aprendizagem e, a partir disso, vrios questionamentos foram
sendo gerados. Dentre eles estavam se os alunos deveriam ou no ser preparados para
assistir ao filme e de que maneira, enfatizando quais aspectos. Decorrente disso, a
experincia relatada aqui foi proposta.
O filme escolhido foi Sonhos Tropicais (Andr Sturn, 2002). Em meio a um surto de
dengue, com os estudantes desenvolvendo percepes sobre o processo de proliferao de
doenas e a necessidade de interveno do poder pblico, foi escolhido esse filme pois
tematiza o problema da sade pblica no Rio de Janeiro no incio do sculo XX, que
culmina na Revolta da Vacina, tema que tambm fazia parte do planejamento daquele
bimestre, naquelas turmas.
Com trs diferentes classes, foram trs diferentes tratamentos do mesmo filme. A
primeira turma foi preparada para assistir ao filme, com nfase nas questes da linguagem
cinematogrfica. A segunda, foi preparada a partir das questes relacionadas ao contexto
histrico e as interpretaes historiogrficas sobre o evento retratado no filme, e, por fim, a
terceira turma no foi preparada e assistiria ao filme simplesmente.

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PREPARANDO PARA A LINGUAGEM CINEMATOGRFICA:


ESPECIFICIDADES

A realizao de um filme de fico vai alm da criao de personagens e


elaborao de tramas que configuram um drama. As personagens so vividas por atores
que se pronunciam, projetam falas, dialogam com outras personagens, se posicionam, e
recriam a fico escrita por um dramaturgo ou roteirista em dilogo com as suas
caractersticas fsicas e as suas vivncias. Esta personagem vivida por um ator ou atriz, vive
em espaos que podem ser extenso da sua personalidade e do seu desejo ou ento que
recriam o clima do filme. Estes espaos so cenrios criados com uma finalidade expressiva
levando em considerao texturas, cores e volumes. Por sua vez estes cenrios so
iluminados, luz concebida, normalmente, de acordo com a premissa do filme com a sua
proposta esttica e estilstica. Cada luz tem seu cdigo expressivo. Alm da personagem
com seu figurino, o cenrio e a luz, temos a mis en cene que a encenao, a maneira como
os personagens se movimentam na cena e ainda a cmera que olha. Este olhar da cmera
revela enquadramentos, movimentos, focos, angulao, escolhas. O que ser mostrado? De
que ponto de vista? Plano Geral, plano detalhe, plano mdio? E os movimentos de cmera?
Tudo narra num filme. Cada um destes elementos expressivos de um filme possui sua
maneira particular de operar, mas ao mesmo tempo, quando em dilogo com todas as artes
que compem um filme, um aspecto influencia o outro.
A montagem tambm exerce um papel significativo na produo de sentido e
organizao da narrativa e do drama. Existem vrias formas de montar um filme o que
ocorre de acordo com a sua proposta. Para alguns autores a especificidade do cinema est
exatamente na montagem que o que possibilita a construo de sentido.
Assim, quando manuais escolares mencionam a necessidade da anlise da
linguagem cinematogrfica, em termos genricos, quando da utilizao de filmes no ensino
de histria, a afirmao pura e simplesmente pode no gerar ecos na prtica docente
considerando existir uma complexidade nesta afirmao que requer, muitas vezes, uma
formao especfica. Desta maneira, a partir de referenciais de anlise flmica, podemos
afirmar que no existe uma linguagem cinematogrfica geral a ser analisada, mas,
elementos de uma linguagem especificada em determinado filme, de determinada maneira,
gerando mltiplos efeitos.

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Por isso, defendo que, ao analisarmos elementos tcnicos da linguagem


cinematogrfica que sejam aliados forma e contedo, considerando no apenas a esttica,
mas, o contexto no qual se insere e os significados interpretativos que geram. Portanto, em
cada filme, podem ser eleitos para anlise elementos mais significativos para a construo
da interpretao histrica que o professor pretenda enfatizar.
No caso de Sonhos Tropicais (Andr Sturn, 2002),a construo das personagens e
suas narrativas paralelas foram eleitos elementos significativos considerando a
argumentao, presente no filme, para a explicao das causas da Revolta da Vacina,
momento culminante do filme. Assim, ao selecionar o trabalho com a linguagem
cinematogrfica, foram eleitas a narrativa fragmentada e os vrios personagens. Os
elementos ficcionais no esto dissociados dos conceitos histricos que norteiam um filme.
No pretendemos defender aqui a existncia de uma linguagem pr-estabelecida e
decodificada do cinema. As solues encontradas e incorporadas em cada filme esto de
acordo com as suas especificidades e fazem sentido no seu contexto.
Tendo em vista estas questes, com a primeira turma, selecionada para ser
preparada para ver o filme a partir de um enfoque em elementos da linguagem
cinematogrfica, foram realizadas diversas atividades com esta finalidade. Atividades
voltadas para identificao de aspectos tcnicos da linguagem cinematogrfica, tais como
enquadramento e movimentos de cmera e tambm enfatizado o aspecto relevante para a
compreenso do filme que est relacionado narrativa e a construo dos personagens. As
atividades envolveram recortes de imagens, registros com celulares, criao de narrativas
ficcionais a partir da criao de conflitos para as personagens. Em seguida, foi exibido o
filme, divido em duas partes, e, ao final, os alunos responderam ao questionrio,
participando, em seguida, de um bate-papo.
A nfase na anlise da construo de personagens se justifica em funo da
especificidade do filme. Em outros casos, so analisados movimentos de cmera, o cenrio,
a msica, as falas, enfim, esses elementos so selecionados, como mencionado acima, em
funo de cada caso em particular.
O filme Sonhos Tropicais (Andr Sturn, 2002) homnimo do livro, do qual uma
anunciada adaptao, de Moacyr Scliar (1992) sobre o mdico sanitarista Oswaldo Cruz.
O filme, diferente do livro, traz diferentes personagens que ocupam papis importantes na
narrativa. O livro tem uma narrativa complexa na qual os tempos presente e passado se
misturam. O narrador escreve para o prprio Oswaldo Cruz sobre a sua experincia de ser

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procurado para falar sobre ele, Oswaldo e, grande parte do livro se ocupa em relatar a sua
vida, sempre direcionado ao prprio. Ao compararmos essa estrutura narrativa com o filme
percebemos modificaes significativas.
Em primeiro lugar, o filme narra trajetrias paralelas entre dois personagens:
Oswaldo Cruz e Esther, uma mulher polaca que chega ao Rio de Janeiro do fim do
sculo XIX, prometida para casamento que encontra uma realidade muito diferente da
imaginada pois obrigada a trabalhar num bordel, prostituindo-se. Essa personagem
aparece em alguns poucos momentos no livro nos quais sua vida cruza a de Oswaldo Cruz.
No entanto, outros personagens se cruzam e entrecruzam em uma narrativa cheia de
elementos. O personagem de Amaral, um malandro carioca e amante pobre de Esther,
tambm aparece em segundo plano no livro e focalizado no filme. Assim, podemos dizer
que os personagens centrais dessa histria so Oswaldo Cruz e Esther. Mas o foco do filme
no fica apenas neles.
Outros personagens populares aparecem. Prata Preta apresentado com um filho
doente sendo levado para o hospital, onde esbarra com Mariano, um operrio que se
revolta por no ter sua esposa atendida: operrio e negro vivem a mesma misria e descaso.
Durante a narrativa, trs senhores, provavelmente jornalistas, fofocam sobre as notcias do
Rio de Janeiro e informam o espectador sobre questes contextuais. Vicente de Souza
organiza reunies no Centro das Classe Operrias, e, clandestinamente, participa de
reunies de militares descontentes, dentre eles Travassos e tambm Teixeira Mendes, um
positivista. Este grupo representado na narrativa como conspiradores.
Na trajetria de Cruz, ele combate epidemias, cria o laboratrio em Manguinhos.
As narrativas paralelas se entrecruzam. Com imagens documentais, so apresentadas
notcias da poca: R. Alves toma posse, pessoas pegam febre amarela, capoeiras so presos,
Pereira Passos inicia a reforma do Rio de Janeiro. Cruz convidado pelo Ministro Seabra
para ocupar o cargo da Segurana Pblica.Oswaldo Cruz apresenta ao Presidente
Rodrigues Alves o mtodo de Cuba de extermnio dos mosquitos. Os jornalistas falam que
Passos e Cruz governam a cidade e fazem o que querem. Cruz orienta os agentes de sade
que em seguida comea a invadir casas e abordar de forma violenta a populao. Na casa
atingida est a esposa de Prata Preta. Os jornalistas falam da charge Oswaldo Cuba. No
entanto, o mtodo tem sucesso. Em uma cena, Alves l a noticia para Cruz de que no
existe mais a febre amarela no Rio. Cruz fica apreensivo, ainda precisam acabar com a
peste. Prope a extino dos ratos. O mtodo comprar ratos da populao. Neste

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episdio, Amaral encarna a pessoa que criou ratos para vender. Fato este noticiado pelos
jornais da poca, no Rio de Janeiro.
Na narrativa de Esther, ela passa de uma estrangeira que no aceita a situao de
estar obrigada a se prostituir em um bordel a uma administradora de bordel, sob a proteo
do chefe de polcia Camargo. No entanto, ela surpreendida por ele na cama com Amaral,
seu amante malandro e pobre. Em funo disso, o chefe de polcia transforma os dois em
seus inimigos. No contexto da reforma urbana, o bordel administrado por Esther
demolido para dar lugar a uma avenida e ela, e sua amiga, ficam sem espao para trabalhar
em funo da inimizade com o chefe de polcia.
Perambulando pelas ruas, a amiga de Esther contaminada com varola. levada
para o hospital, onde morre. No hospital, Esther encontra com Oswaldo Cruz e a comitiva
com o presidente e deputados, dentre eles, Varela. Esther voluntria para aplicao da
vacina. No entanto, os polticos discutem. Varela discorda e promete oposio. (Uma das
enfermeiras menciona o boato de que a vacina seria feita com pus de vaca, e repreendida).
Os jornalistas ridicularizam Cruz, a vacina e sua lanceta. Fazem chacotas obscenas. Esther,
sem alojamento, vai trabalhar no boteco do portugus, sr. Romo, frequentado por Prata
Preta, Amaral, e, na revolta, torna-se um ponto de encontro.
No governo, discutem o Regulamento de Cruz, que tem forte oposio. Vicente
fala ao povo para resistir ao governo e vacina. Um homem, preocupado com o filho que
tomou a vacina vem conversar com Vicente, que lhe avisa no ter problema nenhum e que
no esto contra a vacina, mas contra o governo. Varela tambm discursa ao povo e fala da
invaso de domiclios e falta de segurana das mulheres. Ocorre o primeiro confronto com
a polcia. Em paralelo, os militares tambm sugerem um levante. Iniciam-se confrontos em
diferentes lugares da cidade.
Os diversos personagens se encontram na revolta. De um lado, Prata Preta,
Amaral, Esther, Mariano; de outro, Cruz tentando explicar a importncia da vacina; Vicente
de Souza, instigando a populao, com apoio dos militares, de ir contra o governo, e,
membros do governo tentando manter o poder.
Inicialmente, a resistncia no morro segue firme, mas, ao final, so derrotados
pelas tropas do governo. Na rua, no dia seguinte, vemos vrios mortos e Prata Preta sendo
espancado por policiais. As legendas finais informam sobre o destino de Oswaldo Cruz e
dos participantes da Revolta, como Prata Preta, que so enviados para o Acre.

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Assim, o filme, com variados personagens e trajetrias que se cruzam na cidade,


no de simples compreenso. No entanto, dramaturgicamente apresenta diversos
elementos que podem ser debatidos com os estudantes, que, aliados a uma leitura crtica da
historiografia, pode levar a uma anlise mais interessante.

PREPARANDO PARA ANLISE HISTORIOGRFICA

O filme, apresentado acima, no pode ser analisado sem o estabelecimento de


uma relao com a historiografia sobre o tema. Conforme defendido em Fonseca19, os
filmes histricos estabelecem dilogos com as tradies de interpretaes dos temas que
enfocam. Assim, uma parte significativa da anlise a ser empreendida em uma aula de
histria diz respeito a compreender o filme como uma forma de interpretao do passado,
uma argumentao textual em forma de narrativa ficcional cinematogrfica que dialoga
com interpretaes anteriores.
Considerando ser este aspecto bastante significativo, a segunda turma contou com
o desenvolvimento de atividades ligadas preparao para compreenso de aspectos
histricos da Revolta da Vacina e a leitura de autores que realizaram interpretaes sobre
ela. Assim, os alunos tiveram acesso a reprodues de trechos de jornais que noticiaram a
revolta, s charges publicadas sobre Oswaldo Cruz, e, principalmente, tiveram acesso
snteses das ideias dos historiadores Sidney Chalhoub 20; Nicolau Sevcenko21 e Jos Murilo
de Carvalho22, a partir do qual foi realizado um debate. Neste debate, com envolvimento
ativo dos estudantes, estes apresentaram suas opinies sobre as causas da revolta. E, no
geral, aderiram argumentao de Sevcenko (chamado de Nicolau, pelos alunos), que
defende, em seu texto, que a Revolta da Vacina foi um pretexto para a grande insatisfao
popular em relao s aes do governo.
Nicolau Sevcenko, em seu livro paradidtico A Revolta da Vacina faz um relato da
revolta como um clamor do povo por justia. Segundo ele, essa revolta se constituiu numa
das mais pungentes demonstraes de resistncia dos grupos populares do pas contra a

19
FONSECA, Vitria Azevedo da. Filmes histricos e o ensino de histria: dilogos e controvrsias.
Revista Locus, Juiz de Fora, v. 22, n. 2, p. 415-434, 2016. Disponvel em:
<http://https://locus.ufjf.emnuvens.com.br/locus/article/view/2915>. Acesso em: 01 fev. 2017.
20
CHALHOUB, Sidney. Cidade febril. Cortios e epidemias na Corte Imperial. So Paulo: Companhia
das Letras, 1996.
21
SEVCENKO, Nicolau. A revolta da vacina - mentes insanas em corpos rebeldes. So Paulo:
Brasiliense, 1984.
22
CARVALHO, Jos Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a Repblica que no foi. So Paulo:
Companhia das Letras, 1987.

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explorao, discriminao e o tratamento esprio a que eram submetidos pela


administrao pblica nessa nossa fase da histria23.
Sidney Chalhoub, em seu livro Cidade Febril, analisa, em um dos captulos a
questo da vacina na qual estava envolvida a revolta. Segundo o autor, os historiadores
anteriores no se aprofundaram na histria da prpria vacinao e a relao que a
populao estabelecia com ela. Este item torna-se de vital importncia para compreender a
rejeio vacina que foi justificativa para a revolta. Sua anlise ampla e rica, no entanto,
tem pouca ressonncia no filme analisado.
Dentre os historiadores apresentados, o livro de Scliar e o filme de Sturn seguem a
tendncia de Jos Murilo de Carvalho que argumenta sobre a fragmentao dos formadores
da revolta, a presena e manipulao dos militares florianistas, alm da falta de controle do
povo depois de iniciada a revolta.
Considerando que o filme, alm de enfocar os dois personagens Oswaldo Cruz e
Esther, tambm acompanha os dramas vividos por outros personagens: o malandro
Amaral, o operrio Mariano, o negro Prata Preta, alm de apresentar outros interesses de
grupos sociais tais como militares florianistas, polticos opositores, jornalistas, podemos
dizer que apresenta argumentao semelhante a elaborada por Jos Murilo de Carvalho 24
sobre a fragmentao da revolta. Assim, a fragmentao narrativa em vrios personagens,
de diferentes camadas sociais assume um carter significativo na interpretao
historiogrfica.
Segundo Jos Murilo, a composio da revolta foi fragmentada e variou de acordo
com o seu desenrolar. No incio eram vrios componentes, desde operrios, comerciantes,
estudantes, militares. Com o fracasso do golpe militar a liderana passou aos operrios e
classesperigosas, com os redutos em Sacramento e Sade. Quanto aos motivos da
revolta, segundo ele, h um consenso de que se preparava um golpe contra o poder pelos
antigos florianistas. No entanto, no havia o estopim para deflagrar a revolta. O estopim foi
a vacina, ou seja, no final das contas, um pretexto para a revolta. Nesse sentido, as
interpretaes de Sevcenko e Carvalho, se aproximam. E esta foi a viso aceita pelos
alunos, em termos genricos. Eles assistiram ao filme, com uma ideia preconcebida de que
houve uma revolta contra o governo tendo como pretexto uma vacinao obrigatria.

23
SEVCENKO, 1984, p. 5.
24
CARVALHO, 1987.

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CRTICA LEITURA INDUZIDA: ASSISTIR SEM PREPARO

A partir da desconfiana da insistncia em preparar os estudantes para assistir


aos filmes em grande parte dos manuais escolares foi proposto, em uma das turmas, que os
alunos assistissem ao filme sem que houvesse qualquer preparao, seja ela voltada para
anlise da linguagem cinematogrfica, seja ela voltada para anlise dos aspectos
historiogrficos do filme.
Conforme defende Souza, fundamental, para o ensino de Histria, a ateno
para outros aspectos da utilizao de filmes.

Todo o potencial de anlise flmica no pode ser explorado sem uma


pesquisa aprofundada das narrativas histricas dos jovens alunos, sobre
como os filmes histricos se relacionam com o conhecimento histrico.
A compreenso das ideias histricas destes sujeitos, diretamente
envolvidos no processo educativo, pode direcionar compreenses sobre
as formas e funes que tomam os filmes histricos na formao e na
cultura histricas.25

Nesta proposta, a opo pela exibio sem preparao partiu da compreenso da


necessidade de observar, sem interferncia do professor, a leitura que aqueles jovens fariam
de um filme a partir da prpria bagagem, da sua prpria formao histrica, at aquele
momento, e, principalmente, observar a capacidade comunicativa, entre os jovens, daquele
filme em particular. Assim, optou-se por utilizar o filme como uma espcie de pretexto
para que os jovens expusessem suas ideias prvias no contato com uma produo
cinematogrfica. Esse aspecto torna-se importante e mais amplo se observado a partir dos
referenciais do processo de construo de cognio histrica.

A compreenso das formas com que se processam os entendimentos de


tais leituras, por parte de professores de histria e de jovens alunos, o
problema que se coloca. O trabalho com filmes histricos poderia se
focar no aluno, no seu processo de cognio histrica situada (Schmidt,
2009(2), localizando como este processo cognitivo se relaciona com o
trabalho a partir deste artefato cultural. 26

Assim, foi proposto, neste trabalho, que os estudantes pudessem expor suas
impresses sobre o filme exibido sem que houvesse qualquer direcionamento por parte da
professora. Os cuidados tomados foram o espao, a visibilidade e a qualidade sonora da
exibio, bem como a fruio sem cortes do filme para que houvesse, da melhor maneira

25
SOUZA, 2012, p. 28.
26
SOUZA, 2012, p. 28.

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possvel, concentrao dos estudantes em relao ao filme em si. Vejamos abaixo a anlise
das respostas dadas por eles.

ANLISE DAS RESPOSTAS

Aps a exibio, os alunos responderam, sem direcionamento, algumas


questes, por escrito. Na anlise das respostas, foi possvel fazer uma sondagem sobre a
compreenso de cada grupo e os possveis impactos da preparao na viso de cada um em
particular e suas diferenas. A partir das respostas, foram construdos os grficos
apresentados abaixo.
Os grficos foram montados a partir de respostas abertas, portanto, em alguns
casos, existe a condensao de respostas em conjuntos. O grupo 1, equivale ao grupo cuja
preparao esteve voltada para a linguagem cinematogrfica, o grupo 2, o que teve a
preparao voltada para questes da historiografia e, por fim, o grupo 3, que no passou
por preparao.
A primeira questo, visava sondar a viso geral que os alunos construram sobre o
filme. Assim, a pergunta foi Qual o assunto, na sua opinio, abordado pelo filme?

Grfico 2 - Elaborao prpria. Respostas dos alunos da EE Arthur Cyrillo Freire (Sorocaba, SP), em 2015.

Para essa primeira questo, percebemos que os alunos do grupo 2 identificam


com mais facilidade o filme com a Revolta da Vacina, e, um nmero maior de alunos do
grupo 3no foram capazes de identificar o assunto do filme, respondendo simplesmente
no sei ou deixando em branco. Alguns alunos responderam que o assunto do filme era a
vacina.

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Grfico 3 - Elaborao prpria.


Com objetivo de identificar a capacidade dos alunos em produzir uma sntese,
textualmente, foi solicitado que escrevessem uma pequena sinopse. Organizando as
respostas nos enfoques mais comuns foi possvel apresenta-las no grfico acima, que, nos
indica, em primeiro lugar, que o grupo 2 apresentou uma viso mais uniforme e focado nas
trajetrias de Oswaldo Cruz e/ou de Esther como eixo narrativo do filme. J o grupo 1,
apresentou uma viso mais pulverizada e pouco uniforme em relao narrativa com
observao de outros aspectos para alm dos dois personagens principais, citados acima.
Ou seja, ao enfocarem a variedade de personagens no conseguiram sintetizar a narrativa.
J os alunos do grupo 3 apresentaram dificuldades em identificar um eixo principal da
narrativa do filme e focou a sinopse na citao de episdios, sem uma coerncia entre eles.
A terceira questo est relacionada na observao da capacidade dos alunos
identificarem os personagens do filme, assim, foi enunciada como Quais so os
personagens principais do filme?. A pergunta buscava sondar a capacidade de
identificao de um elemento fundamental numa narrativa cinematogrfica, que so os
personagens.

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Grfico 4 - Elaborao prpria. Idem.


Atravs da anlise das respostas, foi possvel observar que a variedade de
personagens foi notada pelos estudantes. O grupo 1 identificou vrios personagens,
focando em Esther, Oswaldo Cruz, Amaral, Mariano, Prata Preta e Vicente de Souza. J o
grupo 2, apresentou uma viso mais difusa dos personagens, com centralidade em Esther,
Oswaldo Cruz, Amaral e Prata Preta. No entanto, alguns alunos confundiram os
historiadores estudados previamente com os personagens do filme. J o grupo 3
apresentou grande dificuldade em identificar personagens, e, portanto, muitos no
responderam.

Grfico 5 - Elaborao prpria. Idem.


Em relao ltima pergunta, que diz respeito s interpretaes sobre as causas
da Revolta da Vacina, o grupo 1 ficou dividido entre a vacina como causa e como pretexto,
sendo que mais alunos identificaram a vacina como causa. Algo semelhante ocorreu com o
grupo 2, mas, nesse caso, mais alunos identificaram a vacina como pretexto e,

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curiosamente, alguns alunos apontaram para uma viso mais complexa, indicando que a
revolta teria variadas causas. J no grupo 3, a maior parte dos alunos que respondeu optou
pela vacina como causa, e, alm disso, grande nmero no respondeu pergunta.

CONSIDERAES FINAIS

No geral, o que podemos perceber, foi que a preparao acabou direcionando o


olhar dos alunos nos grupos 1 e 2. Nesse sentido, o filme acabou sendo menos uma
experincia particular e acabou funcionando como um tipo de "confirmao" do que havia
sido trabalhado. Enquanto os alunos do grupo 3, que no tiveram nenhuma preparao
mostraram interpretaes mais independentes, e, ao mesmo tempo, demonstraram maior
dificuldade em acompanhar a argumentao do filme.
Enfocando aspectos da linguagem cinematogrfica, como resultado, foi possvel
perceber que no geral os alunos conseguiram identificar as trajetrias dos personagens em
seus diferentes conflitos. No entanto, na pergunta referente ao ponto de vista do filme
sobre a Revolta da Vacina, os alunos tiveram dificuldade em identificar e a maior parte no
conseguiu responder ao que fora perguntado. O olhar, a partir da preparao enfocando as
personagens, acabou sendo direcionado para observar a multiplicidade de personagens e a
disperso das trajetrias, caractersticas do filme. No entanto, isso dificultou a construo
de um olhar sinttico na anlise da revolta da vacina como evento catalizador e unificador
das trajetrias. Ou seja, foi possvel levar os alunos a observarem as diferentes trajetrias de
maneiras dispersas, sem, no entanto, construir um olhar que buscasse uma unidade entre
elas.
Em relao ao grupo 2, aps a exibio do filme, foi possvel notar, nas variadas
respostas, uma nfase em tpicos abordados e enfatizados em sala de aula, antes do filme.
Ou seja, o trabalho de preparao em relao ao contedo que seria tematizado pelo filme
teve um efeito de direcionar o olhar dos alunos, enfocando o evento final. interessante
que apenas alguns itens, que indicavam uma outra interpretao para a revolta, foram
enfatizados pelos alunos, sem, no entanto, alterar a intepretao geral, aparentemente j
formada antes do filme. Um exemplo foi uma cena citada na qual uma enfermeira fala que
a vacina era feita de pus de vaca que tocou a sensibilidade dos estudantes e que poderia
indicar uma causa para a revolta. No entanto, os alunos, no geral, construram uma imagem
de que a revolta popular foi contra o governo. A maior parte dos estudantes identificou a
vacina como tendo sido apenas um pretexto para a revolta. E, chamou a ateno a nfase

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dada s aes truculentas do Estado, no filme. Nesse caso, podemos perceber que a
preparao dos alunos acabou por direcionar a leitura dos mesmos sobre as interpretaes
das causas da revolta e a atuao do governo.
Mesmo apresentando diferentes "interpretaes" para um mesmo "evento
histrico", e explicando esses diferentes pontos de vistas, dependendo de cada autor e, para
completar, mesmo o filme abrindo a possibilidade para as diferentes interpretaes para as
causas da revolta, nas suas narrativas os alunos optaram por explicaes nicas como se
no fosse possvel aceitar as diferentes explicaes.
No que diz respeito s respostas do grupo 3, os resultados, aps a exibio, foram
interpretaes mais independentes e menos uniformes e, ao mesmo tempo, mais criativas.
Foi possvel perceber diferentes nveis de compreenso de aspectos bsicos da narrativa do
filme demonstrando, talvez, uma certa inadequao entre a linguagem do filme e a
percepo dos estudantes.
Dentre as causas para a revolta mais citada por esse grupo esteve que a revolta
teria sido causada pelo medo de contrair a doena a partir da vacina. Nessa percepo mais
livre, foi possvel observar diferentes construes narrativas para dar sentido quilo que
haviam assistido, interpretaes que, se no podem ser consideradas corretas dentro de
uma anlise mais estreita, indicam exerccios mentais de tentativas de compreenso do que
assistiram. Cito aqui alguns trechos dos textos dos alunos:

O mdico Oswaldo Cruz cria uma vacina para prevenir as doenas que
os ratos transmitiam. Pessoas se voluntariaram para testar a vacina. A
maioria dos voluntrios morreram, apenas uma sobreviveu. E por isso o
governo quis que povo tomasse a vacina e pelo fato de muitos terem
morrido um grupo comeou a achar que o governo queria matar o
povo..." (J.P.8A)"os 'pobres' achavam que a culpa era da repblica por
querer eles mortos por isso eles se revoltaram" (L.E. - 8A)"O povo
achava que tomando a vacina iam contrair a doena em vez de curar"
(B.C.- 8A)"A revolta ocorreu porque o povo tinha medo, achavam que
se tomassem a vacina, morreriam" (A.C.8A)

A partir desse trecho, foi claro que o exerccio realizado pelos alunos que no
passaram por preparao foi mais criativo e mais ativo do que os outros grupos, apesar dos
outros grupos terem tido outros tipos de compreenses.
Nesse sentido, a partir das anlises apresentadas, possvel considerar que,
diferentes metodologias levaro a diferentes experincias na utilizao de filmes no
processo de ensino/aprendizagem. Assim, o professor pode considerar as especificidades

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dos filmes, dos alunos e dos objetivos da sua proposta e experimentar possibilidades que
enriqueam sua prtica e a aprendizagem, construindo uma trajetria mltipla que no se
limite a reproduzir prescries, e que, ao contrrio, possa compartilhar suas prticas e
enriquecer o conhecimento sobre a utilizao de filmes no ensino de histria, a partir das
prprias prticas escolares.

Recebido em: 21 de dezembro de 2016


Aprovado em: 14 de fevereiro de 2017

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ALUNOS DA EJA FALAM SOBRE A HISTRIA ENSINADA:


RELAES ENTRE HISTRIA E VIDA PRTICA

EJA STUDENTS ON THE HISTORY THEY WERE TAUGHT:


CONNECTIONS BETWEEN HISTORY AND DAILY LIFE

Wilian Junior Bonete


Professor na Faculdade de Guairac - Brasil
Mestre em Histria Social pela Universidade de Londrina
e-mail: wjbonete@gmail.com

RESUMO
O presente artigo procura identificar e analisar o pensamento de um grupo de 66 alunos da
Educao de Jovens e Adultos (EJA), de uma escola Estadual no Paran, sobre o conhecimento
histrico e suas relaes com a vida prtica. Para tanto, estabelece dilogos com a concepo de
conscincia histrica, tal como proposto por Jrn Rsen, bem como os pressupostos que embasam
o campo investigativo da Didtica da Histria. Ao final, ser possvel perceber que os alunos, ao
contrrio de conceberem a Histria como uma simples disciplina escolar, procuraram relacionar
o conhecimento histrico adquirido na escola com suas vidas, relataram os aspectos mais
significativos da Histria escolar e destacaram o potencial crtico e formativo que a Histria possui.

Palavras-chave: ensino de Histria; EJA; conscincia Histrica; didtica da Histria.

ABSTRACT
This article aims at identifying and analyze the thinking of a group of 66 students in the Youth and
Adult Education (YAE), a state school in Parana concerning historical knowledge and its
relationship to daily life. Therefore, establishing dialogues with the concept of historical
consciousness, as proposed by Jrn Rsen, as well as the assumptions that underlie the investigative
field of didactics of history. At the end, will be possible to see that the students, as opposed to
conceive history as a simple "school discipline", sought to relate historical knowledge acquired in
school with their lives, they reported the most significant aspects of school history and highlighted
the critical potential and training that history has.

Keywords: History teaching; YAE; historical consciousness; didatic of History.

Este artigo foi construdo a partir dos dados obtidos em nossa pesquisa de
mestrado intitulada Ensino de Histria, conscincia histrica e a Educao de Jovens e Adultos1. Na
ocasio, procurou-se analisar o pensamento de um grupo de alunos que freqentavam a
Educao de Jovens de Adultos EJA a respeito da Histria e sua funo social. Alm

1
Pesquisa foi realizada no mbito do Programa de Ps-Graduao em Histria Social da Universidade
Estadual de Londrina, entre 2011-2013. Contou com financiamento integral da CAPES.

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disso, a pesquisa buscou identificar de que forma o ensino de Histria poderia contribuir
para a formao da conscincia histrica dos alunos e em que medida eles percebiam (ou
no) um sentido prtico para o estudo da Histria. A amostra envolveu 66 alunos do
Ensino Mdio da EJA de uma escola da rede pblica, da cidade de Guarapuava, PR. Os
dados foram coletados atravs de um instrumento de investigao composto por um
conjunto de questes histricas (objetivas e discursivas), envolvendo significado, interesse,
agrado, confiana, temporalidade, experincia na sala de aula e vida prtica 2.
Ao examinar as respostas foi possvel perceber que os alunos realizaram reflexes,
em maior ou menor grau, a partir da suas experincias sociais com a disciplina. O resultado
geral indicou que a Histria, longe de ser uma simples matria escolar ou um
amontoado de coisas sem sentido, , para os jovens e adultos, uma forma que possibilita
a interpretao e compreenso da realidade, do presente e da vida pessoal como parte das
mudanas que ocorrem na sociedade.
Para o texto em apreo, analisaremos um fragmento dessa pesquisa maior que no
que diz respeito aos objetivos no estudo da Histria, o significado do conhecimento histrico para a vida
prtica e os acontecimentos da Histria que marcaram a vida dos alunos. A proposta dar nfase nas
narrativas produzidas pelos alunos e relacion-las com os referenciais tericos que
embasam a investigao.
Assim, visando uma melhor exposio do tema, este texto encontra-se dividido
em dois momentos especficos. No primeiro, discute-se os referenciais tericos relativos ao
ensino de Histria, conscincia histrica e vida prtica. No segundo, apresenta-se os
resultados das anlises acerca do pensamento dos alunos jovens e adultos sobre a Histria.

SOBRE O ENSINO DE HISTRIA E A CONSCINCIA HISTRICA NA


SOCIEDADE CONTEMPORNEA

A experincia concreta da temporalidade vivida pelos seres humanos permeada


por mudanas e perturbaes. So as ameaas constantes do imprevisto, do acaso,
ocorrncias inesperadas, senso de ruptura, catstrofes, expectativas frustradas, dentre
outras, que subvertem diretamente a ordem vida prtica cotidiana. Para o socilogo

2
BONETE, Wilian Junior. Ensino de Histria, Conscincia histrica e a Educao de Jovens e Adultos.
198 f. Dissertao (Mestrado em Histria) Universidade Estadual de Londrina, Programa de Ps-
Graduao em Histria Social, Londrina, 2013.

191
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Zygmunt Bauman3, vivemos em tempos de incertezas e de acelerao do tempo. So


tempos em que as preocupaes mais intensas que assolam os seres humanos so os
temores de serem pegos tirando um cochilo e no conseguir acompanhar a velocidade dos
eventos, ficar para trs ou perder o momento que exige mudana. Selva Guimares
Fonseca4 comenta que, por esta tica, o homem contemporneo no mais aquele que
sofre a ruptura entre o passado e o presente, mas aquele que carrega em si a ruptura como
objeto de sua vontade. A mudana tem sido o aspecto crucial para a criao do novo, a
marca do rompimento com o passado.
De maneira articulada a esse movimento, podemos ainda citar o avano na
transmisso de conhecimentos e inovaes tecnolgicas que possibilitam indivduos a
terem acesso a mltiplas informaes (poltica, econmica, social, cultural) de maneira
imediata. No que tange escola, todos os elementos correspondentes s mudanas,
movimentos, acelerao do tempo, inovaes tecnolgicas e novas formas de aquisies de
informaes e conhecimento, exercem forte influncia no cotidiano de alunos e
professores. Acerca disso, Ronaldo Cardoso Alves pontua:

A Escola, como instituio tradicional de transmisso e reflexo do


conhecimento acumulado pela humanidade ao longo da Histria, depara-
se com jovens que vivem nesse contexto de instantaneidade da
informao. Independente do grupo socioeconmico, religio, etnia ou
qualquer outra categoria de classificao social, juventude se apresenta
uma espcie de mundo do self-service no qual a proliferao de opes de
tal monta que a probabilidade de se perder o gosto de cada alimento
enorme, devido a mistura de tantos ingredientes diferentes colocados
disposio5.

Ocorre que os sistemas de ensino enfrentam novas demandas formativas, frente


sociedade que possui um ritmo acelerado. Para Flvia Caimi 6 essas mudanas exigem de
professores e alunos uma capacidade de integrao e relativizao do conhecimento que vai
alm da mera assimilao mecnica das informaes adquiridas nos diversos espaos. Selva

3
BAUMAN, Zygmund. Vida Lquida. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2007, p. 8.
4
FONSECA, Selva Guimares. Didtica e Prtica de Ensino de Histria: experincias, reflexes e
aprendizado. 13 ed. Campinas: Papirus, 2012, p. 55.
5
ALVES, Ronaldo Cardoso. Aprender Histria com Sentido para a Vida: conscincia histrica em
estudantes brasileiros e portugueses. Tese (Doutorado em Educao) Universidade de So Paulo, So
Paulo, 2011, p. 33-34.
6
CAIMI, Flvia Eloisa. Histria escolar e memria coletiva: como se ensina? Como se aprende. In:
ROCHA, Helenice Aparecida Bastos; MAGALHAES, Marcelo de Souza; GONTIJO, Rebeca. (orgs.) A
escrita da histria escolar: memria e historiografia. Rio de Janeiro: FGV, 2009.

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Guimares Fonseca7 comenta ainda que nesse novo mapa cultural situam-se os territrios
da crise da educao, da cultura, de valores que so vivenciados pela sociedade
contempornea.
A partir desse contexto, algumas questes vm tona com relao disciplina de
Histria escolar: qual o sentido do ensinar e aprender Histria? Qual tipo de orientao a
Histria pode fornecer para os seres humanos? Para que serve a Histria? Qual o objetivo
de se estudar Histria? De que forma a Histria pode ser til para a vida prtica? Essas e
tantas outras indagaes permeiam o cotidiano das aulas de Histria e a busca por suas
respostas consistem num grande desafio.
O historiador alemo Jrn Rsen 8 destaca que a Histria consiste no passado
sobre o qual os seres humanos devem voltar os seus olhos a fim de seguirem em frente, em
seu agir, e poderem conquistar o seu futuro. A Histria deve ser entendida como um
conjunto de aes humanas, no qual a experincia do passado e a inteno com relao ao
futuro so unificadas em forma de orientao no presente. Todavia, a Histria s possui
sentido mediante a interpretao humana. Nesse processo, a conscincia histrica reveste-se de
grande importncia, uma vez que ela consiste numa forma de orientao e atribuio de
sentido ao tempo vivido. De modo mais especfico, a conscincia histrica

(...) trata do passado como experiencia, nos revela o tecido da mudana


temporal dentro do qual esto presas as nossas vidas, e as perspectivas
futuras para as quais se dirige a mudana. (...) A conscincia histrica
mistura ser e dever em uma narrao significativa que refere
acontecimentos passados com o objetivo de fazer inteligvel o presente, e
conferir uma perspectiva futura a essa atividade atual .9

Mobilizar a prpria conscincia histrica no uma opo, mas uma


necessidade. O fluxo permanente da transformao atravs do presente, daquilo que ainda
no e do que j foi, algo que foge ao controle humano10. Tal demanda, exige, dos
indivduos, pensar, interpretar e atribuir sentido a essa corrente, ao seu mundo e a si

7
FONSECA, 2012, p. 56.
8
RSEN, Jrn O desenvolvimento da competncia narrativa na aprendizagem histrica: uma hiptese
ontogentica relativa a conscincia moral. In: SCHMIDT, Maria; BARCA, Isabel; MARTINS, Estevo
(Org.). Jrn Rsen e o Ensino de Histria. Curitiba: Editora UFPR, 2010a, p. 57.
9
RSEN, 2010, p.57.
10
Parte dessa discusso conceitual encontra-se de maneira mais aprofundada em minha dissertao de
mestrado defendido no PPHS/UEL, 2013.

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mesmos.11 A conscincia histrica, evocada pela memria, consubstancia-se por meio das
narrativas, de histrias, que auxiliam as pessoas envolvidas a localizarem-se no tempo de
modo aceitvel para si mesmas.12
Jrn Rsen13 ressalta que a experincia da temporalidade, da contingncia,
apresenta-se como ameaadora da identidade humana. Cabe aos sujeitos interpretarem
essas mudanas, sendo a narrativa histrica uma possibilidade indispensvel na medida em
que ela permite realizar a sntese entre passado, presente e futuro em uma relao de
continuidade. Pela narrativa, os seres humanos contam suas vidas, inventam-se e instituem-
se como pertencente ao mundo, procurando manter uma identidade e dar continuidade a
sua experincia.
Para Jrn Rsen a competncia especfica primordial pela qual a conscincia
histrica se efetiva na vida prtica a competncia narrativa. Essa competncia, segundo
o autor, pode ser definida como (...) a habilidade da conscincia humana para levar a cabo
procedimentos que do sentido ao passado, fazendo efetiva uma orientao temporal na vida prtica presente
por meio da recordao da realidade passada.14
Sendo a conscincia histrica uma operao mental de gerao de sentido
histrico ao tempo, a competncia narrativa pode ser definida de acordo com trs
elementos que constituem uma narrativa histrica: contedo, forma e funo. O contedo pode
ser entendido como competncia para experincia histrica, a forma como competncia
para interpretao histrica e a funo como competncia para orientao histrica.
Essas trs competncias representam as trs dimenses da aprendizagem histrica, sendo
que sua especial importncia no o desenvolvimento de uma competncia, mas sim, a
relao harmoniosa entre elas.15
A competncia para experincia representa a capacidade de o sujeito olhar para o
passado e diferenci-lo do presente. Segundo Jrn Rsen, a aprendizagem por meio das
operaes narrativas da conscincia histrica aumenta o conhecimento quando se desvela o

11
CERRI, Luis Fernando. Ensino de Histria e Conscincia histrica: implicaes didticas de uma
discusso contempornea. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011, p. 28.
12
RSEN, Jrn. Experincia, interpretao, orientao: as trs dimenses da aprendizagem histrica. In:
SCHMIDT, Maria; BARCA, Isabel; MARTINS, Estevo (Org.). Jrn Rsen e o Ensino de Histria.
Curitiba: Editora UFPR, 2010b, p. 80.
13
RSEN, Jrn. Razo histrica. Teoria da histria: os fundamentos da cincia histrica. Braslia:
Editora da UnB, 2001, p. 66.
14
RSEN, 2010a, p. 59.
15
RSEN, 2010b, p. 84.

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que aconteceu no passado. Entretanto, necessrio que esse passado tenha significado para
o presente de modo a auxiliar na orientao da vida prtica. O autor faz a seguinte ressalva:

(...) Nada histrico simplesmente porque tem um passado. O carter


histrico de algo existente est em uma qualidade especfica do tempo: a
experincia, assim, a diferena qualitativa entre o passado e o presente.
A aprendizagem histrica est preocupada com o fato de que o passado
um tempo qualitativamente diferente do presente e se tornou o tempo
presente.16

A competncia para interpretao supe a habilidade de se reduzir as diferenas de


tempo entre passado, presente e futuro, atravs de uma concepo e atribuio de
significado ao todo temporal. Jrn Rsen17 comenta que nessa dimenso da aprendizagem
ocorre um aumento do conhecimento que por sua vez, transformado numa mudana
produtiva no modelo ou padro de interpretao. Esses modelos atribuem significado
histrico aos fatos e estabelecem as diferenciaes de acordo com pontos de vista acerca
do que importante.

Estes modelos de interpretao decidem quais so os elementos da


experincia histrica e do conhecimento histrico que so
especificamente histricos, os quais estabelecem o seu status
especfico no tempo que fazem parte dos contedos da histria.18

A competncia para orientao representa a capacidade de utilizao do todo


temporal, com seu contedo de experincia, cuja finalidade a orientao da vida prtica.
Implica em guiar as aes por meio da articulao entre identidade humana e
conhecimento histrico. Essa competncia volta suas preocupaes para a funo prtica
da experincia histrica significativa, ou seja, o uso do conhecimento histrico utilizado
pelas pessoas em seu cotidiano. Jrn Rsen destaca a importncia da apreenso da
orientao interna (identidade) e externa (alteridade):

A natureza e a arte da orientao interna e externa de acordo com o seu


prprio ser no tempo devem ser apreendidas. Isso j deve ser levado em
conta na aquisio de um modelo para a interpretao, uma vez que este
modelo deve conter as categorias ensinveis para a interpretao do
curso do tempo isto , a para o passado, o presente e o futuro. A
competncia para orientao de si, historicamente, a habilidade em

16
RSEN, 2010b, p. 85.
17
RSEN, 2010b, p. 85.
18
RSEN, 2010b, p. 86.

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aplicar este modelo, o qual preenchido pelo conhecimento e pela


experincia, para situaes da vida e para formular, assim, como refletir,
sobre seu prprio ponto de vista na vida presente.19

As trs operaes da conscincia histrica, juntamente com as dimenses da


aprendizagem histrica se relacionam mutuamente. No h como pensar a experincia
histrica sem significado, tampouco orientao histrica sem experincia. Todos se
relacionam ao mesmo tempo, o que demonstra a complexidade da aprendizagem histrica,
que possui dois plos: o da aquisio da experincia e a descoberta de si mesmo nos
movimentos da conscincia histrica.20

OS SIGNIFICADOS DA HISTRIA E DO ENSINO DE HISTRIA PARA OS


ALUNOS JOVENS E ADULTOS DA EJA

Nesse momento, conveniente destacar que o estabelecimento de dilogos com


as elaboraes tericas de Jrn Rsen, e especificamente seu conceito de conscincia
histrica, aponta para a localizao de nossa pesquisa no campo da Didtica da Histria.
Nesse mbito, compreende-se que a conscincia histrica um conceito chave que est
relacionado no apenas com o ensino de Histria, mas todas as formas de pensamento
histrico. Sua anlise cobre os estudos histricos, bem como o uso e a funo social da
Histria na vida prtica21.
Conforme aponta o autor alemo Klaus Bergmann,

Uma reflexo histrico-didtica na medida em que investiga seu objeto


sob o ponto de vista da prtica da vida real, isto , na medida em que, no
que se refere ao ensino e aprendizagem, se preocupa com o contedo
que realmente transmitido, com o que podia e com o que devia ser
transmitido. Refletir sobre a Histria a partir da preocupao da
Didtica da Histria significa investigar o que apreendido no ensino de
Histria ( a tarefa emprica da Didtica da Histria), o que pode ser
apreendido ( a tarefa reflexiva da Didtica da Histria) e o que deveria
ser apreendido ( a tarefa normativa da Didtica da Histria).22

19
RSEN, 2010b, p. 86-87.
20
RSEN, 2010b, p. 86-87.
21
RSEN, Jrn. Didtica da Histria: passado, presente e perspectivas a partir do caso alemo, Prxis
Educativa, Ponta Grossa, v. 1, n. 2, p. 14, jul/dez 2006.
22
BERGMANN, Klaus. A Histria na Reflexo Didtica, Revista Brasileira de Histria, So Paulo, v. 9,
n. 19, p. 29, set/fev 1990.

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Nesse sentido, ao procurar compreender o que os alunos pensam acerca


da Histria, bem como suas ideias e concepes sobre o conhecimento histrico, est-se
empreendendo uma anlise acerca da conscincia histrica de tais alunos. Alm disso,
conhecer o lado subjetivo dos alunos acerca da Histria pode consistir numa importante
referncia para que os professores possam empreender um trabalho de ensino e
aprendizagem de maneira significativa para alm dos simples contedos desvinculados da
experincia cotidiana discente. Para tanto, necessrio que o professor conhea o perfil
dos alunos da EJA a fim de compreender um pouco mais acerca da realidade em que os
alunos esto inseridos. Tal perfil fundamental para a construo das prticas de ensino
que valorizem as bagagens experienciais e culturais que os alunos trazem para a sala de aula.
Partindo desse princpio, a Tabela 1, abaixo, mostra que 42% dos alunos situam-se
na faixa etria entre 18 a 25 anos de idade, seguidos daqueles entre 26 a 35 anos (24%).
possvel inferir, assim, que o pblico da EJA, na escola selecionada, formado, em sua
maioria, por alunos em fase adulta.23

Tabela 1 - Dados relativos idade


Idade N alunos Porcentagem
18-25 28 42%
26-35 16 24%
36-45 13 20%
46-60 6 9%
No responderam 3 5%
Total 66 100%

No que diz respeito ao campo de atuao profissional, os alunos relataram uma


srie de profisses, sendo que 17% deles, at o momento da realizao da pesquisa, no
trabalhavam ou encontravam-se desempregados. J 15% relataram trabalhar na funo de
Auxiliar de Servios Gerais e 14% indicaram profisses diversas24, conforme mostra a
Tabela 2 abaixo:

23
importante destacar que as informaes presentes nas tabelas e amostras a seguir esto publicadas em
nossa dissertao de mestrado defendida no PPGHIS/UEL, 2013. Uma parte desses dados tambm foi
publicada no artigo BONETE, Wilian. Alunos da educao de jovens e adultos e historia: entre
significados e representaes. Revista Histria & Ensino, Londrina, v. 19, n. 2, p. 261-284, jul./dez. 2013.
24
Foram indicadas as seguintes profisses: operador ecolgico, garom, operador de empilhadeira,
tatuador, autnomo, agente de sade, auxiliar de cozinha e motoboy.

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Revista histria, histrias, volume 5, nmero 9, jan.jul. 2017
ISSN 2318-1729

Tabela 2 - Dados relativos atuao profissional


Profisso N. alunos Porcentagem
No trabalha/Desempregado 11 17%
Auxiliar de Servios Gerais 10 15%
Profisses diversas 9 14%
Vendedor 5 8%
cabeleireiro (a) 4 6%
Secretario (a) / Auxiliar Administrativo 4 6%
Pedreiro 4 6%
Motorista 3 5%
Porteiro 2 3%
Mecnico 2 3%
Supermercado 2 3%
Atendente de loja 2 3%
Encanador 1 2%
No responderam 7 11%
Total 66 100%

Procurou-se tambm identificar a mdia das sries cursadas pelos alunos em tempo
regular. Constatou-se que 41% dos alunos pesquisados interromperam seus estudos entre a
5 e 8 sries do Ensino Fundamental. Esses dados somados aos 26% daqueles que
cursaram apenas as Sries Iniciais, demonstram um ndice de evaso escolar, isso porque
mais da metade dos alunos interromperam seus estudos ainda no Ensino Fundamental. A
Tabela 3 demonstra esse resultado:

Tabela 3 - Dados relativos s sries cursadas


Srie cursada N alunos Porcentagem
1 a 4 srie E.F. 17 26%
5 a 8 srie E.F. 27 41%
1 ao 3 E.M. 12 18%
No Responderam 10 15%
Total 66 100%

Nas tabelas 4 e 5 possvel verificar o ano de interrupo e retorno dos alunos aos
estudos. Notou-se que 53% deles interromperam os estudos entre os anos de 2001 e 2011.
O retorno, por sua vez, deu-se no perodo de 2009 e 2012 com o ndice de 61% das
respostas conforme demonstrado abaixo:

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Tabela 4 - Ano de interrupo dos estudos


Ano N alunos Porcentagem
1970-1980 6 9%
1981-1990 5 8%
1991-2000 11 17%
2001-2011 35 53%
No responderam 9 14%
Total 66 100%

Tabela 5 - Ano de retorno aos estudos


Ano N alunos Porcentagem
2004-2008 19 29%
2009-2012 40 61%
No Responderam 7 11%
Total 66 100%

Assim, tendo esboado algumas informaes que dizem respeito ao perfil dos
alunos investigados, parte-se agora efetivamente para a anlise das narrativas produzidas
pelos alunos da EJA acerca da Histria e suas relaes com a vida prtica.
A questo 10 do instrumento de pesquisa procurou identificar a valorizao dos
objetivos do estudo da Histria pelos alunos da EJA. O objetivo da histria conhecer
apenas o passado? Compreender o presente? Buscar orientao para o futuro? Ou seria a
ligao entre as trs dimenses temporais? Para tanto, foi lhes apresentado o seguinte
enunciado:

10. Em sua opinio, qual o principal objetivo no estudo de se estudar


Histria? Marque apenas uma alternativa.

a) Conhecer o passado. ( )

b) Compreender o presente. ( )

c) Buscar orientao para o futuro. ( )

d) As trs alternativas. ( ).

Explique a resposta que voc escolheu:

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Entre essas alternativas, 65% dos alunos assinalaram a alternativa (d) As trs
alternativas, das quais se obteve o seguinte resultado geral:

Grfico 1 - Opinio dos alunos da EJA sobre o principal objetivo do estudo da Histria

Para a reflexo sobre a escolha dessas alternativas, foi solicitado aos alunos que a
explicassem. Das explicaes acerca da questo mais assinalada (d) As trs alternativas
a anlise apontou para a seguinte categorizao25:

Grfico 2- Categorizao das respostas

Como pode ser observado, foram vrias as temticas argumentativas levantadas.


No entanto, a linha argumentativa predominante foi identificada na categoria Orientao

25
As porcentagens relativas a todas as categorizaes apresentadas nos grficos no se referem ao
nmero de participantes da pesquisa, mas sim ao nmero argumentaes.

200
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para a Vida Prtica (43%). No quadro a seguir reproduzimos algumas narrativas desses
alunos:
Quadro 1 - Argumentaes
GM24 L1-426: (...) temos de saber o que aconteceu no passado para que no cometamos os erros deles no
presente e nem no futuro para que continue evoluindo nosso planeta.

GM 14 L1-3: (...) histria faz parte da nossa vida por isso nos precisamos saber como era a histria no
passado para compreender o presente e buscar orientao para o futuro.

GM12 L1-3: conhecer a histria esta ligado ao passado como podemos compreender o presente e tambm
como buscar orientao para o futuro.

GM9 L1-3: estudamos a histria para estudar o que aconteceu no passado e tentar compreender o que esta
acontecendo no presente e tentar entender como ser no futuro.

GM7 L1-3: (...) importante saber o passado, interessante para saber o que mudou at agora e para saber
tambm o futuro o que vai faltar que gua.

GM1 L1-3: porque voc conhecendo a histria voc aprende o passado e compreende o presente e te
auxilia no futuro.

GM2 L1-4: no meio em que vivemos nos temos que estar atento em tudo o que se passa em nosso meio. A
histria quem faz somos ns mesmos, pois a cada dia a nossa vida se torna uma histria diferente e
diversificada.

MM2 L1-3: porque nosso modo de viver depende muito de conhecer a nossa histria, a vida dos nossos
ancestrais.

MM3 L1-3: uma maneira de conhecermos o que aconteceu la atrs e atravs de certos acontecimentos
compreender o presente e ter orientao para muitas coisas.

MM5 L1-3: o que serei amanh resultado do que somos hoje e fomos ontem. Tudo est envolvendo o
passado.

MM7 L1-2: porque eu acho que a histria capaz de nos ensinar quase tudo na vida.

MM16 L1-3: Uma coisa completa a outra, conhecendo o passado eu vou entender o presente e poderei me
preparar para o futuro.

MM20 L1-3: porque quando eu olhar para o passado, certamente terei alguma lio para o presente e terei
escolhas para o futuro.

MM21 L1-3: porque temos que conhecer a histria do passado, para viver o presente e construir um futuro
com menos erro.

PM5 L1-4: (...) porque ficamos conhecendo o passado, sabendo o que levou a estarmos assim e tentar
apontar os erros e termos um futuro mais livre da poltica suja.

PM 10 L1-2: A histria tem para mim como objetivo conhecer o passado, assim explica l, entender como
viviam, assim compreender o presente e nessa mistura nos orientar para o futuro.

26
Nomenclatura utilizada para preservar os nomes e identidade dos alunos que responderam ao
questionrio.

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Conforme observado, 43% acreditam que o objetivo maior do estudo da Histria


est relacionado com as trs dimenses temporais: passado, presente e futuro, e
consubstancia-se como uma forma de Orientao para a Vida Prtica. Em outros termos,
possvel inferir que os jovens e adultos enxergam um sentido na Histria que lhes
possibilita conhecer o passado e articul-lo interpretao do presente e expectativa de
futuro.
Por outro lado, nesse mesmo quadro de argumentaes, possvel perceber que,
para alguns, a Histria considerada como passado:

(...) porque uma coisa completa a outra, conhecendo o passado eu vou


entender o presente e poderei me preparar para o futuro.27
A histria tem para mim como objetivo conhecer o passado, assim
explica l, entender como viviam, assim compreender o presente e nessa
mistura nos orientar para o futuro.28

Embora o discurso dos alunos aponte que o objetivo do estudo da Histria est
relacionado s trs dimenses temporais e exerce grande influncia na vida prtica, a nfase
recai sobre o passado. Todavia, conforme j ressaltado por Jrn Rsen, a Histria consiste
na forma de se olhar o passado com vistas a uma orientao no tempo e no espao.
importante aqui ressaltar que no se trata de uma Histria tal como a chamada mestra da
vida, mas sim, em uma maneira de perceber e prevenir abusos, e ajudar, conforme Luis
Fernando Cerri29: (...) que o cidado no seja suscetvel a manipulaes que o subjuguem a interesses
alheios.
Entende-se que a Histria fruto do agir humano (ou dos feitos) no tempo, no
espao, na experincia de vida. So esses processos concretos que fundamentam qualquer
tipo de representao da Histria. H, ento, convergncia e relevncia no pensamento
histrico daqueles alunos que indicaram que: (...) A histria quem faz somos ns mesmos30,
a histria capaz de nos ensinar quase tudo na vida31, ou ainda a afirmao de que o (...)
conhecer a histria esta ligado ao passado como podemos compreender o presente e tambm como buscar
orientao para o futuro.32

27
Aluno (MM16 L1-3).
28
Aluno (PM 10 L1-2).
29
CERRI, 2011, p. 113.
30
Aluno (GM2 L1-4).
31
Aluno (MM7 L1-2);
32
Aluno (GM12 L1-3).

202
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Essa breve anlise traz consigo algumas indagaes: at que ponto o


conhecimento histrico se relaciona com a Vida Prtica? Em outras palavras, como os
alunos estabelecem relaes entre o conhecimento histrico e sua experincia de vida? A
Histria aprendida na escola realmente importante para sua formao? Como?
As indagaes acima direcionam o foco para a questo 11 que objetivou verificar
se o pensamento dos alunos a respeito da Histria, expresso em suas narrativas, manteria o
mesmo sentido da questo anterior e se eles argumentariam sobre a forma como se
relacionam com conhecimento histrico. Para tanto, foi proposta a seguinte pergunta:

11. Voc acredita que o conhecimento sobre a Histria, adquirido na escola,


importante para a sua vida? Como?

Obteve-se ento a seguinte categorizao:

Grfico 3 - Categorizao das respostas

Como pode ser observado, novamente houve uma variedade de temas nas
categorizaes, porm til destacar que todos os alunos (total de 38) os quais
responderam e argumentaram ao questionamento proposto, buscaram apresentar a relao
de suas experincias com o conhecimento histrico, mantendo, assim, o mesmo sentido
com relao questo anterior.

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Na impossibilidade de analisar todas as respostas dos alunos, convm destacar que


7 (18%) afirmaram que o conhecimento histrico adquirido na escola de grande
importncia, pois proporciona o entendimento da atualidade/sociedade; 5 (13%) afirmaram que
estudar o passado permite o entendimento (e comparao) da realidade presente; e para 4 (11%) dos
alunos, a Histria possibilita a ampliao da viso crtica de mundo, conforme pode ser visto a
seguir:

Quadro 2 - Argumentaes
Entendimento da atualidade/sociedade

GM10 L1-2: sim, porque assim consigo entender melhor a sociedade de hoje.

GM17 L1-2: para compreender as mudanas na atualidade comparando com o passado, exemplo: poltica,
guerra, paz.

GM23 L1: sim, para saber a respeito de como foi criado o pas e seus princpios.

GM18 L1-2: sim, pois aprendemos muitas coisas da sociedade atual e de antigamente.

PM1 L1-2: Sim, pois tendo esse conhecimento podemos discutir e tentar melhorar o mundo de hoje.

PM3 L1-2: importante para o conhecimento do passado e o que acontece no mundo inteiro.

PM14 L1-3: Sim, sem a histria muita coisa como a tecnologia no seria como ela hoje (...) sem a histria
ningum teria ou poucos teriam acesso.

Note-se que os alunos indicaram o conhecimento histrico, e seu potencial crtico


e transformador, como uma fonte que permite compreender as mudanas da atualidade
comparando com o passado, por exemplo: poltica, guerra, paz33. Retomando Jrn Rsen34, a
conscincia histrica pressupe que o homem, estando no mundo deve agir de modo
intencional e racional sobre ele, no o tomando como dado puro. Dessa forma, para essa
parcela dos alunos, a mobilizao do pensamento histrico, e, por sua vez, a conscincia
histrica, uma forma de entender o mundo contemporneo, refleti-lo em sua
historicidade e tambm discuti-lo a fim de melhor-lo.35
Nessa linha de pensamento, os alunos avanam no posicionamento rejeitando a
ideia da Histria como algo sem sentido ou como mera disciplina escolar, procurando

33
Aluno (GM17 L1-2).
34
RSEN, 2001, p. 57.
35
Aluno (PM1 L1-2).

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relacionar a influncia do conhecimento histrico com suas experincias de vida na


sociedade. Isso ficou ainda mais evidente quando demonstrado nos quadros abaixo:

Quadro 3 - Argumentaes
Passado em comparao com o presente

MM3 L1-3: importante saber o que aconteceu com quem viveu l atrs, assim imaginamos hoje e
podemos comparar como h diferenas hoje em dia.

MM10 L1-2: muito importante conhecer a histria do passado e comparar a histria de hoje.

MM11 L1-2: sim, pois aprendemos como era a vida antes e como est agora.

GM22 L1-3: sim, porque voc fica conhecendo o que aconteceu no passado que explica muita coisa que
esta acontecendo no presente.

MM20 L1-2: sim, pois conhecendo a histria saberei como agir no presente, e ainda posso falar com as
pessoas e trocar idias.

Nesses fragmentos argumentativos, a concepo de Histria enquanto fonte de


conhecimento do passado continua, mas agora com a indicao de que esse conhecimento
explica (...) como era a vida antes e como est agora.36 Ou seja, (...) voc fica conhecendo o que
aconteceu no passado que explica muita coisa que est acontecendo no presente.37
Estudar Histria , portanto, um paradoxo: ou viaja-se no tempo ou traz-se o
passado ao presente. Esses alunos entendem que preciso estar conectado com o mundo
da informao, mas, por outro lado, entendem que a Histria ocupa um lugar privilegiado
no que diz se refere compreenso do mundo, suas transformaes e contradies. Essa
realidade traduz-se a seguir:

36
Aluno (MM11 L1-2).
37
Aluno (GM22 L1-3).

205
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Quadro 4 - Argumentaes
Ampliao da viso crtica de mundo

GM7 L2-4: (...) aqui na escola estudado apenas s uma parte da histria e j d diferena, porque ate na
poltica ela estuda os presidentes. Seria bom estudar tudo.

GM9 L1-2: Sim. Se tornando uma pessoa crtica socialmente, economicamente e politicamente.

GM24 L1: sim, atravs dela entendemos a evoluo do mundo.

GM15 L1-4: Sim, na histria voc aprende no s sobre a histria, mas de onde viemos, nossos
antepassados, cultura, valores, democracia, histria do pas dos estados, poltica, uma abertura para uma
viso mais diferente de ver a vida e aprender mais.

Os alunos apontaram essencialmente o conhecimento histrico como um fator


preponderante para a ampliao da viso crtica a respeito mundo, j que por esse
conhecimento entende-se (...) de onde viemos, nossos antepassados, cultura, valores, democracia,
histria do pas, dos estados, da poltica, uma abertura para uma viso mais diferente de ver a vida e
aprender mais.38
Holien Bezerra39 lembra que o primeiro objetivo do conhecimento histrico a
compreenso dos processos e dos sujeitos histricos, o desvendamento das relaes que se
estabelecem entre os grupos humanos em diferentes tempos e espaos. O conhecimento
histrico , portanto, um mecanismo essencial para que o aluno possa apropriar-se de um
olhar consciente para sua prpria sociedade e para si mesmo. O estudo da Histria em sala
de aula leva ao (...) entendimento da evoluo do mundo40 e conduz a formao de uma (...)
pessoa crtica socialmente, economicamente e politicamente.41
Portanto, a Histria, concebida enquanto um processo que amplia a viso crtica de
mundo e objetiva aprimorar o exerccio da problematizao da vida social como ponto de
partida para a investigao produtiva e criativa, busca identificar as diversas relaes sociais
que se estabelecem em distintos e variados grupos; procura perceber as diferenas e
semelhanas, os conflitos e contradies, as solidariedades, igualdades e desigualdades
existentes nas sociedades, comparando problemticas atuais e de outros momentos; e por

38
Aluno (GM15 L1-4).
39
BEZERRA, Holien Gonalves. Ensino de Histria: contedos e conceitos bsicos. In: KARNAL,
Leandro (org.). Histria na sala de aula: conceitos, prticas e propostas. 2 ed. So Paulo: Contexto,
2009, p. 42.
40
Aluno (GM24, L1).
41
Aluno (GM9, L1-2).

206
Revista histria, histrias, volume 5, nmero 9, jan.jul. 2017
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fim posiciona-se de forma crtica no presente, buscando relaes possveis com o


passado.42
Na sequncia da pesquisa, procurou-se averiguar a existncia (ou no) de algum
acontecimento ou fato histrico que marcou a vida dos alunos da EJA. Para tanto, foi-lhes
apresentado a questo 12:

12. Existe algum acontecimento da Histria que marcou a sua vida? Justifique

O objetivo dessa questo est articulado diretamente s duas questes anteriores.


Saber quais acontecimentos ou fatos histricos que permeiam a mente dos alunos
fundamental, pois como afirmado em outro momento, a lembrana, a memria e o
esquecimento so elementos constitutivos da conscincia histrica. Sendo assim, foram
levantados os seguintes dados:
Grfico 4- Categorizao das respostas

Observa-se que dos 22 alunos que argumentaram ao questionamento proposto, 5


(23%) listaram o acontecimento de 11 de setembro de 2001, mais conhecido como o
atentando as Torres Gmeas (World Trade Center) nos Estados Unidos da Amrica

42
Ibidem, 2009, p. 44.

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(EUA), 4 (18%) listaram o Descobrimento do Brasil, 3 (14%) a Escravido e


Abolio e 3 (14%) o Nazismo. Esses assuntos foram os mais expressivos em ndice
percentual, porm nem todos obtiveram justificativas.
Segue abaixo a seleo de alguns fragmentos das respostas

Quadro 5 - Argumentaes
11 de setembro/atentado as torres gmeas EUA.
PM5, L1: 11 de setembro - Foi algo que me marcou pelo tanto de mortos e pelo grau de desrespeito a
humanidade.

PM12, L3: 11 de setembro. Eu fiquei muito chocada com tanta desgraa e tambm porque eu estava
assistindo no momento que aconteceu.

MM2 L1-2: O ataque as torres gmeas, porque foi uma catstrofe, as pessoas morreram sem saber bem
o porque.

GM2 L1: a histria das torres gmeas foi um terror total que ficou na memria de todos,
principalmente na minha.

Escravido e Abolio

MM6 L1-2: Sim, a escravido, muito triste pensar que o ser humano foi capaz de torturar seu
semelhante.

Nazismo

GM9 L1-3: Sim. Na poca do Nazismo, me impressionei, foi com objetivo que os alemes "por
quererem uma raa pura", sacrificaram a mataram judeus com frieza.

GM11 L1-3: Sim. Na poca do Nazismo aquilo me chamou a ateno porque a coragem daquelas
pessoas serem m era muito grande.

Guerra do Paraguai

PM10, L1: Guerra do Paraguai: minha famlia descendente de paraguaios.

Os alunos afirmaram que o 11 de setembro de 2001 foi um fato que (...) marcou
pelo tanto de mortos e pelo grau de desrespeito a humanidade.43 Devido ao alto ndice de terror e
catstrofe, (...) foi o fator que ficou na memria de todos.44 Vale ressaltar que os alunos no
esto errados em considerar o atentado s torres gmeas como um fato histrico, pois
muito j se refletiu acerca dos motivos que levaram a tal acontecimento, isto , seus
aspectos ideolgicos, polticos, suas causas e efeitos. Em outras palavras, um

43
Aluno (PM5, L1).
44
Aluno (GM2, L1).

208
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acontecimento que subverteu a ordem da vida das pessoas no presente e


consequentemente inaugurou uma nova perspectiva em relao ao futuro.
Outro ponto levantado pelos alunos diz respeito Escravido e ao Nazismo.
Temas como esses, discutidos em sala de aula e frequentemente relatado em documentrios
pela TV ou filmes, provocam sem sombra de dvidas, choque e angstia nos estudantes de
uma forma geral. Certamente o trabalho historiogrfico de mostrar as especificidades
desses assuntos conduz a uma reflexo sobre a prpria vida e o futuro da humanidade.
Devido a tais fatores, alguns alunos mostraram-se chocados com o (...) objetivo que os
alemes "por quererem uma raa pura", sacrificaram a mataram judeus com frieza45 ou com a
capacidade do ser humano em (...) torturar seu semelhante.46
Para finalizar essa anlise, convm salientar que o fato ou o acontecimento se torna
histrico quando h relaes com presente. Segundo Jrn Rsen 47 necessrio que o
passado seja articulado com as orientaes presentes no agir contemporneo, ou seja, s
determinaes de sentido com as quais o agir humano organiza suas intenes e
expectativas no fluxo do tempo, ou seja, precisam estar ligadas a um fato de experincia.
Para que o fato tenha sentido, preciso que ele esteja articulado com a experincia pessoal
no tempo.
Desse modo, foi possvel perceber que os alunos trouxeram tona determinados
acontecimentos e fatos relevantes para si e estabeleceram relaes com a vida prtica. Isto
, os fatos aqui esboados conduziram os estudantes reflexo acerca das crueldades
realizadas pelo homem, o que, por sua vez, os fez repensar a prpria vida. A Histria
cumpre assim o seu papel.

CONSIDERAES FINAIS

Ao longo desse texto, procurou-se deixar claro o entendimento de que a sociedade


contempornea tem passado por diferentes movimentos e transformaes que inferem
diretamente no ambiente escolar. Consequentemente, essas demandas implicam em se
pensar novas formas de trabalho com o ensino e aprendizagem de Histria.

45
Aluno (GM9, L3).
46
Aluno (MM6, L1).
47
RSEN, 2001, p. 73.

209
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No que se refere EJA, tm-se em vista a concepo de que o ensino de Histria


pode desempenhar um papel relevante no processo da formao da conscincia histrica
dos alunos, conduzindo-os construrem novas concepes de vida e interpretaes da
realidade em que vivem. Jaime Pinsky48, citando Eric Hobsbawn, destaca que impossvel
negar a importncia, sempre atual do ensino de Histria visto que, ser membro da
comunidade humana situar-se em com relao a seu passado. O passado uma
dimenso permanente da conscincia humana, um componente inevitvel das instituies
valores e padres da sociedade.
Ao professor cabe realizar a intermediao entre o patrimnio cultural da
humanidade e a cultura do aluno. necessrio que ele conhea da melhor forma possvel,
tanto um quanto o outro49, visto que no h como trabalhar a disciplina de Histria como
sendo distante do universo dos jovens e adultos. As respostas dos alunos aqui relatadas
procuraram romper com certo preconceito em relao modalidade EJA, qual seja aquela
de que seu pblico almeja apenas um diploma ou uma formao rpida para atuar de
maneira qualificada no mercado de trabalho.
Ao analisar os fragmentos das narrativas produzidas pelo grupo de alunos
investigados, sobre a Histria e sua funo social, percebeu-se que o conhecimento
histrico escolar era significativo para suas vidas. Em todo momento, em cada
questionamento, os jovens e adultos procuraram refletir, analisar e relacionar os contedos
histricos com sua experincia e viso de mundo. Obviamente que uma pesquisa dessa
maneira possui seus limites, ainda mais com um universo de alunos reduzido. Todavia,
acredita-se que os resultados obtidos podem lanar perspectivas que tange a disciplina de
Histria na EJA.
A abordagem atravs da conscincia histrica se mostrou profcua e significativa
para a realizao da investigao porque, conforme Jrn Rsen50, ela nos apresenta o lado
subjetivo que os alunos possuem acerca da Histria, por meio de suas experincias
histricas seletivas, normativas e de uma apropriao significativa. Conforme observado, a
Histria significa, para os alunos da EJA, algo alm de uma simples matria escolar. Pela

48
PYNSKY, Jaime; PYNSKY, Carla Bassanezi. Por uma histria prazerosa e conseqente. In:
KARNAL, Leandro. (org.) Histria na sala de aula: conceitos, prticas e propostas. 2 ed. So Paulo:
Contexto, 2009, p. 19.
49
PYNSKY; PYNSKY, 2009, p. 23.
50
RSEN, Jrn. Aprendizagem histrica: fundamentos e paradigmas. Curitiba: W.A. Editores, 2012, p.
71.

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Histria, os alunos relataram a possibilidade de se conhecer diferentes culturas, diferentes


pocas, bem como a forma pela qual a histria da humanidade se desenvolveu at a
atualidade. Outros relatos ressaltam a importncia de se conhecer o passado para
compreender o presente, relacionaram seus interesses em diferentes temticas como a
Guerra do Paraguai, o Nazismo, e mais: destacaram o potencial formativo da Histria no
que se refere a compreenso dos diversos fenmenos que compe a realidade social
vivenciada.
Por fim, vale enfatizar que a Histria se encontra presente em todos os momentos
da vida humana e o passado deve ser interrogado a partir de questes que nos inquietam no
presente. Esse motivo que faz com que a Histria continue a ser ensinada nas escolas.
nesse ponto que os jovens e adultos precisam ver o real sentido da Histria. Esta, por sua
vez, uma parte da tarefa que compete a cada um de ns professores.

Recebido em: 11 de novembro de 2016


Aprovado em: 27 de abril de 2017

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ARTIGOS LIVRES

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ISSN 2318-1729

APONTAMENTOS ANALTICOS SOBRE A RELAO INTELECTUAL


DE MACHADO DE ASSIS COM O TEMPO

ANALYTICAL NOTES ON THE INTELLECTUAL RELATIONS


BETWEEN MACHADO DE ASSIS AND THE TIME

Luis Cludio Palermo


Doutorando em Histria pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro - Brasil
Mestre em Histria pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro
e-mail: luisclaudio72@gmail.com

RESUMO

O tema deste artigo o intelectual, crtico e literato Joaquim Maria Machado de Assis, tendo como
foco parcela de sua produo intelectual na modernidade brasileira. A questo que motivou esse
trabalho analisar a relao de Machado com o tempo, a partir de Memrias Pstumas de Brs
Cubas e de alguns de seus textos de crtica. A base metodolgica primordial assenta-se no
cruzamento entre a interpretao de textos desse intelectual e algumas referncias tericas que
pensam o tempo histrico no como um constructo meramente natural, mas que interessa vida
humana. O argumento desenvolvido que esse intelectual tem uma viso mpar sobre a esttica
literria e sobre as ideias modernas que chegavam ao Brasil oitocentista. Ademais, argumenta-se que
essa viso machadiana permite identificar e perceber nele uma operacionalizao no trivial da
noo de tempo. Assim, ele no valoriza excessivamente nem uma perspectiva natural nem
meramente racionalista do tempo. Portanto, a linha de raciocnio desenvolvida no artigo
substancializada pela identificao da presena da subjetividade na forma de Machado de Assis lidar
com o tempo, pela importncia do momento presente na reflexo dele sobre o tempo e por uma
noo de processo que lhe confere um refinamento intelectual singular.

Palavras-chave: Machado de Assis; tempo; teoria da histria; modernidade brasileira; intelectuais


brasileiros.

ABSTRACT

The theme of this article is the intellectual, critical and literate Joaquim Maria Machado de Assis,
focusing as part of his intellectual production in Brazilian modernity. The question that motivated
this work is to analyze Machado's relationship with time, based on Memrias Pstumas de Brs
Cubas and some of his critical texts. The primordial methodological basis is based on the
intersection between the interpretation of texts of this intellectual and some theoretical references
that consider the historical time not as a construct merely natural, but that concerns the human life.
The argument developed is that this intellectual has an unparalleled view of literary aesthetics and
modern ideas that reached nineteenth-century Brazil. In addition, it is argued that this Machadiana
view allows to identify and to perceive in him a non trivial operationalization of the notion of time.
Thus he does not overrate either a natural or a merely rationalist perspective of time. Therefore, the
line of reasoning developed in the article is substantialized by the identification of the presence of
subjectivity in the form of Machado de Assis dealing with time, by the importance of the present
moment in his reflection on time and by a notion of process that gives him a refinement
Intellectual property.

Keywords: Machado de Assis; time; theory of history; brazilian modernity; brazilian intellectuals.

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INTRODUO

Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) , decerto, um dos grandes nomes


da histria da literatura brasileira. Para muitos, ele o nosso maior expoente no campo
literrio. Mas ele no foi apenas um literato, foi um excepcional crtico literrio e um
proeminente intelectual brasileiro do sculo XIX. Seus romances, suas crticas e suas ideias
foram colocados em cena e defendidas num perodo em que o Brasil adentrava a
modernidade, especialmente aps os anos 1870.
A questo que d ensejo e motiva este artigo analisar a maneira como o referido
pensador se relacionou com o tempo, seja pensando especificamente sobre o tempo (como
ele refletiu diretamente sobre o tempo) ou pensando a partir do tempo (como ele refletiu
sobre questes diversas, tendo o tempo como um dos eixos de organizao nodais de seus
pensamentos). Dessa forma, com base em alguns textos desse intelectual, procuro
compreender como ele pensou e mobilizou algumas noes acerca do tempo em sua crtica
e a partir da subjetividade de um personagem-narrador criado por ele.
O percurso analtico que empreendido, neste artigo, foi construdo a partir de um
dos livros mais importantes do intelectual em apreo: Memrias Pstumas de Brs Cubas.
Nesse sentido, pertinente destacar que Daniel Pinha Silva 1 argumenta que esse livro
marca um ponto de inflexo na obra de Machado de Assis, haja vista que nos oferece
novidades patentes em sua produo, sem deixar, por outro lado, de pagar tributo ao
amadurecimento desse destacado escritor brasileiro.
Outra referncia importante o recente texto de Alberto Luiz Schneider, que
aborda Machado de Assis em sua segunda fase, estabelecendo uma comparao que
sublinha as divergncias entre o Bruxo do Cosme Velho2 e Silvio Romero. Essa segunda
fase iniciada, de acordo com o referido artigo, pela obra Memrias pstumas de Brs Cubas
(1881), seguida de O Alienista e Dom Casmurro (1899), entre outras obras3.

1
PINHA, Daniel. Apropriao e recusa: Machado de Assis e o debate sobre a modernidade brasileira na
dcada de 1870. Tese (Doutorado em Histria) Universidade Catlica do Rio de Janeiro, 2012.
2
SCHNEIDER, Alberto Luiz. Slvio Romero e Machado de Assis: leituras e dissensos do fim do
Oitocentos, Intelligere, Revista de Histria Intelectual, So Paulo, v. 2, n 2 [3], p. 54, 2016. Disponvel
em: <http://revistas.usp.br/revistaintelligere>. Acesso em: 08/05/2017.
3
Outra referncia importante o texto de Alfredo Bosi, na medida em que esse autor afirma que: [...] O
que marca a singularidade das Memrias pstumas, o seu salto qualitativo, o modo pelo qual a presena
do narrador junto aos fatos dobra-se em autoconscincia. Ver: BOSI, Alfredo. Brs Cubas em trs
verses, Teresa revista de Literatura Brasileira, n. 6 | 7, So Paulo, p. 279-317, 2006, p. 282.

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Alm de Memrias Pstumas, cumpre ressaltar que foram usados tambm alguns
outros artigos (crticas) de Machado de Assis na composio analtica deste trabalho que
ora se enceta4. Devo expor que a leitura dos textos foi feita especialmente com o objetivo
de pensar como, em alguma medida, esse intelectual brasileiro pensou e lidou com o tempo
em suas anlises, em suas crticas e a partir de seu personagem-narrador Brs Cubas.
O fundamento basilar dos argumentos desenvolvidos ao longo do artigo provm da
interpretao que fiz de alguns textos do escritor em voga, com base numa noo de tempo
acumulada em meu percurso intelectual e acadmico, que se refere, sinopticamente, noo
de tempo (vivido e pensado) de acordo com as premissas modernas 5.
Destaco, ainda, outros alicerces cruciais que contriburam na anlise dos textos de
Machado de Assis. Um deles mais importante para este artigo. Trata-se, conforme
mencionado, do trabalho do pesquisador Daniel Pinha Silva, que um historiador cuja
recente tese prope novas interpretaes sobre o papel da produo crtico-literria de
Machado de Assis em sua interlocuo com o debate letrado brasileiro oitocentista 6.
Outros dois so os artigos de Alfredo Bosi7, que contribui na anlise sobre algumas verses
importantes acerca do narrador Brs Cubas, e de Alberto Luiz Schneider 8, que colabora,
entre outros pontos, no sentido de pensar o lugar de Machado de Assis como crtico que
recusou a adeso s escolas naturalistas e realistas 9.

A CONSCINCIA DA MORTE REGE E COORDENA A RELAO DE BRS


CUBAS COM A SOCIEDADE E COM O TEMPO DA VIDA HUMANA

Memrias Pstumas de Brs Cubas, romance publicado originalmente em folhetins, a


partir de maro de 1880, na Revista Brasileira, uma das obras mais ilustres da literatura
brasileira. A histria narrada pelo personagem principal, Brs Cubas, que um defunto

4
Em minha trajetria pessoal e intelectual, eu li um conjunto de romances e contos de Machado de Assis,
bem como algumas crticas desse autor. Contudo, cumpre realar que os textos que foram precisamente
usados na composio deste artigo encontram-se listados ao longo deste trabalho.
5
ARENDT, Hannah. O conceito de histria Antigo e Moderno. In: ______. Entre o passado e o futuro.
So Paulo: Perspectiva, 1992, p. 69-126; ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1998; KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuio semntica dos tempos histricos.
Rio de Janeiro: Contraponto, 2006; NUNES, Benedito. Experincias do tempo. In: NOVAES, Adauto.
Tempo e Histria. So Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 131-140; THOMPSON, Edward Palmer.
Tempo, disciplina de trabalho e capitalismo industrial. In: Costumes em comum estudo sobre cultura
popular tradicional. So Paulo: Companha das Letras, 1998.
6
PINHA, 2012, p. 7.
7
BOSI, 2006, p. 279-317.
8
SCHNEIDER, 2016.
9
SCHNEIDER, 2016, p. 57.

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autor. Trata-se, pois, de uma histria contada por um homem que j morreu e essa
informao revelada logo no primeiro captulo 10, de forma a tornar claro para o leitor o
lugar de fala do personagem principal.
Uma vez que anunciou ser um defunto autor marcando seu lugar de fala e que
descreveu as pessoas que estavam presentes em seu velrio, o personagem principal passa a
expor suas memrias pstumas seguindo basicamente a cronologia crescente dos anos de
sua vida. Dessa forma, Brs Cubas procura respeitar aps anunciar seu nascimento em 20
de outubro de 1805 (o nascimento comea no captulo IX, que intitulado Transio)
uma sequncia temporal biolgica pessoal (da infncia/adolescncia at a vida madura) que
serve de referencial geral narrativa.
Entretanto, Brs Cubas no promove uma narrativa linear, haja vista que se permite
fazer, ao longo do livro, intercalaes e digresses acrescentando algumas reflexes ou
alguns acontecimentos que visam enriquecer a composio geral, construindo seu ponto de
vista e sua forma de exposio das memrias. Nesse sentido, vale a aluso pertinente
observao geral do crtico literrio Roberto Schwarz, pois ele defende a tese de que o
carter volvel do narrador no apenas um recurso literrio, mas se trata de uma das
caractersticas centrais que modelam e avivam o texto do livro Memrias Pstumas11. E
como se, movido pela volubilidade, um prcer nacional [Brs Cubas] abrisse visitao
pblica, na prpria pessoa, os vcios de sua classe12. Assim, [...] O narrador volvel
tcnica literria, sinal da futilidade humana, indcio de especificidade histrica, e uma
representao em ato do movimento da conscincia, cujos repentes vo compondo o
mundo vasto, mas sempre interior13.

10
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Memrias Pstumas de Brs Cubas. Rio de Janeiro: Editora
Nova Aguilar, 1994. Disponvel em:<http://machado.mec.gov.br/obra-completa-mainmenu-123>. Acesso
em: 02/01/2016.
11
SCHWARZ, Roberto. Questes de forma. In: Um mestre na periferia do capitalismo. 4 edio. So
Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2000, p. 109.
12
SCHWARZ, 2000, p. 119.
13
SCHWARZ, 2000, p. 123-124, grifo do autor. No obstante a pertinncia dessas observaes de
Schwarz, cabe registrar, desde j, que minha interpretao tributria da anlise que Alfredo Bosi realiza
sobre a narrativa de Brs Cubas em trs verses (cf. BOSI, 2006). Nesse texto, o autor expe e examina
trs verses gerais que a crtica tem dado ao narrador de Memrias Pstumas. Tendo em vista o pouco
espao neste artigo, em sntese, a primeira protagonizada por Lcia Miguel Pereira, que enxerga uma
relao de associao entre narrador e autor. A segunda e a terceira foram capitaneadas pela crtica
sociolgica cujo argumento basilar que Machado de Assis comps Brs Cubas como um narrador-
protagonista que espelhava sua classe social. H, nesse sentido, um distanciamento irnico que Machado
de Assis mantm em relao ao seu narrador-autor. Assim, [...] podemos qualificar a primeira como
construtiva, a segunda como expressiva e a terceira como mimtica. Ver: BOSI, 2006, p. 304. Portanto,
importante ressaltar que Bosi defende a combinao desses vetores analticos apresentados como
produtivos para entender o referido livro de Machado de Assis, fazendo a ressalva crtica de que no deve

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essa forma volvel de narrar, estruturar e animar o texto que faz com que o
defunto autor possa, de vez em quando, fazer sugestes de avano ou recuo na histria que
contada, alm de prosar com o leitor. De modo que o livro fica assim com todas as
vantagens do mtodo, sem a rigidez do mtodo14. A passagem a seguir contribui para dar
substncia aos apontamentos feitos at aqui, nesta seo:

Comeo a arrepender-me deste livro [diz Brs Cubas]. No que ele me


canse; eu no tenho que fazer; e, realmente, expedir alguns magros
captulos para esse mundo sempre tarefa que distrai um pouco da
eternidade [ele est morto e no tem o que fazer]. Mas o livro
enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contrao cadavrica; vcio
grave, e alis nfimo, porque o maior defeito deste livro s tu, leitor
[Prosa com o leitor, acusando o leitor de ser o defeito do livro. Brs
Cubas faz isso porque est morto, no tem o peso das presses sociais].
Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narrao
direta e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo so
como os brios, guinam direita e esquerda, andam e param,
resmungam, urram, gargalham, ameaam o cu, escorregam e caem...
[carter no linear da narrativa]15.

Devo aduzir que o personagem Brs Cubas elabora uma narrativa que no est
meramente preocupada em elencar acontecimentos que se desenvolveram ao longo de sua
trajetria. Logo, no se trata de uma simples narrao de memrias. Teoricamente, a
narrativa tem uma feio que contempla o peso da subjetividade de Brs Cubas16. Portanto,
Machado de Assis concebe um personagem que vai apresentar suas memrias, mas esse
personagem faz isso e a est a questo assaz importante do ponto de vista de um
morto (que fala de outro mundo). Como desdobramento, essa nuana tem implicaes
na relao que o narrador estabelece com seu passado e com o que ele desvela para o
pblico leitor sobre suas memrias. Assim,

[...] Machado engendrou a fico do defunto autor, um expediente


aparentemente irrealista escolhido para facultar a exibio at o limite
do descaramento dos sentimentos todos de um ego que a condio
post-mortem permitiria desnudar. Testemunho do passado e ponto de vista

haver predomnio de uma perspectiva monocausal. Essa ressalva alude especialmente anlise de
Schwarz, que privilegia o que Bosi chama de imitao do narrador (Brs Cubas) em relao situao de
indivduos que representariam sua classe social. Nesse ponto, em particular, a volubilidade cunhada por
Schwarz perderia seu valor explicativo, segundo Bosi, porque reduziria mimese o papel de Brs Cubas,
desconsiderando a riqueza que est presente na subjetividade desse narrador e na busca de uma relao
sensvel (e mesmo volvel) que ele estabelece com o leitor.
14
MACHADO DE ASSIS, 1994, Captulo IX.
15
MACHADO DE ASSIS, 1994, Captulo LXXI.
16
BOSI, 2006, p. 284; SCHNEIDER, 2016, p. 67.

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do homem j desafrontado da brevidade do sculo pedem


interpretao que d conta das razes do procedimento 17.

O que se deseja argumentar efetivamente que a subjetividade de Brs Cubas


precisamente a de um morto que comea a relatar suas memrias permite-o, portanto, ter
um controle relativamente maior de sua narrativa, tanto no que concerne seleo dos
acontecimentos que faro parte das memrias, quanto na forma como ele aborda tais
acontecimentos. importante reiterar que isso ocorre porque o defunto autor no se sente
mais premido pelas regras sociais de convivncia. Essa uma caracterstica decisiva na
estruturao crtica do livro: o autor das memrias, por estar morto, no tem freios
sociais e se sente mais vontade para expor sua narrativa de forma mais crtica.
Meu argumento que Machado de Assis no usa tal artifcio a saber, a escrita a
partir de um defunto autor com vistas a conceber um personagem com tonalidade
transcendente (no se trata de um romance para falar sobre coisas do alm-mundo). Ao
contrrio, seu objetivo decididamente achar um lugar para Brs Cubas que permite a esse
narrador potencializar ao mximo sua crtica sociedade, elucidando algumas contradies
humanas.
As memrias construdas do ponto de vista de um defunto autor produzem
possibilidades de se colocar em evidncia uma interveno relativamente mais autnoma
do autor/narrador (Brs Cubas). Nesse sentido, cabe lembrar que a literatura do sculo
XIX passou a experimentar um recurso que prima pelos modos de subjetivao do
narrado18 que encarnado por Brs Cubas, a partir da concepo intelectual de Machado
de Assis que fecunda o narrador. Tal recurso gera uma narrativa, em alguma medida, mais
regida pela normatividade (ponto de vista do autor) do que pela facticidade (troca entre o
que o autor deseja contar e o que a sociedade pode achar conveniente crtica da
sociedade), o que no exclui o carter volvel da narrativa19 porque este fruto da
perspectiva do sujeito que narra.
E esse tipo de relativa autonomia enunciativa pode ser pensado tanto no que toca
seleo do que o defunto autor deseja expor (contedo de suas memrias) como na forma
pela qual abordar os acontecimentos que ele elegeu como cruciais para fazer parte de sua
fala (forma expositiva dos acontecimentos). A passagem a seguir confere substncia ao que

17
BOSI, 2006, p. 281, grifos e aspas do autor.
18
SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memria e guinada subjetiva. Trad. Rosa Freire dAguiar.
So Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007, p. 18.
19
SCHWARZ, 2000.

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tenho argumentado, notadamente no que concerne forma de abordagem dos


acontecimentos. Assim, pode-se perceber como a relao com o tempo faz com que Brs
Cubas um morto possa expor suas memrias de forma singular, diferentemente,
portanto, do que ocorreria com um narrador vivo.

Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realo a minha
mediocridade; advirta que a franqueza a primeira virtude de um defunto. Na vida,
o olhar da opinio, o contraste dos interesses, a luta das cobias obrigam a gente a
calar os trapos velhos, a disfarar os rasges e os remendos, a no estender ao mundo
as revelaes que faz conscincia; e o melhor da obrigao quando, fora
de embaar os outros, embaa-se um homem a si mesmo, porque em tal
caso poupa-se o vexame, que uma sensao penosa, e a hipocrisia, que
um vcio hediondo. Mas, na morte, que diferena! que desabafo! que liberdade!
Como a gente pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso as lantejoulas, despregar-se,
despintar-se, desafeitar-se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser! Porque,
em suma, j no h vizinhos, nem amigos, nem inimigos, nem conhecidos, nem
estranhos; no h platia. O olhar da opinio, esse olhar agudo e judicial, perde a
virtude, logo que pisamos o territrio da morte; no digo que ele se no estenda
para c, e nos no examine e julgue; mas a ns que no se nos d do
exame nem do julgamento. Senhores vivos, no h nada to
incomensurvel como o desdm dos finados20.

A conscincia de que j morreu faz com que Brs Cubas, aparentemente, no se


importe com o que a sociedade vai falar, achar, opinar etc. Ele est em um mundo diferente
do nosso, tendo em vista que seu tempo na terra j se esgotou. Ratifico que esse um
referencial importante na construo da narrativa e na crtica ao Brasil de seu tempo21.
Destarte, a conscincia de que j findou seu reinado na terra o permite ser menos regrado
(ou nada regrado), menos limitado pelas coeres sociais (ou nada limitado), afinal, seu
tempo j outro, seu mundo j outro.
Mas no somente na forma de narrar e de fazer crticas sociedade que a
conscincia da morte um eixo primordial do livro em apreo. Vale ressaltar que a seleo
dos contedos, dos acontecimentos que fazem parte da memria de Brs Cubas tambm
regida e coordenada por essa singeleza relacionada ao tempo do narrador (um autor
defunto). O excerto a seguir ajuda nessa compreenso:

J agora no digo o que pensei dali at Lisboa, nem o que fiz em Lisboa, na
pennsula e em outros lugares da Europa, da velha Europa, que nesse tempo parecia
remoar. No, no direi que assisti s alvoradas do romantismo, que
tambm eu fui fazer poesia efetiva no regao da Itlia; no direi coisa

20
MACHADO DE ASSIS, 1994, Captulo XXIV.
21
SCHNEIDER, 2016, p. 62.

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nenhuma. Teria de escrever um dirio de viagem e no umas memrias, como estas


so, nas quais s entra a substncia da vida22.

O defunto autor apresenta, em seu relato, que a escolha do que ou no narrado


nas suas memrias faz parte da edio arbitrria23 feita por ele mesmo. Com isso, pode-se
observar, na primeira parte grifada do trecho acima, que Brs Cubas faz meno a alguns
acontecimentos, mas adverte o leitor que no deseja revelar o que ele fez ou o que
aconteceu no perodo em que esteve na Europa. A fundamentao elaborada pelo
personagem gira em torno da diferena entre um dirio de viagem e as memrias de uma
pessoa. Tal diferena denota a preocupao de Machado de Assis em sobrelevar a
subjetividade de seu personagem principal um defunto autor na produo da narrativa.
Memrias so compostas de substncias da vida24. E tais substncias so claramente
problematizadas no trecho destacado anteriormente.
O fato de o personagem principal ser um defunto torna-se, portanto, um recurso
perspicaz que permite ao narrador colocar em evidncia que o tempo e a conscincia de
finitude so elementos valorosos na relao que os indivduos (ou os grupos) tm com a
sociedade, afinal, para Brs Cubas o seu tempo (o tempo de um morto) foi decisivo em
suas escolhas e na maneira como se portou ao contar sua memria. Diante do exposto,
pode-se depreender, a partir dessa concepo realizada por esse eminente intelectual
brasileiro oitocentista, que a forma como os indivduos (ou os grupos) lidam com a vida e
com os acontecimentos sociais est regida e coordenada, em alguma medida, pela relao
que eles tm com o tempo e tambm com a conscincia de sua prpria finitude.

A TEORIA DAS EDIES HUMANAS E OUTRAS REFLEXES


MACHADIANAS: O PRESENTE E A SUBJETIVIDADE COMO CONDIES
CRUCIAIS PARA SE PENSAR O TEMPO (E A VIDA HUMANA)

Cabe evidenciar que, conforme visto na seo anterior, subjaz ao recurso da


conscincia da morte mobilizado pelo narrador a ideia de que h um sujeito, uma
subjetividade que est por trs das escolhas, pois h uma conscincia que seleciona fatos e
aborda-os de determinada maneira, no de outra. Nesse sentido, chamo a ateno que tanto
a perspectiva subjetiva quanto a influncia do presente na relao dos seres humanos com

22
MACHADO DE ASSIS, 1994, Captulo XXII.
23
BOSI, 2006, p. 293.
24
MACHADO DE ASSIS, 1994, Captulo XXIV.

220
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o passado so os motes que doravante so colocados em anlise, de forma a buscarmos


compreender um pouco mais sobre o esprito desse intelectual brasileiro em voga.
Segundo Schneider25, Machado de Assis trava um debate pujante com outros
intelectuais brasileiros, a partir da dcada de 1870, fugindo do Nacionalismo, do
Naturalismo e do Realismo. Nessa linha de raciocnio, vale destacar que o artigo Ea de
Queirs: O Primo Baslio, de Machado de Assim, que foi publicado em O Cruzeiro, em 16
e 30/04/1878, aborda diretamente a crtica do intelectual brasileiro dirigida ao portugus
Ea de Queirs. Uma das premissas mais caras ao referido texto a que trata do debate
machadiano com a Escola Realista26.
Ao menos dois pontos podem ser iluminados, no tocante crtica que Machado de
Assis faz a Ea de Queirs. O primeiro que o crtico brasileiro deixa claro seu
afastamento em relao distino entre realismo/orientao moral requisitada pelas
literaturas realistas delineadas por Silvio Romero e Ea de Queirs 27. O segundo que,
para o autor de Memrias Pstumas Brs Cubas, a proposta formulada pela referida Escola
carregava em seu projeto, ao fim e ao cabo, a tentativa de ocultao da subjetividade e do
ponto de vista do escritor, em favor da [...] descrio minuciosa, quase tcnica, das
relaes adlteras, eis o mal28.
Pode-se depreender, pois, que a subjetividade (do escritor, poeta, crtico etc.) um
elemento caro s ideias de Machado de Assis. Retomo, pois, um trecho exposto antes, com
vistas a pontuar a fora da subjetividade na referncia analtica desse intelectual brasileiro
oitocentista, a partir da narrao de um personagem concebido por ele: [...] Teria de
escrever um dirio de viagem e no umas memrias, como estas so, nas quais s entra a
substncia da vida29. Com essas palavras, podemos perceber que a seleo do que vai fazer
parte das memrias e a forma de abordagem de um acontecimento que foi escolhido fazem
parte do que se pode identificar como sendo a precisa interveno da subjetividade do
narrador Brs Cubas.
A relevncia da subjetividade no painel de referncia intelectual desse literato pode
ser flagrada, em adendo, no trecho a seguir, atravs do qual o narrador Brs Cubas nos

25
SCHNEIDER, 2016, p. 56-59.
26
PINHA, 2012, p. 196.
27
PINHA, 2012, p. 196.
28
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Ea de Queirs: O Primo Baslio. Rio de Janeiro: Editora
Nova Aguilar, 1994, p. 8. Disponvel em: <http://machado.mec.gov.br/obra-completa-mainmenu-123>.
Acesso em: 10/01/2016.
29
MACHADO DE ASSIS, 1994, Captulo XXII.

221
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mostra uma associao destacadamente cara entre sua subjetividade e a narrao de seu
passado. Trata-se de uma relao que remete a como lidamos com o passado e com o
tempo, a partir de nossa perspectiva. Vamos ao excerto:

Meu caro crtico,


Algumas pginas atrs, dizendo eu que tinha cinqenta anos, acrescentei:
J se vai sentindo que o meu estilo no to lesto como nos primeiros
dias. Talvez aches esta frase incompreensvel, sabendo-se o meu atual
estado [um defunto]; mas eu chamo a tua ateno para a sutileza daquele
pensamento. O que eu quero dizer no que esteja agora mais velho do
que quando comecei o livro. A morte no envelhece [claro, pois Cubas
era um defunto e no sofria mais o efeito do tempo da vida]. Quero dizer,
sim, que em cada fase da narrao da minha vida experimento a sensao
correspondente. Valha-me Deus! preciso explicar tudo30.

O fato de Brs Cubas estar morto no o fazia, destarte, experimentar a passagem


do tempo sideral31, que, decerto, exerce um papel coordenador da vida humana na Terra.
No obstante a esse axioma, possvel notar que o narrador deixa escapar e deixa-nos ver
que sua subjetividade ainda era afetada pelo passado ao qual ele tomava contato exatamente
ao relembrar sua vida e cont-la em suas memrias.
O tempo aps a morte aparentemente no atingiu o narrador de Memrias Pstumas.
No entanto, o ponto chave a ser evidenciado que o tempo da vida mediado pela
sensao correspondente que o personagem experimenta em cada fase de sua memria,
medida que, pari passu, seu passado est sendo trazido tona e contado. Noutros termos, ao
lembrar sua vida e produzir uma narrativa sobre ela, o personagem acaba entrando, de
algum modo, num plano terreno ou, pelo menos, envolvendo-se com esse plano (ligado
vida humana). Como consequncia, essa transio da morte para a vida o faz experimentar
sensaes que o pressionam a enxergar o passado de forma diferente, precisamente
medida que o tempo de suas lembranas em vida (no no plano da morte) avana.
Meus destaques e minha interpretao at aqui foram colocados no sentido de
identificar a subjetividade como algo importante nesse pensador brasileiro, notadamente no
que tange relao do ser humano com o tempo. Esse , decerto, um elemento valoroso s
Memrias Pstumas de Brs Cubas, seja de forma implcita ou patentemente colocado32.
Cumpre ressaltar que ainda mais importante conjugar esse elemento a importncia da

30
MACHADO DE ASSIS, 1994, CXXXVIII, grifos meus.
31
THOMPSON, Edward Palmer. Tempo, disciplina de trabalho e capitalismo industrial. In: Costumes em
comum estudo sobre cultura popular tradicional. So Paulo: Companha das Letras, 1998, p. 268.
32
BOSI, 2006, p. 279-317.

222
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subjetividade com outro que cabe agora aduzir: o presente como condio crucial para
pensar o tempo da vida humana.
No incio desse romance em voga mais especificamente no captulo VI , o
personagem principal narra uma passagem em que est em sua alcova, deitado, debilitado e
doente. Brs Cubas est pelos ltimos dias de vida. Ele v entrar em seu quarto Virglia,
que fora sua amante e o grande amor de sua vida. [...] Da cama, onde jazia, contemplei-a
durante esse tempo, esquecido de lhe dizer nada ou de fazer nenhum gesto33.
A presena dessa mulher e, por conseguinte, o momento presente de Brs Cubas
f-lo lembrar do passado. [...] Creiam-me, o menos mau recordar34. Porm, [...] No
durou muito a evocao; a realidade dominou logo; o presente expeliu o passado35. Com
essas palavras, o narrador deixou uma dvida sugestiva, [...] Talvez eu exponha ao leitor,
em algum canto deste livro, a minha teoria das edies humanas36.
Ele o fez efetivamente no Captulo XXVII, por ocasio do surgimento de uma
anlise acerca de sua amada, a Virglia. Sem delongas, em sntese, a teoria acionada para
explicar a diferena identificada pelo narrador entre a imagem de sua amada no verdor de
seus anos juvenis e a mesma imagem de uma mulher menos viosa e mais envelhecida. Por
ocasio dessa anlise, o defunto autor expe sua reflexo buscando uma palavra de
conforto sua amada:

A tem o leitor, em poucas linhas, o retrato fsico e moral da pessoa que


devia influir mais tarde na minha vida; era aquilo com dezesseis anos. Tu
que me ls, se ainda fores viva, quando estas pginas vierem luz, tu
que me ls, Virglia amada, no reparas na diferena entre a linguagem de
hoje e a que primeiro empreguei quando te vi? Cr que era to sincero
ento como agora; a morte no me tornou rabugento, nem injusto.
Mas, dirs tu, como que podes assim discernir a verdade daquele
tempo, e exprimi-la depois de tantos anos?37

Nesse dilogo em que imagina e supe falar com sua amada, Brs Cubas explica
no somente as diferenas que enxergou nas duas Virglias, em momentos distintos da
vida dela, pois tal explicao seria facilmente construda por qualquer pessoa que poderia
fazer uma relao entre a passagem do tempo biolgico ao envelhecimento da tez e do

33
MACHADO DE ASSIS, 1994, Captulo VI.
34
MACHADO DE ASSIS, 1994, Captulo VI.
35
MACHADO DE ASSIS, 1994, Captulo VI.
36
MACHADO DE ASSIS, 1994, Captulo VI.
37
MACHADO DE ASSIS, 1994, Captulo XXVII.

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corpo como um todo, gerando um organismo vivo deformado pela ao do movimento


natural do tempo sideral38.
Entretanto, no foi somente isso que o narrador fez. No , pois, algo trivial. Ele
empregou, finalmente, a sua Teoria das Edies Humanas para explicar e mostrar que a
passagem do tempo no exerce efeito natural somente, mas produz, conseguintemente,
uma mudana de ponto de vista, ou seja, uma transformao na forma como o ser humano
encara essa passagem. Desse modo, pode-se depreender da tese de Brs Cubas que o
momento presente e a subjetividade do narrador se configuram em pontos fundamentais
para que ele pudesse enxergar e pensar o passado de determinada forma.
Portanto, pode-se concluir que, a partir dessas reflexes, tanto a subjetividade
humana quanto a fora do tempo presente nos impelem a uma anlise do passado que
coerente com a ideia do narrador as Edies Humanas, que, ao cabo, uma estao da
vida39 ou uma fase da vida. O defunto autor deixa uma indicao valorosa, qual seja, a de
que o eixo posicional algo crucial em nossa anlise sobre o passado. O excerto a seguir
ajuda-nos a compreender mais substancialmente o argumento:

Ah! indiscreta! ah! ignorantona! Mas isso mesmo que nos faz senhores
da Terra [os seres humanos como senhores da Terra], esse poder de
restaurar o passado, para tocar a instabilidade das nossas impresses e a
vaidade dos nossos afetos. Deixa l dizer Pascal que o homem um
canio pensante. No; uma errata pensante, isso sim. Cada estao da vida
uma edio, que corrige a anterior, e que ser corrigida tambm, at a edio
definitiva, que o editor d de graa aos vermes40.

Esto presentes, nessa teoria, trs questes considerveis que nos permitem
examinar a relao que Brs Cubas estabelece com o tempo: a primeira trivial e trata do
reconhecimento de um tempo natural, que produz efeitos patentes no mundo e na vida; a
segunda a possibilidade de problematizar que esse tempo no se impe por si s, haja
vista que somos os senhores da Terra e, em razo disso, temos esse poder de restaurar o
passado41, corrigindo as edies anteriores; a terceira uma deduo de que essas
possibilidades se colocam aos seres humanos, a partir do seu momento presente como
condio basilar para pensarmos o passado (e o tempo).

38
THOMPSON, 1998, p. 268.
39
MACHADO DE ASSIS, 1994, Captulo XXVII.
40
MACHADO DE ASSIS, 1994, Captulo XXVII, grifos meus.
41
MACHADO DE ASSIS, 1994, Captulo XXVII.

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A partir da leitura de Memrias Pstumas de Brs Cubas e com base na anlise de


Pinha42 sobre a crtica que Machado de Assis faz Escola Realista, meu argumento que
esse intelectual brasileiro oitocentista desenvolve uma reflexo que mobiliza o tempo ora
em sua literatura, ora em suas reflexes crticas , levando em conta que esse tempo no se
impe ao ser humano de fora para dentro. H, portanto, uma dimenso relacional entre a
realidade exterior (tempo natural e tempo humano) e a interior (subjetividade que
interpreta os acontecimentos, a partir das estaes da vida, a partir, enfim, do nosso
momento presente). Portanto:

[...] Como a fortuna crtica em torno de Machado amplamente


demonstrou, o Bruxo de Cosme Velho rejeitou o essencialismo biologizante nascido
da cincia do sculo XIX, diferente das reflexes de muitos intelectuais da gerao de
1870. Os argumentos de Machado foram de natureza histrica e cultural,
distantes das categorias biolgicas e raciais, to presentes na obra Silvio
Romero, um intelectual comprometido com a retrica do progresso e da
nacionalidade, assentava sua condio de leitor nos autores do Sculo
XIX43.

A VISO DO TEMPO COMO PROCESSO EM MACHADO DE ASSIS

Na seo que se inicia neste ponto, o foco da anlise se dirige forma como esse
intelectual e crtico literrio usou (e operacionalizou) uma noo de tempo em suas
reflexes sobre a modernidade brasileira. Intento, nesta parte do trabalho, discutir em que
medida a viso do tempo (e da vida) como um processo um elemento basilar e valoroso
s propostas analticas desse pensador, mormente no que se refere sua posio e postura
intelectual nos debates sobre a modernidade brasileira.
Em face do exposto, importante contextualizar o debate. Nesse sentido, a segunda
metade do sculo XIX mais notadamente depois de 1870 marcou um perodo de
grande movimento e excitao intelectual no Brasil 44. Foi uma fase de transio, em que se
pode observar o crescimento substancial das polticas pblicas dando maior privilgio s
cidades45.

42
PINHA, 2012.
43
SCHNEIDER, 2016, p. 65, grifos meus.
44
PINHA, 2012, p. 12.
45
RODRIGUES, Antnio Edmilson Martins. Histria da urbanizao no Rio de Janeiro. A cidade: capital
do sculo XX no Brasil. In: CARNEIRO, Sandra de S; SANTANNA, Maria Josefina G. Cidade:
olhares e trajetrias. Rio de Janeiro: Garamond, 2009, p. 87-103.

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A Independncia poltica do Brasil, em 1822, trouxe tona uma necessidade


subsequente de se empreender o que se chamava, poca, de independncia intelectual 46,
em relao ao colonizador portugus. A gerao Romntica, de 1822 at os anos 1850,
encarnou um esprito que intentava descrever o Brasil, mas o fazia de uma forma
idealizada. Essa gerao tomou o ndio e a natureza 47 como fontes inspiradoras de uma
noo de nacionalidade que se colocava como uma necessidade de afirmar a particularidade
brasileira em face da anterior colonizao portuguesa48.
Aps a segunda metade do oitocentos, o debate sobre o Brasil mudou de patamar.
Portanto, os intelectuais da gerao de 1870 posicionaram-se de forma diferente do que
fora feito pela gerao Romntica, sobretudo porque vale salientar passaram a se
interessar em conhecer o Brasil com base na realidade do pas. Desse modo, esses
intelectuais saram de suas escrivaninhas para buscar conhecer e pensar nosso mundo, ou
seja, buscavam saber mais sobre um pas real.
Nesse perodo em que ocorria a efervescncia do discurso de modernidade no
contexto intelectual brasileiro 49, Machado de Assis atingiu seu auge intelectual e travou
debate com outros pensadores brasileiros. Uma das discusses que ganhou brilho, nesse
contexto, foi sobre o papel da gerao de 1870 na nossa modernidade, bem como, por
conseguinte, sobre a funo da gerao Romntica (perodo anterior) na nossa
independncia intelectual.
Cumpre chamar a ateno que, nesse contexto, Machado de Assis colocou-se como
um pensador crtico das posturas antinmicas e dualistas, alm das posies que chaveavam
o futuro com excessiva euforia e atuavam em franca desconsiderao s tradies legadas.
Em 1873, o autor [Machado de Assis] escreveu um clebre artigo intitulado Instinto da
nacionalidade, em que se pode ver um Machado respeitoso em relao tradio herdada
do Romantismo, em que ainda se v o uso da expresso como a cor local 50. Com isso, o

46
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Notcia da atual literatura brasileira. Instinto de
nacionalidade. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994, p. 1. Disponvel em:
<http://machado.mec.gov.br/obra-completa-mainmenu-123>. Acesso em: 03/01/2016; RICUPERO,
Bernardo. No passado, as bases da nao. In: ______. O Romantismo e a idia de nao no Brasil (1830-
1870). So Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 85-111.
47
NAXARA, Mrcia R. Capelari. O Brasil na sensibilidade romntica. In: ______. Cientificismo e
sensibilidade romntica. Em busca de um sentido explicativo para o Brasil do sculo XIX. Braslia:
EDUNB, 2004, p. 231-303. Ver especificamente intervalo entre as pginas 259-261.
48
RICUPERO, 2004, p. 85.
49
PINHA, 2012, p. 12.
50
SCHNEIDER, 2016, p. 65.

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pensador em apreo deu ensejo a um tipo de crtica que foi importante para a produo de
ideias no Brasil oitocentista51.
Tanto a crtica machadiana gerao de 1870 como sua proposta de uma viso que
levava em considerao (positiva) a tradio brasileira podem ser encontradas, por exemplo,
no texto A nova gerao, publicado originalmente na Revista Brasileira, vol. II, em
dezembro de 1879. O importante crtico brasileiro do oitocentos chamava a ateno, nesse
texto, para alguns pressupostos defendidos por integrantes da mencionada gerao.
Duas crticas machadianas a esses intelectuais da gerao de 1870 podem ser
evidenciadas no texto em apreo: a primeira a conjugao do ideal potico com o poltico,
que foi empregado por essa gerao, tendo como referncia poltica [...] a nova musa [que]
ter de cantar o Estado republicano52; a segunda a bandeira hasteada por membros dessa
gerao em favor da Escola Realista, sobretudo no que se refere noo de realidade como
valor esttico em si53.
Portanto, Machado de Assis estabeleceu um dilogo crtico com a mencionada nova
gerao (de 1870), sobrelevando alguns pontos que eram importantes em nossa tradio
literria. Ele reivindicava, em sntese, que no esquecssemos o legado que havia sido
deixado pelas geraes anteriores54. Essa forma de pensar machadiana buscava colocar em
evidncia as contribuies deixadas, salientando que havia elementos do passado que
permaneciam (continuidades), ainda que tais aspectos no fossem claramente percebidos
pelas novas geraes. Logo, a viso de futuro como projeto que remetia s mudanas
caracterstico da gerao de 1870 no deveria desconsiderar a tradio (que alude s
continuidades) como potencializadora desse futuro reluzente.

O escritor [Machado de Assis] enxergou linhas de continuidade na jovem


tradio literria luso-brasileira desde Santa Rita Duro (1722-1784), no
Sculo XVIII, at o indianismo de Gonalves Dias (1823-1864) , cujas
linhas deveriam continuar na gerao que ainda agora madruga, a
despeito das diferenas55.

A abertura do texto A nova gerao mostra essa perspectiva que procura ressaltar
as permanncias temporais, de forma perspicaz, denotando a amplitude da viso desse

51
SCHWARZ, 2000; BOSI, 2006; PINHA, 2012; SCHNEIDER, 2016.
52
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. A nova gerao. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994,
p. 2. Disponvel em: <http://machado.mec.gov.br/obra-completa-mainmenu-123>. Acesso em:
03/01/2016.
53
MACHADO DE ASSIS, 1994, p. 3.
54
SCHNEIDER, 2016, p. 65.
55
SCHNEIDER, 2016, p. 58.

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literato e crtico brasileiro do oitocentos, bem como sua capacidade intelectual aguada e
sua desenvoltura em relao chave analtica temporal que preciso iluminar. Pelo que foi
exposto, conveniente que se analise o trecho a seguir:

[...] o romantismo, teve as suas horas de arrebatamento, de cansao e por


fim de sonolncia, at que sobreveio a tarde e negrejou a noite. A nova
gerao chasqueia s vezes do romantismo. No se pode exigir da
extrema juventude a exata ponderao das coisas; no h impor a
reflexo ao entusiasmo. De outra sorte, essa gerao teria advertido que a
extino de um grande movimento literrio no importa a condenao formal e
absoluta de tudo o que ele afirmou; alguma coisa entra e fica no peclio do esprito
humano56.

Cumpre aduzir que bastante aclarada, em outro artigo, a perspectiva machadiana


de pensar a continuidade como uma ideia inscrita na noo de processo. Sendo assim, no
texto intitulado O passado, o presente e o futuro da literatura, que foi publicado
originalmente em A Marmota, Rio de Janeiro, em 9 e 23 de abril de 1858, o autor proclama
que, aurora do Sete de Setembro de 1822, a revoluo literria e a poltica eram
necessrias. O pas emancipou-se57. Logo, o campo poltico j havia avanado.

Mas aps o Fiat poltico, devia vir o Fiat literrio, a emancipao do


mundo intelectual, vacilante sob a ao influente de uma literatura
ultramarina. Mas como? mais fcil regenerar uma nao, que uma
literatura. Para esta no h gritos de Ipiranga; as modificaes operam-se
vagarosamente; e no se chega em um s momento a um resultado. Mas
aps o Fiat poltico, devia vir o Fiat literrio, a emancipao do mundo
intelectual, vacilante sob a ao influente de uma literatura ultramarina.
Mas como? mais fcil regenerar uma nao, que uma literatura. Para esta no h
gritos de Ipiranga; as modificaes operam-se vagarosamente; e no se chega em um s
momento a um resultado58.

Em razo do exposto, devo sublinhar que foram pontuadas, at aqui, anlises


machadianas que se referiram primordialmente noo de continuidade como algo
importante e que podia fazer os intelectuais do sculo XIX enxergarem a tradio brasileira
como um peclio, como algo valoroso, ou seja, como uma medida analtica que poderia
alargar nossa viso do presente e potencializar o horizonte futuro.

56
MACHADO DE ASSIS, 1994, p. 1, grifos meus em itlico para destacar a viso de processo na anlise
do autor.
57
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. O passado, o presente e o futuro da literatura. Rio de
Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994, p. 2. Disponvel em: <http://machado.mec.gov.br/obra-completa-
mainmenu-123>. Acesso em: 03/01/2016.
58
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. O passado, o presente e o futuro da literatura, 1994, p. 2,
com grifos meus.

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Feitas essas consideraes concernentes s permanncias nas anlises do referido


escritor, cumpre colocar em realce, a partir daqui, uma viso desse importante crtico acerca
da descontinuidade (mudanas). Intento, com isso, mostrar que suas anlises contemplavam
a mescla de formas distintas de operacionalizar o tempo (ora enfatizando as continuidades,
ora as permanncias), tendo em vista que essas anlises estavam primordialmente baseadas
numa crtica erudita, autnoma e consistente acerca de nossa produo de ideias
oitocentista.
Nesse sentido, pertinente acrescentar que outra crtica machadiana gerao de
1870 bem como aos Romnticos do perodo ps-1822 pode ser encontrada tambm no
texto intitulado Notcia da atual literatura brasileira. Instinto de nacionalidade, que foi
Publicado originalmente em O Novo Mundo, em 24 de maro de 1873. Trata-se de um
ensaio escrito em 1873, que denotava a avaliao e a expectativa desse autor acerca da
literatura brasileira.
O que interessa aos propsitos desenvolvidos aqui destacar que o autor
enfrentou, nesse ensaio, uma questo que havia sido proposta pelos Romnticos e que
abordava a importncia da literatura brasileira em pensar o carter nacional como meio de
dar um tom de originalidade nossa produo literria, a fim de motivar uma segunda
independncia brasileira, qual seja, a literria, conforme pontuado acima59. E, nesse
percurso, vale reiterar destacadamente que, em alguma medida, essa linha de pensamento
sobre o carter nacional tambm fazia parte da gerao de 1870 60 e Machado de Assis da
segunda fase tambm recusou uma sensibilidade de cunho nacionalista61.
Em vista dessas consideraes, ressalto que o literato e crtico brasileiro em apreo
afirmou, na abertura do texto Notcia da atual literatura brasileira. Instinto de
nacionalidade, que [...] Quem examina a atual literatura brasileira reconhece-lhe logo,
como primeiro trao, certo instinto de nacionalidade62. O autor tencionava, em alguma
medida, mostrar que essa era uma linha capaz de seduzir tanto a gerao Romntica quanto
a de 187063.

59
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Notcia da atual literatura brasileira, 1994, p. 1.
60
PINHA, 2012, p. 38.
61
SCHNEIDER, 2016, p. 58.
62
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Notcia da atual literatura brasileira, 1994, p. 1.
63
PINHA, 2012, p. 38.

229
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Devo ressaltar que Machado de Assis parece, a princpio, concordar com a


importncia de que devesse haver a presena de certo instinto de nacionalidade em nossa
literatura e que tal instinto se configurava como algo de valor relativo. Segundo ele,

[...] No estado atual das coisas, a literatura no pode ser perfeitamente


um culto, um dogma intelectual, e o literato no pode aspirar a uma
existncia independente, mas sim tornar-se um homem social,
participando dos movimentos da sociedade em que vive e de que
depende64.

No obstante a essa concesso, fundamental evidenciar que o argumento principal


do literato e crtico, nesse texto em voga, no exatamente relacionado importncia da
existncia desse tal instinto em nossa literatura ou num literato. De acordo com Pinha 65, o
critrio nacional insuficiente. Logo, tal critrio s teria valor se, antes, precisamente antes,
afirmar um valor esttico, uma beleza que literria e artstica, no meramente de cunho
nacionalista ou que exprima um carter nacional66.
O que se pode depreender desse debate que Machado de Assis no negligenciava
que certo instinto de nacionalidade poderia ser bom para a literatura brasileira, que buscava
se afirmar e adaptar as ideias que vinham do ultramar para o nosso pas 67. Tratava-se de
uma tarefa positiva e importante a uma nao que havia conquistado recentemente
poca sua emancipao poltica. Contudo, na viso desse intelectual oitocentista, esse
instinto de nacionalidade deveria ser, no campo literrio, algo secundrio, precisamente
secundrio, ou seja, tal instinto deveria estar submetido esttica literria, aos valores
regentes do campo da arte. Assim, [...] O texto literrio deveria servir-se de liberdade
criadora, e no ser determinado por fatores extraliterrios 68.
Nesse sentido, importante acrescentar que Machado de Assis, no texto O ideal
do crtico, publicado originalmente no Dirio do Rio de Janeiro, em 8 de agosto de 1865,
discorre sobre o quanto os valores estticos, com base numa atitude crtica, podem ser
caros literatura e arte.

64
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. O passado, o presente e o futuro da literatura, 1994, p. 3.
65
No que se refere interpretao sobre esse aspecto especfico, ou seja, ao instinto de nacionalidade que
est sendo proposta, a tese de Pinha apoia-se substancialmente no argumento de Abel Barros Baptista, no
texto A formao do nome: duas interrogaes sobre Machado de Assis. Campinas, So Paulo: Editora da
Unicamp, 2003. Ver: PINHA, 2012.
66
PINHA, 2012, p. 40.
67
SCHNEIDER, 2016, p. 58.
68
SCHNEIDER, 2016, p. 59.

230
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A arte tomaria novos aspectos aos olhos dos estreantes; as leis poticas,
to confundidas hoje, e to caprichosas, seriam as nicas pelas quais se aferisse o
merecimento das produes, e a literatura alimentada ainda hoje por algum talento
corajoso e bem encaminhado, veria nascer para ela um dia de florescimento e
prosperidade. Tudo isso depende da crtica. Que ela aparea, convencida e
resoluta, e a sua obra ser a melhor obra dos nossos dias69.

Diante dessas consideraes, devo expor que, em sntese, basicamente a partir de


um dos textos mencionados anteriormente (A nova gerao), meu primeiro argumento
procurou evidenciar com maior pujana a chave da continuidade que foi colocada em jogo
por Machado de Assis, com vistas a reforar a ideia de peclio, de nossa tradio literria.
Em outro texto apreciado antes (Notcia da atual literatura brasileira. Instinto de
nacionalidade), meu segundo argumento visou basilarmente enfatizar como esse
intelectual oitocentista procurou se desgarrar de uma noo enraizada nas ideias de muitos
literatos brasileiros que viam na explorao do carter nacional de nossa literatura um
elemento crucial para alcanarmos nossa originalidade. Logo, com relao a esse segundo
argumento, reitero que Machado de Assis prope, neste caso, uma descontinuidade em
relao aos pressupostos defendidos tanto pela gerao romntica como pela de 1870.
Portanto, se esse eminente crtico, literato e intelectual operacionalizou, no primeiro
argumento formulado acima, uma perspectiva sincrnica do tempo (nfase nas
permanncias), em seguida, no segundo argumento exposto, o importante escritor props
um movimento que visou produzir uma perspectiva diacrnica (nfase nas
descontinuidades). Terica e sinopticamente colocando a questo, pode-se registrar que:

[...] Machado [de Assis] estabelece com o debate brasileiro de seu tempo
uma relao de apropriao e recusa: eis a hiptese que sustenta estas linhas.
Explico. Exercitando a crtica literria, ele incorpora e, ao mesmo tempo, rompe com
o significado do moderno gerado pela discusso dos anos 187070.

No que toca relao especfica desse literato com uma noo de tempo, podemos
usar como referncia analtica a tese de Pinha71, conforme grifado acima, para afirmar que
Machado de Assis ora aceita como pertinente a tradio que era legada sua gerao como
algo importante para potencializar as possibilidades do presente e do futuro (e, com isso,
consegue enxergar a permanncia temporal), ora recusa elementos dessa tradio (no a

69
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. O ideal do crtico. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar,
1994, p. 3, grifos meus. Disponvel em: <http://machado.mec.gov.br/obra-completa-mainmenu-123>.
Acesso em: 03/01/2016.
70
PINHA, 2012, p. 12, grifos meus.
71
PINHA, 2012.

231
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aceita por completo)72, pois considera que a mera repetio73 emperra o desenvolvimento
do presente (e, neste caso, consegue enxergar a descontinuidade como noo importante).
Em razo do que foi analisado nessa seo, interpreto que Machado de Assis no
deve ser visto nem como um tradicionalista fechado nem como um progressista
desmedido. A chave principal para compreend-lo est situada, antes de qualquer elemento,
em sua viso crtica da literatura e das novas ideias, em seu compromisso com esses ideais.
E essa viso, conforme argumentado anteriormente, faz uso de uma noo de tempo que
concatena passado, presente e futuro, sem valoraes prvias entre os nveis temporais.
Assim, pode-se afirmar que tambm em funo dessa capacidade crtica que esse
proeminente intelectual conseguiu operacionalizar o tempo como um processo74, no se
enclausurando na tradio nem se rendendo facilmente ao futuro como progresso.

CONSIDERAES FINAIS

Joaquim Maria Machado de Assis pensou e operacionalizou uma noo no


vulgar de tempo em sua concepo criativa, bem como em suas anlises acerca da literatura
e sobre a modernidade brasileira. Sua erudio e inteligncia o fizeram compreender que o
tempo sofre influncia do lugar ocupado por um sujeito histrico e tambm sofre
interferncia do momento presente que nos faz enxergar o passado ou projetar o futuro de
forma diferente. Ademais, pudemos observar que ele soube operacionalizar uma noo de
tempo que consciente das continuidades e descontinuidades inscritas na vida.
Essas reflexes machadianas podem nos fazer estabelecer um paralelo entre o
pensamento desse intelectual (e sua concepo criativa) e o desenvolvimento do moderno
conceito de histria e de tempo. Nesse sentido, cabe reiterar que temas como o papel da
subjetividade do pesquisador75, a importncia do momento presente76, a conscincia de

72
SCHNEIDER, 2016, p. 56-59.
73
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. A nova gerao, p. 3.
74
Segundo o que se pode depreender do texto de Tiago Gomes, uma das questes mais importantes sobre
a epistemologia do tempo que foi desenvolvida ao longo dos sculos XIX e XX, a seguinte: [...] A
superao da dicotomia entre permanncia e ruptura e a considerao da interao dialtica entre esses
elementos so fatores cruciais na terefa (sic) do historiador. Ver: GOMES, Tiago de Melo. A Fora da
Tradio a persistncia do Antigo Regime historiogrfico na obra de Marc Bloch, Varia historia, Belo
Horizonte, v. 22, n. 36, p. 443-459, Jul/Dez 2006. em funo dessas apreciaes de Gomes que se torna
primordial destacar o pensamento de Machado de Assis e relacionar tal pensamento a uma perspectiva
temporal fina, arguta e deveras inteligente, ainda que no protagonizada por um historiador de formao.
75
KOSELLECK, 2006.

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finitude77 e a ideia de processo78 se assomaram, no sculo XIX, como importantes nas


anlises machadianas sobre o tempo e a partir do tempo.
primordial admoestar, por outro lado, que a investigao dos escritos desse
intelectual, literato e crtico brasileiro no nos permitem afirmar que ele seja um
historiador, mas simplesmente que ele provavelmente teve contato com autores que lhe
deram base para pensar o tempo como um elemento crucial na anlise da vida humana em
sociedade. Portanto, possvel depreender que Machado de Assis leu sobre as filosofias do
sculo XIX (especialmente sobre novas teorias cientficas) 79 e sobre a literatura que chegava
da Europa ao Brasil oitocentista, bem como tinha uma base de leitura acerca de eruditos de
sculos anteriores80. A sintonia fina presente na anlise desse crtico e sua inteligncia lhes
permitiram receber essas ideias e pensar a partir delas como um intelectual, como um leitor
ativo, no como mero leitor passivo das ideias vindas de fora.
Em face do que foi discutido, pode-se sustentar, a partir do intelectual em voga, que
o Brasil produziu ideias, notadamente aps o ano de 1870 ou, ao menos, interpretou as
ideias que vinham do exterior e adaptou-as nossa realidade. E o destacado e influente
pensador oitocentista em voga, com sua inteligente movimentao por dentro da noo de
tempo, bem como com sua arguta capacidade de operacionalizar o tempo como meio de
anlise, um exemplo disso.

Recebido em: 20 de maro de 2017


Aprovado em: 19 de maio de 2017

76
CARR, E. H. O que histria?. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1978; MASTROGREGORI, Massimo.
Historiografia e tradio das lembranas. In: MALERBA, Jurandir (Org.). A histria escrita: teoria e
histria da historiografia. So Paulo: Contexto, 2006, p. 65-94.
77
NUNES, 1992, p. 131-140.
78
ARENDT, 1992; KOSELLECK, 2006.
79
Alberto Luiz Schneider mostra o quanto alguns livros importantes de Machado de Assis (Memrias
Pstumas de Brs Cubas, Alienista e Quincas Borba, por exemplo) satirizaram as leis cientfico-
evolutivas, mostrando que esse intelectual estava antenado com importantes referncias modernas do
oitocentos. Ver: SCHNEIDER, Alberto Luiz. Slvio Romero e Machado de Assis: leituras e dissensos do
fim do Oitocentos.
80
Alberto Luiz Schneider, a partir de Carlos Fuentes, centra seu argumento na tese de que a biblioteca de
Machado de Assis foi crucial para que ele no se deixasse aprisionar nem colonizar pelas percepes
hegemnicas que vinham da Europa. Logo, segundo Schneider, as diferenas entre Machado de Assis e
Silvio Romero passaram, em boa medida, por suas leituras e bibliotecas. Ver: SCHNEIDER, 2016, p.
65.

233
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NARRATIVAS INDGENAS NA WEB: O QUE ISSO PODE NOS DIZER


SOBRE IDENTIDADES, CULTURAS E PROTAGONISMO INDGENA

INDIAN NARRATIVES ON THE WEB: WHAT IT CAN TELL US


ABOUT IDENTITIES, CULTURES AND INDIGENOUS
PROTAGONISM.

Maria Prpetua Baptista Domingues


Professora do Colgio Estadual Antnio Prado Junior - Brasil
Mestre em Educao pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
e-mail: mpbdom68@gmail.com

RESUMO

Considerando a apropriao das mdias digitais como demanda indgena na atualidade, este trabalho
busca uma anlise dos usos dessas tecnologias por parte de alguns grupos tnicos, enquanto
estratgia poltica para dar visibilidade e fortalecimento s suas reivindicaes e (re)construes
identitrias. O trabalho dividido em duas partes. Primeiramente, aproximo-me de alguns estudos
acerca da participao indgena na internet e das teorizaes de Massey, para pensar a geometria do
poder que envolve o espao virtual e Canclini, para pensar a desnaturalizao das culturas indgenas
como algo essencializado. Na segunda parte, a partir das narrativas dos prprios indgenas, busco
analisar a mobilizao que estes sujeitos fazem de seus patrimnios culturais na demarcao da
indianidade.

Palavras-chave: demandas indgenas; identidades indgenas; cultura; mdias digitais; patrimnio


cultural

ABSTRACT

Considering the apropriation of digital medias as indigenous demand currently, this paper aims to
analize the use of this technology by a part of this ethnic groups as a political strategy to give
visibility and strenght to the claims as well as their identities (re) construction. This work is divided
in two parts. Firstly, I approach some studies concerning indigenous participation on internet, the
Masseys theory to think about the power geometry that involves the vitual space and Canclins
theory to think over the denaturalization of indigenous cultures as an essentialized something. In
the second part, from the indigenous narratives I seek to analize the mobilization of their cultural
heritage in the indianidade demarcation.

Keywords: indigenous demands; indigenous identities; culture; digital medias; cultural heritage.

NDIOS NA WEB: DILOGOS COM ALGUNS ESTUDOS

A utilizao das mdias digitais e da rede mundial de computadores, a Internet,


pode ser considerada uma demanda indgena contempornea. Pereira afirma ser crescente a
presena indgena brasileira no ciberespao que, ao longo dos ltimos anos, atua por meio

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de sites, blogs, comunidades virtuais e ambientes colaborativos e se (re)constroem e se


(re)elaboram etnicamente nas redes digitais 1. Atualmente, so muitas as comunidades
indgenas que tm utilizado a tecnologia digital para dar visibilidade e fortalecer suas etnias 2.
Segundo Pereira3, ainda que a presena indgena na rede seja significativa, so
poucos os estudos sobre os ndios na Internet. Um recente levantamento realizado por
Russo e Barros4, ratifica essa afirmativa. Utilizando o banco de teses e dissertaes da
Capes, o portal Scielo, o site da Associao Nacional de Pesquisas em Educao (ANPED)
e tambm o buscador do "Google", as autoras encontraram doze estudos sobre a relao
entre povos indgenas e tecnologias digitais no Brasil 5. Portanto, estudos nesta direo
ainda so bastante escassos, concentrando-se principalmente nas reas da Antropologia,
Comunicao e Educao. Esta ausncia de estudos se torna ainda mais acentuada no
campo da Histria.
Pesquisas histricas que utilizam a Internet como fonte primria ainda no so
numerosas, como observa Almeida6. Para este autor tal situao pode ser explicada pelo
fato de que durante sculos, a historiografia baseou suas regras de validao de fontes e
metodologia de anlise em um suporte documental especfico: o papel 7. Este autor
argumenta que o reinado do papel teria comeado a ruir com a concepo de histria
difundida a partir da Escola dos Annales, que amplia a gama e a noo de fontes histricas.
Quanto a noo de documento, este seria o registro de uma informao, independente da

1
PEREIRA, Eliete da Silva. Ciborgues Indgen@s.br: entre a atuao nativa no ciberespao e as
(re)elaboraes tnicas indgenas digitais. Disponvel em: <http://docplayer.com.br/8890572-Ciborgues-
indigen-s-br-entre-a-atuacao-nativa-no-ciberespaco-e-as-re-elaboracoes-etnicas-indigenas-digitais.html>.
Acesso em: 10/07/2017.
2
Sobre mapeamentos acerca de sites e blogs indgenas ver: PEREIRA, Eliete da Silva, Ciborgues
indgen@s.br: a presena nativa no ciberespao. So Paulo, Annablume, 2012. Ver tambm a lista de
links da pgina do 1 Simpsio Indgena sobre usos da Internet no Brasil:
<http://www.usp.br/nhii/simposio/>. Acesso em: 18/07/2016.
3
PEREIRA, 2017.
4
RUSSO, Kelly; BARROS, Claudia. Tecnologias digitais na educao escolar indgena: o que as
pesquisas apontam? In: AMARO, Ivan; SOARES, Maria da Conceio Silva (org.). Tecnologias digitais
na escola: outras possibilidades para o conhecimento. No Prelo.
5
Em levantamento prprio, acrescento o texto do coordenador do Programa de Estudos dos Povos
Indgenas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e professor do Programa de Ps-
Graduao em Memria Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Jos
Ribamar Bessa Freire, FREIRE, Jos Ribamar Bessa. ndios: namoro etnodigital no ciber territrio.
Disponvel em: <https://pib.socioambiental.org/en/noticias?id=82643>. Acesso em: 10/07/2017.
6
ALMEIDA, Fbio Chang de. O historiador e as fontes digitais: uma viso acerca da internet como fonte
primria para pesquisas histricas. Revista Aedos, Rio Grande do Sul, v. 3, n. 8, p. 10, 2011.
7
ALMEIDA, 2011, p.10.

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natureza do suporte que a contm8, descartando, portanto, sua relao com qualquer
suporte especfico. Concordo com Almeida, quando afirma:

Para os historiadores que buscam compreender o presente, negligenciar


as fontes digitais e a Internet significa fechar os olhos para todo um
novo conjunto de prticas, de atitudes, de modos de pensamento e de
valores que vm se desenvolvendo juntamente com o crescimento e
popularizao da rede mundial de computadores.9

Segundo Russo10, diferentes povos indgenas do Brasil tiveram acesso tecnologia


audiovisual no final da dcada de 1980, com o fim da ditadura militar e em um contexto de
luta por direitos humanos e democratizao dos meios de comunicao. Tal acesso se deu a
partir da interveno de universidades, ONGs, antroplogos ou por iniciativa das prprias
comunidades. Cmeras de vdeo foram utilizadas por lideranas indgenas em contextos
variados, recriando e contando suas prprias histrias.
Neste cenrio e a partir de suas experincias no projeto Vdeo nas Aldeias 11,
Gallois e Carelli, afirmam que a apropriao do vdeo pelos povos indgenas extrapola a
funo meramente comunicacional. Para os autores, a inovao:

interfere decisivamente na produo da cultura, justamente porque


incentiva sua reelaborao (...) as sesses de vdeo so situaes novas
que permitem construir coletivamente conhecimentos diferentes, tanto
em seu contedo como na forma em que so apropriados 12.

Na dcada de 1990, a mdia brasileira vivia um perodo de grande transformao e


globalizao, com a expanso de TVs a cabo e antenas parablicas. Para Gallois e Carelli,
participar da rede global de comunicao era tambm expectativa dos ndios, significando

8
ALMEIDA, 2011, p.17.
9
ALMEIDA, 2011, p.12.
10
RUSSO, Kelly. Vdeos educativos e o dilogo entre culturas: professores indgenas e a apropriao da
linguagem audiovisual. Teias, Rio de Janeiro, ano 8, n. 15, jan/dez, p. 1-13, 2007.
11
Projeto precursor na rea de produo audiovisual indgena no Brasil, criado em 1986, a partir da
experincia com os meios audiovisuais inicialmente junto aos ndios Nambiquara (MT/RO). Conta
atualmente com um importante acervo de imagens sobre os povos indgenas envolvidos no projeto e uma
coleo de mais de 70 filmes. Disponvel em: <http://www.videonasaldeias.org.br/2009/vna.php?p=1>.
Acesso em: 17/07/2016.
12
GALLOIS, Dominique; CARELLI, Vincent. Dilogo entre Povos Indgenas: a experincia de Dois
Encontros Mediados pelo Vdeo, Revista de Antropologia, So Paulo, USP, v. 38, n. 1, 1995.

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um duplo desafio: o de viabilizar seu espao e o de controlar a difuso de suas prprias


vozes numa mdia que prefere difundir falas sobre os ndios, em detrimento da fala dos ndios13.
Trabalhos como os de Pereira14 e Russo e Barros15 informam que nas comunidades
indgenas, a tecnologia digital ganhou grande visibilidade em 1994, em funo da utilizao
da internet por parte do movimento zapatista, que utilizou este meio para divulgar sua luta
pelo reconhecimento tnico no Mxico16. Desde ento, comunidades indgenas tm
utilizado a potencialidade das novas mdias como um instrumento poltico de suas
reivindicaes, seja por meio de organizaes indigenistas ou propriamente indgenas.
Segundo Pereira17, a participao de indgenas na rede mundial de computadores no
Brasil tem como marco o ano de 2001. Os estudos de Bucchioni18 apontam para um
crescimento nessa utilizao. Renesse19 concorda com a expanso do acesso Internet por
parte das populaes indgenas. Em meados de 2010, o autor contabilizou cento e onze
pontos de Internet entre escolas e organizaes comunitrias de aldeias indgenas.
Porm, faz-se mister considerar as desigualdades em seus diversos nveis, sejam elas
sociais, raciais, culturais e econmicas tambm presentes no acesso e na produo de
contedos no meio digital, conforme apontam Russo e Barros20. As autoras acrescentam:
no basta o acesso s novas tecnologias, mas discutir novas formas de produo de
conhecimento que propiciem um deslocamento do que centro e do que periferia 21.
Neste aspecto, podemos nos aproximar das teorizaes de Massey 22. Buscando
desnaturalizar sentidos da compresso de tempo-espao como fenmeno vivenciado em

13
GALLOIS, Dominique; CARELLI, Vincent. ndios eletrnicos": uma rede indgena de comunicao.
Disponvel em: http://www.antropologia.com.br/tribo/sextafeira/pdf/num2/indio_elet.pdf>. Acesso em
10/07/2017.
14
PEREIRA, Eliete da Silva. Ciborgues indgen@s.br: a presena nativa no ciberespao. 170 f.
Dissertao (Mestrado em Estudos Comparados sobre as Amricas) - Universidade de Braslia, Instituto
de Cincias Sociais Centro de Pesquisa e Ps-Graduao sobre as Amricas, Braslia, 2007.
15
RUSSO; BARROS. No prelo.
16
Sobre o levante do Exrcito Zapatista de Libertao Nacional (EZNL) contra o Nafta (Tratado Norte-
Americano de Livre Comrcio), ver: DI FELICE, Massimo. Vtan-Zapata A marcha zapatista e a
sublevao temporria. So Paulo: Xam, 2003.
17
PEREIRA, 2007.
18
BUCCHIONI, Xenya de Aguiar. Blog Dirios: reflexes sobre a identidade indgena na virtualidade.
109 f. Dissertao (Mestrado em Comunicao) Universidade Estadual Paulista, Programa de Ps-
graduao em Comunicao, So Paulo, 2010.
19
RENESSE, Nicodme. Perspectivas indgenas sobre e na internet: ensaio regressivo sobre o uso da
comunicao em grupos amerndios no Brasil. 144 f. Dissertao (Mestrado em Antropologia Social) -
Universidade de So Paulo, Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social, So Paulo, 2011.
20
RUSSO; BARROS. No prelo.
21
RUSSO; BARROS. No prelo.
22
MASSEY, Doreen. Um sentido global de lugar. In: ARANTES, Antonio Augusto. O espao da
diferena. Campinas: Papirus, 2000.

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escala global, a autora utiliza o conceito de geometria do poder e questiona sobre quem a
vivencia e como a vivencia. Considero esse conceito profcuo para pensar a relao entre
povos indgenas e tecnologias digitais no Brasil.
No se trata apenas de uma questo de quem utiliza os meios digitais, embora este
tambm seja um elemento relevante, mas um entendimento de que diferentes grupos
sociais tm relacionamentos distintos com esse acesso diferenciado. Pensando as diferentes
escalas que envolvem a compresso de tempo-espao, Massey afirma que algumas pessoas
responsabilizam-se mais por ela do que outras; algumas do incio aos fluxos e
movimentos, outras no; algumas ficam mais em sua extremidade receptora do que outras;
algumas so aprisionadas por ela23. Podemos traar um paralelo entre as formulaes de
Massey e as diferentes escalas de participao indgena e no indgena na rede mundial de
computadores, considerando que o controle de alguns grupos pode ativamente
enfraquecer outras pessoas24. Longe de deterem uma posio de controle na circulao
informacional, e em um contexto de relaes assimtricas de poder, variadas formas de
apropriao e utilizao das mdias digitais ocorrem entre os grupos indgenas no Brasil.
DAngelis lana um questionamento: quando (ou, em que perspectiva) a incluso
digital de pessoas e comunidades indgenas (e, talvez mesmo, a incluso de lnguas
indgenas no mundo digital) pode ser to equivocada e prejudicial como qualquer outra
poltica integracionista?25. Para o autor a introduo s tecnologias digitais equivocada ou
at mesmo prejudicial s comunidades envolvidas, quando se trata de um gesto unilateral,
decidido fora das comunidades e sem que haja interesse manifestado por elas26.
Entretanto, podemos perceber iniciativas no mundo digital nas quais os prprios indgenas
buscam condies de agir e interagir na internet em seu prprio benefcio, conforme
abordaremos na segunda parte deste texto.
No ano de 2010, o Ncleo de Histria Indgena e do Indigenismo da Universidade
de So Paulo (USP) promoveu o 1 Simpsio Indgena sobre usos da Internet no Brasil 27.
Os participantes eram membros de comunidades indgenas envolvidos pessoalmente em

23
MASSEY, 2000, p. 179.
24
MASSEY, 2000, p. 180.
25
DANGELIS, Wilmar da Rocha. Do ndio na Web Web Indgena. In: Encontro sobre Leitura e
Escrita em Sociedades Indgenas Dourados (MS), VIII, 2010, UFGD. Anais do... Dourados: UFGD,
2010. Disponvel em:
<file:///C:/Users/mpdom/Desktop/Artigo%20Hist%C3%B3ria%20Oral/Do%20Indio%20na%20Web%20
%C3%A0%20Web%20Indigena.pdf>. Acesso em: 10/07/2017.
26
DANGELIS, 2010.
27
Disponvel em: <http://www.usp.br/nhii/simposio/>. Acesso em: 18/07/2016.

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projetos de incluso digital em suas aldeias ou regies, seja a nvel poltico dentro ou fora
do grupo, ou como usurios. Para Renesse28, a motivao para a realizao do simpsio foi
uma ausncia de conhecimento sobre a forma como essas polticas incidem efetivamente
na realidade dos grupos amerndios segundo seus prprios critrios e percepes, o que,
segundo o autor, contrasta com a situao atual de expanso dos programas de incluso
digital em contexto indgena.
Freire, ao abordar o uso da Internet pelos ndios, afirma que estes aprenderam a
conviver com esse processo contnuo de tenso entre o tradicional e o novo. Eles esto
permanentemente recriando a tradio, introduzindo novos sentidos e novos smbolos. E
claro, no deixam de ser ndios29. Porm, a apropriao por parte dos indgenas em relao
s mdias digitais verificada nas ltimas dcadas, suscita discusses acerca do
distanciamento de formas tradicionais de representao, por vezes entendido como sinal de
assimilao ou perda de identidades tnicas. Os debates se dividem de acordo com o
entendimento de cultura acionado nas diferentes anlises.
Tradicionalmente divulgada pela mdia e por materiais didticos, a imagem do ndio
genrico30 ainda recorrente: o corpo nu, as pinturas corporais, o adereo de penas,
moradores das florestas e possuidores de uma cultura extica. Entendida de forma
essencializada, fixa e estvel, a cultura dos povos indgenas, nesse tipo de abordagem,
torna-se a-histrica, reforando a contundente sentena de Varnhagen31, tais povos na
infncia no h histria: h s etnografia32. O estudo dos chamados povos primitivos,
muitas vezes, negligenciou os processos histricos que trouxeram mudanas, pois tal fato,
supostamente, traria prejuzos culturais e a consequente extino desses povos possuidores
de uma cultura imutvel e pura. Novas abordagens tericas colocam em xeque o
congelamento e estabilidade das identidades, admitidas como fluidas, em constante
mutao no espao social da heterogeneidade e multiplicidade.

28
RENESSE, 2011.
29
FREIRE, Jos Ribamar Bessa Freire. ndios: namoro etnodigital no ciber territrio. Disponvel em:
<https://pib.socioambiental.org/en/noticias?id=82643>. Acesso em 10/07/2017.
30
Freire aponta a ideia de um ndio genrico como um equvoco. Tratar os indgenas genericamente leva
ao erro de reduzir culturas diferenciadas a uma entidade supra-tnica, formando um bloco nico, com
mesma cultura, crena e lngua. FREIRE, J.R. Bessa. Cinco idias equivocadas sobre o ndio. Revista do
Centro de Estudos do Comportamento Humano (CENESCH), Manaus, n. 01, p. 17-33, 2000.
31
Francisco Adolfo de Varnhagen, membro do IHGB e autor de Histria Geral do Brasil, publicado na
dcada de 1850. No campo historiogrfico, considerado o mais importante autor da histria do Brasil no
sculo XIX.
32
Citao de autoria de Francisco Adolfo Varnhagen enocntrada em: MONTEIRO, Ana Maria;
PEREIRA, Amilcar Arajo (org.). Ensino de Histria e Culturas Afro-brasileiras e Indgenas. Rio de
Janeiro: Pallas, 2013, p. 111.

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Bauman, ao ampliar a discusso sobre a temtica da identidade desenvolvida na sua


teoria lquido moderna, afirma que identidade e pertencimento no so to estveis quanto
possam parecer. No mundo globalizado no possuem a solidez de uma rocha: as
identidades ao estilo antigo, rgidas e inegociveis, simplesmente no funcionam33. De
forma mais diretamente relacionada aos processos que envolvem as identificaes tnicas
indgenas, podemos pens-las a partir de sua formao na alteridade, de forma interacional,
portanto em nada estticas, passveis de novas constituies, identidades
permanentemente (re)feitas a depender da natureza das relaes sociais que se
estabelecem, ao longo do tempo, entre sujeitos sociais e tnicos34.
O debate intelectual que prevaleceu at a dcada de 1970 em relao aos indgenas
era o da dicotomia ndios puros/ndios aculturados. Este paradigma comea a ser
deslocado nos anos subsequentes, perodo marcado pela intensificao das lutas dos
movimentos sociais indgenas e pela busca por canais de dilogo com a sociedade brasileira.
Indo ao encontro a esse tipo de anlise, estudos como o de Almeida tem procurado
produzir e reforar leituras no essencializadas sobre culturas e identidades indgenas, como
deixa entrever a passagem abaixo:

Importa reconhecer que os movimentos indgenas da atualidade


evidenciam que falar portugus, participar de discusses polticas,
reivindicar direitos atravs do sistema judicirio, enfim, participar
intensamente da sociedade dos brancos e aprender seus mecanismos de
funcionamento no significa deixar de ser ndio e sim, a possibilidade de
agir, sobreviver e defender seus direitos. So os prprios ndios hoje que
no nos permitem mais pensar em distines rgidas entre ndios e
brancos.35

Brighenti defende que, em uma perspectiva mais ampla, os movimentos indgenas


ocorrem desde o sculo XVI. Porm, os movimentos indgenas que conhecemos
atualmente no Brasil surgem na dcada de 1970, num contexto de ditadura e intensificao
de explorao das terras indgenas. A posio na relao com a alteridade marca desses
movimentos. possvel perceber a dimenso do ns indgena em relao ao outro,

33
BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedeto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, 33.
34
MAHER, Terezinha Machado. Polticas lingusticas e polticas de identidade: currculo e
representaes de professores indgenas na Amaznia ocidental brasileira. Currculo sem Fronteiras, v.
10, n.1, p. 33-48, jan/jun , 2010.
35
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os ndios na Histria do Brasil. Rio de Janeiro: editora FGV,
2010.

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ao no indgena36. Alm de estreitar laos de pertencimento, mesmo em grupos


historicamente distintos, trata-se da afirmao de uma nova identidade. Portanto, para
continuarem existindo em seus pertencimentos tnicos e lutarem por direitos se
apropriaram de mecanismos e instrumentais organizativos, primeira vista alheios a suas
prticas tradicionais, adaptaram-nos e criaram formas prprias de acordo com seus
contextos culturais37.
Buscando desconstruir a cultura popular como algo preexistente e a reforando
como algo construdo, Canclini38 analisa os processos constitutivos da modernidade,
encarados muitas vezes de forma polarizada e oposta, tal qual moderno/tradicional,
culto/popular, hegemnico/subalterno. Pode-se agregar s anlises aqui propostas a
afirmao de Canclini: ao contrrio e de forma complementar, a reproduo das tradies
no exige fechar-se modernizao (...) nem a modernizao exige abolir as tradies, nem
o destino fatal dos grupos tradicionais ficar de fora da modernidade 39. Fugindo de um
paradigma dicotmico, interessa a este estudo estender as formulaes do autor no sentido
de uma desnaturalizao das culturas indgenas como algo preexistente ou essncia dos
grupos, mas como processos hbridos e complexos.
Referindo-se Antropologia, Canclini afirma serem pouco frequentes investigaes
que examinam os procedimentos pelos quais as culturas tradicionais dos indgenas e
camponeses unem-se sincreticamente a diversas modalidades de cultura urbana e massiva,
estabelecendo formas hbridas de existncia40. Para o autor, parte desses estudos deixa de
lado os crescentes processos de interao com a sociedade nacional41. Acredito que em
meio aos referidos processos interacionais, ganha destaque a abertura de espaos nas
mdias digitais por parte dos indgenas. Espaos nos quais estes sujeitos se esforam para
protagonizar suas prprias histrias, na tentativa de reverter um cenrio de
desconhecimento e provocar novas escritas da histria indgena.

PATRIMNIO CULTURAL E PROTAGONISMO INDGENA NO ESPAO


VIRTUAL

36
BRIGHENTI, Clovis Antonio. O movimento indgena no Brasil. In: WITTMANN, Luisa Tombini
(org.). Ensino de Histria Indgena. Belo Horizonte: Autntica, 2015, p. 167.
37
BRIGHENTI, 2015, p. 168.
38
CANCLINI, Nstor G. A encenao do popular. In: Culturas Hbridas: estratgias para entrar e sair da
modernidade. So Paulo: Edusp, 1995. p. 205-254.
39
CANCLINI, 1995, p. 248.
40
CANCLINI, 1995, p. 248.
41
CANCLINI, 1995, p. 248.

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Podemos conhecer um arco e flecha no museu, admir-lo, mas a maneira


eficaz de preserv-lo fabric-lo e caar.
Ter um livro de receitas da culinria indgena uma riqueza sem preo,
mas cozinhar e comer sentir o verdadeiro sabor de nossa cultura.
(...)
Registrar, reformar, restaurar no o suficiente para preservar uma
cultura, mas pratic-la garantir sua sobrevivncia. A forma para manter
um patrimnio cultural vivo continuar a praticar um costume, a
confeccionar um produto com aquele estilo prprio do povo, fazer
circular um conhecimento.
Porque patrimnio o ser humano ativo em sua cultura, atuante no dia a
dia.42

Segundo Abreu e Chagas, a arena do patrimnio cultural no Brasil tem vivenciado


um momento frtil. Se por dcadas a atuao no setor de preservao patrimonial
privilegiava o tombamento de bens de pedra e cal 43, fazendo-se presente nos bens
representantes de uma parcela da sociedade em detrimento de outras, este cenrio sofreu
modificaes com a instituio do denominado patrimnio cultural imaterial ou intangvel,
no ano 2000. Do ponto de vista da insero da cultura indgena no mbito patrimonial,
temos como marco o ano de 2002, ano no qual a arte grfica do povo Wajpi do Amap, a
arte Kusiwa, institucionalizou-se patrimnio imaterial brasileiro.
Cabe ressaltar que no inteno deste trabalho aprofundar a temtica do
patrimnio cultural, mas apenas estabelecer aproximaes com alguns debates desta rea
com as reivindicaes indgenas contemporneas. Neste texto, a porta de entrada sobre a
questo do patrimnio cultural indgena e sua relao com a apropriao das mdias digitais
por parte dos ndios, ir se dar a partir da anlise de um dos livros da coleo digital ndios
na viso dos ndios44 e tambm do site ndios-on-line45, ambos integrantes da Organizao no
Governamental (ONG) Thydw46. A escolha das fontes se justifica pelo fato de que os
dois projetos receberam o Prmio Rodrigo Melo Franco de Andrade, na categoria
42
Texto de Nhenety Kariri-Xoc, ver: GERLIC, Sebastin (Org.). ndios na viso dos ndios Somos
Patrimnio. Salvador: Thydw, 2011. Disponvel em:
<http://www.thydewa.org/downloads/somos_patrimonio.pdf>. Acesso em: 10/07/2017.
43
ABREU, Regina. Tesouros humanos vivos ou quando as pessoas transformam-se em patrimnio
cultural-notas sobre a experincia francesa de distino dos Mestres da Arte. In: ABREU, Regina;
CHAGAS, Mrio. Memria e patrimnio: ensaios contemporneos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 13.
44
Disponvel em: <http://www.thydewa.org/downloads1/>. Acesso em: 23/07/2016.
45
Disponvel em: <http://www.indiosonline.net/>. Acesso em: 23/07/2016.
46
A Thydw uma organizao no governamental, formalizada em 2002, que atua principalmente no
nordeste brasileiro. Desenvolve projetos de formao de indgenas de vrias etnias e naes, por meio de
oficinas nas aldeias indgenas, para atuarem como pesquisadores, documentalistas, jornalistas,
historiadores, antroplogos, poetas, filsofos e fotgrafos de suas prprias realidades COSTA, Suzane
Lima. Povos indgenas e suas narrativas autobiogrficas. Revista estudos lingusticos e literrios, n. 50, p.
67, 2014. Disponvel em: <file:///C:/Users/Adm/Downloads/14812-47860-1-PB.pdf>. Acesso em:
24/07/2016.

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Divulgao, nos anos de 2004 e 2009, respectivamente. O prmio promovido pelo


Instituto de Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (Iphan) desde 1987 e recebeu o
nome do fundador da instituio. Foi criado em reconhecimento a aes de preservao e
divulgao do patrimnio cultural brasileiro47.
Segundo a revista Prmio Rodrigo Melo Franco de Andrade para aes de
preservao do Patrimnio Cultural Brasileiro, publicada no ano de 2004, o prmio na
categoria Divulgao destinado a aes, projetos ou programas destinados a divulgar e
difundir o patrimnio cultural. Resultado de oficinas realizadas nas prprias aldeias, nas
quais os recursos audiovisuais foram amplamente utilizados pelos indgenas envolvidos no
projeto, a coleo de livros ndios na Viso dos ndios reunia sete volumes at o ano de 2004.
Nessas publicaes, os prprios indgenas das naes Kariri-Xoc/AL, Pankararu/PE,
Fulni-/ PE, Kiriri/BA, Tumbalal/BA, Truk/PE e Tupinamb/BA, assumiram a
posio de historiadores, antroplogos, jornalistas e artistas de sua prpria realidade 48. O
lanamento das publicaes foi seguido de visitas a escolas pblicas e privadas, o que veio a
promover conversas com os autores dos livros, palestras e encontros para a divulgao de
saberes indgenas.
A produo dos livros contou com iniciativas privadas e pblicas, e tambm com o
apoio da UNESCO. Este rgo vinculado a Organizao das Naes Unidas (ONU), tem
se engajado na preservao de manifestaes que deem destaque diversidade, estimulando
os Estados-membros a tomarem iniciativas voltadas para a proteo e valorizao das
culturas tradicionais, no sentido de que o patrimnio imaterial continue vivo e no seja
apenas museificado, indo ao encontro da citao que d incio a esta parte do texto. Nesta
perspectiva podemos citar o exemplo do programa Tesouros Humanos Vivos (1989).
Atualmente a coleo conta com vinte e trs livros, todos disponibilizados
virtualmente. Diante do farto material e do limite deste artigo, decidi concentrar as anlises
em um dos exemplares, intitulado Somos Patrimnio, publicado no ano de 2011. A autoria
coletiva envolveu mais de quarenta indgenas, pertencentes a dez etnias, distribudas por
cinco estados brasileiros49, os indgenas escreveram, desenharam, tiraram fotos,

47
IPHAN. Revista Prmio Rodrigo Melo Franco de Andrade para aes de preservao do Patrimnio
Cultural Brasileiro, volume nico, 2004, p. 03. Disponvel em:
<http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/revista_2004.pdf>. Acesso em: 30/07/2016.
48
IPHAN, 2004, p. 05.
49
Refiro-me as etnias Kariri-Xoc (AL), Pankararu (PE), Patax Hhhe (BA), Tupinamb Patax
Hhhe (BA), Truk (PE), Kiriri (BA), Tupinamb (BA), Tupinamb de Olivena (BA), Potiguara (PB),
Mbya Guarani (RJ).

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entrevistaram ou foram entrevistados50, onde podemos perceber a valorizao de saberes e


fazeres dos mesmos.
Oliveira, referindo-se a boa parte da produo cientfica do sculo XX, afirma que
os povos indgenas do Nordeste no foram objeto de especial interesse para os etnlogos
brasileiros51. Considerados aculturados, eram descritos pelo que foram no passado. Como
consequncia, o presente dessas populaes fora negligenciado pelos estudos etnolgicos,
devido a suposta ausncia de distintividade cultural que lhes era atribuda. Vertentes dos
estudos etnolgicos das populaes autctones da Amrica do Sul, sobretudo, o
evolucionismo cultural norte-americano e o estruturalismo francs, assim como o
indigenismo52, contriburam com esta perspectiva. Segundo o autor, a partir de demandas
por terra e assistncia, portanto fatos de natureza poltica, que os povos indgenas do
Nordeste foram colocados como objeto de ateno para os antroplogos. Nos anos 1970,
artigos, relatrios e laudos ampliaram o conhecimento sobre as condies de existncia das
populaes indgenas da regio, gerando dados e argumentos que fortalecem suas
demandas53.
As narrativas apresentadas no livro Somos Patrimnio advm principalmente de
indgenas da regio Nordeste do Brasil. Narrativas marcadas pelas lutas por
reconhecimento tnico diferenciado dentro do Estado-nao brasileiro, envolvendo a
organizao coletiva no sentido de preservao do patrimnio cultural indgena. Perpassam
por demandas de diferena e de direitos, sobretudo territoriais. Alguns depoimentos
permitem entrever o entrelaamento entre as questes polticas e culturais. Vejamos o
depoimento de Edite e Jos Miguel da Frana (Paj) Kiriri:

A cultura um respeito. Foi com a Cultura que ns trabalhamos e ns


vencemos o que ns queria. O que ns queria era a terra e, graas a Deus,
estamos com ela na mo. A cultura que traz a fora, a fora para a luta
do ndio. A cultura traz o respeito, traz a unio. (...) Tem que amar a
cultura. Cada qual tem a sua cultura e ns respeita a todos.54

50
GERLIC, 2011.
51
OLIVEIRA, Joo Pacheco de. Uma etnologia dos ndios misturados? Situao colonial,
territorializao e fluxos culturais. MANa, Rio de Janeiro, n. 4, p. 47-77, 1998.
52
Oliveira cita o exemplo de Darcy Ribeiro ao falar em resduos da populao indgena do nordeste,
ou ainda em magotes de ndios desajustados vistos nas ilhas e barrancos do So Francisco. OLIVEIRA,
1998, p. 50.
53
OLIVEIRA, 1998, p. 51.
54
GERLIC, 2011.

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Da mesma forma atravessam o depoimento de Jamopoty, cacique da etnia


Tupinamb de Olivena, em depoimento realizado em dezembro de 2010:

Hoje estamos reivindicando nosso territrio, que nosso bem maior,


no se pode falar de cultura, educao, de sade sem falar de territrio.
Sempre estivemos nessas terras, nunca samos daqui. (...) Nosso maior
Patrimnio est sendo ameaado e se ns no lutar para parar com essa
maldade que esto fazendo com nossa Me Terra, pois tudo que
preservarmos por sculos est arriscado a se perder.55

Diferentes tradies culturais atravessam o patrimnio cultural dos povos indgenas


do Nordeste, resultado de sculos de contato com a sociedade no indgena hegemnica.
Segundo Oliveira, para que sejam legtimos componentes de sua cultura atual, no
preciso que tais costumes e crenas sejam, portanto, traos exclusivos daquela sociedade 56.
O hibridismo cultural se manifesta, por exemplo, na religiosidade, conforme o relato de
Maria Pankararu:

Ns somos fervorosos nas nossas convices religiosas. Fomos


catequizados por missionrios catlicos. Por isso, acreditamos
firmemente na existncia e proteo de Deus. Assim como temos nossas
fortes convices crists, temos nossas fortes convices na religio
indgena Pankararu. Toda a nossa vivncia mediada pela crena em
Deus e pela crena na Fora Encantada. Assim, como vamos missa,
com igual fervor e compromisso vamos aos terreiros onde so realizadas
as festas, as danas tradicionais Pankararu. Temos vrios rituais e estes
acontecem com muita frequncia na comunidade57.

Entretanto, na demarcao da indianidade (Oliveira), demandada pelas polticas


pblicas voltadas para indgenas, inclusive as de patrimnio, fazem-se necessrios os rituais
diferenciadores. Nas narrativas do livro, ganha destaque o ritual do Tor. Segundo Oliveira,
este ritual permite exibir os atores presentes na situao intertnica peculiar aos ndios do
Nordeste. O autor acrescenta, trata-se de um ritual poltico, protagonizado sempre que
necessrio demarcar as fronteiras entre ndios e brancos58. Os relatos a seguir, parecem
ir ao encontro s formulaes de Oliveira:

Tor nosso costume, nossa tradio. A gente busca nossas foras


atravs do tor, e ns temos tambm a nossa beberagem que a Jurema.
(...) No tor, a gente trabalha com os Encantados de luz, que se chama

55
GERLIC, 2011.
56
OLIVEIRA, 1998, p. 59.
57
GERLIC, 2011.
58
OLIVEIRA, 1998, p. 60.

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os messageiros da Jurema Ns sem o tor no somos ndio. E com tor,


ns vai onde nos quiser59.

Ou ainda:

O Tor, pra ns abaixo de nosso pai Tup, a nossa cincia, a nossa


sabedoria, que todas as messagens e as dificuldades que a gente passa,
ns temos que chamar os messageiros de Luz. (...) O Tor, o Carua e o
nosso marac a nossa cincia. E aqui a onde ns aprende a nossas
rezas, nossos costumes. O tor pra ns que ns ensina tudo. No s
aqui, como em todas as aldeias60.

Segundo dados da coleo em tela, ao fazer os livros, os indgenas se apropriaram


de cmeras, gravadores e outros recursos digitais. Portanto como desdobramento da
coleo de livros Somos Patrimnio, surge a Rede ndios on line, para facilitar o dilogo entre os
indgenas e a comunicao deles com a sociedade... O salto quntico foi colocar conexo de
internet dentro de sete aldeias...61.
O site conta atualmente com uma gesto compartilhada entre quatro povos
indgenas e cinco gestores: Alex Makuxi de Roraima, Patrcia Pankararu de Pernambuco,
Nhenety Kariri-Xoc de Alagoas e Fbio Titiah e Yonana Pataxo h h he da Bahia.
Conta ainda com o voluntarismo de indgenas de diversas etnias, sobretudo do Nordeste,
no sentido de resgatar, preservar, atualizar, valorizar e projetar culturas indgenas. Segundo
informaes do prprio site, um portal de dilogo intercultural, que valoriza a
diversidade, facilitando a informao e a comunicao para vrios povos indgenas e para a
sociedade em forma geral62.
A revista Prmio Rodrigo Melo Franco de Andrade para aes de preservao do
Patrimnio Cultural Brasileiro publicada em 2009 afirma na ocasio do prmio, que o site
reunia tecnologia e as tradies de sete naes indgenas do Nordeste brasileiro:
Tupinamb, Kiriri, Patax Hhhe e Tumbalal, na Bahia; Kariri-Xoc e Xucuru-Kariri,
em Alagoas e Pankararu, em Pernambuco. A interao entre indgenas e pessoas de todo o
mundo se dava partir de um computador conectado via satlite em cada uma dessas aldeias.
A publicao afirma ainda:

59
Depoimento de Antnio Cicero da Silva Truk. GERLIC, 2011.
60
Depoimento de Dona Lourdes Truk. . GERLIC, 2011.
61
THYDW. Cultura Viva, esperana da terra, volume nico, 2014. Disponvel em:
<http://www.thydewa.org/wp-content/uploads/2012/05/CULTURA-VIVA-ESPERANCA-NOV2014-
WEB-II.pdf>. Acesso em: 10/07/2017.
62
Disponvel em: <http://www.indiosonline.net/quem-somos/>. Acesso em 11/07/2017.

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A ao tem incentivado os jovens indgenas a dialogar com os guardies


da memria de seus povos e tem fortalecido a apropriao de seu
prprio patrimnio cultural e imemorial. Ao mesmo tempo, divulga para
toda a sociedade esse patrimnio, valores, conhecimentos e belezas que
residem na grande diversidade indgena presente no territrio brasileiro63.

Ao entrar no site, a pgina de abertura evidencia demandas e reivindicaes do


presente indgena nas matrias postadas, todas assinadas por ndios. Sem intermedirios,
so os prprios indgenas que do visibilidade s suas reivindicaes, levantam denncias,
comemoram conquistas, tratam de assuntos ligados a educao e sade indgena,
promovem encontros intertnicos. Entram tambm em debates acadmicos, como por
exemplo, a aplicao da Lei 11.645/2008, a partir do material disponibilizado pelo
professor da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC)64, Carlos Jos Ferreira dos
Santos, o Cas Angatu.
O protagonismo indgena tambm pode ser observado no sentido de rompimento
com ideias cristalizadas sobre uma suposta autenticidade, que condenaria estes sujeitos a
um passado perptuo, conforme a abordagem da primeira parte deste artigo em relao a
identidades e culturas indgenas. Vejamos o exemplo da narrativa contundente de Potyra
T Tupinamb65:

Quando seu filho chegar hoje em casa todo lindo pintadinho de ndio
batendo na boca e fazendo Hu HU Hu conte a verdade pra ele! No
permita que a mentira sobre ns indgenas se perpetue ns no somos
seres do passado estamos vivos. Tem ndio em todas as partes do
Brasil e no s na Amaznia. ndio no s aquele com olhinhos
puxadinhos e cabelo preto e liso somos diferentes cada povo foi se
constituindo ao longo dos sculos sculos e sculos de opresses e
massacres
Ensine seu filho a respeitar a diferena!!
-O Brasil no foi descoberto. Foi invadido.
-Os indgenas brasileiros pertencem a 305 etnias diferentes falando
274 lnguas.
Estamos presentes em todas as regies do Brasil.
ndio no vive s nas florestas. T ai na cidade. Talvez ai do seu lado.

63
IPHAN. Revista Prmio Rodrigo Melo Franco de Andrade para aes de preservao do Patrimnio
Cultural Brasileiro, volume nico, 2009, p. 08. Disponvel em:
<http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/revista_2009.pdf>. Acesso em: 30/07/2016.
64
Refiro-me ao artigo e ao vdeo disponibilizados em: <http://www.indiosonline.net/historias-e-culturas-
indigenas-alguns-desafios-no-ensino-e-na-aplicacao-da-lei-11-6452008-de-qual-historia-e-cultura-
indigena-estamos-mesmo-falando/> e <http://www.indiosonline.net/quando-indio-fala-fala-com-alma-
historia-cultura-e-saberes-indigenas-na-educacao/>. Acessos em: 25/07/2016.
65
Potyra T Tupinamb advogada Indgena e militante social pelos Direitos Humanos Indgenas.
Disponvel em: <http://www.indiosonline.net/quando-seu-filho-chegar-hoje-em-casa-todo-lindo-
pintadinho-de-indio-batendo-na-boca-e-fazendo-hu-hu-hu-conte-a-verdade-pra-ele/>. Acesso em:
24/07/2016).

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-Cada povo diferente do outro. Cada um tem seus usos e costumes que
se assemelham em alguns casos.
-ndio brasileiro no bate a mo na boca e faz hu hu hu isso pertence
cultura de nossos irmos indgenas norte-americanos.
-H indgenas pelo mundo todo.
Usamos internet, celular, tablet e nem por isso deixamos de ser
indgenas.
Na verdade nem somos ndios somos Tupinamb, Guarani,
Pankararu, Tux, Mundurucu, Yanomami o nome ndio nos foi dado
pelo invasor66

A ideia de aculturao, remetida no trecho acima, traz baila a contestada ideia do


menos ndio67 ou ndio no autntico. Segundo Silva, as teorias da aculturao previam a
gradual desapario dos grupos tnicos, desconsiderando o longo perodo de contato a que
foram submetidas as diversas sociedades indgenas. Portanto, desqualificar os indgenas
como bugres, aculturados, ou mesmo, no reconhecidos, permite que essas sociedades
sejam usurpadas de seus direitos histricos seculares68.
O desconhecimento da diversidade tnica que existe no pas tambm destacado
no depoimento de Potyra T Tupinamb. Sem adensar a discusso em torno das disputas
semnticas que envolvem os termos ndio/indgena, importa considerar a ao dos
movimentos sociais indgenas que se delinearam nas ltimas dcadas.
No contexto da dcada de 1980, foi criada a primeira organizao nacional
indgena, a UNIND69 (Unio das Naes Indgenas). Neste momento histrico, a categoria
ndio foi acionada para unificar reivindicaes e lutas por direitos. Num segundo
momento, marcado por importantes conquistas polticas e direitos, como por exemplo a
Conveno 169 da OIT (Organizao Internacional do Trabalho)70, ratificada pelo Brasil

66
Disponvel em: <http://www.indiosonline.net/quando-seu-filho-chegar-hoje-em-casa-todo-lindo-
pintadinho-de-indio-batendo-na-boca-e-fazendo-hu-hu-hu-conte-a-verdade-pra-ele/>. Acesso em:
24/07/2016.
67
SILVA, Giovani Jos da. Perspectivas do Ensino de Histria e Diversidade tnico-cultural:
contribuies a um debate transdisciplinar. In: ZAMBONI, Ernesta; GALZERANI, Maria Carolina B.;
PACIEVITCH, Caroline. Memria, Sensibilidades e Saberes. Campinas, SP: Alnea, 2015, p. 57.
68
SILVA, 2015, p. 57.
69
Em 1981, com a presena de 73 lderes e 32 entidades de apoio aos ndios, a UNIND mudou de sigla
agora UNI e consolidou-se como organizao indgena nacional. OLIVEIRA, Joo Pacheco de;
FREIRE, Carlos Augusto da Rocha. A Presena Indgena na Formao do Brasil. Braslia:
MEC/UNESCO, 2006, p. 193.
70
A Conveno determina o controle social e a participao indgena nas instncias decisrias,
sobretudo nas que lhes dizem respeito, mas que se encontram muito distantes de qualquer possibilidade
de efetivo respeito e implementao de seus preceitos, os quais poderiam ajudar no encaminhamento de
solues para muitos problemas enfrentados pelas comunidades e pelos povos indgenas. LUCIANO,
Gersem dos Santos (Baniwa). O ndio Brasileiro: o que voc precisa
saber sobre os povos indgenas no Brasil de hoje. Braslia: MEC, Secretaria

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em 1993, a luta voltou-se para reivindicaes particularizadas das diferentes etnias


existentes. A partir de ento, cada etnia desenvolveu suas aes71. Tornou-se importante o
reconhecimento tnico. O direito diferena demanda dos movimentos sociais desde
ento, aliada superao da concepo de tutela.
Recorrendo a Barth, Oliveira define grupo tnico, como um tipo de sociedade na
qual as diferenas culturais so usadas para fabricar e refabricar sua individualidade diante
de outras com que estava em um processo de interao social permanente72. Portanto, o
autor se afasta de uma condio de isolamento ou de passado para entender a constituio
dos grupos tnicos, considerando a atuao dos prprios membros do grupo e o carter
situacional dos processos identitrios que devem ser estudados em contextos precisos e
percebidos tambm como atos polticos73.
Fruto de lutas dos movimentos sociais, inclusive dos movimentos indgenas e no
combate a uma viso de autenticidade das prticas culturais dos mesmos, cabe destacar
alguns avanos no que tange ao patrimnio cultural que constam na Constituio brasileira
de 1988. Mas somente o Decreto 3551 instituiu os patrimnios culturais e imateriais no
Brasil no ano de 2000. Vejamos trechos dos artigos 215 e 216 da Constituio:

Art. 215. O Estado garantir a todos o pleno exerccio dos direitos


culturais e acesso s fontes da cultura nacional, e apoiar e incentivar a
valorizao e a difuso das manifestaes culturais.
1: O Estado proteger as manifestaes das culturas populares,
indgenas e afrobrasileiras, e das de outros grupos participantes do
processo civilizatrio nacional.
(...)
Art. 216. Constituem patrimnio cultural brasileiro os bens de natureza
material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto,
portadores de referncia identidade, ao, memria dos diferentes
grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I - as formas de expresso;
II - os modos de criar, fazer e viver;
III - as criaes cientficas, artsticas e tecnolgicas;
IV - as obras, objetos, documentos, edificaes e demais espaos
destinados s manifestaes artstico-culturais74.

de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade; LACED/Museu


Nacional, 2006, p. 75.
71
SANTOS, Carlos Jos Ferreira dos. Histrias e culturas indgenas- alguns desafios no ensino e na
aplicao da lei 11.645/2008: de qual histria e cultura indgena estamos mesmo falando?. Histria e
Perspectivas, Uberlndia, n. 53, p. 189, jan./jun., 2015.
72
OLIVEIRA, 1998, p. 55.
73
OLIVEIRA, 1998, p. 55.
74
Brasil, 1988. Disponvel em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 10/07/2017.

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Para Gonalves, o patrimnio usado no apenas para simbolizar, representar ou


comunicar: bom para agir75. Fazendo a mediao entre passado e presente, esta categoria
no existe apenas de forma contemplativa, o patrimnio, de certo modo, constri, forma
as pessoas76. Este tipo de anlise pode contribuir para se pensar as (re)elaboraes tnicas
e culturais, reivindicadas por indgenas contemporneos e muitas vezes negadas a estes
sujeitos por projetos do Estado Nacional brasileiro ao longo se sua formao.
Baniwa (2006) fala do desafio atual da superao da tutela e da capacidade de auto-
sustentao por parte dos ndios, a partir:

de seus conhecimentos tradicionais e de seus recursos naturais e


humanos locais, eventualmente complementados pelos conhecimentos e
pelas tecnologias do mundo moderno (...) garantir definitivamente e em
determinadas condies sociojurdicas ou de cidadania o seu espao na
sociedade brasileira contempornea, sem necessidade de abrir mo do
que lhe prprio: as culturas, as tradies, os conhecimentos e os
valores.77.

Ao meu ver, este enfrentamento se d tambm na arena polifnica da rede mundial


de computadores, possveis lcus de narrativas contra-hegemnicas nas quais coletivos
indgenas afirmam e reafirmam seu patrimnio cultural como projeto de futuro, no apenas
memria do passado.

Recebido em: 12 de novembro de 2016


Aprovado em: 24 de maio de 2017

75
ABREU, Regina; CHAGAS, Mrio. Memria e Patrimnio: ensaios contemporneos. Rio de Janeiro:
DP&A, 2003, p. 31.
76
ABREU; CHAGAS, 2003, p. 31.
77
LUCIANO, 2006, p. 85.

250
Revista histria, histrias, volume 5, nmero 9, jan.jul. 2017
ISSN 2318-1729

RESENHA

251
Revista histria, histrias, volume 5, nmero 9, jan.jul. 2017
ISSN 2318-1729
SILVA, Marclia Gama da. Informao, represso e memria: a construo do estado de exceo
no Brasil na perspectiva do DOPS-PE (1964-1985). Recife: Editora UFPE, 2014. 339 p.

Rafael Leite Ferreira


Doutorando em Histria pela Universidade Federal de Pernambuco - Brasil
Mestre em Histria pela Universidade Federal de Pernambuco
e-mail: rafaleferr@hotmail.com

Entre os anos de 2012 e 2014, com a criao de diversas Comisses da Verdade no


Brasil e quando da passagem dos cinquenta anos do golpe civil-militar de abril de 1964, as
discusses a respeito da derrubada do presidente Joo Goulart e do regime autoritrio que
se seguiu cresceram de maneira considervel, fomentando a realizao de audincias
pblicas, reportagens especiais, seminrios, documentrios, filmes e, principalmente, novas
e ricas produes bibliogrficas. Uma destas produes, por exemplo, foi o supracitado
livro da historiadora Marclia Gama da Silva.
Fruto de sua tese de doutorado, defendida em 2007 junto ao Programa de Ps-
Graduao em Histria, da Universidade Federal de Pernambuco, o livro, que tem uma
agradabilssima escrita, teve como foco estudar a rede de informaes instalada, em
Pernambuco, durante o regime militar (1964-1985), tomando como base o intercmbio
informacional criado entre o Departamento de Ordem Poltica e Social de Pernambuco
(DOPS-PE) e os demais rgos de informao nos mbitos regionais e nacional.
Ao se dedicar questo da espionagem/monitoramento/vigilncia, Marclia
Gama se associou a um tema que, dentro da historiografia brasileira, tem crescido,
qualitativa e quantitativamente, durante os ltimos anos. O interesse por essa temtica
remonta metade da dcada de 1980, quando importantes jornalistas lanaram slidas
obras, desnudando a face vil da comunidade de informaes. Na dcada de 1990, uma nova
contribuio ao tema foi dada com o lanamento de uma trilogia pela CPDOC da
Fundao Getlio Vargas (FGV), na qual os prprios militares expunham diretamente
opinies, pontos de vista, crticas ou elogios acerca de sua atuao no exerccio do poder.
Nos anos 2000, o tema teve uma nova alavancada com a publicao de inmeros artigos
em revistas especializadas e riqussimos trabalhos acadmicos.
O estudo de Marclia Gama, portanto, ao tratar da questo do monitoramento feito
pela ditadura, no apenas complementa as obras clssicas sobre o tema, bem como avana
no cerne da questo, trazendo tona as nefastas atividades de informaes produzidas pela
ditadura em Pernambuco em razo de seu recorte espacial local e pela vasta documentao

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Revista histria, histrias, volume 5, nmero 9, jan.jul. 2017
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apresentada. Atividades que, alm de levianas e fincadas no preconceito e na ignorncia,
eram conduzidas pela suspeio universalizada, ou seja, sob o lema da inculpao, j que
partia da pressuposio de que todos poderiam ser subversivos, at que provassem o
contrrio.
O livro composto por trs captulos, ao longo dos quais se buscou refutar a tese
de que as atividades de informao no Brasil eram precrias ou amadoras. Marclia Gama
procurou mostrar que longe de um amaradorismo, as atividades de informaes faziam
parte de uma complexa rede de especialistas que tudo buscava anotar, captar, ouvir,
enxergar e arquivar. O projeto da comunidade de informaes foi, na verdade, o de ser
onipresente. Para manter a vigilncia da populao, a ditadura, por exemplo, contratou
agentes e peritos, deslocou de outros rgos centenas de servidores para trabalharem com
informaes e espionagem, utilizou agentes infiltrados nas organizaes clandestinas e nos
movimentos sociais, alm de instigar, cotidianamente, considervel parcela da populao a
colaborar com as atrocidades cometidas pelo regime.
Uma das preocupaes da autora foi mostrar como a questo das informaes
passou a ocupar um lugar estratgico dentro da ditadura, ou seja, como a extensa e
dinmica rede de informaes serviu de base para a manuteno do prprio regime e de
seu aparato repressivo. No primeiro captulo da obra, ao analisar a conjuntura do pr-golpe
de 1964, Gama demonstrou que no afeita a modismos historiogrficos e ao recente
revisionismo historiogrfico que vem sendo criticado por diferentes historiadores, nos
ltimos tempos. E isto um ponto digno de ser ressaltado, especialmente no atual
momento historiogrfico que apresenta uma notvel relativizao de certos eventos e
personagens histricos. Retomando anlises clssicas de especialistas sobre a temtica,
Marclia Gama apontou a atuao do complexo IPES-IBAD na desestabilizao do
governo Joo Goulart e, principalmente, o importante papel que a ESG desempenhou,
durante os anos 60, como ncleo formador de opinies, de viso de sociedade e de
comportamento, atravs dos discursos proferidos, das palestras e cursos ministrados por
civis e militares sobre a Doutrina de Segurana Nacional.
importante ressaltar que embora anlise de Gama possa ajudar a entender a lgica
e o modus operandi dos rgos de segurana em Pernambuco, o foco da autora no foi o
estudo da estrutura da represso tout court, mas sim o desenvolvimento da complexa rede
de informaes montada pela ditadura nesse estado. Para atingir os objetivos, enfatizou as
rotinas policiais de investigao, mostrou as estratgias de vigilncia e identificou os

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discursos policiais produzidos a respeito de alguns grupos, tais como os camponeses, os
estudantes e a esquerda revolucionria, que eram considerados subversivos e perigosos
ordem poltica e social do pas. Tal escolha se deu justamente porque a autora entendeu
que os conceitos informao e represso, embora conexos, tinham objetivos e
atuaes diferentes dentro do regime.
Em outras palavras, apesar de entrelaadas, as atividades de informaes
(espionagem) e as de segurana (represso) eram normatizadas, coordenadas e executadas
em esferas prprias. Os rgos de informao trabalhavam na busca, coleta, anlise e
pescagem da informao para alimentar os Inquritos Policiais Militares, enquanto os
rgos de segurana atuavam diretamente no estouro de aparelhos, na priso, nos
interrogatrios, na tortura e no combate direto ao inimigo.
A discusso sobre o auxlio do governo norte-americano para a montagem e
modernizao da polcia poltica e tcnico-cientfica, em Pernambuco, no incio da dcada
de 1960, foi outro grande trunfo trazido por Marclia Gama para o conhecimento da nossa
recente histria poltica. Ela mostrou que Pernambuco visto como um dos principais
focos de comunismo e subverso do pas recebeu grandes somas de dinheiro, recursos
(transportes, equipamentos de escuta e telefonia etc.) e inmeros cursos, no pas e no
exterior, destinados ao aperfeioamento de agentes pblicos s atividades de informao e
represso. Para a autora, esse apoio financeiro e tcnico foi completamente minado com a
posse do governador Miguel Arraes, em janeiro de 1963, que desmontou o poderoso
programa de auxlio americano chamado Ponto IV, gerando forte descontentamento por
parte dos policiais estaduais e dos EUA. Com a deposio de Arraes em abril de 64, os
acordos foram retomados, tendo a USAID fornecido, j no incio de 1965, despesas de
viagens e estadias para que tcnicos americanos ministrassem cursos de aperfeioamento
a policiais e gestores estaduais.
Em diversas passagens da obra, Marclia analisou com riqueza de detalhes,
sobretudo por intermdio de excelentes diagramas, tabelas e organogramas, a
superestrutura da polcia poltica em Pernambuco. Convm aqui ressaltar que a polcia
poltica pernambucana no foi estruturada com o advento do golpe de 64. Embora
aperfeioada durante a ditadura, tal polcia foi montada ainda nos anos 30, com a clara
finalidade de coibir o avano do comunismo, cuja atuao era vista como grande ameaa
ordem, sobretudo aps o levante comunista de novembro de 1935, ocorrido em Natal, no
Recife e no Rio de Janeiro. Seis segmentos passaram ento a ser vigiados de perto pela

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recm-criada Delegacia de Ordem Poltica e Social de Pernambuco (DOPS): a imprensa, as
entidades de assistncia social (incluindo os sindicatos), determinadas lideranas; os
partidos polticos e associaes; a zona urbana (indstria, comrcio e empresas) e a zona
rural (os camponeses).
Em 1961, a Delegacia foi transformada em Departamento de Ordem Poltica e
Social (DOPS), aumentando a vigilncia e a represso aos trabalhadores urbanos e rurais
durante o governo Cid Sampaio (1959-1962). A modernizao da estrutura policial atendeu
necessidade de aperfeioar a mquina estatal para o combate das aes consideradas
subversivas (manifestaes, protestos, greves, passeatas, pichaes etc). Os corriqueiros
abusos cometidos pela polcia estadual s foram contidos, de fato, com a posse de Miguel
Arraes no incio de 1963.
Contudo, com o advento do golpe, os abusos foram retomados e intensificados
pelo DOPS. Com a deflagrao do golpe iniciou-se uma fase de puro dio, uma verdadeira
caa s bruxas. Somente nos primeiros dias de abril de 1964, quase duas mil pessoas foram
presas em Pernambuco. Na maioria dos casos, as prises polticas no tinham formalidade
legal. Entre as prises, havia centenas de detenes por desavenas pessoais. Naquele
contexto, nas guas da perseguio poltica, tudo era vlido.
Nos limites desta resenha, importa valorizar a riqueza do trabalho de Marclia
Gama e a sua contribuio para o conhecimento da polcia poltica pernambucana e das
aes (legais e ilegais) da comunidade de informaes, suas formas de atuao, a cadeia de
comando, sua organizao e funcionamento. No entanto, no poderia deixar de mencionar
alguns problemas apresentados na obra. O primeiro, a meu ver, a utilizao da expresso
regime civil-militar. A autora faz uso desse conceito sem problematiz-lo. importante
destacar que h, atualmente, uma rica discusso historiogrfica sobre o carter civil ou no
do regime.
O segundo problema a interpretao do Ato Institucional n 5 (AI-5) como um
golpe dentro do golpe. Na verdade, quando usamos essa expresso, muitas vezes,
estamos refletindo a prpria leitura feita pela linha dura a respeito do ato institucional de
1968. Entre os anos de 1964 e 1968, o que grande parte dos meios de comunicao e do
oficialato ento denominava de linha dura ou de fora autnoma dentro das Foras
Armadas (autodeclarada a verdadeira guardi dos princpios da revoluo) foi se
constituindo como um grupo de presso muito eficaz e conquistando, paulatinamente,
considerveis espaos de poder no interior do governo. A caminhada e a evoluo da

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presena desse grupo so essenciais para entender diversos episdios do regime, pois
evidenciam que o projeto repressivo baseado numa dura operao limpeza estava
presente desde os primeiros momentos do golpe de 64. Neste sentido, o AI-5 deve ser
entendido como o amadurecimento de um processo que se iniciara muito antes, e no uma
decorrncia dos episdios de 1968, diferentemente da tese que sustenta a metfora do
golpe dentro do golpe, segundo a qual o AI-5 iniciou uma fase completamente distinta
da anterior.
O terceiro problema identificado na obra de Marclia a larga utilizao de
expresses como populismo, democracia populista, colapso do estado populista
implantado por Vargas, sem as devidas ponderaes e crticas que esses conceitos
certamente requisitam. No vou aqui entrar no mrito da discusso sobre a utilizao ou
no do conceito de populismo, mas considero que a autora deveria indicar ao seu leitor o
aporte terico-metodolgico que orientou os seus estudos.
Outra crtica que lano ao trabalho a falta de discusso sobre a relativa diminuio
de poder dos DOPSs aps a criao e fortalecimento, no final da dcada de 1960 e incio
de 1970, de outros rgos de informaes no pas (CIE, CISA e CENIMAR). Apesar da
alta complexificao da estrutura do DOPS, o rgo passou a perder espaos de poder, ao
longo dos anos 70, nas atividades de investigao e represso poltica. A Doutrina de
Segurana Nacional estabeleceu como seus rgos centrais o recm-criado SNI e os rgos
de inteligncia militares. Elaborando estratgias, produzindo informaes e centralizando
os informes estes rgos eram, indubitavelmente, os agentes mais categorizados da
represso. O processamento e a elaborao das estratgias e informaes estavam
confiados aos rgos centrais (SNI e agncias militares); cabia ao DOPS, na maioria dos
casos, munici-los de informes.
Por fim e talvez a questo mais problemtica da obra , o argumento de que a
ditadura se encerrou no ano de 1979. Esta concepo poltica e historicamente
complicada. J no bastasse a afirmao de que a ditadura brasileira foi uma ditabranda
pois teria sido mais branda e menos violenta do que outras ditaduras latino-americanas
, busca-se difundir nos ltimos anos a falcia da ditacurta, segundo a qual a ditadura
teria se encerrado em 1979, com a aprovao da anistia e a revogao dos Atos
Institucionais draconianos lanados pelos militares.

Recebido em: 11 de novembro de 2016


Aprovado em: 22 de maro de 2017

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