Violencia e Teoria Social - Michel Misse
Violencia e Teoria Social - Michel Misse
Violencia e Teoria Social - Michel Misse
Michel Misse
Professor titular da UFRJ
Ao considerar a grande quantidade de referncias Considering the large number of recent references
recentes ausncia da violncia como tpico to the absence of violence as a specific topic of
especfico da teoria social, este artigo prope-se a social theory, the article Violence and Social
mapear e discutir as dificuldades conceituais Theory proposes to review and discuss the
presentes nessa discusso, assim como a situar a conceptual difficulties present in this discussion, as
violncia como problema terico no eixo de well as to situate violence as a theoretical issue
continuidade do trabalho do autor. Aps repassar consistent with the authors work. After reviewing
vrias contribuies recentes, o texto explora a several recent contributions, the text explores the
hiptese de que o conceito vem se alargando, hypothesis that the concept is being enlarged,
com o avano da sensibilidade pacifista e a because of the growing pacifist sensitivity and the
repugnncia s solues de fora inclusive repugnance to uses of force symbolic force
simblicas na vida cotidiana, o que torna ainda included - in everyday life, which makes even more
mais complicada a possibilidade de uma complicated the possibility of unilaterally
delimitao unilateral do conceito. delimitate the concept.
Palavras-chave: violncia, teoria social, dilemas Keywords: violence, social theory, conceptual
conceituais, representao social, modernidade issue, social representation, modernity
Introduo
S
uspeito que violncia seja agora, e cada vez mais, uma palavra moderna. Ela no
significava o que significa hoje, em toda a sua extenso semntica, antes de comeos do
sculo XX. Os socilogos, os historiadores, os filsofos contemporneos, geralmente,
procuram no seu sentido etimolgico a raiz de seu sentido moderno, exerccio que pode se
configurar intil porque anacrnico2. No sentido antigo, violentia tinha significado mais neutro
ou menos carregado, seja como vis fora, guerra , seja como potestas poder, domnio. Os dois
significados andavam juntos sem maiores problemas.
Suspeito tambm que, diferentemente do que pensam esses meus colegas, o sentido da palavra
no s no deve ser encontrado antes da modernidade como se acha, na verdade, ainda em plena
construo. As questes s quais a palavra, atualmente, faz referncia nada mais tm a ver com o
sentido antigo. Walter Benjamin (2011[1921]) talvez tenha sido o primeiro a chamar ateno para
DILEMAS: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social Vol.9 no 1 JAN-ABR 2016 pp. 45-63
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o movimento de ocultao da violncia que funda o direito, violncia mtica, por meio das violncias
que o direito quer controlar e punir. A disputa do sentido de violncia se unicamente restrito ao
exerccio da fora ou se abrangente, por exemplo, para alcanar o Estado e a estrutura social, como
defendeu Galtung (2004; 2010) parte dessa construo moderna e dessa promessa de que a
palavra seja entronizada em conceito. Construir um sentido para a violncia, na atualidade, parte
inelutvel de sua recusa tica. Em uma linha antecipada por Immanuel Kant, parte da promessa
moderna de paz eterna. contra a violncia, em qualquer de suas acepes, que se ergue a
moderna construo do sentido da palavra. A prpria palavra violncia s aparece nas lnguas
latinas e anglo-saxs entre os sculos XIV e XV, inclusive na lngua portuguesa. Assim, Pascal pde
dizer, nAs provinciais (1954[1656-1657], p. 805), que as injrias dirigidas a ele pelos jesutas so
uma estranha e longa guerra, esta em que a violncia tenta oprimir a verdade.
Para Willem Schinkel, autor de um dos mais importantes estudos da violncia na atualidade,
na linha da intuio de Benjamin, a oposio entre violentia e potestas acompanha a crescente
legitimao do exerccio da violncia pelo Estado, empurrando o sentido negativo de violncia para
a sociedade civil. a fora da potestas que define crescentemente violentia. A disputa do sentido
torna-se tambm uma disputa de legitimidade. Na lngua alem, a dubiedade da palavra Gewalt
mantm-se ora significando poder ora significando violncia, no sentido de forar, agredir,
coagir, impor, mas deixando espao para que Macht signifique, sem dubiedade, tambm poder
(SCHINKEL, 2010). Entretanto, ao definir Macht, j no sculo XX, Max Weber (1991[1921]) volta
a reunir os dois sentidos: toda probabilidade de impor a prpria vontade, em uma relao social,
mesmo contra resistncias, seja qual for o fundamento dessa probabilidade. Mas, reconhece seu
carter amorfo. Na introduo ao Dictionnaire de la violence publicado em Frana h trs anos
(MARZANO, 2011), com mais de 1.500 pginas, Michela Marzano, sua organizadora, reconhece a
multiplicidade de sentidos do termo, suas ambiguidades e dificuldades semnticas. Talvez por isso,
o nico verbete que falta na obra violncia: o dicionrio inteiro o prprio verbete.
Pretendo examinar neste artigo alguns aspectos tericos implicados na recente emergncia
da violncia como objeto distinto na literatura sociolgica e os problemas que essa distino
coloca para os estudos que, especialmente nos ltimos 10 anos, vm enfrentando o tema como
passvel de merecer tratamento terico especfico e diferenciado no mbito da teoria social.
Como se sabe, um movimento recente de livros e artigos, nos ltimos 10 a 15 anos, vem
tentando transformar a violncia em tpico distinto e merecedor de investimento prprio, digno
da teoria social. Enfrentar as dificuldades analticas envolvidas tem tambm interessado a
pesquisadores de diferentes reas. Ainda que admitam as dificuldades conceituais envolvidas,
esses estudos continuam a insistir na fecundidade de tomar a violncia como passvel de
tratamento terico. Referi-me, tambm, h uns 15 anos, em minha tese de doutorado, escassez
terica nos usos da violncia nos discursos sociolgicos ao intitular um dos captulos iniciais com
a expresso: Conceitos exguos, objeto pleno (MISSE, 1999, pp. 25-42). No entanto, como
tratarei mais frente, no creio que se possa construir o conceito abstraindo todas as suas formas.
Quando usamos a palavra violncia, o sentido da agresso fsica o que primeiro nos vem
cabea, especialmente o de uma ao unilateral que envolve a possibilidade ou a ameaa de
resultar em ferimentos ou em morte. No parece haver dvidas quanto ligao semntica entre
violncia e agresso (fsica ou moral), e esse o sentido que parece ser amplamente consensual e
evidente. Mas, para a sociologia, que nasceu discutindo os determinantes sociais dos conflitos,
dos crimes e da guerra, a questo sempre foi como isolar do conceito os determinantes sociais da
interao agressiva ou que produz efeitos opressivos. Como separar, por exemplo, a dominao
de classe ou a coercitividade policial do Estado do conceito de violncia? Toda a discusso, aqui,
est contaminada por uma problemtica moral, do mesmo tipo daquela que pode recorrer
violncia justa se lhe parecer que o caso de faz-lo.
Escrevi h 15 anos (MISSE, Idem) que a violncia no era um conceito e, dificilmente, viria
a s-lo, por uma razo que me parece ainda hoje muito clara: uma categoria que, quando deixa
de ser meramente constatativa (e, neste caso, polissmica), torna-se necessariamente
performtica, normativa e acusatorial. Quase sempre no descrevemos nem explicamos nada
quando recorremos, em nosso cotidiano, palavra violncia. O uso da palavra acusa um
acontecimento e no mesmo ato reclama-lhe uma ao contrria. Se o uso prope a ao violenta,
logo uma justificativa lhe cobrada. Na modernidade, ningum pode gostar da violncia: um
antema para quem a elogia ou para quem busca apenas compreend-la, sem conden-la. Por
recobrir um sentido negativo, sua polissemia potencializa a impossibilidade de cont-la em um
enunciado do tipo constatativo. O mais das vezes, usada em enunciados performativos, mesmo
em pesquisas e estudos sociolgicos.3
Outra questo importante quando se trata de violncia a de suas diferentes formas e do
problema da equivalncia. Todas as formas de violncia so equivalentes ou no? Estruturas de
violncia equivalem violncia individual? H violncia justa e violncia injusta, assim como se
pode discutir se h guerras justas e guerras injustas, como fez Michael Walzer? Mais do que isso: se
o adjetivo violento pede um sujeito, o que pede o substantivo violncia? Como fazer o
substantivo operar analiticamente sem que ele seja tomado, ainda que impensadamente, como
sujeito? A violncia tem tais caractersticas, a violncia isso, a violncia aquilo, a violncia
tomou conta da cidade, a violncia chegou ao nosso bairro... Em todas essas acepes h uma
sugestiva reificao de processos sociais que incorporam agresso fsica ou moral, opresso, excesso
de poder, crueldade enfim, uma pletora de aes negativas que parecem ter em comum o que vem
sendo chamado, atualmente, de desumanizao do outro, mas cujo sentido nuclear a de um
atentado integridade fsica ou dignidade de um ser, e no apenas o ser humano. Ora, este
mesmo movimento intelectual o que est definindo a violncia como uma substncia, com suas
mltiplas manifestaes ou como uma entelquia com seus inmeros avatares, por oposio a uma
outra substncia, idealizada como a boa humanidade ou o bem comum.
Em seu muito bem argumentado livro, Willem Schinkel relaciona os paradoxos contidos nos
variados usos do termo violncia nas cincias sociais. A lista de dez antinomias
impressionante:
A violncia rompe com a ordem social ou a violncia constitutiva da ordem social? A violncia um
problema social ou a violncia uma soluo padronizada para os problemas sociais? A violncia uma
forma puramente destrutiva da socialidade ou a violncia uma forma positiva de socialidade que faz as
pessoas se unirem? Violncia uma forma de lidar com a contingncia ou a violncia uma forma
importante e fonte de contingncia? Violncia rompe com as normas ou a violncia refora as normas?
Violncia uma situao visvel ou a violncia um processo oculto? A violncia do Estado reativa em
relao violncia ilegtima ou a violncia do Estado ativa em distinguir violncia legtima e ilegtima?
Violncia um processo social significativo, cujo sentido posto em um referente externo ou a violncia
um processo social caracterizado, exclusivamente, pela autorreferncia? A violncia repele ou a violncia
atrai? A violncia um meio para um fim ou um fim em si mesmo? (SCHINKEL, 2010, p. 15)
A questo
A questo que vem sendo tratada nos ltimos anos em livros e artigos parte de uma
constatao: como pde a violncia no ter se tornado um dos tpicos mais importantes da teoria
social at agora? Como explicar que a violncia s veio a merecer tratamento especfico por parte
de socilogos, antroplogos e cientistas polticos nos ltimos 10 ou 20 anos, quando sabemos que
Karl Marx, no Manifesto comunista (MARX e ENGELS, 1998[1848]), a havia considerado como
parteira da histria e Max Weber a tivesse em alta conta em seu conceito do Estado moderno?
Esses so temas to diversos que podem incorporar diferentes modalidades de violncia: os
conflitos sociais, os chamados comportamentos desviantes, as criminalidades, as guerras, a
violncia poltica, o terrorismo, a explorao colonial, a opresso nas relaes de trabalho ou o
imperialismo ocupam alguns dos principais comits de pesquisa das associaes cientficas
internacionais nas cincias sociais, mas jamais a violncia, esse substrato presente em todas elas,
violncia para alm da esfera normativa de senso comum em que est submerso. possvel que a
sensibilidade terica para o tema ainda no tivesse alcanado a importncia que parece ter ganhado
posteriormente, com a consolidao dos regimes democrticos na Europa ocidental e nos EUA, de
um lado, e, do outro, com a trgica experincia das duas guerras mundiais, do totalitarismo, do
Holocausto e da ameaa nuclear durante a Guerra Fria. No exagerado dizer, e disso que tratarei
aqui, que o sentido da violncia uma funo da expanso da sensibilidade moral que lhe define
esse mesmo sentido. O que parece ser uma tautologia no o , pois que a violncia se torna, nas
democracias contemporneas, uma forma central de acusao social.
do sculo XX, interpretado como ineficaz e contraproducente, mas, raramente, como moralmente
reprovvel. O que na violncia interpessoal ou intergrupal produzia maior reao moral era o que j
estava sendo criminalizado na lei. O conflito podia (ou at mesmo devia) incorporar o recurso
violncia como deciso racional, sob forte emoo ou justificadamente em defesa da honra, de ideais
ou da prpria vida. A lei atenuava, em toda parte, esses casos. Mas, foi o reforo da violncia estatal que
permitiu no s a criminalizao da violncia privada como tambm um fortalecimento sem
precedentes da capacidade de destruio em massa do Estado Moderno as duas coisas no podem ser
separadas, embora uma tenda a ocultar a outra, como chamou a ateno Anthony Giddens (1990).
Para Weber, cuja sobriedade terica reconhecidamente antinormativa, a violncia s se
torna um problema com a expanso do mercado e do capitalismo. Para ele, o princpio do
mercado puro antagnico ao pragma da violncia o princpio puro do mercado , nesse
sentido, justamente o contrrio do ethos guerreiro.
Por isso mesmo, preciso que a violncia fique contida no Estado e que o ethos guerreiro
fique reservado e contido, exclusivamente, nas foras armadas. Mas, mesmo quando se
desenvolveu plenamente o monoplio legtimo da violncia pelo Estado, o emprego privado da
violncia fsica continuou sendo uma possibilidade de escolha legtima para a resoluo de
conflitos interpessoais ou intergrupais, ainda que fora da lei. J o recurso violncia para fins
polticos passou a buscar justificao ideolgica, pleitear a sua legitimidade ou negar ao Estado
que a criminaliza legitimidade ltima para faz-lo. Do mesmo modo, a violncia estatal e as
guerras tornaram-se tambm objeto de disputa de legitimidade. Este o ponto mais conhecido e
mais debatido sobre a violncia desde o fim da ltima Grande Guerra.
Quantum de violncias
violncia em um sentido negativo. O significado de violncia no lhes foi anterior, mas foi sendo
produzido medida que tais prticas foram acompanhando o sentido de uma negatividade
crescente das guerras e do uso at ento natural e legtimo da guerra e da resoluo de conflitos
pela fora. A questo moral ento disputada no era sobre o emprego da violncia: era sobre quem
tomara primeiro a iniciativa de atacar o outro ou sobre a justificativa desse ataque. Era a iniciativa
da ruptura que passava a ganhar sentido negativo, preparando a passagem semntica para uma
definio da violncia como agresso unilateral.
A difuso do sentido de violncia para um nmero cada vez maior de aes e
comportamentos acompanha o mesmo processo civilizatrio que se definiu como de diminuio
da violncia. Nesse aspecto, e paradoxalmente, ao contrrio do argumento de Elias, hoje, h mais
violncia que no passado, simplesmente porque hoje h muito mais aes e prticas interpretadas
ou rejeitadas moralmente como violncia do que no passado. Como grande parte do que
considerado socialmente violncia passou a ser, na modernidade, criminalizado pelo Estado
(detentor legtimo do monoplio do uso da violncia), basta comparar os cdigos penais de um ou
dois sculos atrs com os de hoje para se verificar que, hoje, h muito mais violncia que no
passado. No por acaso que as vrias histrias da violncia publicadas at agora, como a de Jean-
Claude Chesnais (1986), a de Ted Gurr (1989), a de Spierenburg (2008), a de Steven Pinker (2012)
unnimes em reconhecer o declnio da violncia na modernidade tratam unicamente de
homicdios, e, geralmente, abstraindo-os de guerras, revolues e regimes totalitrios. Sinisa
Malesevic, que publicou, recentemente, um importante livro sobre o tema, Sociology of War and
Violence (2010), chama a ateno para os paradoxos envolvidos nos argumentos e para as evidncias
empricas e historiogrficas que contrariam, inclusive, parte das teses sobre o processo civilizatrio
defendidas por Elias. Argumentos ainda mais speros so sustentados contra a tese do declnio da
violncia na modernidade, por socilogos reconhecidos internacionalmente, como Zygmunt
Bauman (1998) e Michael Mann (2004). Para eles, o genocdio, por exemplo, um produto direto
de condies que s passaram a existir na modernidade.
Trs dossis publicados nos ltimos anos buscam, pela primeira vez de forma sistemtica,
enfrentar a questo da possibilidade de uma teoria social da violncia, com base em contribuies
de autores que publicaram livros sobre o tema nos anos recentes. Um nmero especial do
International Journal of Conflict and Violence, de 2009, rene sete artigos de destacados socilogos
em torno da questo: possvel uma teoria geral da violncia?. No mesmo ano de 2013, dois
nmeros especiais, um da Current Sociology, publicao oficial da International Sociological
Association, e outro do European Journal of Social Theory, dedicaram-se a indagar sobre a
possibilidade de a violncia vir a ocupar um dos principais tpicos da teoria social contempornea.
A criminalizao da violncia
Aqui, enfrentamos um dos problemas mais rduos da teoria social: saber se todos os
participantes que so competentes na interao o so tambm no plano das relaes sociais
estabilizadas sob dominao legtima. E, finalmente, saber se o fato de ser legtima retira
dessa dominao qualquer contedo de violncia, tornando-a consensualmente aceita.
O modo pelo qual se lida com esses problemas conceituais que envolvem a violncia definir
o rumo que a teoria ir percorrer, se aceitar conformar-se a um sentido estrito para o termo, no
limite extremo inferior restringindo-o agresso fsica intencional (a outros ou a si), tratando-a
como ao social e, portanto, partilhando com o processo de incriminao a busca de seu sujeito
como um indivduo ou um grupo tomado em si mesmo. Essa direo obrigar a teoria a distinguir
entre conflito e violncia e tambm a distinguir poder e violncia, criminalizando todas as formas
de violncia, exceto a violncia legtima do Estado no controle interno e na defesa externa da
sociedade. Ou se, no outro limite extremo, preferir pr a violncia nas relaes sociais
estruturadas ou estabilizadas, de modo que a prpria legitimidade da dominao caia sob o
mesmo influxo argumentativo que envolve e iguala opresso, coero e agresso postos como
condio de reproduo da estrutura social que, por se ocultar na ideologia que fundamenta o
direito e o Estado, exclui qualquer legitimidade aos demais e possveis e potenciais portadores da
violncia. Essa direo obrigar a teoria a recusar a atribuio de um sentido estrito ao termo
violncia e a abord-lo de um modo to abrangente que o tornar incapaz de ser criminalizado,
seja como estrutura, seja como agncia e rebelio. Entre os dois, no plano da interao face a face,
restringe-se o conceito ao sentido da agresso fsica, contingente ou organizada, mas se atenua a
dificuldade quanto legitimao da violncia, tomando como unidade de anlise no mais o
indivduo, mas as reaes interativas sob determinados contextos, retirando dele o seu potencial
polissmico. Essa direo tratar a coercitividade das relaes sociais estruturadas como suaves
se comparadas violncia como agresso fsica na interao face a face.
A disputa do conceito
vantagem de evitar os percalos que o significado mais abrangente tem representado para a
pesquisa emprica nas cincias sociais. Ao faz-lo, entretanto, sustenta-se que no h equivalncia
entre os conceitos de conflito e de violncia. Ora, que o sentido dos dois termos no seja o mesmo,
j se sabia. Mas, aqui, a questo outra: trata-se de negar a equivalncia de grandezas, j que, para
ele, os dois conceitos no s no so equivalentes como at mesmo se opem, provendo de duas
lgicas distintas, inteiramente contrrias.
Ele afirma que preciso reconhecer a necessidade de um novo paradigma da violncia,
considerando as transformaes sociais, econmicas, polticas e culturais ocorridas mundialmente,
principalmente aps os anos 1970 do sculo XX. O Estado contemporneo estaria perdendo cada
vez mais (se que alguma vez o teve completamente) o monoplio legtimo do recurso violncia.
A violncia como recurso poltico, que, para ele, j havia perdido legitimidade na experincia social
democrtica, estaria refluindo, agora, em seu sentido extremo, para o terrorismo, o crime
organizado, as rebelies juvenis impulsionadas pelo dio difuso e pelo ressentimento e para a
delinquncia cotidiana. Uma violncia sem sujeito ou aniquiladora do sujeito.
Para sustentar sua posio, ele carrega a mo em uma definio universalista e tpico-ideal
de violncia como uma violncia sem limites e sem fim, violncia pura, incompreensvel, violncia
excessiva, incapaz de justificao para melhor contrapor a um conceito de conflito que , ao
contrrio, matizado, neutralizado e atenuado tpico-idealmente, muito prximo da noo de
competio como processo social. evidente que assim como o assassinato encerra uma relao
social, ao lhe pr fim, tambm a violncia que aniquila o outro extermina o conflito. Mas, e a
violncia que no pe fim ao outro ou que no extermina o conflito? Essa violncia se ope ao
conflito ou apenas uma de suas formas? Por que a violncia dissolveria necessariamente o
conflito se muitos conflitos dependem de algum grau de violncia para se desenvolverem? Nem
todo conflito manifesta-se como violncia, mas so muitas as formas de violncia que cabem no
conceito sociolgico de conflito, j que a violncia no apenas ao, ou ao unilateral, mas
relao social, na qual so construdas as posies de perpetrador e vtima, o que vem a constitu-
las em uma unidade de anlise. Isolar completamente a violncia do conflito s possvel se
fixarmos a violncia em seu extremo, no terror absolutamente unilateral e incompreensvel. Por
que fixar o conceito a, por que torn-lo to extraordinrio?
Toda a originalidade da argumentao de Wieviorka est baseada na oposio entre a
violncia coletiva prpria sociedade industrial, que poderia emergir do conflito social
estruturado (a luta de classes, por exemplo), e a violncia urbana, que nasce da desestruturao
do conflito coletivo entre capital e trabalho a partir do processo de desindustrializao dos anos
1970, dando margem ao surgimento do terrorismo de extrema esquerda e, depois, s rebelies
juvenis e delinquncia difusa dos anos 1980 e 1990, bem como ao reforo direitista do racismo.
esta segunda forma de violncia, difusa e radical, que desconhece a negociao ou o acordo que
interessa ao autor e o faz propor as hipteses que desenvolve em seu livro, sob o desafio de um
novo paradigma da violncia. tambm este novo tipo de violncia, e as novas formas de
terrorismo que crescem no sculo XXI, que parecem interessar atual emergncia de estudos
tericos sobre a violncia nos ltimos anos.
Para desenvolver a anlise da violncia sob o novo paradigma, Wieviorka v-se obrigado a
abstrair a violncia das relaes sociais estruturadas ou da interao social face a face para situ-
la nesses indivduos extremados, nessas subjetividades antissociais, tratadas tpico-idealmente
como antissujeitos, no sujeitos, sujeitos inacabados. Ser essa a melhor forma de compreender
quem no , ou no pde ser, ou no quer ser sujeito desse tipo de mundo? A unilateralidade fica
evidente quando se pergunta se no haveria violncia na produo do sujeito violento ou, para
usar o meu termo, se possvel pensar sujeitos violentos como no sujeitos ou antissujeitos sem
recair no mesmo processo social que produz a sujeio criminal (MISSE, 1999). A dose normativa,
nesse caso, a meu ver, ficou muito alta.
Em conferncia recente na Universidade de Braslia, publicada no mais recente nmero de
Sociedade e Estado, Wieviorka (2015) reconhece o perigo essencialista de sua tipologia de sujeitos
e antissujeitos e se move em uma direo atenuadora ao enfatizar os processos de subjetivao e
dessubjetivao. Ao faz-lo, entretanto, no cuida de abandonar alguns de seus pressupostos,
obrigando-se a permanecer no mesmo circuito argumentativo de prs e contras que levou Randall
Collins a critic-lo em artigo publicado h alguns anos (2011).
Coincidentemente ou no, mais ou menos pela mesma poca, comearam a aparecer vrios
estudos, no mundo anglo-saxo, propondo abordagens tericas para a incorporao da violncia
na agenda de tpicos de tratamento sistemtico da teoria social. Alguns deles se inspiram em Carl
Schmitt e mantm vivo o debate sobre o carter essencialmente poltico das relaes entre conflito
social e violncia, de uma maneira que se afasta bastante das teses de Wieviorka, especialmente
sobre a centralidade da subjetividade na definio da violncia para a teoria social. Outros
buscam, como o caso de Randall Collins (2008), desenvolver sua abordagem no plano da
microssociologia e da interao face a face.
Collins, como Wieviorka, tem por objeto a violncia fsica, direta, interpessoal. Tambm
a distingue do conflito, que um conceito mais abrangente, mas considera que toda violncia
uma forma de conflito, e haveria gradaes de situao que levariam o conflito a se tornar
um confronto violento, embora no necessria ou automaticamente. Diferentemente de
Wieviorka, entretanto, sua abordagem no parte do sujeito ou do ator, mas da interao, que
ganha, assim, autonomia frente aos determinismos sociais e culturais que produziriam um
indivduo violento. Critica, assim, o que chama de mitos sobre a violncia, geralmente,
reproduzidos pela mdia de entretenimento, como pensar que a luta contagiosa, envolvendo
crescentemente outras pessoas. Seu principal argumento que, ao contrrio, escolher a
violncia no algo fcil, mas difcil, e as pessoas tendem a se afastar quando ocorre uma luta
ao invs de entrar nela, todos lutando contra todos. A exceo seria somente quando, na
multido, h dois grupos de identidade antagonistas, como nas torcidas de futebol.
Outro mito o de que lutas ou combates demoram a acabar, duram muito. Ao contrrio,
elas duram pouco, so curtas, duram segundos no mximo poucos minutos ao contrrio do
que aparece em filmes, com lutas interminveis. A imensa maioria de assassinatos e assaltos com
armas letais consiste de uma ou mais pessoas atacando rapidamente uma pessoa desarmada. As
excees ocorrem quando a luta circunscrita, no chega a ser sria ou se sabe que h salvaguardas
que limitam seu agravamento, como nas brigas entre crianas ou quando h grande disparidade
de foras entre os lados, mas, nesses casos, no h luta, e sim massacre ou punio.
E ainda tambm como Wieviorka, Collins no aceita incluir nem o Estado nem a violncia
simblica de Bourdieu em seu objeto, considerando-o um recurso retrico para tratar de um outro
universo de questes. Critica Bourdieu por no distinguir o que prprio das situaes violentas
(que so raras) que envolvem medo, tenso e at a emergncia de pnico, das que envolvem
violncia simblica, que so moderadas, livres de medo, sem confronto, altamente repetitivas, sem
contingncias situacionais e que nada tm de similar com a dinmica dos confrontos violentos.
Aqui, mais uma vez, o recorte do objeto define o vis da construo conceitual.
Dizer que a violncia difcil e no fcil de acontecer s tem sentido quando se trata
da violncia no conflito interpessoal. Mesmo assim, entra em conflito com o que vem
acontecendo na Amrica Latina desde os anos 1980 ou com o que a frica vem
experimentando antes e depois do processo de descolonizao. Nesse sentido, parece que a
abordagem microssociolgica de Collins, ao abstrair a dimenso cultural da violncia e os
processos de aprendizagem que atenuam, agravam ou justificam o recurso violncia seja
em conflitos interpessoais, seja em conflitos coletivos, parece estar etnocentricamente
construda para sociedades pacificadas no sentido eliasiano, isto , aquelas em que a
internalizao do autocontrole foi um processo, em geral, bem-sucedido e complementado
plenamente, para as excees, pelo monoplio legtimo da violncia pelo Estado. No
entanto, so essas mesmas sociedades as que empreenderam no passado ou empreendem,
atualmente, os principais conflitos violentos, as guerras em escala global.
coletiva teria o efeito de ocult-lo e, por conseguinte, de produzir na anlise um vis ideolgico,
cujo efeito poderia tambm ser interpretado como uma forma de violncia. Esse argumento, que
vincula a prpria cincia social com a violncia, desenvolvido, principalmente, pelo socilogo
holands Willem Schinkel em seu importante e aqui j citado livro Aspects of Violence: A
Critical Theory, publicado em 2010.
Aps examinar com cuidadosa erudio e embasamento terico o conjunto de problemas
que a construo de um conceito de violncia impe teoria social, Schinkel prope-se a oferecer
uma alternativa. Primeiramente, defende que a violncia, como o pato/lebre de Wittgenstein, no
tem uma nica dimenso, mas vrias. Esses vrios aspectos ou formas da violncia ocultam-se
mutuamente; quando um emerge, os outros se escondem, e no possvel ver todos os aspectos
da violncia ao mesmo tempo. Por isso, prope o conceito de trias violentia para abordar aquilo
que ele v como sendo o nico horizonte ontolgico comum a todos esses aspectos: a violncia
como reduo do ser. Mesmo assim, no aceita que essa construo se apoie em pressupostos
humanistas-iluministas que, a seu ver, ilusionam a anlise com o compromisso implcito de que
a violncia possa um dia ter fim. No possvel resumir aqui a original contribuio de Shinkel.
Entretanto, o que fica patente de qualquer modo em seu extraordinrio esforo terico-crtico
que ele reconhece que o conceito de violncia na teoria social incorpora, necessariamente, alm
de um significado estendido, que abarca a violncia do Estado e a estrutura social a potestas ,
tal como j antecipara Johann Galtung (2004) h muitos anos, a questo de a cincia social estar
a performar tambm a violncia na linguagem e nas opes conceituais e de pesquisa que pratica.
Seja como for, no creio que ns, aqui no Brasil, estejamos efetivamente engajados nessa
conjuntura terica que procura entronizar a violncia como um dos principais tpicos da teoria
social contempornea. Os poucos trabalhos tericos produzidos entre ns nessa rea temtica
esto, de modo geral, sob a influncia de Bourdieu, Elias e Foucault, mas as pesquisas empricas
seguem tratando a violncia no seu sentido de senso comum, sem maiores problematizaes e
quase sem referncias a essa literatura mais recente, que est problematizando o campo. Autores
como Machado da Silva (1993), Maria Stela Grossi Porto (1999) e eu mesmo temos preferido
cada um sua maneira tratar a violncia no como um conceito, mas como representao
social, como parte do objeto. uma soluo pragmtica, sem dvida, mas que tem a vantagem
de no buscar fechar em um significado unvoco ou naturalizado os usos da violncia na
pesquisa emprica. No entanto, a enorme presena da violncia no cotidiano das cidades
brasileiras tende a carrear o sentido de volta ao senso comum, obrigando, muitas vezes, o
pesquisador a ginsticas pouco tericas para se fazer entender.
Em uma linha que pode encontrar afinidade com as questes de Willem Schinkel, tenho
sustentado no um conceito de violncia, que acho que no ser, de qualquer modo, muito til
para a pesquisa emprica, mas o reconhecimento do carter mais performtico que constatativo
dos usos que dela so feitos. Prefiro insistir no conceito de acumulao social da violncia por
meio do qual a violncia, sem deixar de ser uma representao social, comparece em seu triplo
sentido de prticas representadas e acusadas como de violncia interpessoal, de violncia estatal e
de coercitividade da estrutura social, podendo vir a constituir uma causalidade circular
acumulativa, pelos agentes sociais e prticas que desempenham, de tempos em tempos, como
procurei mostrar em meus estudos sobre o Rio de Janeiro no sculo XX. Evidentemente, as
prticas sociais representadas univocamente como violncia podem ser desdobradas em escalas
de gravidade e em conceitos menos polissmicos, como conflito social, controle social,
desigualdade social, agresso fsica, guerra e assim por diante, sem terem que, necessariamente,
submeter-se a uma concepo nica e consensual do que seja violncia.
Quando disse, na abertura deste texto, que suspeitava que a violncia um conceito moderno
e ainda em construo e que no fazia sentido buscar o seu significado no passado clssico, quis
chamar a ateno para o que h de inacabado e ideolgico nas tentativas de se capturar um sentido
unvoco ou universal para a violncia, especialmente quando esse sentido fundamentado
normativamente. Entretanto, pode-se constatar que o processo pelo qual vem sendo discutida nos
ltimos anos a questo da violncia na teoria social aponta para uma radicalizao do conceito,
seja como a feita por Wieviorka ou Collins, seja tal como na proposta, por exemplo, de Schinkel.
Seguindo, at certo ponto, uma linha filosfica pragmtica contempornea, que busca interligar
Wittgenstein e Heidegger, ele prope um conceito forte e abrangente de violncia como reduo
do ser, o que lhe d a forma de uma escala que vai da coero positiva e inevitvel prpria ao
processo de socializao interao social e ruptura de resistncias mudana social at, no
limite, aos aspectos mais negativos e incompreensveis da crueldade humana. A seleo de uma
dimenso, como em qualquer interao social, deixa todas as outras dimenses possveis nos
bastidores. O risco que corre a cincia social, ao preferir uma dimenso a outra do conceito nessa
escala, o de participar da violncia seja no plano normativo da escolha, seja nos efeitos de
violncia que pode produzir ou justificar.
Encerro este artigo advertindo que nele procurei, exclusivamente, apresentar os profundos
dilemas envolvidos na temtica contempornea da violncia e os desafios que se impem ao seu
tratamento na teoria social contempornea. Pretendo prosseguir o exame dessas questes em
meus prximos trabalhos.
Notas
1
Uma verso prvia deste artigo foi apresentada como conferncia para promoo do autor a professor titular do
Departamento de Sociologia da UFRJ em 12 de junho de 2015.
2
O primeiro a chamar a ateno para os paradoxos envolvidos nesse exerccio foi, seguramente, Yves Michaud, em vrios
de seus livros. Ver Michaud (2012).
3
Sobre a diferena entre enunciados constatativos e performativos, ver Austin (1990).
Referncias