Bakhtin, M - 2006 - Marxismo e Filosofia Da Linguagem
Bakhtin, M - 2006 - Marxismo e Filosofia Da Linguagem
Bakhtin, M - 2006 - Marxismo e Filosofia Da Linguagem
Iamurikuma:
Msica, Mito e Ritual
entre os Wauja do Alto Xingu
2005
2
Iamurikuma:
Msica, Mito e Ritual
entre os Wauja do Alto Xingu
MARO DE 2005
Desenho da capa: Ritual de Iamurikuma feito por Ajoukuma Waur.
3
SUMRIO
Resumo/Abstract 4
Agradecimentos 5
Nota sobre a Lngua Wauja 7
Nota preliminar 8
Cap. I
O trabalho de Campo 14
Cap. II
O Alto Xingu 34
O Sistema Xinguano 37
Pesquisas sobre msica no Alto Xingu 43
Os Wauja 49
Cosmologia e xamanismo: da doena cura 64
Biografia dos principais informantes 83
Cap. III
O complexo Iamurikuma- Kawok 96
Complexo das flautas sagradas 97
Aunaki, mito 102
Uma abordagem da mitologia: flautas, transformaes e 109
perspectivismo
Aunaki de Iamurikuma 122
Cap. IV
Etnografia do ritual de Iamurikuma 143
Cap. V
Ritual: coreografia, movimentao, adensamento 228
Msicas Kanup 238
Sobre anlise musical 242
Repertrios feminino e masculino 247
Termos de anlise 250
Anlise das peas 252
Comentrios sobre as anlises 279
Bibliografia 309
Anexos 327
RESUMO
ABSTRACT
AGRADECIMENTOS
mulher de muita fibra, a quem serei sempre grata. A Kaomo, meu pai, homem
gentil e carinhoso, sempre atento aos meus pedidos e questionamentos.
Tupanumak, meu irmo tradutor, a quem devo muito do que ser exposto
nesta tese. A lista das pessoas a quem gostaria de agradecer envolvidas neste
trabalho seria muito grande para caber nos limites que aqui se impe.
No entanto, no posso deixar de lembrar de minhas amigas fiis, Mrcia
Mathias e Ligia Mathias de Oliveira, pela retaguarda que me deram nos meses
em que me ausentei das atividades de me e dona-de-casa. A minha me, que
tambm deu suporte s minhas ausncias, alm do incentivo e das rezas. A
minha filha, Jlia, parceira de campo, companheira para toda hora. E muito
especialmente quero agradecer a meu companheiro de campo, de vida e de
sonhos, Accio Tadeu de Camargo Piedade, cuja seriedade como pesquisador
sempre foi um modelo para mim. Pude contar com sua ajuda tanto nas
pequenas coisas do cotidiano como na busca de solues para os mais difceis
impasses tericos musicais e antropolgicos.
>|<
7
-pai estativo
-neke iminente
-ti pequeno
-to- cilndrico
-a-, -ta-, -ka, -tsa causativo
-nau coletivo
-we futuro
-wiu passado
-naku no lugar
-taku lugar do
-tua frustrativo
-ga locativo
1
Os Wauja so comumente referidos na bibliografia como Aur, Uaur, ou Waur.
Segundo eles, estes nomes so incorretos e resultam de pronncia errada. Como eles
afirmam que querem ser conhecidos pelo seu nome verdadeiro, que Wauja, adoto
esta grafia.
2
De acordo com Joan Richards, lingista do Summer Institute of Linguistics (SIL) que
estuda os Wauja desde o incio dos anos 60, no haveria a necessidade da letra o ser
sublinhada o, j que no h nesta lngua o som o como em portugus. Contudo, os
rapazes Wauja que estudam e sistematizam junto com ela a grafia desta lngua
argumentaram que, como o som diferente do o em portugus e eles tambm so
alfabetizados em portugus, seria melhor utilizar o. Sigo, portanto, esta diretriz.
8
Nota preliminar
>|<
3
Ritual de kawok um rito masculino, de abrangncia xinguana, que carrega forte
interdio visual para as mulheres. O Iamurikuma um ritual feminino, tambm de
abrangncia xinguana, e ambos sero objeto de anlise mais detalhada no decorrer da
tese.
4
Esta relao entre as msicas de flauta e os repertrios vocais femininos j foi
apontada por Menezes Bastos -de acordo com seus informantes Kamayur-
apresentando os dois repertrios -no caso as flautas yakui e os cantos de amurikum-
como complementares (1999[1978]:164). Basso tambm apresenta uma correlao
estreita entre o repertrio de yamurikumalu e as flautas kagutu para os Kalapalo
(1987b:163-176). No entanto, em nenhum destes casos foi apresentada alguma anlise
musicolgica que desse suporte s observaes.
5
Seguindo aqui de perto as pistas deixadas por Lagrou, (1998), McCallum (1994) e
Overing, (1986).
10
6
H anlises semelhantes em Agostinho (1970) e Serra (2004).
7
Segundo Gregor (1985:103), as mulheres Mehinaku relataram muitos pesadelos
envolvendo agresses fsicas sofridas por elas e impostas pelos homens. De acordo com
sua anlise, isto mostra o quanto este medo permeia a vida consciente e inconsciente
das mulheres Mehinaku. Se considerarmos que as interdies, as presses e as
punies sofridas pelas mulheres xinguanas so basicamente as mesmas em todas as
aldeias, pode-se generalizar tais concluses.
8
Esta hiptese est baseada em amplo corpus mitlogico xinguano e tambm em
observaes cotidianas na aldeia. Alguns dos mitos relacionados ao tema da
menstruao esto includos nesta dissertao.
11
9
Sobre esta relao entre mito e rito, ver Menezes Bastos (1999a). Sobre tempo
cosmolgico e cronolgico, ver Leach (1974: 191-203).
13
CAPTULO I
10
Esta coleo, realizada conjuntamente com meu colega de mestrado Aristteles
Barcelos Neto, composta de 282 peas e faz parte do acervo do MAE/UFBA sob o ttulo
Coleo Aristteles Barcelos e Maria Ignez Mello.
15
conta de que Kaomo seria um informante chave para toda a pesquisa, pois
um dos poucos que domina todo o complexo iamurikuma-kawok.
Depois deste primeiro contato, outros se seguiram, porm, desta vez,
fora do Xingu. Em novembro do mesmo ano, a convite dos Wauja, fui me
encontrar com um grupo de doze homens e uma mulher Wauja em uma feira
de artesanato da qual iriam participar em Belo Horizonte. Eles haviam sido
contratados para construir uma casa "tpica" xinguana no espao de
exposies, e tambm para participar da feira danando, cantando e vendendo
seu artesanato.
Um outro encontro se deu em So Jos do Rio Preto, no estado de So
Paulo, por ocasio da Semana do ndio de 1999. Desta vez, dezessete pessoas
Wauja - contando agora quatro moas - foram contratados pelo SESC para
procederem da mesma forma que em Belo Horizonte, ou seja, construir uma
casa, cantar e danar para os visitantes do espao de exposies. Estes dois
encontros tiveram uma durao de aproximadamente dez dias cada11.
Em outubro de 2000, hospedei em minha casa por quinze dias um casal
Wauja e seu filho de um ano. O rapaz, Tupanumak, havia sido meu tradutor
na aldeia e estava procurando alguma forma de desenvolver projetos que
revertessem em favor de seu povo. Assim, nesta sua estadia em Florianpolis,
iniciamos a redao de um projeto visando realizar um velho desejo destes
ndios: uma viagem aldeia dos ndios Bakair, fora dos limites da Terra
Indgena do Xingu, para visitar seus antigos vizinhos12.
J iniciando minha pesquisa de campo do doutorado, em agosto de
2001, no sem antes passar por muita dificuldade para levantar os recursos
necessrios para uma viagem to cara, cheguei aldeia Piulaga. Desta vez, fui
em famlia, juntamente com meu companheiro Accio, tambm pesquisador e
antroplogo, e nossa filha Jlia, na poca com nove anos de idade.
Permanecemos todo o segundo semestre de 2001 entre os Wauja, perodo em
que ocorreram muitos rituais, dentre os quais destaco o do pequi, o de kawok,
e o de iamurikuma. Esta etapa durou cinco meses.
11
Estes encontros foram ocasies excelentes para poder observar algumas questes
relativas ao contato dos Wauja com a vida urbana. Em Mello (2003), desenvolvo
algumas idias, relacionando a cosmologia s experincias deste contato.
12
Esta viagem deu-se em junho de 2002 com o apoio da Funai atravs do Museu do
ndio/RJ. A etnografia deste encontro tema de um trabalho em elaborao.
16
Ter voltado para o campo com minha famlia representou uma grande
mudana na relao dos Wauja comigo. At ento, durante todo o tempo em
que estive entre eles, sempre fui questionada por dizer que era casada e, ainda
assim, permanecer tanto tempo longe do marido. Para alguns, no parecia
razovel que uma mulher ficasse tanto tempo sem namorar, enquanto que,
para outros, havia dvida sobre a veracidade da minha identidade de mulher
casada e com uma filha, dvida que era por vezes assim verbalizada: ser que
voc tem marido mesmo? Ser que tem filha de verdade?. Sendo assim, ter
voltado para a aldeia e ter ido com minha famlia resolveu esta dvida e
promoveu um aprofundamento nos laos com as pessoas junto s quais
pesquisei.
Estar em famlia no campo me fez perceber o quanto importante, para
a prpria qualidade dos dados, que as pessoas com as quais nos relacionamos
possam ter meios de nos avaliar. Ou seja, que possam tambm observar nosso
comportamento e freqentar um pouco de nossa intimidade, desta forma
construindo uma imagem mais ampliada e realista a nosso respeito. Creio que
a oportunidade dos Wauja de terem visto como me relaciono com minha famlia
e de terem podido tirar melhores concluses no s a meu respeito, mas
tambm daqueles com quem vivo, produziu um salto positivo na qualidade de
nossas relaes: afinal, eles tambm poderiam pesquisar um pouco, poderiam
matar algumas curiosidades que tm a respeito de como ns, kajaopa13,
vivemos.
No entanto, sei que esta preocupao em estabelecer uma relao de
mo dupla com as pessoas que pesquisamos no unnime entre os
pesquisadores. Muitos fogem da responsabilidade que uma relao deste tipo
coloca: sabendo-se em uma posio economicamente melhor que seu objeto
de pesquisa, muitos procuram no se fazer acessveis quando esto na cidade,
ou mesmo ignoram qualquer pleito que parta dos ndios com medo de se verem
espoliados, de se sentirem usados ou de estarem fazendo um papel
assistencialista que no lhes cabe.
No existe uma frmula ou cartilha que ensine ao pesquisador o quanto
ele deve dar e o quanto pode esperar receber, ou, a partir de quando e quanto
13
Kajaopa a palavra Wauja, de origem tupi, para designar os caraba, os no ndios.
17
14
A idia de uma busca por relaes mais simtricas entre pesquisador e pesquisado
densamente tratada por Cardoso de Oliveira (1998). Tambm se encontra em Schapiro
& Sica (1984) uma discusso semelhante, tratando da perspectiva hermenutica na
pesquisa antropolgica. A antropologia ps-moderna mostra como tal postura tem
implicaes diretas sobre o texto etnogrfico, fazendo com que a etnografia seja mais
vvida e acessvel atravs das vozes dos nativos, tornando presentes as relaes de
poder, imprevistos e a subjetividade (Clifford, 1988; Crapanzano, 1992; Marcus &
Fisher, 1986). Como nos lembram, em diferentes momentos, D. Tedlock (1983) e
Stoller (1989), buscar este tipo de aproximao com os nativos significa tambm tornar
a etnografia mais cientfica, j que expe de forma mais fiel a realidade do trabalho de
campo.
15
Freqentemente os Wauja se hospedam na casa de minha me em So Paulo,
ocasies em que levam artesanato para vender.
16
Tal o caso do caminho dialgico na escrita antropolgica, conforme apresentado
por D. Tedlock (1986), no qual so ressaltados aspectos que, na tradio analgica,
so normalmente ocultados tradio aquela da etnografia clssica, onde a voz do
nativo sistematicamente subtrada e cuja forma dominante o monlogo.
18
um dos outros nomes desta minha av. Accio ganhou o nome de Wajai17, e
foi inserido em uma grande rede de relaes de afinidade, passando a ter, a
partir de ento, sogro, muitos cunhados e alguns sobrinhos18.
Um outro ponto importante a ser esclarecido sobre as condies do
trabalho de campo refere-se ao fato de que, em minha primeira estadia na
aldeia Piulaga, fui informada de que no teria permisso para pesquisar as
flautas kawok pelo fato de ser mulher. O material de que dispus para minhas
transcries e anlises da msica destas flautas na dissertao foi proveniente
de uma fita cassete gravada pelos prprios Wauja em um ritual ocorrido em
1997, e que me foi dada de presente por eles, como uma espcie de consolo
por no ter podido ver as flautas sagradas. Como a interdio visual das flautas
kawokati19 no to estrita quanto a das flautas kawok, meu pai, Kaomo,
tocou para mim uma srie de msicas de kawok, porm executadas na
kawokati. No mesmo dia em que fiz estas gravaes, Atamai, o chefe da
aldeia e dono da casa em que eu vivia, sugeriu que eu voltasse uma outra vez
acompanhada de meu marido para que ele gravasse as flautas. Apesar do chefe
desconhecer o que meu companheiro fazia profissionalmente, sua sugesto
veio muito a calhar: alm de ser antroplogo, ele tambm pesquisava a msica
indgena amaznica, com especial interesse na msica no complexo das flautas
sagradas, inicialmente entre os Tukano no Alto Rio Negro (Piedade, 1997,
1999).
Desta forma, a sugesto de Atamai foi providencial para que
organizssemos nossas pesquisas de doutoramento em conjunto, o que nos
pareceu abrir um novo campo de possibilidades na troca de dados etnogrficos.
De imediato, surge a questo de gnero como um aspecto geral de nossas
17
Ulupukumalu quer dizer urubu rei + superlativo feminino, Mawanalu, sem brao +
feminino e Wajai o nome de um peixe.
18
curioso notar que minha filha e eu tenhamos recebido nomes de uma mesma
pessoa visto que, na lgica do sistema onomstico local, os nomes so passados por
gerao alternada. No entanto, credito esta exceo ao fato de no pertencermos
efetivamente sociedade Wauja, no levando a maiores conseqncias futuras.
19
Kawokati uma pequena flauta kawok (ti sufixo diminutivo em Wauja, podendo
tambm indicar uma criana ou um filho). utilizada em alguns rituais de cura e para
aprendizagem da flauta maior, sendo que sua interdio visual para mulheres mais
branda; ou seja, se uma mulher olhar para um flautista tocando esta pequena flauta
poder ser recriminada, no ocorrendo maiores complicaes, como no caso das flautas
kawok.
19
20
Segundo Bellier (1993) e Obeler (1986), as mulheres etnlogas teriam certa
vantagem sobre os homens em campo, na medida em que podem circular entre as
mulheres com mais desenvoltura que os pesquisadores homens, ao mesmo tempo em
que tambm, por serem "estrangeiras", so tomadas como possveis interlocutoras dos
homens. Porm, como nos lembra Barbara Tedlock (1995), dentre as muitas estratgias
das mulheres antroplogas -tanto para serem aceitas no campo quanto para verem seu
trabalho reconhecido academicamente- est a de adotar uma postura de "homem
honorrio" que, ao final, as coloca no incmodo papel de "pseudo-homem", no
representando assim qualquer vantagem para o resultado final de seu trabalho. Devo
concordar com ambas as posies pois senti, em minha primeira estadia na aldeia, que
algumas mulheres me tratavam de maneira um tanto fria pelo fato de eu estar
freqentando a casa dos homens, espao que me foi liberado pelo chefe da aldeia
desde minha chegada. Ao mesmo tempo, apesar de estrangeira, no fui considerada
homem honorrio suficientemente para poder ver as flautas sagradas. J em meu
retorno, acompanhada de marido e filha, senti que essa frieza se dissipou e fui mais
bem aceita por todos. No entanto, o fato de ser mulher permitiu que eu circulasse com
mais desenvoltura tanto entre as rodas de homens quanto de mulheres, diferentemente
de meu companheiro, que sempre manteve certa evitao em relao aos grupos
femininos. Sobre questes de gnero que envolvem a pesquisa de campo feita por
mulheres, ver tambm Jackson (1986).
21
Na etnologia, pesquisas em casal no so to raras, como vemos nos exemplos de
Yolanda e Robert Murphy, Cristine e Stephen Hugh-Jones, Hlne e Pierre Clastres, para
nos mantermos apenas nas Terras Baixas da Amrica do Sul.
20
22
Assim que esta garota menstruou, ela desapareceu do convvio do grupo e ficou,
durante toda nossa estadia na aldeia, enclausurada em casa, como o costume. Para
ns isto foi um acontecimento normal, amplamente divulgado na etnografia xinguana.
Mas para Jlia, a ausncia forada e abrupta, bem como a impossibilidade de
reencontrar a amiga, foram impressionantes.
21
delas: entram onde querem, saem, voltam, comem em qualquer das casas,
fazem o que querem, incluindo experimentar o sexo e lidar com artefatos
perigosos. A pedagogia Wauja emprica, a preveno no aplicada. Somente
aps o acidente surge o discurso da moralidade.
Durante todo o tempo em que estive na aldeia Piulaga, me hospedei na
casa de Atamai. Ele vem representando, por muito tempo, a segunda chefia da
aldeia, ou seja, aquela que voltada para o mundo dos kajaopa, enquanto que
seu irmo mais velho, Iut, o chefe principal, aquele que conhece os rituais e
as prticas locais corretas. Esta dupla chefia comum atualmente em todo o
alto Xingu, mas uma questo sensvel entre os Wauja, que discutirei mais
adiante. Por hora, basta dizer que o chefe poltico, aquele que conduz as
decises, Atamai. Este senhor sempre demonstrou desconfiana de tudo que
viesse de fora, de qualquer novidade que envolvesse sadas de pessoas da
aldeia ou entrada de estrangeiros23. Creio que esta desconfiana se deve em
grande parte ao convvio estreito de Atamai com Orlando Villas Boas, durante
sua adolescncia e a longa permanncia do sertanista no Xingu.
Sem pretender diminuir a importncia dos irmos Villas Boas na regio,
creio que a engenharia indigenista (Menezes, 2001) empregada por eles
comea com uma seduo, mas acaba com um tipo de abandono (Ramos,
1995), pois se mantm um tom paternalista que excluiu sistematicamente as
opinies dos ndios sobre vrias questes. O prprio Atamai, em algumas de
nossas conversas, esboou um certo ressentimento em relao forma como
era tratado por Orlando que, segundo ele, sempre o tratou como se fosse uma
criana incompetente. O feito histrico dos irmos Villas Boas, para alm de sua
importncia para os povos xinguanos e para o cenrio indgena nacional,
merece hoje ser revisto sob uma perspectiva crtica. A desconstruo desta
histria pode revelar muito acerca da forma como vivem e pensam os
xinguanos. Desta forma, Atamai no agiria de forma diferente conosco e,
apesar de sua explcita simpatia por Jlia, durante todo o tempo senti sua
desconfiana pairando sobre ns.
Viviam cerca de vinte pessoas na casa de Atamai, entre filhas, genros e
netos, alm de sua esposa, Pakairu, uma mulher Trumai muito inteligente e
23
Ver outros dados sobre a biografia dos informantes ao final do Captulo II.
23
poliglota, e sua me, Kaun, a mulher mais velha da aldeia. Para tristeza de
Jlia, s havia uma menina pequena em nossa casa, as demais crianas eram
meninos, todos dispostos a provoc-la: afinal no sempre que se tem uma
menina kajaopa em casa para irritar. Eles davam n em seus cabelos ou
sumiam com suas canetinhas coloridas, um dos poucos entretenimentos de
Jlia na aldeia.
A casa de Atamai era a maior da aldeia. Construda de acordo com a
estrutura oval tpica das casas xinguana, com cerca de vinte e cinco metros de
comprimento, oito de altura, e uma largura de aproximadamente onze. Todas
as casas da aldeia tm apenas duas pequenas aberturas, uma de frente para a
outra, voltadas uma para o centro da aldeia e a outra para o fundo, local onde
as pessoas costumam cozinhar, ralar mandioca, ou passar o tempo sentadas
em famlia, fazendo pequenos trabalhos ou cuidando da aparncia pessoal,
como depilao, pintura corporal, corte de cabelo, entre outras coisas.
Assim que chegamos, nos alojaram em um dos setores da casa.
Tnhamos, portanto, um cantinho para ns. Apesar de no haver qualquer
diviso interna feita com paredes, cada setor da casa habitado por uma
famlia nuclear, ou seja, pai, me e filhos. Se houver algum tipo de divisria
porque h algum na recluso pubertria vivendo ali. Nesta casa, por ser a do
chefe, ficava instalado o rdio-amador e, para alimentar a bateria do rdio,
contavam com uma pequena placa de energia solar, todo este equipamento
pertencendo FUNASA, tendo sido emprestado aldeia.
24
Para uma abordagem de prticas envolvendo o roubo no Xingu e particularmente
sobre a perspectiva dada pelos mitos Suy a elas, ver Seeger (1993: 433-444).
25
Estes aspectos polticos do xamanismo sero discutidos no Captulo II.
25
26
No apresentarei a etnografia do kaumai nesta tese, mas em estudos futuros.
27
Praticamente todos os pesquisadores que estiveram na regio do Alto Xingu do
conta da importncia que as trocas e os pagamentos por objetos e servios assumem
nas relaes intra e intertribais, bem como entre ndios e no-ndios. No se trata de
entrega de meras mercadorias, mas uma troca de ddivas (Mauss, 2003[1925]:185-
314; Gregory, 1982). Este princpio amplamente empregado na economia xinguana, e
igualmente tematizado na mitologia, constituindo um importante aspecto da socialidade
local.
26
28
A palavra huluki tambm significa andorinha, animal que est no mito de origem
das trocas. Este mito relata o momento em que os animais resolveram adequar seus
timbres vocais ao seu tamanho e personalidade. Retomarei isto nos comentrios finais
da tese.
29
O conceito de liderana tomado aqui de emprstimo de uma terminologia utilizada
amplamente no discurso indigenista. Estes lderes, no entanto, no so
necessariamente aqueles que ocupam a posio de chefia em suas aldeias. Esta
categoria est muito mais ligada s relaes estabelecidas com o mundo dos brancos, o
que por vezes ignorado pelos indigenistas que os tomam por chefes em um sentido
amplo, gerando assim, certos constrangimentos e desequilbrios nas relaes sociais
locais.
30
A acumulao excessiva ou indevida mal vista e perigosa, pois aquele que
demonstra ganncia pode ser acusado de feitiaria e corre o risco de ser assassinado.
Galvo (1953), ao tratar dos sistemas de parentesco no Alto Xingu, j observa isto, que
parece ter um espectro amaznico (Clastres, 1978; Fausto, 2001).
27
difcil comear a trabalhar. Todo o material musical que fui registrando durante
o ritual de iamurikuma, que ocorreu entre catorze de agosto e um de novembro
de 2001, foi sendo checado com Kalupuku, a principal cantora desta festa, que
me forneceu valiosssimas explicaes sobre algumas canes. Posteriormente,
estas explicaes foram traduzidas para o portugus, assim como parte das
letras das canes transcritas. Ao final deste ciclo ritual, eu j contava com boa
parte do material registrado traduzido, faltando, logicamente, todo o trabalho
de gabinete, como transcrio musical e anlise.
Outros rituais tambm se sucederam nestes meses. Aps o florescimento
dos pequizeiros, assim que os frutos amadureceram, os Wauja deram incio
akinaakai, festa do pequi. Este ritual comeou em treze de outubro e
encerrou em dezoito de novembro de 2001. Neste nterim, acompanhamos
tambm outros dois rituais: kagapa e tankuwara31, cada um com durao de
apenas um dia. Estas duas festas foram patrocinadas pelo paj Itsautaku
durante o trabalho coletivo de cobertura de sua casa com sap, efetuado por
vrios homens da aldeia. O akinaakai de 2001, que foi parcialmente descrito
em Piedade (2004), ser comentado brevemente no final desta tese,
principalmente no que tange sociabilidade, relaes de gnero e causao de
cime relacionados ele.
Pude ainda observar o ambiente no interior das casas e as mulheres
durante as sesses de flauta kawok, interditas viso feminina, que se
sucederam em algumas tardes e noites de setembro e outubro, enquanto meu
companheiro fazia o registro destas performances.
Muitas vezes difcil para o etngrafo xinguanista diferenciar os
momentos rituais dos eventos que compe a vida cotidiana, visto que estas
duas esferas esto imbricadas uma na outra. Por exemplo, no ritual de kaumai,
ao longo de todo o perodo do luto (que pode durar por volta de um ano),
vrias atividades acontecem: o enterramento propriamente, a construo de
31
O ritual de kagapa mais conhecido regionalmente pelo nome Kamayur de
Tawurawn, no qual dois cantores posicionados no centro da aldeia e executando ua,
chocalho e tka, basto rtmico, cantam em unssono as canes kagapa, sendo que
um grupo de danarinos e danarinas, todos paramentados, danam e gritam ao redor
deste ncleo. No ritual de tankuwara, o conjunto de cinco clarinetes homnimo
executado por cinco homens, acompanhados na dana por jovens garotas, constituindo
um grupo que percorre a aldeia casa casa por vrias vezes. Ver descrio dos
instrumentos citados em Mello (1999:105-110).
28
uma cerca sobre a sepultura, a oferta de peixe e beij para os que trabalharam
nestas atividades, a preparao e entrega de polvilho aos patrocinadores do
ritual, etc. Contudo, tais atividades se confundem (aos olhos do etngrafo) com
as atividades cotidianas, pois pagamentos, trocas recprocas, pescarias,
produo de alimento, so todas atividades corriqueiras, mudando, dependendo
de cada caso, as motivaes por trs destas atividades32. Se parece fcil
identificar a semana em que acontece a festa33, o mesmo no se d com a
fase preliminar que antecede o evento. Muitas vezes, sem que o pesquisador
saiba, o ritual j est ocorrendo em sua fase preliminar. Todas estas atividades
esto inseridas numa estrutura de longa durao, caracterstica dos rituais
musicais xinguanos. Como veremos adiante, o ritual de iamurikuma que
presenciei tem uma projeo que remonta a fatos ocorridos h, no mnimo, dez
anos, e a durao das performances propriamente vinculadas a este ritual foi
de dois meses e meio. Como durante este perodo estavam acontecendo
simultaneamente outros dois rituais, o das flautas kawoka e o ritual do pequi,
era complexa a tarefa de distinguir onde acabava um e comeava outro. Tal
dificuldade acentuada pelo fato destes rituais serem dialgicos, ou seja,
provocaes e eventos realizados em um ritual podem encontrar eco em outro.
Creio que para se atingir uma certa clareza dos ciclos rituais que
ocorrem no contexto xinguano necessrio que se empreenda uma pesquisa
de vrios anos na regio, a investigao devendo se dar a partir do ponto de
vista de um dos grupos do sistema xinguano (entre os Wauja, ou Kamayur,
Kuikuro, etc.), ainda assim correndo-se o risco de no conseguir compor um
quadro de maneira totalmente ntida em vista da dificuldade concreta de
atingirmos uma compreenso total, profunda e dinmica de eventos que tm
uma projeo espao-temporal to ampla.
Quando o perodo de chuvas constantes se instalou, em meados de
dezembro, nos preparvamos para ir embora da aldeia, e ento um avio caiu
a poucos quilmetros dali, matando os cinco tripulantes da aeronave: piloto,
32
Ver captulo 3 de Agostinho (1974) sobre esta fase preliminar do kwaryp. Apesar de
Agostinho no a ter presenciado, obteve boas descries a respeito.
33
Na semana propriamente da festa do kaumai, acontecem pescarias coletivas,
acampamentos de convidados, grupos ajudantes pernoitando na aldeia anfitri, muitas
cantorias, danas, execues de flautas watana (mais conhecidas pelo nome Kamayur
de uru), e lutas entre os homens das vrias etnias xinguanas participantes.
29
co-piloto, um casal e seu filho. O acidente trgico nos deixou apavorados, pois
estvamos planejando voltar a Canarana em um avio bi-motor semelhante.
Como um costume Wauja sempre zombar do outro, alguns engraadinhos
ficaram nos provocando com brincadeiras de final trgico, dizendo que nosso
avio iria cair tambm, com todas aquelas panelas de barro que estvamos
carregando. De modo geral, eles sempre fazem ironias deste tipo, que se pode
chamar de humor negro: a gozao do terrvel ou temvel. Aliado a este
humor, h tambm um comportamento de indiferena quanto ao destino, como
espelham frases que ouvi, como: este meu filho vai morrer mesmo, porque
fraquinho, ou eu quero morrer, tenho vontade, frases ditas com uma
naturalidade serena. O thos Wauja uma combinao de vrias facetas
trgicas e cmicas, sempre rondando as temticas do sexo, do cime e da
morte.
Era verdade que nosso avio estava pesado, pois nos ltimos dias muitas
pessoas foram nos presentear com panelas e panelinhas de cermica, a
especialidade artesanal dos Wauja. Alm do peso mensurvel das panelas,
havia o peso simblico a elas agregado: a cermica no algo apenas utilitrio,
vasilhas que servem para conter algo, elas so, assim como mscaras e flautas,
espritos temidos e respeitados. Felizmente, o vo foi excelente. Fomos
embora tendo prometido aos Wauja nos empenharmos para a realizao da
viagem at a aldeia dos Bakair.
E assim aconteceu. No incio de junho de 2002, portanto cerca de cinco
meses depois, eu e Accio voltamos para a aldeia Wauja, desta vez sem Jlia, e
com Marcelo Fiorini34, um colega antroplogo que convidamos para, juntos,
etnografarmos o encontro entre estes dois povos indgenas, separados por um
sculo de histria. A viagem para a aldeia Pakuera35 aconteceu durante as
etapas finais da copa do mundo de futebol, e o retorno ao Xingu ocorreu
exatamente no dia em que o Brasil se tornou pentacampeo de futebol, fato
muito comemorado por todos que estavam no Posto Leonardo, porta de
entrada para o Alto Xingu. Esta casualidade foi muito interessante do ponto de
34
Antroplogo e professor da Hofstra University em Nova Iorque. Produziu e realizou
trabalhos de antropologia visual, com destaque para o filme etnogrfico Katsa Baba: os
dramas do humor, rodado entre os Rikbaktsa em 1999.
35
Pakuera o lugar onde vivem parte dos Bakair que antigamente habitavam a regio
do rio Batovi, tambm ocupada pelos Wauja desde aquela poca.
30
36
Conceitos como dono ou apapaatai sero elaborados adiante, quando abordarei
questes ligadas cosmologia Wauja. guisa de esclarecimento, a categoria apapaatai
pode ser traduzida aproximadamente por esprito.
37
Como j foi dito em nota anterior, no apresentarei aqui a etnografia deste evento
por crer que todo este material merece um estudo mais pontual, o qual espero poder
realizar futuramente.
31
38
Entendo a fofoca, kuhuki, como uma categoria nativa fundamental para a
compreenso da socialidade, conforme tratarei mais adiante.
32
39
O procedimento de tocar-cantar msicas para os nativos uma tcnica de trabalho
de campo j h muito empregada na etnomusicologia (ver Barz & Cooley, 1997). Estes
momentos do muito mais sustentao no momento do aprendizado de canes ou de
instrumentos nativos, abrindo caminho para a bi-musicalidade (Hood, 1960).
33
CAPTULO II
O Alto Xingu
Os povos indgenas que habitam a rea dos formadores do rio Xingu, regio
correspondente parte sul da Terra Indgena do Xingu (TIX) no Estado do Mato
Grosso, so: Wauja, Mehinku e Yawalapiti (lngua aruak), os Kamayur e
Awet (tupi), Kuikro, Kalaplo, Matip e Nahukuw (karib) e Truma (lngua
isolada). Estes povos so conhecidos como xinguanos.
Os primeiros contatos de que se tem notcia entre os xinguanos e os
no-ndios datam do final do sculo XIX, quando ocorreram duas expedies
lideradas pelo mdico e etnlogo alemo Karl von den Steinen40. Somente nos
anos 40 a regio voltou a ser palco de novas expedies, desta vez uma
empreitada governamental cujo objetivo principal era o desbravamento do
Brasil Central Em 1943, foi organizada a Expedio Roncador-Xingu (ERX), que
pretendia abrir estradas e construir campos de pouso no centro do Brasil, e
assim facilitar a comunicao area entre Rio de Janeiro e Manaus. Logo aps a
criao da ERX, o governo federal instituiu a Fundao Brasil Central (FBC), que
passou a presidir e administrar a ERX. Em 1946, a expedio, liderada pelos
irmos Villas Boas, alcanou as cabeceiras do rio Culuene, quando ento
estabeleceram um posto com pista de pouso em local onde havia sido uma
antiga aldeia Trumai. A partir de ento, com a implantao do Posto Jacar, os
contatos entre os grupos indgenas da regio e a sociedade envolvente se
intensificaram, sendo sempre mediados pelos irmos Villas Boas, que
assumiram a chefia dos Postos que foram sendo implantados na regio.
A demarcao e homologao definitivas do Parque se deram em 1961,
ficando estipulada uma extenso de 2,8 milhes de hectares e um permetro de
920 km, nmero muito inferior aos 20.075.000 hectares previstos no projeto
inicial, datado do incio dos anos 50. Esta brutal diferena de rea deveu-se
40
Apesar de vrias tradies orais xinguanas registrarem contatos com carabas antes
de von den Steinen, foi a partir destas expedies que obtivemos os primeiros relatos
sistemticos sobre o Xingu. Steinen publicou dois volumes que so marcos da pesquisa
etnolgica na regio (1940[1894]; 1942[1886]). Alm destes, tambm publicou um
livro sobre a lngua Bakair (1892), lngua com a qual teve maior contato por ter tido um
Bakair como guia das expedies.
35
41
Sobre o processo de institucionalizao do Parque, ver Menezes (2000).
42
Esta uma categoria muito presente nas falas dos ndios para se referirem aos no-
ndios.
43
So 3 as associaes indgenas atualmente, com enfoque nos interesses de grupos
especficos: a Associao Mavutsinin, dos Kamayur, a Jaku, dos Kalapalo e, mais
recentemente (1998), a Associao Tulukai, dos Wauja. De abrangncia geral s 14
etnias que compes a TIX, a Associao Terra Indgena do Xingu (ATIX), fundada em
1994, tem atuado principalmente na luta pela proteo e fiscalizao territorial, com o
apoio da Rainforest Foundation da Noruega e assessoria do Instituto Scio Ambiental
(ISA). Mais dados em www.socioambiental.org/website/pib/epi/xingu/associa.shtm
36
44
Sobre os Yudja, ver Lima (1995); sobre os Kayabi, Travassos (1984); Suy, Seeger
(1981); Ikpeng, Menget (1977). Para outros dados sobre os povos do Mdio e Baixo
Xingu, ver Lea (1997) e Ferreira (1994). Dados gerais sobre toda a regio podem ser
encontrados na internet, nos sites http://www.socioambiental.org/prg/xng.shtm (onde
ainda seguida a denominao Parque Indgena) e tambm http://www.funai.gov.br.
45
Sobre lngua de contato na regio, ver Emmerich (1984).
46
Sobre este ponto ver Franchetto (2001).
37
O sistema xinguano
Os grupos que vivem ao sul da TIX formam uma rede de relaes que
constitui um sistema scio-cultural compartilhado chamado sistema xinguano
(Menget, 1993), no qual se observa uma rede intertribal de casamentos,
cerimnias e comrcio que antecede historicamente ao contato com os brancos.
Segundo Menget, este sistema tem a capacidade de absorver e incorporar
38
47
Corroborando as pistas anteriormente deixadas por Schmidt (1942).
48
Como tambm atesta Menezes Bastos (1995).
49
Em sua pesquisa arqueolgica, Heckenberger sugere que, ao contrrio do que se diz
de forma genrica, a densidade demogrfica das sociedades indgenas da regio do Alto
Xingu era bastante alta por volta do sc. XVI, sofrendo uma drstica reduo a partir de
ento.
40
50
Como se pode notar atualmente com os campeonatos de futebol (feminino e
masculino) da regio, o que mostra que at os rituais de branco podem fazer parte
deste contexto.
51
Barcelos Neto tambm aposta em uma origem aruak para este ritual, na medida em
que reconhece a centralidade da produo da chefia e da necessidade de
reconhecimento regional destes chefes atravs deste e de outros rituais (como o
pohoka, de iniciao masculina) para a manuteno do sistema xinguano (2004).
Lembro ainda que, entre os Wauja, o repertrio musical deste ritual est diretamente
ligado ao mito de Arakoni, personagem responsvel, segundo a mitologia respectiva,
pela criao dos padres grficos utilizados em toda a regio. Como j foi dito, o
modelo aruak-karib est na gnese do sistema, e bem provvel que um ritual como o
kwarp, emblema de xinguanidade, deva ter esta matriz como ponto de partida.
Entretanto, como outros autores afirmam que este ritual de especialidade Kamayur
(Dole, 1993:390; Carneiro, 1993:407), creio que somente uma anlise detalhada do
material cancional do kwarp poder ajudar a elucidar tal questo, tarefa a qual me
proponho realizar em trabalhos futuros.
41
52
Ao passo que Dole (1993) e Guirardello (2002) afirmam ser ele Trumai por
excelncia.
53
Faz parte do argumento central deste trabalho tratar estes dois ritos como lados de
um nico complexo ritual, cada um constituindo uma de suas faces. Este ponto ser
mais bem esclarecido na medida em que as homologias entre os repertrios musicais de
ambos os rituais forem apresentadas adiante. Por ora, lembro que as mesmas flautas
chamadas de kawok entre os Wauja, recebem diferentes nomes no Alto Xingu, de
acordo com o grupo: yakui em Kamayur; kagutu em Kuikuro e Matipu; apapalu, em
Yawalapit.
42
54
O sufixo kuma (fem. kumlu), presente nas lnguas aruak do Alto Xingu, aponta para,
no mnimo, cinco significados, de acordo com Viveiro de Castro (2002:29-32) e tambm
constatados por mim entre os Wauja durante o trabalho: pode servir para indicar um
tamanho grande, ou, em se tratando de animais, a maior espcie de uma
determinada ordem; tambm pode indicar uma derivao de uma certa espcie, ou
comumente dito, um outro; tambm pode indicar um ser ou objeto extico para os
padres xinguanos, mas que guarda alguma analogia com objetos e seres encontrados
na regio; principalmente para indicar uma correspondncia entre seres espirituais,
apapaatai, que guardam semelhana com seres presentes na vida cotidiana, geralmente
remetendo a animais; e por fim, pra qualificar todos os seres e coisas que esto
presentes nos mitos. Curioso que, sendo kuma uma terminao masculina, e kumalu
feminina, os Wauja se refiram somente a iamurikuma, e no a iamurikumalu, como
seria de se esperar. Isto se d tanto no mito quanto nas canes rituais, apesar de em
alguns poucos cantos aparecer a palavra iamurikumalu. Este fato pode ser significativo
luz do mito das mulheres que se tornaram iamurikuma, assumindo muitos atributos
masculinos, como se poder ver mais adiante.
55
Ver adiante o mito de iamurikuma e discusso mais detalhada.
43
56
Nesta mesma direo, desde o final dos anos setenta, as investigaes sobre as
msicas dos povos indgenas das terras baixas da Amrica do Sul tm revelado, sob a
perspectiva do campo da etnologia, sistemas musicais e cosmologias densamente
elaboradas, com trabalhos como os de Aytai (1985), Menezes Bastos (1990,1999a),
Beaudet (1983, 1997), Fucks (1989), Smith (1977), Travassos (1984), Seeger (1987) e
Hill (1992, 1993), Ermel (1988), Estival (1994), Olsen (1996), que abordaram,
respectivamente, a msica entre os Xavante, Kamayur, Waipi (Beaudet pesquisou no
44
lado da Guiana Francesa e Fucks no lado brasileiro), Amuesha, Kayabi, Suy, Wakunai,
Cinta-Larga, Assurin e Arara, e Warao. A partir do final dos anos 90, ocorre um
crescimento nesta linha de pesquisa nos quadros universitrios brasileiros, atravs de
trabalhos como Bueno da Silva (1997), sobre a msica Kulina (Alto Purs); Piedade
(1997), Tukano; meu trabalho sobre a msica Wauja (Mello, 1999); Cunha (1999),
Pankarar; Montardo (2002), Guarani; Werlang (2001), Marubo e Piedade (2004) sobre
a msica das flautas kawok entre os Wauja.
57
Este estudo de particular importncia para esta tese por dois motivos: por sua
teoria do ritual xinguano como ritual musical e, alm disso, por sua abordagem do
complexo iamurikuma-kawok (em sua verso Kalapalo, yamurikumalu-kagutu). Ambas
as argumentaes desta autora tero maior rendimento no decorrer da tese.
45
58
Acrescentaria tambm aqui a msica instrumental, que, prescindindo da lngua, to
prenhe de significado quanto a msica vocal.
46
59
Por apontar para esta importncia das paixes Kamayur no ritual yawari, este
trabalho de Menezes Bastos tem um papel crucial nesta tese.
47
>|<
49
Os Wauja
60
Segundo dados estatsticos de Ireland (2001: 269) e relatos de informantes Wauja.
50
61
Somados estes trabalhos ao presente, creio que a recente cobertura etnogrfica
sobre os ndios Wauja notvel, abrindo caminhos slidos para novas pesquisas junto a
este grupo.
62
De acordo com censo realizado por mim em 2002.
51
63
Este processo foi encabeado por Atamai e contou com a interveno das
antroplogas Emilienne Ireland e Bruna Franchetto.
64
A mudana de localizao das aldeias tambm foi observada entre os Kamayur por
Galvo (1953:19), que, no entanto, deu uma explicao de ordem ecolgica: seria
devido ao esgotamento do solo. Menezes Bastos (1999a: 77 nota 14), por outro lado,
chama a ateno para o fato dos enterramentos serem feitos no permetro da aldeia,
sendo esta a justificativa mais plausvel para as mudanas.
52
65
Para os Wauja, os peixes comestveis so aqueles que se alimentam somente de
outros peixes e de plantas. Este tipo de repulsa, que tem sempre um fator cosmolgico
em jogo, parece ser pan-xinguano, a julgar pelo relato de Basso de que os Kalapalo, em
uma poca de escassez de protenas, jogaram fora um grande peixe que haviam
53
pescado porque dentro dele havia um rato do mato, afirmando que aquilo no era
peixe, mas bicho. Ou seja, em Wauja, era apapaatai (Basso, 1977).
66
Para uma explicao ecolgica sobre a ausncia de carne na dieta xinguana ver Zarur
(1975).
67
Kamaiula um etnnimo dado pelos antigos povos aruak aos diferentes grupos tupi
que adentraram a regio em meados do sc. XVIII, sendo incorporados ao sistema
xinguano. Literalmente, quer dizer morto no jirau, ou seja, remete a comedores de
cadveres grelhados. Para uma discusso mais aprofundada, ver Menezes Bastos
(1995).
54
homens com os peixes. Como mostrarei adiante, esta distino faz parte de um
esforo de delimitao, de criao da diferena e da complementaridade, visto
que, do ponto de vista da razo prtica, tal diviso seria injustificvel.
As duas estaes do ano marcam perodos de fartura e escassez de
alimento. No perodo da seca (abril a setembro), se colhe e se processa a
mandioca, ficando um silo de polvilho armazenado em cada casa para aliment-
los durante as chuvas. Tambm durante a seca que se tem fartura de peixe,
os rios ficam menos turvos e diminui o volume de gua, facilitando a pesca. A
vida ritual na regio muito intensa na seca, perodo em que a comunicao
entre os diferentes grupos se d mais intensamente pois, como j foi dito, a
interao entre eles se d quase que exclusivamente atravs dos grandes
rituais intertribais. , portanto, neste perodo que a comensalidade exigida e
esperada entre anfitries (fornecedores do alimento) e hspedes
(consumidores), segundo uma tica xinguana, tem excelentes condies de se
efetivar.
No incio das chuvas (setembro a maro), se d a colheita de pequi, que
alm de ser consumido neste perodo tambm processado de forma a virar
uma pasta, embalada em cestos bem vedados que so armazenados no fundo
de um igarap, como forma de conservao para o consumo ao longo do ano.
Alm desta pasta, o pequi gera muitos outros sub-produtos: akiya, mingau,
tukumaga, doce, ua, chocalho de sementes. Tambm extraem um leo,
imi, que amplamente utilizado de forma associada ao urucum nas pinturas
corporais e como protetor-hidratante da pele. E, com finalidade ritual,
procedem a entrega de suas castanhas torradas, yuwejoto, ao final do kaumai.
A colheita e processamento do pequi so feitos por homens, mulheres e
crianas indistintamente68.
68
Em 2001 e 2002 presenciei em Piulaga alguns encontros entre os Wauja e
representantes da O.N.G. ISA (Instituto Scio-ambiental). Neles, foi apresentada uma
proposta conjunta do ISA e da Natura (empresa de cosmticos) para a comercializao
do leo de pequi. Foram muitas as conversas, e os Wauja chegaram mesmo a enviar
um lote deste leo para a Natura proceder s primeiras anlises de viabilidade. Esta
proposta foi feita para vrios grupos da regio, incluindo os Suy, que extraem o leo
de forma diversa dos xinguanos. A empresa financiou uma viagem de lderes locais at
sua fbrica em So Paulo. Contudo houve um problema: os Wauja possuem o maior
pequizal, enquanto outros grupos envolvidos, como os Yawalapiti, no tm uma
plantao to expressiva. Tal fato gerou controvrsias no mbito regional quanto
distribuio dos recursos captados, entrando em cena as disputas por poder e prestgio.
55
Somando-se a isto a pouca aceitao do ISA pelos povos do Alto Xingu, diferentemente
do que ocorre na parte mdia e setentrional do PIX, sob influncia do Posto Diauarum,
todo o projeto foi por gua abaixo.
69
Como muitas etnografias apontam j h bastante tempo, com destaque para Oberg
(1953), Murphy e Quain (1955), Agostinho (1974) e Dole (1993), cada grupo da regio
tem sua especialidade: alm da cermica Wauja, os arcos pretos so Kamayur, e os
56
colares de caramujo dos povos de lngua karib. Mais uma vez, saliento que estas
especializaes fazem parte da lgica de diferenciao do sistema xinguano.
70
A idia de dono, wekeho ou iekeho, tem alcance cosmolgico, como se ver
adiante.
71
Esta traduo difere daquela de Ireland (2001) e Richards (manuscrito), que falam
em povo que vive em aldeia. Contudo, a palavra putakanau formada por putaka(pai)
="emprestar"+ nau= "gente" (coletivo de iyu), ou seja, "gente-que-empresta". Entre
os Mehinku tambm usado o mesmo termo (cf. Gregor, 1982). J os povos karib
utilizam o termo kuge (cf. Franchetto, 1986). Ressalto que todas as etmologias e
tradues presentes nesta tese so aproximadas, e somente um estudo etnolingstico
ainda por ser feito poder confirma-las.
72
Lembro que a palavra mais conhecida para as trocas na regio, moitar, em
Kamayur.
57
sabem fazer trocas e que, portanto, somente guerreiam73. Esta alcunha mais
utilizada ao se referirem queles povos que habitam o norte da TIX, como os
Suy, Ikpeng ou Kayap. As trocas e o cultivo da reciprocidade entre os
putakanau so tomadas por eles como valores distintivos, sinais de civilidade
no apenas nas relaes intertnicas mas entre todos os membros de um
mesmo grupo74. Os huluki so organizados por diferentes grupos de troca,
operando a tambm a diferenciao do gnero e classes de idade. H huluki
exclusivos de grupos de homens e outros de mulheres, estes eventos no
coincidindo. Em ambos, os grupos de troca so organizados em torno de certas
pessoas consideradas amunau ou amuluneju (chefe-homem ou chefe-
mulher), respectivamente para huluki de homens e de mulheres. Os chefes de
huluki so pessoas que passaram por um processo de iniciao pubertria mais
elaborado, devendo ter ficado no mnimo um ano reclusas. Durante os rituais
de iniciao, a masculina chamada de pohoka (furao de orelha), e a feminina
de kaojatapa (colocao de cordo perineal)75, estas pessoas assumem um
papel central, ficando para os demais participantes iniciantes o papel de seus
companheiros no rito. Estes so iyataku (os comuns), em distino aos
chefes, papis estes que, somados, constituem um grupo formado por
integrantes aproximadamente da mesma gerao. Note-se da que a questo
da troca extremamente importante para os putakanau Wauja, cultivada j na
construo da pessoa, ali mesmo estabelecendo-se uma hierarquia reguladora
de chefia de sub-grupos.
>|<
O parentesco Wauja aponta para regras de casamento preferencial com
primos cruzados bilaterais e residncia uroxilocal temporria dentro de seu
prprio grupo. Contudo, h uma certa flexibilidade das regras, de modo a
permitir que aquele que no encontre parceiros entre os preferenciais tambm
possa se casar dentro, e at mesmo fora de sua aldeia. Isto torna possvel que
um rapaz, filho de pessoa proeminente, atraia sua esposa para residir em sua
73
Ireland (2001) desenvolve uma anlise sobre a utilizao das categorias putakanau e
muteitsi em texto que trata das noes de humanidade Wauja. Ela esclarece que
etmologicamente, muteitsi quer dizer pessoa ignorante (op. cit.:257).
74
Ver nota 30 do Captulo I sobre as questes suscitadas pela acumulao de bens.
75
A palavra kaojatapa vem de ojai, que designa todos os objetos que servem para
cobrir os rgos genitais, como calo, cueca e tambm o sapalaku, cordo perineal,
mais conhecido na literatura da regio por uluri.
58
76
Ver Franchetto (2001).
77
Estes dados so baseados em tabela apresentada por Ireland a respeito dos padres
de casamento Wauja (2001: 281).
78
O que dificulta muito o trabalho do etngrafo. Aps ter aprendido o nome de todos os
membros do grupo, elaborado grficos de parentesco e genealogias, o antroplogo que
retorna aldeia, depois de uma breve ausncia, se depara com muitos nomes
diferentes. O sistema de nominao entre os Yawalapit segue a mesma regra de
transmisso em geraes alternadas bilateral (Viveiros de Castro, 1977:69).
79
Rituais de nomeao como este esto ligados a sistemas onomsticos, cujo estudo
mostra importantes facetas das sociedades indgenas (Gonalves, 1993; Lima, 1997).
59
80
Entre os Kamayur a chefia exercida por Takum, enquanto seu filho Kotoki faz as
vezes de embaixador. J entre os Yawalapit, isto se d de forma diversa, pois Aritana
assumiu a dupla chefia: sabe lidar muito bem com questes relativas ao mundo dos
brancos e foi cuidadosamente preparado para ser um chefe ritual, alm de ter sido um
campeo de lutas (Viveiros de Castro, 1977:69). No Alto Xingu, Aritana a liderana
mais respeitada atualmente, o que fica evidente em todas as reunies em que
participam chefes de diversas aldeias.
81
No entanto, pelo fato da chefia xinguana ser to povoada de questes ligadas ao
faccionalismo e feitiaria, qualquer chefe sempre despertar o descontentamento das
faces no-aliadas.
60
Wauja devido a acusaes de feitiaria. Iut tem qualidades para ser chefe,
flautista, conhecedor da mitologia e dos rituais, mas no teve o carisma
suficiente para ser o escolhido por seu pai, e nem mesmo havia sido um
campeo de luta, como fora Iawal. Desta forma, h um desconforto, tanto por
parte dos descendentes de Topatari quanto dos de Iawal em torno da
legitimidade de sua chefia. Como veremos, este conflito se expressa em um
canto de kapojai comentado no captulo V82. Alm disso, ocorre que o
embaixador Atamai tem, na prtica, muito mais poder e perspiccia poltica
que o amunau Iut. De modo geral, o que vemos que o sistema de
parentesco local permite um grande nmero de possibilidades de soluo para
a questo sucessria, sempre alimentada pelas disputas faccionais.83
>|<
Voltando temtica dos rituais, parte central da vida cotidiana Wauja, o
termo utilizado por eles ao se referirem a estas prticas naakai84. Por naakai
entende-se uma srie de diferentes ritos, constitudos por conjuntos de eventos
particulares, cada qual pertencente a um complexo simblico que se sustenta
em mitos, repertrios musicais, danas, mscaras, pinturas corporais, enfim,
em uma srie de elementos tpicos de cada ritual. Os momentos rituais so
considerados pelos Wauja como espaos carregados de expressividade, de
mudana na postura fsica, nas atitudes, comportamentos e, principalmente no
humor85. At onde pude analisar, os repertrios musicais de cada ritual exibem
82
Para a chefia Wauja veja tambm Ireland (2001) e Barcelos Neto (2004). Para o
cenrio xinguano, ver Menezes Bastos (2001) e Menget (1993).
83
Sobre questes relativas ao parentesco e poltica xinguanas ver Galvo (1953), Zarur
(1975), Basso (1973b), Gregor (1982).
84
Conforme o lxico organizado por Richards, ainda no publicado, naaka = costume +
i = localizao, ou seja, naakai o locus da cultura.
85
Peirano (2001) apresenta uma sntese das perspectivas antropolgicas que lidam com
o ritual na atualidade e assume o pensamento de Tambiah como forma de escapar da
rigidez das definies que impedem que percebamos que o carter performativo do
ritual est implicado na relao entre forma e contedo que, por sua vez, est contida
na cosmologia (op.cit:26). Para Tambiah (1985), o ritual um sistema de comunicao
simblica culturalmente construdo, composto de eventos especiais, mais formalizados,
esteriotipados, redundantes e condensados do que aqueles da vida cotidiana. Para este
autor, a eficcia do ritual advm de trs fatores: primeiramente, dizer algo na
performance ritual significa efetivamente fazer algo, ou seja, o dito um feito
(inspirando-se aqui nas idias de Austin); alm disso, no ritual so utilizados vrios
meios de comunicao atravs dos quais os participantes experimentam os eventos de
forma intensa; por fim, h no ritual uma profuso de valores indexicais vinculados ou
inferidos pelos atores durante o ritual.
61
86
Em Wauja, iwuejokupoho. Lembro as etnografias de Agostinho (1974) sobre o kwaryp
e de Menezes Bastos (1990) sobre o yawari, ambas realizadas entre os Kamayur.
87
As watana so mais conhecidas na literatura xinguana por uru, em Kamayur. Sobre
estas flautas duplas no recai qualquer tipo de interdio para as mulheres, como
ocorre com as flautas kawok. Para uma descrio deste instrumento musical, sua
fabricao, materiais utilizados, e simbologia entre os Wauja, ver Mello (1999).
88
Sobre o thos guerreiro e a retrica pacifista ver Menget (1977) e Menezes Bastos
(1995).
62
89
Ficando aqui com esta definio preliminar, discutirei mais adiante a idia de rituais
de gnero. A questo de haver rituais especificamente dedicados oposio ou
complementaridade dos sexos muito trabalhada na literatura antropolgica da
Amaznica e da Melansia (ver MCallum, 2001; Gregor & Tuzin, 2001; Herdt, 1982),
sendo tomada ora como uma guerra dos sexos (Gregor, 1985), resultado do
antagonismo sexual (S. Hugh-Jones, 1979), por cultos de fertilidade (Hill, 2001), ou
como derivao da questo mais funda da maternidade (Biersack, 2001) ou ainda como
expresso de aspectos da consaginidade e afinidade (Descola, 2001). Lembro tambm
que a prpria nfase na questo de gnero pode ser vista como resultante do vis
ocidental (cf. Overing, 1986; Piedade, 2004, revela uma posio semelhante). Destaco
ainda que entendo o complexo iamurikuma-kawok como simultaneamente rituais de
gnero e rituais musicais (cf. Basso, 1985).
90
Com algumas excees, como o ritual de payemeramaraka (msica de comunidade
dos pajs) descrito por Menezes Bastos (1984/5). Na ocasio observada por este
pesquisador, pajs de vrias etnias se reuniram na aldeia Yawalapit, no sentido de
promover a cura de um paj Kamayur que ali residia e que estava muito doente.
63
91
Todos os grupos do Alto Xingu possuem um termo correspondendo a esta categoria
Wauja, como por exemplo mama entre os Kamayur, e itske entre os Kuikuro.
92
Os Wauja distinguem as doenas causadas por apapaatai daquelas outras que
chamam, em portugus, de doena de branco, estas sendo causadas por outros
processos e curveis atravs de remdios de branco: por exemplo, gripe, sarampo,
leishmaniose, malria, etc (Piedade, 2004). Tal distino comum entre os xinguanos
(ver Menezes Bastos, 1999a).
93
Como j disse, aunaki significa mito, histria dos tempos originrios.
94
Ver a ntegra deste mito em Mello (1999).
65
95
Cosmogonias como esta, que tm o surgimento da luz como termo fundamental, no
so incomuns. Os termos binrios trevas/sol e fuga/transformao aparecem em
diversas narrativas de outros povos amerndios, como o caso dos Tlingit, habitantes
do noroeste da Amrica do Norte: quando ainda reinava a treva no mundo, todas as
espcies animais se confundiam. Um mito diz que o demiurgo roubou e abriu o
receptculo que encerrava o sol e logo este brilhou com todo seu esplendor no cu. Ao
v-lo, as gentes (entendemos: os seres vivos primitivos, ainda indiferenciados)
dispersaram-se em todas as direes; alguns foram para as florestas, onde se
transformaram em quadrpedes, outros para as rvores, onde se transformaram em
pssaros, outros, finalmente, para a gua, onde se tornaram peixes (Lvi-Strauss,
1979:114).
66
>|<
Seguindo as idias expostas na cosmogonia Wauja, com o surgimento da
luz e o estabelecimento do dia e da noite, os homens passaram a ter acesso ao
fogo e gua, elementos indispensveis para a cultura, at ento posse
exclusiva dos ierupoho. Os homens ascenderam do subterrneo superfcie
da terra, ocupando o espao deixado por estes seres, que acabaram fugindo
para a floresta, para dentro da gua, ou para o cu. Os ierupoho,
transformados em apapaatai, passaram a atormentar a vida dos homens
penetrando em seus corpos com o objetivo de lhes roubar as almas. O
alimento mais desejado dos apapaatai passou, ento, a ser a paapitsi dos
67
96
Esta relao parece recordar aquela entre os urubus psiqufagos (que sustentam os
cus) e os humanos, to presente na mitologia Kamayur (ver Villas Boas, 1970:122-
130).
97
A predao uma idia importante no cenrio da etnologia dos povos amerndios,
estando na base de uma perspectiva de compreenso das cosmologias locais que
Viveiros de Castro chamou de economia simblica da alteridade (Viveiros de Castro,
1996b:190). De fato, para alguns autores, trata-se de uma espcie de esquema pan-
amaznico que governa a socializao da natureza e do outro (Descola, 1992) e est
diretamente relacionado ao xamanismo. Para Descola, a predao , na esfera social,
metaforicamente homloga caa. Justamente por se tratar de uma relao na qual
nada oferecido em recompensa pela vida tirada, a predao se ope ao princpio da
reciprocidade (Descola, 1992; ver tambm Fausto, 2002; Vilaa, 1992, 2002; Viveiros
de Castro, 1986, 1996a, 2001). Creio que esta idia vale como um componente
essencial na compreenso da relao entre humanos e apapaatai, marcada por uma
desigualdade csmica (Piedade, 2004) na qual os apapaatai esto dispostos em
vantagem: podendo ouvir os pensamentos dos Wauja, ou seja, podendo localizar, julgar
e afetar os humanos, os apapaatai so verdadeiros predadores, pois lhes interessa
somente roubar suas almas. O controle deste impulso predador dos apapaatai ocorre
entre os Wauja atravs do ritual, instaurando e mantendo a reciprocidade entre o ex-
doente e o apapaatai aliado.
98
Sobre este sufixo, Viveiros de Castro (2002: 33-41) apresenta quatro formas
diferentes de emprego entre os Yawalapiti, parecendo totalmente convergente com o
caso Wauja.
68
99
Piedade faz uma aproximao bastante interessante entre paapitsi (que ele grafa
como upaapitsi) e upawa, outro, onde infere que upaapitsi ou upawapitsi poderia ser
entendido como o outro do mesmo, e a alma seria, assim, a alteridade do sujeito
(2004:49).
100
Sobre a problemtica das relaes corpo/alma no mundo amerndio, ver tambm
Carneiro da Cunha (1978), Lagrou (1998), Teixeira-Pinto (1997), entre outros.
69
101
Segundo Montardo, os ndios Guarani mantm-se extremamente atentos nos
momentos em que danam o jeroky, e desta ateno depende sua integridade. Devem
estar atentos e respeitosos, pois, do contrrio, correm o risco de se perderem nos
caminhos da dana, ficando assim, susceptveis doena (2002:235).
102
Sentimentos como cime e saudade, que se relacionam a um desejo de algo que no
est imediatamente presente, seja porque pertence a outro, seja porque se foi, so por
isso mesmo perigosos sade humana. No entanto, possuem uma fora positiva e
70
106
Ao longo desta tese, utilizarei os termos pathos (no plural: pathi), paixo, emoo e
sentimento sempre apontando para o mesmo universo. Reconheo, no entanto, que o
termo pathos tem um alcance mais profundo, pensado como afeco passiva da mente,
determinada por sua sensibilidade ao mundo exterior, simultaneamente doena e
emoo. neste sentido que falo em patologia (para um estudo das paixes conforme
pensadas na Retrica de Aristteles, ver Meyer, 2000).
107
O estudo da feitiaria xinguana toca em questes extremamente sensveis, em geral
muito pouco verbalizadas (ver Coelho de Souza 2001; Gregor, 2001; Menezes Bastos,
2001). Para mais detalhes acerca da feitiaria entre os Wauja, ver Barcelos Neto (2004)
e Piedade (2004). Ireland fez uma srie de apresentaes sobre esta temtica em
congressos (1986, 1988b, 1989, 1996), mas infelizmente no publicou artigo a
respeito.
108
O lexema kat significa tristeza e itsapai, mesmo, igual. Desta forma,
akatpaitsapai poderia ser traduzido por aquele que fica triste pelos seus.
72
109
De acordo com o que j foi dito sobre o sufixo modificador mona, que pode indicar
no lugar de ou representante do, valeria a pena investigar o que significa a palavra
kawokala. Diferentemente do que est grafado em Barcelos Neto (2004:138), ou seja,
como kawok-mona, o termo que me foi dito por diferentes informantes
kawokalamona. Creio que esta distino muito importante, na medida em que kawok
o nome de um apapaatai especfico, aquele que est relacionado s flautas
homnimas e que o apapaatai mais temido pelos Wauja. Esta incorreo na grafia
pode levar a falsas interpretaes e mesmo a confuses que levem a crer que todos os
apapaatai podem ser kawok, o que se afasta do discurso nativo.
110
Esta dieta engendra a cultura em todo seu processo, passando pelo cultivo e
processamento da mandioca, pela pesca (que geralmente uma atividade coletiva), e
finalmente chegando elaborao do cozimento. Desta forma, busca-se culturalizar o
ser predador, tornando-o tambm cativo dos bens humanos. Sobre esta relao de
aproximao e familiarizao pelo alimento h uma ampla literatura no campo da
etnologia Amaznica, como Gow, 2003; Fausto 2002, Lagrou, 1998 e Vilaa, 2002.
73
111
Para detalhes sobre o processo xamnico, ver Barcelos Neto (2004) e Piedade
(2004). Os traos essenciais do xamanismo Wauja so similares aos dos outros
xinguanos (Dole, 1973; Mnzel, 1971; Travassos, 1984; Villas Boas, 2000), podendo-se
dizer que o xamanismo xinguano parte do cerimonial intertribal e ponto fundamental
do sistema xinguano (Menezes Bastos, 1984/5, 2001). Para alm de seu nexo local, ele
se articula com outros sistemas xamnicos amerndios (Langdon, 1996; Langdon &
Baer, 1992).
74
112
O sufixo -tpa, aps nomes prprios, indica que a pessoa j morreu. O feminino de
tpa tpalu.
76
eles fazem, como os pukai fazem, com ua113, o canto. Voc vai
observando, a voc j sabe. Ningum vai falar pra voc: voc
tem que fazer isso e aquilo. Da pra frente voc vai ficar pronto,
j vai saber como que faz. Ento, quando algum ficar doente,
a me, o pai, irmo, marido, filho, tanto faz, quando o apapaatai
pegou o doente, ele t muito mal, algum da famlia vai l falar
com voc. Senta com voc, te d hok114, da voc fuma e ento
ele fala pra voc: voc podia fazer pukai pra minha me?. Da
voc pergunta: o que que ela tem? O que que ela t
sentindo?. Ah, ela t sentindo dor no peito dela, dor na
cabea. Voc nunca pode dizer: ah, eu no posso ir porque eu
no sei direito. Voc no vai falar isso, mesmo que voc no
sabe muito bem voc no pode negar, seno ela no melhora.
Voc vai ter que aceitar, como se voc fosse um profissional, e
vai dizer: ah, tudo bem, eu vou l, eu vou rezar a sua me.
muito kawokapaapai115. Na verdade voc j t com medo, t
tremendo de medo de comear, de estrear naquele momento.
Voc j t com medo, mas ningum vai te ensinar o que fazer.
Voc vai ter que ter coragem, muita coragem pra fazer isso.
Ento, depois que voc aceita, voc vai l no mato, pega aquela
folha cheirosa, que chamamos de xepen, pega o ua, tambm
aquela semente que paj usa no colar, akukuto, voc coloca,
passa tudo e vai l no enekutaku116, falar pros outros iatam:
iatamana, ianumana itsu kaukitsemukuta tsapai aitsu!. Isso
quer dizer: meus amigos pajs, venham aqui pra gente ir l no
113
Ua um idiofone tipo chocalho globular, feito de maoma, cabaa, com sementes
diversas em seu interior, cabo de madeira e cera de abelha para a fixao das partes.
H um outro tipo de ua, em fieira, feito de yuejotari, sementes de pequi, amarradas
por fios de algodo, que, no entanto no utilizado neste contexto.
114
Palavra para tabaco ou cigarro.
115
A palavra quer dizer perigoso. Note-se que os significados em torno de palavras
como kawokapaapai ou kawokalamona, que aparentemente tm kawok em sua raiz,
no so de fcil ou simples aproximao com este radical. No h consenso entre os
prprios Wauja que trabalham na padronizao da escrita desta lngua se devem
escrever kawokapaapai, mantendo assim uma proximidade com kawok, ou
kaukapaapai, que no teria nenhuma ligao com o apapaatai em questo.
116
rea central da aldeia. Os Wauja que falam portugus traduzem enekutaku por l
no meio.
77
117
Filho de Aruta que tambm iakap.
118
A palavra kejo yumektpo quer dizer literalmente lua menstruao, ou seja, o
eclipse a menstruao da lua. Sendo um eclipse solar, Kamoyumektpo. Eclipses
lunares so eventos muito especiais para os Wauja. Na noite em que ocorrem, so
realizados um conjunto de rituais com mscaras, flautas e principalmente a lapatauana
(ver Mello, 1999:106), aerofone tipo trompete que est ligado ao mito de Laptauna, que
conta como comeou o eclipse. Segundo descrio de meus informantes, trata-se de
um momento bastante tenso e requer a participao generalizada de todos da aldeia.
H muitas referncias a este fenmeno na literatura xinguana, como em Viveiros de
Castro (1977:109-110), Menezes Bastos (1999a:234 Nota 9), Coelho (1983) Franchetto
(1986:244), para citar apenas algumas.
78
Meu pai falou que teve uma mulher Wauja que chamava
Itseixumalu que tinha ficado doente de itsei119, e por isso ela se
chamou Itseixumalu. Ento ela fumou, conseguiu ter viso, ela
ajudou muito, ela virou iatamalu120, ela teve coragem de fumar, de
correr, de fazer aquele corre-corre. Ento ela fez pukai tambm. Ela
ouviu msica do apapaatai do fogo e ela fez pukai pra doente. Isso
faz muito tempo, antes de eu nascer. Antigamente, teve mulher
119
A palavra itsei quer dizer fogo em geral, sendo tambm o nome de um apapaatai.
Neste ponto da narrativa, Tupanumak fez o seguinte comentrio: aquele apapaatai
que eu te falei no rio Culuene que parece fogo, que apareceu pra muita gente ali perto
de onde aquela mulher Yakui t enterrada. Durante nossa viagem de barco, Tupa nos
mostrou um stio na beira do rio Culuene onde a ndia Yakui foi enterrada, juntamente
com seu marido branco, Ayres Cmara Cunha. Neste trecho do Culuene, muitos
fenmenos envolvendo bolas de fogo que saem da terra em direo ao cu foram
relatados por pessoas de diferentes grupos da regio. Cunha publicou em 1960 um livro
em que trata de seu affair com Yakui. Este romance provocou celeuma nacional nos
anos 50 sobre o casamento de "ndias" com "branco", envolvendo Assis Chateaubriand,
que era a favor da unio, e os irmos Villas Boas, contra.
120
Iatamalu o feminino de iatam, paj auxiliar.
79
121
Em minha dissertao, relato uma passagem de meu trabalho de campo em que
Atamai, estando doente, foi residir em outra casa depois que suas filhas souberam que
eu estava menstruada. O simbolismo da menstruao tem sido estudado em vrias
culturas onde o sangue menstrual um fundamental elemento de diferenciao entre
homens e mulheres (Buckley & Gottlieb, 1988), inclusive sua contrapartida, a
menstruao simblica masculina (Hogbin, 1996 [1970]; Herdt, 1982), relacionada
questo da fertilidade e ao complexo das flautas sagradas (Piedade, 2004), presente
inclusive no Xingu (cf. Menezes Bastos, 1999a). Entre os Ikpeng, Rodgers afirma que as
mulheres so xamanizadas pelos processos envolvidos na menstruao e no parto,
quando so expostas a perigos, desmaios e vises causadas pela perda de sangue e por
um esvaziamento do seu interior (2002:108).
80
>|<
Com a terapia xamnica correta, pode-se reverter a situao original de
doena e, uma vez atingido o sucesso com a cura, este ex-doente passar a
pagar sua dvida com os apapaatai amansados pelo resto de sua vida
atravs da realizao peridica de rituais endereados a estes seres, nos quais
so ofertados alimentos e belezas musicais e coreogrficas. Se tudo for feito
corretamente, nunca mais este ex-doente adoecer por causa deste apapaatai
aliado, somente outros podero invadir seu corpo em busca de sua alma.
Todo este cenrio da doena e da cura, da tica e da esttica, de
reciprocidade e perigos, pode revelar uma sociedade assolada por uma espcie
de ditadura sobrenatural que a obriga a se conformar com aquilo que seu
mundo oferece, no podendo desejar o que est para alm de suas
possibilidades. verdade que a cosmologia Wauja tem sua face
verdadeiramente poltica, aquela de uma poltica csmica que funciona como
um mecanismo controlador da sociedade. Mas os Wauja no controlam seus
pensamentos por serem dominados por apapaatai, e sim porque prezam o
81
122
controle e a vigilncia da sociedade . E entretanto, o que o etngrafo constata
na aldeia Wauja que se trata de um povo sorridente, alegre, afeito s prticas
amorosas e sexuais, gozador, sempre bem disposto. Um conflito claro que se
pode facilmente reparar ali, est relacionado ao mundo e s coisas do kajaopa,
visto como um plo causador de ansiedade e, conseqentemente, de doena.
Os mais velhos so os que se mostram mais preocupados com o assdio de
bens dos brancos nas mentes de seus jovens. A preocupao reside no fato
de que muito difcil manter o desejo sobre tais coisas sob controle e a
doena passa a ser quase inevitvel123. Desta forma, resta saber como
compreender esta polaridade: de um lado, o controle e a vigilncia social e
csmica, de outro, a convivialidade e o prazer. Creio que as consideraes
finais desta tese traro algumas pistas: o controle (prazeroso) dos perigos e
paixes no significa sua eliminao, mas sua boa dosagem.
Procurei at aqui mostrar de que forma as prticas rituais entre os Wauja
tm lastros profundos com o xamanismo, entendendo-se este universo em sua
amplitude, aquele de uma tica-esttica nativa, sua patologia e msica. No
prximo captulo, pretendo aprofundar estes pontos no mbito do complexo
iamurikuma/kawok. No sentido de adensar as informaes sobre os Wauja, e
situar melhor os informantes que colaboraram neste trabalho, apresento a
seguir um quadro das relaes de parentesco entre estes principais informantes
e uma breve biografia de cada um.
122
A vigilncia e a disciplina na socialidade Wauja sero trabalhados mais adiante.
Trata-se de um trao do ethos xinguano (ver Gregor, 1982; Menezes Bastos, 1990, este
ltimo autor dando grande importncia capilaridade da vigilncia xinguana, referindo-
se a ela como a gnosiologia da Fresta no Sap).
123
Observei que sempre que um grupo de pessoas vai para a cidade, alguns voltam
doentes. A explicao que me deram a de que eles devem ter comido algo
contaminado, no por germes ou bactrias, mas sim pela manipulao destes alimentos
feita por mulheres menstruadas: nunca se sabe se a cozinheira est ou no neste
estado. O outro motivo, no menos importante, o de que os viajantes passam muitas
necessidades na cidade e sofrem por desejos irrealizados.
82
83
>|<
>|<
Arapawa Filho de Itsautaku, hoje com 26 anos, casado com Maisa (21
anos), filha de Atamai. Tm 1 filho homem, e ela estava grvida quando sa da
aldeia em 2002. O casamento no parecia ir bem, pois, segundo as fofocas
locais, ele era muito ciumento. Arapawa estudou algum tempo em Canarana e
hoje professor contratado pela prefeitura para dar aulas na aldeia.
>|<
124
O filme The Storyteller, feito por Emiliene Ireland junto com a BBC, tem Aruta
como protagonista, ele o contador de histria.
85
com Iulamalu (com cerca de 65 anos), uma das principais chefes de huluki,
grupos rituais de trocas, na aldeia, bem como uma tima ceramista, assim
como Aruta. Tiveram 5 filhos, todos homens, fato que poderia ser uma
desvantagem, visto que a regra de residncia prev que os genros devam
morar com o sogro durante os primeiros tempos de casado. Porm, devido a
posio de Aruta no grupo, suas noras que vieram morar em sua casa,
exceo de Iakupe, mulher de Tupanumaka, que no se adaptou entre as
mulheres da casa, e voltou a viver com sua me. Hoje, por causa da idade, o
chefe da casa no mais Aruta e sim seu filho Ulepe que tem
aproximadamente 45 anos, e um dos cinco pajs da aldeia. Em minha
primeira estadia na aldeia, os Wauja estavam de mudana de uma aldeia velha
para a atual, e a casa de Aruta foi a primeira a ficar pronta, o que no mnimo
significa que h uma boa organizao do trabalho entre os moradores, talvez
pelo fato de serem todos filhos e netos e no genros. Sua casa ocupa uma
posio intermediria no traado da aldeia, isto , fica entre as duas faces
polticas mais evidentes. Aruta um homem muito ativo, passa horas do dia no
mato, na roa ou pescando, est sempre indo ou vindo, raramente est sem
fazer nada. Quando em casa, conserta o telhado, produz cestos, mscaras ou
panelas de barro. Vrias pessoas se referem ele de forma carinhosa, sempre
lembrando algo engraado que ele tenha feito ou dito. Em 1998, foi meu
principal informante.
>|<
Atakaho - Irmo mais novo de Iut, hoje com 42 anos. cantor, flautista e
especialista nas festas de wakure e kagapa. Casado com Waru (com 35 anos),
com quem teve 8 filhos: 4 homens e 4 mulheres. Providenciou
espontaneamente uma demonstrao destas festas para que eu pudesse gravar
e fotografar quando estive na aldeia em 1998.
>|<
Atamai - Chefe da aldeia junto ao mundo dos brancos, filho do antigo chefe
Malakuiawa, e irmo por parte de pai de Iut, o chefe cerimonial da aldeia. Por
exercer esta funo de primeiro ministro, ou embaixador das relaes
86
>|<
Atsule Filha mais velha de Atamai, hoje com 41 anos. casada com Karito
(ver biografia a seguir) com quem teve 7 filhos, e vive na mesma casa que
seus pais. Diferente de outras irms que tambm vivem ali, assume uma
postura de snior, permanecendo mais tempo em casa, e executa menos
87
>|<
Aulahu - Filho de Itsautaku, hoje com 35 anos, casado com duas irms que
so filhas de Iatun, com quem reside. Com a primeira esposa, chamada
Yumakumalu (31 anos) tem 4 filhas, e com a segunda, Kahal (27 anos) tem 2
meninos. Apesar das duas esposas serem irms, havia um certo desconforto,
pois a mais velha reclamava da falta de ateno de Aulahu para com ela e este
me relatou que estava muito difcil manter o casamento com as duas. Fala
relativamente bem portugus (viveu um tempo sob a guarda de Joan Richards
em Canarana) e conhece bastante bem as histrias e mitos de seu povo,
muitos dos quais diz ter aprendido com seu pai e com seu sogro, a quem
chama de tio. No comum para um homem de sua gerao fazer tais relatos,
e mesmo que conheam os mitos, no se sentem autorizados a contar. Este
no parece ser o caso de Aulahu, pois sempre esteve bem vontade em narrar
suas histrias, ao menos para mim.
>|<
>|<
Iatun - Irmo de Iut, com cerca de 55 anos. Casado com Kamiru, (filha de
pai Kuikuro e me Yawalapit), hoje com cerca de 51 anos. Eles tm 9 filhos, 4
mulheres e 5 homens. Iatun o responsvel pelas festas de iniciao
masculina, pohoka, e feminina, kaojatapa. tambm flautista e cantor.
Conhecedor de muitos mitos, fez questo de demonstrar para mim partes da
festa de pohoka, na qual vrias pessoas tomaram parte cantando e danando,
e narrou-me o mito de origem desta festa.
>|<
Itsautaku - Principal paj da aldeia, hoje com cerca de 62 anos. Foi iniciado no
xamanismo por Takum, chefe Kamayur. Casado com Punuto, cinco anos mais
nova que ele, tm juntos 11 filhos: 6 mulheres e 5 homens. Sempre muito
ativo, trabalha todo o tempo. Tem passado grandes perodos trabalhando na
fazenda do Stnio, juntamente com alguns de seus filhos. Com este tipo de
atividade, a famlia tem adquirido bens valiosos, como motor de barco, barco,
antena parablica, televiso, e mais alguns aparelhos, tais como gravadores,
toca cd e tudo o mais que passa a ser necessrio, como gerador, combustvel e
pilhas. Itsautaku dono de vrios rituais, dentre os quais iamurikuma,
kawok, tankuwara, sapukuyaw, kagapa, atuju. Ele tambm j foi flautista
de kawok, porm, aps ter adoecido e se tornado dono de kawok, nunca
mais tocou as flautas. Conhecedor da mitologia Wauja, sempre se mostrou
muito disposto a me contar os mitos que lhe pedi. Pertence faco oposta
89
>|<
>|<
>|<
91
Kaomo Um dos homens mais velhos da aldeia, hoje com cerca de 78 anos.
Irmo por parte de me do falecido chefe Malakuiawa, de quem aprendeu as
artes da flauta kawok. um exmio conhecedor do repertrio das flautas,
exercendo sempre a funo de flautista mestre, kawokatupa. nico especialista
na construo deste instrumento na aldeia, cujos conhecimentos tem passado
para seu filho Talakuwai nos ltimos anos. revelia de outros sniores da
aldeia, tem ensinado uma parte do repertrio das flautas kawok para sua
sobrinha Kalupuku, cantando peas musicais de forma solfejada. Kalupuku, por
sua vez, transforma as peas aprendidas em cantos de kawokakuma. Segundo
Kaomo, pelo fato da maioria dos jovens demonstrar desinteresse em aprender
o repertrio das flautas, todo aquele ou aquela que estiver interessado poder
aprender, desde que seja capaz de memorizar e reproduzir os cantos e, alm
disso, de pagar pelo aprendizado. Havendo estes interessados, ele se sente
obrigado a ensinar. Alm de flautista, acumula tambm a funo de
pukaiwekeho, dono de pukai, conhecedor dos cantos de cura, atividade
exercida apenas por ele e mais dois homen s em toda a aldeia (ver relato
anterior sobre as dificuldades e os perigos que envolvem a funo de
pukaiwekeho). um timo ceramista e mantm uma oficina sempre produtiva
nos fundos de sua casa (casa 10 do croqui da aldeia). Demonstrou grande
desenvoltura ao elaborar desenhos, feitos a meu pedido (com canetas coloridas
e papel), sobre a temtica dos rituais Wauja. De seu primeiro casamento com
Kaiana, filha do chefe Topatari e cantora de iamurikuma, teve 3 filhos homens.
Aps ficar vivo, passou a viver com outra viva de nome Autu. Kaomo um
homem muito calmo, de poucas palavras, sempre pronunciadas baixinho, sua
fala quase um murmrio. Sempre se mostrou muito solcito em me passar
seus conhecimentos bem como para meu companheiro, que acabou tendo aulas
particulares de flauta. Creio que Kaomo um professor nato, pois parece
extrair grande prazer em transmitir o que sabe. A importncia deste homem na
aldeia inestimvel, visto que o nico de sua gerao a acumular tantos
conhecimentos imprescindveis para a manuteno da cultura Wauja.
>|<
92
Karito Filho mais velho de Kaomo. Tem hoje cerca de 46 anos. Casado com
Atsule, filha de Atamai com Pakairu, de cujo casamento nasceram sete filhos, o
mais velho com cerca de 24 anos e a mais nova com 4. Herdou a simpatia e
gentileza de seu pai, e parece aceitar bem o papel de segundo homem da casa,
abaixo de seu sogro Atamai.
>|<
Katsiparu Irm mais velha de Kalupuku, tem hoje perto de 47 anos. Assim
como sua irm, considerada uma grande ceramista, gozando de grande
prestgio na aldeia por isto. Foi casada com dois homens simultaneamente, fato
raro entre os Wauja, e no Xingu de modo geral. Seu primeiro marido, Iyaku, j
falecido, era seu primo cruzado pela linha materna. Assim como ela, ele era
neto do chefe Topatari, o que, segundo Katsiparu, deveria conferir a seu filho
primognito, Ajoukuma (um dos 5 pajs da aldeia), ou a seu segundo filho
Kuiakuiele, o direito chefia da aldeia. Tal situao tem relao com o
faccionalismo vigente na aldeia. Katsipuru reclamou a chefia para seu filho
durante a performance de um canto de kapojai no ritual de kukuho (ver
comentrios relativa a este ritual no final da tese). No sei ao certo como pde
ser atribuda a paternidade de seus filhos, pelo fato de ter vivido com os dois
maridos durante algum tempo. No entanto, ela afirma que com Iyaku teve os 4
primeiros e, apenas o mais jovem, hoje com 15 anos, seu filho com
Marikawa, seu segundo marido, hoje com cerca de 48 anos. Ela tambm
cantora de iamurikuma e parece ter certa ligao com o xamanismo, pois, alm
de ser irm e me de paj, tambm afirma j ter fumado algumas vezes e tido
vises durante o transe.
>|<
Atamai. Aps se separar do chefe, foi viver com o pai de Aruta, Awaturi, que
havia ficado vivo. Deste casamento nasceram outros dois filhos, Tapai (com
cerca de 38 anos) que vive no Posto Leonardo, e Piaua (com cerca de 40
anos) casado com uma mulher Mehinaku, ambos vivendo na aldeia Piulaga. Por
causa da co-residncia durante a infncia entre Aruta e Atamai, e do fato de
terem irmos em comum, eles se tratam por irmos e Aruta trata Kaun por
me. Ela vive na casa de Atamai, e s bem tratada por sua nora, Parkair, e
por Atamai. Suas netas esto sempre a ridicularizando e desejando, em voz
alta, a sua morte. Todas parecem incomodadas com seus escarros e tosse, e
crem que ela poder contamin-los com tuberculose ou coisa parecida. Para
justificar tais atitudes, suas netas me falavam que ela no era uma mulher
sria, que, quando jovem, ela dava pra todo mundo, e que portanto, no
merecia o respeito delas. Por outro lado, Pakair demonstrava total
constrangimento com a atitude de suas filhas, e me contou que temia ser
tratada da mesma forma quando ficar velha. Na poca de minha primeira
estadia na aldeia, Kaun estava bem ativa, sempre trabalhando, carregando
um pequeno fardo de mandioca, ou um pequeno caldeiro com gua, e toda
tarde ia catar lenha para se aquecer noite. J em 2001, encontrei-a mais
debilitada e menos ativa. Assim mesmo, seguia fazendo pequenas tarefas e
ainda se disps a cantar para que eu gravasse algumas msicas de
iamurikuma.
>|<
Maisa Filha de Atamai, com 21 anos, casada com Arapawa (ver biografia
acima). Assim como sua irm Aianuke, aprendeu portugus quando morou em
Colider, com sua outra irm Kamih. Em minha primeira estadia na aldeia ela
ainda era solteira e vivia com seus pais, de modo que pde me ajudar nas
tradues, e forneceu-me valiosas informaes sobre a vida de adolescente na
aldeia. Nas demais vezes que voltei para Piulaga ela j estava morando na casa
dos pais do marido, contrariando as regras de uxorilocalidade vigentes na
aldeia, e pareceu-me bastante mudada, sem o brilho e alegria de antes.
>|<
94
>|<
Talakuwai Filho mais novo de Kaomo. Casado com Isikumalu, com quem
teve trs filhos. Sua esposa filha de Takar, j falecido, e Autu, a atual
esposa de Kaomo. Tem hoje cerca de 38 anos, e assim como vrios homens de
sua gerao, fala bem pouco portugus. o sucessor de seu pai na arte da
flauta kawok.
>|<
Tupanumak - Filho mais novo de Aruta, hoje com 36 anos. Foi meu principal
tradutor durante toda a pesquisa. Tupa, como chamado na aldeia, estudou
onze anos entre Goinia e Braslia e concluiu o segundo grau em tcnico de
enfermagem. Neste perodo, viajou para os Estados Unidos uma vez, a convite
de Emilinne Eireland, onde passou alguns meses trabalhando em tradues
para esta antroploga e teve oportunidade de participar de encontros de povos
indgenas norte-americanos. Voltou a viver na Piulaga em 1998 a pedido de seu
95
pai, mas no lida com qualquer questo relativa sade: tais tarefas ficam a
cargo de Ianhim e do sobrinho deste, Apaiupi. Desde que Tupa voltou ao Xingu
vem enfrentando alguns problemas para se adaptar vida na aldeia. A
princpio, Atamai convidou-o para trabalharem juntos, no entanto, suas
personalidades no combinam, e s tiveram atritos. Tupa reclama que o
pessoal da aldeia desconfia dele e que fazem muita oposio s suas propostas.
Contudo, desde que fundou a associao Tulukai em 1999, Tupanumaka tem
conseguido implementar alguns projetos, como viagens para apresentaes de
grupos de dana, e venda de artesanato ou ainda a viagem que fizemos para a
aldeia Bakair em 2002. Atualmente ele parece mais preocupado em concorrer
para vereador, e em assegurar alguma ocupao da regio extrema oeste da
TIX, de modo que a Prefeitura de Salto da Alegria reconhea que h ocupao
indgena ali, o que favoreceria uma candidatura sua futura. Tupanumak se
casou em 1999 com Iakupe, hoje com 21 anos. Eles tm 3 filhos, 1 menino e
duas meninas. Durante toda minha pesquisa Tupa demonstrou simpatia,
disposio de trabalho e tambm muita malcia e traquejo no trato com o
mundo do branco, o que se pode apreender de suas tradues e
intervenes. Hospedou-se em 2000 com sua famlia em minha casa, e
tambm por duas vezes na casa de minha me, em So Paulo. Mantemos
freqentes conversas telefnicas, ocasies em que posso ter notcias de todos
da aldeia, alm de ser uma boa forma de sanar dvidas de traduo, fatos e
nomes. Tupa sem dvida uma pessoa chave nesta pesquisa, pois, sendo o
tradutor de maior parte do material aqui apresentado, e tambm um de meus
principais interlocutores, sua viso e compreenso do nosso mundo acaba por
perpassar toda esta tese.
>|<
96
CAPITULO III
O complexo iamurikuma-kawok
125
Para uma viso geral do complexo das flautas sagradas na Amaznia, ver Piedade
(2004). Este autor relaciona o complexo aos povos de lngua aruak. Para um estudo
comparativo entre Melansia e Amaznia que toca diversas vezes na questo, ver a
coletnea organizada por Gregor & Tuzin (2001).
126
H diversos relatos sobre flautas e casa dos homens em Steinen (1940,1942).
Piedade comenta-os, e destaca a problemtica dos termos casa dos homens e casa
das flautas, tratados somo sinnimos na literatura (Piedade, 2004). Ver tambm as
vrias passagens de Gregor sobre o tema entre os Mehinku (1982,1985). Menezes
Bastos, em uma nota sobre o complexo entre os Kamayur, aponta para a menstruao
masculina como expresso de uma inveja da capacidade reprodutora das mulheres, e
por isso o ritual de flautas expressa, mais do que uma dominao masculina, um
desejo de unio (1999a:223-240).
127
As designaes: para os aruak, Mehinku kawok, Yawalapit, apapalu; para os tupi,
Kamayur e Aweti, yakui; e para os karib, de modo geral, kagutu.
98
128
Axa quer dizer comer ou ter relaes sexuais, e axawaka especificamente ter
relaes sexuais. A partcula kina indica uma atividade coletiva.
129
Cada mdulo corresponde a um tubo de madeira independente, chamado
genericamente de watana, flauta, e o conjunto so as kawok, sempre tocadas em
trio.
130
Este o principal argumento da tese de Piedade (2004), que analisa o repertrio
destas flautas como sendo a fala do apapaatai, seguindo a exegese nativa.
131
Veja Mello (1999) para a descrio do pulu-pulu e do matapu. A mscara facial de
yakui de madeira e, segundo os nativos, semelhante quela com o nome de
yakuikat, dos ndios Awet, conforme as ilustraes em von den Steinen (1940: 403).
99
132
Penso, de forma exploratria, este espao nevrlgico que a kuwakuho no sentido
foucaultiano de vigilncia (Foucault, 1975). Esta vigilncia estaria inserida em um
sistema de controle social que se ramificaria pela sociedade, se multiplicando numa
100
olfato, indo muito alm, porm, destes sentidos, fazendo parte do cotidiano da
133
aldeia, do controle que todos tm uns sobre os outros . Este um nexo
fundamental para a compreenso da socialidade Wauja, envolvendo sua
cosmologia e tica, e sendo uma faceta crucial para a interpretao do
iamurikuma, que apresentarei no prximo captulo.
Uma segunda interpretao possvel para a precariedade da kuwakuho
Wauja apia-se nas idias de Gregor (1985). A casa das flautas uma rea
consolidada da masculinidade e proibida s mulheres, fortaleza dos segredos
masculinos, fulcro da mquina de guerra134 dos xinguanos. Entretanto, apesar
do vigor de instituio deste clube masculino, a precariedade material desta
edificao pode estar apontando para um aspecto simblico importante.
Gregor, ao analisar a instituio da casa dos homens no Alto Xingu, afirma
que:
135
A fofoca uma prtica disseminada em toda a regio (Gregor, 1982; Frachetto,
1986:257) e a ligao entre esta prtica e as disputas faccionais fazem eco s idias de
Gluckman, em seu artigo sobre a fofoca (1963).
102
maioria das vezes, como j disse, est ligada a disputas faccionais, podendo
mesmo ser equacionada com a prtica da feitiaria. No entanto, o limite entre
kuhuki e manapitsitsaka, brincadeira, no muito claro, ele depende da
dose de veneno empregada na fofoca. Ao final desta tese, relaciono a fofoca a
outros elementos ligados s construes em torno das relaes de troca. A
fofoca vista aqui como um dos ingredientes que atua sobre o cime e a
inveja, motor que impulsiona o curso das trocas afetivas e materiais.
Assim colocadas as questes relativas casa dos homens e ao complexo
iamurikuma-kawok, passo para os mitos em torno das flautas e do
iamurikuma.
Aunaki, mito.
136
Tal esforo catequtico muitas vezes gerou um complexo processo de tradues
mtuas entre missionrios e ndios, gerando como que uma religio indgena (ver
Pompa, 2003).
104
uma narrativa que trata de um mundo antes da diviso entre palavra e coisa,
existncia lgica e realidade emprica, natureza e cultura (Lima, 1999:127).
Para lidar com a mitologia Wauja, estou pensando o aunaki, histria do
passado, diante destas diferentes -mas no necessariamente excludentes-
perspectivas para a anlise do mito, ou ainda, da cultura atravs dos mitos.
Para me apoiar a encontrar um caminho, cabe trazer a exegese Wauja sobre o
que sejam estes relatos intitulados aunaki.
Os Wauja dizem que aunaki algo que, por excelncia, se refere ao
passado distante, sekiya, antigamente. O passado sekiya nunca pode ter
sido realmente experimentado por um vivo e, portanto, um tempo sem
testemunhas137. A veracidade do aunaki, entretanto, nunca posta em dvida.
Para os Wauja, os aunaki que tratam de fatos ocorridos em um passado
cronolgico (que poderamos chamar de tempo histrico), seriam acrescidos
do lexema kamalajota (relativo a verdico) e as narrativas relativas ao tempo
das origens, o tempo fabuloso do princpio (usando as palavras de Eliade,
1994[1963]:11), recebem o lexema iyajo (verdadeiro) (ver Ireland, 1988a). As
diversas facetas das origens esto expressas nos aunaki, e como sociedade
fria138, os Wauja entendem que no devem se afastar do mundo que os
aunaki relembram sempre, pois ali h o nexo com as coisas verdadeiramente
Wauja": Waujayajo. As performances pblicas e privadas de aunaki se
configuram como atos intencionais, com o propsito da manuteno da ordem
primeira, evitando a dissoluo do mundo.
137
Valeria aqui um paralelo com a distino que fazem os Kamayur entre os lexemas
ng e mawe, traduzidos por Menezes Bastos respectivamente por tempo histrico e
tempo mtico, havendo ainda um terceiro termo, ma, antigo que remonta ao
passado de ng (1999a:122). Segue-se que, para os Kamayur, a explanao, e/ou
narrao dos eventos ocorridos tanto no tempo mtico quanto no tempo histrico,
recebem a mesma glosa, morneta. Seguindo as narrativas Wauja, concluo que ao
lexema mawe Kamayur, corresponderia o sekiya Wauja, e morneta poderia
aproximar-se de aunakitsa (cf. Richards, "contar histria", Ms.).
138
Conforme o conceito de Lvi-Strauss, originalmente expresso em 1960 em sua aula
inaugural da cadeira de antropologia social no Collge de France (Lvi-Strauss, 1989b),
sociedades frias, diferentemente das quentes, concebem a histria de modo a
permanecer como imaginam ter sido criadas na origem dos tempos. Evidentemente, os
Wauja atravessem mudanas no processo histrico. Trata-se de uma noo terica
interessante, mas foi criticada por Hill (1988). Ver a resposta a esta crtica na entrevista
de Lvi-Strauss em Viveiros de Castro (1998). O tema foi retomado recentemente por
Albert (2002).
106
Ou seja, este tipo de leitura pode apontar as posies estruturais das paixes
mostrando codificaes das paixes nativas tal como impressas em um mito.
A anlise que pretendo empreender contar com dados da ordem do
contexto da narrativa e da lngua Wauja. Este procedimento multi-terico, que
mistura um pouco de interpretao e estruturalismo, no incomum na
antropologia, como vemos, por exemplo, no trabalho de Feld (1982) entre os
Kaluli139. Creio que tal procedimento revela de forma mais adequada como os
aunaki que sero apresentados apontam para um crculo simblico que
constitutivo no complexo mtico-ritual.
Neste contexto, mito e ritual so esferas inseparveis, pois o aunaki
guarda uma relao profunda com o naakai, ritual, de tal modo que a
compreenso de um passa pela do outro, lembrando que nas vrias sociedades
xinguanas o mito como explanao do rito parece constituir um princpio. Pela
perspectiva da performance, o ritual pode ser visto como uma encenao dos
nativos para si prprios: os atores ali podem reviver acontecimentos histrico-
140
mticos , desta forma recuperando sentimentos e aes passadas (cf. o
conceito de restored behaviour, Schechner, 1985); podem tambm brincar-
jogar (to play, op.cit,) na interseco dos sentidos, pois o ritual sinestsico
(Sullivan, 1986); ou ainda imaginar-se "como se..." (as if... Schechner, op.cit.).
Nesta perspectiva, revivendo o passado, jogando com os sentidos e imaginando
o possvel, os atores so seus prprios espectadores: o ritual auto-encenado.
Mas, alm disso, o aunaki parece funcionar como uma espcie de
partitura do ritual, ou script originrio do naakai, um script que
139
O material analisado por Feld compreende um conjunto de canes, uma taxonomia
ornitolgica, o choro ritual e as formas poticas do povo Kaluli da Nova Guin, tratados
estes pontos como modalidades expressivas que, relacionadas ao mito central,
mostram-se constitudas por cdigos de performance que comunicam sentimentos
profundos deste povo e recodificam seus princpios mticos. No embasamento terico de
sua pesquisa, o autor explica que cruza mtodos analticos aparentemente
inconciliveis: o estruturalismo, onde o antroplogo visto como um tradutor, um
decodificador; a hermenutica, que enfatiza seu papel de intrprete e experimentador;
e por ltimo, a etnografia da comunicao, que serviria de elo entre estas abordagens
conflitantes.
140
Histrico-mtico se refere a uma compreenso Wauja para o passado na qual mito
e histria coincidem em sua verdade e veracidade (ver o conceito de aunaki acima
exposto, e seus atributos iajo e kamalajota). Para uma viso do mito e histria como
modos de conscincia social diferentes porm complementares, ver Hill (1988). Sobre
esta temtica, ver tambm Carneiro da Cunha (1992) e Carneiro da Cunha & Viveiros
de Castro (1993).
108
141
Segundo Piedade, o lexema aaka remete a crena ou obedincia: quando se diz
nakaakapai se quer dizer eu acredito ou eu obedeo. De modo que naakai, ritual,
contempla significados que apontam para a afirmao (crente e obediente) do modelo
prototpico, dado pelo mito, aunaaki: au largo/amplo + naaki crena/costume
(2004:28). Para este autor, a palavra aunaki possui o mesmo radical, devendo ser
grafada aunaaki.
142
Conforme o Captulo II, a respeito das pesquisas sobre msica no Xingu.
143
Seria muito interessante poder apresentar as narrativas mticas em sua verso
original, com todas as repeties, inflexes vocais, e demais dados referentes forma
narrativa. No entanto, isto aumentaria em muito a extenso deste trabalho. Assim
sendo, guardadas as propores e o foco desta tese, cujo centro de anlise recai sobre
as canes de iamurikuma, optei por apresentar apenas a transcrio das tradues.
109
>|<
144
Um dos muitos exemplos desta centralidade o caso dos Enawene-Nawe que, alm
de possuir flautas sagradas, nomeiam determinados cls como gente-flauta (Mrcio
Silva, c.p.).
111
M1
Mulher que sabia msica de flauta
Havia uma mulher que sabia tudo de msica, ela conhecia muito
mais do que os homens, tocava msica de flauta kawok e cantava
msica de yaku145. Quando os homens faziam festas de mscara
na aldeia, tocavam sempre no incio da noite, mas a tal mulher
aproveitava quando todos iam dormir, se vestia de homem e ia at
o centro da aldeia tocar flauta e cantar durante toda a madrugada.
Antes do amanhecer ela se banhava e voltava para casa. Certo dia
ela foi descoberta pelos homens e, como as mulheres so proibidas
de tocar flauta, os homens resolveram que iriam mat-la. Fizeram
um grande buraco na terra e ficaram de tocaia esperando a hora
que ela iria tocar. A mulher tinha um amante que resolveu ajudar,
pois no queria que ela fosse morta. Ele armou o seguinte:
ofereceu-se no grupo de homens para matar a moa jogando-a no
buraco, porm, para proteg-la, colocou uma grande panela de
barro acima da mulher, de jeito que ela tivesse ar por alguns dias,
e cobriu tudo com terra. Depois de alguns dias retirou a namorada
do buraco e colocou a carcaa de um veado dentro. A mulher se
banhou, encontrou com sua me e esta a levou para outra aldeia
onde pudesse viver sem ser descoberta. Depois de alguns anos,
um rapaz que visitava a aldeia em que a moa se refugiara
percebeu a semelhana desta com a falecida e, ao voltar para sua
aldeia, contou para os homens o que viu. Resolveram mandar
outra pessoa para averiguar, e mais outra, mas no estavam
seguros de que se tratava da mesma pessoa. Decidiram ento abrir
o buraco para ver se algum tinha tirado a moa dali. Ao
examinarem os ossos, viram que se tratava de osso de veado e
no de gente. O pai da moa resolveu ento cham-la de volta
para a aldeia dizendo a ela que seu marido estava esperando na
aldeia - mesmo sabendo que seu povo iria se vingar dela. O antigo
namorado marcou ento um encontro com a moa s escondidas e
disse-lhe que foi seu marido quem a delatou aos outros homens
quando esta tocava vestida de homem na aldeia. O rapaz instruiu a
moa a agir da seguinte forma: procurar uma rvore com mel,
pedir para o marido ir retirar o mel e ento, num momento de
esforo do marido, empurrar seu rosto de encontro ao mel para
que ele se afogasse. Assim aconteceu e, ao se afogar, o marido
transformou-se em Tulukumalu, sapo grande. A mulher falou para
ele no aparecer para as pessoas, pois iriam se assustar com ele, e
que ele poderia cantar somente quando chovesse. Ao voltar para a
145
Note-se que ela canta o repertrio intitulado yaku. Entre os Wauja, este termo
corresponde a um apapaatai e ao ritual homnimo de mscaras que tem um repertrio
musical de cantos masculinos. Durante a performance deste ritual as mulheres e
crianas devem permanecer dentro de casa, pois a viso das mscaras interdita a
elas. interessante lembrar que yakui o termo Kamayur tanto para um conjunto de
mscaras quanto para as flautas que correspondem s flautas kawok Wauja.
112
aldeia, disse que seu marido havia morrido afogado no mel. Casou
com seu namorado e nunca mais cantou. Por isso os Wauja sabem
os cantos que aprenderam com essa mulher.
M2
Mapapoho, povo abelha, donos de kawok
M3
Awaulu, o raposo
Havia uma menina que era muito chorona e seus pais sempre
ameaavam que iriam entreg-la para o Awaulu, o raposo. Como
ela no parava de chorar, o pai resolveu assust-la deixando-a no
mato nos fundos da casa. De repente o choro parou: Awaulu ouviu
os pais oferecendo a menina para ele, e foi busc-la. A me
procurou-a por vrios dias em vo, pois Awaulu tinha levado a
menina para sua aldeia para criar. Ele tinha uma aldeia igual dos
alto-xinguanos, com casa das flautas no centro, porm, vivia
sozinho nela. A menina cresceu e menstruou, ficando assim em
recluso por algum tempo. Awaulu decidiu que iria se casar com
ela, mas, enquanto ela estava presa ele seguia tocando a flauta
kawok na kuwakuho146 sempre sozinho. Na pausa, ele buscava
em sua casa piro de peixe, de pimenta e bebida de mandioca para
oferecer a kawok e comia tudo sozinho. Na antiga aldeia da
garota, havia um rapaz tambm recluso. Certo dia, ele saiu para
caar sakalu, um tipo de papagaio, e sua flecha voou muito longe,
caindo atrs da casa do Awaulu. Conforme foi se aproximando,
146
Na mesma narrativa, Tupanumaka traduz kuwakuho por casa dos homens e casa
das flautas.
113
M4
O roubo da Kawok
147
Ver os seguintes aunaki em Mello (1999): as filhas de Kuwamuta onde Iapojoneju
aparece como sendo uma das filhas de pau que Kuwamuta fez para casar com
114
Depois ele cantou, fez msica porque o outro morreu. Por isso vai
crescendo msica de kawok.
Pergunta: e voc sabe dizer qual msica esta falando de cime, de
pssaro ou de outra coisa?
Aulahu: sim eu sei porque meu tio [Iatun] me conta, ele sabe tudo.
>|<
Para comentar estes quatro mitos, parto das categorias do sensvel por
eles arroladas, entendendo que tais categorias podem ser ferramentas
conceituais teis para isolar noes abstratas (Lvi-Strauss, 1991:11). Os
episdios mticos onde estas categorias entram em ao so considerados
mitemas. Entenda-se aqui por mitema a unidade mnima constitutiva do mito e
que, apesar de mnima, exibe certa complexidade. Comparando os mitemas s
unidades lingsticas, eles corresponderiam ao nvel da frase e, sendo assim, se
constituem como uma grande unidade. Tal unidade, no entanto, relaciona-se s
outras unidades de mesma posio em outros mitos de mesmo grupo, e das
inter-relaes destes feixes de relaes que emerge a funo significante dos
mitemas (Lvi-Strauss, 1974:243-244).
A partir destas consideraes, chamam primeiro a ateno aquelas
categorias relativas ao cdigo sonoro/visual, e a alguns mitemas podem ser
destacados. Em M1, a mulher toca flauta e canta de madrugada, horrio em
que os homens usualmente tocam flauta, porm os homens tambm o fazem
de tarde. Ocorre que somente noite as pessoas no sentiriam falta dela e,
devido escurido, ela poderia ser tomada por um homem. O evento inicial
neste mito, constitudo pelo cdigo sonoro-musical, encontra-se relacionado ao
cdigo visual (escuro) e idias de logro, iluso, e decepo, to presentes na
esttica e cosmologia xinguanas (Basso, 1987a). Mais adiante, o marido
ciumento, assassinado pela esposa vingativa atravs do afogamento no mel,
transforma-se em um sapo grande que s pode cantar na chuva e que, aqui
novamente entrando o cdigo visual, no deve aparecer s pessoas por ser
assustador. Ao final, o narrador relembra que os homens memorizaram as
msicas que ouviram da mulher e que da decorre o conhecimento atual que
116
seu povo tem deste repertrio. Esta uma caracterstica de muitos mitos, de
ser uma narrativa do tipo por isso que hoje.... M1, M3 e M4 possuem este
mote finalizador, mas que mais do que uma figura de retrica: desta forma, a
validade dos acontecimentos narrados nos mitos realada com uma prtica
presente. Este tratamento de alguns mitos ou mitemas, como que em discurso
paralelo ou em off, que aponta para a origem de um fato verificvel no
presente (p. ex., o momento e a razo que fizeram com que o peixe tupato
ficasse com a cara virada) acaba servindo, por induo, para atestar o carter
148
iajo (verdadeiro) do prprio mito .
Em M2, a flauta kawok tocada no mesmo momento em que ocorre a
relao sexual de Ajoiui com a mulher de Kamo. Ao final, todos vo embora
tocando flauta. Na verso de Barcelos Neto, o povo abelha que comeou com
kawok, e, enquanto Kamo preparava o veneno, o povo abelha estava tocando
a flauta a convite de Kamo.
J no M3, o choro da criana incomoda os pais. , portanto, um evento
sonoro que gera a ao do mito. Da mesma forma, o fato do Awaulu ouvir o
que os pais da criana dizem, suas ameaas de abandono, inclui-se no cdigo
sonoro. Mais adiante, Awaulu toca kawok na casa das flautas e o rapaz a ouve
e segue seu som (na verso Kamayur, ele ouve o som do pilo que a menina
usa para socar polvilho)149. Quando Awaulu ouve o choro do beb, para de
tocar flauta (na verso Kamayur, o rapaz que toca a flauta de Awaulu e este
para de pescar para ver quem est tocando). Ao final, o rapaz faz sua kawok e
toca as msicas de Awaulu que memorizou. Da que, desde ento, todos
passaram a conhecer este repertrio.
148
Sobre o uso do discurso indireto como afirmador da autoridade do fato narrado, veja
o caso das narrativas mticas Kalapalo, onde este modo do discurso serve para uma
descrio mais aceita das emoes dos personagens do mito do que uma sua descrio
direta (Basso, 1995:295). Sobre esta e outras formas de discurso nas terras baixas, ver
Beier, Michael & Scherzer (2002).
149
importante notar que a mo de pilo um objeto ritual feminino, inclusive que
fazia parte, at h pouco tempo, do rol de objetos que uma mulher deveria ter quando
se casasse com um homem, assim como parte de seus pertences funerrios,
juntamente com o fuso de fiar algodo que serviriam de armas no trajeto at a aldeia
das almas, o ywuejokupoho. Tanto o pilo quanto a flauta, associados sexualidade
feminina, so produtores de som, um som capaz de atrair os homens. Tem-se aqui o
que Lvi-Strauss entende como a transformao de um aspecto homlogo de um mito
em outro (1991:22).
117
150
Piedade desenvolve este aspecto do som em sua tese, partindo do fato de que ouvir
um fenmeno que se d na espacialidade, conclui que h um vnculo ontolgico
entre o som e o espao que lhe originrio (2004:80).
118
Kamo.
- enquanto Kamo prepara o veneno, o povo abelha toca kawok.
M3 - o choro da criana incomoda seus pais.
- Awaulu ouve as ameaas dos pais da criana.
- o rapaz segue o som da flauta de Awaulu (ou do pilo da garota)
- Awaulu ouve o choro do beb e para de tocar flauta (ou ouve o
rapaz tocar flauta e para de pescar).
- o rapaz toca as msicas que memorizou de Awaulu.
M4 - Kamo ouve a reza de Iapojoneju distncia.
quatro mitos: no M1, ela quem ensina a msica aos homens; no M2, a
mulher quem ensina o antdoto para o veneno; no M3, atravs da mulher
que o rapaz chega at a msica de kawok; e no M4 Iapojoneju quem toca e
sabe efetivamente o repertrio das flautas.
Da juno destas substncias com o som da flauta no M2, emerge uma
situao altamente poderosa: o esperma, simultaneamente unido ao mel e ao
som da kawok, resulta no antdoto capaz de cortar o efeito do veneno
produzido pelo invejoso e ciumento Kamo. O paralelo entre a flauta kawok e
as relaes sexuais reforado no s nesta passagem do M2, como tambm
no M3, no qual os jovens mantm relaes sexuais enquanto Awaulu toca flauta
151
na casa dos homens, acabando por gerar um beb .
151
A associao entre mel, veneno e esperma parece ter pertinncia no mundo
amerndio, se lembrarmos das mitolgicas de Lvi-Strauss, que trabalha suas
homologias em vrios mitos americanos. Por exemplo, na Pea Cromtica do Cru e o
Cozido, h um estudo dos mitos de origem do veneno de pesca (timb), Lvi-Strauss ali
atravessando um conjunto de temticas relacionadas ao cdigo sexual, como a idia da
sujeira feminina como veneno supremo, o pnis do tapir como objeto de desejo das
mulheres e instrumento de punio pelos homens enciumados, o odor vaginal como
contrapartida da funo nutriz (1991[1971]:245-668). A origem do veneno, ponto de
isomorfismo entre natureza e cultura, aparece enquadrada em uma dialtica dos
pequenos e grandes intervalos que rege o cromatismo das cores e da msica
(op.cit:267-8).
120
de seu marido. No M2, Kamo convida o povo abelha para festa com a inteno
de mat-los, logrando-os com o mingau. Ajoiui faz sexo com a esposa de Kamo
para salvar seu povo do veneno, isto sem que Kamo perceba (na verso de
Sapaim, o povo abelha engana Kamo atravs da saliva falante152). Ainda no
M2, a mulher mente para Kamo dizendo no ter tido relaes sexuais com
Ajoiui. No M3, a moa esconde o rapaz de Awaulu, enganando-o por vrios
meses (na verso Kamayur, a moa mente vrias vezes para Awaulu sobre
quem havia sujado seu corpo de urucum). Esta moa afirma ainda que Awaulu
o pai da criana que ela est esperando, e que foi ele mesmo, Awaulu, quem
tocou a flauta e no outra pessoa (nesta verso o rapaz pega a kawok e toca,
apesar da moa alert-lo para no fazer isso). J o M4 por inteiro uma
narrativa sobre o logro. Kamo inicia propondo um casamento por interesse, e,
aps conseguir o que queria roubando a flauta, se separa da mulher. Quando
esta retorna reivindicando a posse da kawok, ele admite que as flautas no
lhe pertencem, no entanto, probe as mulheres de tocar os instrumentos. A
flauta de Kamo passa a ser um simulacro daquelas que as mulheres possuam.
Este aspecto, recorrente em grande parte da mitologia amerndia, como na
figura do trickster, profundamente observado por Ellen Basso nas narrativas
Kalapalo: a tica e a esttica da decepo (1987a)153.
De fato, o papel que as iluses, trapaas e ardis desempenham nas
narrativas xinguanas parece ressaltar a todo tempo uma especial qualidade
humana, que vem a ser a habilidade de criar iluso por meio de fabricaes
verbais e visuais, em geral atravs das artes e artisticidade. Muitos estudos
sobre as cosmologias amerndias enfatizam ainda que estes povos no
percebem esta habilidade como sendo exclusivamente humana. A prpria
noo de ser humano pode ser bastante ampliada neste contexto etnogrfico.
152
Este subterfgio da saliva falante aparece em vrios mitos (ver nos anexos o M9,
mito de kamukuwak), o que ressalta a capacidade que as extenses materiais dos
seres tm em perpetuar a ao e a inteno destes, mesmo quando dissociadas de sua
origem. No caso da saliva, cria-se a iluso de presena, reforando o jogo entre viso e
audio to elaborado em muitas narrativas mticas. No caso do esperma, outra
extenso do ser, a capacidade a de um contra-feitio, de antdoto. Lembro que a
saliva, em alguns contextos das Terras Baixas, um quase "sinnimo" de esperma.
Sobre a idia das substncias corpreas como um duplo, ver Lagrou (1998).
153
A outra face da moeda da tica e a esttica deceptivas a vigilncia capilar, ligada
disciplina. Os procedimentos de investigao e percia aparecem como o cimento entre
as faces referidas.
121
aunaki O logro
M1 - mulher se passa por homem
- enterro de uma carcaa de veado em lugar da mulher.
- mulher vive escondida em outra aldeia
- mulher mente sobre a morte de seu marido
M2 - Kamo convida mapapoho com a inteno de mat-los.
- sem que Kamo perceba, Ajoiui faz sexo com sua esposa.
- a saliva que fala em lugar do povo abelha
M3 - a moa engana Awaulu com o rapaz
- a moa mente sobre a paternidade do filho que est esperando
M4 - Kamo se casa por interesse nas flautas
- ele rouba kawok das mulheres
Assim, nos quatro mitos que me foram contados pelos Wauja para
explicar como aprenderam a tocar kawok, destaquei trs aspectos: o cdigo
sonoro, as substncias transformadoras e os logros. Estes trs elementos se
encontram profundamente imbricados na cosmologia, na tica e na esttica
Wauja, sendo a muito saliente a idia de transformao. Alm de muitas vezes
encontrarmos nos mitos passagens que contam como os animais ou apapaatai
perderam os atributos herdados ou mantidos pelos humanos, podemos
encontrar tambm uma profuso de elementos que procuram dar conta da
122
O aunaki de Iamurikuma
M5 - Iamurikuma
154
A classificao e numerao destes cantos correspondem ordem em que eles
aparecem nas gravaes do ritual por mim etnografado em 2001, indo de I1 a I40.
Apesar de serem cantados por Iut na seqncia abaixo (I39, I40, I31, I12, O2, I30,
I3), mantenho a numerao conforme a ordem das gravaes para efeito de
organizao do material. Sobre as transcries musicais, veja o Captulo IV.
155
Segundo me informaram, walakau um pssaro que ningum nunca viu. S se ouve
seu canto quanto se est perto da morte. Dizem que a mulher de Malakuiawa (o antigo
chefe) o ouviu um pouco antes de seu marido morrer.
156
Atagiuwekeho so os rapazes em recluso pubertria, literalmente dono da atagia,
erva dada a eles, em forma de infuso, para vomitar. J os haukenejo so homens em
couvade, que permanecem com suas mulheres aps o parto durante os primeiros
meses. O tempo de recluso ps-parto varia conforme o nmero de filhos, isto , aps o
nascimento do primognito o perodo maior em relao aos nascimentos seguintes.
124
CD 1 faixa 6
130
CD 1 faixa 7
>|<
157
Lembro que esta ciso tema fundamental do yawari, tratada especialmente no 1
Canto (cf. Menezes Bastos, 1990:182-3). Pode-se dizer que os ritos, assim como os
mitos e os motivos (musicais) se pensam a si mesmos.
134
estas verses, os homens saram para pescar porque estava para acontecer
uma festa de iniciao dos meninos, a furao de orelha (conhecida entre os
Wauja por pohok). Como ocorre antes de grandes festas intertribais, uma
grande pescaria organizada para que se possa alimentar todos os
participantes, as pessoas da aldeia e os convidados. Alm disso, o fato de
haver uma festa de iniciao masculina leva a crer que havia meninos
reclusos na aldeia (os atagiuwekeho), que portanto no foram pescaria, o
que explica porque Kamatapir est junto s mulheres. Note-se que estes
reclusos se encontram em uma fase de transio, assim como os haukenejo,
que se pode chamar de liminar (cf. Turner, 1982): trata-se de um momento
perigoso e importante da vida que a passagem da vida de menino (que vive
prximo me e ao mundo das mulheres) para a de homem158.
Atravs da narrativa de Iut, tudo se inicia na mais perfeita
normalidade: o chefe, como de costume, convoca os homens para uma
pescaria coletiva, atividade que sempre antecede as festas. Antes da pescaria,
as mulheres vo cuidar da mandioca, preparar o beij que seus maridos
levaro para o acampamento de pesca. Seguindo as normas, os reclusos no
foram pescar, e ficam junto s suas esposas ou mes. No entanto, aps a
demora excessiva dos homens e insatisfao geral de todos os esfomeados que
ficaram na aldeia, um dos reclusos, a mando das mulheres, sai de seu
resguardo para investigar o que estaria acontecendo. Da ruptura primeira, a
quebra, por parte dos homens, do acordo de retornar para a aldeia com peixe
aps cinco dias, advm todas as demais rupturas e transgresses expressas no
mito. Na verdade, a quebra desta regra expressa uma dupla transgresso: os
homens rompendo o acordo e o recluso saindo da recluso. Aqui se encontra o
motor inicial desta narrativa mtica, o fato gerador de todo um conjunto de
conseqncias, como o surgimento das iamurikuma: a quebra de reciprocidade,
158
Para o mito Wauja que trata da gnese deste ritual de iniciao masculina, veja o
M9, Kamukuwaka, nos anexos. H interpretaes diferentes para os significados deste
tipo de rito de passagem. Se Gregor aproxima a furao de orelha Mehinku
menstruao e a smbolos femininos (1985), Barcelos Neto acredita que o pohoka
Wauja o ritual de confirmao da posse de uma substncia que diferenciaria os
nobres das pessoas comuns (2004:241). Para o caso dos Matip, ver Veras (2000).
Segundo DaMatta, a liminaridade dos ritos de passagem est ligada ambigidade
gerada pelo isolamento e pela individualizao dos novios, portanto a experincia de
estar fora-do-mundo que engendra e marca os estados liminares, no o oposto
(DaMatta, 2000:23).
135
159
Este ponto ser melhor observado quando discutirei as imbricaes entre relaes de
gnero e poltica no contexto ritual, nas consideraes finais.
136
160
No yawari, tudo isto aponta para a precariedade do contrato social e para uma
saudade insuportvel do tempo do cio amoroso, onde a reproduo no motor (cf.
Menezes Bastos, 1990).
161
Catbase no sentido de uma viagem ao subterrneo, de explorao dos limites da
sociedade (cf. Serra, 2004).
137
162
Este tipo de reao musical das mulheres frente quebra da reciprocidade por parte
dos homens recorrente no mundo amerndio. Por exemplo, as mulheres Kulina,
atravs dos cantos dosehe, expressam seu descontentamento quando os homens no
trazem alimento (Bueno da Silva, 1998).
163
De forma semelhante, um homem xinguano totalmente paramentado pode ser
interpretado como um cone do feminino (Gregor 1985:189). Unindo o feminino e o
masculino, o homem integralmente paramentado para rituais com kawoka est
associado ao perigoso mundo dos apapaatai.
138
164
Trata-se de uma caracterstica presente em muitos mitos amerndios, como o da
cobra-canoa (S. Hugh-Jones, 1979; Piedade, 1997). O carter topogrfico nestes mitos
cria um vnculo geogrfico que confere verossimilhana ao mito.
139
165
Na representao do cosmo Wauja a aldeia dos mortos est no cu, a yuejokupoho
cujo acesso feito por uma escada, mapiya.
166
H uma descrio desta dimenso csmica, acompanhada de desenho, feitos por
Itsautaku em Piedade (2004:60).
167
A etimologia da palavra subir, em portugus, aponta para o latim sub-ire como ir
de baixo para cima. Curiosamente, na lngua latina esta palavra quer dizer ir para
baixo de algo, sub-ire (ver Lewis, Short & Freund, 1979).
140
168
Em muitos mitos Wauja e amerndios, h esta figura da personagem humana que,
atravs de experincia emprica entre os apapaatai, e mediante rigorosa memorizao,
informa aos humanos sobre uma prtica daqueles. Este carter da vivncia de um
humano d veracidade ao ritual aprendido no mundo dos apapaatai. Alm disso, trata-
se de uma experincia basicamente xamnica, da podendo-se depreender que a
realizao de um ritual aprendido dos apapaatai, relatado pelo mediador xamnico,
possui ligao com o mundo da cura. Ver os mitos do kukuho (M11 nos anexos) e de
Auwaulu (M3 neste captulo) que tambm trazem esta caracterstica.
142
>|<
143
CAPTULO IV
169
A classificao etria feminina nativa inclui: iamukutai ou tenejota = menina
pequena; miumekte = pr-adolescente; paakualutai = menina reclusa; iamukutopalu
= quando sai da recluso; memejoiyalu = jovem que no mais virgem; ianunumona
= jovem casada; aripi = madura; aripixixelumona = velha.
170
Os Wauja em geral apreciavam muito quando eu cantava suas msicas. Isto aponta
a dificuldade inerente do repertrio nativo, por eles mesmos reconhecida, e para o
respeito que despertado quando ele executado corretamente. Trata-se de uma
esttica e tica do respeito e do valor da msica.
144
>|<
>|<
171
Este tipo de pescaria a mais fcil de se empreender quando se almeja grande
quantidade de peixes pois, aps espalharem o veneno do timb na gua, estes ficam
desmaiados, qualquer pessoa, ento, podendo recolh-los. Conforme Harrison (1977),
147
gravao para o pessoal assistir: pediram para repetir vrias vezes. Este tipo
de jocosidade, que no ocorre na vida cotidiana, permeou todo o perodo do
ritual, mesmo durante suas pausas.
>|<
172
Segundo Franchetto (comunicao pessoal), os Kuikuro tm uma palavra especfica
para indicar a traduo da msica instrumental em msica vocal: angahokogotsie. Entre
os Wauja a palavra utilizada parece ser asatehene, que tanto pode significar revelar
quanto mostrar e/ou traduzir.
173
Seguindo as explicaes do Captulo II sobre o uso do sufixo modificador kuma,
poderamos pensar o repertrio de kawokakuma como uma derivao daquele das
flautas kawok de acordo com a segunda possibilidade de uso deste sufixo, um outro
kawok. Ou ainda, se pensarmos na mitologia que apresenta as mulheres como
primeiras donas das flautas (M4 do captulo III), a primeira forma de uso poderia
fazer mais sentido, visto que indica no propriamente uma exterioridade frente a uma
essncia kawok, mas talvez um excesso em relao s flautas. O sufixo kuma, parece
condensar os dois significados contraditrios do modificador: ele indica diferente, mas
tambm arquetpico. O Outro o Prprio, e vice-versa (Viveiros de Castro 2002:31).
interessante notar que kawokakuma est em forma masculina, do contrrio seria
150
>|<
[Posio inicial]
>|<
174
Conforme o Captulo II, para a relao entre o doente e seu kawokalamona.
154
>|<
>|<
A frase a seguinte (sua altura pode variar de uma pea para outra, de
acordo com o centro tonal em questo):
158
K44
uialalakatapi
Exegese k44:
A msica de Kawok dividida em msica da manh, msica da tarde, da
madrugada. Tem repertrio chamado de mepiawakapotowo [dois dedos] e o
da tarde uialalaka [tambm chamado de maiuwatapi]. Esta msica de
uialalakatapi e a explicao a seguinte: Tinha um ndio Mehinaku, chamado
Iyapanapa que casou com uma ndia Trumai. Outra mulher, para sacanear com
a Trumai, fez msica [N.T. Todo ndio Kalaplo, Kuikuro, Wauja, todo xinguano
se considera o melhor, a tribo mais verdadeira175]. Ento a mulher fez msica
falando que Iyapanapa diz que casou com ndia Kalapalo, mas no verdade,
ele se casou com Trumai. Essa mulher tem o nariz cumprido e largo, ele se
enganou.
175
Segundo Tupanumak, os verdadeiros xinguanos so os Wauja, Kuikuro, Kalaplo e
Kamayur, s que estes ltimos antigamente, no eram considerados xinguanos.
Tupanumak relembrou que kamayula quer dizer "comedor de gente". Confirma-se aqui
mais uma vez este carter execrvel de canibalismo (conforme a tica xinguana)
atribudo aos Kamayur (ver Menezes Bastos, 1995).
160
161
K20
Exegese k20:
Esta msica de maiuatapi, dentro da qual a mulher fez sua msica. Uma
mulher est falando para outras mulheres: "olha, aquela mulher est me
comparando com wataho [NT. tipo de cobra), com kuwaporon [?]. Voc pior,
seu andar parece com o de Sapukuyaw que fica pulando. Voc me chama de
wataho, eu te chamo de Sapukuyaw ".
162
K46
Kanumana piyawiu Nataki, Nataki Onde voc foi, Nataki?
Turista hay eheje Turista escondeu voc?
Eheje natuwiu kata Ele me escondeu,
Omapai Nataki falou Nataki
Exegese K46:
[NT. Kalupuku diz que fez esta msica para Nataki, outro nome de Araku, filho
de Kaomo quando ele foi trabalhar para os turistas na fazenda do Estenio].
Sempre que as mulheres cantavam, Nataki emprestava colar, cocar, guizos,
tudo que a gente precisava. Ele gostava muito das cantoras. Ento, quando ele
foi para a fazenda, elas fizeram a msica dizendo que o turista escondeu
Nataki.
163
K26
Niyneje kumay Ento eu vou
nehejueneje piyutse-euh kat me esconder (sumir) de voc
omanupitsi falou para mim
omaha miyk Nataki dizem que Nataki falou
ponukahataku manatu voc ficou brava comigo
omanupitsi Nataki, Nataki falou para mim Nataki, Nataki
164
K48
Pakixe penekuma Levante
Pakixe nukupogaitsa levante do meu colo
Nutukakaku meu irmo
Hukanakulu* onukamiy* natu Seno vagina molhada vai ficar brava
nutukakaku comigo, meu irmo
Atsuke atsukemiy onukamiy natu Seno friagem vai ficar brava comigo
nutukakaku, nutukakaku meu irmo, meu irmo
Exegese K48:
Tinha mulher que vivia com a vagina molhada, escorrendo. Todo mundo via, e
chamavam ela de hukanakulu, vagina molhada, este ficou o apelido dela. Um
dia, seu marido foi namorar com outra mulher que disse para ele: sai da minha
rede, seno Hukanakulu vai ficar brava. Outras mulheres ouviram e fizeram a
msica para cantar no enekutaku.
165
K25
K21
K22
Aunumana, aunumana Venha aqui, venha aqui
Patuwato Ukaruw traga (sua mulher) Ukaruw
Aunumana, aunumana Venha aqui, venha aqui
Patuwato Ukaruw traga (sua mulher) Ukaruw
Maka aunupa okanato Para ns vermos a boca dela
Itsapai Tupatu* okanatu Parece com a boca de tupatu,
Ukaruw Ukaruw
Exegese K22:
Tinha um Mehinaku chamado Ukaruw que casou com Mukura, talvez ela fosse
ndia Matip. As mulheres Mehinaku fizeram esta msica para a mulher, falando
da boca dela, pois quando sorria ela ficava com a boca torta, igual ao tupatu. A
msica diz: "Ukaruw, traz sua mulher para c, para a gente ver a boca torta
dela".
168
K49
Aitsa tsama Talakuway no parece Talakuway
Ehejua nutsa
fugir/esconder de mim
Iapai kamo kana indo para o buraco do sol
dentro dele
Onaku nateja
Exegese K49:
[NT. Kalupuku fez esta msica falando de seu primo Talakuway, filho de
Kaomo. Na msica ela chama ele de irmo. Ela est contando de uma poca
em que ela morava nos Kamayur [ela era casada com um Kamayur que
morreu] e viu Talakuway namorando uma moa de l. Ela diz na msica que
vai contar pros Wauja o que ela viu].
K24
Pukutipona tsapatama pitsuma Enfiaram a cabea do pau em voc
nahatoja ouviram?
manikipona tsapatama pitsuma Todo mundo tambm enfiou em voc
nahatoja ouviram?
Openuma atsik pumepen depois disso voc que tem nojo de
nipitsi mim?
nahatoja ouviram?
Exege K24:
A maior parte desta lngua Mehinaku. Tinha uma mulher Wauja que kawok
transou com ela, todo mundo transou. Ela namorava um rapaz Wauja e ele
ento resolveu ir para aldeia Mehinaku arrumar uma mulher para casar. Foi l,
casou e voltou para a aldeia Wauja com a mulher. noite, a antiga namorada,
aquela que kawok transou, foi cantar sobre a ndia Mehinaku. Esta percebeu
que a msica estava falando dela e ento ela reagiu e foi l no centro cantar e
pagar a ofensa da outra dizendo: "voc tambm no tem a vida normal.
169
kawok te pegou, voc transou com todo mundo, voc tem filho, voc tambm
tem a vida pssima, como eu". A mulher Wauja ouviu e foi deitar, enquanto a
outra continuou cantando. histria que aconteceu mesmo.
170
K50
Piyakala muya Autsamiy V Autsamiy
pixa muya Nisu owakul aruim comer arroz que Nisu cozinhou
muya Autsamiy
Piyakala muya Autsamiy
Exegese K50:
Tinha um rapaz que trabalhava para os brancos no posto Jacar que chamava
Autsama. Quando ele voltou para a aldeia as mulheres cantaram: " Autsama,
voc pode voltar para o Jacar para comer arroz, continuar a trabalhar para os
brancos. Voc pode voltar". As mulheres estavam com cime dele, porque as
outras ndias chegavam l no Jacar e transavam com ele.
171
K51
Aitsa tsama piykuwehene Voc no despediu de mim
nuya Matsirap Matsirap
Aitsa tsama piykuwehene Voc no despediu de mim
nuya Matsirap Matsirap
nelele neputahatayai Estou chorando no caminho
Piulaga waakunapu No caminho para o rio
Matsirap Matsirap
Aitsa tsama piykuwehene Voc no despediu de mim
nuya Matsirap Matsirap
nelele neputahatayai Estou chorando no caminho
Piulaga iyakunapu No caminho da estrada
Matsirap Matsirap
Exegese K51:
Tinha um homem chamado Matsirap. Ele foi embora e as mulheres que ele
namorou ficaram com saudade e fizeram a msica dizendo: "Matsirap, por que
voc foi embora sem avisar, sem despedir da gente? Estou triste, chorando.
Quando vou pro rio eu choro, quando vou pra roa eu choro, quando vou para o
Iyakunapu [caminho para o posto Leonardo] eu choro. Por que voc no
avisou?".
172
K23
Pisejoya Apaopuwa seu irmo Apaopuwa quem passa
Ixukanakuteneje pohonpula cheiro de vagina no seu caminho
Kamatsiyaro Kamatsiaro
Exegese K23:
Tinha um homem, que sua mulher teve gmeos [mepiyawata] e enterraram
os dois. O irmo dele tambm transava com a mulher. Ele transou com ela no
perodo do resguardo, enquanto o marido ainda no estava transando. As
mulheres da aldeia fizeram msica para o marido: "voc est a sem transar
com sua mulher, enquanto isso seu irmo namorou ela. Pode ficar a, voc nem
sabe disso".
173
K53
Mulumepe piyepene V embora
omaha nupitsi Kaomo falou para mim Kaomo
Akakayata piyulaga No deixe a Piyulaga (nome da
nahateja lagoa)
ouviram?
174
K54
K iyupe katano Quem esta pessoa
akapitsahapai na na que est lutando pessoal?
sejekjuto napo omejo katano magra este marido
ahta opaka omejo katano pequeno rosto marido
nahatoja ouviram?
K iyupe katano Quem esta pessoa?
Exegese K54:
Tinha um rapaz que estava lutando [kapitsapai] no centro da aldeia. Ele
tinha uma namorada. A mulher dele era feia, muito magra, de rosto
pequenininho. Ento a namorada fez a msica dizendo: "Quem est lutando?
o marido da mulher de rosto pequenininho".
175
K55
Aitsa awojo Ajuypixu No est bom Ajuypixu
ixa kisuwep omala nmana, Comeu branca no norte,
Ajuypixu Ajuypixu
176
K56
Pawtsepete Yukirima Por isso Yurikima
ayawtuwa nupitsi apaixonou por mim
oputa n unota me deu espelhinho
177
K57
Kamano kala pelelepei Por que voc est chorando?
Iylupenu pauteheno Alaweru okuwapitsa Procura dentro Alaweru
do barbante
Ewelupi Ewelupi [irmo de Kamo]
Exegese K57:
Um dia, uma mulher de outra aldeia, de outro povo veio aqui na aldeia casar
com um rapaz daqui. Passou o tempo e ela foi embora pra aldeia dela e o
namorado ficou chorando, com saudade. As outras moas da aldeia ficaram
sabendo que ele estava chorando, ento outra namorada dele fez cano que
fala voc no precisa chorar, voc pode procurar o enfeite daquela mulher
[que chama Alaweru], ele est escondido ali [apontando para a palha da parede
na altura do telhado].
178
Dana de aluwa.
Em primeiro
plano, as
cantoras e irms
Katsiparu e
Kalupuku
179
I 13 - aluwa, morcego
Aluwa tselu tselu Morcego (lngua, jeito de falar de
Aluwa aluwa morcego)
kpeyuya aumateneje O que ns vamos fazer
yixuhtapa enejanau com o saco de vocs, homens?
Aluwa tselu tselu Morcego
Awa awahupixeneje Ns vamos nos pendurar
yixuhtapa okahitsa enejanau no saco de vocs, homens?
que sentia cime de seu marido. Aps estes cantos e convites, as mulheres
voltaram a se reunir no centro e cantaram mais duas msicas de iamurikuma.
>|<
I 14 - iusi, perereca
K59
K60
K61
K62
Exegese:
Um homem fez um desenho para deixar sinal para a namorada no caminho.
Eles tinham combinado. As outras mulheres ouviram o combinado e falaram,
cantaram: "olha o meu desenho, o jeito de combinar".
K63
Ptemekele, ptemekele Oua, oua
Nuwtanata onaku dentro da minha flautinha
nukapotowoh meus dedos
omaha miyk dizem que falou
nutukaka nutukaka meu irmo
183
Exegese:
tambm sobre cime. Um homem era tocador de kawok. Ele falou para a
mulher: "presta ateno que eu vou tocar kawok e vou fazer sinal com o meu
dedo dentro da kawok e depois que eu terminar voc vai me esperar num
lugar combinado para a gente se encontrar". Ele foi para a kuwakuhonaku
[dentro da casa dos homens] e tocou kawok, danou e quando acabou eles
foram se encontrar. As ex-namoradas desse homem ficaram sabendo da
combinao e fizeram a msica para cantar no enekutaku. Elas disseram assim:
"voc presta ateno no meu dedo no kawok. Na hora que eu fizer sinal
dentro do kawok, voc vai l encontrar comigo. Nosso irmo est falando isso
para aquela mulher".
K64
Exegese:
Namorada do chefe Topatari fez esta msica para a mulher do chefe, que,
diziam, tinha a vagina grande e reta igual a um trecho do rio Kuluene. Um
homem casou com uma mulher que tinha a vagina grande [autonapupai],
comprida. As mulheres ento cantaram: "voc sonhou em casar com essa
mulher de vagina comprida?". Elas fizeram msica para provocar a mulher, de
cime. Compararam a vagina dela com o trecho do rio Kuluene prximo
aldeia dos Ikpeng [Kalupuku chamou de Txico], que no tem curva, bem
reto.
K65
Exegese:
[NT. Kalupuku diz no saber se mulher e homem brigando ou se mulher
com mulher que esto brigando].
As mulheres cantam: " por que voc est bravo (a) com a gente? Ser que
por causa de pinto de homem? Ou ser por causa de alguma coisa importante?
Eu acho que por causa de homem. Esta msica Mehinaku.
K66
K67
>|<
32o. trmino -Mulheres voltam a formar bloco I11 I12 I2 I4 I24 I23
dia 19:50
- s memejoiyalu cantando. K74
pausa das arip.
>|<
Dia 16, alguns homens foram pescar para a festa e, ento, as mulheres
cantaram por cerca de meia hora. Em condies normais, elas voltariam a
cantar mais tarde, como na madrugada do dia 2/9, porm, como estavam
tristes com os homens por causa das reclamaes sobre os cantos de
kawokakuma e do futebol durante suas performances, encerraram no final da
tarde mesmo.
>|<
176
Opukakala remete ao mito de iamurikuma, particularmente aos objetos utilizados por
Kamatapir para fazer o buraco e a travessia (ver Cap. III). Esta uma palavra
utilizada tambm para designar os objetos representativos de determinados rituais que
so entregues para as pessoas envolvidas, como: matapu, zunidor, durante a festa do
pequi; kutejo, p de beij, e tunuai, desenterrador de mandioca, na de kukuho, o
dono de mandioca. Literalmente esta palavra significa o que foi a origem dele,
187
>|<
paramentadas por Iut, cada cantora saiu da casa e realizou seu canto do lado
de fora, em frente porta, enquanto as demais mulheres respondiam iauahia,
iamurikuma do lado de dentro. Aps este canto, a cantora seguia at meio
caminho entre a casa e o enekutaku, onde executava mais uma vez o mesmo
canto. Uma terceira execuo se dava no prprio enekutaku.
Cantoras de opukakala.
178
Segundo Tupanumak, ipitsehene corresponde ao movimento ondulante das cobras
e minhocas; ipi quer dizer curva.
189
>|<
>|<
Houve uma pausa de dez dias nos cantos das mulheres. Dia 20 de
outubro, ao meio dia, enquanto os homens jogavam futebol, as mulheres que
se preparavam para cantar no enekutaku ficaram bravas novamente por verem
mais uma vez o ptio ocupado com o jogo e, de forma provocativa,
atravessaram o campo vrias vezes cantando o repertrio de iamurikuma. Uma
das cantoras, Iejoku, que estava no centro do grupo, vestiu ao avesso a camisa
de um dos times que jogava. Elas cantaram por uma hora, tempo suficiente
para atrapalhar o jogo. No final da tarde, elas voltaram ao centro para os
cantos de iamurikuma. Enquanto cantavam, as mulheres se aproximaram dos
homens que conversavam sentados em frente casa dos homens e os
atacaram de surpresa com arranhes e belisces. Ao final, cantaram
novamente a msica de aluwa, morcego. Transcrevo abaixo a letra de dois
cantos de iamurikuma ento cantados.
Data horrio Disposio coreogrfica Repertrio Musical
20/10 12:00 Bloco, 1 cantora vestida no gravei
com a camisa de time +
futebol dos rapazes
md12
18:30 -Bloco no centro da aldeia. I1[ ]
at -Mulheres atacam os
68o. dia 19:20 homens
>|<
I 34
Tsiri tsiri Natuyu barulho / talvez nome prprio
Ajatapi cerca, parede.
I 35
>|<
>|<
Accio, que fora batizado com o nome Wajai, assim chamado por
Kalupuku durante sua cano. Curioso que Kalupuku cantou o nome de Wajai,
assim como o de outros homens nos demais cantos, o que, em condies de
fala, seria impensvel, pois eram nomes de afins seus. Isto mostra quanto o
canto se distancia da fala cotidiana. A mesma estrutura rtmico-meldica-
temtica se repetiu ao longo da noite, porm com a letra modificada de acordo
com quem se pretendia xingar. Ressaltar as posses de homens poderosos de
outras aldeias recorrente, utilizando para isso temas como o avio a jato, o
hotel, a maior ou menor possibilidade de aquisio de bens provindos do
mundo dos brancos, bem como os dotes fsicos dos homens de fora em
detrimento daqueles da aldeia. Pode-se notar ainda que Wajai, mesmo sendo
um kajaopa, portanto de fora e mais provido de recursos econmicos que
195
>|<
179
Acusmtico no sentido de ouvir e no ver a fonte sonora. Termo utilizado por Pierre
Schaeffer, compositor e terico da msica concreta, para tratar da relao que
estabelecemos com fontes sonoras como o rdio e gravaes, que nos impedem de ver
os objetos sonoros originais. Foi adotado primeiramente para nomear os discpulos de
Pitgoras que ouviam suas lies escondidos atrs de um pano, sem v-lo, observando
o mais rigoroso silncio. Pode-se usar como adjetivo, e a se diz de um rudo que se
escuta sem ver as causas donde provm (Schaeffer, 1983: 83-84).
180
Ipitsitsi o que chamam de urucum das mulheres. uma pasta vermelha, feita das
sementes da planta de urucum em um estado no to maduro quanto as sementes
utilizadas para o urucum dos homens. Ela tem uma consistncia menos densa que a dos
homens e sua cor no to viva quanto aquela.
196
verdadeiramente, pois as agresses fsicas eram dadas com vontade, para doer
mesmo. Ao final, a brincadeira no acabou bem, pois as mulheres investiram
contra alguns homens mais velhos e Kaomo, sentindo-se ofendido, repreendeu-
as com um pau na mo, em um aceno de ameaa. Apesar de ser muito cordato
e aliado das mulheres, ensinando-lhes cantos de kawokakuma mesmo revelia
de outros homens da aldeia, ele sentiu que elas haviam passado do limite
tolervel da etiqueta. Depois desta cena, as mulheres realizaram uns poucos
cantos de iamurikuma e foram para casa dormir, chateadas.
>|<
>|<
181
Iapojatekana um aerofone tipo flauta de p, composto de quatro tubinhos de
watanato, bambuzinho, sem orifcios e conduto (Mello 1999).
182
Este transe de Ajoukuma est detalhadamente apresentado em Piedade (2004:70-
74).
198
>|<
199
Preparao das
mulheres no mato
Mulheres
transformadas em
yuwejokui, danam no
enekutaku
202
19:00
76o. Mulheres se arrastando I39 oteju
dia dentro das casas dos donos
da festa
K99
Onaka haia jano No obtive traduo deste canto
omamitsa tojano
omapai Uixum
204
K100
K101
205
K102 Kanup
K103
206
K104
K105
207
K106
K107
208
K108
209
K109
210
K110
K111
211
K112
K113a
212
K113b
213
K114
K115
214
K116
K117
215
K118
K119
216
K120 a, K120 b
217
>|<
>|<
183
As mulheres que esto hoje na faixa dos cinqenta anos para cima, as
aripixixelumona, me relataram que foi muito bom quando apareceu nas aldeias do Alto
Xingu, nos anos sessenta, esta pea de vesturio feminino das kajaopaeneja, mulher
do branco. Segundo elas, durante as lutas elas tm que ficar abaixadas, em uma
posio que, quando desnudas, expe demasiadamente a genitlia. Assim, quando os
homens as observavam lutando, faziam muitas piadas, no apenas durante as lutas,
mas tambm depois. At esta poca, alm de se preocupar com a luta propriamente,
elas tinham tambm que procurar no se expor muito. O fato de usarem calcinha
atualmente durante as lutas igualmente motivo de piadas por parte dos homens, mas
elas preferem que eles riam de suas calcinhas que de suas vaginas e nus. No dia a dia,
elas no usam calcinha, apenas eventualmente, quando esto na cidade e ficam
menstruadas, utilizando-a como suporte para absorvente higinico. Na aldeia, quando
menstruam, ficam mais tempo em repouso, no lidam com mandioca, nem manipulam
a gua que serve a todos. Lavam-se constantemente com a gua armazenada em um
vasilhame guardado do lado de fora da casa.
219
>|<
184
O termo kanup se refere ao repertrio considerado pelos Wauja como kakaiapai,
caro, especial e ser objeto de comentrios no captulo V.
222
>|<
>|<
224
Kapi
Lutas corporais no final do ritual de iamurikuma
Os dois grupos se
juntaram e cantaram
simultaneamente msicas
diferentes em companhia
de Iut. Ao passarem em
frente s casas dos
donos do ritual, os
homens que ali estavam,
jogaram ieju, pasta de
mandioca, nas mulheres.
Os homens trouxeram a comida para
o centro da aldeia, e a distriburam entre
algumas mulheres. Depois de todos
comerem, as mulheres chamaram os
anawekeho para receberem seus
pagamentos.
226
Cada homem convocou uma das mulheres de sua casa para levar as
kamalupo, grandes panelas, para casa, tarefa que no poderia ser realizada
por homens, que no carregam nada sobre a cabea, sendo esta uma forma
feminina de transportar coisas e no h outra forma de levar as grandes
panelas de barro em segurana que no seja sobre a cabea. Assim, s 17
horas de 1 de novembro encerrou-se a festa de iamurikuma.
- Repetem coreografia
ipitsehene e cantam msica
de Iamurikuma.
12:23 - banho
- Mulheres chamam os
donos de iamurikuma para
receberem seus presentes
Fim da festa
Dias CANES
1 14/8 no gravei
2 15/8
3 16/8 I1 I2 I3 I4 I5 I6 I7 I8
4- 15
16 29/8 K1 K2 K3
17 30/8 K4
18 31/8 pescaria
19 1/9 K5 K6 K7 K8
20 2/9 K9 K10 K11 K12 [ ] K13 K14 K15 [ ] K16 K17 [ ] K18 K19 [ ] K20 K21 K22
[ ]K23 K24 K25 K26 [ ] K27 K28 K29 [ ] K30 K31 K32 K33 K34 [ ] K35 K36 K37
K38 K39 K40 K41
21 3/9
22 4/9 K39 K42 K43 I 9 I10 I11
23 5/9
24 6/9 no gravei
25 -26
27 9/9 K44 K20 K45 K20 K46 K26 K16 K47 K48 K25 K21 K22 K49 K24 K50 K51
K23 K52 K53 K54 K55 K56 K57
28 10/9 I12 I9 I13 I14 I15 I16 I17
29 11/9 I18 I19 I11 I20 I21 I22 I23 I24 I25 I26 I27 I28
30 12/9
31 13/9 K58 K59 K60 K61 K62 K63 K64 K65 K66 K67 K68
32 14/9 K69 K70 [ ] K71 K72 K43 K73 I4 I3 I11 I12 I2 I4 I24 I23 K74 K27 K28 K29 K30
33 15/9
34 16/9 K75 I29 K76 K77 K78 K79 K31
35 17/9 K81 K80 K81? K3 K1 K82 [ ] I12 I4 I2 I23 I24 [ ]Opk1 Opk 2 Opk 3 Opk 4 K83
K20 K84 K85 K26 K86 K87 K21
36 18/9 I30 I3 I12 I12 I4 I2 K88 [ ] K89 I31 I32 I12 K90 K91 K92
37-43
44 26/9 K93 K31 K79 K94 K95 K96 K97 K77 K78
45-57 viagem 27/9 a 9/10
58 10/10 no gravei
59-67
68 20/10 pela manh no gravei; fim de tarde I 31 I33 I34 I35 I36 I37 I38 I13 I11
69 21/10
70 22/10 fim da tarde no gravei; noite R1 R2 R3 R4 R5
71-72
73 25/10 K5 Krep? K98 I37
74 26/10 no gravei - Mulheres convocam os homens para fazerem flechas
75 27/10 madrugada no gravei; fim da tarde no gravei
76 28/10 K99 K100 K101 K102 K103 K104 K105 K106 K107 K108 K109 K110 K111
K112 K113a K113b K114 K115 K116 K117 K118 K119 K120 (Y) I39 K 121
77 29/10 K122 K123 K124 K125 noite no gravei I 14
78 30/10 madrugada e manh at meio dia, no gravei
79 31/10 manh at meio dia no gravei I12 + K? K126 K94 K62 + K? K63+ K? K? + K?
K64 K 127 K128 K129 K130 K131 Opk 4 Opk 5 Opk 3 K132 + I9 K133 + I9 K91
K65=92 K66 K134 K135 K136 K67 K68
80 1/11 no gravei madrugada, K?+ K? I31 Opk 2 Opk 5 Opk 3 Opk 5 I30 I3 K137 K138
I31 + K?
228
CAPTULO V
>|<
230
autor usa a imagem do fole de uma sanfona para evocar a alternncia entre
momentos de total retraimento (pensados como adensamentos) e de completa
distenso dos eventos rituais. Se uma parte do repertrio musical ligada ao
mito, a outra, K, no se atm a este, mas s paixes, aos sentimentos de
homens e mulheres, e fazem a ponte sonora entre o iamurikuma e o kawok.
So estes cantos, os kawokakuma, que merecero maior aprofundamento
analtico adiante.
De toda a descrio do ritual, identifico onze disposies coreogrficas,
pensando aqui no apenas na dana, mas nos comportamentos corporais que
se distinguem daqueles do cotidiano. Geralmente, quando a formao
coreogrfica composta de duas linhas paralelas185, as cantoras principais vo
ao centro da primeira linha, caracterizando, por outro lado, uma estrutura
ncleo/periferia, em linha. Em cada linha, as mulheres andam de mos dadas,
com a batida dos ps sincronizadas, acentuando o p direito. Este peso no lado
destro constante em todos os rituais xinguanos e percebi o constrangimento
que passam as crianas que tm seu lado esquerdo como preponderante,
encontrando maior dificuldade em danar de forma sincronizada com o restante
do grupo186. No iamurikuma observa-se o que Veras chamou de carter
catabtico da dana xinguana (Veras, 2000:73), ou seja, sua entrega
gravidade, em oposio ao acrobtico do bal clssico. Na formao em bloco,
composto por trs ou quatro linhas menos extensas, configura-se uma espcie
de retngulo. Ao observar um ritual de iamurikuma entre os Kalapalo, Veras
185
A nomenclatura aqui utilizada para as formaes coreogrficas baseia-se naquela
utilizada por Menezes Bastos (1990) ao analisar o ritual de yawari entre os Kamayur:
procisso, linha, bloco e cunha. No ritual de iamurikuma tambm foram observadas
estas mesmas disposies, com nfase nas linhas e blocos. importante ressaltar que
estas coreografias remetem ao mundo da guerra, suas formaes e disposies
(Menezes Bastos, op. cit.). De fato, tal nexo pode ter pertinncia em outros cenrios
etnogrficos, como se pode inferir no uso da metfora militar no discurso Guarani sobre
suas danas, povoadas de soldados e polcia (Montardo, 2002:236). A dana
Guarani uma espcie de treinamento militar para uma guerra iminente que, na
verdade, no existe, ao menos atualmente (op.cit:240).
186
Este caso faz lembrar o que nos mostra Hertz, atravs do exemplo da proeminncia
da mo direita, como a ambidestralidade simplesmente algo indesejvel, pois a
apreenso que fazemos das assimetrias orgnicas mantm estreita correspondncia
com a apreenso que temos da vida em oposio morte, da derivando todas as
polaridades que governam o universo em torno do sagrado e do profano. O corpo de
homens e mulheres servem, pois, como suporte de uma cadeia de associaes
metafricas e poderosas. (Hertz,1980[1910]).
233
a)
b)
c)
187
Essas adolescentes parecem ocupar a mesma posio que os tenotat, reclusos, no
yawari, de acordo com descrio de Menezes Bastos (1990:103). Segundo este autor,
estes jovens encarnam um poder oposto quele dos chefes e pajs, contaminados por
suas realizaes sociais.
235
188
Esta observao contrasta ainda com a de Lagrou, ao se referir aos ritos de
passagem Kaxinaw. Neste contexto, reservam a elaborao mais fina e cuidadosa aos
corpos adultos, enquanto os jovens so adornados com pinturas mal feitas, por serem
estes ltimos menos susceptveis aos processos de transformao (2003:103).
237
189
A ttulo especulativo, lembro que Lomax (1968) relaciona este tipo de formao
msico-coreogrfica a configuraes polticas centralizadas, o que, de certa forma,
compatvel com as idias de Roosevelt (1992:82) sobre a similaridade dos estados
amaznicos (os cacicados) com aqueles do vale do Indo e do mar Egeu, e a
centralizao do poder em sociedades aruak.
190
Esta distino observada por Menezes Bastos (1999b).
238
performance. Isto ocorreu nos cantos de teme, nas investidas de iusi e na luta
corporal.
Antes do canto de opukakala da noite que antecedeu o final do ritual,
ocorreu um momento de tenso entre as cantoras. J era noite, e seria a hora
da execuo de um canto kanup, sagrado, que as mulheres se mostraram
inseguras em realizar. Ento, o chefe Iut assumiu e cantou esta msica. As
msicas que recebem esta classificao contm uma estrutura rtmico-meldica
que no comporta erros durante sua execuo, bem como seu texto no pode
ser cantado equivocadamente, sob pena de causar doena e morte quele que
assim o executar. Em vista da gravidade que cerca estes cantos, e da relao
que parece haver entre estruturas musicais e questes cosmolgicas, trago
alguns esclarecimentos sobre a categoria kanup para, a seguir, empreender
um mergulho note-se que de profundidade exploratria devido s dimenses
deste trabalho - no cdigo musical dos cantos de kawokakuma no sentido de
contribuir com mais dados para a anlise deste ritual por excelncia musical.
>|<
Msicas kanup
191
Segundo Hill e SantosGranero, org. (2002), conjunto de estudos comparativos
aruak. Por outro lado, segundo Menezes Bastos (comunicao pessoal) os Kamayur
tm esta palavra como sua, relacionando-a a anupa, "bater". provvel que estejamos
aqui frente a etno-etimologias diferentes e, de certa forma, concorrenciais.
239
192
Ainda sobre o conceito de kanup no contexto xinguano, ver Monod-Bequelin (1975).
193
Kulatoju, nome Wauja para tico-tico-do-mato-de-bico-preto, arremon t.taciturnus.
240
M6 - Aunaki de Kanup
194
Durante a seo do ritual em que o chefe cantou as msicas kanup, eu estava
sentada diretamente sua frente, e j vinha gravando todos os cantos das mulheres,
de modo que, no poderia imaginar que Iut no estivesse me vendo com o microfone
na mo. Creio que ele estava to absorvido por sua performance que me ignorou
completamente. Ao mostrar-lhe as gravaes, ele ficou surpreso, ento perguntei se ele
preferia que eu desgravasse as msicas, e ele disse que no, que j estava feito, mas
que eu no mostrasse para as mulheres e nem para outros putakanau, ndios de outros
grupos do Alto Xingu.
241
>|<
195
Carneiro da Cunha e Viveiros de Castro (1986), ao analisarem a vingana entre os
Tupinamb , estabelecem uma relao entre esta e a memria, mostrando que a
vingana funcionaria como uma espcie de memorando, atravessando o passado,
atingindo o presente, e se projetando no futuro.
244
196
Mais adiante explicitarei estas noes de motivo, tema, entre outras.
245
197
Sua reflexo encontra respaldo nas idias de Imberty (1979), pois ambos acreditam
que o significado de uma msica no atinge necessariamente a conscincia do sujeito
sob forma verbalizada, estabelecendo-se, tipicamente, sob a forma de impresses e
sensaes vagas (Menezes Bastos op.cit.:515).
198
Neste caso, motivos e frases musicais.
247
199
Este o caso da msica das flautas Jurupari presente entre diferentes grupos do Alto
Rio Negro (Piedade, 1997).
248
200
No caso de diferentes sutes que so executadas em um mesmo perodo do dia
(isotpicas, cf. Menezes Bastos, 1990), Piedade classificou-as como subgneros:
matutino, vespertino e noturno (op.cit.:135-137).
249
201
A bibliografia que relaciona os sonhos aquisio de conhecimento nas terras baixas
vasta. Cito aqui apenas alguns trabalhos que tratam da aquisio dos cantos durante
o sonho: Viveiros de Castro (1986:542), Montardo (2002:45), Piedade (2004:75).
202
Ver mito as filhas de Kuwamutan, em que Iapojeneju aparece como uma das filhas
de pau que Kuwamutan fez para se casar com Ianumaka, ona (Mello, 1999). H
tambm uma ilustrao deste apapaatai feita pelo mestre de flauta em Piedade (op.
cit.:138).
250
Termos de anlise
203
Assim como as mito-msicas Marubo, cf. descritas por Werlang (2002), a relao
ente o mito e a msica no caso do repertrio iamurikuma se d em termos ontolgicos,
muitas vezes sendo difcil dividir o conceito.
251
>|<
Anlise das peas
A escala desta pea, bem como das demais cantadas no mesmo final de tarde,
e aqui analisadas (K26, K48, K21, K22, K24, K50, K51, K54, K55 e K56),
a seguinte:
204
A idia inicial era apresentar a anlise das transcries integrais dos dois dias que
me propus transcrever. No entanto, em vista do volume que representaria todo este
material impresso, optei por apresentar apenas uma parte, selecionada um tanto
aleatoriamente, visto que todas as canes tm coisas interessantes a serem
comentadas.
205
O centro tonal tomado aqui como a nota de maior incidncia estatstica, alm de
corresponder nota que constitui a frase . Este plo de atrao ser melhor
comentado no decorrer das anlises.
253
206
A importncia das terminaes de motivos no kawokakuma semelhante ao que
Montardo comenta sobre as finalizaes das canes Guarani (2002:139).
207
Ou seja, no vale a pena destacar esta unidade do motivo e entend-la como uma
clula independente. Vale muito mais entend-la como uma salincia do desenho
motvico.
254
motivos. Este tipo de motivo, que elabora uma oscilao entre centro tonal e
nota adjacente, geralmente inferior, pode ser chamado de bordadura208.
Aps , uma re-exposio de e um novo , inicia-se o tema ,
a
onde ocorre uma elevao da 3 m no motivo (e), alcanando o si, nota mais
aguda da escala. O motivo seguinte, (f), inicia na 3a M (tera maior) e retorna
3a m, repetindo o segmento final de (a), parte do jogo das terminaes. Segue-
se uma repetio de (e, f) e ento o motivo que em era (c), reaparece em
como (c), variado em sua primeira nota: ao invs de ser a tnica (sol), a 3a
M. Trata-se aqui de uma variao que se instaura na cabea do motivo, uma
variao ttica. O (f) volta a insistir na 3a m, articulando-se com (c), que
insiste no sol e que difere do original quanto ltima nota: a 3a m e no a
tnica, nota que corresponde ao centro tonal. Podermos dizer que se trata de
uma variao sufixal, atingindo a parcela final do motivo. Ocorre ento uma
espcie de flashback de todos os (c): um retorno a (c) e ao (c) original seguido
de (d), assim como o final do tema . Voltamos ao comeo da pea:
novamente e e . Ento, toda a seqncia de repetida com letra
em , e no entanto, aps (c), ao invs de haver a retroao a (c), como
ocorrera em , surge uma nova operao que funde a primeira metade de (c)
segunda metade de (c), gerando (a), variao por fuso do motivo
inaugural da pea. Este (a) seguido de (b c d), franca retomada de dentro
de . A partir da a pea repete duas vezes a estrutura ,
finalizando com .
208
Este termo aqui no corresponde exatamente ao seu uso na msica ocidental em
geral.
255
dizem omanupitsi (falou pra mim), e em (b) dizem Nataki, nome prprio que
designa a pessoa que falou compositora. Alm disso, em termos de sua
posio estrutural como ponto de articulao, (b) e (b) lembram o motivo
nahatej (x). Estes motivos revelam quem est falando, que o que est sendo
dito no dito pelas cantoras diretamente, mas por um terceiro. Este paralelo,
entre discurso indireto e nota grave sustentando a melodia, revela uma classe
de motivos que sugerem uma verso musical do discurso indireto no plano
meldico, podendo ser chamados de motivos justapostos de citao, pois se
justapem ao discurso, ao mesmo tempo indicando quem est na posio de
sujeito da referida ao.
As letras das canes K46 e K26, compostas por Kalupuku, tratam de
Nataki, filho do mestre Kaomo, que aprecia muito os cantos femininos, fato
raro entre os homens. Nataki passou um tempo no Stnio, em uma fazenda
onde os Wauja trabalham junto a turistas. Estas canes mantm uma ligao
interessante: K46 se dirige a Nataki, perguntando-lhe por que no voltava, se
era porque os turistas o haviam escondido. Nesta cano, Nataki responde
afirmativamente. Em K26, Kalupuku prossegue esta resposta dando a voz a
Nataki, este dizendo que iria se esconder porque ela estava brava com ele.
Interessante que a saudade aqui expressa atravs de uma pergunta acusativa
em K46, foram os turistas que te esconderam?, confirmada em K46 e K26,
esta ltima rebatendo a saudade com uma contra-acusao, a braveza da
mulher. Note-se que toda esta elaborao dos sentimentos recprocos entre
homens e mulheres feita por uma mulher, a compositora.
257
Em K21 a seqncia de
temas e motivos a
seguinte:
209
No mito de iamurikuma se pode verificar esta forma de chamar o amante.
210
Para este autor, o tema a idia musical inicial, a proposio de todo o enunciado
da pea.
259
comea o . Este tema com letra vai apresentar duas alteraes em relao
ao : a substituio do segundo (f) por (e), e a adio de um (x) ao (x x). O
curioso agora que, ao contrrio da maioria das canes, no surge aqui a
frase para pontuar o retorno de : ele repete integralmente e volta
diretamente para o tema , que agora sofreu uma grande excluso de seus
motivos iniciais. Me parece que o triplo motivo nahateja (x x x) j aponta para
esta anomalia, pois no termina no centro tonal sol mas em f.
iniciam uma grande seo de , que ser apresentado quatro vezes, sendo que
entre a segunda e a terceira vez, reaparecem, , , , . Nesta pea, fica
evidente uma preponderncia de e , que pode ser considerada uma marca
desta face feminina do gnero musical kawokakuma-kawoka. Alm disso, h
um destaque para a letra, que trata da jocosidade: as mulheres Mehinku esto
aqui ridicularizando uma mulher Matip, que quando sorri exibe uma boca
torta: trata-se do mote do defeito fsico211. As cantoras se dirigem ao marido
desta mulher, um homem Mehinku que se casou com uma mulher de outro
grupo, fato que sempre motivo de reaes deste tipo, e que, no fundo,
demonstra o cime coletivo provocado por casamentos intertnicos.
211
Tanto boca torta quanto vagina molhada da K48 so detalhes fsicos que destoam
do padro esttico aceito, prato cheio para a jocosidade.
261
212
Ver uma crtica teoria de Meyer em Keil (1994).
262
213
De fato, os jovens Wauja demonstram interesse pelo universo romntico, no que diz
respeito s msicas kajaopa que apreciam. Mas todo este interesse no amor romntico
kajaopa tem relao com uma espcie de perigo que ali existe, conforme explicarei
imediatamente.
214
Veja o que ser dito adiante sobre os cantos kapojai.
265
>|<
215
Como j notava Malinowski entre os Trobriand (1982[1929]: 324), este tipo de
presente nada tem a ver com prostituio, ou algo parecido, visto que ele no o
objetivo final, apenas faz parte do costume. Entre os Wauja, estes presentes acabam
circulando rapidamente pela aldeia nos rituais de huluki, dissipando qualquer
possibilidade de um romance ser descoberto por um marido trado. Franchetto tambm
destaca esta prtica entre os Kuikuro (1996:45-46).
268
>|<
O centro tonal neste canto mais baixo que o das canes anteriores:
f. A textura musical tem menor densidade: o conjunto de cantoras da
madrugada mnimo, variando entre trs e cinco mulheres. H um claro
englobamento de por , porm, a diferena entre e est apenas na
a
elevao no primeiro salto para a 3 , que no primeiro tema era menor e no
269
216
Lembro que estes nmeros sobrescritos correspondem a uma repetio do motivo,
porm cantados com outra letra (outras slabas).
271
perigos. Lembro que kanup aponta para os sentidos de secreto e sagrado (cf.
apresentado acima)217.
A verso para flautas kawok desta pea, que os flautistas tambm
chamam de makuku, (murioca), foi analisada por Piedade (2004:192).
Segue abaixo esta transcrio, para efeito comparativo. Note-se que o autor
havia alertado que a nota d era alta, quase correspondendo a um rb,
tornando este intervalo semelhante 2a M entre mi e f# da cano
kawokakuma.
217
Segundo Menezes Bastos (comunicao pessoal), entre os Kamayur, somente os
grandes mestres de msica podem tocar ou cantar em solo, e somente eles podem
executar as msicas kanup.
272
aquilo que ocorre em K102. Sem dvida, trata-se da mesma cano kanup em
suas duas faces, kawokakuma e kawoka.218
218
Vale ouvir a gravao desta pea, inserida na ltima faixa do CD anexo a esta tese, e
compar-la gravao de K102.
273
>|<
276
>|<
O Canto I30
>|<
Comentrio sobre as anlises
cantora principal, aquela que se posiciona no meio. Este ncleo o mesmo que
canta o repertrio de iamurikuma. Este ltimo funciona como roteiro do ritual,
que tem como script o aunaki, o mito. Os cantos de iamurikuma so, em sua
maioria, de carter austero, com destaque especial para o opukakala, que tem
uma formao msico-coreogrfica ao que parece rara no cenrio amaznico,
envolvendo solista e coro. Partes do ritual so consideradas ainda mais graves,
ligadas idia de kanup, que aponta para o segredo e o perigo219. As peas
kanup exibem caractersticas musicolgicas particulares, como formao em
solo, pulso lento, maior gama de notas e espaos de silncio.
J o repertrio de kawokakuma exibe estabilidade, de acordo com cada
sub-repertrio. Aqui o norte no o mito, mas as paixes Wauja,
especialmente o cime-inveja, uki. Da totalidade das peas de kawokakuma,
cerca de 160, 41 foram transcritas e 18 analisadas. Esta parcela, no entanto,
bastante significativa, e o que se concluiu aqui entendo que pode com bastante
segurana ser estendido para as demais peas. Pelo menos isto o que a
escuta sugere, sendo que somente uma anlise mais abrangente poder
comprov-lo. Das cerca de 40 peas de iamurikuma, foram transcritas 6 e
analisadas 2, sendo que este recorte foi necessrio devido aos limites de
dimenso desta tese.
Das anlises musicais, destacam-se vrias operaes fundamentais no
mbito motvico da msica de kawokakuma: variao ttica, variao sufixal,
fuso, tipo bordadura, jogo alternante 3M/3m, motivo justaposto de citao,
adio, excluso, prolongamento rtmico, motivo de dissoluo e motivo de
retomada. Comentou-se a importncia das terminaes de motivos, frases e
temas, bem como o englobamento do tema pelo tema . No mbito das
letras, encontrou-se nexos entre a cano, o mito as paixes, aparecendo
algumas temticas recorrentes, como o mote do defeito fsico. Na relao letra-
msica, notou-se fatores importantes como a inverso de texto e a
flexibilizao rtmica. Buscou-se aqui, um exerccio comparativo inicial entre o
canto kanup de kawokakuma, e aquele das flautas kawok, surgindo desta
anlise vrias homologias entre eles. A distribuio de todas estas operaes
219
Ser interessante, em trabalhos futuros, analisar os cantos kanup cantados pelo
amunau Iut em comparao com o repertrio homnimo de kawokakuma e das flautas
kawoka.
281
>|<
282
Consideraes finais
>|<
220
A idia de uma etiqueta xinguana, no sentido da regulao cerimonial das vrias
ticas dos grupos locais, tem sido utilizada por Menezes Bastos (1990, 2001).
283
221
Bamberger (1974), ao apresentar o mito das amazonas como a passagem de um
estado de caos -promovido pela revolta das mulheres- para um retorno ordem -
conquistada pelos homens-, centra sua interpretao na questo da dominao
masculina, dando suporte a muito do que se produziu na poca sobre este assunto nas
Terras Baixas. Com viso semelhante, Zarur (1975), no cenrio do Alto Xingu, fala em
guerra dos sexos, expresso adotada tambm por Gregor (1985), que v a ansiedade
dos homens frente ao sexo oposto como o fato que d sustentao ao pilar fundamental
da dominao masculina: o estupro ritual coletivo. Mais recentemente, Junqueira,
analisando esta mitologia xinguana, detecta ali uma estratgia masculina para impor
sua supremacia (1998: 110).
222
Lembro que Basso, tratando dos rituais de yamurikumalu e kagutu entre os ndios
Kalapalo, j destacara a complementaridade entre estes rituais musicais de gnero,
como os chama, embora enfatize sua prevalncia no contexto do antagonismo sexual
(1985:258).
284
223
Fausto argumenta que o que prprio do poltico apropriar-se da representao
da totalidade, relegando ao domstico a particularidade (1997:149). Desta forma,
compreeendo o centro da aldeia como o plenrio onde as questes coletivas mais
importantes so abordadas e as individuais so coletivizadas.
224
Ou seja, os afetos, tornados pblicos, coletivizados, so fatos da ordem do poltico,
transcendendo a separao de gnero.
225
Em muitas conversas com homens Wauja, notei que frases do tipo todo mundo foi
ou todo o pessoal falou se referiam nica e exclusivamente aos homens.
285
- 'Voc est xingando a buceta, mas dela que voc precisa, faz
falta para voc, porque voc no consegue ficar sem'.
Enquanto todos riam, inclusive o prprio Tuhu, apesar de
aparentar surpresa, um outro homem retrucou:
- ' buceta muuuuuito funda'
E ento Pakairu revidou:
-'Xingando vocs no vo conseguir aquilo que vocs precisam'.
Ela ento se virou de costas para o grupo e saiu em direo sua casa,
bem altiva, enquanto todos riam muito. Esta cena apenas um entre vrios
exemplos de como as mulheres no se intimidam com as provocaes
masculinas. H sempre a necessidade de dar o troco, puta o-pete, como elas
mesmas dizem226, e assim o fazem, na maioria das vezes cantando.
Durante esta festa, homens e mulheres Wauja alternaram cantos de trs
sub-repertrios, jatakuagakalu, matowojo e kapojai, dentre os quais o ltimo
foi o que mais me chamou a ateno, tanto pela quantidade e diversidade de
226
Esta categoria nativa ser mais discutida logo adiante.
286
227
Espero desenvolver em trabalhos futuros uma anlise mais aprofundada deste
repertrio.
228
Franchetto (1996:40; 2001:47) identifica uma srie de cantos das mulheres Kuikuro
classificados por kwamb e tolo, que acredito terem relao com os repertrios musicais
de kukuho e kawokakuma. Seria importante, contudo, a realizao de um estudo
comparativo dos cantos Wauja e Kuikuro, no sentido de apontar as similaridades e
especificidades de cada um.
287
229
. Ao observar estes cantos, chama ainda a ateno o fato de terem sido as
mulheres que trataram mais intensamente do faccionalismo na aldeia,
230
enquanto os homens se dedicaram mais s questes de gnero e uki .
Esta nfase neste tipo de discursividade poltica nica na vida social
feminina Wauja, j que as questes de gnero tm outros espaos rituais,
como a festa do pequi e o ritual de iamurikuma. Desta forma, o destaque da
especificidade do kapojai no ritual de kukuho est na abertura para o poltico,
para a manifestao da posio individual das mulheres em relao ao que
ocorre no plano coletivo, ao faccionalismo e chefia. Os cantos muitas vezes
respondem a questes que vm se arrastando no mundo social: falam de
injustias, trazem acusaes e, na maioria das vezes, funcionam como
provocaes e repreenses.
>|<
229
Ireland chama a ateno para o uso do sarcasmo no kapojai, principalmente quando
se referem aos brancos (2001:271).
230
V-se, com estes dados, que entre os Wauja no parece prevalecer um modelo que
constri as mulheres como mais emocionais que os homens. Ambos, em momentos
especficos, parecem se ocupar das mesmas questes. Para uma crtica das prticas
discursivas a respeito desta construo, ver Lutz (1990).
288
231
Dentre estes estudos, trs coletneas so marcantes: A Mulher, a Cultura e a
Sociedade (Rosaldo e Lamphere, 1979), Towards an Anthropology of Women (Reiter,
1975) e Sexual Meanings (Ortner e Whitehead, 1981).
232
Rubin (1975) desenvolve o conceito de sistemas de sexo/gnero com o qual
procura mostrar que o aspecto biolgico/anatmico no se justifica como nica
motivao da hierarquia sexual. Afirmando que o gnero sexual uma construo
social, Rubin entende que a assimetria entre os sexos decorre das diferenas de status
entre ddiva e doador, envolvendo portanto os sistemas de parentesco.
233
Outros binmios tambm foram incorporados discusso, como cultura/natureza,
ao transformadora/objeto, estrutura/agncia, todos relacionando-se respectivamente
a gnero masculino/gnero feminino.
234
Lasmar, em uma reviso bibliogrfica a respeito dos estudos de gnero na Amaznia,
sugere que o antagonismo sexual amaznico pode ser definido como um complexo
ideolgico sustentado por uma srie de mitos e rituais correlatos, que tematizam as
relaes entre homens e mulheres e enfatizam as diferenas em termos de poder e
status, definindo os sexos como grupos antagnicos dentro da mesma sociedade
(1996:57). Ver tambm Bellier (1993).
235
Nestas duas sociedades, bem como na Nova Guin, toda mitologia relacionada ao
tema apresenta como smbolos de poder os instrumentos musicais sagrados, ou
flautas sagradas, no caso xinguano. Tanto na mitologia quanto no ritual, a posse
desses instrumentos que confere controle e poder aos homens, de modo que s
mulheres cabe uma posio de ouvintes (necessrias) neste complexo. Dentre a vasta
literatura etnolgica da Melansia, ver Hogbin (1996 [1970]) e Herdt (1981). Strathern
(1988) comenta a literatura do antagonismo sexual na Melansia. Para a comparao
entre esta regio e a Amaznia com foco nas relaes de gnero, ver Gregor & Tuzin
(2001).
289
236
Como assinala McCallum (2001), vises como estas de Siskind, do casal Murphy e de
Gregor, levam a crer que os rituais de gnero destas sociedades serviriam para
expressar a hostilidade e o medo que uns sentem pelos outros (o outro sendo sempre
aquele do sexo oposto).
237
Ao analisar o mesmo mito, Segato (1998), no entanto, chega a concluso oposta,
identificando no mito um personagem que seria o portador da norma, o agente
regulador encarnado pelo princpio masculino.
238
Ritual de troca, comum em toda a regio do noroeste amaznico. Importante
lembrar que entre os grupos Tukano vigora a regra da exogamia lingstica, sendo as
mulheres sempre provenientes de outros grupos locais, falantes de uma outra lngua.
239
A equao homem:cultura::mulher:natureza largamente debatida em MacCormack
& Strathern (1980). Para uma reviso de estudos na rea de gnero nas sociedades
indgenas, o "Dossi Mulheres Indgenas" (1999) traz quatro artigos importantes:
Lasmar, McCallum, Lea, e Rodrigues, antecedidos de uma apresentao de Franchetto.
Este dossi tem como proposta reunir trabalhos que buscam lanar um olhar sobre as
mulheres indgenas pela perspectiva feminina, centrando nos sentimentos e emoes
vividos por elas. Ver ainda sobre questes de gnero entre os Wauja, Mello (2004).
290
240
Para uma reviso histrica do debate sobre o cruzamento dos estudos de gnero e
de parentesco, ver Fonseca (2003).
241
Em outra obra, esta autora trata da socialidade Kaxinaw atravs de uma critica ao
conceito de gnero enquanto identidade sexual, enfatizando o conceito de agncia e
afirmando que a construo do gnero se constitui no discurso e na prtica (2001).
291
nem mesmo os demiurgos sol e lua, apesar -et pour cause- de serem
gmeos242.
Esta criao de uma assimetria entre duas posies originariamente
forjadas no plano da igualdade se funda na no-equivalncia destas posies,
isto, no entanto, sem inferir uma tal desigualdade entre elas que justifique
falar-se em coero ou dominao. Tal argumentao ecoa de perto aquela
apresentada por Hritier (1998), para quem a diferena entre os sexos est na
origem das categorias cognitivas, na base das operaes de classificao,
oposio, qualificao e hierarquizao. H em todo este processo uma relao
conceitual em termos de peso, temporalidade e valor, inscrita na estrutura
profunda do social (o parentesco), onde se observa um domnio do princpio
masculino. Contudo, discordo desta autora, quanto realidade e universalidade
da dominao masculina.
>|<
242
O carter assimtrico da gemelaridade trabalhado em termos de uma ideologia
bipartida dos amerndios por Lvi-Strauss (1993).
243
Ver Junqueira (1998) e Gregor (1985), entre outros.
292
>|<
Voltando agora ao grfico da pgina 63, podemos ver que alm dos
rituais de iamurikuma e kawok, tambm a festa do pequi, akinaakai, focaliza
as relaes de gnero, esta festa ocorrendo sazonalmente na esfera intratribal.
No incio das chuvas de 2001, quando comeava a cair o fruto maduro do
pequizeiro, os Wauja iniciaram a festa do pequi, da qual tambm participei e
pude fazer o registro. Neste ano de 2001 ocorreram simultaneamente os trs
rituais de gnero Wauja: iamurikuma, kawok, e akinaakai, o que possibilitou
observar suas diversas interaes e dilogos244. Diferentemente dos dois
primeiros, este ritual privilegia as brincadeiras e a jocosidade, e suas
performances cnicas so muito mais elaboradas que as musicais. As partes
mais musicais deste rito so a abertura -com as performances de kuri-matapu,
cuja durao foi de cinco dias- e o encerramento, mapulaw, de quatro dias.
Contrastando com estas partes mais solenemente elaboradas, ocorreram ao
longo de um ms, vrias performances curtas, com durao de poucas horas
cada, repletas de provocaes fsicas e verbais entre homens e mulheres. Em
todo o ritual, entretanto, a questo principal a causao de cime. No prprio
mito de origem deste rito, este o ponto: os Wauja o entendem como o aunaki
sobre a origem do cime-inveja. Apresentarei a seguir um resumo deste
mito245.
O aunaki conta que havia um chefe que tinha cinco esposas, e que duas
delas eram irms e estavam insatisfeitas com a pouca ateno que recebiam do
esposo, por isso resolveram arrumar um namorado. No entanto, o amante que
foram procurar era um apapaatai, iakakuma, jacar kuma. Ao descobrir que
estava sendo trado, isto atravs de fofoca feita por uma paca, o chefe
244
Lembro aqui do canto de Kalupuku (R1) durante o iamurikuma, endereado a meu
companheiro Accio e aos demais homens que haviam xingado as mulheres durante as
investidas de kuri, parte da festa do pequi. Vera Coelho (1991-92a) tambm relata em
sua descrio da festa do pequi, a simultaneidade entre este ritual e o iamurikuma.
245
A verso integral est nos anexos, como M7, Mapulaw. H um relato de diferentes
episdios deste ritual em Piedade (2004:92-106). Ireland, em uma produo da BBC de
1996, apresenta a narrao e representao deste mito no filme The Storyteller.
Gregor tem uma descrio desta festa entre os Mehinaku (1985: 119-130), bem como
um relato sobre ela em um filme produzido em 1974 com C. Pasini, intitulado The
Mehinacu, para a srie de filmes Disappearing World.
293
246
interessante notar similaridades entre este mito e aquele do yawari, conforme
contam os Kamayur, mito que base do rito homnimo (ver Menezes Bastos,
1990:182). Este autor mostra que o ritual de yawari trata do cime, tendo canes que
expressamente dizem isto em suas letras.
247
A palavra uki traduzida por Richards por cime, e a forma ukitsapai parece
corresponder enciumar/invejar.
294
Antes de desenvolver este aspecto, pretendo fazer agora uma breve incurso
na filosofia e antropologia das emoes, comentando alguns autores.
>|<
248
Ver especialmente a seo tica III. Para o neurocientista Damasio, Espinosa
antecipou conceitos atuais da mais avanada neurocincia, notadamente em suas
hipteses sobre os mecanismos do funcionamento das emoes e dos sentimentos no
crebro (Damasio, 2004).
249
Ver tambm Cardoso de Oliveira (1991).
250
Deve-se mencionar tambm os pioneiros Durkheim e Simmel. O primeiro, a partir de
suas investigaes sobre religio, discutiu aspectos da dimenso social das emoes
(Durkheim, 1983[1912]), e o segundo tambm abordou o carter social de sentimentos
como o amor (Simmel, 1993[1892]).
295
251
Para o cenrio brasileiro no-indgena, ver o estudo de Rezende (2002).
252
H algumas etnografias sobre a msica em outras regies do mundo que levam em
conta a perspectiva em questo, como Feld (1982).
296
>|<
253
Sobre o papel positivo das emoes na tomada de decises, ver Evans (2002). H
ainda uma vasta literatura sobre emoes na rea da filosofia das emoes (Rorty,
1980; Griffiths, 2001). Especificamente sobre o cime e a inveja, ver Buss (2000),
Murphy (2002), Sesardic (2003) e Purshouse (2004).
254
interessante lembrar da etimologia das palavras cime e inveja. A primeira vem do
grego zelos, passando pelo latim zelosus e o francs antigo jaloux, chegando a sua
forma contempornea jalousie (frances) e jealousy (ingles). Se, no espanhol
contemporneo, o vnculo com o radical grego se manteve (celos), em ingls a palavra
zeal significa zelo, entusiasmo, paixo. curioso que, na lngua inglesa, a palavra
jalousie nomeia a idia de olhar atravs de cortina ou venezianas sem ser visto, algo
prximo do olhar xinguano pela fresta do sap. No caso de inveja, a palavra vem do
latim invidia e invidus, do verbo invidere: olhar (com malcia), lanar um olhar mau (in,
em + videre, ver) (cf. The American Heritage Dictionary of the English Language,
2000).
297
255
Gostaria de lembrar algumas palavras de Espinosa: o desejo a tendncia interna
do conatus a fazer algo que conserve ou aumente sua fora. O desejo do homem livre
o desejo no qual, entre o ato de desejar e o objeto desejado, deixa de haver distncia
para haver unio (apud Chau, 1983:XVIII). Curioso notar aqui que estas palavras,
provindas de um cenrio to distante no tempo e no espao, tenham tanto a ver com a
tica Wauja, na medida em que, segundo esta tica, a pessoa Wauja somente deve
desejar o que est ao alcance de suas possibilidades, deve buscar a manuteno de
uma integridade, de uma unio entre desejo e objeto desejado, o que acaba por se
refletir em sua sade, de um modo geral.
298
que no se possui, bem como a provocao do desejo no outro. Alm disso, uki
remete ao medo de perder o que se deseja ou que j se tem, medo de ser
rejeitado pelo outro, medo de despertar o desejo de outros sobre suas posses,
medo de ter e de no ter.
Expressar ou provocar uki uma forma de manter sempre na pauta do
dia um sentimento que, para os Wauja, parece ser, dentre todos, aquele que
mais inclinao anti-social carrega, aquele com maior capacidade de provocar
rupturas no trato social256. Paradoxalmente, este sentimento , ao mesmo
tempo, aquele que, por excelncia, move as relaes entre as pessoas, que d
sentido s trocas e reciprocidade. O cime-inveja, quando em sua forma
radicalmente positiva (excesso), se aproxima da mesquinharia e da avareza257,
podendo levar uma pessoa solido e ao abandono. E mais, leva a uma
aproximao ao mundo dos apapaatai, como nos mostra o final do M7, o mito
do pequi: o marido, isolado e entristecido, tomado pelo excesso de uki,
transforma-se em apapaatai. J em sua forma radicalmente negativa
(ausncia), se aproxima do desinteresse e da auto-suficincia, podendo
inviabilizar a sociedade258. Neste caso, h igualmente uma aproximao do
mundo dos apapaatai, como no caso das mulheres transformadas em
iamurikuma, abandonadas devido ao desinteresse dos homens que, por sua
vez, j estavam se transformando em apapaatai. A sociedade Wauja, portanto,
256
Gonalves (2000) analisa o cime entre os ndios Paresi, povo aruak do Mato Grosso.
Este sentimento surge, no mito de origem do mundo Paresi, como disruptor da
fraternidade ideal entre o par de demiurgos homens. Esta dissociao original s ganha
o contorno assimtrico quando se estabelece uma relao triangular do par masculino
com um termo exterior, de sexo diferente: a irm mais velha de um destes homens. O
cime surge como uma doena antisimtrica e antisocializadora, que ameaa este
ideal de indiferena e tranqilidade da vida entre parentes. Gonalves mostra que os
Pares pensam a diferena essencialmente como a criao de uma assimetria entre duas
posies, originariamente forjadas no plano da igualdade, e assim, afirma que o cime
que estrutura a prpria diferena.
257
Viveiros de Castro aproxima cime da avareza na patologia Arawet ao tratar de
haih, o cime, como um zelo excessivo (1986: 425 n.81).
258
Rodger observa entre os Ikpeng (povo considerado historicamente como inimigo dos
Wauja) algo a que chamou de fluxo negativo e oculto de inveja. Este fluxo teria uma
dimenso sociopoltica altamente positiva sobre eles, visto que a inveja dos outros
serviria para inibir a acumulao, mantendo a redistribuio de recursos mais ou menos
equilibrados em uma populao que procura evitar tanto a coero quanto o conflito
interno (2002:93). No entanto estamos chamando de negativo a coisas diferentes:
enquanto penso no extremo de um contnuo que corresponde falta de interesse,
Rodgers est tratando por negativo o sentimento que vem de encontro, aquele sentido
pelos outros e projeto sobre os Ikpeng.
299
tanto em seu mximo excesso quanto na sua mxima falta, se d nos limites
do mundo dos apapaatai, e no nos limites de uma idia de natureza, no
sentido do estado de guerra hobbesiano259. Uki, em sua forma radicalmente
positiva, torna qualquer tipo de aliana impossvel, podendo levar guerra e
predao, pensada como apropriao do outro260. Ao passo que a ausncia de
uki representa uma tal falta de interesse e estmulo que impede o curso de
qualquer tipo de relao de troca, tornando as alianas desnecessrias261. Por
outro lado, uki em sua forma branda, em sua correta medida, estimula o
interesse pelos outros, fomentando o desejo e a reciprocidade, gerando a
socialidade.
Desta forma, cantar, tocar, fazer troa ou brincadeira empregando um
sentimento to central como cime/inveja so maneiras encontradas pelos
Wauja para dominar as potencialidades extremas que esta paixo carrega, e
tambm para chamar a ateno sobre a importncia de sua capacidade motriz.
A causao de cime/inveja, conforme ocorre nos rituais, tende a incitar o lado
excessivo deste pthos, tirando a pessoa por ele atingida da indiferena.
Contudo, tal incitamento visa alcanar aquilo que chamei de forma branda,
controlada. Por meio destas estratgias, busca-se, portanto, encontrar a
medida certa de uki em diferentes situaes pois, ao se tratar de uma questo
de grau, no h uma frmula nica em jogo: h que se buscar o ponto certo, a
dose correta para cada um em cada situao.
>|<
259
Menezes Bastos chama a ateno para o fato de que a guerra, no universo xinguano,
no est dirigida para fora, mas constituidora do dentro, do socius (2001:342).
260
Fausto compreende a guerra amerndia no como negao da troca, mas como Troca
(1997:208). Ao definir os limites da guerra amerndia, distingue dois esquemas de
reproduo social que estariam empiricamente articulados, fundados um na
apropriao, e outro na circulao; um na predao subjetivante, outro na troca
subjetivante (:211). Talvez, entre os Wauja, prevalea o segundo.
261
Uma argumentao semelhante est presente em Serra (Ms.:89). Baseando-se em
ampla mitologia xinguana proveniente de diferentes etnografias, este autor, no trecho
referido, tambm detecta a centralidade do cime entre os xinguanos.
300
com os outros, e no nos objetos, apesar do alto grau de interesse que tm por
certos artefatos262. Pensando na equao entre reciprocidade e troca de bens
(cf. Polanyi, 1980 [1944] e Sahlins, 1972)263, podemos entender esta idia no
sentido daquilo que Gregory (1982), na esteira de Mauss (2003 [1925]), chama
de troca-dom: aquela em que se privilegia a relao entre pessoas em oposio
troca-mercadoria, conforme conhecemos na sociedade de classes (Gregory,
1982: 41). Assim sendo, a reciprocidade a que me refiro aqui aquela na qual
o que conta so os vnculos entre pessoas, a produo e circulao de corpos
que concorrem para a reproduo social.
A acumulao de bens ou a auto-suficincia no parecem alvos de
interesse para os Wauja. Muito pelo contrrio, apontam para a negao da
socialidade. Em todo o Alto Xingu, as especializaes de cada grupo sinalizam
para a necessidade da manuteno das diferenas, das especificidades, e
apesar de cada grupo saber ou poder aprender a fazer os objetos que valorizam
localmente, no h interesse na auto-suficincia: o huluki, o moitar, as trocas,
esto na base da socialidade dos putakanau (xinguanos gente que sabe
trocar), assumindo um carter ritual bastante marcado na regio, conforme
visto no Captulo II.
Justamente porque a questo da troca ritualmente marcada entre os
Wauja, h pessoas responsveis pela circulao dos objetos: so homens e
mulheres que passaram por um processo de iniciao mais longo, e que
ocuparam posio de destaque durante os rituais de iniciao na puberdade,
tornando-se, respectivamente, amunau e amuluneju264 Note-se, portanto, que
a troca entre os xinguanos Wauja depende como em tantos outros cenrios
262
Lembrando o que foi dito sobre os presentes que lhes interessam (Captulo I),
miangas tchecas e anzis noruegueses, v-se que a lgica da qualidade prevalece aqui
sobre a da quantidade (incluindo a diversidade).
263
Sahlins (1970) equaciona reciprocidade e parentesco, configurando seu clebre
diagrama do esquema tribal generalizado (:29). Ali, maior proximidade de parentesco
(esfera domstica) corresponde uma reciprocidade mais generalizada (ou seja,
positiva), enquanto que os setores gradualmente mais externos apontam para uma
crescente negatividade da reciprocidade. J para Ingold (1986), reciprocidade nada tem
a ver com distncia de parentesco, mas sim com diferentes formas de reciprocidade
negativa ou positiva, que se do nas diferentes esferas sociais (ver Gregory, 1997:924).
264
Como dito anteriormente, os grupos de huluki so constitudos por pessoas do
mesmo sexo e faixa etria (co-participantes de uma turma de iniciados).
301
265
Sobre este aspecto, no contexto da Roma antiga, ver Veyne (1995[1976]).
266
Pssaro no identificado.
267
Magatokupai, categoria sonoro-musical relacionada espacialidade (ver Mello e
Piedade, 2005).
268
Para Deleuze e Guattari, o valor-de-troca introduziu o pesadelo de uma economia
de mercado, sendo que a economia primitiva procede por barganha, antes que por
fixao de um equivalente (1980 [1972]:220). Para aprofundar os mltiplos contextos
da troca e da barganha, ver Hugh-Jones & Humphrey (1992).
269
Interessante que Sahlins (1970) coloca o altrusmo na forma mxima de
reciprocidade generalizada, no mbito co-residencial. Sobre o sufixo mal, ver Viveiros
de Castro (2002:38).
302
270
Overing (2000) trata deste conceito como uma srie de pressupostos morais ao
processo de socialidade, cuja nfase recairia sobre um iderio amerndio de busca por
uma vida afetiva confortvel.
303
>|<
>|<
271
A raiz desta palavra, usixa, significa queimar.
307
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326
FILMOGRAFIA:
Anexos
M7 - Mapulawa,
Havia um homem que se chamava Irixiulakuma que era chefe, cacique, e tinha
oito mulheres: Kajujuto,arara, Ujau, Irixiulakuma Enejo, Kuyakuya, Sukuto,
Soutoju, Kuri e (faltou o nome de uma, so todos nome de pssaros). Este
homem resolveu fazer uma roa bem grande, plantou at cabaa pra fazer ua,
chocalho. Ele sempre ia na roa pra ver suas plantas. Quando cresceu
maoma, cabaa, e deu fruto, iapa, paca, tava comendo todo maoma, o
homem viu e falou: pxa, paca t comendo tudo, vai estragar tudo. Tenho que
voltar outro dia para esperar. No outro dia bem cedo, s 5 horas, ele foi e
ficou esperando a paca. A a paca veio e encontrou. Ele preparou sua flecha
para atirar, mas a paca viu e falou: pxa, no faz isso no. Deixa eu te contar
uma coisa, tenho novidade pra voc. A o homem desarmou e falou: o que
que voc quer contar pra mim? E a paca disse: eu queria te contar uma coisa.
Sua mulher est te traindo. Ela est procurando namorado dela at que
encontrou. T namorando com um bicho, voc vai ver, ele iakajokuma,
jacar, mas l dentro tem rapaz bem bonito. Voc vai ver. Sua mulher est te
judiando, fazendo coisa muito feia com voc. O homem ficou triste e falou:
pode comer a cabaa, pode tomar conta da minha roa tambm. A a paca
falou vamos l. Voc quer assistir quando eles esto transando? E o homem
respondeu: vamo embora. Paca levou Irixiulakuma at a beira do rio e ficou
escondido. L pelas 8 horas da manh as duas mulheres vieram assobiando,
chamando todo mundo para vir junto. E o marido escondido. Elas estavam com
uma cuia cheia de mingau, tinha beij e sal com pimenta. Quando a mais velha
chegou na beira do rio gritou: jacar, vamos namorar! E o jacar nem
respondeu. Gritou novamente e nada. O jacar gostava mais da mais nova.
Ento a mais nova gritou: jacar, vamos namorar! E a ele respondeu, fez pu-
pu-pu... [barulho], ele tava feliz porque gosta da mais nova. A ele veio, encheu
328
gua e veio at a beira do rio, tirou a capa e saiu um rapaz bem bonito. Ento
ela falou: voc j chegou... vamos comer beij, tomar mingau, t bom ele
respondeu. Comeu beij, tomou mingau e o marido dela assistindo. Jacar
transou com a mais velha, transou, transou, transou e gozou. No gozava
tanto, s desmaiou um pouquinho. Depois transou com a mais nova e
desmaiou. Por isso ele gosta de transar com a mais nova, porque ele goza
mais. Ento o marido falou: vou flechar ele. E a paca falou: calma, no mata
ele agora. Voc tem que chamar seu povo pra matar pra voc, seno voc no
vai dar conta de matar ele. Seno ele vai escapulir e vai embora e voc vai
perder. Quem vai sair perdendo voc. Voc tem que esperar um pouco. Tem
que agentar. Tudo bem, ele respondeu. Da a pouco o jacar acordou, foi
no rio tomar um banho, colocou a mscara dele e foi embora. O homem foi
embora triste. Chegou em casa e as duas mulheres j estavam l, era mais ou
menos 10 horas da manh. Elas ofereceram mingau pra ele dizendo: ah, pode
comer alguma coisa, mas ele nem respondeu, j estava com cime. A outra
falou: vem comer beij, tomar mingau, e ele nem falou nada, ficou calado,
deitado na rede. A Kajujuto foi l, tentou falar com ele e ele ficou l deitado,
nada. Depois foi papagaio, tentou conversar com ele e ele no conversou.
Depois foi periquito e nada. Por ltimo, as duas foram conversar com ele, mas
nada aconteceu. tarde ele foi l no meio da aldeia conversar com o pessoal.
Chamou o povo dele, o pessoal chegou e falou: o que que foi, chefe? E ele
disse: tem bicho que est namorando com minha mulher. Ento eles
perguntaram o que que ? E ele falou: jacar, e dentro dele tem rapaz
bem bonito que est namorando com minhas duas mulheres. Esto me traindo
muito feio. Ah, ento t, vamos matar ele, responderam. No outro dia trouxe
flecha bem grande pro pessoal preparar, fazer bastante flecha, bastante arco,
material pra matar, vara pra cutucar, dar furada nele, tudo. Ento homem falou
pras outras mulheres da aldeia: vocs poderiam ir pra roa amanh, pra ralar
e fazer bastante beij pros maridos levarem pra pescaria. L a gente vai
resolver caar e ficar uns cinco dias. A elas foram pra roa, trouxeram
mandioca, ralaram, fizeram beij, ficou tudo pronto e eles falaram: vamos
embora amanh. Um dos homens falou: eu vou pegar ele, outro falou eu
vou queimar a capa dele, eu vou tambm, outro disse eu vou matar a
329
272
Tupanumak explicou que a referncia coruja porque sempre que as mulheres,
no mito, tiravam o sapalaku (uluri) elas o colocavam na cabea da coruja, e, como a
coruja no havia contado nada para o chefe, este concluiu que ela estava guardando
segredo para as mulheres, portanto ela era cmplice na traio.
330
ano, j tava grande, pequi grando, cheio de fruta. Tinha um pequi cado no
cho, ento elas pegaram, cortaram e cheiraram, era muito cheiroso, muito
gostoso. A elas falaram: isso aqui pequi. Levaram para casa e nem falaram
nada pra ningum. Pegaram as redes delas e foram embora morar l embaixo
do pequi. Ficaram l comendo pequi, mudaram pra l. Cada visita mulher que
chegava l, ficava, no queria mais voltar. Assim elas fizeram matapu,
[zunidor] e a festa que chama kuri. No final foram fazendo aluwa,[morcego],
iupe,[tamandu], ukalu,[tat], todos os cantos. Quando o pequi j estava
acabando fizeram mapulawa. Quando elas estavam fazendo mapulawa, foram
buscar o marido e disseram: bora, vamo embora, vamos fazer festa do pequi.
pra voc ir l comer pequi, pequi to gostoso. Mas o marido falou: no,
no vou embora. S agora que eu vou aceitar ele pra comer? No, isso a de
vocs. Vocs me traram tanto..., no quero comer pequi. Isso namorado de
vocs. [Neste momento da narrativa, Iatun fez uma brincadeira comigo
dizendo: assim que seu marido vai falar pra voc. Ele no vai querer voltar
mais pra sua casa]. O marido ficou sempre triste. O pessoal ia l e ele fugia do
pessoal. Eles faziam uh-uh-uh..., gritando, mas ele no respondia. Por isso tem
um pssaro que se chama makan273. um chefe que foi embora para o mato,
que chama makan. Ele Irixiulakuma, um tipo de gralha, tem muito aqui no
rio e faz assim: uuuh! mas sempre triste. O pessoal chama ele de homem
triste, ele chefe dos pssaros.
>|<
M8- Yakanukal
O milho e a arranhadeira
Narrado por Kalupuku e traduzido por Tupanumak
273
N.T. makan tambm quer dizer triste.
331
pode arrancar'. mas o cunhado mexia, ria e ela falava para no mexer, que o
irmo no gostava daquilo. Enquanto seu marido estava na pescaria, dormindo
l. Pegou muito peixe. A mulher, que estava em casa no cuidou, no olhou o
cunhado e ele fez assim, kruxhi...., arrancou o cabelo dela. Ela ficou brava e
falou, 'poxa, seu irmo vai ficar com cime, vai ficar bravo comigo. por que
voc fez isso comigo?'. Ele respondeu 'no, porque eu gosto'. A mulher ficou
preocupada com o marido que ia ficar bravo. Ento ele voltou da pescaria,
levou peixe no enekutaku, todo mundo comeu peixe, estavam alegres. Depois
que deu o peixe, foi para casa, descansou, deitou e ento reparou que tinham
arrancado o cabelo da mulher. A ele ficou bravo e perguntou, 'quem arrancou
seu cabelo?' ficou triste. A mulher disse que foi o irmo dele que arrancou. 'Mas
por que?' ele perguntou. 'Ele queria fazer brinco pra ele, por isso ele arrancou.
Eu no deixava, nunca deixava, mas um dia eu estava fazendo alguma coisa e
ele me pegou de surpresa e a eu no tinha o que fazer'. 'Ah, t certo',
respondeu o marido. Ele ficou triste e dormiu.
Bem cedo, ele comeou a se pintar, no demonstrou mais cime. O irmo
tambm se pintou. L para o meio-dia ele falou para o irmo, 'vamos queimar
nossa roa?', 'vamo', respondeu o irmo. Ento eles foram, tocaram fogo,
tocaram, tocaram, a no meio eles no tocaram, subiram nas rvores que ainda
estavam em p, que eles no tinham derrubado. Um subiu em uma e o outro
na outra. [Tupa acrescentou que eles ficaram l cantando, cantando at que
caram no fogo que se aproximou das rvores. Um deles tinha o corpo todo
pintado de vermelho e o outro de preto.] Eles morreram queimados l. A
passou, quando a primeira chuva caiu, a mulher dele foi l na roa dele, com
muita saudade que ela estava. A ela viu milho nascendo, nem ligou e foi
embora. Depois, quando o milho j estava grande, ela voltou na roa e ento
ela falou, 'u, o que ser que isso aqui?' Voltou pra casa mas ficou
preocupada pensando naquilo e voltou logo para a roa. Viu muito milho, tava
tudo pronto. Ela pegou uma espiga, tirou a casaca e viu gente sorrindo para
ela. Ela disse 'u, meu marido que morreu?' e ele respondeu, ', sou seu
marido'. Ento a mulher falou pra ele 'no faz iso no, se voc fizer isso
ningum vai querer comer voc como milho, no faz no'. Ento ela voltou e
avisou o pessoal da aldeia e a eles foram l buscar o milho e levar para a
332
>|<
M9 - Kamukuwak.
Narrao de Itsautaku e traduo de Aulahu.
Uma pessoa vai furar a orelha deles e comearam a fazer flecha, muitas
flechas. Os rapazes fizeram uma fila no banco. Kamukuwak chefe, e o outro
se chama Iuonakato. Isto aconteceu no lugar que hoje chamamos de
Kamukuwak. Tinha casa l, antigamente era casa de sap. Tinha muita coisa
l... tinha polvilho... Ento Kamo flechava eles, flechava na orelha, mas Kamo
queria matar ele, queria acertar o ouvido e matar. S que eles viram e s
furava a orelha, no acertava no ouvido, [NT Kamo sabia muitas coisas, s que
ele no era bonito, ento ele tinha inveja de Kamukuwak e do pessoal dele.
Por isso ele queria matar o pessoal de Kamukuwak]. Terminou as flechas e
ento o pessoal foi para casa, fizeram cerca e ficaram presos l. Kamukuwak
ento foi fazer flecha para acertar a mulherada. Ento Kamo inventou kapulu,
macaco preto, para comer o pessoal, mas eles pegaram o kapulu para criar,
deram comida para ele e ele no comeu o pessoal, ficou junto com eles. Ento
pediram para kapulu cantar. Kamo no conseguiu matar eles, ento inventou
sukuto, periquito, e mandou para comer o pessoal que estava preso. Quando
periquito entrou, o pessoal deu comida para ele, deram pequi para ele comer e
ele ento no comeu o pessoal. Kamo ento inventou walutakoja, arara azul,
de azul bem escuro, e mandou l. O pessoal fez a mesma coisa, pegaram pra
criar e deram comida. Ento pediram para walutakoja comer o telhado, porque
o telhado era de pedra, j tinham transformado a casa de sap em pedra. A
arara comeu o telhado para eles conseguirem escapar do inimigo. Fizeram
buraco para Kamukuwak, um outro l, e mais outro l [apontando para a linha
333
>|<
M10- Jaku
Narrativa de Sapaim (paj Kamayur) feita em Florianpolis, por ocasio de
sua visita minha casa em 18/04/2003.
>|<