1998 ElsjeMariaLagrou Pt1
1998 ElsjeMariaLagrou Pt1
1998 ElsjeMariaLagrou Pt1
São Paulo
1998
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2.5. Desenho, Imagem, Yuxin e suas relações com o corpo humano 159
a. Uma etnografia do gosto 159
b. Desenho (kene), figura (dami), e yuxin 181
5
Parte II: Expressão e Agência: Mito e Ritual 209
Conclusão 344
6
Agradecimentos
Uma tese de doutorado leva muito tempo para ser produzida, requer freqiientes
deslocamentos, envolve muitas pessoas e Instituições.
Recebi apoio financeiro das seguintes instituições: no Brasil: CNPq, CAPES,
FAPESP; na Bélgica: Vlaams Ministerie voor Kultuur en Wetenschappen; No Reino
Unido, da University of St. Andrews e da Sutasoma Trust.
Agradeço especialmente a Profa. Lux Vidal pela generosidade intelectual, iniciada
desde os tempos do mestrado, orientação no doutorado, constante atenção e entusiasmo e
críticas estimulantes.
O curso do Prof. Roberto Cardoso de Oliveira sobre Hermenêutica e Antropologia
me deu oportunidade para esboçar alguns dos argumentos teóricos da tese. Os seminários
da Profa. Manuela Carneiro da Cunha me proporcionaram conhecer vários trabalhos em
andamento sobre a relação entre história e antropologia, assim como o de Jean-Pierre
Vemant. O curso da Profa. Joanna Overing me inspirou e foi a causa da minha passagem
pela Inglaterra.
Em São Paulo, agradeço a calorosa recepção e a amizade de Paula Monteiro,
Miguel Chaves, Sílvia Caiuby Novaes e Ornar Tomas. Colegas que colaboraram com
discussões sobre o trabalho no Laboratório de Antropologia Visual e no Núcleo de
História Indígena: Edilene Coffaci, Martha Amoroso, Oscar Calavia, Flora e Aloísio
Cabalzar, Luís Donisete, Denise Fajardo, Andreias e Paula Morgado.
Em St. Andrews encontrei um ambiente estimulante para a escrita da tese.
Agradeço Joanna Overing pelo convite, hospitalidade, amizade e estímulo intelectual. A
Roy Dilley e especialmente Nigel Rapport pelas discussões em seminários no
Departamento de Antropologia de St. Andrews. Aos amigos na Escócia: Napier Russel,
Elvira Belaunde, Juliet 0’K.eeffe, Alan Passes, Karen Jacob, Gisela Pauli, Carlos
Londono, Barry Reeves, Guilherme Werlang, Steven Kid, Lindsy, Anoushka, Nick
Barker, Rebecca, Gonzalo.
Cecília McCallum, com generosidade e estímulo, acompanhou minha pesquisa
com os Kaxinawa desde o começo, em Londres, em Florianópolis, em St. Andrews.
7
Agradeço Kensinger pelas sugestões dadas durante conversas em St. Andrews e pelo
estímulo e confiança ao me ceder suas notas de campo sobre o ritual Nixpupima e suas
publicações.
Outras pessoas contribuíram com discussões e idéias ao trabalho: Nadia Farage,
Peter Gow, Steven Hugh-Jones, Eliane Camargo, Philippe Erikson, Sven-Erik Isacsson,
Robert Crépeau, Angela Hobart, Bruno Illius, Patrick Deshayes, Lucia van Velthem,
Denise Amold e Juan De Dios, Regina Muller, Benny Shanon, Gustaaf Verswijver.
Bonnie e Jean-Pierre Chaumeil me hospedaram e me guiaram em Paris.
Agradeço meus colegas do Departamento de Antropologia da Universidade
Federal de Santa Catarina pelo tempo e liberdade para terminar a tese. Sua confiança e
investimento foram decisivos. Agradeço especiahnente Jean Langdon, Míriam Grossi,
Ilka Boaventura Leite e Rafael Bastos, assim como Dennis Wemer, Sílvio Coelho dos
Santos, Luís Eduardo Luna, Alberto Groismann, Oscar Calavia, e Maria Amélia Dickie.
Jean Langdon, amiga de muitos anos, me colocou no caminho da Antropologia e
ajudou de muitas maneiras. Sonia Maluf, Gloria Valle, Mareia Rego e Carmem Rial
colegas e amigas que continuaram próximas mesmo durante os anos de viagem.
Durante a pesquisa de campo, muitas pessoas me ajudaram. Em Rio Branco tenho
dívida para com os amigos Luís e Uta Carvalho, que me hospedaram em sua casa e Luís
pelas estimulantes discussões. Aos membros da Comissão Pró-Índio, pela boa recepção,
ajuda e discussões: Terri Aquino, Paulo Alencar, Agostinho Manduca Kaxinawá, Osair
Siã Kaxinawa, Nietta Lindenberg Monte, Malu, Renato, Marcello Iglesias, Dêdê,
Verinha, Joaquim Yawanawa. Em Sena Madureira, Padre Paulino me hospedou e me
contou sua apaixonante história de vida; em Manuel Urbano recebi ajuda de Antônia, das
Irmãs e de Roberto, da Sucam.
Nas aldeias de Moema, Nova Aliança e Cana Recreio, tive muitos anfitriões. Os
Kaxinawa tem a hospitalidade e a gentileza como regra e todos me receberam nas suas
casas. Faço assim menção especial somente daqueles que me hospedaram e que foram
meus interlocutores preferidos. Em Nova Aliança, Manuel Sampaio e Maria das Dores
que me hospedaram; Antônio Pinheiro, Milton Maia, Sebastiana Pinheiro, Maria
Sampaio, Rosa e Marciano, Marlene e Arlindo, Abel, José Paulo, Graça, Rubin e Filó,
8
pelo carinho. Em Moema fui ‘adotada’ por Augusto Feitosa e sua esposa Alcina, pais
classificatórios. Na sua família encontrei meus amigos mais próximos, Laura, Maria
Antônia, Denis e Edivaldo. Ainda de Moema, me lembro com afeto de Francisco, Delicia,
Adão e Maria Elena.
Meus pais, Marie-Anne De Wulf e Leo Lagrou, me deram o gosto pela viagem, e
me apoiaram em toda esta jornada. Por seu afetuoso apoio logístico no momento decisivo
da escritura deste trabalho. Meus irmãos (Anneleen, Pieter, David) e amigos próximos na
Bélgica (especialmente Karen Phalet, Kristoffel Dumont, Inge De Bruyne e Veerle
Fraeters) me mantinham perto deles por meio de suas cartas. Especialmente minha irmã
gêmea, Katrien, que me manteve sempre presente entre os amigos com suas estórias
contadas com a vivacidade que lhe é peculiar.
Marco Antonio Gonçalves pelo constante apoio emocional e intelectual. Nosso
encontro em St. Andrews mudou nossas vidas. Sua ajuda tornou possível a realização
deste trabalho dentro dos prazos estabelecidos.
9
Introdução
1 O uso destes termos qualificadores tem sido objeto de estudo de Kensinger (1975), que
identificou o sistema, e de Deshayes e Keifenheim, que trabalharam os mesmos termos na
sua tese de doutoramento (1982), publicado em 1994.
14
coisas e seres percebidos são ‘fenômenos’ para os Kaxinawa. Isto significa que
todas as percepções têm algum nível de existência. Não há ilusões, somente níveis
diferentes de ser, em cujas bases valores diferenciados são atribuídos às coisas e
aos seres percebidos. A distinção mais importante feita entre níveis de existência é
a que distingue a forma fixa da forma não-fixa, distinção que corresponde à
diferença entre existência incorporada e desincorporada.
Neste quadro de referência, o papel do desenho estilizado e padronizado
(kene) não é o de expressar a imagem do ser através da semelhança formal, mas de
fixar a fluidez das formas e das imagens que habitam o mundo desincorporado dos
yuxin. O desenho padronizado é aquilo que adere aos corpos, o que fixa sua forma.
A execução desta arte é privilégio feminino. A imagem figurativa, ou
tridimensional chamada dami, por outro lado, tem uma relação diferente com o
objeto ao qual se refere. Sua relação é de transformação e mascaramento. Dami
significa a réplica imperfeita de um ser ou de uma imagem, uma transformação
deste, ou uma produção em processo de fabricação, ainda não finalizada.
Dami é algo a caminho do tomar-se; yuxin é a imagem em si, como
imagem no espelho; kene, sistema estilizado de desenho, inscrição estruturante da
forma que toma possível a percepção. O desenho geométrico estruturado pode por
esta razão ser entendido enquanto guia da percepção e cognição Kaxinawa, guia
que toma possível a transição do mundo das imagens flutuantes dos yuxin ao
mundo fixado dos corpos. Através das distinções entre estes três termos que
designam ‘imagem’ chegamos, portanto, à síntese da fenomenologia Kaxinawa.
A segunda parte da tese, ‘Expressão e Agência’, apresenta as idéias
Kaxinawa com relação à identidade e alteridade, noção de pessoa incorporada e
socialidade. O capítulo sobre a mitologia restringe-se aos episódios que tratam de
temas relativos à ontogênese: a origem do mundo, do tempo, da morte e da
humanidade. Cada um destes mitos tem sua contrapartida em outros mitos
relacionados às distinções básicas referidas no mito de origem. Assim, o tema da
alternância entre dia e noite, introduzido pelos seres primordiais, está ligado a
mitos que lidam com o súbito colapso deste princípio ordenador. O escurecimento
15
inesperado do dia põe o viajante em contato com o domínio dos seres imateriais,
agentes na escuridão. Deste modo podemos explorar como os princípios
organizadores da cosmovisão Kaxinawa são expressos na forma narrativa da
reflexão mítica, e como estes mitos são revividos e reinterpretados.
Atenção especial é dada ao mito da re-criação da humanidade após o grande
dilúvio. Este mito é importante por suas correspondências com o rito de iniciação.
O mito é a estória da jornada da mãe primordial Nele e seus quatro filhos, os
primeiros seres verdadeiramente humanos (huni kuin}. Na sua viagem, a mãe
ensina aos filhos os nomes das plantas cultivadas. No final da jornada, observam o
Nixpupima, enegrecimento ritual dos dentes, rito realizado pelo irmão de Nele. O
enegrecimento dos dentes é o evento crucial da sequência de intervenções sobre o
corpo dos iniciandos. A seqiiência inteira do rito de passagem é entendida como
uma preparação para o enegrecimento dos dentes, uma seqiiência que se sobrepõe
em vários pontos à progressão do mito de origem da humanidade.
O quarto capítulo descreve o rito de passagem Nixpupima. O rito elabora
idéias fundamentais da ontologia Kaxinawa. O rito de passagem de meninas e
meninos é uma síntese dos princípios básicos que estruturam a visão do mundo
Kaxinawa. No processo de transformação ritual da identidade do iniciando, cada
mudança produzida no status da criança ou na sua ‘mente’, é operada através de
uma intervenção direta ou metafórica no corpo da criança.
Este procedimento ritual revela que para o pensamento Kaxinawa a pessoa
ou o ser ‘verdadeiramente’ humano pode unicamente ser concebido e produzido
na forma de um ‘eu’ incorporado. É o coipo que pensa2.
* * *
* * *
3
Gonçalves (1991) compilou uma bibliografia anotada de fontes históricas e
etnológicas sobre o Acre. Sobre o grupo linguístico pano, e abrangendo todas as áreas onde
este se encontra, foi produzido outra bibliografia anotada de estudos linguísticos e
antropológicos por Erikson, lllius, Kensinger e Aguiar (1994). Esta bibliografia continua sendo
completada na medida em que surgem novos trabalhos.
18
Kaxinawa. A geração de antropólogos que sucedeu a Kensinger deu continuidade
às questões tratadas em seus trabalhos.
Igualmente no Peru, os Kaxinawa foram estudados por Keifenheim e
Deshayes (1982, 1990, 1992, 1994). Ambos autores privilegiaram os temas de
identidade e alteridade e sistemas classificatórios. Mareei D’Ans (1973, 1978,
1983) estudou o sistema de nominação e classificação das cores e elaborou um
compêndio sobre mitologia.
No Brasil os Kaxinawa foram estudados por Aquino (1977), Iglesias (1993)
e Lindenberg (1996), no rio Jordão, que centraram suas pesquisas nos temas de
relações interétnicas e educação.
Os Kaxinawa do rio Purus, o mesmo grupo com quem obtive os dados para
a realização deste trabalho, foram estudados por McCallum (vide bibliografia). O
estudo de McCallum focaliza a organização social e as relações de gênero. No
context^ das relações de gênero a autora analisa o ritual Kalxanawa.
Os estudos de Kensinger, Deshayes e Keifenheim e McCallum, enquadram
etnografícamente e etnologicamente este trabalho. Portanto, esta tese é o resultado
do que aprendi de seus escritos somado às minhas próprias observações de campo,
que procurei direcionar para áreas de interesse que até então não tinham sido
suficientemente exploradas.
Em minha tese de mestrado procurei dialogar com a literatura sobre os
Kaxinawa e outros grupos pano amarrando ponto a ponto as minhas contribuições
às dos autores referidos acima. Esta estratégia de apresentação da etnografia
resultou em uma monografia de tipo ‘clássica’ em que a divisão em capítulos
(organização social, ciclo de vida, arte, cosmovisão) obedeceu um estilo de padrão
monográfico. Este novo trabalho, entretanto, adota propositalmente uma estratégia
inversa, a de procurar construir uma etnografia estruturada pelos próprios
conceitos e reflexões Kaxinawa. Embora use a literatura sobre os Kaxinawa, em
particular, e os pano, em geral, como referência, este trabalho foi concebido
enquanto uma etnografia baseada e construída sobre o material proveniente de
minha própria pesquisa.
19
Por estas razões fiz uina opção estilística nesta tese: a de não indexar a bibliografia
Kaxinawa e pano a não ser usá-la quando diretamente relacionada ao assunto tratado.
Penso que desta maneira pude salvaguardar a coerência no tratamento etnográfico de meu
material. Os especialistas reconhecerão facilmente as diferenças e semelhanças, seja dos
argumentos, seja dos dados, entre este e seus próprios trabalhos.
20
Parte I: Percepção e Cognição: A Referência Ontológica
“The capacity to mime, and mime well, in other words, is the capacity to Other.”
Walter Benjamin, in Taussig, 1993:19.
“Sempre pensava que para se ter o mundo só precisava de dois: a água e a luz, o
homem e a mulher. Mas descobri que o mundo é feito de três. Não basta ter a água
e a luz, precisa ter o ar, que faz o vento, que dá movimento e faz a ligação, faz
com que a coisa anda. E o terceiro elemento que dá a vida. Assim também é por
causa do filho do casal que o mundo continua”
Agostinho Manduca, Kaxinawa do rio Jordão.
Os povos pano são uni perfeito elo de ligação considerando, aqui, uma
tipologia que contrasta filosofias sociais amazônicas com as do Brasil central. Os
pano tem um sistema de metades ritualmente elaborado mas seu dualismo não é
diametral: uma das metades parece ser mais exterior que a outra. A diferença
23
criada através das classificações dualistas entre os pano é de um tipo gradual e,
hipoteticamente, reversível, não-dicotômico e não-exclusivo do tipo que “A não é
B”. Desta forma, no modelo formulado por Viveiros de Castro, este dualistrrcr
concêntrico tende para um triadismo concêntrico, ambos representados em
sistemas classificatórios cosmológicos e sociológicos. Levando-se em conta o
caráter situacional deste modo de definir identidades, pode-se questionar a
utilidade de um esquema triádico quando se percebe a importância do contexto e
da perspectiva indígena para dar conta e nomear a identidade e a diferença.
Entre os Kaxinawa, o pertencimento a uma das metades e as quatro seções
matrimoniais se dá através de seus nomes pessoais (neste sistema de tipo Kariera
existem quatro seções alternadas, conforme a geração, que produzem duas seções
para cada metade ou oito se dividida cada uma das seções pelas linhas de gênero).
Em virtude dos nomes poderem ser classificados em grupos definidos por geração,
sexo e metade, funcionam enquanto um guia de englobamento étnico nas escolhas
dos termos de parentesco quando se classifica um parente previamente
desconhecido. Nomes e metades são guias importantes para a escolha de parceiros
matrimoniais (o pertencimento dos nomes às gerações alternadas parece ser menos
importante que o pertencimento à metade, veja McCallum, 1989a1). Especialmente
no primeiro casamento, os jovens são encorajados a escolher um parceiro
pertencente da metade oposta. A complementaridade entre as metades é
profusamente desempenhada nas atividades rituais.
Resta ainda, o desejado e proibido “outro” real que vem de fora da ordem
social controlada. Esse outro constitui o terceiro elemento na escala gradativa que
define “eu” e “outro” e é o potencial, hipotético, afim, onipresente no mito, no
ritual, nas canções, nas visões, nos sonhos e nas fantasias. O “outro real” funciona
enquanto um valor cosmológico e escatológico englobante que nunca é, e nunca
1 Este é o caso para os Kaxinawa brasileiros da Área Indígena do Alto Purus, mas não foi
confirmado pelos especialistas dos Kaxinawa do Peru (Kensinger, 1977; Deshayes e
Keifenheim, 1982) que enfatizam um ideal de troca de irmãs, especialmente na ocasião da
fundação de uma nova aldeia. Para outros grupos pano, entretanto, Erikson menciona que
“/e "point faihle"de la slnictiire “kariera" pano" é “/« ruplnre introduite par les
marriages obliqúes avec le frère de la mère " (1986:205)
24
poderá ser presentificado através de uma aliança de casamento nesta vida terrena.
Os Kaxinawa são endogâmicos, quando possível se casam ao nível da aldeia. Esta
prática reflete sua ideologia concêntrica de casar, acima de tudo, com parente ao
invés de com afins. Essa perspectiva encontra respaldo na ideologia amazônica da
consubstancialidade, produzida através da co-residência e da comensalidade
fazendo as pessoas sentirem-se como pertencentes a um mesmo grupo2.
A mais inclusiva auto-definição para um Kaxinawa é nukun yuda, que
significa uma pessoa que pertence ao “nosso mesmo corpo”: um corpo que é
produzido coletivamente por pessoas que vivem na mesma aldeia e que
compartilham a mesma comida. São os parentes próximos que provocam um forte
sentimento de pertencimento a um grupo e, quando estão ausentes, é sentida sua
falta, expressa pelo teimo manuaii, palavra usada para definir a saudade de um
parente próximo do mesmo modo que se designa a sensação física e vital da
necessidade de água. Agua é vital para o corpo assim como parentes são vitais para
constituir o “eu”. Isso pode ser ilustrado pela seguinte sentença proferida por
Antônio Pinheiro: “Quem não sente falta dos seus parentes, como se sente falta de
água, não é gente. E que nemjwx/w que fica vagando por aí".
Os laços que ligam uma pessoa a seu parente constituem o “eu” Kaxinawa .
Essa rede de laços vitais é criada no tempo, pelo viver junto, pela comensalidade,
por compartilhar determinadas substâncias vitais, banhos medicinais e pintura
corporal nos rituais. Secreções corporais e cheiros afetam diretamente as pessoas
com as quais se vive. Uma intervenção, direta ou indiretamente praticada, que
transforme o corpo de alguém, afeta sua mente, pensamentos e sentimentos. Neste
sentido, quando os ameríndios estão falando do corpo, estão referindo-se ao “eu” e
às transformações do corpo, às vezes descritas como “alma”.
Pode-se dizer, deste modo, que o “eu” Kaxinawa é inclusivo, não apenas ao
seu próprio corpo mas ao seu parente próximo3. Isto explica porque uma pessoa
entre os nativos das ilhas Fiji descritos por Anne Becker (1995). A autora demonstra
como em Fiji a experiência incorporada emana de uma “notion of selves deeply embedded
in a relational matrix” (1955:5). Uma vez que pessoa é definida em termos de sua inserção
numa rede de relações mais do que em termos de uma entidade fechada sobre as fronteiras
de um corpo individual, a identidade pessoal é expressa por meio do cuidado e nutrição de
outros, em vez de por meio de uma modelagem bem sucedida do próprio corpo, de
acordo com as normas estéticas de beleza estabelecidas pela comunidade. Disto conclui-se
que experiência incorporada e a forma corporal são vividas enquanto temas que dizem
respeito à comunidade, refletindo a interconectividade social de uma pessoa, mais do que
ao indivíduo. A forma corporal em Fiji não serve, portanto, para se distinguir, mas para se
26
Esta endogamia de aldeia apoiada na forte ideologia da consubstancialidade
é complementada por uma cosmologia verticalizada, próxima do modelo Araweté
(tupi), em que o desejo da afinidade potencial é projetado no post-morlem. Uma
vez a pessoa morta, o yuxin do olho adquire novo corpo e novas roupas capazes de
transformá-la em um ser imortal que poderá se casar e viver com aqueles que os
vivos representam como o pólo extremo e absoluto do perigo, o “inconvivível”
outro: os Inka.
Em outros povos amazônicos, a ordem social e o sistema de parentesco
como uma unidade interior composta por “elementos de uma mesma classe”
(pessoas com um mesmo coipo que compartilham pensamentos e hábitos), são
englobados pela ordem cosmológica da alteridade, do canibalismo, da predação e
sua relação com esta ordem de fenômenos é temporal: humanos estão no caminho
de se tomarem outros e este processo, para as sociedades Araweté e Kaxinawa,
será somente completado depois da morte.
Teremos oportunidade de retomar, ao longo deste texto, à complexidade da
relação entre semelhança e diferença na ontologia Kaxinawa, expressa como tema
central da mitologia, revelada na racionalidade da organização da prática ritual, no
discurso silencioso da arte visual, assim como no quadro de referência da prática
classificatória cotidiana dos seres e das coisas. O pensamento social Kaxinawa não
projeta a diferença fora da sociedade como fazem muitas sociedades amazônicas
quando tentam inventar uma vida vivida somente na companhia dos
iguais/parentes, através da evitação da terminologia afinal e pela domesticação de
todos os poderes e substâncias tomados do exterior. Em função de uma acurada
preocupação com a predação e possível retaliação implicada em todos os atos
criadores de vida e comunidade, esses povos escolheram neutralizai- as expressões
imanentes de violência reduzindo, deste modo, o perigo implicado em qualquer
atividade produtiva (veja Overing (1985,1993) para os Piaroa). Por outro lado, a
ideologia Kaxinawa não introjeta totalmente a diferença como se ela emanasse do
interior, como parece acontecer com a complementaridade do dualismo
4 Parece existir uma contradição entre os dados sobre o significado simbólico das metades
Kaxinawa obtidos no Peru e no Brasil. Deshayes e Keifenheim (1982, 1994), trabalhando
no Peru, ligam a metade /'//// (jaguar) ao pólo do “eu” e do interior, enquanto consideram a
metade dua (brilho) como ligada ao exterior e ao pólo do “outro” (Fautre du dedans). Os
dados de McCallum (1989a) e Lagrou (1991) coletados no Brasil, por outro lado,
apontam na direção oposta, onde a metade /////, ligada ao Inka, estaria mais ligada ao
exterior do que a dua. Erikson (1995:7) sugere que esta diferença em interpretação seja
devido ao fato de que os lideres das aldeias no Peru eram na maior parte da metade inu,
enquanto os no Brasil eram dua. Neste caso, o antropólogo teria adotado o discurso e o
ponto de vista do líder da aldeia, associando a metade do líder ao pólo do “eu” e aquele
dos seus rivais ao exterior. Sugiro que ao invés de questionar a “norma” ^Faudrait-il
postuler que la norme fluctue eu raison des aléas politiques et que les données
ethnographiques varient en fonction du jeu factionnel?" (Erikson, 1995:7)), podemos
entender a inversão dos pólos do interior e exterior no simbolismo das metades Kaxinawa
como um sinal do caráter dinâmico e vital do dualismo que, em vez de fixar esquemas
normativos, tenta dar sentido à experiência social, política e simbólica da comunidade. De
fato, é um sinal do sucesso de uma liderança quando sua interpretação sobre os fatos
ganha a aprovação da comunidade como sendo a “verdadeira”. Quando o discurso do
líder perde este poder de persuasão, ele está a caminho de perder sua comunidade (Cf.
Deshayes, 1992:95-106).
29
ser tanto o avarento canibal quanto o cônjuge provedor dependendo da relação que
se estabelece: afinidade real ou afinidade potencial. No decorrer deste trabalho
este ponto ficará claro com a análise dos mitos sobre o Inka. Ambas definições de
nawa e Inka nos dão uma idéia de como o dualismo Kaxinawa precisa ser
entendido a partir do ponto de vista do perspectivismo ameríndio (este será o tema
do próximo tópico).
O dualismo é mais um valor englobante para o pensamento Kaxinawa que
uma discussão sobre identidade. Quando introduz-se o perspectivismo nesta
discussão, o dualismo ganha aspecto contextuai e caráter dinâmico. A ontologia
Kaxinawa postula o intrínseco, o inerente dualismo de todos os seres. Os seres
vivos e a própria vida no mundo, dependem da mistura de forças e qualidades
opostas. Todos os seres e coisas do mundo são resultado do ritmo e controle da
mistura e apresentam a dualidade fenomenológica do conteúdo e do continente,
esqueleto e pele, semente e invólucro.
Qualquer separação absoluta de classes diferentes significa ausência de
vida, enquanto sua mistura induz movimento o que indica, por sua vez, vida. O
mito de origem da ordem do mundo (veja parte 2) começa com a criação do dia e
da noite. Antes do mundo existir, essas qualidades estavam, como todas as
qualidades, latentes mas separadas, “dormindo em suas respectivas cavernas”. Era
o tempo antes do tempo, quando nada mudava porque nada era misturado; não
havia interação de espécie alguma entre qualidades dos seres de diferentes classes.
A diferença foi criada através do ato de sua revelação, quando os seres primordiais
abriram as cavernas do amanhecer e do anoitecer: a caverna onde o sol se escondia
e a outra que guardava o frio em seu interior (Capistrano de Abreu, 1941). A
criação toma acessível aos sentidos as possibilidades do ser.
O primeiro princípio organizacional do mundo foi a mistura da pura
escuridão com a luz ao longo de uma escala de tempo que introduziu o dia e a
noite, tempo para trabalhar e tempo para dormir e sonhar. O arco-íris é um símbolo
chave dessa mistura. As cores da vida, vermelho e verde/azul, assim como, a mais
problemática cor, o amarelo (todas as outras cores são compostas dessas co
30
resultado da revelação da potencialidade da forma e do ser, escondido na
escuridão, através da luz.
Veremos que as canções rituais podem ser lidas tanto por um registro social
relacionado ao parentesco e a afinidade (os problemas em lidar com a alteridade),
quanto em um registro mais abstrato relacionado à ontologia - a qualidade e estado
do ser e dos seres - que apresenta imagens poéticas do valor englobante do
intrínseco entrelaçamento de todos os corpos e matérias na terra, através da criação
e da predação, do contágio, da mistura das qualidades. “O que é comido come, no
mesmo momento em que é comido”, “o que come transforma-se no que é comido”
(ou “você é aquilo que come”) mas, também, “você come o que você é”5.
O que diferencia este processo de vida não é a diferença entre agência e
ausência de agência, sujeito e objeto, mas uma diferença de contexto e poder
relativo. Em função de cada ser existir simultaneamente em ambos os níveis da
matéria e do imaterial, ele é capaz de agência, percepção e subjetividade. Para ter
forma e consistência, a matéria precisa estar imbuída de yuxin, visto que “sem
yuxin, todas as coisas tomam-se pó, somente casca vazia. Você toca nelas e elas se
dissolvem e então você vê nada mais que cinzas, pó” (Antônio Pinheiro, 1989), A
definição de um ser como sendo um verdadeiro yuxin ou uma mera “coisa”
depende, novamente, de uma escala gradual em que A necessariamente implica B,
ao invés de um par oposto diametralmente em que para ser A significa que A não é
B.
O que define essa situação (e tende a ser um princípio que guia a
classificação dos seres ao longo de uma escala do menos e mais perigoso) é aquele
quem inicia o processo de troca e/ou predação, processo que transforma as partes
envolvidas. Toda ação de intercurso, troca de palavras e substâncias, desencadeia
um processo que, por sua vez, produz outros processos fazendo, assim, com que o
mundo esteja em permanente movimento.
Podemos concluir que se no dualismo Kaxinawa A, necessariamente,
implica B, as oposições no pensamento e na ação existem apenas para serem
1.2. Perspectivismo
“To declare that writing itself is a mimetic exchange with the world also means
that it involves the relatively unexplored but everyday capacity to imagine, if not
become, Other.”
Michael Taussig, 1993: x.
Nos últimos vinte anos, alguns autores chamaram atenção para o caráter
não-essencialista da visão de mundo ameríndia. A inclinação filosófica ameríndia
poderia ser “nominalista” ao invés de “realista”” (Overing, 1985, 1990; Seeger, da
Matta, Viveiros de Castro, 1979). A introdução da noção de perspectivismo dá um
passo além no processo de compreender o significado das afirmações nativas.
Grosso modo, o perspectivismo indígena significa que o mundo (realidade) que se
vê depende de quem o vê; de onde se vê e com que intenção determinado ser olha
para outro ser. Neste sentido, o fenômeno do perspectivo, bem conhecido pelos
americanistas, pode ser colocado do seguinte modo: os animais se vêem como
humanos enquanto os humanos vêem os animais enquanto caça; os humanos se
vêem enquanto humanos e são vistos por determinados espíritos como caça. Este é
o significado de uma declaração comumente ouvida que afirma que determinados
32
animais “são gente” (Gow, 1988). Os humanos podem, freqiientemente, mudar seu
ponto de vista em relação aos animais quando diante dos seus olhos um animal que
está sendo perseguido numa caçada, repentinamente, transforma-se em um ser
humano. Essas transformações estão presentes na mitologia amazônica6 e são
cruciais na experiência cotidiana (mais ainda durante a noite). Estudiosos do
xamanismo ameríndio (Baer & Langdon’ 1992; Chaumeil, 1983; Overing, 1990;
Crocker,1985} notaram desde sempre esta capacidade de mudar a percepção
g
Uma reflexão sobre os perigos do uso impróprio da metáfora pode ser encontrada em
Jackson (1989). Nesta passagem Jackson critica o abuso de metáforas textuais por autores
pós-modernos. "It would be a mistake to disparage metaphorical instrumentality as a
primitive mode of thought, a magicai or primary-process activity. In my view, différences
in modes of thought across cultures are idiomatic rather than formal, and if we take care
to relate thought to context of use when we make cross-cultural comparisons this becomes
quite obvious. If crisis be considered one such context, we find that metaphorical
instrumentality is just as typical of modern societies as pre-industrial ones... In both cases
a shift is effected from a domain of anxiety to a comparatively neutral domain..., the
second domain, however, corresponding to the first. Again, recourse to jargon and to
experience-distant ’ concepts in the human Sciences indicates how anxieties which arise in
the course of research are alleviated through a shift to a neutral zone of abstract language
or ofnumber, which, nevertheless, is held to correspond to the domain of human events...
As for the world of scientific theory, one has only to consider the mechanistic imagery of
eighteenth-century philosophy (Turbayne, 1962), the arboreal metaphor in nineteenth-
century palaeography, the topographical and archaeological imagery in psychoanalysis and
in structuralism, the organic analogies in functionalist sociology (Leach, 1961:6), and the
metaphors of the mirror, the fountain, and the lamp in literary theory (Abrams, 1958) to
agree with Luis Borges that the history of ideas may be nothing more than the history of a
handful of metaphors. Furthermore, if, as Stephen Peppers argues, world theories are so
often generated from the immediate sensible world, might not adequacy in explanation be
seen as a matter of choosing the right metaphor rather than a question of epistemological
correctness? (Jackson, M., Paths loward a Clcaring, Radical Enipiricism and
36
mesmo tempo próximas da experiência (experience-near) do sujeito que tentamos
evocar e próximas da experiência (experience-near), em um nível imaginativo, da
comunidade de possíveis leitores para quem estamos escrevendo.
Em um artigo recente, Viveitos de Castro (1996) situa sua abordagem a
propósito do “perspectivo ameríndio” dentro do paradoxo clássico
Natureza/Cultura herdado pelo americanismo de Lévi-Strauss9.
Antes se observava a recusa, por parte dos índios, de conceder os
predicados da humanidade a outros homens; agora se sublinha que eles estendem
tais predicados além das fronteiras da espécie, em uma demonstração de sabedoria
“ecosófíca” (Arhem, 1993) que devemos emular, tanto quanto permitam os limites
de nosso objetivismo. Antes, era preciso contestar a assimilação do pensamento
selvagem ao animismo narcísico, estágio infantil do naturalismo, mostrando que o
totemismo afirmava a distinção entre o homem e a natureza; agora o neo-animismo
se revela como reconhecimento da mestiçagem universal entre sujeitos e objetos,
humanos e não-humanos... (Ambas (estas abordagens) são falsas, por se referirem
a uma concepção substantivista das categorias de Natureza e Cultura (seja para
afirmá-las, seja para negá-las) inaplicável às cosmologias ameríndias” (1996 9 -
l0)- I
E do sujeito à “alma” não é mais que um passo: “Tem alma quem é capaz
de um ponto de vista” (1996:11) Se o que define humanidade é a idéia de um
sujeito com um ponto de vista, logo o que liga humano a animal não é sua
animalidade comum mas uma mesma humanidade. Inerente a capacidade de um
ponto de vista é ter um coipo e este corpo, situado e incorporado de agência,
10
O oposto ocorre no imaginário Indo-Europeu e seus mitos sobre gêmeos, em que a
40
desde o início, considerando-se um fato incontestável, um fato pleno de
consequências, ou seja, um dos gêmeos nasce primeiro. Deste fato deriva todos os
tipos de diferenças não oposicionais mas sim graduais. Entre os gêmeos existirá o
menor e o maior, o mais forte e o mais fraco e, um aspecto que todos os meus
informantes insistiram em frisar, o com sorte e azarado. Esta lógica da diferença
gradual, do mais velho e do mais moço, do menor e maior, repousa na base do
dualismo de metades e em toda conceitualização de complementaridade nas
relações e no mundo.
No pensamento ameríndio, a idéia de duplo implica, portanto, diferença.
Duplicidade na singularidade é possível, o que não é possível é a igualdade
duplicada. A idéia é a criação de seres de uma mesma classe, significando,
similaridade suficiente que garante o entendimento entre eles, não clones e
réplicas. Uma simetria perfeita nunca será encontrada no mundo. Esta idéia
encontra-se na arte Kaxinawa. Simetria na arte é retificada por um pequeno
detalhe assimétrico que transporta a idéia de identidade distinta. É o detalhe, a
dissonância, que dá vida ao trabalho artístico, assim como vida em si mesma.
Deste modo, o estilo gráfico Kaxinawa pode ser visto como a visualização do valor
social da autonomia pessoal que se manifesta em sutis detalhes idiossincráticos,
escondidos no padrão global de simetria e igualdade. O efeito studium-punctum
descrito por Roland Barthes (1980) se aplica a este estilo gráfico.
O studium, ou o discurso dominante, seria neste caso a repetição de
elementos iguais num ritmo simétrico e o alto valor dado a execução delicada de
finas linhas paralelas. O estilo gráfico Kaxinawa é caracterizado pelo horror
vacui: toda a superfície dos corpos pintados deve ser coberta com desenhos e
nenhuma linha pode ficar aberta. O padrão pode ser cortado onde a superfície
pintada termina, sugerindo uma continuação do mesmo padrão para além daquele
suporte. Isso demonstra a função do desenho como algo que une mais do que
11 Na arte masculina dos adornos de cabeça, por outro lado, o desequilíbrio e assimetria
são mais explícitos. Aqui o objetivo parece ser o de encontrar um delicado equilíbrio
através do desequilíbrio, deste modo sugerindo o constante movimento das penas. As
penas do cocar são propositalmente diferentes em tamanho para sugerir uma certa
ondulação, embora sejam normalmente da mesma cor e proveniente do mesmo pássaro
(apesar de existirem certas combinações de penas de pássaros diferentes). Caudas
compostas de distintos materiais (conchas, unhas de diferentes tipos de mamíferos, penas
de cores diferentes etc) podem estar penduradas no cocar de forma a aumentar o caráter
idiossincrático da peça, e são designadas como dciu (decoração ou “remédio” do cocar).
Como toque final, rabos de arara são postos no topo. Estes longos rabos são presos ao
cocar, envergados pelo peso de um pequeno pedaço de cera de abelha atado as suas
extremidades. Na cera são fixadas pequenas penas recortadas. O resultado é um equilíbrio
sutil e móvel de peças desiguais porém similares.
42
e o respeito pela autonomia alheia.
O estilo de pensamento perspectivo implica numa constante consciência da
possibilidade de mudança de pontos de vista, conseqúentemente, mudando o olhar
sobre o mundo. Como é de se esperar, o perspectivismo é relevante para o
entendimento dos sistemas de desenhos amazônicos. A qualidade cinética de trocar
a perspectiva entre fundo e figura quando se observa os padrões labirínticos típicos
da tecelagem e da cestaria de muitas sociedades amazônicas, foi percebida na
análise da “arte abstrata” ameríndia.
Peter Roe chamou atenção para a correspondência entre este estilo artístico
e um estilo de pensamento. O autor argumenta que a “ambiguidade visual” dos
desenhos Shipibo (grupo pano do Peru) corresponde em seu sistema de
pensamento a uma “ênfase na ambiguidade mental” (Roe, 1987:5-6).
“Ambiguidade mental” é uma expressão problemática mas pode ser facilmente
substituída por perspectivismo sem, contudo, transformar o significado primordial
I
desta analogia. Para Roe a significação da ambiguidade perspectiva na arte
indígena “abstrata” repousa no que ela nos fala da atitude cognitiva do artista e o
público pretendido. Para os ameríndios o universo é transformativo. Isso significa
que a visão pode, repentinamente, mudar diante de nossos olhos. O mundo é
composto por muitas camadas, os diversos mundos são pensados enquanto
simultâneos, presentes e em contato, embora nem sempre perceptíveis. O papel da
arte é o de comunicar uma percepção sintética desta simultaneidade das diferentes
realidades.
Roe na abordagem sobre os desenhos indígenas chama atenção para o
padrão de estilo e não para unidades isoladas constitutivas do padrão. Minha
investigação sobre o significado dos desenhos para os Kaxinawa confirma as
percepções de Roe. Quando uma leitura iconográfica de unidades isoladas parece
confusa e contraditória é necessário introduzir uma leitura mais gestaltica ou
estrutural dos padrões como um todo o que proporciona, no caso Kaxinawa, uma
melhor compreensão dos seus usos e significados. Analogias entre esse código
visual e outros códigos verbais e não-verbais, que juntos formam o pano de fundo
para a significação cognitiva e emocional do estilo artístico, são essenciais. Neste
43
sentido, estou convencida que uma abordagem especializada para arte é
improdutiva e a estética deve ser encompassada pela hermenêutica no estudo da
arte indígena assim como no da arte ocidental12.
Outra ilustração da presença do perspectivismo na arte amazônica pode ser
encontrada no estudo sobre os mitos, tecelagem e canções Yekuana (grupo karib
da Venezuela) realizado por David Guss (1989). Depois de abandonar a procura
do grande mito de origem dos Yekuana (que sabia existir em textos antigos), o
autor decidiu, em desespero, sentar-se com os mais velhos e aprender a arte de
trançar cestos. O que descobriu por este modo foi que a vida para os Yekuana é
como o trançado, ou, em outras palavras, que o trançar era a metáfora chave para a
vida entre este povo, e que fragmentos e partes do mito de origem eram trançados,
proferidos e cantados pelos velhos todos dias, no crepúsculo, quando sentavam
juntos num círculo.
Conhecimento não pode ser adquirido fora do contexto, uma vez que
conhecimento nestas sociedades é parte constitutiva da pessoa: conhecimento e
memória são incorporados e são atualizados na medida em que fazem sentido para
a criação da vida cotidiana (veja Gow, 1991, sobre história incorporada para os
Piro do Peru). Neste sentido, nossas valiosas descobertas n o campo não vem de
maneira tão acidental quanto possamos pensar. Elas surgem quando nossos
professores nos consideram maduros para entendê-las, ou simplesmente, quando se
presentifica o contexto certo, um contexto capaz de revelar não apenas o conteúdo
mas, também, a significação e o sentido prático, moral e emocional de um
determinado conhecimento.
O resultado da iniciação de Guss nas técnicas de trançado Yekuana foi um
profundo entendimento da ontologia Yekuana.
“With the abstract designs this simultaneous portrayal of a dual reality
becomes much more complex [than in the case of figurative design], Here image
and counter-image are also shown. Yet what is really depicted is the dynamic
relation between the two. Unlike the static images of the figurative designs, the
12 •
Veja Lagrou, 1995, "Hermenêutica e etnografia”. Para uma discussão antropológica
sobre a possibilidade ou impossibilidade de se considerar a estética um conceito cross-
cultural, veja o debate de Manchester “Aaesthetics is a cross-cultural category”, 1994.
44
kinetic structure of these forms creates an endless movement between the different
elements, drawing the spectator into them. Perception now becomes a challenge,
with the viewer forced to decide which image is real and which an illusion. The
duality signified by the conquest of the baskets is perceptually incorporated into
the structure of their design. Here all the oppositions in the culture (female and
male, visible and occult, Creative and predatory, poison and food) are visually
resolved. But it is not a static resolution. It is, like the daily life of eveiy Yekuana,
a constant interplay between the physical fonns and the invisible that charge
them.” (Guss, 1989).
15
Como exemplos podemos citar os Piaroa (Overing, 1988, 1989), Cubeo (Goldman,
48
modo como estes povos se definem como diferentes de outros povos,
especialmente dos nawa (não-índios).
Assim, o processo de criação e invenção permanente de uma comunidade
específica e de um estilo de vida é realizado através de uma contínua negociação
entre o novo e o velho para fazer frente as mudanças de contexto de novas
oportunidades que surgem e antigas que desaparecem em um mundo em
permanente transformação.
Esta constante reinvenção da identidade face à alteridade envolvente é outra
manifestação da concepção específica que os Kaxinawa têm da noção de
identidade e diferença. Se identidade implica em alteridade, perspectivismo se
toma o elemento de ligação entre estas noções tomando-as interdependentes e
intercambiáveis.
1963), Araweté (Viveiros de Castro, 1992), Pirahã (Gonçalves, 1993, 1995), Airo-Pai
(Belaunde, 1992), Pemon (Thomas, 1982).
49
Capítulo 2. Conceitos-Chave
a. Emergência do yuxin
b. Yuxin inofensivos
19 Ver Kensinger (1975) e Deshayes & Keifenheim (1982) para os Kaxinawa do Peru, com
relação à classificação de animais, coisas e seres seguindo um quádruplo esquema
classificatório composto pela superposição de pares kuin kuinma (verdadeiro ou próprio
ou pertencendo à esfera do “eu”/não verdadeiro ou não próprio, não pertencendo à esfera
do “eu) e bemakia/kayahi (totalmente impróprio/bom). Assim, determinados tipos de
alimento podem não ser concebidas sob a categoria de totalmente próprio ou verdadeiro
(kuin), por exemplo, mas continuar sendo perfeitamente comestíveis na maioria dos casos
por todas as pessoas. Neste caso, a comida é kuinma, não kuin, mas continua sendo boa e
de certo modo própria, kayabi. A qualidade de bemakia se encontra no extremo da escala
de impropriedade e, no caso de comida, significa que é incomestível.
57
começou a sofrer do que parecia, aos meus olhos, ataque epiléptico, seis meses
antes de minha chegada. A primeira hipótese dada a mim por seus parentes, foi
que kuxuka, o boto transformado em homem bonito, tentou raptá-la quando estava
sozinha às margens do rio. Ela caiu na água quase se afogando mas foi salva por
seu pai. Naquela noite teve seu primeiro ataque. Gotas nos olhos, banhos e fumaça
contra o kuxuka foram administradas, entretanto, nada fazia efeito e Augusto, o
herbalista, após ter observado vários ataques que acometiam a moça, afirmava que
o problema era “filhote de queixada”. Antônio, Kaxinawa de meia idade mas
continuando aprender os ensinamentos de Augusto que vem a ser seu pai adotivo e
cunhado, descreveu do seguinte modo a fenomenologia do “filhote de queixada”:
“O filhote de queixada morde a língua e empurra a gente e fica se
debatendo. Aah!, aai!, ele grita, com espuma na boca e tremendo. Ela pegou esta
doença porque seus pais comeram queixada quando sua mãe estava grávida ou
quando ela estava amamentando.” (Antônio Pinheiro)
Augusto preparou uma mistura de dez plantas, todas tendo o nome de uma
das partes do corpo do queixada (pelo, pele, testículos, orelhas etc) e falou para os
pais da moça, todas as noites e manhãs, lavarem o corpo da menina com a infusão
destas plantas. Os ataques diminuíram e depois de algumas semanas os pais da
moça deixaram a casa do herbalista retomando para sua própria aldeia. Passado
um mês, os ataques reiniciaram. Duas possibilidades foram postuladas: ou a
doença não era causada pelo queixada mas por algum outro animal que provoca
convulsões e espasmos semelhantes, ou então, os pais não tinham observado as
prescrições sexuais e alimentares recomendadas.
Do mesmo modo que Augusto estava convencido que os pais da criança não
tinham observado as prescrições sexuais e alimentares durante a gravidez e
amamentação, estava, também, convencido que eles não tinham conseguido, desta
vez, observar as ditas prescrições. Somente quando certo de que os pais iriam
observar o “jejum” recomendado, ele seria capaz de curar a doença e excluir a
outra mais perigosa possibilidade de a doença ser “filhote de capivara” (“os dentes
do filhote de capivara batem, xenx1 Xenx!, eles mordem. Sem remédio a pessoa
morre”.bakeirã hawen xeta xenx xenx amiski hawen meslekinã dauuma
58
mcrwamiskí) (Antônio Pinheiro).
O nome da doença, como filhote de queixada, filhote de capivara etc., assim
como a diagnose através da observação dos movimentos corporais da criança
inconsciente e possuída pelo agente que causa a doença, sugerem uma
interpretação da doença enquanto processo perigoso e incontrolado de tomar-se
outro. O corpo imita seu invasor de tal modo que a sua existência humana é posta
em perigo. O yuxin pode ter sido levado pelo queixada, causando a morte do
corpo, ou a pessoa como um todo desaparece, como pareceu ter acontecido,
segundo me foi contando, com jovens das aldeias do Peru que se perderam na
floresta e se transformaram em animais selvagens não sendo mais vistos por
ninguém. Uma pessoa triste ou com raiva, insatisfeita com sua relação com os
parentes próximos, é descrita como propensa a deixar-se levar pelos chamados do
yuxin durante a noite e desaparecer quando entra sonâmbula mata adentro.
e. Animais Yuxin
f. A Cobra
O paradigma de mediação entre os mundos separados é a jibóia, Yube Xeni,
um animal capaz de viver na terra, nos galhos altos das grandes árvores, nos
buracos e dentro d’água. Os Kaxinawa consideram a jibóia, manã dunu, e a
anaconda, hene dunu uma mesma espécie. O fato de uma delas habitar a tena e a
outra a água é considerado uma diferença em idade e tamanho e não uma diferença
de espécies ou diferença em suas inerentes qualidades. A cobra, nas suas múltiplas
manifestações, é um conceito chave do pensamento Kaxinawa e isso será discutido
ao longo deste trabalho. Mas comecemos com as citações seguintes:
“E assim. Por exemplo, você vai copiar um mapa. Tem muitos igarapés, tem
muitos rios que passam. Você fica com aquele mapa desenhado. A mesma coisa é
o dunu (a cobra). O dunu tem, tem muitos, vários dunu. Tem esses valentões, tem
esses que matam a pessoa. Mas elas também se transformam numa dunuã (sucuri),
Yube. Se ela vê que está engrossando mesmo, ela vai para a água. Aí ela se vira
numa cobra, sucuri.”
“Ah, ela vira cobra d’água?” (eu)
“Sim, d’água mesmo. Lá ela fica e não sai mais. Lá ela produz e faz o que
quer lá. Não sai mais. Tem aldeia na água. Você vê Yube Xeni, a jibóia, na ten a
porque ele foi ferido muito, diz-se. Porque ela foi morta na tena. E por isso que
ele volta para o seco. Mas ele vive sempe na água, que é onde é a cidade deles.
Você sabe que a anta tem outra ciência também, que fica cruzando com Yube. Até
a anta cai na água e vira numa cobra”. (Edivaldo Rodrigues)
“No barranco do rio, tem o buraco onde vive a cobra. O pai (ibu) nunca sai.
Não pode, é pesado demais para se movimentar. Manda seus filhos. Ele é chefe,
chefe mesmo, como governo. Aqui, no barranco, é encantado, tem galinha e
cachorro latindo. E um lugar perigoso porque a barco pode afundar. Quando a
gente passa este remanso, sempre tem medo.” (Antônio Pinheiro)
“Antes, em tempos antigos, o xanen ibu, chefe das cobras, era Besan
(salamanta), uma cobra grande e muito velha. Agora não tem mais poder porque
22 O antropólogo Terri Aquino foi o primeiro a chamar minha atenção para a possível
diferença entre os dois termos (comunicação pessoal). Outra referência à diferença em
qualidade do yuxibu pode ser encontrada nas transcrições de Capistrano de Abreu
(1941:423): “Os yuxibu vivem em grandes lagos. Cultivam grandes quantidades de
legumes. Mas as pessoas não vão lá para colher porque os yuxibu comem gente.”
Capistrano traduz yuxibu como “diablo”. McCallum faz igualmente menção de seres
65
segundo pode fazer mais que o primeiro. Como um demiurgo, criador, ele pode
transformar não apenas a si próprio mas o que está a sua volta, ele pode fazer
aparecer coisas do nada, “como por milagre”. Encontramos mais informações
nesta seguinte reflexão de um informante:
“Os yuxin são seres. Quero dizer que todos os seres têm yuxin. Mas os
yuxibu nunca foram gente ou animal; vivem nas árvores, na água. Lá eles têm sua
família e sua aldeia, sua casa. Se alimentam com as pessoas da terra, com sua
urina, seu suor. Mas têm que voltai’ para suas casas embaixo da água e nas árvores.
O vento e a chuva os carrega. Às vezes viajam muito longe, eles vão ligeiro. A
terra está viva porque os yuxibu vivem nela. Yuxibu é sempre do outro mundo, (o
mundo) dos yuxibu que ninguém vê. A diferença entre yuxibu e yuxin é como a
diferença entre o visível e o invisível.
Os yuxibu matam o yuxin da caça. Nós matamos a caça, e o yuxin (da caça)
fica para o yuxibu matar. Os que matam yuxin se transtornam em yuxibw, nos
pessoas, nos matamos somente carne. Yuxibu nunca acaba, sempre se transforma.”
(Agostinho Manduca).
yuxibu em 1996.
66
explicação). Sua existência corporificada não é deste inundo e os Kaxinawa
somente têm acesso a elas quando visualizam-nas na escuridão da noite através da
experiência onírica ou com o auxílio da bebida alucinógena ayahusaca. Somente
os yuxin dos humanos, e não seus corpos em estado de vigília, tem acesso aos
seres yuxibu. O “sonhar bem” é “m/x/ pae keskcT, “igual a experiência visionária
do ayahuasca”, uma razão porque os velhos não precisam mais da bebida para ter
acesso ao invisível mundo do yuxibu.
Quando me ensinava sobre este tópico, Augusto, o líder de canto, começou
por me acordar de madrugada, narrando seus sonhos em forma de canções. Estas
canções narravam visitas as aldeias (mae) dos yuxibu. Canções de sonhos são
chamadas yamai e são misturadas às canções de guerra (designadas pelo mesmo
termo). As canções de sonho e as de guerra são mais melódicas e, apesar disto ser
uma impressão subjetiva, as mais carregadas de emoções que escutei entre os
Kaxinawa . As aldeias que Augusto e sua esposa Alcina visitaram em seus sonhos
foram localizadas sob a água e, também, no céu. No céu eles visitaram as casas da
lua e das estrelas, enquanto debaixo d’água eles estiveram nas aldeias da anaconda
e do jacaré. O mundo celeste têm sua versão celestial dos seres vivos que habitam
a terra e a água. Por isso, lá existe o nai awa, a anta celestial, cujos rastos podem
ser vistos na via láctea, e a nai nexuã, a tartaruga celestial, pondo seus ovos no
verão, um fenômeno visível na forma de constelação que surge no mês de agosto,
anunciando que os ovos de tartaruga poderão em breve ser encontrados nas praias
dos grandes rios de baixo (desta terra).
É somente o yuxin dos humanos e não sua carne que os yuxibu querem
consumir. Mas, se, como aprendemos da citação, “eles se alimentam das pessoas
da terra, com sua urina, seu suor”, toma-se, então, difícil distinguir entre yuxin e
matéria. A urina ou o suor são yuxin ou matéria? O paradoxo poderia ressurgir se
consideramos que yuxin somente toma-se ser ativo quando separado e agindo
independentemente do corpo, seguindo a lógica do duplo. No mesmo sentido, as
secreções corporais, especialmente aquelas que se apresentam em forma líquida,
são yuxin ou contém um alto grau do yuxin. E através do suor, urina e fezes que os
seres humanos alimentam a terra, as águas e seus habitantes yuxibu. Esses hábitos
67
alimentares do yuxibu (seres do outro mundo) podem ser vistos como marca da sua
diferença em relação a seus próximos, os yuxin. Se yuxin e yuxibu comem apenas
yuxin (essência vital), eles não fazem isso do mesmo modo. A citação que vimos
acima sugere que os hábitos alimentares do yuxibu são inofensivos para os corpos
dos humanos. Eles representam a circulação da essência vital entre diferentes
domínios do mundo. Mas existem exceções: o yuxibu chamado monstro ou
demónio.
Estes monstros, como outros yuxibu, são provenientes do outro mundo (isto
é, um mundo em que nenhum ser humano vive), mas seus lugares de morada não
são muito longe. Eles vivem em grandes árvores e são descritos como canibais.
Um exemplo é Nibu bakapiana (talvez uma tradução possível seja: “escorpião que
come peixe” ou “escorpião que come sombra”), também designado nixun yuxibu,
um monstro preto cabeludo que vive na árvore samaúma, provoca tonteira nos
passantes e os mata enquanto dormem.
Feijó
R.T*r*uacá Manuel
R. Muru
Urbano R. Puruí
Sena
Madureira
ÇNoya Aliança
Moemi
I. Envira
Rio Branco
R. Curanja
R. Ucayalí I Brasiléia
Brasil
Peru
Bolívia
68
de um sem fim de penetrações levadas a termo por uma coletividade de yuxin, os
familiares do yuxin vivente coin/dentro da mulher23.
Essa excessiva ingestão oral do sêmen do yuxin, associada com a falta de
ingestão suficiente de comida verdadeira, leva à perda da saúde e de força vital e
se manifesta na desfiguração do corpo. A inversão do comportamento sexual e do
processo alimentar apropriados, transforma a pessoa humana lentamente em uma
vítima do yuxin e depois de um tempo a pessoa doente toma-se irreconhecível. Ele
ou ela perde a consciência e a fala propriamente humana, come apenas folhas e
moscas, que são a comida dos yuxin e nunca toma banho. A pessoa fica coberta em
seus próprios excrementos e secreções, veste-se com folhas de palmeiras e aplica a
pintura do urucum em excesso.
Esse tipo de convivialidade com o yuxin necessita ser curado com ervas e
encantações. Para evitar a recaptura pelos yuxin, a pessoa é tratada com o sumo de
plantas espremido nos olhos, ou com banhos e folhas queimadas. Se decidir aceitar
o desafio da iniciação para se tomar xamã, a pessoa, seja ela homem ou mulher, se
retira em sua rede e começa a fazer dieta com a intenção de ganhar controle sobre
a relação com o yuxin de maneira que possa usar esta relação para o bem-estar dela
própria e de sua comunidade.
A pessoa ganha familiaridade com yuxin e yuxibu específicos com os quais
estabelece laços que o guiarão no mundo imaterial. Esses novos laços servem de
proteção aos ataques predatórios movidos pelos espíritos. Mas, coabitação com o
yuxin têm o seu preço no que se refere aos “prazeres mundanos”. O iniciado não
come carne e comidas doces e não pode ter relação sexual durante seu
aprendizado.
Eu soube de uma mulher que era aprendiz yuxian (xamã). Delsa, primeira
das duas esposas do líder da aldeia Fronteira, tomou-se uma depois de uma
23 Vale a pena chamar a atenção para o contexto em que obtive esta informação. Augusto
me descreveu esta cena repulsiva e ameaçadora em detalhe e com sorriso irónico,
alertando-me para os perigos de um interesse exagerado no assunto. “Se perguntar demais
sobre yuxin”, me disse, “os yuxin virão te pegar!” Depois desta afirmação, sugeriu que
acompanhasse as mulheres para o roçado.
69
experiência assustadora em um dos lugares mais perigosos da alteridade conhecido
pelos Kaxinawa: o hospital. A estória que ela me contou, passo a nanar. Delsa,
grávida de seu último filho, estava na cidade acompanhando seu marido. Quando
estava prestes a dar a luz, os médicos queiram operá-la de modo a esterilizá-la. Os
médicos agiram de acordo com o desejo de seu marido. Delsa, entretanto, recusou
veementemente. Ela disse que se quisesse não ter mais filhos ela poderia usar seus
próprios métodos para evitar a gravidez. Na sociedade Kaxinawa são as mulheres
que controlam a fertilidade e não os homens.
Deste modo, no hospital e próximo a dar a luz, Delsa “ficou doida”. Ela
gritava e batia, não queria deixar os médicos levarem a diante a esterilização.
Quando teve seu ataque, Delsa teve visões. O hospital, lugar onde as pessoas vão
para morrer, tem uma alta concentração de yuxin. Depois de algum tempo, quando
já tinha retomado para a aldeia, Delsa aprendeu a ter controle sobre suas visões.
Primeiro ela começou a receber visitas e ensinamentos de seu falecido pai,
quem foi, também, umywx/aw (xamã), e depois se “casou” com Yube Xeni (o yuxin
da jibóia). Deste momento em diante o espírito da cobra vinha fazer sexo com ela
todas as noites. Em função deste novo marido espiritual, Delsa diz que não faz
mais sexo com o seu marido. Um dos sinais de sua aliança com o mundo dos yuxin
é sua boca deformada, as pessoas dizem que o yuxin está comendo sua boca, outro
sinal é seu sucesso em curar febre em crianças pequenas.
24 O último mukaya morreu em Conta há aproximadamente dez anos. Seu filho, Leôncio, é
liderança de Conta, aldeia Kaxinawa do lado peruana, próxima à fronteira com o Brasil. É
um cantor de cipó reconhecido. Ao explicar-me a “profissão” do pai, Leônico salientou
duas caraterísticas do mukaya'. o fato deste ser inconsciente quando os yuxin vêm falar
através dele, e o fato dele ter o poder de chupar e extrair o duri, substância xamânica dos
73
árvore, irá assobiar para fazer sua voz ouvida e pode ser usado pelo iniciado
mukaya para curar e causar doenças25. O corpo e o poder do xamã são resultados
de uma predação mal sucedida. O xamã é um guerreiro que conquista um inimigo
no campo de batalha representado pelo seu próprio corpo. Os agentes intrusos,
uma vez controlados, tomam-se aliados e, embora obedeçam determinadas regras
prescritas pelo mundo e sensibilidades dos seres yuxin, é o xamã que controla a
interação usando seu poder para seus fins26.
j. O código culinário
Culina.
25 Deshayes (1992:95-106) estabelece interessante paralelo entre a substância yupa que
entra o corpo do caçador deixando-o 'yupa' (surdo pra os sons da floresta, e incapaz de
encontrar a caça) e a substância de nuika que igualmente altera a capacidade auditiva do
caçador, transformando gritos de animais em conversa inteligível. O resultado da ‘surdez’
do caçador é desastroso e a vítima seguirá dieta assim como usará ervas para tentar se
curar, enquanto a alteração auditiva do xamã pode ou não ser aceito pela ‘vítima’, para ser
usada a favor da comunidade, nas suas negociações com os yuxin.
26 A mesma lógica de predação malsucedida que se transforma em poder criativo para a
pretendida vítima pode ser encontrada na teoria da concepção Pirahã. Quando uma mulher
é assustada por um evento natural não esperado, concebe. Desta maneira, se o evento
assustador não mata ou machuca a vitima, não deixará por isso de causar profundos
efeitos: escapando à intenção predatória, uma nova vida é concebida (Gonçalves, 1995).
74
como um ser é percebido: se como caça ou não. A diferença entre jwxzh e yuxibu é
determinada, não apenas pela qualidade cambiável da visibilidade ou invisibilidade
de um ser, mas pelo que este ser come. Nas palavras de Agostinho: “aqueles que
comem yuxin tomam-se yuxibu." Vimos, no entanto, que o yuxin também come
yuxin (essência vital). Mas o yuxin comido por yuxin é yuxin que ainda não se
separou do corpo, vegetal, animal ou humano, que anima. Os hábitos alimentares
do yuxin e dos humanos são simbióticos. Alguns yuxin, entretanto, comem
alimentos nunca comidos pelos humanos, como moscas e folhas, comida yuxin.
Assim faz o yuxian, o xamã, no seu processo de tomar-se yuxin. Os Yuxibu nunca
comem yuxin (essência vital) vinculado a um corpo e nem moscas ou folhas.
Yuxibu, superlativo de yuxin, come apenas o puro yuxin, isto é, o yuxin das
secreções de um corpo vivo ou o yuxin que escapa de um corpo morto.
Pode parecer, deste modo, que os territórios de caça deste mundo e do outro
mundo estão claramente divididos, mas esse não é totalmente o caso. Os territórios
de caça estão sobrepostos e o risco de cruzar fronteiras e trocar o ponto de vista
representa um real perigo para o caçador que pode se perder e se transformar em
“outro”, como animal e caça para os yuxibu e yuxin. Quando o caçador persegue
sua caça tem intenciona apenas sua carne. Quando os yuxibu estão perseguindo
suas caças intencionam tanto yuxin do caçador como o yuxin da caça (Cf.
Deshayes & Keifenheim, 1982). A sobreposição das atividades de caça ocorre
quando os humanos estão caçando pássaros para obter penas e plumas.
Quando se atira em arara, por exemplo, grandes cuidados devem ser
tomados em função de não deixá-la cair diretamente sobre o solo. O pássaro deve
ser pego ainda quando está caindo, no ar (em processo de descorporificação do
yuxin). Isso é importante para não se perder o yuxin da pena, “senão o seu “dono”
leva ele embora e as penas tomam-se frágeis e quebradiças perdendo toda a
resistência”, Antônio Pinheiro). O dono ou guardião que irá levar o yuxin é xawã
yuxibu, guardião das araras. Podemos observar que, quando estão caçando
pássaros para obter penas, yuxibu e humanos estão competindo sobre a mesma
75
substância 21.
Como vimos acima, alguns animais são descritos não somente como tendo
um forte yuxin, mas por serem mais do que isso, não apenas animais nem humanos
disfarçados na forma animal, e nem mesmo um yuxm animal com perigosas
canções e carne venenosa, mas um verdadeiro yuxibu. Nas palavras de Agostinho:
“estes animais não são deste mundo”. Ser yuxibu significa possuir poderes
transformativos extraordinários. Esses animais podem mudar de forma quando
querem e então serem vistos não apenas enquanto animais que estão na realidade
humana, mas seres que são mais do que humanos, eles são demiurgos, mestres da
transformação. Eles são yuxibu porque são mais yuxin (agência, potência) do que
coipo e portanto não precisam estar ligados a um corpo específico para agir de
forma “incorporada” no mundo. Pessoas e animais são mais corpos que yuxin
porque não podem trocar sua pele quando querem, estão confinados à sua forma
corporal para o resto de suas vidas.
Em função dos seus hábitos alimentares, animais sanguessugas e predadores
têm um estatuto especial no sistema classificatório. Esses animais são algumas
vezes descritos “como humanos”, isto é, como tendo a agência e pensamento
humanas e outras vezes são classificados como yuxibu. Então, o mosquito, bi, e a
mutuca, xiu, são descritas como sendo yuxibu, nomeadas, respectivamente,
Taukanixetxantxa e Mancxetunku. A mutuca preta, por outro lado, é uma mutação
de um homem dos tempos primordiais, chamado Ixan, cujo envolvimento amoroso
causou a mais dramática das transformações sofridas pela humanidade no começo
dos tempos da criação (veja a capítulo 4). O sinal de potência aqui é o hábito de
“sugar sangue”. Sangue é um veículo do yuxin e por isso extremamente perigoso
28. Seguindo a lógica que a pessoa se toma o que ela come, o ser que come sangue
adquire uma grande quantidade de yuxin, aproximando-se, portanto de um ser
“Behind your thoughts and feelings, my brother, there stands a mighty ruler, an
unknown sage - whose name is self. In your body he dwells; he is your body.”
Nietsche, Thus spake Zarathustra
ho ho ho ho (3x) ho ho ho ho (3x)______________________________
Hidikan xankini pondo na barriga dela__________________________
ho ho ho ho Ho ho ho ho_________________________________
inu hanu uma Banu (nome para mulher da metade dua) está
fazendo
caiçuma para inu (nome para homens da metade inu)
ho ho ho ho____ Ho ho ho ho_________________________________
nun haki maneni Estamos enchendo o interior dela (com nosso sêmem)
ho ho ho ho_____ Ho ho ho ho_________________________________
xeki hewan uma Caiçuma de milho_____________________________
ho ho ho ho_____ Ho ho ho ho_________________________________
narne karne Enchendo-a, já esta se tornando uma criança
kidani_________
ho ho ho ho ho ho ho ho
Neste caso uma significaria chicha em vez de caiçuma não-fermentada. Esta hipótese
encontraria reforço na importância dada a chicha (caiçuma fermentada) nos rituais de
fertilidade e de iniciação de outros grupos pano (como, por exemplo, entre os Sharanahua,
Siskind, 1973; os Matis, Erikson, 1996; os Marubo, Montagner, 1985; os Yaminawa,
Townsley,1988). A chicha é também um ingrediente importante nos rituais dos ‘alter-
egos’ e vizinhos dos Kaxinawa, os Culina (Pollock, 1985,1992) e dos Kampa (Weiss,
1969). As mulheres Kaxinawa, entretanto, não preparam a bebida fermentada, seja ela de
milho ou de macaxeira, e dizem nunca tê-lo feito. Esta é também a convicção de
Kensinger. Quando chegou entre os Kaxinawa peruanos nos anos cinquenta, estes não
preparavam nenhuma bebida fermentada (comunicação pessoal). Atualmente, porém, os
homens bebem cachaça durante os rituais de fertilidade assim como durante o ritual de
iniciação. Afirmam que precisam de xia (cachaça) para se animar e para aguentar a noite
de dança. Mulheres parecem desaprovar o uso da cachaça pura (apesar de apreciarem a
‘limonada’, mistura de cachaça com água, limão e açúcar). Homens sob o efeito de pae,
embriaguez, se tornam como nawa, argumentam as mulheres: ciumentos e violentos. O
mesmo comportamento feminino foi observado por Calavia (1996) entre os Yaminawa.
Calavia suspeita que a recusa feminina de preparar a caiçuma fermentada seja recente e
argumenta que esta recusa reflete uma ruptura na complementaridade de gênero. Seria
uma resposta feminina ao fraco desempenho masculino na caça. Esta interpretação não se
sustentaria para os Kaxinawa.
81
Hawen hadã Copulando, colocando para dentro
hadanti
ho ho ho ho ho ho ho ho_______
tama hewã uma caiçuma de amendoim
ho ho ho ho ho ho ho ho_______
Hidikan xankini pondo na barriga dela
Deste modo, não apenas milho e amendoim têm sementes, mas, também,
diz a citação, mandioca. Semente representa aqui o sêmen, o que fica no corpo e
produzirá a substância que, por sua vez, formará os ossos da criança. Essa
substância vai se acumulando no coipo dos homens e das mulheres, mas é somente
no corpo dos homens que produzirá sêmen.
“Um homem precisa tomar muita caiçuma de milho, misturado com
amendoim para se tomar forte. Quando uma criança bem nutrida nasce, sabemos já
que foi por causa da comida que comemos. A criança com ossos feitos de
macaxeira cresce devagar e fica pequena, mas a criança com ossos feitos de milho
cresce e rápido e vai ficar forte.” (Edivaldo)
O motivo do xeki xau, espiga de milho, será pintado com jenipapo na testa
de um menino seis dias após seu nascimento, enquanto a testa da menina será
pintada com o motivo xapu hexe, semente de algodão. O primeiro desenho refere-
se aos ossos fortes e à produção de sêmen, enquanto o segundo se refere à saúde e
a vida longa (“ter um yuxin de algodão”, significa ser saudável e forte) assim como
à fiação e menstruação (o que será visto mais adiante quando abordamos o mito de
Yube, a lua).
b. O processo de concepção
de uma menina, Graça, sendo pressionada para casar embora sua mãe achasse que
era jovem demais para isso. Sua mãe contou-me que Graça, aos seus 12 anos de
idade, ainda não sabia cozinhar e não era capaz de fiar. Então, eu perguntei a sua
mãe, Maria Domingos, “Porque a senhora quer que ela case?”. A Resposta foi: “Se
ela ainda não está pronta, ela não deve pinicar (relação sexual), arriscando ficar
grávida”. Eu perguntei: “Mas ela realmente está tendo relações sexuais?”.
Respondeu: “Sim, está. Se não estivesse porque ela estaria sangrando agora. Eu
não quero que minha filha seja uma mãe solteira!”.
Existem métodos contraceptivos usados para permitir que meninas casem-se
um pouco mais tarde. Em tempos antigos, segundo os Kaxinawa, meninas não
casavam antes dos dezesseis anos. Medidas contraceptivas eram usadas
procurando não apenas prevenir a fertilização mas prevenir, também, a pré-
condição necessária para isso, o primeiro sangramento. Isso explica porque o ritual
precisa ser realizado antes da primeira menstruação. O ritual envolve eivas
medicinais, três meses de dieta alimentar e abstinência sexual, assim como a
intervenção do yuxibu da jibóia e da planta dade, planta descrita como tão
poderosa quanto a jibóia. Esse ritual, entretanto, precisa ser realizado antes da
menina ter a primeira relação sexual. Este fato explica a irritação da mãe. A
menina não esperou, teve sua primeira menstruação e, agora, era condenada aos
olhos da mãe de se tomar mãe prematuramente .
32 Outras moças, entretanto, foram induzidas a se casarem ainda mais novas que Graça,
sem a resistência dos pais. Este era o caso de Francisca que casou aos dez anos com a
liderança da aldeia, Pancho. O casamento representava a aliança política entre o pai da
moça e a liderança em um momento de muita tenção política (perigo de cisão da aldeia). O
casamento durou alguns meses. A primeira esposa de Pancho não gostou do arranjo e
tratava a menina com extrema reserva. Francisca tinha a idade das filhas de Pancho e
sempre brincou com elas. Depois do ‘casamento’ nada mudou no seu status ou
comportamento, a não ser uma timidez mais acentuada com relação a Pancho e sua
esposa. A menina ainda não era púbere e o papel de Pancho era o de prepará-la, sem no
entanto ter relações sexuais com a moça. Deste modo, se existissem boas razões para o
casamento de Graça, como foi o caso da Francisca, sua idade não teria sido invocada
enquanto problema. A mãe de Graça não tinha marido e precisava muito de um genro que
vivesse com ela. O homem que desejava casar-se com Graça era um homem maduro, do
Peru. A chance dele ficar por muito tempo na aldeia da sogra, como prometia à mãe da
83
Uma menina toma-se adulta depois de ter dado à luz a seu primeiro filho.
Deste momento em diante ela passa a ter seu próprio fogo no grupo doméstico
materno. Enquanto o jovem casal não tem filhos é considerado parte da família
nuclear que o hospeda, tendo quase o mesmo status que os adolescentes solteiros.
Seu comportamento é brincalhão e nunca toma a iniciativa ou liderança em tarefas
domésticas. Será de vez em quando solicitado a ajudar mas continuam tendo
consideravelmente mais tempo livre do que adultos da mesma idade com filhos.
Um jovem casal será visto muitas brincando e provocando jocosamente seu
parceiro em público. Eles regularmente desaparecem juntos para as roças ou
floresta sem necessitar desculpas ou alguma razão especial senão aquela de
“trabalhar” na criança. As pessoas fazem piada mais para dar apoio do que para
controlar o casal “sem vergonha”.
Sua situação difere dos outros casais, mais jovens ou mais velhos, que são
tão discretos que nunca são vistos se tocando em público. Os primeiros porque sua
liaison é secreta, e os últimos porque eles e outros estão tão habituados com sua
relação que qualquer ostentação tomar-se inapropriada. Manifestar publicamente
afeição é, agora, reservada aos filhos pequenos.
Somente durante os rituais que representam a fertilidade, a provocação
através de insultos sexuais (convites disfarçados) e brigas de brincadeira entre os
sexos de metades opostas, tomam-se regra. A comunidade inteira comporta-se
como um jovem casal, jocosa e abertamente “despertando” o desejo sexual e
invocando os poderes yuxin da fertilidade. "Quando nós pedimos a fertilidade das
plantas e a abundância em nossas roças”, explicou Milton Maia, "estamos ao
mesmo tempo pedindo a fertilidade da nossa gente. Uma aldeia feliz é uma aldeia
onde muitos bebés nascem”.
Concepção é considerada um processo, uma criação acumulativa, não um
único evento. A mãe e o pai contribuem com os fluidos vitais para a formação e
características da criança. Como na maioria dos povos amazônicos, prescrições
alimentares são observadas durante a gravidez pelos pais, porque as substâncias
c. Crianças Misturadas
Uma consequência das idéias Kaxinawa sobre concepção é a possibilidade
de dar à luz a dois tipos excepcionais de crianças: a criança misturada, husia bake,
e a criança espírito, yuxin bake. A criança misturada é bastante comum e se deve
ao costume difundido das relações extramaritais. Os affairs são bastantes comuns e
percebidos como “inocentes”. O que os Kaxinawa desaprovam não é propriamente
o em si mas a ostentação e a vaidade. É dito que um homem é vaidoso
quando fala para a esposa sobre suas relações extramaritais. O mesmo é dito de
mulheres que se comportam deste modo. A moralidade sexual Kaxinawa sustenta
que nunca deve-se falar sobre ou comparar amantes. A ostentação, comparação e
falta de generosidade sexual provocam crises de ciúme. Quando uma mulher é
saudável e gorda, Antônio disse que é porque “o marido dela nunca fala sobre os
casos dele” (hawen bene txula yusinmakí).
Um marido ciumento é designado yauxi, avarento com sua esposa. Yauxi é
um termo fortemente carregado no vocabulário moral Kaxinawa e empregado, na
maioria dos casos, para designar um comportamento anti-social. Aqui o
significado da palavra é, obviamente, ambíguo. Não significa que um homem
generoso ache coneto que sua esposa tenha relações sexuais com outros homens.
Um marido avarento é um marido paranoico, obsessivo, um homem que desconfia
todo o tempo de sua esposa, seguindo seus passos, espancando-a quando suspeita
paepadan. Dade keskaki. Min ihu ainbu paepahaidaki, mia binuaki. Miki dateai."
89
má sorte e é “fraco”, mas a cooperação entre eles resulta em grandes feitos como o
corte da enorme samaúma que escondia o sol pelos gêmeos míticos lyô e Ipi.
Qualidades diferentes e complementares em um par de seres basicamente
semelhantes e quase iguais produzem uma dependência mútua que está na base do
pensamento dualista encontrado em muitas sociedades ameríndias. O mundo
criado a partir deste princípio é composto da combinação de diferenças e sua
separação seria o fim de todo o movimento e vida na terra. A igualdade dupla, uma
idéia que fascina tanto o pensamento ocidental (desde os mitos de gêmeos na
antiguidade até a representação e a invenção da clonagem), parece ser inconcebível
para o pensamento ameríndio, porque na representação indígena uma pessoa
necessariamente nasce antes da outra, dois seres serão únicos e diferentes.
Outro estado especial definido com o nascimento é quando a criança nasce
com o cordão umbilical enrolado ao pescoço. Estas crianças “nascem curadas", “já
curadas, desde o começo”, como gêmeos. Mordidas de cobra não os ferem. O “já
curado” refere-se à imagem curativa típica de uma visão produzida pelo
ayahuasca.
Quando alguém é curado na experiência visionária, a cobra (o dono do
ayahuasca) surge enrolando o corpo do paciente até o seu pescoço e sua língua
lambe o nariz do paciente. A cobra fica durante algum tempo olhando nos olhos do
paciente, hipnotizando-o enquanto “reza” com sua língua. Quando se desenrola do
corpo, a cobra leva toda a doença consigo. Um bebê que nasce com o cordão
umbilical ao redor do pescoço (a mesma imagem da cobra) passou por uma
experiência semelhante à cura e, por isso, é dito que está protegido das cobras para
o resto de sua vida.
^8 • .
A transcrição e tradução deste canto coincidem com a de Cecília McCalIum (1996:21).
39 Esta é a interpretação dada por Vilaça à mesma prática registrada entre os Wari (Vilaça,
93
espiga de milho. O canto entoado durante a pintura invoca o pêlo escuro dos
macacos e a penas pretas de determinados pássaros. A pintura protege o corpo
tomando-o invisível aos predadores yuxin.
Acredita-se que as mãos, o suor e as palavras usadas no ritual passam o
caráter, o poder, o dau (encantamento, medicamento) e o dua (brilho, saúde e
sorte) para a pessoa que os recebe. A fala ritual, o sopro e o toque passam os
pensamentos (xiná) e o conhecimento (una) para aquele que recebe as
encantações. Assim, não somente o corpo mas todos os aspectos da pessoa são,
simultaneamente, modelados. O corpo não é percebido como uma entidade
independente, separada de outros corpos. Sua forma e estado são resultado de uma
modelagem e fabricação coletivas, e é uma preocupação dos parentes próximos.
Esta responsabilidade coletiva para com o bem-estar e o estado dos outros
corpos explica porque, uma vez que fui aceita em suas casas, era importante para
os Kaxinawa que meu corpo estivesse em um estado saudável e com beleza para
ser mostrado a minha família quando de meu retomo para minha casa. Ouvi,
repetidas vezes, a seguinte frase: “Nós queremos que você esteja gorda e saudável
quando regresse para sua família". Neste sentido, o estado de meu corpo seria o
testemunho mais eloquente do modo que eu tinha sido tratada por eles. Alguém
que está triste perde o apetite e a alguém que é excluído sociahnente não será
oferecida muita comida. Magreza é, quase sempre, um sinal de infelicidade.
Quando um casal está brigando, por exemplo, ou quando um marido fala para sua
esposa que ele está tendo um caso, ela ficará magra. O formato do corpo, se magro
ou gordo, será objeto de preocupação e comentários.
Como vimos acima, magreza é também sinal de interferência de yuxin.
Yuxin interferem na vida de uma pessoa quando seus vínculos sociais normais não
estão fortes o bastante para impedir um yuxin parasitário de ocupar o lugar de um
parente próximo ou levar a vítima para morar com eles na floresta juntamente com
os seres ni yuxin. Por exemplo, quando morre um parente próximo (filho, esposa
ou marido) e o enlutado não consegue superar a perda; quando se vive em uma
1992).
94
aldeia sem parentes próximos; quando uma pessoa sente solidão, raiva ou ciúme
deve ficar deitado na rede por um longo período, chorando silenciosamente ou
deixar a aldeia para passeios solitários na floresta. Os yuxin escutam o seu choro e
entendem que esta pessoa “quer morrer” {mawa kaliski), este é o momento exato
da intervenção dos yuxin.
40 A resistência dos Kaxinawa para falar sobre assuntos fora do contexto foi também
notada por McCalIum (1989a). No meu caso, determinou a escolha dos tópicos tratados
na tese. Meu plano era o de estudar o desenho e a tecelagem, assim como as iniciações
específicas nestas artes (o ritual da jibóia). Augusto, entretanto considerava necessário
conhecer (entender e transcrever) primeiramente o rito de iniciação, Nixpupima que
deveria ser completado pelo Txidin, festa do lider de canto, para começar depois o estudo
específico da tecelagem. Infelizmente, Augusto sofreu um derrame durante as transcrições
do primeiro ritual, acidente que nos forçou a deixar a aldeia prematuramente. No caso do
Nixpupima, descobri que muitas das informações coletadas em entrevistas antes de
atender o ritual foram contraditas pela performance (quando tudo de repente começou a
se encaixar). O mesmo vale para outras experiências no campo. Mais de uma vez ouvi ‘os
95
A importância dada ao contexto, incorporação e o pôr em prática o
conhecimento na criação contínua de um mundo significante que “funciona” e se
ajusta não é exclusiva dos Kaxinawa e nem específica a culturas orais. A
associação entre conceito e ação e entre conceito e corpo tem sido um tópico de
discussão e reflexão na Filosofia, nas Ciências Cognitivas e Psicologia41. Nestes
diferentes campos de investigação sobre o funcionamento da mente humana
percebe-se, freqiientemente, a necessidade em superar as limitações de um
dualismo Cartesiano. Os cientistas estão começando a perceber que enquanto o
papel do corpo e das emoções não forem levados em conta em um desempenho
cognitivo, continuaremos aprisionados em falsos problemas. Ontologias não-
ocidentais lançam novas luzes para as velhas perguntas, e podem ser, assim, úteis
para arejar nossa reflexão sobre a condição humana através de uma mudança de
ponto de vista42.
anciãos’ reclamarem: “Para que ela quer saber isto se não vai continuar vivendo aqui?” ou
“Porque quer saber? Não entende!”
41 Na filosofia, esta discussão remete a Heidegger, Gadamer e Wittgenstein. O que a
hermenêutica, a fenomenologia e o existencialismo têm em comum na sua oposição ao
dualismo descartiano e à Razão Pura de Kant, é a critica à descontextualização do
conhecimento ou, para colocá-lo em termos Heideggerianos, “a amputação do ser do
Ser”. O fato primordial inegável da Geworfenheit (o ser jogado) do ser humano em um
mundo que pré-existe e o cerca como o fundo constitui a figura, requer que esta
precondição da existência seja levada em consideração quando se julga processos de
pensamento e de ação. A pré-existência de um fundo que delineia a figura do indivíduo
implica em historia, ambiente humano e não-humano, emoções, corpo, valores e
motivação. Processos de pensamento e sistemas de conhecimento podem somente ser
entendidos ao levar-se este pano de fundo em conta como parte constitutiva e integral da
questão. Uma discussão esclarecedora da importância do corpo e do contexto no campo
da psicologia cognitiva pode ser encontrada em Shanon, B., 1993. No campo da filosofia,
Jacob Meltjie, desenvolveu, a partir do estudo do obra madura de Wittgenstein, uma
abordagem praxiológica do conhecimento. Aplica a idéia da estreita ligação entre conceito
e ação em campos muito próximos à Antropologia (o autor foi fortemente influenciado
por Evans-Pritchard durante sua estadia em Oxford). Com exemplos tirados da vida
cotidiana de pescadores noruegueses e dos Saami, criadores de rena, demonstra como a
participação ativa na paisagem e o dominio das técnicas da profissão, modulam a respetiva
percepção da paisagem e do barco. (Melcfie, 1983,1989).
42 A propósito desta questão Jackson (1996) escolha o caso Kaxinawa para ilustrar novas
formas de concepção do conhecimento, assim como para ilustrar porque e como outras
ontologias não-ocidentais devem ser levadas a sério pelo pensamento científico e
filosófico.
96
Kensinger (1994, 1995) identificou vários conhecimentos particulares que
se ligavam ao corpo e ao sentido. Ele menciona o conhecimento da mão (meken
una), o conhecimento da pele (bitxi una), o conhecimento do olho (bedu una), o
conhecimento da orelha (pabinki una), o conhecimento genital (o conhecimento
dos testículos no caso masculino e no caso feminino não foi especificado), o
conhecimento do fígado (laka una). Uma pessoa cuja corpo inteiro sabe é uma
pessoa sábia, unahaida (“sabe forteinente”). “One leams about things like the sun,
wind, water, and rain through the sensations they produce on the surface of the
body. It is In this sense that knowledge of the natural world is skin knowledge,
bichi (bitxí) una, that is, knowledge gained through and locate in the skin”
(1995:240). O Conhecimento do mundo circunvizinho que é adquirido pelos olhos
é um “knowledge about the jungle’s body spirit” (Jbid.).
O yuxin do corpo é designado yuda baka yuxin (yuxin da sombra do corpo).
E a sombra, o reflexo da pessoa na água ou em um espelho, a imagem capturada
pela fotografia de pessoas e coisas. Durante o dia ou durante a noite o mundo
conhecido pelo yuxin do olho é um mundo de imagens. Para algo se tomar
conhecimento incorporado outros sentidos devem ajudar a enraizar esta percepção
do mundo circundante através da pele, das orelhas, das mãos, do corpo.
As capacidades que fazem de alguém um bom caçador são variadas. Há um
conhecimento do olho para fazer a pontaria com a flecha, há um conhecimento das
mãos para controlar a técnica do tiro, conhecimento da pele para sentir o ambiente,
a capacidade para cheirar a caça ou produzir um cheiro para seduzir a caça com
ervas, assim como a utilização de apitos e canções para atrair a caça (veja
Deshayes, 1992).
Os caçadores imitam as técnicas de caça e qualidades da jibóia mais que as
da onça. A jibóia é famosa por seduzir sua presa atraindo-a pela emissão de um
som, por hipnotizar através de seus olhos e por seu encantamento (dau)
incorporado no desenho de sua pele. Edivaldo disse que outras cobras e a tartaruga
que compartilham o dua da jibóia através do seu desenho, são capazes de atrair
caça, mas que somente a jibóia atrai as pessoas. A pessoa sabe quando há um
jibóia por perto, explica Edivaldo, “quando você percebe que você pensou que
97
estava seguindo um caminho, quando na realidade você estava caminhando em
círculos ao redor da jibóia, os círculos ficam menores e menores até que você está
ao alcance dela".
Tecer, um conhecimento das mulheres, é descrito enquanto um
conhecimento dos olhos e das mãos, manifesta-se na capacidade em visualizar um
padrão não visto enquanto se tece linha após linha. Enquanto um conhecimento
das mãos, é um conhecer de como se fazer algo. Para adquirir tal conhecimento, a
menina necessita de paciência para sentar-se e olhar por horas uma tecelã mestra.
Mais tarde é a menina tenta ela mesma tecer, ela progride tecendo de faixas a
desenhos simples. Enquanto uma parte do método de iniciação da jovem tecelã
consiste em observação e prática, a outra parte pretende agir diretamente sobre sua
memória incorporada. Assim, a menina será, sistematicamente, tratada com gotas
nos olhos que induzem sonhos com padrões de desenho e com a Mestra do
Desenho. Sidika, a jibóia fêmea, aparece para a tecelã sob a forma de uma anciã
que lhe mostra todos os tipos de padrões de tecelagem, cada um destes padrões é
acompanhado pelas respectivas canções de tecelagem.
43 Para os Matis e os pano em geral parece existir uma ligação explicita entre sangue e
“alma”, especialmente quando lidando com sangue humano. Erikson (1986:194-197):
“Alors que Fon peut chasser et consommer quolidiennement avec très peu de prècautions
rituelles la pluparl des animaux (en minimisant letir “sanguinité"), le meurtre cFhumains,
au contraire, est accompagné cFabsorpUon cTânie liée à Feffusion de sang...Mais le
guerrier pano, contrairement à son homologue jivaro .... fie cherche pas à s"approprier
Fexcédent d'âme acquis eu luanl (ou consommant). 11 se livre au contraire à des rites
destines à le débarasser du sang-âme adverse."
100
da existência de uma pessoa são chamados os seus yuxin.
Opiniões sobre a quantidade de yuxin que um corpo humano é capaz de
produzir varia. A maioria dos Caxinólogos e informantes, porém, concordam em
quatro4"1 tipos de yuxin. Apenas uma vez escutei Antônio Pinheiro mencionar que
saliva tinha ou era yuxin. Mas, em geral, yuxin é atribuído ao excremento, urina,
olho e a sombra. Nunca foi mencionada qualquer referência sobre a existência de
um yuxin próprio do sangue, do dente, da unha, do cabelo, embora estas
substâncias e produtos corporais continuem afetando metonimicamente o corpo.
Uma primeira distinção a ser feita é entre “ser” e “ter” yuxin. Os yuxin acima
mencionados não somente estão imbuídos de carne corporal (nami), carne com
vida, mas são capazes de agência independente, separada do corpo. Este não é
completamente o caso para outros fluidos (como suor, sangue e saliva, embora
sejam condutores da força vital de uma pessoa) ou para partes destacáveis do
corpo.
“Existem quatro yuxin numa pessoa: yuda baka, a sombra ou yuxin do
corpo, isun yuxin, o yuxin da urina, pui yuxin, yuxin do excremento e bedu yuxin, o
yuxin do olho. O yuda baka, a sombra, fica como batedor: aonde a pessoa passava
ele grita. O isun yuxin cruza com os yuxibu da água, o pui yuxin com os da terra. O
bedu yuxin é o nosso pensamento. Nosso peso se deve ao fato da gente comer
carne se não estaríamos leves. Você pensa na Bélgica e já está lá. Isso é o seu bedu
yuxin. Mas, nós, temos que viajar para ver. O bedu yuxin se movimenta pelo ar. E
isso que o cipó nos ensina (ayahuasca)(Agostinho Manduco)
Desta citação fica claro que só o yuxin do corpo {yuda baka) e o yuxin do
olho {bedu yuxin) podem ser consideradas verdadeiras “almas” no sentido
normalmente dado para o termo, isto é, que anima e dá consciência a um ser. A
existência de duas “almas” diferentes e complementares que juntas animam o
corpo é comum na literatura amazônica e é outra manifestação do complexo
45 Exemplos deste fenômeno de almas duplas podem ser encontrados em Overing (1993),
para os Piaroa: “lhe life of lhe senses" e “lhe life of ihoiights", em Viveiros de Castro
(1992), para os Araweté: o ta"o we, duplo do cadáver e /-, alma celeste, em Carneiro da
Cunha (1978, 1991), para os Krahó; em Gonçalves (1993, 1995) para os Pirahã onde a
pessoa tem um ‘nome’ (alma) do corpo e um ou vários nomes celestes (recebidos dos
deuses), produtores de ‘almas’ e onde cada uma destas ‘almas’ se divide com a morte em
uma “alma’ canibal e outra ‘presa’; em Gow (1991) para os Piro: alma dos ossos
(monstro) e alma celeste etc. Como podemos ver, cada exemplo de almas duplas
demonstra uma complementaridade diferente. Em alguns casos reconhecemos a oposição
entre uma alma animal (e geralmente mortal) e uma celeste (imortal) coabitando num
mesmo corpo; em outros reconhecemos a oposição entre uma alma interior (alma dos
ossos) e outra exterior (imagem especular da pessoa), em outros ainda, a oposição
recapitula a organização dos seres em predadores e presas. O que é interessante para
razões comparativas é o fato destas cosmologias enfatizarem o caráter inerentemente dual
da agência e consciência humana, sem, entretanto, reduzí-la à clássica oposição entre
corpo e alma. O caso etnográfico mais próximo aos Kaxinawa é o dos Bororo, descrito
por Crocker (1985). As similaridades entre a ‘alma’ do olho e a ‘alma’ do corpo, de um
lado, e o aroe e bope, de outro, foram primeiramente notadas por Townsley (1988) para a
alma do olho e do corpo dos Yaminawa, e para os Kaxinawa por McCallum (1989a). Cf.
102
alucinógenas, seus fluidos corporais tomaram-se altamente potentes contribuindo,
assim, para a criação dos seres do mundo. Excesso de poder e criatividade
conduziram à promiscuidade e violência e tiveram que ser controlados para ser
possível o tempo histórico humano. Portanto, o poder da “vida dos pensamentos”
foi separado do poder da “vida das sensações”. Os deuses foram viver uma vida
etérea e não-corpórea no céu, sem “sensações”, enquanto os animais perderam a
“vida dos pensamentos”. Assim, os seres primordiais perderam sua fertilidade
descontrolada para se tomarem seres humanos normais, quer dizer, seres que
combinaram ambas “as almas”, a “vida do pensamento” e “as sensações”. Uma vez
que a vida das sensações foi dominada pela vida dos pensamentos, os homens não
se reproduziram por meio da defecação mas por meios conceptivos.
Entre o Emberá a defecação é considerada produtiva, uma contribuição da
humanidade para a regeneração do ciclo vital. Os Emberá têm o hábito de defecar
no rio. As fezes alimentam os peixes que, por sua vez, alimentam os humanos.
I
Considera-se que os humanos e outros coipos viventes nutrem-se mutuamente, os
seres humanos produzem alimento através de seus restos corporais e se alimentam
de sua produção: os coipos dos peixes. Uma comunhão de essência física é a
consequência desta reciclagem de energia (Isacsson, 1993).
Uma inteipretação equivalente pode ser dada à seguinte sentença “O isun
yuxin (força vital da urina) cruza (vai viver) com o yuxibu da água, o pui yuxin
(força vital do excremento) com os da terra”. Durante a vida de uma pessoa, suas
excreções, fezes e urina, nutrem os mundos da tena e da água com yuxin (força
vital); quando de sua morte um verdadeiro duplo é liberado, uma entidade
chamada yuxin, um yuxin que será transformado (através de seus cruzamentos) em
ten a e água.
O importante papel que o cheiro desempenha na identificação de objetos e
seres deve ser levado em conta. A força do cheiro é uma indicação de potência.
Quando algo cheira, significa que tem uma parte de seu yuxin volátil. Fezes não
são consideradas matéria morta, mas, pelo contrário, “vivas”. O mesmo se coloca
Lagrou (1991).
103
para o apodrecimento e para a fennentação. Um corpo morto está realmente morto
uma vez que está totalmente seco, sem qualquer líquido ou cheiro. Isto nos leva de
volta a oposição básica entre seco que designa morte e umidade que implica
atividade, que denota vida. Esta oposição complementar organiza a ontologia
Kaxinawa e será tratada em mais detalhe adiante.
Outra importância do cheiro é o papel da fumaça (kui) como um veículo
para a transmissão de influências contagiosas. Os Kaxinawa dizem que alguns
especialistas em ervas conhecem uma planta com um cheiro venenoso que, quando
queimada, emite uma fumaça letal que inviabiliza a vida nas aldeias. Os Kaxinawa
comparam o poder desta fumaça às bombas. Deste modo, vento e fumaça
transportam venenos voláteis e o cheiro é o sinal transmitido às sensações deste
poder invisível.
O excremento, além de cheirar, é associado à qualidade de amargo. O único
excremento que os Kaxinawa comem é o do pequeno peixe bodó. O líder de
canção, Augusto, parecia gostar de comer deste excremento. Certa vez disse, não
sem seu humor característico, que gostou de bodó por causa do gosto amargo
produzido pelo excremento (hawen pui muka pehaidaki.). Portanto, o excremento
deste peixe é preto, associado ao amargo, e nunca comido por crianças pequenas.
A palavra Matses para amargura é chimu, que também significa picante, acre, e,
ainda, excremento (Erikson, 1996:195). A mesma associação entre a qualidade de
amargura e excremento é encontrada entre os Wariapano (um grupo pano pouco
conhecido) que emprega o termo muka (amargura). Outra associação entre
amargura e excremento pode ser encontrada na palavra puikama, veneno de peixe,
extremamente amargo e escuro, que contém o termo pui, excremento.
Deste modo, temos uma cadeia associativa de relações simbólicas entre
amargura e potência, veneno e excremento. Amargura da carne, do cheiro e do
gosto expressam um certo tipo de poder yuxin. Encontramos, também, "aquele com
o amargo", o xamã (mukaya), cuja cante e o paladar tomam-se saturados de
amargura, impossibilitando-o de provar da carne sem associá-la à resina, sempa.
Isto leva a uma outra associação, a de que o sangue tem gosto doce e que a
amargura do paladar do xamã está relacionada ao “falso sangue”, o líquido de uma
104
árvore, resina. O xamã é um vegetariano não por escolha ou hábito mas como
conseqiiência de sua distorcida percepção gustativa: não mais provará a doçura da
carne (nami: polpa das fintas assim como carne animal), somente experimentará a
amargura que caracteriza o sumo do cipó e das folhas, comida de yuxin.
Para os Matis (Erikson, 1996:194), o gosto amargo inclui gostos picantes e
azedos, enquanto no idioma Kaxinawa azedo é chamado bunkax e picante, xia.
Mas, uma similar classificação dos gostos parece estar em operação tanto entre os
Kaxinawa quanto entre os Matis: dividem todas as coisas e seres em duas classes
seguindo linhas de gosto que separam o campo do amargo, substâncias
relativamente perigosas, do da doçura que é relativamente inócuo. O mundo do
poder yuxin, enfermidade e xamanização, é associado à amargura, enquanto o
mundo do crescimento dos jovens corpos humanos em uma atmosfera protegida é
associado à doçura e, também, inclui o sal (isto parece ser regra entre os pano).
Não surpreende o fato destes campos estarem ligados à diferenças de
gênero. O homem absorve todos os tipos de substâncias amargas para assegurar
sucesso em expedições de caça. Esta categoria de "amargura" ardente inclui
mordidas de inseto, urtigas e eméticos como a injeção do veneno do sapo (aplicada
a uma bolha de queimadura sobre o ombro) que induzem à resistência e ao
endurecimento da carne. A mulher precisa de uma cota de amargura e pode usai' as
mesmas injeções de veneno de sapo para ficar grávida, mas sua dieta diária inclui
uma maior dose de “doce” na comida que a dieta masculina. Os homens evitam
comer mamão, banana doce e cana. Estas fontes de doçura são apreciadas pelas
mulheres e crianças nas expedições para as roças.
Alguns aspectos da idéia do poder de contágio associado ao excremento
foram explicados quando colocamos este conceito no contexto semântico mais
amplo da amargura. Mas resta ainda explicar a urina. Se concordamos com
Erikson que no pensamento pano acidez é semanticamente ligada a amargura,
assim como o sal à doçura, entenderemos porque estes fluidos corporais, e nenhum
outro, têm um estatuto especial entre os pano. Através do cheiro forte e “gosto” da
urina e das fezes, estas substâncias comunicam aos sentidos algo sobre seu poder
inerente.
105
No momento da defecação, o yuxin (força vital) do excremento é liberado e
ganha existência em um mundo de seres de seu tipo, o mundo de yuxin. Isso
acontece na floresta, espaço liminar, domicílio do yuxin selvagem, lugar perigoso
para os seres humanos. Neste momento o corpo produz um ser yuxin que escapa de
seu controle e que pode, ainda, afetá-lo. O yuxin liberado é caçado, toma-se presa
e é comido pelo yuxibu da terra e da água sem qualquer dano para seu “dono”, seu
“pai” (ibu), a pessoa que o liberou via a defecação.
Mas os yuxin também podem falar com os yuxin liberados da urina e do
excremento. Siã, um jovem do rio Jordão, disse que existem yuxin da urina e do
excremento que não pertencem aos humanos mas que são yuxin que flutuam
livremente, que podem vir a falar com a pessoa durante o processo de excretar
estas substâncias do organismo. Enquanto o yuxin fala com a pessoa ela não
consegue parar de urinar ou defecar. Isun yuxin e pui yuxin podem sequestrar uma
pessoa por isso, quando possível, as pessoas (especialmente as mulheres e
crianças) vão defecar e urinar na companhia de outros.
As pessoas tomam cuidado considerável com os excrementos enterrando-os,
escondendo-os dos olhos de quem potenciahnente têm alguma má intenção. Caso
contrário, o herbalista/feiticeiro (dauya, "aquele com (ya) o remédio(c/aw)")
poderia achar estas substâncias e misturá-las a um veneno cozinhando-a em uma
folha de bananeira. Se isto acontece, a pessoa produtora das substâncias sentirá
uma forte enxaqueca por volta de meia-noite seguida vómito e de uma diarréia
mortal. Dizem que “antigamente” muitas pessoas morreram deste modo.
A maioria, se não todos, dos adultos têm conhecimento sobre estas plantas
venenosas, porque é até mesmo perigoso o simples toque quando se cruza
acidentalmente com estas plantas. Mas, poucas pessoas estão preparadas para lidar
com estas plantas venenosas. Os herbalistas/feiticeiro (dauya) são introduzidos
neste campo de conhecimento através de rígidas regras de socialização que evitam
o risco de morrerem pelo contato com estas plantas.
46 Uma abordagem ‘democrática’ da figura do xamã, similar a esta, pode ser encontrada
entre os Kagwahiv, onde “everyone who dreams has a little bit of a shaman” (Kracke, W.,
1992), assim como entre os Pirahã, onde todos os homens adultos são xamã (Gonçalves,
1995).
108
definição de xamanismo é limitada ao envio e extração de “flechas” xamânicas ou
substâncias mágicas como duri ou muka, a sociedade Kaxinawa não teria xamãs
embora possuindo uma forte visão de mundo xamânica. Porém, se considerarmos a
existência de especialistas lidando com as forças yuxin invisíveis que habitam a
floresta como um critério que define xamanismo, a cosmovisão Kaxinawa e sua
prática podem ser classificadas como xamânicas.
Em contraste com seus vizinhos Culina (que são considerados pelos
Kaxinawa como tendo xamãs poderosos), os Kaxinawa parecem ter mais medo dos
feiticeiros (huni dauya), especialistas no uso do veneno, que dos xamãs (mukaya).
Para clarificar a distinção entre estes dois tipos de especialistas, uma comparação
com o caso clássico Azande poderia ser útil (Evans-Pritchard, 1937).
Porém, existem diferenças entre o caso Azande e Cahinahua. Entre os
Azande, como entre o Kaxinawa, o feiticeiro, o dauya, faz uso de objetos materiais
para causar enfermidade, enquanto o bruxo, o mukaya, ou o xamã não faz.
Feiticeiros usam fetiches (réplicas), venenos ou partes corporais da vítima para
intencionalmente causar dano (por contágio direto assim como através de
metonímias), do mesmo modo os feiticeiros Kaxinawa envenenam o excremento
ou jogam feitiço sobre um fio de cabelo da vítima. Os meios pelos quais os bruxos
e os xamãs atacam suas vítimas são, ao contrário, imateriais. Para um bruxo, seu
poder se materializa pela enfermidade causada em sua vítima (ou, em alguns casos
específicos, por uma autópsia em um bruxo morto). No caso do xamã seu poder
pode ganhar uma manifestação material na forma de objetos mágicos, muco ou
pedras podem ser exteriorizados de seu corpo ou de corpos de pacientes.
No entanto, a diferença mais importante entre o xamanismo Kaxinawa e a
bruxaria Azande é o fato de que a bruxaria Azande é inconsciente, enquanto um
xamã é totalmente consciente e responsável por suas ações, suas palavras e
pensamentos. Um xamã é um prático treinado para ajudar seus parentes. Isto nos
leva a outra diferença, o fato de que os bruxos nunca são os curandeiros enquanto
os xamãs são, primeiramente, os curandeiros, os que “guerream” e vencem os
inimigos distantes, nunca um parente.
O feiticeiro, huni dauya (“o homem que possui o remédio”), não só é capaz
109
de matar através do envenenamento por excrementos mas pode esconder o veneno
nas saias das mulheres, obtendo os mesmos resultados. A noite a mulher sentirá
uma enxaqueca, depois vomita podendo vir a morrer. As vezes os ataques do huni
dauya às suas vítimas é direto, arranha sua fronte com a longa unha de seu dedo
polegar direito. Esconde o veneno sob a unha e dentro dos brincos feitos de bambu
e fechados com cera (bui). Quando um feiticeiro matou recentemente alguém diz-
se que suas mãos são tingidas de negro com jenipapo e o branco dos seus olhos é
vermelho (ele está “cheio de” ou contaminado pelo sangue de sua vítima). O dauya
é, nas palavras de Antônio, uma pessoa furiosa e sem senso de humor:
“Se você achar graça de sua cabeça careca, porque os dauya são sempre
carecas, se você acha graça, ele põe veneno em você. Se você for sovina (yauxi)
com ele, ele põe veneno em você. Se você recusar de ter relações sexuais com ele,
ele põe veneno em você. (Com um sorriso malicioso). Ser você for sovina comigo,
eu poderia envenenar você. Se você ficasse brava comigo, eu poderia envenenar
você, se eu fosse um dauya. O dauya nunca come carne e nunca cheira perfume.
Quando ele mata alguém passa um mês sem falar com ninguém. Ele não pode
tocar em mulher. Eu não quero saber sobre dau, eu não quero morrer.”
47 Os homens, tomadores de cipó, das aldeias de Moema, Nova Aliança e Cana Recreio
(população de origem predominantemente ‘peruana’), temem as sessões semanais dos
tomadores de cipó em Fronteira, aldeia habitada por Kaxinawa provenientes da área do rio
Envira, onde trabalhavam na seringa até os anos setenta quando se mudaram para o Alto
Purus. Meus interlocutores afirmavam que o cipó de Fronteira era excessivamente forte e
que nesta aldeia tinha ‘gente que sabe botar feitiço no cipó’. As sessões de cipó de
Fronteira evocam as descritas pelos Yaminawa (Cf. Calavia 1995) que qualificavam o
modo antigo de se tomar cipó como verdadeiras competições ‘guerreiras’ entre grupos
diferentes que se encontravam na floresta para tomar juntos e ‘ver’ quem dominava
melhor o conhecimento do shori (ayahuascá) (Calavia, 1995:116). O mesmo papel de
simulação de ou incitação à briga parece ser desempenhado atualmente pela embriaguez
provocada pela cachaça. O autor conclui que o álcool assumiu o lugar das sessões com
shori, levando a brigas com surpreendente regularidade, assim como assumiu o papel de
sua grande popularidade (1995:115). Esta situação é similar à encontrada entre os Pirahã
onde a ingestão ritual de paricá (pó psicoativo que se ingeria através da aspiração) foi
substituída pela ingestão ritualizada de grandes quantidades de álcool. Assim como
acontecia com o paricá, a pessoa toma sozinha, sem acompanhantes. O estado de
intoxicação resultante transforma o usuário temporariamente em ‘predador’ agressivo que
ataca indiscriminadamente quem se aproximar dele. Persegue os próprios parentes, mas
suas vítimas preferidas são, quando possível, os estrangeiros (Gonçalves, 1997).
111
ressentiam por ele acumular poder e bens, quando retomava das visitas
("expedições de caça") a cidade, trazia um perfume tão poderoso que era capaz de
“enfeitiçar” todas as mulheres da aldeia.
Encontramos a mesma ambivalência com respeito à possibilidade de
acumulação de poder pelo xamã quanto a encontrada em relação ao especialista
em ervas. Embora os Kaxinawa afirmem que os xamãs eram mais poderosos no
passado, observações feitas por outros pesquisadores entre os Kaxinawa e entre os
pano parecem concordar que o papel do xamã é temporário e tema delicado entre
os grupos pano, e ainda menos acentuado e institucionalizado que entre outros
grupos amazônicos (Erikson, 1986:196, 205) 48. Entre os Kaxinawa, xamãs
{mukaya) nunca eram os líderes. A chefia e o lidar com o mundo dos espíritos
eram papéis complementares ligados às metades opostas (Kensinger, 1975). O
líder representa o provedor supremo, o conciliador, o que sabe falar às pessoas,
enquanto a figura do mukaya era mais problemática. Este não caça nem come
carne e não pode ter relação sexual. Não participar destas atividades, constitutivas
do comportamento social, o colocaram à margem das relações sociais cotidianas.
Enquanto o líder de aldeia fala ao amanhecer chamando os homens para o
trabalho, os mukaya falavam somente à noite com e em nome dos que povoam o
mundo dos yuxin.
O fato que os Kaxinawa suspeitem de qualquer acumulação de poder, é um
fator importante que determina a função ambivalente e instável do xamanismo
enquanto um papel social. Um líder de aldeia só é aceito enquanto tal quando se
49 Alguns informantes afirmam que o que se vê no crepúsculo não é o yuxin do corpo, mas
o yuxin do olho. Esta parece ser também a interpretação de McCallum (1996) quando diz
116
enquanto a noite pertence ao yuxin desincorporado e ao ser yuxibu. Em sonhos a
pessoa se toma o que ela, de certo modo, é: yuxin; o ser humano é esta dualidade
fundida em um: yuxin em conjunção com a carne se tomará em corpo pensante e
atuante. A noite provoca a separação e a potencialização desta dualidade.
Considerando que durante o dia precisa-se ser um, agindo com harmonia para
levar a cabo uma vida diária normal, durante a noite, o yuxin do olho (bedu yuxin)
deixa o corpo, deixando para trás o corpo adormecido.
A interferência do corpo, fazendo a pessoa falai’ durante o sonho, é um mal
presságio e tem que ser tratado com gotas medicinais nos olhos. E se o sonhador
tomar-se sonâmbulo, a situação é ainda pior. Como vimos acima, gestos e
movimentos feitos enquanto o corpo dorme é interpretado como sinais de doenças
específicas. Os gestos e expressões são identificados como posturas e expressões
de determinados animais que serão responsáveis pela enfermidade.
O que parece claro nestes exemplos é que noite e dia, devem ser mantidos
separados. A mistura imprópria dos comportamentos do dia e da noite provoca
doenças. Enfermidade é, aqui, novamente, entendida em termos de caos. Mistura
imprópria significa descontrole e produz uma mutação de matéria. Enfermidade é
uma deformação do corpo produzida por um excesso de atividade yuxin.
Falar e agir nos sonhos significa que não apenas o ''yuxin do sonho” (outro
nome para o yuxin do olho ou o verdadeiro (kuiri) yuxin), mas o corpo inteiro está
envolvido nas experiências noturnas. Este é um sinal da invasão noturna de yuxin
da floresta no espaço familiar e seguro da casa. Estes yuxin não querem somente se
engajai’ com o bedu yuxin mas com a pessoa, chamando-a para ir viver entre eles.
50 “Huni mawai, hawen nami dami, hawen hinú dami, tsisa besui, mai humpux, ixam
pakeyu, pui pi.si, maisan, pui niitidan; mawa damia, hawen punu dami nuinã, nuin
119
excelência, não desaparece quando é enterrado, transforma-se: veias transformam-
se em minhocas, a carne em formigas e o sangue passa a irrigar a terra. O sangue é
parte do fluxo constante de energias que constitui a cadeia de predaçào, de
plantação e de transformação.
O yuxin do olho, por outro lado, volta para o lugar de onde veio.
Desaparece no céu na forma de um pássaro voador (ou besouro, McCallum, 1996).
Nuvens cobrem o sol e os deuses Inka preparam a sua recepção (Deshayes e
Keifenheim, 1982). De um ponto de vista físico, como aquele tomado por Augusto
na discussão sobre morte, a sombra de um corpo é tão leve quanto o bedu yuxin
(yuxin do olho) e deveria seguí-lo: quando a fusão do mundo divino e aquático é
quebrada pelo advento da morte, o que é leve sobe e o que é pesado permanece em
baixo. O que era dois tomou-se um no corpo animado, que podemos designar por
pessoa. No momento da morte a pessoa transforma-se em outro, e cada elemento
volta para sua origem separada. Para um novo ser humano ganhar existência, as
partes separadas terão, mais uma vez, que se misturar.
Mas existe também uma interpretação social e emocional sobre o coipo e de
seus yuxin após a morte. A definição do coipo é social, porque, como vimos
acima, a pessoa Kaxinawa inclui seus parentes próximos. Pessoas que viveram
junto por muito tempo, se alimentaram e foram alimentadas uns pelos outros.
Comida é uma metáfora importante na sociabilidade Kaxinawa. Não compartilhar
comida sinaliza falta ou recusa de relação social: alguém que não compartilha
comida e palavras "quer comer você", está com muita raiva; anti-socialidade é
expressa pela metáfora do canibalismo. A oposição complementar de compartilhar,
alimentar e cuidar é predação.
Isto explica a existência social do monstro que cresce da sombra: é a
memória mutuamente compartilhada pelos mortos e vivos que não querem se
separar, se despedir. Enquanto o lugar social e pessoal ocupado pela pessoa
falecida faz parte da memória, o monstro estará por perto. A maioria das pessoas
dizem que baka, a sombra do coipo, a memória e a fala (a consciência social da
“The self gains its existence with the individual assuming the role of the other,
viewing itself and responding as the other would.”
Shanon, B„ 1993:141.
1989a.
125
aliança podem variar na constituição de uma nova aldeia. Idealmente (Kensinger,
1975) os líderes deveriam ser da mesma geração e trocar suas respectivas irmãs,
porém, mais freqiientemente (nas aldeias que observei) o núcleo de uma aldeia
nova foi construído em tomo da junção de um líder de canto mais velho e de um
genro mais jovem. O sogro segue o genro na abertura de uma clareira para a
construção das casas e constituição da nova aldeia. Se o genro "sabe falar a seu
“povo” e o faz se sentir feliz e cheio de energia para trabalho", e se o sogro é
capaz de atrair as pessoas pela performance dos rituais, outros parentes próximos
sentir-se-ão motivados a seguí-los. Considerando-se que a aliança entre duas
famílias por matrimónio é a pedra de toque de uma aldeia nova e que um
matrimónio formal é contraído entre pessoas de metades diferentes, há uma chance
significativa do líder de canto e do líder de aldeia pertencerem a metades opostas.
Dependendo da personalidade, conhecimento e experiência da esposa do
líder de uma aldeia, esta pode se tomar a líder das mulheres o que implica que ela
organize o trabalho das mulheres, convocando-as para trabalho. O líder feminino
convocará reuniões apenas para o trabalho coletivo de colheita e fiação de algodão
e para as grandes festas. O trabalho diário é organizado por meio de convites
informais para os parentes próximos ou amigas para acompanhar a dona de uma
roça e compartilhar a colheita.
Por outro lado, homens encontram-se diariamente ao amanhecer em frente
da casa do líder da aldeia para discutir as atividades que cada membro da
comunidade desempenhará naquele dia. Atividades masculinas, como caça e
pesca, são solitárias, embora algumas tarefas excepcionais, como a construção de
uma casa, a limpeza de uma roça nova ou a preparação de rituais são atividades
coletivas. Observa-se que reuniões formais masculinas não refletem uma vida
social ou coletiva mais fortemente marcada para homens do que seria o caso para
mulheres, consideradas pela Antropologia tradicional (Collier & Rosaldo, 1979),
limitadas universalmente ao “privado”, à esfera doméstica. Pelo contrário, os
homens reúnem-se para compensar o relativo isolamento que a maioria de suas
atividades diárias lhes impõem; as mulheres executam todas as atividades, de
plantar à preparação, da comida e cuidados com os filhos, em companhia de
126
grupos, menores ou maiores, que incluem a família, os vizinhos e visitantes. As
casas Kaxinawa são abertas em parte ou completamente e são construídas umas
próximas às outras o que possibilita uma intensa comunicação e visibilidade entre
casas como se vivessem juntos numa grande maloca. Os Kaxinawa dizem que
estas malocas alojavam aldeias inteiras e comportavam até cem pessoas. Este estilo
habitacional foi abandonado quando mudaram-se das cabeceiras dos rios para às
margem dos rios navegáveis.
Especialidades masculinas estão divididas em uma variedade de papéis,
mutuamente exclusivos, de liderança: líder de aldeia, líder de canto, curador
herbalista (há vários tipos de curadores herbários, cada um especializado em
doenças diferentes), líder de sessão de ayahuasca, professor e pastor (quando há
um). Posições femininas de liderança podem ser ocupadas por várias mulheres
proeminentes. É suposto que as esposas do líder de uma aldeia (o líder, via de
regra, tem duas esposas) tenham grandes roças para a frequente preparação de
comida para a coletividade. A primeira esposa é que tem a responsabilidade de
convidar e organizar. O papel de anfitriã pode ser executado por sua mãe
(normalmente a esposa do líder de canto). Este é o caso quando a esposa do líder
de aldeia é ainda jovem. Enquanto precisa-se do apoio logístico da mãe da esposa,
o casal compartilhará a casa dos pais da esposa (devido a uxorilocalidade nos
primeiros anos do casamento). A posição de sogra do líder de aldeia parece ser
estratégica. Enquanto os homens velhos retiram-se da discussão política tomando-
se, relativamente, silenciosos em público, as mulheres mais velhas podem ficar
bastante influentes; elas falam nas reuniões das mulheres assim como nas dos
homens. Um caráter notável na fala destas mulheres mais velhas é que falam mais
alto que as mulheres jovens e estas últimas, quando em público, preferem falar
baixo, quase sussurrando.
Somente se a esposa do líder de aldeia ou líder de canto é uma reconhecida
tecelã será ela que irá organizar as sessões de fiação coletivas no momento da
colheita do algodão. Parece existir uma associação entre o tecer e as qualidades de
uma pessoa banu, por um lado, e a pintura corporal e as qualidades de uma pessoa
inani, por outro (esta é uma informação derivada da canção ritual e da fala
127
masculina, não é parte dos discursos femininos no dia-a-dia). Novamente, o que
parece prevalecer é uma complementaridade nos papéis e habilidades, mais que
um vínculo rígido entre determinados papéis e o pertencimento a metades. As
metades conceituam a dependência mútua entre diferentes elementos no mundo e a
necessidade da alteridade para identidade existir, não definindo prerrogativas de
grupo ou classificando pessoas em categorias mutuainente exclusivas por meio de
definições substancialistas das especialidades de cada metade. Deste modo, todo
ser e toda forma é considerado o resultado da mistura apropriada da diferença. E
por meio desta raiz ontológica que sustenta que dois são necessários para fazer o
um que gênero e metades se encontram. Neste sentido, não nos surpreende o fato
de encontrar entre os Yaminawa, assim como entre os Matses e os Matis (Erikson,
1996:90-108) a ligação entre gênero e metades: uma ligada à feminilidade e a
outra à masculinidade. Uma associação semelhante entre gênero e metade pode ser
encontrada, também, entre Kaxinawa (McCallum, 1989a).
Seguindo Townsley (1988), a metade Yaminawa Roa representa o mundo
aquático e celeste, enquanto a metade Dawa representa a terra e a floresta. A
primeira metade está qualificada pelo feminino e é ligada ao interior. As
qualidades de maciez, apodrecimento, umidade, consanguinidade, e chefia estão
sob a rubrica desta metade, e os anciões, as crianças pequenas, assim como as
mulheres estão ligados ao espaço interno da aldeia. Por outro lado, a metade dawa
é ligada de forma explícita ao exterior, à aqueles que vêm de fora {dawa é a
variação Yaminawa para o nawa dos Kaxinawa), à dureza, a secura, a vida adulta
masculina e, a sua expressão mais característica, à caça. São os homens que
negociam com o mundo estrangeiro, com os brancos e com os espíritos da floresta.
A floresta é considerada um espaço masculino e o homem se quer ter êxito na
expedição de caça, deve evitar carregar consigo cheiros da esfera doméstica. Neste
sentido, a metade masculina dos estrangeiros {dawa) é perfumada (da mesma
forma que o morto quando passa a morar nos mundos celestiais), enquanto a
metade feminina dos parentes (próximos), o lado dua da realidade, exala cheiro de
material perecível, orgânico e odores corporais.
Entre os Matses da área do Javali (Erikson, 1996:90-108), uma metade é
128
chamada bedi (“pintada”, designação metonímica para onça) e é ligada ao
comportamento predatório masculino, enquanto a outra é designada macu
(fermento (Erikson) ou minhoca (Romanoff, 1984)) e é ligada à esfera feminina da
fermentação. Deste modo, as metades expressam a complementaridade de gênero
entre a dádiva da carne, masculina, e a da bebida fermentada de milho, feminina.
A associação da metade macu à produtividade feminina é expressa pelo fato de
que as pessoas desta metade eram responsáveis para manter as minhocas longe das
plantações de milho, enquanto não era permitido para as pessoas da metade da
onça olhar para o milho com medo disto lhe causar algum malefício (Romanoff,
1984:96). Outro aspecto do dualismo Matses (assim como do dualismo Matis e
Yaminawa) é que, embora o casamento com primos-cruzados seja recomendado, a
exogamia de metades não parece ser obrigatória. Observa-se, então, que este
dualismo é mais “simbólico” que “prático” se comparado às metades Kaxinawa
que não servem apenas para conceitualizar forças cósmicas que atuam no universo
ou para estabelecer o pertencimento de todo ser humano a uma destas duas
dimensões que dividem todos os seres do mundo, mas, também, para organizar a
vida social, no nível prático das escolhas matrimoniais.
Há, ainda, outra interpretação para a flexibilidade do sistema de metades em
relação as preferências matrimoniais, interpretação que deriva do fato de que
metades estão ligadas aos pólos complementares do interior e exterior. Se, como
vimos, os Mayoruna e os Yaminawa reproduziam de forma atomística suas
sociedades pela introdução e adoção de cativos, podemos entender porque a
alteridade real toma-se mais importante do que a divisão simbólica da sociedade
em interior e exterior. Se para os Yaminawa a metade associada à alteridade é
qualificada como masculina, enquanto as mulheres pertencem ao interior, entre os
Mayoruna, parece ocorrer o oposto. Mulheres são cativos e homens são
capturadores. Deste modo, são as mulheres, e não os homens, que estão associadas
à alteridade, ao exterior e à inimizade.
Os Matis apresentam um dualismo em latência. Erikson (1996:90) sugere
que isto poderia ser devido, parcialmente, à redução populacional drástica sofrida
pelo grupo nas últimas décadas. Parece ter existido duas metades, uma chamada
129
ayakobo e a outra tsasibo (tsasi: endurecido), e dois motivos recorrentes, losangos
e círculos, poderiam ter estado, tradicionalmente, ligados às metades. Por dedução
e associação com os dados obtidos entre os Matses, grupo mais próximo dos
Matis, o autor conclui que ayakobo deve estar relacionada ao feminino, ao
perecível, à doçura e à fraqueza, enquanto tsasibo estaria ligada a onça, a predação
masculina, à amargura e à dureza. Porém, hoje em dia nenhum Matis reivindica
pertencer a esta metade ayakobo, e todos os ayakobo são identificados como
estrangeiros: Matis Utsi, “outro povo”, “mais ou menos ridículo (ou perigoso)
como os Marubo e, acima de tudo, os Korubo", seus inimigos e ‘péssimos e
preguiçosos caçadores’ (Erikson, 1996:94). O costume Matis, tanto masculino
quanto feminino, de prender longas e finas espinhas aos pequenos orifícios
perfurados nas narinas, evoca de um modo, notavelmente rico, a identificação
visual com os “bigodes” da onça. Ao invés de identificar uma metade com o
exterior, os Matis parecem ter esvaziado uma de suas metades, aquela vinculada à
alteridade, projetando-a sobre o exterior. A mesma consciência da
indispensabilidade da alteridade e a necessidade vital de incorporação dos poderes
exógenos para a existência da sociedade ainda persiste, e esta parece ser a mais
importante fundamentação lógica por trás da grande variedade dos dualismos
amazônicos. Deste modo, a permeabilidade das fronteiras pano que separam o
interior do exterior parecem ser entendidos pelos nativos como de importância
vital para a constituição de sua identidade e, consequentemente, de sua
sobrevivência social.
Entretanto, temos que lembrar novamente que quando falamos em
dualismos estamos lidando com gradações e não com oposições mutuamente
exclusivas. Para usar um exemplo Kaxinawa, todo ser humano é formado por
substâncias masculina e feminina (ossos e pele, respectivamente) e por comida
amarga e doce, da mesma maneira como compartilham qualidades dua e
qualidades inu. Seres humanos e os fenômenos incorporados do mundo foram
criados pela mistura apropriada destas qualidades cósmicas. O estado de “pureza”
primordial era o de não-ser, um tempo de extremos, de letargia no mundo do céu e
de fluência de formas no mundo da água. Este era o tempo de antes do mundo
13(
terrestre adquirir a forma e substância que tem hoje. Esta forma e substância é
consequência da interdependência das metades e do gênero.
“In the tension between dark and light lies the power of the universe.”
Provérbio Tibetano53
“Quando a gente toma o sangue dele, ele nos amostra tudo que ele fez na
vida, sua aldeia, sua ciência. Yube se transforma em várias coisas, várias cobras,
plantas, cipós, em gente, em água, em pássaro. Todas as malhas dele podem se
135
transformar em miração. O kene é Yube se apresentando. Dami, as figuras, é que
nem yuda baka - a sombra do corpo. Você vê, mas você não segura. Vai embora
depois do nixi pae. É o dami - a transformação - do nixi pae do yuxibu. Ele morreu
mas não morreu. Porque seu coipo se transformou no cipó. Yube é nosso Deus. Ele
deixou essa bebida para seu pessoal não chorar mais, não ter mais saudades dele,
porque ele está aí, se mostrando. Assim como seu filho vai ver tudo que você fez
na vida, porque ele veio de dentro, o cipó, quando está dentro de você te faz ver
aquilo que é dele.” (Agostinho, 12/08/95)
54 Uma abordagem similar pode ser encontada em Belaunde (1992) para os Airo Pai
137
A alimentação ritualizada da carne da cobra lembra o mito Desana de
origem do uso do yagé (nome dado ao cipó, Banisleropsis Caapi, no noroeste
Amazônico). No mito, a mãe de yagé entra na maloca com seu filho yagé recém-
nascido, embrulhado em uma brilhante, reluzente, formosa toalha desenhada. Os
homens não resistem a esta visão e, intoxicados, saltam sobre criança, puxam seus
braços e pernas e a devoram. O que os homens devoram não é “comida
verdadeira”, ou uma “criança verdadeira”, mas a substância “imaterial” da criança
yagé, substância que provoca um estado de admiração e exaltação produzido pelo
poder psicotrópico da carne de um Deus (Reichel-Dolmatoff, 1972, 1978) 55. Os
Kaxinawa fizeram um paralelo entre a Eucaristia Católica e o cipó, no sentido de
ambos representarem a ingestão de corpos transubstanciados.
Em uma canção ritual, o guardião da ayahuasca, Yube, é invocado para se
obter uma visão tranquila, porém, próspera. Yube é qualificado como ibu (dono,
pai) do cipó nixi pae. Foi o demiurgo Yube que plantou o cipó e continua, até os
dias de hoje, cuidando de seu crescimento. A justaposição do mito de origem,
aludida na citação acima, em que o cipó nixi pae cresce do cadáver de um homem
que vivia com o povo da cobra, com a informação sobre a identidade de seu
plantador, sobrepõe, assim, dois modos de relacionamento entre seres diferentes. O
primeiro modo une uma pessoa mítica através de seu cadáver putrefato aos poderes
revelatórios do cipó, enquanto o segundo modo vincula o plantador e o seu
produto metonimicamente, expressando uma interdependência contínua enquanto a
planta vive. Esta mesma lógica é encontrada na simbologia do milho.
O mito dá substância aos versos das canções "Yube é o dono porque
plantou o cipó" especificando que "Yube é o nosso pai porque tem o nosso corpo".
A justaposição destas duas frases associa a relação entre o plantador e o que ele
56 Veja David Guss (1989) para os Yekuana e Van Velthem (1995) para os Wayana-
Apalai para um estudo detalhado da congruência entre a fabricação de artefatos e do
corpo.
139
doce, toma tudo. Está muito doce na nossa barriga, raspe-o e tome-o. Na nossa
raiz, você na raiz do nixi pae, outro mundo está saindo, gente saindo da minha
barriga...” (Leôncio liderança de Conta, tradução Antônio Pinheiro).
Além da interpenetração do micro e macrocosmos, outra importante
inversão ocorre na visão descrita por esta canção: a inversão radical do gênero em
que o homem bêbado com cipó toma-se “grávido”. Pela ação do fogo transforma-
se em mulher, que bebendo mel, uma imagem para sêmen, dá à luz, então, a
“novos mundos”. Deste modo, menstruação "masculina" e fertilização são
possíveis através da bebida incontrolavelmente fértil da anaconda, Yube, seu
sangue, um sangue de “inimigo” (nawan himí). Absorver este “sangue” significa se
expor a um excesso de atividade yuxin dentro do coipo que logo se fará sentir
através da transformação violenta da percepção sobre o interior e o mundo
exterior. Ao mesmo tempo observa-se uma transformação temporária de
identidade: um homem toma-se uma “mulher”, grávida de um multiplicidade de
pessoas e mundos. Este é um dos processos múltiplos de tomar-se outro que um
homem experimenta quando está, temporariamente, impregnado com o sangue do
inimigo.
É revelador ler os dados contidos neste canto associados ao mito da lua e da
menstruação. Este mito é bem conhecido e difundido na região57. É a estória do
irmão incestuoso Yube que decidiu tomar-se lua depois de ser descoberto, por
causa de seu rosto pintado de jenipapo, que era amante de sua irmã. Enquanto
escalava o caminho para o céu, Yube pediu para ser lembrado por suas irmãs.
Quando viram seu rosto subindo ao céu, suas irmãs apontaram a lua nova e, ao
invés de dizer "Olhe! A cabeça de Yube está no céu", disseram, "Olhe! É a lua
nova”. Como vingança para o esquecimento das irmãs, Yube fez com que as
mulheres sangrassem à cada lua nova. Uma versão do mito nana que Yube desce
nas noites de lua nova para fazer sexo com as mulheres com seu rabo de arara
vermelha (pênis). Deste modo, as mulheres receberam a menstruação como
vingança que, pode, entretanto, significar uma dádiva suprema visto que a
menstruação é a precondição para fertilidade. De acordo com a teoria da
58 Roe (1982:179): “Indians have noticed that anacondas, like the other reptiles and
amphibians with which they are identified - such as lizards, cayman and frogs - never stop
growing until their death, although the rate of growth does progressively slow down as
they age.”
142
amigáveis. Na região do rio Jordão, os Kaxinawa têm o costume de se referir e
evocai' os trabalhadores de ONGs (mulheres inclusive, não sem uma discreta
ironia) pelo termo ixai.
Txai transforma-se em um termo de parentesco quando referido à
possibilidade da afinidade masculina, e ganha um significado escatológico ao
evocar a figura mítica do Inka. Na linguagem mítica, as mulheres Inka são
designadas tsabe (cunhada) pelas mulheres que as visitam e xanu (cunhada, esposa
potencial) pelos visitantes homens. O morto, seja homem ou mulher, casa-se com
Inka que, para os seres humanos nada mais são que a quintessência do estranho,
monstro canibal, Deus. Pode-se, assim, entender a ironia do engano que sucedeu
aos missionários quando, seguindo a sugestão de um tradutor Kaxinawa,
associaram a noção Cristã de Deus à expressão “Inka nosso Pai” e Diosun Inkan,
Inka Deus59.
Os mitos sobre o povo Inka nanam a admiração pela sua cultura. Os Inka
I
são descritos como aqueles que sabem viver, bonitos e com o conhecimento. Suas
roças são prósperas, suas aldeias, limpas e grandes. Embora possuam abundância
de alimentos, descrita pela imagem de plantas que apodrecem nas roças, são
considerados avaros. Nunca deram nada aos humanos e nem mesmo lhes
ensinaram como plantar: uma total recusa em criar vínculos de parentesco.
Homens e mulheres Inka aparecem bonitos às pessoas, usando roupas tecidas e
desenhadas e com a face, delicadamente, pintada. Os Inka os convida para dançar.
Dançando ou não, as pessoas foram mortas por seus anfitriãos. Os que dançaram
não foram comidos (Capistrano de Abreu, 1941). Os Inka ajudaram as mulheres a
dar à luz (naquele tempo, os humanos não sabiam usar as plantas medicinais
relacionadas ao parto), devolviam os bebés aos Kaxinawa e devoravam as mães.
Na mitologia, os Inka são descritos nas relações com seus próprios parentes
enquanto pessoas que se comportam de forma apropriada, dentro dos parâmetros
sociais e morais esperados. Seu comportamento considerado “monstruoso” é em
59 Depois de ter sido usado pelo primeira vez por tradutores Kaxinawa no contexto da
tradução da bíblia pelo Instituto linguístico de verão, o uso do conceito Inka com o
143
relação aos Kaxinawa . Os Kaxinawa acentuam a relatividade da prática do que é
considerado moralmente bom e mal que leva em conta a semelhança ou diferença
do “outro”. Os Inka consideram os Kaxinawa muito diferentes, enquanto os
Kaxinawa sonham em tomar-se bonitos (implicando em ter o seu conhecimento)
como os Inka. Mas no desenrolar do mito os Kaxinawa mudam de idéia e deixam
para trás o desejo de estabelecerem uma relação de troca com os Inka, os matam e
mudam-se para longe.
A figura do Inka aparece com outros atributos nos mitos que descrevem os
primeiros tempos da criação. O Inka é descrito enquanto um deus solitário e não
como conformando um povo. O Inka habitava o céu e possuía a periodicidade do
tempo, dia e noite, frio e calor. Era avaro para com o urubu que pertencia à metade
dua porque detestava o seu cheiro, e generoso com a harpia da metade inu com
quem compartilhava o poder sobre o céu. Temos, novamente, a representação do
Inka que é a de seletividade social.
Este deus Inka pode descer para ver e ser visto pelos humanos. Mas se esta
visita não ocorresse no momento ritual, o Inka levaria, para todo o sempre, o yuxin
humano consigo. Em resumo, ninguém retoma vivo de um encontro com o Inka
(isto explica o fato de ninguém ver o Inka seja nos sonhos, seja sob a interferência
do ayahuasca). O olhar do Inka consome o yuxin do olho no momento em que o vê
levando-o para morar consigo. Esta concepção do processo de morrer lembra a dos
Araweté no sentido que o destino humano é o de tomar-se cônjuge dos deuses
(“comidos” no duplo sentido) ( Viveiros de Castro, 1986). Quando o Inka desce à
terra para levar o yuxin do olho do morto consigo, segue um grande caminho, reto
pela floresta, livre de espinhos. O caminho é adornado com penas vermelhas,
azuis, negras e brancas. Inca hawendua, o Inca bonito, usa uma coroa de penas
azuis, um cushma tecido e desenhado e vem tocando flauta. "Ele está lindo",
dizem os Kaxinawa . Os pais da pessoa morta cantam:
“Vá para o céu, vá ficar com o Inca, vá e não volte, vá e vista as roupas do
Inca, vá e vista a roupa amarela, vá, não pare a meio caminho, vá, nunca volte”.
(Moisés Kaxinawá).
sentido de “nosso pai Jesus Cristo” foi também registrado por McCalIum (1991).
14<
O Inka do céu não vive totalmente separado das pessoas. Embora perigoso
demais para ser visitado pelo yuxin do olho em seu próprio território ele pode
visitar com segurança os Kaxinawa durante o ritual. De fato, é este Inka do céu
que é chamado e é invocado pela canção ritual e performatizado pelo líder de
canto durante o ritual Txidin, nos funerais e no rito de iniciação Nixpupima. O
povo Inka pode ser representado nas festa de máscara designadas damian. Damian
é uma caricata teatralização cómica que transforma o “medo do Inka" em riso. Nas
festas de damian, que presenciei em 1991, ‘seringueiros bêbados’ tinham
substituído os Inka canibais (veja, também, McCallum, 1992:14).
Vimos acima que Yube e Inka, “monstros” e ao mesmo tempo emblemas da
beleza, ocupam lugares opostos de alteridade acima e embaixo da terra. Na
imaginação Kaxinawa, excesso de beleza está ligada a excesso de poder. Neste
campo de lidar com a alteridade a beleza desempenha o papel da visualização do
desejo e ao mesmo tempo do medo pelo estrangeiro. Portanto, foi a beleza da pele
pintada da mulher cobra que fez com que o visitante humano a acompanhasse para
o mundo aquático; foi a mesma beleza que o iniciou no conhecimento secreto do
dono dos desenhos. Esta aventura, o pertencendo a dois mundos diferentes e a
acumulação de mais conhecimento que poderia suportai; custou-lhe a vida60. De
forma similar, é a música sedutora da flauta e o aparecimento fascinante e radiante
da elaborada decoração do Inka do céu, com sua saia amarela, coroa de penas
azuis e olhos brilhantes, que sequestram o yuxin do olho.
Há o perigo de exposição às qualidades do Inka/owça em que o corpo pode
ser vítima de várias formas de enfraquecimento. Em estados vulneráveis uma
pessoa pode perder líquido ou ter febre alta por causa do excesso de sol na cabeça,
enquanto olhar diretamente o sol causa “cegueira” temporária. Isto é explicado
pelo fato de que o sol é mais poderoso do que o yuxin do olho, e por isso cruzar os
olhares pode ser perigoso para a saúde física e espiritual da pessoa, provoca
61 O mesmo foi notado por Erikson (1996:201) entre os Matis: ‘7e canal ocidaire semhle
constituer une autre voie de circulation de sho (poder xamânico).”
146
logo em seguida, descobre a atividade repulsiva das minhocas em sua vagina. A
mulher estava grávida da minhoca. O marido onça limpou sua esposa humana com
o auxílio de ervas engravidando-a, desta vez, com gente-onça.
Enquanto o medicamento da onça é doce e pertence aos corpos, o
medicamento amargo (dau muká), atribuído a Yube, pertence ao domínio das
imagens e da “yuxinidadé”. A substância xamânica, muka, é a mais amarga de
todas as substâncias. Próximo desta substância, em poder e amargura, está a planta
dade, também designada muka, usada em rituais específicos, muitas vezes ocultos,
acompanhados por uma severa dieta que proíbe a doçura (carne e água, por
exemplo). A lógica que fundamenta esta abstinência é a que atribui às substâncias
amargas a agência do yuxin o por sua vez induz a mutações corporais. Doçura e
puro líquido (água) poderiam fertilizar este processo até o ponto de tomar
incontrolável a metamorfose ou multiplicação dos yuxin no coipo. Nixi Pae (o
alucinógeno preparado do cipó) pertence à categoria de remédio amargo, assim
como o rapé do tabaco, o veneno de sapo e o suco adstringente ardente de
determinadas folhas usados para serem pingados nos olhos dos caçadores e tecelãs.
Observa-se uma inversão de campos em operação, expressando, novamente,
uma dependência mútua entre opostos. Se o yuxin do coipo é, por meio da imagem
da pele e do sangue associado ao domínio Yube, e o yuxin do olho através do olho
e de sua origem celestial está associado ao domínio do Inka, seus medicamentos
têm uma função curativa invertida: o medicamento amargo de Yube cura os
“olhos” e as doenças espirituais associadas aos olhos (pesadelos, a frequente
visualização de yuxin etc.), enquanto medicamento doce cura doenças de pele,
causadas por uma variedade de picadas de insetos (veículos da atividade de yuxin e
do veneno), infestação de vermes, picada de cobra e doenças ligadas ao domínio
de Yube. O medicamento doce, inu, é ligado à pele, intestinos e ao yuxin do corpo,
e é “feito” da matéria de Yube, enquanto o medicamento amargo, dua, está
associado ao olho e à seu yuxin, “feito” da matéria do Jnka.
Seres humanos são a arena do combate de forças antagónicas, e a saúde é
alcançada através de um equilíbrio, temporário, entre a dureza amarga e a maciez
doce. A vida na terra, o domínio intermediário destas duas forças da alteridade que
14'
compartilham a qualidade da vida eterna (circular no caso do InkalsoX e cíclica no
caso de Yube/Lua), é caracterizada, todavia, por uma limitação que falta tanto ao
mundo Yube das imagens quanto ao mundo Inka da pura luz: a inescapável
mortalidade. Mortalidade é o que faz do humano, humano, e, também, é a
mortalidade que cria a temporalidade no mundo.
A imagem do tempo, e da vida humana como um processo de crescer e
morrer, é expressa pela Samaúma, xunu, da qual o banquinho usado no ritual de
iniciação é esculpido. Como uma árvore que cria raízes para se sustentar firme, um
ser humano é somente considerado uma pessoa verdadeira se pertence a algum
lugar onde as pessoas podem cuidar dele. Uma pessoa verdadeira é alguém que
“não anda por aí sem destino”, mas permanece firme, como uma árvore plantada, e
é “olhado” por seus pais ihu (pais ou plantadores). Uma pessoa, como uma árvore,
cresce firme até frutificar, mas sabe, também, quando deixar de crescer: "uma
verdadeira pessoa sabe quando é tempo para morrer". As Pessoas não mudam de
pele, como as cobras e outros répteis, e este fato, como é apresentado no mito, está
na origem do envelhecimento, consequentemente, da morte. A árvore que une o
mundo de água, onde deita suas raízes, com o mundo do céu, por onde espraia
seus galhos, simboliza a vida na terra e a vida humana em particular, uma transição
temporária entre dois extremos. O tema e a simbologia da samaúma será abordado
no final deste trabalho quando examinamos o papel central que desempenha no
rito de iniciação masculina e feminina.
No mundo natural, o pertencimento dos animais e das plantas às metades
inu (onça) ou dua (brilho) está relacionado ao seu tamanho. Espécies de tamanho
pequeno ou variações desta espécie são designadas dua, enquanto as de porte
grande são inu. Os dois tipos de onças são classificados em metades distintas: o
grande, inu keneya (onça com desenho), é inu, enquanto o menor, txaxu inu
(“veado onça”) é dua?2 A harpia, nawa lete é da metade inu enquanto um outro
62 A cor dos animais pode ser igualmente associada as metades: vermelho (cor
intermediária e mediadora do sangue e da fertilidade) é dua. O ixaxu inu se chama ‘onça
veado’ por causa da cor da pele do veado ‘vermelho’. O branco com preto, por outro
lado, pertence à metade inu (associada ao harpia e ao !nkd). Durante o Katxanawa,
148
tipo de gavião maspan ixaipaya leie (gavião de cristã grande) é da metade dua. O
nawa, a versão maior de uma espécie, pertence à metade mu. A mesma lógica em
classificai’ os animais pode ser aplicada ao domínio das plantas. Árvores são
classificadas como inu (onça) ou dua (brilho) de acordo com a comparação de seu
tamanho levando-se em consideração seu volume. A samaúma, xunu, maior árvore
da amazônia, é classificada inu, e por isso designada por nawan xunu. A cumaru,
árvore mais alta que a samaúma, é associada à metade dua. Embora a samaúma
seja menor que o cumaru, têm seu tronco mais grosso e sua copa mais larga. Neste
sentido, o critério mais importante levado em consideração para esta classificação
é o volume e a força da matéria que se classifica e não, propriamente, sua altura.
Os Kaxinawa ao descreverem pessoas empregam a mesma distinção
relacional aplicada às plantas e animais por meio das qualidades dua (banu) e inu
(inani). Os que pertencem à metade da onça (inu) são maiores (mais gordas), e têm
os ossos feito do milho (explicitamente associados à metade do Inka inu),
enquanto as pessoas que pertencem à metade do brilho (dua) são menores (magras,
embora possam ser altas) e têm ossos feito de mandioca. As pessoas inu não
exalam odores corporais e têm a pele macia e imberbe, enquanto pessoas dua têm
cheiro forte e pêlo. Esta última qualidade atribuída às pessoas dua pode ser
explicada pelo fato de que esta metade é associada ao apodrecimento, crescimento
e deterioração, enquanto a metade inu é associada à permanência.
Estas qualidades poderiam somente ser detectadas em seres humanos se as
pessoas fossem completamente inu ou completamente dua. Como isto não ocorre,
visto a necessidade da mistura constante, os opostos complementares são
entendidos em relação: em termos de mais e menos, mais velho e mais jovem, mais
forte e mais fraco, e não em termos de qualidades mutuamente exclusivas.
Observa-se que em relação às qualidades de com e sem pêlo atribuídas as
metade, os Kaxinawa agem e pensam como “povo de fronteira”, consideram-se
uma síntese de extremos. Ao se conceberem como um povo proveniente da mistura
pessoas que pertencem à metade dua, pintam a boca de vermelho com urucum para imitar
a onça vermelha, enquanto pessoas da metade inu pintam sua face com manchas pretas
149
da “presença e falta de pelo” situam-se a meio caminho entre os pano
denominados fluviais e interfluviais. O primeiro grupo, representado pelos pano do
Ucayali peruano (Roe, 1982), detesta os pelos corporais, e associam os pelos à
selvageria, animais e inimigos (especialmente aos brancos barbudos), enquanto o
grupo posterior, interfluvial, representado pelos Mayoruna (Erikson, 1996), cultiva
barba e bigode positivamente associando-os à ferocidade e a sinal de experiência e
maturidade, relativo à qualidade de xeni que significa velho, gordo e forte.
Apesar dos Kaxinawa se colocarem a meio caminho neste continuum do
significado dos pêlos corporais, sua cosmética não aprecia a presença de pêlos
corporais. Esta estética tem uma semântica social: uma vez que os pêlos corporais
são arrancado pelo cônjuge ou amante, e nunca por si próprio, a presença de pelos
corporais é sinal de solidão e abandono. O leve desconforto que provoca o
arrancar dos pelos é parte da lúdica sexual entre amantes, da mesma forma quando
os amantes se arranham com objetos pontiagudos como o bico de um pássaro ou a
unha do tamanduá. Pele lisa representa um corpo sociável, um corpo tocado por
amantes e pelos parentes próximos. Estes embora não arranquem os pêlos podem
ser vistos limpando a pele de um parente, espremendo picadas de inseto e catando
piolhos.
“A primeira vez que o branco viu um índio ele não tinha roupas e estava brincando
com morcego (...). O branco perguntou para o índio quem ele era e ele, não
entendendo português, respondeu na língua: estou matando [brincando com]
morcego. A gente chama morcego Kaxi. Assim o branco deu o nome: “você e sua
tribo são Kaxinawa (kaxi-nawa)"
Mito Kaxinawa 63
“If we are to understand the ethical mies of a society, it is aesthetics that we must
study.”
Leach, 1954:12.
“The individual mind is immanent but not only in the body. It is immanent also in
pathways and messages outside the body; and there is a larger Mind of which the
individual mind is only a sub-systein.”
Bateson, G., 1977.
1 Em Bateson (1977:168).
160
2 A arte moderna tem sido enfática na defesa de sua independência de outros domínios da
vida social. “A arte pela arte” é um credo tanto de artistas quanto dos que pretendem levar
a arte a sério e reflete, a meu ver, uma dificuldade em pensar a criatividade individual e a
autonomia pessoal juntas com a vida em sociedade. Na tradição pós-iluminista o artista
assume a imagem do indivíduo desprendido, livre das limitações do ‘ senso comum
sociocêntrico. Neste contexto, há uma associação entre coletividade e coerção e o poder
de criatividade é projetado fora da sociedade. Um resultado deste estatuto solitário de
gênio é que o artista moderno perde, através de um uso idiossincrático de signos e
símbolos,’ sua capacidade de comunicação: não há linguagem fora da sociedade. Lévi-
Strauss (Cf. Charbonnier (1961:63-91), Entretienx avec Lévi-Suauxx) faz uma primeira
tentativa de analizar, de um ponto de vista antropológico, a diferença entre arte moderna e
“primitiva”. Para Lévi-Strauss a tradição intelectual ocidental é responsável por três
diferenças entre arte “acadêmica” e arte “primitiva”, diferenças que a arte moderna tenta
superar: 1. A individualização da arte ocindental, especialmente no que diz respeito a sua
clientela, que provoca e reflete uma ruptura entre o indivíduo e a sociedade em nossa
cultura - um problema inexistente para o pensamento indígena sobre sociabilidade; 2. A
arte ocidental seria representativa e possessiva enquanto a arte “primitiva” somente
pretenderia significar; 3. A tendência na arte ocidental de se fechar sobre si mesma:
“peindre après les maítres”. Os impressionistas atacaram o terceiro problema através da
“pesquisa de campo” e os cubistas o segundo, recriando e significando, em vez de
tentando imitar de maneira realista - aprenderam das soluções estruturais oferecidas pela
arte africana-; mas a primeira e crucial diferença, a da arte divorciada do seu público, não
163
A beleza não é considerada como algo externo, existindo em um mundo de
objetos independentemente de quem os perceba, mas como algo que pertence à
relação entre o mundo e uma capacidade de ver, baseada no conhecimento
adquirido. A importância da relação inter-subjetiva de co-presença entre o
perceptor e o percebido, assim como uma compreensão da percepção como um
processo ativo e não passivo, aproxima-se das abordagens fenomenológicas da
percepção, como expressa por Heidegger quando faz a seguinte observação sobre a
percepção auditiva: “only he who already understands can listen” (Kurt Mueller-
Vollmer, Ed., Sections 31-34 from Being and Time (1927):237). Sobre a
percepção visual, declara que é um processo em que a significação tem prioridade
sobre a recepção passiva:
“By showing how all sight is grounded primarily in understanding (the
circumspection of concem is understanding as common sense [Verstãndigkeit]),
we have deprived pure intuition [Anschauen] of its priority, which corresponds
noetically to the priority of the present-at-hand in traditional ontology.”(219).
pôde ser superada e resultou num “academicismo de linguagens”: cada artista inventando
seus próprios estilos e linguagens ininteligíveis.
164
the character of understanding as projection, only because it is what it becomes (or
altematively does not become), can it say to itself ‘Become what you are’, and say
this with understanding.” (218)
ilusão e realidade. Esta última questão nos leva ao problema dos estados de
consciência. Desde que consciência é inconcebível sem uma consideração do
estado do corpo, estados de consciência tomam-se estados do ser.
Desta maneira, a clássica questão nas teorias da percepção sobre a relação
entre ilusão e realidade, é substituída por uma consideração da relação entre
estados diferentes de ser dos humanos assim como dos não-humanos. Esta questão
será tratada em maior detalhe na próxima seção quando abordaremos a tríade kene
(desenho), dami (transformação), yuxin (ser, imagem no espelho). Neste momento,
quero apenas enquadrar esta questão num quadro mais amplo da reflexão teórica.
Encontramos nas reflexões de Schweder (1991) sobre estados da mente e como
estão relacionados, questões próximas a nossa problemática:
“Some argue, for example, that imagination is opposed to perception...
Some argue that perception is a fonn of imagination (for example that visual
perception is a “construction”), while others argue that imagination is a forni of
perception (for ex., that dreaming is the witnessing of a plane of reality). Still
others argue both ways, and dialectically, for imaginative perception and
perceptive imagination.” (Schweder, 1991:37)
5 Este é o caso para os Piaroa (Overing, 1985). A estética Piaroa parece ser uma
afirmação explícita sobre os perigos do poder cultural não controlado. Poder, quando fora
do controle, se torna repulsivo em comportamento e forma. A beleza é associada com o
moralmente corretto e socialmente domesticado. O poderoso nunca é bonito em si; para
tornar-se bonito, precisa ser constantemente limpo no luar pelos cantos do xamã. Este
entendimento de uma estética ligada de perto a uma ética e à vida social, é elaborado na
172
Kaxinawa cultivam uma admiração secreta e um desejo de fusão com seus
emblemas de alteridade e de poder. Assim a mitologia sobre o mais belo dos seres,
o Inka (Inka hawendud), não se caracteriza pela rejeição mas pela projeção no
futuro, em uma escatologia, de uma reunião fmal com esta divindade celeste. O
povo das cobras é igualmente belo e sedutor, como o são os outros yuxibu quando
visitados nas suas casas, todos eles, dos reinos aquáticos, terrestres e celestes, são
keneya, isto é, decorados com o ‘verdadeiro’ desenho. Sua beleza é o reflexo do
seu poder, conhecimento, e saúde, e é expressa no uso da decoração corporal
(especialmente na plumária, na pintura e nos colares). Sua aparência é tida como
colorida e luminosa, uma energia visual que deriva do dua, brilho destes seres.
Hawendua, termo em Kaxinawa para ‘bonito’ poderia ser interpretado
como contendo a palavra dua (brilho), precedido por hawen. O significado da
primeira parte da palavra ha-wen, não é clara, hawen poderia significar ‘seu’ dua,
assim como ‘aquele’ (/?<?) ‘com’ (ire) dua. Poderíamos igualmente empreender a
tentativa de decompor a palavra para bondade, gentileza, lduapa\ que pode
iguahnente estar ligada à dua, mas novamente, estas são questões espinhosas para
antropólogos à procura de sentido. Se, entretanto, estas nês palavras, dua,
hawendua e duapa fossem semanticamente relacionadas, como sua decomposição
poderia sugerir, teríamos encontrado na língua Kaxinawa a confirmação de uma
associação do julgamento ético e estético, notada com frequência em outros
contextos nativos.
Quando falamos da ligação entre estética e ética, é importante estabelecer,
desde o começo, a distinção entre prática social e imaginação social. A prática do
julgamento estético é intrínseca e ligada a problemas ontológicos que ocupam a
reflexão nativa: a natureza do poder como coexistência inevitável dos seus lados
criativos e canibalísticos e a recusa de aceitar o poder económico e coercitivo no
mitologia Piaroa. Assim, seu Deus mais criativo e poderoso Kuemoi, era também o mais
repulsivo de todos.
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seio da comunidade, ligados à mencionada obsessão ameríndia com “a noção
filosófica do significado do ser similar ou diferente...” (Overing, 1986:142).
Assim, no julgamento estético concreto, os Kaxinawa valorizam a
moderação, nitidez e detalhe nos cuidados com o corpo, no comportamento e no
uso de ornamentos e desenhos. A relação da arte com o senso de comunidade e
com a criação de um modo culturalmente próprio de vida é construtiva ao invés de
destrutiva. O estilo artístico não demonstra nenhuma tendência de quebrar com a
tradição pois a criatividade é considerada possível somente dentro e nunca fora da
sua rede específica de sentidos sociais e sensíveis.
Vemos deste modo que as regras que guiam a criação e o juízo artísticos
são a visualização de outro aspecto da imaginação estética que aquela expressa na
descrição dos seres poderosos do outro mundo. Em vez de experimentar com as
manifestações perigosas do excesso, expressam a lógica contrária da moderação e
da medida, prática estética que exprime o funcionamento pragmático de uma
filosofia social que não permite a diferença extravagante e exagerada ao nível da
verdadeira vida incorporada. Deste modo, enquanto sua vida imaginária pode
visitar todas as possibilidades de forma e luxúria visualizadas nas cidades
coloridas dos nawa feitas de pedra, cristal e feno, na vida cotidiana, a expressão
artística ganha valor não através do espetáculo e exuberância, mas através de
pequenos detalhes idiossincráticos.
Acima, no capítulo sobre Perspectivismo, mencionamos o uso da assimetria
em um tecido, marcada pela alternância simétrica entre figura e contra-figura
(expressão mais acurada do que ‘fundo’). Usei o conceito de studium
(Barthes, 1980) para referir o discurso visual dominante da combinação alternada
de um número igual de unidades de desenho e seus opostos complementares,
marcados por cores contrastantes (geralmente preto e branco num tecido, ou
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vermelho e preto na pintura facial)6.
Desta maneira, o conceito de ‘tecido da vida’ concebido enquanto
entretecimento de elementos iguais (seres ocupando a mesma posição no sistema),
cada um pertencendo a uma das duas metades contrastantes (figuras escuras
alternadas com figuras claras), é evocado no tecido que mostra como o
entrelaçamento repetido e sistemático de opostos complementares, opostos na cor
mas iguais na forma, pode formar um padrão infinito. Assim, um tecido reúne o
que é oposto mas ao mesmo tempo essencialmente igual em forma, substância e
qualidade: motivos pretos e brancos são feitos do mesmo algodão, e inu e dua, ou
homem e mulher são ambos feitos dos mesmos fluidos corporais e agênciayuxin.
O tecido desempenha a função de uma pele ou placenta, contendo o espaço
corporal no seu interior, filtrando e protegendo, ao mesmo tempo em que conecta o
que está dentro com o que está fora. E seguindo a lógica do ‘invólucro protegendo
a semente’ (onde ‘semente’ representa a potencialidade de um conteúdo) que as
associações simbólicas de placenta com desenho, e desenho com pele ganham
sentido. A mesma lógica associa pele com as paredes da casa (chamadas kene), e o
teto esférico com a cúpula do cosmos.
Se o conceito de corpo (yuda) pode ser estendido a nukun yuda (nosso
corpo), incluindo parentes próximos que partilham comida e teto (antigamente
grandes malocas podiam hospedar uma aldeia inteira), o fato da casa ter sido
escolhida como metáfora daquilo que contém o corpo segue como consequência
lógica. As aldeias dos yuxibu no cosmos são imaginadas da mesma maneira como
conjuntos fechados de corpos e comunidades: são esféricos e fechados e a entrada
é uma porta. O que liga estes fenômenos é o conceito de desenho (kene), um
desenho que nunca existe como conceito abstrato mas que adere sempre a alguma
coisa ou é incorporado em um suporte. Desenho é aquilo que separa o que é dentro
Na arte plumária, por outro lado, assimetria parece ser mais importante que
simetria, pelo menos com relação à colocação e tamanho das penas, apesar da
necessidade de se obter como resultado final um ‘buquê’ balanceado e
harmonioso. As faixas de bambu que servem de suporte ao equilíbrio móvel das
penas, por sua vez, são caracterizadas por uma disposição do desenho no suporte
que é menos dinâmico do que a encontrada nas pinturas faciais e nos tecidos, onde
o centro de gravidade do desenho nunca é no meio do campo. A descentralização
do desenho na tecelagem e na pintura corporal aumenta a impressão da
continuação do desenho fora das bordas do campo decorado como se o desenho
estivesse cortado ao meio10, enquanto o desenho na coroa de bambu é disposto em
Lagrou(1991).
11 Veja ilustração em anexo.
12 Atualmente, a produção de adornos plumàrios nas aldeias que visitei é rara e a qualidade
da produção não se compara com os especimens encontrados nas coleções feitas por
Schultz e Chiara em 1950-51 (Museu Paulista) e Kensinger nos anos cinquenta e sessenta.
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demonstrando domínio de técnica e delicadeza na execução e escolha do material.
Especialmente o trabalho do filho é “elogiado pela economia de penas e elegância
no desenho”( 1975:96). Seu comportamento é discreto e sua ambição de suceder o
pai não é abertamente expresso. O produtor do cocar dominou a estética da arte
plumária e da etiqueta social.
O caso de Muiku era diferente. Muiku era o rival da liderança da aldeia e
parecia não guardar suas ambições para si. Usou para o Kaixanawa penas da
harpia, cujo uso era apropriado unicamente no contexto do Txidin e do Nixpupima,
e porque não possuía penas suficientes para completar um cocar (outras pessoas
evidentemente não colaborariam com ele neste contexto), teve que misturá-las com
as penas de jacamim. Esta mistura e o uso de penas demasiadamente prestigiosas
no contexto errado foram esteticamente desaprovados pelos parentes. Outro cocar
feito pel^ mesma pessoa, foi iguahnente desaprovado em termos de beleza. Apesar
de demonstrar boa técnica, Muiku exagerou, desta vez no uso de penas amarelas e
por esta razão seu trabalho foi considerado “excessivo”.
Os exemplos dados por Rabinau ilustram bem a conexão entre regras
sociais e gosto estético. O significado da estética da arte plumária é, entretanto,
mais complexa. Penas têm yuxin (Kensinger, 1991c) e precisam, por isso, ser
usadas na combinação e contexto apropriados, e pela pessoa certa. Não é (como
sugere Rabineau) a liderança da aldeia que usa as penas da harpia como signo de
prestígio e autoridade política, mas o líder do canto e seu aprendiz (um dos quais
pode mas não, necessariamente, é a liderança da aldeia). O uso desta roupa se dá
em contexto ritualmente controlado. As penas da harpia formam parte do traje do
representante ritual do Inka no Nixpupima e no Txidin. Pelo fato do dono das
penas, o Inka na sua manifestação da harpia, ser chamado para o terreiro da aldeia
e assim ser considerado presente durante as festividades, a pessoa que usa o traje
deste personagem necessita saber os cantos certos que acompanham a
performance, senão se expõe a um perigo da ordem da ‘yuxinidade ’.
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Não é a liderança da aldeia, nem o xamã, que se especializa na arte de lidar
com as penas das aves, dos pássaros e de seu uso, mas o líder do canto, por causa
da óbvia ligação entre os pássaros e sua especialidade: a arte de memorizar e
executar os cantos rituais, uma arte que se considera como tendo sido aprendida
com os pássaros. Estes cantos são ligados ao Inka, enquanto outros cantos (como
os yuan entoados durante as sessões com ayahuasca) são ligados a Yube e à
visualização ritual das realidades ligadas aos jwx/w tyuxibu.
Percebemos, desta maneira, que as regras que guiam a combinação de cores
e de materiais são mais complexas do que as regras que visam somente à regulação
da demonstração de prestígio social. Através da categoria dau (encanto, remédio,
veneno) que se aplica à roupa assim como às decorações usadas pelo líder do
canto, fica claro que o uso de certos emblemas carregados de prestígio social têm
consequências que implicam em compromisso ritual e não somente em posição
social.
Objetos e palavras usados para o canto são meios de comunicação com o
universo social extra-humano com o qual se quer estabelecer uma conexão.
Precisa-se usai- as penas apropriadas em função do seu dau que aumenta o dua
(brilho) do usuário. A pessoa, entretanto, usa unicamente as roupas que está
preparada para usar. O poder é perigoso para quem não está preparado para a
tarefa e precisa por esta razão ser mantido tão invisível quanto possível. Do
contrário, a pessoa se expõe à competição, inveja e vingança. Esta regra vale para
a ostentação de bens materiais assim como para o conhecimento ritual. O poder
mais exposto de todos, entretanto, é o do xamã, e esta é a razão porque pertence ao
oculto. E o poder mais ambivalente e volátil conhecido pelos Kaxinawa. Aqueles
que não querem perder ou enfraquecer seu poder, precisam ser fortes o suficiente
para resistir à tentação de partilhar o segredo do seu pacto com Yube.
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b. Desenho (kene), figura (dami) e yuxin
“There are two ways of not seeing what there is to see. One is where you locate
the action to its proper activity space, but you are not experienced enough, or not
(as yet) conceptually equipped, to catch its richness. You don’t see enough of it.
The other, more dramatic, is where you allocate it to the wrong activity space. You
are blind to it.”
Jakob Mel<f>e, 1988:91.
“The way the world is for us is never simply the way the world is... It is our
passions - and our emotions in particular - that set up this world, constitute the
framework within which our knowledge of the facts has some meaning, some
“relevance” to us. This is why I insist that the emotions are constitutive
judgements; they do not fmd but “set up” our surreality. They do not apply but
supply the framework of values which give our experience some meaning.”
(Solomon, 1993:135)
18 Veja Gow(1990) para uma abordagem semelhante referindo-se, também, à escrita ente
os Piro.
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conhecimento em objetos fora dos seus corpos, fez com que seus corpos pararam
de conhecer. Os livros são contentores de conhecimento, una\ as fita cassete são
‘captadores da voz’, huibiti\ e as câmeras acumulam imagens perfeitas de corpos,
ou seja, yuxin, e são por esta razão chamadas de ‘captadores de yuxin’
(yuxinbití)19. “Mas para aprender ‘de verdade’-”, me disse Augusto em uma das
últimas tardes em que trabalhamos juntos; em vez de prosseguir sua frase, me
pegou no braço e começou a cantar, dançando.