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1998 ElsjeMariaLagrou Pt1

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Caminhos, Duplos e Corpos

Uma abordagem perspectivista da identidade e


alteridade entre os Kaxinawa

Elsje Maria Lagrou

Tese apresentada ao Departamento de Antropologia


da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo, para obtenção do grau
de doutora em Antropologia Social.
Orientadora: Lux Vidal

São Paulo
1998
2

Para Marco Antonio


3
Abstract

This thesis explores the interface of social and cosmogonic thought in an


indigenous society of the Southwestem Brazilian Amazon. The First part sets out the
Cashinahua ontological framework, describes key concepts and places the Cashinahua in
the broader context of an Amerindian worldview where Perspectivism and a special
philosophical interest in the questions of Alterity and Identity are central issues. These
questions are dealt with by means of a complex dualistic symbolisin that pervades the
fields of ethnicity, gender, social life and ritual. The second pai! of the thesis is divided
into two chapters (chapter 111 and IV). Chapter three sets out the mythological framework
in which the key concepts previously described gain a nanative fonn, while chapter IV
describes the Nixpu pima initiation ritual of girls and boys and shows how this ritual
represents an important moment of synthesis and actualisation of the Cashinahua
worldview. The initiation ritual illustrates how the Cashinahua basic ontological
distinctions between the embodied and rooted self as opposed to free-floating images and
spirits are expressed in a graphic way and guide ritual action. Throughout the thesis
references are also made to the intimate association and mutual illumination between, on
the one hand, the Cashinahua worldview, social life and ontology, and, on the other,
eschatology and indigenous conceptions of death.
4
ÍNDICE
Introdução 9
Parte I: Percepção e Cognição: a referência Ontológica 20
1. Semelhança e diferença à luz do perspectivismo 20
1.1. Identidade e Alteridade 20
1.2. Perspectivismo 31
2. Conceitos-Chave 49
2.1. Yuxin/Yuxibu (Força vital/Ser Poderoso) 49
a. Emergência do yuxin 50
b. yuxin inofensivos 53
c. Animais que se vingam 54
d. Doenças enquanto processo de tornar-se outro 56
e. Animais Yuxin 58
f. A cobra 61
g. Yuxibu, seres descorporificados do outro mundo 64
h. Vivendo com um ser yuxin 67
i. Diferentes tipos de yuxibu 69
j. O código culinário 73

2.2. Yuxin/Yuda (corpo e "alma”) 77


a. Gênero no processo de modelagem de um novo corpo 78
b. O processo de concepção 81
c. Crianças misturadas 84
d. Crianças filhos de yuxin e gêmeos 85
e. Parto e primeiros cuidados 89
f. Conhecimento dos sentidos 94
g. Emoções como conhecimento incorporado 97
h. Yuxin dos humanos 99
i. O yuxin da urina e do excremento e seus destinos 101
j. Os especialistas em medicamentos amargos e doces 105
k. O yuxin do olho e a sombra 113
I. A morte, o destino dos yuxin e da carne 116

2.3. Dualismo Simbólico: Yube/lnka, dua/inu 120


a. Seções e metades entre os pano 120
b. Yube, o ancestral//nka, o inescapável afim 130

2.4. Nawa/Huni (estrangeiro/humano) 149

2.5. Desenho, Imagem, Yuxin e suas relações com o corpo humano 159
a. Uma etnografia do gosto 159
b. Desenho (kene), figura (dami), e yuxin 181
5
Parte II: Expressão e Agência: Mito e Ritual 209

3. A criação do mundo: uma equivalência entre cosmogonia e ontogonia 209


3.1. A origem da morte e a separação entre o céu e a terra 210
3.2. A origem do tempo e o roubo do céu 226
3.3. O dilúvio 240
3.4. A criação da humanidade por Nete 250

4. O rito de passagem Nixpu Pima 263

4.1. Batismo e o despertar da sexualidade 263

4.2. Dentes e contas 272

4.3. Milho e Nixpu 281

4.4. A sequência ritual 287


a. Cantos de abertura 287
b. Cantos de trabalho 299
c. Kenan, o banco de iniciação 307
d. A preparação da comida 322
e. Remodelagem ritual dos iniciandos 327

4.5. Significado e interpretação do ritual 340

Conclusão 344
6

Agradecimentos

Uma tese de doutorado leva muito tempo para ser produzida, requer freqiientes
deslocamentos, envolve muitas pessoas e Instituições.
Recebi apoio financeiro das seguintes instituições: no Brasil: CNPq, CAPES,
FAPESP; na Bélgica: Vlaams Ministerie voor Kultuur en Wetenschappen; No Reino
Unido, da University of St. Andrews e da Sutasoma Trust.
Agradeço especialmente a Profa. Lux Vidal pela generosidade intelectual, iniciada
desde os tempos do mestrado, orientação no doutorado, constante atenção e entusiasmo e
críticas estimulantes.
O curso do Prof. Roberto Cardoso de Oliveira sobre Hermenêutica e Antropologia
me deu oportunidade para esboçar alguns dos argumentos teóricos da tese. Os seminários
da Profa. Manuela Carneiro da Cunha me proporcionaram conhecer vários trabalhos em
andamento sobre a relação entre história e antropologia, assim como o de Jean-Pierre
Vemant. O curso da Profa. Joanna Overing me inspirou e foi a causa da minha passagem
pela Inglaterra.
Em São Paulo, agradeço a calorosa recepção e a amizade de Paula Monteiro,
Miguel Chaves, Sílvia Caiuby Novaes e Ornar Tomas. Colegas que colaboraram com
discussões sobre o trabalho no Laboratório de Antropologia Visual e no Núcleo de
História Indígena: Edilene Coffaci, Martha Amoroso, Oscar Calavia, Flora e Aloísio
Cabalzar, Luís Donisete, Denise Fajardo, Andreias e Paula Morgado.
Em St. Andrews encontrei um ambiente estimulante para a escrita da tese.
Agradeço Joanna Overing pelo convite, hospitalidade, amizade e estímulo intelectual. A
Roy Dilley e especialmente Nigel Rapport pelas discussões em seminários no
Departamento de Antropologia de St. Andrews. Aos amigos na Escócia: Napier Russel,
Elvira Belaunde, Juliet 0’K.eeffe, Alan Passes, Karen Jacob, Gisela Pauli, Carlos
Londono, Barry Reeves, Guilherme Werlang, Steven Kid, Lindsy, Anoushka, Nick
Barker, Rebecca, Gonzalo.
Cecília McCallum, com generosidade e estímulo, acompanhou minha pesquisa
com os Kaxinawa desde o começo, em Londres, em Florianópolis, em St. Andrews.
7
Agradeço Kensinger pelas sugestões dadas durante conversas em St. Andrews e pelo
estímulo e confiança ao me ceder suas notas de campo sobre o ritual Nixpupima e suas
publicações.
Outras pessoas contribuíram com discussões e idéias ao trabalho: Nadia Farage,
Peter Gow, Steven Hugh-Jones, Eliane Camargo, Philippe Erikson, Sven-Erik Isacsson,
Robert Crépeau, Angela Hobart, Bruno Illius, Patrick Deshayes, Lucia van Velthem,
Denise Amold e Juan De Dios, Regina Muller, Benny Shanon, Gustaaf Verswijver.
Bonnie e Jean-Pierre Chaumeil me hospedaram e me guiaram em Paris.
Agradeço meus colegas do Departamento de Antropologia da Universidade
Federal de Santa Catarina pelo tempo e liberdade para terminar a tese. Sua confiança e
investimento foram decisivos. Agradeço especiahnente Jean Langdon, Míriam Grossi,
Ilka Boaventura Leite e Rafael Bastos, assim como Dennis Wemer, Sílvio Coelho dos
Santos, Luís Eduardo Luna, Alberto Groismann, Oscar Calavia, e Maria Amélia Dickie.
Jean Langdon, amiga de muitos anos, me colocou no caminho da Antropologia e
ajudou de muitas maneiras. Sonia Maluf, Gloria Valle, Mareia Rego e Carmem Rial
colegas e amigas que continuaram próximas mesmo durante os anos de viagem.
Durante a pesquisa de campo, muitas pessoas me ajudaram. Em Rio Branco tenho
dívida para com os amigos Luís e Uta Carvalho, que me hospedaram em sua casa e Luís
pelas estimulantes discussões. Aos membros da Comissão Pró-Índio, pela boa recepção,
ajuda e discussões: Terri Aquino, Paulo Alencar, Agostinho Manduca Kaxinawá, Osair
Siã Kaxinawa, Nietta Lindenberg Monte, Malu, Renato, Marcello Iglesias, Dêdê,
Verinha, Joaquim Yawanawa. Em Sena Madureira, Padre Paulino me hospedou e me
contou sua apaixonante história de vida; em Manuel Urbano recebi ajuda de Antônia, das
Irmãs e de Roberto, da Sucam.
Nas aldeias de Moema, Nova Aliança e Cana Recreio, tive muitos anfitriões. Os
Kaxinawa tem a hospitalidade e a gentileza como regra e todos me receberam nas suas
casas. Faço assim menção especial somente daqueles que me hospedaram e que foram
meus interlocutores preferidos. Em Nova Aliança, Manuel Sampaio e Maria das Dores
que me hospedaram; Antônio Pinheiro, Milton Maia, Sebastiana Pinheiro, Maria
Sampaio, Rosa e Marciano, Marlene e Arlindo, Abel, José Paulo, Graça, Rubin e Filó,
8
pelo carinho. Em Moema fui ‘adotada’ por Augusto Feitosa e sua esposa Alcina, pais
classificatórios. Na sua família encontrei meus amigos mais próximos, Laura, Maria
Antônia, Denis e Edivaldo. Ainda de Moema, me lembro com afeto de Francisco, Delicia,
Adão e Maria Elena.
Meus pais, Marie-Anne De Wulf e Leo Lagrou, me deram o gosto pela viagem, e
me apoiaram em toda esta jornada. Por seu afetuoso apoio logístico no momento decisivo
da escritura deste trabalho. Meus irmãos (Anneleen, Pieter, David) e amigos próximos na
Bélgica (especialmente Karen Phalet, Kristoffel Dumont, Inge De Bruyne e Veerle
Fraeters) me mantinham perto deles por meio de suas cartas. Especialmente minha irmã
gêmea, Katrien, que me manteve sempre presente entre os amigos com suas estórias
contadas com a vivacidade que lhe é peculiar.
Marco Antonio Gonçalves pelo constante apoio emocional e intelectual. Nosso
encontro em St. Andrews mudou nossas vidas. Sua ajuda tornou possível a realização
deste trabalho dentro dos prazos estabelecidos.
9

Introdução

Este trabalho, é uma descrição da cosmovisão Kaxinawa, grupo de língua


pano, que habita o Estado do Acre, no Brasil e o leste peruano.
A análise se situa no contexto do perspectivismo ameríndio: os humanos
são os animais dos animais, o eu é o outro do outro, e as relações de predador-
presa, sedutor-seduzido, ou comedor-comido são transitivas e intercambiáveis.
Neste contexto a análise é empreendida sobre um dualismo dinâmico em que a
alteridade é produzida pela semelhança e a semelhança pela alteridade, em que
cada par de opostos (metade í/t/íz/metade inu, cobra-água/Z^óz-fogo) participa do
seu oposto, e a forma reside na interseção/mistura relativamente fixa e estável de
opostos complementares (osso/pele, corpo/alma, masculino/feminino,
parente/afim, etc.). Neste mundo, o coipo, a identidade, e o problema da alteridade
não são questões categoriais ou classificatórias mas questões relacionais.
O problema da identidade e alteridade reside igualmente na relação
dinâmica e temporal entre forma fixa e não-fixa. Ser é devir e a existência humana
depende do controle das fronteiras entre fenômenos e estados de ser para produzir
o equilíbrio entre fixidez e fluidez, estabilidade e transformação. Os poderes
fluidos, a fertilidade, e as qualidades opostas dos agentes ‘sobrehuinanos’ devem
ser controlados e fixados para produzir seres humanos. Humanos, entretanto,
somente conseguem se nutrir destes poderes e produzir uma mistura criativa ao
tomar as fronteiras permeáveis. Excesso de fixidez é estagnação estéril, enquanto
sua falta é morte prematura. Ser humano significa engajar-se no ciclo sem fim da
troca de elementos vitais, ciclo que implica em diferença e é realizado na tema, a
meio caminho entre o mundo aquático enquanto começo e o céu como devir. Os
deuses alcançam o epítome da fixidez na sua dança circular da eternidade, mas
predam ‘almas’ humanas e são inimigos avarentos que precisam ser forçados a
compartilharem seus poderes por meio da guerra ou do roubo.
Os humanos devem cuidar para que as fronteiras entre seres e fenômenos
do mundo não se diluam. Ao mesmo tempo, entretanto, desempenham diferentes
10
mimesis e transformações; pois, visto que o mundo é feito da mistura das
diferenças, a separação implicaria no fim de todo movimento e de toda vida.
Assim, os rituais Kaxinawa estão obcecados com a fixação das formas, com o
controle da fluidez e fertilidade dos poderes ‘sobrehumanos’ e com o tomar
pesados e sólidos os corpos. Ao mesmo tempo, é no ritual que a pessoa se toma
mais consciente, através do espaço cósmico, de todos os possíveis outros mundos e
corpos a serem vividos, e é no ritual que a mudança de posições (entre os gêneros,
por exemplo) ocorre com mais freqiiência.
As técnicas femininas de desenho e cozinha são, similannente, técnicas de
fixação; em corpos humanos saudáveis são aplicados desenhos que os delineiam e
ordenam (assim como as paredes das casas, o enquadramento do conhecimento, ou
os processos que circunscrevem relações interpessoais) enquanto a comensalidade
produz a comunhão dos corpos.
Em última análise, os Kaxinawa perdem finalmente a batalha da fixidez,
visto que os corpos humanos continuam seu eterno ciclo de troca de matéria e
força vital com o mundo envolvente, vivendo deste modo todos os estados
possíveis do ser.
As idéias Kaxinawa sobre identidade e alteridade e sobre a relação entre
forma fixa e não-fixa na construção da pessoa e da sociedade, são analisadas sob
três ângulos: conceituai, mítico e ritual. O aspecto conceituai é apresentado na
primeira parte da tese. Em dois capítulos delineio a lógica da cognição e percepção
Kaxinawa: um capítulo aborda o problema da similaridade e diferença no
pensamento dualista Kaxinawa de um ponto de vista perspectivista e outro é
dedicado aos conceitos-chaves que orientam o pensamento Kaxinawa.
O primeiro par de conceitos-chaves apresentado é yuxin (força vital, alma,
espírito) e sua relação com yuxibu (ser poderoso). Yuxin e yuxibu são os mais
difíceis dos conceitos Kaxinawa em função do caráter englobante do conceito
yuxin e sua extrema proximidade do significado e uso do conceito yuxibu. Yuxin é
aquilo que dá forma à matéria, e pode ser percebido como imagem, movimento e
energia. Todo fenômeno no mundo tem seu lado yuxin. Mas nem todos os seres
11
podem ser chamados de yuxin. Para designar um ser enquanto yuxin, é necessário
um desprendimento à fixidez de uma forma corporal de tal maneira que possibilite
o abandono de um corpo sem, entretanto, a perda de seu poder de agência
intencional. Um yuxibu difere de um yuxin em grau, na variação de poder. Um
yuxibu é um ser de outro mundo com grande capacidade transfonnativa. Neste
capítulo, a complexa esfera da “yuxinidade” foi subdividida em vários tópicos,
cada qual lidando com um aspecto específico da manifestação desta categoria
central, mas não menos fluida, do pensamento Kaxinawa.
O segundo par conceituai trabalha a díade yuxin/yuda. Aqui yuxin (alma
humana) é examinado em sua relação com o corpo humano, yuda. O conceito de
corpo é, também, uma categoria predominante e central no pensamento Kaxinawa.
O terma yuda refere-se ao corpo individual de uma pessoa, assim como a uma
coletividade de pessoas que vivem juntas. Quando uma comunidade é chamada de
‘nosso corpo’, algumas concepções importantes sobre o corpo e sobre a vida em
comunidade são expressas. ‘Nosso corpo’ expressa a idéia de substância
partilhada. Pessoas que vivem juntas, partilhando comida, fluidos corporais e
outras influências físicas e psíquicas, tomam-se parecidas. Assim, o corpo de uma
pessoa é o produto da intervenção ativa de ‘outros corpos’ próximos.
A segunda concepção expressa pelo uso da palavra yuda referindo-se tanto
à pessoa individual quanto à comunidade é de que a identidade do indivíduo se
constitui pelo ‘relacionar-se’, isto é, a pessoa não pode ser pensada fora de uma
relação com outros e com o mundo envolvente. O “eu” toma-se pessoa porque tem
um corpo que se relaciona com outros. Corpo que veio a existir através da ação de
outros corpos.
Sem a fusão em um corpo pensante, aquilo que age e pensa no e através do
corpo não existiria ou seria outra coisa. Deste modo, a dissolução do corpo dá
origem a diversos seres yuxin, definidos pela falta de forma corporal fixa, ausência
de relacionamento interpessoal e de morada fixa.
A terceira seção do capítulo sobre conceitos-chaves aborda o dualismo
simbólico Kaxinawa. A cosmovisão Kaxinawa é marcada por um dualismo que
12
engloba todos os fenômenos e seres do universo. Este dualismo, entretanto, serve
menos para classificar fenômenos no mundo circundante em categorias separadas,
que para conceitualizar a constante interdependência de pares complementares que
são, de fato, mais caracterizados pelo que partilham do que pelo que os separa e
distingue. Assim, todos os fenômenos no mundo são o resultado da junção de
princípios opostos e nenhum ser ou objeto pode ser pensado enquanto existindo
em estado ‘puro’, e não-misto. A ênfase na necessidade da mistura se estende por
todas as esferas da atividade Kaxinawa, desde as idéias de concepção ao consumo
cotidiano dos alimentos, em que uma refeição é considerada própria quando carne
é misturada a vegetais.
'JL As duas forças primordiais que criam o mundo e o cosmos através da sua
constante junção são representadas respectivamente pelo dono do ‘mundo
aquático’, chamado Yube, e o dono do mundo celeste, chamado Inka. As
manifestações do dono do mundo aquático são a lua e a cobra cósmica, enquanto
as manifestações do dono do mundo celeste, proprietário do princípio da luz, é o
Deus Canibal, o próprio Inka. Cada metade Kaxinawa é associada a um destes
princípios cosmogônicos. A metade do brilho (dua) é associada a Yube, enquanto a
metade da onça (jnu) é associada ao Inka. O desdobramento deste dualismo na sua
relação com as metades e com a prática ritual é o conteúdo desta terceira seção de
conceitos-chaves que orienta a referência conceituai Kaxinawa.
O quarto par de conceitos apresentados é o de nawa, que pode ser
aproximadamente traduzido como estrangeiro, e huni, que significa ser humano.
Este par de termos contrastantes expressa a complexidade do pensamento dualista
Kaxinawa. O discurso Kaxinawa sobre identidade não somente inclui a
possibilidade sempre latente do eu tomar-se outro, mas também a possibilidade do
outro tomar-se idêntico ao eu. O termo que indica alteridade não é usado para, de
forma inequívoca, definir o eu como diferente do outro, mas para sugerir a
permanente possibilidade de uma sobreposição. A noção Kaxinawa de pessoa é
essenciahnente processual. O problema posto por esta abordagem filosófica de
identidade e alteridade não é o de como delinear claramente as fronteiras entre eu
13
e outro, ou entre humano e inimigo, mas de como conceber diferença e igualdade
enquanto divisão temporária a ser superada por meio de uma ambiguidade
conceituai e especulação escatológica. O problema da alteridade para os Kaxinawa
é por esta razão relacional em vez de classifícatório.
O uso dos termos para estrangeiro (ora) e ser humano (huni) ilustra este
ponto. A maior parte dos grupos pano vizinhos se autodenominam por uma
variante na sua língua do termo Kaxinawa para ‘ser humano de verdade’ (huni
kuiri), não atribuindo, deste modo, qualquer qualidade diferenciadora a este
etnônimo. Um ser humano ‘de verdade’ é alguém, que, do ponto de vista do
falante, vive de maneira reconhecidamente humana e social. Aqueles percebidos
como ‘outros’ são chamados de estrangeiros ou inimigos, nawa. Nawa, no
obstante, também significa gente de um certo tipo, termo usado para diferenciar e
nomear os vizinhos. Alguns grupos chegam mesmo a designar suas próprias seções
de nomeadores, grupos intentos à própria comunidade, pelo tenno nawa, gente,
precedido por um qualificador.
Para definir a esfera do ‘eu’, não é necessária a categoria ‘outro’. Visto que
‘outro’ pode vir a significar a esfera do eu, esta esfera tem outros meios de
distinguir o grau de aproximação de certa situação, pessoa ou objeto do pólo da
esfera de auto-referência. Os tennos usados para desta maneira qualificar seres e
situações são kuin (verdadeiramente ‘eu’), kuinman (não eu), kayahi (não outro) e
bemakia (totalmente outro). O uso destes tennos pennite o locutor especificar se
certo objeto ou pessoa pode ser considerado próximo do pólo do ‘eu’ sem que
precise com este coincidir1.
Os últimos conceitos-chaves a serem examinados são desenho (Zrene),
imagem (dami\ e, novamente, ‘espírito’ (yuxin). Estes conceitos são de grande
importância para o quadro de referência conceituai, visto que nos pennitem
delinear mais nitidamente a especificidade da fenomenologia Kaxinawa. Todas as

1 O uso destes termos qualificadores tem sido objeto de estudo de Kensinger (1975), que
identificou o sistema, e de Deshayes e Keifenheim, que trabalharam os mesmos termos na
sua tese de doutoramento (1982), publicado em 1994.
14
coisas e seres percebidos são ‘fenômenos’ para os Kaxinawa. Isto significa que
todas as percepções têm algum nível de existência. Não há ilusões, somente níveis
diferentes de ser, em cujas bases valores diferenciados são atribuídos às coisas e
aos seres percebidos. A distinção mais importante feita entre níveis de existência é
a que distingue a forma fixa da forma não-fixa, distinção que corresponde à
diferença entre existência incorporada e desincorporada.
Neste quadro de referência, o papel do desenho estilizado e padronizado
(kene) não é o de expressar a imagem do ser através da semelhança formal, mas de
fixar a fluidez das formas e das imagens que habitam o mundo desincorporado dos
yuxin. O desenho padronizado é aquilo que adere aos corpos, o que fixa sua forma.
A execução desta arte é privilégio feminino. A imagem figurativa, ou
tridimensional chamada dami, por outro lado, tem uma relação diferente com o
objeto ao qual se refere. Sua relação é de transformação e mascaramento. Dami
significa a réplica imperfeita de um ser ou de uma imagem, uma transformação
deste, ou uma produção em processo de fabricação, ainda não finalizada.
Dami é algo a caminho do tomar-se; yuxin é a imagem em si, como
imagem no espelho; kene, sistema estilizado de desenho, inscrição estruturante da
forma que toma possível a percepção. O desenho geométrico estruturado pode por
esta razão ser entendido enquanto guia da percepção e cognição Kaxinawa, guia
que toma possível a transição do mundo das imagens flutuantes dos yuxin ao
mundo fixado dos corpos. Através das distinções entre estes três termos que
designam ‘imagem’ chegamos, portanto, à síntese da fenomenologia Kaxinawa.
A segunda parte da tese, ‘Expressão e Agência’, apresenta as idéias
Kaxinawa com relação à identidade e alteridade, noção de pessoa incorporada e
socialidade. O capítulo sobre a mitologia restringe-se aos episódios que tratam de
temas relativos à ontogênese: a origem do mundo, do tempo, da morte e da
humanidade. Cada um destes mitos tem sua contrapartida em outros mitos
relacionados às distinções básicas referidas no mito de origem. Assim, o tema da
alternância entre dia e noite, introduzido pelos seres primordiais, está ligado a
mitos que lidam com o súbito colapso deste princípio ordenador. O escurecimento
15
inesperado do dia põe o viajante em contato com o domínio dos seres imateriais,
agentes na escuridão. Deste modo podemos explorar como os princípios
organizadores da cosmovisão Kaxinawa são expressos na forma narrativa da
reflexão mítica, e como estes mitos são revividos e reinterpretados.
Atenção especial é dada ao mito da re-criação da humanidade após o grande
dilúvio. Este mito é importante por suas correspondências com o rito de iniciação.
O mito é a estória da jornada da mãe primordial Nele e seus quatro filhos, os
primeiros seres verdadeiramente humanos (huni kuin}. Na sua viagem, a mãe
ensina aos filhos os nomes das plantas cultivadas. No final da jornada, observam o
Nixpupima, enegrecimento ritual dos dentes, rito realizado pelo irmão de Nele. O
enegrecimento dos dentes é o evento crucial da sequência de intervenções sobre o
corpo dos iniciandos. A seqiiência inteira do rito de passagem é entendida como
uma preparação para o enegrecimento dos dentes, uma seqiiência que se sobrepõe
em vários pontos à progressão do mito de origem da humanidade.
O quarto capítulo descreve o rito de passagem Nixpupima. O rito elabora
idéias fundamentais da ontologia Kaxinawa. O rito de passagem de meninas e
meninos é uma síntese dos princípios básicos que estruturam a visão do mundo
Kaxinawa. No processo de transformação ritual da identidade do iniciando, cada
mudança produzida no status da criança ou na sua ‘mente’, é operada através de
uma intervenção direta ou metafórica no corpo da criança.
Este procedimento ritual revela que para o pensamento Kaxinawa a pessoa
ou o ser ‘verdadeiramente’ humano pode unicamente ser concebido e produzido
na forma de um ‘eu’ incorporado. É o coipo que pensa2.

* * *

Os Kaxinawa são um grupo de língua pano de aproximadamente 2.500

2 O primeiro trabalho a chamar a atenção para esta ideologia do conhecimento


incorporado entre os Kaxinawa foi o de Kensinger (1995). Esta idéia foi igualmente
tratada em McCalIum (1996a).
16
pessoas que habitam a fronteira brasileira-peruana na amazônia ocidental. As
aldeias Kaxinawa no Peru se encontram nos rios Purus e Curanja. As aldeias no
Brasil (Acre) se espalham pelos rios Taraucá, Jordão, Breu, Muru, Envira,
Humaitá e Purus.
Realizei pesquisa de campo nas aldeias Cana Recreio, Moema e Nova
Aliança, no rio Purus, próximo à fronteira com o Peru. O contingente populacional
destas aldeias era basicamente composto por Kaxinawa provenientes do Peru, que,
no início dos anos setenta, desceram o Purus para viverem na recém demarcada
Área indígena do Alto Purus, do lado brasileiro. Os Kaxinawa peruanos e
brasileiros tinham estado separados por um período de cinquenta anos. Esta
separação ocorreu no começo deste século, quando um grupo que havia sido
concentrado num seringai no rio Envira se mudou para as cabeceiras do rio Purus
no Peru após uma rebelião contra um seringalista (McCallum, 1989a:57-58;
Aquino, 1977). Os grupos oriundos do Peru ligaram-se por casamento aos
Kaxinawa brasileiros, porém observa-se até os dias de hoje diferenças no estilo de
vida entre os dois grupos.
Esta reserva é igualmente habitada por grupos Kaxinawa que migraram do
rio Envira, onde estavam engajados no trabalho da seringa. A maioria destes
Kaxinawa do Envira se estabeleceram na aldeia de Fronteira e em vários núcleos
(centros, colocações) próximos. Durante estas duas décadas o movimento
migratório não cessou, outros Kaxinawa provenientes do Peru, do Envira e do
Jordão foram se estabelecer em aldeias no Purus.
Na Área Indígena do Alto Purus, os Kaxinawa também coabitam com seus
vizinhos tradicionais, os Culina, para os quais esta reserva foi originalmente
criada, assim como com um reduzido grupo Yaminawa, recém chegados,
provenientes de outras áreas indígenas.
Vivi entre os Kaxinawa durante um período de um ano e meio, dividido em
quatro estadias. Os primeiros cinco meses de pesquisa de campo (março 1989-
agosto 1989) foram passados nas aldeias de Cana Recreio e Moema, e resultaram
em minha tese de mestrado defendida na UFSC (Lagrou, 1991). O segundo
17
período de pesquisa de campo durou três meses (abril 1991-julho 1991). A terceira
estadia foi de quatro meses (outubro 1995-fevereiro 1996). Durante este período
que assisti o rito de passagem, Nixpupima. Após de três meses de transcrição e
elaboração do material coletado no Nixpupima, retornei ao campo para outro
período de quatro meses (maio 1996-setembro 1996). Destes últimos quatro meses,
dois foram passados nas aldeias de Moema e Nova Aliança, e dois foram passados
na cidade de Rio Branco quando acompanhei Augusto (líder de canto com quem
estava trabalhando nas transcrições dos cantos rituais) vítima de um derrame
cerebral do qual felizmente se recuperou. Enquanto assistia Augusto e seus
parentes próximos que o acompanharam para a cidade, continuei o trabalho na
tradução e interpretação dos dados coletados no campo.

* * *

Os Kaxinawa sào os pano mais conhecidos e sobre eles existe copioso


material etnológico e histórico'. Os primeiros escritos sobre os Kaxinawa
apareceram, no início do século, da pena do padre francês Constantin Tastevin
(1919, 1920, 1925a, 1925b, 1925c, 1926; Rivet & Tastevin, 1921) que descreve os
costumes dos Kaxinawa que encontra durante suas viagens pela bacia do Juruá-
Purus. Ainda durante as primeiras duas décadas deste século, aparece uma coleção
extremamente valiosa de mitos Kaxinawa, uma transcrição e tradução interlinear,
produzida por Capistrano de Abreu (1941, 1969).
Kenneth Kensinger (vide bibliografia) foi o primeiro antropólogo a viver
com os Kaxinawa, no Peru. Kensinger produziu uma vasta coleção de trabalhos e
artigos sobre virtualmente todos os tópicos que dizem respeito à vida e sociedade

3
Gonçalves (1991) compilou uma bibliografia anotada de fontes históricas e
etnológicas sobre o Acre. Sobre o grupo linguístico pano, e abrangendo todas as áreas onde
este se encontra, foi produzido outra bibliografia anotada de estudos linguísticos e
antropológicos por Erikson, lllius, Kensinger e Aguiar (1994). Esta bibliografia continua sendo
completada na medida em que surgem novos trabalhos.
18
Kaxinawa. A geração de antropólogos que sucedeu a Kensinger deu continuidade
às questões tratadas em seus trabalhos.
Igualmente no Peru, os Kaxinawa foram estudados por Keifenheim e
Deshayes (1982, 1990, 1992, 1994). Ambos autores privilegiaram os temas de
identidade e alteridade e sistemas classificatórios. Mareei D’Ans (1973, 1978,
1983) estudou o sistema de nominação e classificação das cores e elaborou um
compêndio sobre mitologia.
No Brasil os Kaxinawa foram estudados por Aquino (1977), Iglesias (1993)
e Lindenberg (1996), no rio Jordão, que centraram suas pesquisas nos temas de
relações interétnicas e educação.
Os Kaxinawa do rio Purus, o mesmo grupo com quem obtive os dados para
a realização deste trabalho, foram estudados por McCallum (vide bibliografia). O
estudo de McCallum focaliza a organização social e as relações de gênero. No
context^ das relações de gênero a autora analisa o ritual Kalxanawa.
Os estudos de Kensinger, Deshayes e Keifenheim e McCallum, enquadram
etnografícamente e etnologicamente este trabalho. Portanto, esta tese é o resultado
do que aprendi de seus escritos somado às minhas próprias observações de campo,
que procurei direcionar para áreas de interesse que até então não tinham sido
suficientemente exploradas.
Em minha tese de mestrado procurei dialogar com a literatura sobre os
Kaxinawa e outros grupos pano amarrando ponto a ponto as minhas contribuições
às dos autores referidos acima. Esta estratégia de apresentação da etnografia
resultou em uma monografia de tipo ‘clássica’ em que a divisão em capítulos
(organização social, ciclo de vida, arte, cosmovisão) obedeceu um estilo de padrão
monográfico. Este novo trabalho, entretanto, adota propositalmente uma estratégia
inversa, a de procurar construir uma etnografia estruturada pelos próprios
conceitos e reflexões Kaxinawa. Embora use a literatura sobre os Kaxinawa, em
particular, e os pano, em geral, como referência, este trabalho foi concebido
enquanto uma etnografia baseada e construída sobre o material proveniente de
minha própria pesquisa.
19
Por estas razões fiz uina opção estilística nesta tese: a de não indexar a bibliografia
Kaxinawa e pano a não ser usá-la quando diretamente relacionada ao assunto tratado.
Penso que desta maneira pude salvaguardar a coerência no tratamento etnográfico de meu
material. Os especialistas reconhecerão facilmente as diferenças e semelhanças, seja dos
argumentos, seja dos dados, entre este e seus próprios trabalhos.
20
Parte I: Percepção e Cognição: A Referência Ontológica

Capítulo 1. Semelhança e diferença à luz do Perspectivismo

1.1. Identidade e Alteridade

“The capacity to mime, and mime well, in other words, is the capacity to Other.”
Walter Benjamin, in Taussig, 1993:19.

“Sempre pensava que para se ter o mundo só precisava de dois: a água e a luz, o
homem e a mulher. Mas descobri que o mundo é feito de três. Não basta ter a água
e a luz, precisa ter o ar, que faz o vento, que dá movimento e faz a ligação, faz
com que a coisa anda. E o terceiro elemento que dá a vida. Assim também é por
causa do filho do casal que o mundo continua”
Agostinho Manduca, Kaxinawa do rio Jordão.

A prática diária e ritual Kaxinawa revela um complexo e dinâmico dualismo


que questiona, insistentemente, uma definição substancialista de identidade e de
diferença. Por meio de recorrentes inversões de papéis e posições no sistema de
nominação e no ritual e através dos persistentes paradoxos elaborados pelo
discurso, a questão da identidade e alteridade aparece como tema central na
ontologia Kaxinawa .
Esta questão não é pertinente apenas para os Kaxinawa, mas pode ser
encontrada na quase totalidade dos grupos pano. Os pano são conhecidos na
literatura etnográfica como especialmente “obcecados” pelos estrangeiros e por
todos os tipos de “outros” (sobre este ponto veja Erikson, 1986; Keifenheim, 1990,
1992; Calavia, 1995). O intrigante conceito nawa, para o qual há variações na
maioria dos grupos de língua pano, é paradigmático para a ambigiiidade pano com
relação à definição de fronteiras entre o “eu” e o “outro”.
Nawa pode ser usado como termo que denota uma “verdadeira” alteridade:
inimigos, brancos e os mitológicos Inka (deuses canibais). Pessoas ou animais
21
(caça) aparecem referidas em canções rituais como nawa, significando, aqui,
inimigo. Nawa é, também, usado para nomear distintos grupos pano (os Nawa da
área Juruá-Purus, incluindo Kaxinawa, Yaminawa, e outros nawas), ou como parte
do etnônimo atribuído para os pano vizinhos, significando neste contexto “povo”:
caxi (morcego) -nawa, yami (machado) - nawa, mari (cotia) -nawa etc. Nawa,
pode, ainda, ser usado para denotar uma das metades ou seções de doadores de
nomes no interior do próprio grupo (como entre os Yaminawa, Marubo e
Amahuaca), apresentando o mesmo significado que o pluralizador -bu (os
Kaxinawa utilizam este pluralizador para as gerações alternadas de doadores de
nomes que constituem seu sistema onomástico: awabu (aqueles da anta), yawabu
(aqueles da queixada), dunubu (aqueles da cobra), kanabu (aqueles da arara azul),
awabuaibu (as mulheres que são do tapir) etc).
Este fato demonstra que, nas línguas pano, um mesmo conceito pode ocupar
diferentes posições numa escala que vai do pólo da completa alteridade e
hostilidade para o pólo do “nós”, incluindo, aqui, o “eu”, denotando pertencimento
a uma subdivisão que define o interior da própria comunidade. Isso não significa,
entretanto, que o termo nawa perca seu caráter relacional intrínseco. Não importa
quanto nawa se aproxime do “eu”, nawa sempre significará alguém que não “eu
mesmo”. Isso explica porque o termo não pode ser usado para auto-referência ou
para se referir a alguém com quem se deseja estabelecer um laço de proximidade e
pertencimento a um grupo. Neste sentido, nawa permanece sendo o “outro”,
embora um “outro” que pode, facilmente, ser transformado no “mesmo” se
adotado um “outro” ponto de vista.
A “noção filosófica do que é similar e diferente” (Overing, 1986b: 142)
parece ter especial interesse para os ameríndios e para os americanistas (Lévi-
Strauss 1991; Maybury-Lewis, 1979; Viveiros de Castro, 1986, 1992; Carneiro da
Cunha, 1978; Overing, 1984, 1996; Clastres, 1974, 1982). Essa noção, enquanto
interesse indígena, aparece em vários sistemas classificatórios na forma de
complementaridade e interdependência entre os sexos, expressando diferentes
formações sociológicas e cosmológicas, em dualismos diametrais e graduais em
toda extensão das terras baixas da América do Sul.
22
Os pano, e os Kaxinawa em particular, apresentam uma variação no
colorido mosaico das diferentes maneiras de lidar com a alteridade pois situam-se,
em algum lugar, entre o concentrismo tupi e o diametralismo jê. Ou, em outras
palavras, os pano estão entre os modelos sociais construídos pelos amazônicos e as
sociedades do Brasil Central. Seguindo Lévi-Strauss em sua caracterização destas
sociedades, os jê elaboraram um sistema social dual bastante complexo que se
“fecha” para o exterior através da introjeção da diferença. Nestas sociedades, as
dinâmicas sociais são desempenhadas através de oposições e antagonismos entre
metades que, cada uma por seu turno, herda e fixa atributos. Os sistemas sociais
amazônicos e tupi, por outro lado, podem ser caracterizados como sociedades
“abertas” que reduzem a diferenciação interna para melhor expressar o
antagonismo externo. Deste último tipo de dinâmica social resulta uma rede de
mônadas endogâmicas ligadas através da guerra e do canibalismo.
Viveiros de Castro (1993), constatando a diferença sociológica entre estes
modelos renomeia-os como dispositivos para lidar com a alteridade: “dualismo
diametral” e “triadismo concêntrico”. Dualismo diametral, exemplificado pelo
caso jê, em que o exterior é incorporado pelo interior, resultando em um sistema
fechado de metades e em uma rica e elaborada representação deste dualismo em
rituais e ornamentação, assim como nas interações sociais cotidianas. O triadismo
concêntrico, o segundo estilo de lidar com a alteridade, pode ser classificado como
tipicamente amazônico. Este modelo apresenta um gradiente entre o interior e o
exterior, distinguindo, terminologicamente, entre os outros próximos até o
estrangeiro absoluto. Este tipo de definição da identidade é extremamente
contextualizado. Dependendo do contexto de discussão, outro grupo pode ser
considerado de mesma identidade em oposição a um outro comum, ou, pode ser
considerado outro em oposição a uma mais limitada definição do que significa
“eu”.

Os povos pano são uni perfeito elo de ligação considerando, aqui, uma
tipologia que contrasta filosofias sociais amazônicas com as do Brasil central. Os
pano tem um sistema de metades ritualmente elaborado mas seu dualismo não é
diametral: uma das metades parece ser mais exterior que a outra. A diferença
23
criada através das classificações dualistas entre os pano é de um tipo gradual e,
hipoteticamente, reversível, não-dicotômico e não-exclusivo do tipo que “A não é
B”. Desta forma, no modelo formulado por Viveiros de Castro, este dualistrrcr
concêntrico tende para um triadismo concêntrico, ambos representados em
sistemas classificatórios cosmológicos e sociológicos. Levando-se em conta o
caráter situacional deste modo de definir identidades, pode-se questionar a
utilidade de um esquema triádico quando se percebe a importância do contexto e
da perspectiva indígena para dar conta e nomear a identidade e a diferença.
Entre os Kaxinawa, o pertencimento a uma das metades e as quatro seções
matrimoniais se dá através de seus nomes pessoais (neste sistema de tipo Kariera
existem quatro seções alternadas, conforme a geração, que produzem duas seções
para cada metade ou oito se dividida cada uma das seções pelas linhas de gênero).
Em virtude dos nomes poderem ser classificados em grupos definidos por geração,
sexo e metade, funcionam enquanto um guia de englobamento étnico nas escolhas
dos termos de parentesco quando se classifica um parente previamente
desconhecido. Nomes e metades são guias importantes para a escolha de parceiros
matrimoniais (o pertencimento dos nomes às gerações alternadas parece ser menos
importante que o pertencimento à metade, veja McCallum, 1989a1). Especialmente
no primeiro casamento, os jovens são encorajados a escolher um parceiro
pertencente da metade oposta. A complementaridade entre as metades é
profusamente desempenhada nas atividades rituais.
Resta ainda, o desejado e proibido “outro” real que vem de fora da ordem
social controlada. Esse outro constitui o terceiro elemento na escala gradativa que
define “eu” e “outro” e é o potencial, hipotético, afim, onipresente no mito, no
ritual, nas canções, nas visões, nos sonhos e nas fantasias. O “outro real” funciona
enquanto um valor cosmológico e escatológico englobante que nunca é, e nunca

1 Este é o caso para os Kaxinawa brasileiros da Área Indígena do Alto Purus, mas não foi
confirmado pelos especialistas dos Kaxinawa do Peru (Kensinger, 1977; Deshayes e
Keifenheim, 1982) que enfatizam um ideal de troca de irmãs, especialmente na ocasião da
fundação de uma nova aldeia. Para outros grupos pano, entretanto, Erikson menciona que
“/e "point faihle"de la slnictiire “kariera" pano" é “/« ruplnre introduite par les
marriages obliqúes avec le frère de la mère " (1986:205)
24
poderá ser presentificado através de uma aliança de casamento nesta vida terrena.
Os Kaxinawa são endogâmicos, quando possível se casam ao nível da aldeia. Esta
prática reflete sua ideologia concêntrica de casar, acima de tudo, com parente ao
invés de com afins. Essa perspectiva encontra respaldo na ideologia amazônica da
consubstancialidade, produzida através da co-residência e da comensalidade
fazendo as pessoas sentirem-se como pertencentes a um mesmo grupo2.
A mais inclusiva auto-definição para um Kaxinawa é nukun yuda, que
significa uma pessoa que pertence ao “nosso mesmo corpo”: um corpo que é
produzido coletivamente por pessoas que vivem na mesma aldeia e que
compartilham a mesma comida. São os parentes próximos que provocam um forte
sentimento de pertencimento a um grupo e, quando estão ausentes, é sentida sua
falta, expressa pelo teimo manuaii, palavra usada para definir a saudade de um
parente próximo do mesmo modo que se designa a sensação física e vital da
necessidade de água. Agua é vital para o corpo assim como parentes são vitais para
constituir o “eu”. Isso pode ser ilustrado pela seguinte sentença proferida por
Antônio Pinheiro: “Quem não sente falta dos seus parentes, como se sente falta de
água, não é gente. E que nemjwx/w que fica vagando por aí".
Os laços que ligam uma pessoa a seu parente constituem o “eu” Kaxinawa .
Essa rede de laços vitais é criada no tempo, pelo viver junto, pela comensalidade,
por compartilhar determinadas substâncias vitais, banhos medicinais e pintura
corporal nos rituais. Secreções corporais e cheiros afetam diretamente as pessoas
com as quais se vive. Uma intervenção, direta ou indiretamente praticada, que
transforme o corpo de alguém, afeta sua mente, pensamentos e sentimentos. Neste
sentido, quando os ameríndios estão falando do corpo, estão referindo-se ao “eu” e
às transformações do corpo, às vezes descritas como “alma”.
Pode-se dizer, deste modo, que o “eu” Kaxinawa é inclusivo, não apenas ao
seu próprio corpo mas ao seu parente próximo3. Isto explica porque uma pessoa

2 A mesma lógica de consubstancialidade pode ser encontrada entre os Cubeo (Goldman,


1963), Piaroa (Overing, 1975), Apinayé (Da Matta, 1976), Airo-Pai (Belaunde, 1992),
Piro (Gow, 1991), para citar apenas alguns exemplos.
3 A relação entre corpo, pessoa e sociedade entre os Kaxinawa é similar àquela encontrada
25
que não reside mais na aldeia toma-se mais e mais distante e com o passar do
tempo, toma-se um não-parente ou, até mesmo, um não-Kaxinawa aos olhos de
quem estava habituado a chamar-lhe de parente. Essa pessoa pode mesmo ser
transformada em não-índio, nawa, ou até mesmo perder os atributos humanos,
tomando-se, portanto, um ser que vagueia, yuxin, um ser sem forma. Sem forma,
significa, neste contexto, não apenas uma mudança na aparência corporal mas no
comportamento e nos pensamentos. Yuxin, neste contexto, significa um ser perdido
no mundo, sem laços, sem um lugar para ir, sem pessoas que se “lembre” dele.
Essa transformação gradual de um Ser propriamente humano em um
estranho e, finalmente, em um não-humano ou não-ser ocorre no tempo, através do
comportamento e pelo contágio com a alteridade. A mesma lógica se aplica à
doença. Estar doente significa estar em um estado transfonnativo de perda do “eu”,
adquirindo alteridade. A fonte da doença não é produzida por uma única causa mas
por uma combinação de forças intentas e externas. As forças predatórias
provenientes do exterior tomam-se ativas dentro de uma pessoa através da comida
ingerida ou dos odores inalados. Podem entrar, também, quando uma pessoa
encontra-se em um estado emocional vulnerável, quando se sente triste ou só. O
processo de se tornar outro é complexo e é quase sempre reversível. Alguém deixa
de ser um “verdadeiro” Kaxinawa por não residir mais em uma aldeia, por viver
muito tempo em diferentes lugares, o que resulta em adquirir um corpo diferente e,
através desta diferença no corpo, ter diferentes sentimentos, pensamentos, valores
e memórias. Portanto, ser propriamente humano, no sentido Kaxinawa, significa
viver em comunidade com os parentes próximos.

entre os nativos das ilhas Fiji descritos por Anne Becker (1995). A autora demonstra
como em Fiji a experiência incorporada emana de uma “notion of selves deeply embedded
in a relational matrix” (1955:5). Uma vez que pessoa é definida em termos de sua inserção
numa rede de relações mais do que em termos de uma entidade fechada sobre as fronteiras
de um corpo individual, a identidade pessoal é expressa por meio do cuidado e nutrição de
outros, em vez de por meio de uma modelagem bem sucedida do próprio corpo, de
acordo com as normas estéticas de beleza estabelecidas pela comunidade. Disto conclui-se
que experiência incorporada e a forma corporal são vividas enquanto temas que dizem
respeito à comunidade, refletindo a interconectividade social de uma pessoa, mais do que
ao indivíduo. A forma corporal em Fiji não serve, portanto, para se distinguir, mas para se
26
Esta endogamia de aldeia apoiada na forte ideologia da consubstancialidade
é complementada por uma cosmologia verticalizada, próxima do modelo Araweté
(tupi), em que o desejo da afinidade potencial é projetado no post-morlem. Uma
vez a pessoa morta, o yuxin do olho adquire novo corpo e novas roupas capazes de
transformá-la em um ser imortal que poderá se casar e viver com aqueles que os
vivos representam como o pólo extremo e absoluto do perigo, o “inconvivível”
outro: os Inka.
Em outros povos amazônicos, a ordem social e o sistema de parentesco
como uma unidade interior composta por “elementos de uma mesma classe”
(pessoas com um mesmo coipo que compartilham pensamentos e hábitos), são
englobados pela ordem cosmológica da alteridade, do canibalismo, da predação e
sua relação com esta ordem de fenômenos é temporal: humanos estão no caminho
de se tomarem outros e este processo, para as sociedades Araweté e Kaxinawa,
será somente completado depois da morte.
Teremos oportunidade de retomar, ao longo deste texto, à complexidade da
relação entre semelhança e diferença na ontologia Kaxinawa, expressa como tema
central da mitologia, revelada na racionalidade da organização da prática ritual, no
discurso silencioso da arte visual, assim como no quadro de referência da prática
classificatória cotidiana dos seres e das coisas. O pensamento social Kaxinawa não
projeta a diferença fora da sociedade como fazem muitas sociedades amazônicas
quando tentam inventar uma vida vivida somente na companhia dos
iguais/parentes, através da evitação da terminologia afinal e pela domesticação de
todos os poderes e substâncias tomados do exterior. Em função de uma acurada
preocupação com a predação e possível retaliação implicada em todos os atos
criadores de vida e comunidade, esses povos escolheram neutralizai- as expressões
imanentes de violência reduzindo, deste modo, o perigo implicado em qualquer
atividade produtiva (veja Overing (1985,1993) para os Piaroa). Por outro lado, a
ideologia Kaxinawa não introjeta totalmente a diferença como se ela emanasse do
interior, como parece acontecer com a complementaridade do dualismo

associar aos outros próximos.


27
oposicional do sistema de metades jê e de sua vida social e cerimonial.
A ontologia Kaxinawa considera alteridade como uma dificuldade, em
última instância fatal, um inescapável e insolúvel paradoxo, cujo único modo para
concebê-la é tomar-se, a si próprio, “outro”. Sem tomar-se outro, ao menos
temporalmente, o ser está constrangido a permanecer entre iguais e essa
possibilidade está encerrada nos tempos míticos da semelhança incestuosa e da
separação dos seres em diferentes tipos. O contato com o “outro”, radicalmente
concebido, leva a conflitos e mortes. É apoiado nesta concepção que os Kaxinawa
encontraram modos de “mimesis” e transformação, diferentes modos de “trocar de
pele ’ atuando, assim, esta possibilidade de alteridade que não é mais que a
preparação para a jornada final e transformação depois da morte em símbolo de
semelhança e de extrema alteridade: o deus Inka.
Esta figura mítica comporta-se como um canibal ou onça em relação
àqueles que considera demasiadamente diferentes. Comporta-se como cônjuge e
força civilizatória para os Kaxinawa, agora mortos, que se tomaram iguais a ele.
Depois de mortos, os Kaxinawa, tomam-se bonitos e luminosos como o eterno
Inka, habitante do mundo celeste. Os Kaxinawa são presas, enquanto vivos,
potenciais dos Inka, quando mortos e vivendo nas aldeias celestes são alimentados
pelos Inka.
A produção e reprodução da alteridade através da semelhança e da
semelhança através da alteridade, fato observado por outros pesquisadores das
sociedades pano (veja Erikson, 1986, 1992; Keifenheim 1990, 1992; Calavia,
1995; Townsley, 1988), constitui a base desta pesquisa que percebe, pelo menos
para os Kaxinawa, o artificio do dualismo como um meio para tomar-se um ao
invés de dois, e para tomar-se “mesmo” e “outro”. Divisões ontológicas são
posicionais e temporais nesta visão de mundo: são relativas e cambiáveis, não
essenciais ou substanciais, nunca fixas. As diferenças não são do tipo oposicional
mas de um tipo gradual.
Podemos como exemplo retomar, mais uma vez, para a figura de linguagem
nawa; nawa significa, em uma sequência classificatória, o maior representante de
uma espécie, como nawan tele, a harpia, o maior entre os pássaros de presa; e a
28
metade associada com o exterior é chamada a metade do maior dos elementos que
constitui um par. Comparando os dois tipos de onças conhecidos pelos Kaxinawa,
por exemplo, o menor, txaxu inu (onça vermelho), é classificado como dua (a
metade do brilho, metade ligada ao mundo da água), enquanto o grande, inu
keneya (a onça pintada), é classificado como inu (a metade da onça, metade ligada
ao Twfôz/mundo do sol)4.

A duplicidade da figura do Inka é outro exemplo de semelhança na


diferença ou dualismo usado para conceitualizar a unicidade de um ser. No
começo de minha pesquisa, questões sobre o Inka foram respondidas de um modo
explicitamente dualista: um era o Inka pintsi, Inka faminto por carne, um povo do
tempo histórico/mítico que canibalizava os Kaxinawa; o outro, totalmente
diferente, foi apresentado como Inka kuin, nosso Inka, o real ou o próprio Inka, em
cuja aldeia o yuxin do olho passa a viver depois da morte.
Toma-se claro que a dualidade na figura do Inka não é relativa a uma
duplicidade de personagens nomeados pelo mesmo termo Inka, mas devido à
possibilidade de uma duplicidade de pontos de vista e relações, visto que estes dois
Inka são um; não são mais que lados diferentes de uma mesma moeda. Inka pode

4 Parece existir uma contradição entre os dados sobre o significado simbólico das metades
Kaxinawa obtidos no Peru e no Brasil. Deshayes e Keifenheim (1982, 1994), trabalhando
no Peru, ligam a metade /'//// (jaguar) ao pólo do “eu” e do interior, enquanto consideram a
metade dua (brilho) como ligada ao exterior e ao pólo do “outro” (Fautre du dedans). Os
dados de McCallum (1989a) e Lagrou (1991) coletados no Brasil, por outro lado,
apontam na direção oposta, onde a metade /////, ligada ao Inka, estaria mais ligada ao
exterior do que a dua. Erikson (1995:7) sugere que esta diferença em interpretação seja
devido ao fato de que os lideres das aldeias no Peru eram na maior parte da metade inu,
enquanto os no Brasil eram dua. Neste caso, o antropólogo teria adotado o discurso e o
ponto de vista do líder da aldeia, associando a metade do líder ao pólo do “eu” e aquele
dos seus rivais ao exterior. Sugiro que ao invés de questionar a “norma” ^Faudrait-il
postuler que la norme fluctue eu raison des aléas politiques et que les données
ethnographiques varient en fonction du jeu factionnel?" (Erikson, 1995:7)), podemos
entender a inversão dos pólos do interior e exterior no simbolismo das metades Kaxinawa
como um sinal do caráter dinâmico e vital do dualismo que, em vez de fixar esquemas
normativos, tenta dar sentido à experiência social, política e simbólica da comunidade. De
fato, é um sinal do sucesso de uma liderança quando sua interpretação sobre os fatos
ganha a aprovação da comunidade como sendo a “verdadeira”. Quando o discurso do
líder perde este poder de persuasão, ele está a caminho de perder sua comunidade (Cf.
Deshayes, 1992:95-106).
29
ser tanto o avarento canibal quanto o cônjuge provedor dependendo da relação que
se estabelece: afinidade real ou afinidade potencial. No decorrer deste trabalho
este ponto ficará claro com a análise dos mitos sobre o Inka. Ambas definições de
nawa e Inka nos dão uma idéia de como o dualismo Kaxinawa precisa ser
entendido a partir do ponto de vista do perspectivismo ameríndio (este será o tema
do próximo tópico).
O dualismo é mais um valor englobante para o pensamento Kaxinawa que
uma discussão sobre identidade. Quando introduz-se o perspectivismo nesta
discussão, o dualismo ganha aspecto contextuai e caráter dinâmico. A ontologia
Kaxinawa postula o intrínseco, o inerente dualismo de todos os seres. Os seres
vivos e a própria vida no mundo, dependem da mistura de forças e qualidades
opostas. Todos os seres e coisas do mundo são resultado do ritmo e controle da
mistura e apresentam a dualidade fenomenológica do conteúdo e do continente,
esqueleto e pele, semente e invólucro.
Qualquer separação absoluta de classes diferentes significa ausência de
vida, enquanto sua mistura induz movimento o que indica, por sua vez, vida. O
mito de origem da ordem do mundo (veja parte 2) começa com a criação do dia e
da noite. Antes do mundo existir, essas qualidades estavam, como todas as
qualidades, latentes mas separadas, “dormindo em suas respectivas cavernas”. Era
o tempo antes do tempo, quando nada mudava porque nada era misturado; não
havia interação de espécie alguma entre qualidades dos seres de diferentes classes.
A diferença foi criada através do ato de sua revelação, quando os seres primordiais
abriram as cavernas do amanhecer e do anoitecer: a caverna onde o sol se escondia
e a outra que guardava o frio em seu interior (Capistrano de Abreu, 1941). A
criação toma acessível aos sentidos as possibilidades do ser.
O primeiro princípio organizacional do mundo foi a mistura da pura
escuridão com a luz ao longo de uma escala de tempo que introduziu o dia e a
noite, tempo para trabalhar e tempo para dormir e sonhar. O arco-íris é um símbolo
chave dessa mistura. As cores da vida, vermelho e verde/azul, assim como, a mais
problemática cor, o amarelo (todas as outras cores são compostas dessas co
30
resultado da revelação da potencialidade da forma e do ser, escondido na
escuridão, através da luz.
Veremos que as canções rituais podem ser lidas tanto por um registro social
relacionado ao parentesco e a afinidade (os problemas em lidar com a alteridade),
quanto em um registro mais abstrato relacionado à ontologia - a qualidade e estado
do ser e dos seres - que apresenta imagens poéticas do valor englobante do
intrínseco entrelaçamento de todos os corpos e matérias na terra, através da criação
e da predação, do contágio, da mistura das qualidades. “O que é comido come, no
mesmo momento em que é comido”, “o que come transforma-se no que é comido”
(ou “você é aquilo que come”) mas, também, “você come o que você é”5.
O que diferencia este processo de vida não é a diferença entre agência e
ausência de agência, sujeito e objeto, mas uma diferença de contexto e poder
relativo. Em função de cada ser existir simultaneamente em ambos os níveis da
matéria e do imaterial, ele é capaz de agência, percepção e subjetividade. Para ter
forma e consistência, a matéria precisa estar imbuída de yuxin, visto que “sem
yuxin, todas as coisas tomam-se pó, somente casca vazia. Você toca nelas e elas se
dissolvem e então você vê nada mais que cinzas, pó” (Antônio Pinheiro, 1989), A
definição de um ser como sendo um verdadeiro yuxin ou uma mera “coisa”
depende, novamente, de uma escala gradual em que A necessariamente implica B,
ao invés de um par oposto diametralmente em que para ser A significa que A não é
B.
O que define essa situação (e tende a ser um princípio que guia a
classificação dos seres ao longo de uma escala do menos e mais perigoso) é aquele
quem inicia o processo de troca e/ou predação, processo que transforma as partes
envolvidas. Toda ação de intercurso, troca de palavras e substâncias, desencadeia
um processo que, por sua vez, produz outros processos fazendo, assim, com que o
mundo esteja em permanente movimento.
Podemos concluir que se no dualismo Kaxinawa A, necessariamente,
implica B, as oposições no pensamento e na ação existem apenas para serem

5 A mesma lógica foi encontrada por Isacsson (1993) entre os Emberá.


31
dissolvidas. Essa dissolução da dualidade pode ser alcançada seguindo a lógica
temporal (encontrada na mitologia Kaxinawa e na escatologia) ou a lógica da
predação. Neste sentido, o problema da semelhança e da diferença na ontologia
Kaxinawa parece resultar em uma solução, solução esta encontrada na
continuidade dos termos opostos ao invés de sua mútua exclusão. Por isso,
diferença não pode ser definida simplesmente em termos de complementaridade de
categorias opostas, mas em termos de um movimento em direção à integração. O
dualismo Kaxinawa é menos uma classificação das coisas e dos seres que um
problema, uma questão a ser resolvida.

1.2. Perspectivismo

“The human phenomenon is a single, coherent idea, organised mentally,


physically, and culturally around the form of perception that we call “meaning.””
Roy Wagner, 1986: xi.

“O olho que existe é o que vê.”


Chico César

“To declare that writing itself is a mimetic exchange with the world also means
that it involves the relatively unexplored but everyday capacity to imagine, if not
become, Other.”
Michael Taussig, 1993: x.

Nos últimos vinte anos, alguns autores chamaram atenção para o caráter
não-essencialista da visão de mundo ameríndia. A inclinação filosófica ameríndia
poderia ser “nominalista” ao invés de “realista”” (Overing, 1985, 1990; Seeger, da
Matta, Viveiros de Castro, 1979). A introdução da noção de perspectivismo dá um
passo além no processo de compreender o significado das afirmações nativas.
Grosso modo, o perspectivismo indígena significa que o mundo (realidade) que se
vê depende de quem o vê; de onde se vê e com que intenção determinado ser olha
para outro ser. Neste sentido, o fenômeno do perspectivo, bem conhecido pelos
americanistas, pode ser colocado do seguinte modo: os animais se vêem como
humanos enquanto os humanos vêem os animais enquanto caça; os humanos se
vêem enquanto humanos e são vistos por determinados espíritos como caça. Este é
o significado de uma declaração comumente ouvida que afirma que determinados
32
animais “são gente” (Gow, 1988). Os humanos podem, freqiientemente, mudar seu
ponto de vista em relação aos animais quando diante dos seus olhos um animal que
está sendo perseguido numa caçada, repentinamente, transforma-se em um ser
humano. Essas transformações estão presentes na mitologia amazônica6 e são
cruciais na experiência cotidiana (mais ainda durante a noite). Estudiosos do
xamanismo ameríndio (Baer & Langdon’ 1992; Chaumeil, 1983; Overing, 1990;
Crocker,1985} notaram desde sempre esta capacidade de mudar a percepção

enquanto capacidade específica do xamã, mas, agora, pode-se facilmente


reconhecer essa característica como princípio estruturante que não se aplica
somente ao xamanismo enquanto campo isolado de pensamento e especialização,
mas à ontologia ameríndia como um todo.
Esta referência básica que pressupõe a transformabilidade do mundo pode
ser encontrada, no caso Kaxinawa, em todos os campos de pensamento e ação.
Com a morte, uma pessoa transforma seu corpo (um processo expresso em termos
de mudança de roupas, de transmutação de qualidade) transformando-se em Inka,
o símbolo arquetípico da alteridade. Nos rituais coletivos de ingestão da bebida
alucinógena ayahuasca {cipó, nixi pac, nawa huni\ a floresta e seus animais
transformam-se em humanos e espíritos da perspectiva daqueles que ingerem a

6 O reconhecimento deste fato resolve um problema recorrente no estudos sobre


xamanismo, que é o de se confrontar no campo com o fenômeno do xamanismo sem
xamãs (Hamayon, 1982). Associada a este problema de ausência ou falta de visibilidade
dos xamãs está a questão de seu poder. Outra questão é relativa ao gênero dos xamãs.
Poderia ser o caso de, nessas sociedades igualitárias, o acesso ao mundo xamânico ser o
privilégio de apenas um dos gêneros? Se o mundo inteiro está imbuído de agência e de
poder xamânico em menor ou maior grau, teríamos que colocar a questão de saber se
ainda existem xamãs de um modo diferente. E veríamos de novo que A não exclui B.
“Sim, ainda existem xamãs”, poderia-se responder; mas uma mesma pessoa em outro
contexto poderia responder “não existem mais”. Poderíamos, ainda, recolocar a questão
de outro modo: “Ainda existe poder xamânico, ou, ainda existe conhecimento xamânico?”
e muitos poderiam responder: “não sobrou nenhum, apenas os mais velhos sabiam” ou
“sim, existe, mas longe, rio-acima”, ou “os vizinhos sabem, nós não”. A lógica do ocultar
ou revelar a presença ou ausência de xamãs está ligada à política de poder e do
conhecimento, e às estratégias para obtê-los. Essas são questões importantes quando
refletimos sobre nosso próprio processo de obtenção do conhecimento indígena, pois
existem regras implícitas de transmissão deste conhecimento. Existem as perguntas certas
a serem feitas para se obter respostas inteligíveis, o contexto certo para a revelação de
33
bebida enquanto as grandes árvores e seus habitantes transformam-se em grandes
cidades diante dos olhos fechados daquele que se transformou em
anaconda/ancestral mítica Yube através da ingestão do seu “sangue”. A lógica da
transformação de uma substância animada em outra está presente mesmo nos mais
simples dos atos, o de comer: quando alguém come milho, por exemplo,
transforma-se em milho e o milho torna-se parte da pessoa (de um modo similar
àquele descrito por Isacsson para os Emberá da floresta colombiana).
Minha percepção da “qualidade perspectiva” do pensamento ameríndio (na
acepção desta expressão usada primeiramente por Arhem, 1993), está relacionada
à discussão em curso, realizada por antropólogos e outros cientistas, sobre o
significado e o uso próprio da metáfora (Overing, 1985a, 1987; Crocker, 1977;
Goodman, 1978;Ortony, 1993; Ricoeur, 1981).
Esta discussão chama atenção para o papel cognitivo da similaridade na
metáfora e no pensamento em geral e, reavalia, neste sentido, embora de forma
indireta e implícita, algumas das contribuições contidas na discussão que faz Lévy-
Bruhl (Cf. Cardoso de Oliveira, 1991; Goldman, 1993) a propósito do animismo
no “pensamento primitivo”.
O uso estrutural ista da metáfora na tradição lévi-straussiana acentua apenas
a capacidade diferencial da metáfora enquanto analogia, deixando de lado a literal
e polissêmica leitura dos complexos conteúdos das afirmações indígenas que
encontrão significação se levado em conta um quadro específico de referência.
Neste sentido, as declarações podem comunicar mais que equivalências estruturais
quando, por exemplo, um Bororo diz “My brother is a parrot” (Crocker, 1977) ou
um Kaxinawa afirma que “a anaconda é nosso ibu (pai/mãe)”.
“Lévi-Strauss does unfold a salient aspect of tribal classificatory logic, that
of analogy, where in his words (1963:77), it is not the resemblances, but the
differences, which resemble each other” that counts, e.g., crow is to eaglehawk as
clan A is to clan B. The “primitive” is claiming neither mystical nor blood
relatedness to his totem and therefore does not believe the similarity that he might
be thought to believe when he cal Is his neighbour a parrot or a crow. Forthcoming
from the Lévi-Straussian understanding of metaphor is the evasion of an analysis

certos tipos de conhecimento.


34
of similarity (the relation between my neighbour and a parrot) which, after all, as
much as difference and analogy, is crucial to the understanding of metaphoric
statements.” (Overing, 1985:153).

Estudos recentes sobre a metáfora (Ricoeur, 1981; Shanon, 1993; Lakoff,


1990) revelam como toda linguagem é, no fim das contas, metafórica e polissêmica
no seu processo contínuo de atribuir significado à experiência, conectando
imagens conhecidas e conceitos previamente não relacionados criando, deste
modo, novos campos. O processo cognitivo necessita desses instrumentos criativos
para ser capaz de cruzar o fosso entre realidades conhecidas e desconhecidas e
nomear novas experiências e percepções. Novos mundos são imagináveis através
da linguagem metafórica e isso atesta porque a metáfora é indispensável tanto para
o cientista quanto para o antropólogo do mesmo modo que é para o artista7.
O que une ciência e arte, através de suas oeuvres, no seu uso da metáfora é
a mudança de nossa visão e conhecimento do mundo, e uma vez nossa visão
mudada o mundo nunca será o mesmo. Este é o laço perfonnativo que conecta
linguagem e percepção ao mundo. O mundo exterior é um mundo imaginável,
perceptível, experimentável e, portanto, pleno de sentido para nós. É nossa
perspectiva incorporada, contextualizada e, por isso, cambiável sobre o mundo que
faz o mundo ser o que é. E, deste modo, existem múltiplos mundos (Goodman,
1978). Como veremos, essa percepção filosófica foi levada mais longe pelo

7 Um exemplo de Antropologia enquanto um “exercício metafórico” é o livro Prose and


Passion (1996:30) de N. Rappport. Sua descrição da metáfora justapõe uma seleção de
citações entre as quais as seguintes são de relevância para essa discussão: “Inasmuch as
the essence of metaphor is the Crossing and the breaking of boundaries, transcending the
ordinary usage of any one semantic domain by bringing it into unusual relationship with
others, then for Paine the metaphor is the figure of speech which most develops and
extends thought” (1981:188); Ricoeur (1981:180-1) “The most important feature of
metaphor... is its nascent or emergent character”; Shelley (1954:283): “Here in the
provision of previously unapprehended combinations of thought, is an enlarging of the
circumference of the imagination, and such extension can go on forever”; Steiner
(1975:23) “ (every) new metaphor... is a new mapping of the world or a reorganisation of
the habitation of reality”; e finalmente Berger (1984:97) “If all correspondences were
‘discovered’... one would secur proof of the ‘indivisible totality of existence’.” É por
causa da criatividade metafórica e do seu uso consciente, que o autor considera a
Antropologia e a Literatura disciplinas afins com tarefas similares a preencher na
amplificação da imaginação humana.
35
pensamento ameríndio do que tem sido usualmente praticada na nossa própria
tradição de pensamento.
Se metáforas representam nossa “abertura para o mundo”, para usar uma
expressão gadameriana, precisamos ser o mais reflexivo possível sobre as
metáforas que usamos. Metáforas são usadas para conectar diferentes domínios,
diferentes mundos, criando um novo mundo através da “fusão de horizontes” (essa
imagem implica mutualidade e não um movimento unidirecional, portanto, é algo
inerentemente intersubjetivo). As metáforas tomam-se uma limitação para o
entendimento do outro se as reificamos, se tomam um meio para reduzir a
ansiedade experiencial e cognitiva provocada pelo defrontamento do non-sense.
E necessário o pesadelo do defrontar-se com a incomensurabilidade para
desvendar novas metáforas e conexões, inimagináveis quando se está em território

seguro . As metáforas falham no seu intento de produzir compreensão quando elas


aniquilam diferenças, reduzindo diferença à similitude; quando bem escolhidas, as
metáforas criam novos mundos, funcionando como “pontes” capazes de ser ao

g
Uma reflexão sobre os perigos do uso impróprio da metáfora pode ser encontrada em
Jackson (1989). Nesta passagem Jackson critica o abuso de metáforas textuais por autores
pós-modernos. "It would be a mistake to disparage metaphorical instrumentality as a
primitive mode of thought, a magicai or primary-process activity. In my view, différences
in modes of thought across cultures are idiomatic rather than formal, and if we take care
to relate thought to context of use when we make cross-cultural comparisons this becomes
quite obvious. If crisis be considered one such context, we find that metaphorical
instrumentality is just as typical of modern societies as pre-industrial ones... In both cases
a shift is effected from a domain of anxiety to a comparatively neutral domain..., the
second domain, however, corresponding to the first. Again, recourse to jargon and to
experience-distant ’ concepts in the human Sciences indicates how anxieties which arise in
the course of research are alleviated through a shift to a neutral zone of abstract language
or ofnumber, which, nevertheless, is held to correspond to the domain of human events...
As for the world of scientific theory, one has only to consider the mechanistic imagery of
eighteenth-century philosophy (Turbayne, 1962), the arboreal metaphor in nineteenth-
century palaeography, the topographical and archaeological imagery in psychoanalysis and
in structuralism, the organic analogies in functionalist sociology (Leach, 1961:6), and the
metaphors of the mirror, the fountain, and the lamp in literary theory (Abrams, 1958) to
agree with Luis Borges that the history of ideas may be nothing more than the history of a
handful of metaphors. Furthermore, if, as Stephen Peppers argues, world theories are so
often generated from the immediate sensible world, might not adequacy in explanation be
seen as a matter of choosing the right metaphor rather than a question of epistemological
correctness? (Jackson, M., Paths loward a Clcaring, Radical Enipiricism and
36
mesmo tempo próximas da experiência (experience-near) do sujeito que tentamos
evocar e próximas da experiência (experience-near), em um nível imaginativo, da
comunidade de possíveis leitores para quem estamos escrevendo.
Em um artigo recente, Viveitos de Castro (1996) situa sua abordagem a
propósito do “perspectivo ameríndio” dentro do paradoxo clássico
Natureza/Cultura herdado pelo americanismo de Lévi-Strauss9.
Antes se observava a recusa, por parte dos índios, de conceder os
predicados da humanidade a outros homens; agora se sublinha que eles estendem
tais predicados além das fronteiras da espécie, em uma demonstração de sabedoria
“ecosófíca” (Arhem, 1993) que devemos emular, tanto quanto permitam os limites
de nosso objetivismo. Antes, era preciso contestar a assimilação do pensamento
selvagem ao animismo narcísico, estágio infantil do naturalismo, mostrando que o
totemismo afirmava a distinção entre o homem e a natureza; agora o neo-animismo
se revela como reconhecimento da mestiçagem universal entre sujeitos e objetos,
humanos e não-humanos... (Ambas (estas abordagens) são falsas, por se referirem
a uma concepção substantivista das categorias de Natureza e Cultura (seja para
afirmá-las, seja para negá-las) inaplicável às cosmologias ameríndias” (1996 9 -
l0)- I

Viveiros de Castro procura demonstrar como categorias tais como


“humano”, “animal”, “alma” são “categorias perspectivas” para os ameríndios e
que precisam ser analisadas em termos de uma teoria dos signos. O ponto de vista
define o lugar ocupado pelo sujeito. Usando uma reflexão de Deleuze (1988:27),
Viveiros de Castro (1996:11) define perspectivismo do seguinte modo:
Tal é o fundamento do perspectivismo. Ele não exprime uma dependência
perante um sujeito definido previamente, contrário, será sujeito aquele que aceder
ao ponto de vista”

E do sujeito à “alma” não é mais que um passo: “Tem alma quem é capaz
de um ponto de vista” (1996:11) Se o que define humanidade é a idéia de um
sujeito com um ponto de vista, logo o que liga humano a animal não é sua
animalidade comum mas uma mesma humanidade. Inerente a capacidade de um
ponto de vista é ter um coipo e este corpo, situado e incorporado de agência,

Elhiiographic hiquiry, 1989:151).


Lima (1996) publicou uma reflexão sobre o perspectivismo a partir do material Juruna.
Infelizmente não pude incorporar sua discussão a este texto uma vez que tive acesso ao
37
definirá como o mundo será percebido. Não é apenas a morfologia da onça que
define sua identidade como um ser-onça, mas sim seu comportamento, sua
intenção e sua maneira de perceber o mundo através da perspectiva da predação. É
isso o que faz com que um ser humano se transforme em onça: quando adquire o
“estado” de onça.
“O que estou chamando de corpo, portanto, não é sinónimo de fisiologia
distintiva ou de morfologia fixa; é um conjunto de afecções ou modos de ser que
constituem um habitus. Entre a subjetividade formal das almas e a materialidade
substancial dos organismos, há um plano intermediário que é o corpo como feixe
de afecções e capacidades, e que é o sítio das perspectivas.” (Viveiros de Castro
1996:13)

Do mesmo modo, o largo uso que fazem os ameríndios das auto-


designações referidas a eles mesmos e aos povos aparentados como “verdadeiros
ou propriamente humanos” (no caso Kaxinawa, huni kuiri) não tem a intenção de
denotar humanidade como uma espécie natural, mas uma condição, a condição da
pessoa, do sujeito e do ser social. Neste sentido, os etnônimos devem ser
entendidos como pronomes e não como substantivos (Viveiros de Castro,
1996:10).

A relação de predação é uma das quais em que mais se percebe agudamente


a contextualidade e reversibilidade de identidade no par predador/presa. Um
exemplo etnográfico, próximo da abordagem do perspectivismo ameríndio
apresentada acima, é o caso Wari (Vilaça, 1992) em que predação aparece como a
metáfora .chave para as relações e criações de identidades entre humanos e não-
humanos. Para os Wari, ser humano significa estar na posição do caçador,
enquanto ser animal significa ocupar a posição de presa. Para os animais e
espíritos que predam os humanos, os humanos são percebidos enquanto animais.
Neste sentido, identidade humana é identificada à agência, e mais, agência é
identificada ao ato da predação.
Deste modo, a oposição ontológica fundante na designação dos diferentes
seres é constituída pela oposição de caçador e presa, oposição que define as

seu trabalho posteriormente à escrita deste capítulo


38
qualidades contrastivas do sujeito e objeto no interior de uma contínua atividade
predatória. Essa atividade é considerada onipresente a qualquer tempo e implica,
pela sua própria dinâmica de ataque e retaliação, a inerente possibilidade de
inversão das perspectivas e dos papéis, em que o caçador toma-se presa.
Esta mesma lógica foi observada para a guerra entre alguns povos
amazônicos (Femandes, 1970; Viveiros de Castro, 1986, 1992). Penso, que esta
lógica reflete uma ideologia igualitária implicando a consciência da essencial
similaridade em qualidade, capacidade e valor do inimigo (caça). O que é caçado
irá cedo ou tarde caçar; o que é comido irá querer comer aquele que o comeu
(através da doença, por exemplo). Os Kaxinawa compartilham esta visão
perspectiva de ser caçador para alguns e ser caça para outros, ou, caçador e caça
para os mesmos seres em diferentes momentos e contextos.
Os Kaxinawa estendem essa relação para seus respeitados/temidos
inimigos, não somente para caça mas, também, para plantas e árvores (como as
mulheres Achuar fazem de um modo mais radical com as “plantas canibais”,
Descola, 1987). Todos os seres vivos estão implicados nesta rede de ações e
contra-ações de predação, alimentação e transformação dos seres vivos em
materiais para a produção da vida. A idéia abstrata de que para criar vida é
necessário a destruição de algo ou alguém é bastante concreta e viva nos estilos de
vida de sociedades caçadores e coletoras em que é preciso constantemente domar
as forças “selvagens e ocultas” da floresta, deste modo, conquistando pequenos
espaços controlados pelos humanos.
Penso, entretanto, que estas forças interdependentes em luta não devem ser
entendidas nos termos do par natureza/cultura. Esse entendimento deriva de uma
exegese indígena do mundo, considerando-o estar imbuído de todas as qualidades,
possíveis ou imagináveis, de agência, intencionalidade e perspectiva. A seguinte
declaração feita por Agostinho Manduca ilustra, literalmente, essa visão: “A terra
está viva, você sabe; uma coisa está se transformando em outra”. Complementando
esta declaração acrescento outra, proferida por Augusto: “A floresta têm seus ibu
(genitor, criador, dono, guardador, plantador), tudo tem seu ibu."
Alteridade para os Kaxinawa não significa a falta de humanidade,
39
subjetividade ou agência mas ininteligibilidade e diferentes modos de perceber e
olhar as coisas, implicando o relacional e, nunca, o essencial e o substancial. Os
deuses canibais Inka, os brancos e os inimigos não são vistos enquanto,
intrinsecamente, canibais incontroláveis ou bestas-feras; eles se comportam deste
modo não em função de qualquer qualidade inerente mas em virtude de um
determinado tipo de relação, uma relação de excesso de alteridade que um “eu”
pode suportar. Mais uma vez, para ser capaz de lidar com a alteridade deve-se
aprender a tomar-se outro ou imitar o ser outro no sentido de captar seu ponto de
vista no mundo e, assim, ganhar poder sobre a situação interativa.
Apesar de expressar posições reversíveis entre presa e predador de modo
similar aquele expresso pelos Wari, a oposição ontologicamente fundante para os
Kaxinawa divide o mundo de um modo diferente. O tema central aqui é a relação
entre o “eu” e o “outro”, huni (nós, propriamente humanos) e nawa (outro, inimigo
potencial). Esta relação não denota uma reversibilidade de posições em que sujeito
significa agência e objeto passividade, mas uma intersubjetividade em que ambas
as posições apresentam a qualidade da agência e da subjetividade. Isso parece
explicar porque o termo nawa pode ser representado, ao mesmo tempo, enquanto o
predador mais poderoso e como vítima humanizada de uma expedição de caça: ele
é um inimigo que significa, ao mesmo tempo, vítima e agressor. Como resultado
deste processo percebe-se uma ontologia em que os seres assumem uma posição
subjetiva; a diferença aqui é entre o conhecido, agência propriamente humana
(social) e o desconhecido, a agência imprópria e anti-social. Em um nível
sociológico o problema, é mais uma vez, o da afinidade.
Outro elemento presente em todas as relações, e neste ponto retomamos a
Lévi-Strauss (1991) e Dumont (1980), é que em relações antagónicas entre
diferentes seres (e todos os seres são diferentes) sempre há desequilíbrio de poder,
apesar de ser hipoteticamente reversível. Essa visão é expressa pelo lugar que
ocupam os gêmeos no pensamento ameríndio. Na mitologia ameríndia os gêmeos
nunca são pensados como idênticos10. A diferença entre os gêmeos está posta

10
O oposto ocorre no imaginário Indo-Europeu e seus mitos sobre gêmeos, em que a
40
desde o início, considerando-se um fato incontestável, um fato pleno de
consequências, ou seja, um dos gêmeos nasce primeiro. Deste fato deriva todos os
tipos de diferenças não oposicionais mas sim graduais. Entre os gêmeos existirá o
menor e o maior, o mais forte e o mais fraco e, um aspecto que todos os meus
informantes insistiram em frisar, o com sorte e azarado. Esta lógica da diferença
gradual, do mais velho e do mais moço, do menor e maior, repousa na base do
dualismo de metades e em toda conceitualização de complementaridade nas
relações e no mundo.
No pensamento ameríndio, a idéia de duplo implica, portanto, diferença.
Duplicidade na singularidade é possível, o que não é possível é a igualdade
duplicada. A idéia é a criação de seres de uma mesma classe, significando,
similaridade suficiente que garante o entendimento entre eles, não clones e
réplicas. Uma simetria perfeita nunca será encontrada no mundo. Esta idéia
encontra-se na arte Kaxinawa. Simetria na arte é retificada por um pequeno
detalhe assimétrico que transporta a idéia de identidade distinta. É o detalhe, a
dissonância, que dá vida ao trabalho artístico, assim como vida em si mesma.
Deste modo, o estilo gráfico Kaxinawa pode ser visto como a visualização do valor
social da autonomia pessoal que se manifesta em sutis detalhes idiossincráticos,
escondidos no padrão global de simetria e igualdade. O efeito studium-punctum
descrito por Roland Barthes (1980) se aplica a este estilo gráfico.
O studium, ou o discurso dominante, seria neste caso a repetição de
elementos iguais num ritmo simétrico e o alto valor dado a execução delicada de
finas linhas paralelas. O estilo gráfico Kaxinawa é caracterizado pelo horror
vacui: toda a superfície dos corpos pintados deve ser coberta com desenhos e
nenhuma linha pode ficar aberta. O padrão pode ser cortado onde a superfície
pintada termina, sugerindo uma continuação do mesmo padrão para além daquele
suporte. Isso demonstra a função do desenho como algo que une mais do que

fascinação pelos gêmeos deriva exatamente de sua qualidade de intercambialidade


hipotética (Lévi-Strauss, 1991:299-320). A especulação indo-européia sobre gêmeos está
intrigada pela possibilidade da identidade dividida (spHt identity), enquanto nos mitos
ameríndios a idéia de duplicidade já carrega consigo a idéia da diferença.
41
separa. O desenho visualiza a qualidade yuxin (força animadora) que permeia o
mundo Kaxinawa separando-o dos povos sem (um olhar para o) desenho.
O punctum é a dissonância próxima do detalhe invisível, a surpresa,
necessária para a dinâmica visual, aquilo que dá vitalidade estética ao todo, que se
manifesta como uma pequena diferença no padrão repetitivo, um ponto assimétrico
no interior de uma simetria. É necessário existir certa homogeneidade nos
elementos visuais para que a pequena diferença seja capaz de tocar nossos olhos.
A arte Kaxinawa explora elegantemente o entrelaçamento do studium e do
punctum. Desta forma, para um pano tecido ou para uma face pintada, a primeira
impressão será a de uma superfície coberta por um padrão geométrico através da
infinita repetição de unidades iguais. Um olhar mais acurado perceberá que um
losango do padrão colmeia tem um ângulo a mais que os outros. Este é o punctum
e sua ocorrência na arte Kaxinawa é sistemática (Dawson, 1975). Outro exemplo
deste fenômeno encontra-se nos colares. Se um colar de contas, por exemplo, é
composto pela alternância de seis contas vermelhas e seis azuis, em algum lugar no
meio do colar se encontrará uma conta branca perturbando, propositalmente, a
perfeita simetria e repetição do padrão". (Veja ilustração em anexo).
Esta marca sutil da personalidade do artista em peças fortemente marcadas
por um estilo, parece congruente com o modo que os Kaxinawa experienciam a
vida: criar comunidade é fruto do forte desejo de viver tranquilamente com os
parentes próximos, tomando a sociabilidade possível através da autonomia pessoal

11 Na arte masculina dos adornos de cabeça, por outro lado, o desequilíbrio e assimetria
são mais explícitos. Aqui o objetivo parece ser o de encontrar um delicado equilíbrio
através do desequilíbrio, deste modo sugerindo o constante movimento das penas. As
penas do cocar são propositalmente diferentes em tamanho para sugerir uma certa
ondulação, embora sejam normalmente da mesma cor e proveniente do mesmo pássaro
(apesar de existirem certas combinações de penas de pássaros diferentes). Caudas
compostas de distintos materiais (conchas, unhas de diferentes tipos de mamíferos, penas
de cores diferentes etc) podem estar penduradas no cocar de forma a aumentar o caráter
idiossincrático da peça, e são designadas como dciu (decoração ou “remédio” do cocar).
Como toque final, rabos de arara são postos no topo. Estes longos rabos são presos ao
cocar, envergados pelo peso de um pequeno pedaço de cera de abelha atado as suas
extremidades. Na cera são fixadas pequenas penas recortadas. O resultado é um equilíbrio
sutil e móvel de peças desiguais porém similares.
42
e o respeito pela autonomia alheia.
O estilo de pensamento perspectivo implica numa constante consciência da
possibilidade de mudança de pontos de vista, conseqúentemente, mudando o olhar
sobre o mundo. Como é de se esperar, o perspectivismo é relevante para o
entendimento dos sistemas de desenhos amazônicos. A qualidade cinética de trocar
a perspectiva entre fundo e figura quando se observa os padrões labirínticos típicos
da tecelagem e da cestaria de muitas sociedades amazônicas, foi percebida na
análise da “arte abstrata” ameríndia.
Peter Roe chamou atenção para a correspondência entre este estilo artístico
e um estilo de pensamento. O autor argumenta que a “ambiguidade visual” dos
desenhos Shipibo (grupo pano do Peru) corresponde em seu sistema de
pensamento a uma “ênfase na ambiguidade mental” (Roe, 1987:5-6).
“Ambiguidade mental” é uma expressão problemática mas pode ser facilmente
substituída por perspectivismo sem, contudo, transformar o significado primordial
I
desta analogia. Para Roe a significação da ambiguidade perspectiva na arte
indígena “abstrata” repousa no que ela nos fala da atitude cognitiva do artista e o
público pretendido. Para os ameríndios o universo é transformativo. Isso significa
que a visão pode, repentinamente, mudar diante de nossos olhos. O mundo é
composto por muitas camadas, os diversos mundos são pensados enquanto
simultâneos, presentes e em contato, embora nem sempre perceptíveis. O papel da
arte é o de comunicar uma percepção sintética desta simultaneidade das diferentes
realidades.
Roe na abordagem sobre os desenhos indígenas chama atenção para o
padrão de estilo e não para unidades isoladas constitutivas do padrão. Minha
investigação sobre o significado dos desenhos para os Kaxinawa confirma as
percepções de Roe. Quando uma leitura iconográfica de unidades isoladas parece
confusa e contraditória é necessário introduzir uma leitura mais gestaltica ou
estrutural dos padrões como um todo o que proporciona, no caso Kaxinawa, uma
melhor compreensão dos seus usos e significados. Analogias entre esse código
visual e outros códigos verbais e não-verbais, que juntos formam o pano de fundo
para a significação cognitiva e emocional do estilo artístico, são essenciais. Neste
43
sentido, estou convencida que uma abordagem especializada para arte é
improdutiva e a estética deve ser encompassada pela hermenêutica no estudo da
arte indígena assim como no da arte ocidental12.
Outra ilustração da presença do perspectivismo na arte amazônica pode ser
encontrada no estudo sobre os mitos, tecelagem e canções Yekuana (grupo karib
da Venezuela) realizado por David Guss (1989). Depois de abandonar a procura
do grande mito de origem dos Yekuana (que sabia existir em textos antigos), o
autor decidiu, em desespero, sentar-se com os mais velhos e aprender a arte de
trançar cestos. O que descobriu por este modo foi que a vida para os Yekuana é
como o trançado, ou, em outras palavras, que o trançar era a metáfora chave para a
vida entre este povo, e que fragmentos e partes do mito de origem eram trançados,
proferidos e cantados pelos velhos todos dias, no crepúsculo, quando sentavam
juntos num círculo.
Conhecimento não pode ser adquirido fora do contexto, uma vez que
conhecimento nestas sociedades é parte constitutiva da pessoa: conhecimento e
memória são incorporados e são atualizados na medida em que fazem sentido para
a criação da vida cotidiana (veja Gow, 1991, sobre história incorporada para os
Piro do Peru). Neste sentido, nossas valiosas descobertas n o campo não vem de
maneira tão acidental quanto possamos pensar. Elas surgem quando nossos
professores nos consideram maduros para entendê-las, ou simplesmente, quando se
presentifica o contexto certo, um contexto capaz de revelar não apenas o conteúdo
mas, também, a significação e o sentido prático, moral e emocional de um
determinado conhecimento.
O resultado da iniciação de Guss nas técnicas de trançado Yekuana foi um
profundo entendimento da ontologia Yekuana.
“With the abstract designs this simultaneous portrayal of a dual reality
becomes much more complex [than in the case of figurative design], Here image
and counter-image are also shown. Yet what is really depicted is the dynamic
relation between the two. Unlike the static images of the figurative designs, the

12 •
Veja Lagrou, 1995, "Hermenêutica e etnografia”. Para uma discussão antropológica
sobre a possibilidade ou impossibilidade de se considerar a estética um conceito cross-
cultural, veja o debate de Manchester “Aaesthetics is a cross-cultural category”, 1994.
44
kinetic structure of these forms creates an endless movement between the different
elements, drawing the spectator into them. Perception now becomes a challenge,
with the viewer forced to decide which image is real and which an illusion. The
duality signified by the conquest of the baskets is perceptually incorporated into
the structure of their design. Here all the oppositions in the culture (female and
male, visible and occult, Creative and predatory, poison and food) are visually
resolved. But it is not a static resolution. It is, like the daily life of eveiy Yekuana,
a constant interplay between the physical fonns and the invisible that charge
them.” (Guss, 1989).

O estilo geral de desenho Kaxinawa, designado kene kuin (desenho real),


usado na pintura corporal, cestaria, cerâmica e tecelagem é similar ao estilo do
trançado Yekuana. O jogo entre imagem e contra-imagem expressa a idéia de
duplicidade e co-presença das imagens reveladas e não-reveladas no mundo. Neste
sentido, a ontologia Kaxinawa, definindo as condições do ser e não-ser, é
totalmente dependente e ligada ao real processo perceptivo que um agente
particular esteja engajado. Uma das razões porque minhas primeiras tentativas de
ligar nomes particulares a unidades específicas do desenho não foram bem
sucedidas, deve-se ao fato da alternância cinética de fundo e figura das imagens.
Outra razão foi que os Kaxinawa não nomeiam unidades, mas padrões globais,
relações entre unidades e a alocação do desenho em um suporte. Do mesmo modo
que não existe pele que não cubra um corpo, o desenho sem um suporte não faz
sentido na estética ameríndia. Observamos, deste modo, que o que se passa com os
desenhos, ocorre, também, para o conhecimento em geral: assim como o desenho,
conhecimento necessita um coipo e um contexto próprio como suporte e razão de
ser. E é o suporte, assim como o grafismo em si, que transporta a propriedade do
desenho. Para um desenho ser propriamente um desenho (kuin) depende não
somente de suas qualidades inerentes mas, sobretudo, do contexto: é dependente
de quem pinta quem ou o que e quando ' \
Outra consequência do perspectivismo na arte e na percepção em geral é a
tradicional oposição entre aparência e essência ou entre realidade e ilusão que, a

13 Gow (1988) retoma em Lévi-Strauss uma observação fundamental sobre a relação


dinâmica entre elementos gráficos e plásticos na arte ameríndia. Para maiores detalhes e
discussão ver Lagrou, 1992.
45
partir desta nova conceituação, não faz mais sentido. Toda percepção tem algum
tipo de existência específica para ela mesma. Isso não significa que imagens e
coipos ocupem a mesma posição na ontologia Kaxinawa. A diferença entre tipos
de perceptos é produzida no interior de um quadro de referência que leva em conta
os distintos estados do ser. Uso “estados do ser” em substituição a definição
comumente utilizada para “estados de consciência” porque deste modo evitamos o
perigo de inadvertidamente opor mente e corpo14.
O estado do ser relaciona estado do coipo e estado da mente. Por isso,
quando, alguém, entre os Kaxinawa, vê fantasmas ou yuxin ou outras aparições
que não pertencem a esfera da percepção cotidiana, ninguém questionará o fato
que ele ou ela realmente viu alguma coisa, se a percepção foi ou não uma ilusão,
isto é, uma “alucinação” não será passível de discussão. Etimologicamente, ter
alucinações significa perceber (através de um ou mais sentidos) o que não existe
na “realidade”. O conceito de “alucinação” não existe na língua Kaxinawa porque
a concepção e percepção da “realidade” é radicalmente diferente.
O conceito Kaxinawa mais próximo da nossa noção de “ilusão” e
“alucinação” poderia ser “mentira” (txanikí) e, dependendo da seriedade da
experiência, “brincadeira” (beyuskí). Quando é dito que uma pessoa ou um espírito
da floresta estava somente “brincando”, nenhuma consequência perigosa é
esperada a partir deste evento. Mentir, por outro lado, pode ser mais perigoso. São
os estrangeiros, trapaceiros e espíritos que mentem e enganam. Este é um método
comum usado para distrair e guiar pessoas que andam sozinhas, inadvertidamente,
por caminhos que irão extraviá-los, fazendo com que percam a orientação e
capacidade de retomar ao mundo conhecido.
E importante frisar que aquele que “mente” sobre as percepções que não se
encaixam no mundo cotidiano dos coipos sólidos é, geralmente, não a pessoa que
viu algo e relatou o que viu para seus companheiros, mas o agente que produziu o
fenômeno percebido. Esses agentes, designados yuxin, são seres indefinidos e

14 A sugestão para usar o conceito de “estados do ser” em vez do problemático conceito


de “estados de consciência” tomei emprestada de Gonçalves(1995).
46
mutáveis sem um corpo sólido mas com a capacidade de produzir imagens,
aparições que amedrontam e confundem os humanos.
Alguns destes seres, o mais poderoso dentre eles é designado yuxibu (-bu é
um pluralizador de yiixin, significando multiplicidade e magnitude, concebida aqui
em termos de poder; veja abaixo), tem tanta potência que sào capazes de produzir
imagens e até mesmo transformá-las no que desejam. É qualidade deste ser aplicar
golpes e trapacear os humanos, capturando-os e transferindo-os para um outro
mundo: um mundo percebido e experienciado diferentemente. Uma imagem usada
para expressar a ultrapassagem deste limiar é a do yuxin “que espreme a seiva de
uma planta medicinal nos olhos de uma pessoa e transporta para sua própria
aldeia”.
Desta forma de concepção resulta que o que necessita ser determinado para
a compreensão de uma caso extraordinário de percepção é o estado específico do
ser (tanto do corpo quanto da “alma”) perceptor, assim como a qualidade do ser
percebido e do contexto da percepção. A pessoa pode estar doente ou melancólica
ou ainda, pode estar num processo de tomar-se um xamã. Pode, ainda, estar num
estado perfeitamente normal, mas o contexto pode ser propício para que os
fenômenos, normalmente invisíveis, manifestem-se ao cair da noite ou durante
uma tempestade com relâmpagos. Outro contexto em que se pode perceber
imagens invisíveis é durante o ritual de ingestão da ayahuasca.
Estes exemplos apontam que as diferentes possibilidades de percepção são
ligadas a particulares estados do ser. Alguns destes estados do ser implicam em tão
alto grau de imitação e entrada em contato com a alteridade, incluindo a mudança
da ação e da forma corporal, que pouco sobrou daquilo que poderíamos designar
por “eu real”, imerso na atividade corporal, na interação social e nas rotinas
diárias. O chamado da floresta com seus animais/pz/x/w querendo transformar sua
vítima seduzida em um deles é igualado em perigo ao chamado da cidade com sua
bebida, cachaça, e sua fascinante variedade de habitantes (nawá).
Neste sentido, não é por acaso, que os espíritos da floresta que surgem nas
viagens visionárias são, agora, desafiados pelas excitantes e perigosas visitas e
visões de visitas para as cidades de São Paulo, Lima ou a mais distantes cidades
47
dos huxu nawa, brancos estrangeiros (europeus e americanos).
Portanto, a vida e o ser de uma pessoa é visto como um processo dinâmico
com caminhos e identidades possíveis para serem seguidos e assumidas. De acordo
com estas múltiplas possibilidades de existência e perigos de transformação não
reversível em uma alteridade descontrolada, é tarefa da comunidade como um todo
e, dos adultos em particular, encarregar-se da produção da vida na comunidade
procurando transformar jovens em huni kuin, seres humanos propriamente ditos,
guiando-os através da multiplicidade de percepções possíveis, emoções e
atividades presentes no mundo envolvente, modelando suas próprias criaturas em
seres de um mesma classe, nukun yuda, “nosso corpo”.
Deste modo os adultos Kaxinawa trabalham para educar crianças com
“corpos pensantes”, sempre “pensando nos seus corpos (yuda)" (yuda representa o
indivíduo assim como a coletividade, o “corpo social”, de parentes próximos com
quem compartilha-se substâncias da vida diária). Isto significa que seus corpos
carregam pensamentos e sentimentos de fraternidade e pertencimento em função
da comida, cuidados corporais, memórias e valores compartilhados durante a vida.
Quando longe de casa, os viajantes sentirão falta da comida, da comensalidade,
estórias e cuidados daqueles com quem compartilharam e viveram a infância.
Os Kaxinawa admitem, comparando-se com os brancos, que sua educação é
extremamente permissiva pois o uso da força e da agressividade é, a todo custo,
evitado. A autonomia e o livre arbítrio é respeitado, mesmo em se tratando de
crianças. Entre adultos, as brigas, o falar alto e as ordens não são toleradas.
Conflitos são resolvidos através da evitação enquanto que a mais severa punição
infligida a alguém é o ostracismo (Kensinger, 1986b). Um arma eficiente para
impor os valores do compartilhar e da reciprocidade é a fofoca. As decisões são
tomadas somente quando as partes envolvidas concordam e quando o acordo
parece impossível, o grupo dissidente decide partir para deixar as coisas esfriarem
ou tentar a vida em outra parte. Esta moral social explicitamente pacifista e
igualitária é comum a muitas sociedades amazônicas15 e é um fator importante no

15
Como exemplos podemos citar os Piaroa (Overing, 1988, 1989), Cubeo (Goldman,
48
modo como estes povos se definem como diferentes de outros povos,
especialmente dos nawa (não-índios).
Assim, o processo de criação e invenção permanente de uma comunidade
específica e de um estilo de vida é realizado através de uma contínua negociação
entre o novo e o velho para fazer frente as mudanças de contexto de novas
oportunidades que surgem e antigas que desaparecem em um mundo em
permanente transformação.
Esta constante reinvenção da identidade face à alteridade envolvente é outra
manifestação da concepção específica que os Kaxinawa têm da noção de
identidade e diferença. Se identidade implica em alteridade, perspectivismo se
toma o elemento de ligação entre estas noções tomando-as interdependentes e
intercambiáveis.

1963), Araweté (Viveiros de Castro, 1992), Pirahã (Gonçalves, 1993, 1995), Airo-Pai
(Belaunde, 1992), Pemon (Thomas, 1982).
49

Capítulo 2. Conceitos-Chave

O par dinâmico ou as tríades que funcionam enquanto conceitos-chave no


quadro de referência ontológica Kaxinawa, podem ser somente desenhados sobre o
fímdo do estilo de pensamento perspectivo que nos permite lidar com paradoxos e
ambiguidades na referência aos seres e não-seres. Depois de ter ficado equivocada,
pelas contradições nas traduções e entendimentos, aprendi que aquilo que
designamos contradições nos ensina alguma coisa sobre um estilo específico de
pensamento. A significação e o propósito de uma ambígua distinção entre “eu” e
“outro” nos fala mais sobre a visão de mundo Kaxinawa do que qualquer tradução
aproximadamente literal ou satisfatória da palavra nawa. A intencionalidade
Kaxinawa em sua polissemia dos conceitos-chave é altamente produtiva em
comunicar um todo ontológico englobante consciente da duplicidade e da inerente
mutabilidade dos seres vivos.

2.1. Yuxin/Yuxibu (Força vital/Ser poderoso)

Yuxin é o mais extenso e o mais polissêmico conceito-chave da ontologia


Kaxinawa e, por isso, impossível de ser exaustivamente circunscrito.
Encontraremos este conceito ao longo deste trabalho e esta primeira apresentação
do yuxin- não tem a intenção de esgotar seu significado mas apenas delinear suas
características básicas.
Um dos significados do jwx/n é a qualidade ou energia que dá (anima) vida
à matéria. Neste sentido, os seres vivos “têm” yuxin. E o yuxin que dá forma e
consistência à matéria e que a faz crescer. Este é o sentido da declaração nativa
que citamos no primeiro capitulo: “sem yuxin tudo vira pó, somente casca vazia”
(Antônio Pinheiro). Assim, como contém yuxin, todas as formas corporificadas
contém uma quantidade de água. Agua, ou líquido, são veículos do yuxin-, outro é o
deslocamento de ar, o vento e a respiração. Yuxin é uma qualidade ou movimento
que liga todos os corpos inter-relacionados neste mundo.
50
Uma radical transmutação da matéria é operada através da intervenção do
fogo ou do calor. Por secar os líquidos contidos no corpo, o fogo é responsável
pela desconexão entre yuxin e matéria. O que sobra, são cinzas mortas. É o
secamento total da matéria ao ponto das cinzas brancas que coloca o coipo fora do
ciclo e re-ciclo de interconexão da matéria viva. Isso acontece, porque uma vez
totalmente seca, a carne (a palavra nami, carne, é usada para a carne dos animais e
dos humanos assim como para a polpa das frutas) está esvaziada de yuxin. O
apodrecimento e decomposição das plantas, animais e humanos, ao contrário, são
considerados não apenas como entrada no estado de morte mas, também, em um
estado de intensa mutabilidade. Este estado pode ser descrito como mais do que
vida por sua condição de estar no entre a vida e a morte, estado imanente de
transformação corporal e de acentuada atividade do yuxin. Yuxin é a força vital, a
agência, consciência e intencionalidade de todo ser vivo. É ao mesmo tempo um e
múltiplo e ninguém poderá jamais nomear esse(s) efêmero(s) ser(es) na medida em
que está(ão) fusionados aos corpos que anima(m). Neste seu estado incorporado é
percebido enquanto coipo. É o coipo da pessoa que pensa, seu coração, seus
dedos, sua pele que sabe (Cf. Kensinger, 1995). Yuxin, somente ganha existência
quando separado do corpoi(’.

a. Emergência do yuxin

Muitas atividades produtivas requerem o abate de árvores e animais.


Quando a vida escapa do corpo, surge, então, seu yuxin. Canções são usadas para
contatar o yuxin emergente. Quando árvores são cortadas durante a coleta de
frutas, a canção pede permissão para o yuxin que está sendo liberado, pede que
seja generoso com suas frutas. Inversamente, quando nixpu (uma planta medicinal
usada para o enegrecimento dos dentes das crianças) é cortado sem a invocação
apropriada do seu yuxin, a força enegrecedora não irá acompanhar os caules
sumarentos mortos e deixará o dente cinza ao invés de preto reluzente.

16 O conceito te yuxin é próximo do conceito Wari de jam (Vilaça 1992:52). A palavra


jam pode sustentar dois diferentes conceitos. No primeiro sentido jam significa uma
imagem no espelho, uma sombra, um traço, enquanto no segundo jam significa “duplo”.
51
As canções falam com o yuxin do ser em questão quando este entra em
estado liminar, entre a incorporação e a descorporificação, estado de desconexão
entre forma corporal e agência, quando, então, o yuxin emerge. É neste momento
do entre que o yuxin de corpos não-humanos é capaz de entender e responder às
mensagens que os humanos lhes dirigem através das canções rituais específicas .
Seguindo a mesma lógica, o yuxin do animal ataca os humanos uma vez que
perdeu seu corpo e, agora, está livre para assombrar o matador ou aquele que
comeu de sua carne através de imagens, como “duplos” de um corpo morto que
têm intenções de vingança . Para ser deixado em paz durante sua viagem (bai),
busca visual, o participante do ritual de ayahuasca cantará uma canção (ou pedirá a
alguém que cante) para o yuxin colérico proveniente da caça morta ou comida
durante o dia do ritual.
Yuxin não emerge apenas quando os corpos desaparecem. Nas grandes
árvores como a samaúma (xunu), cumaru (kumari), pau d’arco (nixu) e copaíba
(buxix), yuxin são ativos mesmo quando as árvores não estão sendo abatidas. Estas
árvores hospedam comunidades de yuxin descorporificados. No topo da árvore
samaúma existe uma aldeia do ‘tamanho de uma cidade’. Junto com o ni yuxin
(yuxin das árvores, corporificado na “came” das árvores) existem os yuxin dos
mortos que não residem nas árvores de forma permanente mas encontram-se de
passagem para sua morada definitiva na aldeia celeste dos Inka.
O chefe destas comunidades é um “monstro” (yuxibu), chamado Ni ihu,
mestre da floresta. Fui informada por Edivaldo, líder de Moema, que Ni ihu era
“alguém do mesmo tipo (tão poderoso quanto) do presidente do Brasil”. Ni ihu é o
“dono” da floresta, o que significa que enquanto plantador de todas as árvores
selvagens é também seu pai e continuará a exercer a função de guardião das
árvores . As canções são cantadas para pedir pennissão a este mestre da floresta,

11 O conceito de “duplo” no contexto da escatologia ameríndia foi usado por Carneiro da


Cunha (1978) e inspirado pela descrição de Vernant (1965, 1990) sobre a idéia de “duplo”
na Grécia antiga.
18 A noção Kaxinawa de ihu como mestre, guardião das espécies naturais lembra a
literatura sobre o Noroeste amazônico (Reichel-Dolmatoff, 1971; Hugh-Jones, 1979;
Overing, 1975) com respeito aos mestres dos animais. Uma diferença crucial entre os
52
assim como para os sujeitos invisíveis, habitantes da árvore samaúma, para passar
por ela em paz. A árvore samaúma é famosa por causar tontura (nixurí) e, até
mesmo, desmaio para qualquer passante desprevenido. No mito, essa capacidade é
descrita em termos de uma repentina transformação do dia em noite diante da
visão escurecida das vítimas.
Quando do plantio e da colheita do amendoim e do milho, canções são
entoadas. Neste sentido, o yuxin específico destas plantas são chamados por seus
nomes, respectivamente para ficarem acordados ou se manterem vivos dentro das
sementes. O mesmo tratamento ritual não é dado a nenhum outro vegetal. A razão
desta diferença é o status especial ocupado pelo amendoim e o milho na
alimentação ritual. Estas plantas são consideradas como “seres humanos reais”.
Isto significa que suas sementes se transformarão em humanos, ou em outras
palavras, suas sementes, uma vez comidas pelos humanos, irão contribuir para o
material do qual o corpo humano será feito.
Outro contexto da emergência do^wx/w é o do sonho ou das visões, quando
o corpo está inerte. Neste estado particular do ser, o yuxin designado nama yuxin
(yuxin do sonho, uma das denominações do “verdadeiro” (kuiri) yuxin) emerge e
interage independente do corpo com outro nama yuxin dos humanos, de
determinadas plantas e animais. Essas interações podem ter consequências para a
pessoa no outro dia, quando acorda.
O mesmo fenômeno ocorre quando o corpo sofre uma transformação e cai
inconsciente. Desmaio, que significa literalmente, morrer (mawa), liberta o yuxin
(um dos yuxin que animam o corpo, aqui o yuxin do olho), é um sinal do estado
vulnerável do corpo e de uma mudança na ordem da realidade, uma inversão dos
lados visíveis e invisíveis do mundo que toma a ação incorporada e coordenada
impossível. Inconsciência enquanto um estado é classificado dentro da noção de

Kaxinawa e os sistemas de pensamento do Noroeste amazônico, entretanto, repousa na


relação entre os animais e seus mestres. Se no Noroeste amazônico apenas os mestres das
espécies têm o poder de infligir doenças nos seres humanos, o que implica em agência e
intencionalidade, enquanto seus animais perderam esta capacidade de pensamento, entre
os Kaxinawa os mestres têm somente uma versão aumentada de um poder que não é
alheio aos animais.
53
morte porque morte não é percebida como um evento repentino mas sim enquanto
um processo de transformação na relação entre coipo e yuxin. Ao final deste
processo, os yuxin que estavam ligados àquela pessoa são liberados daquele coipo
original, levando seu poder de consciência, movimento e crescimento.

b. Yuxin inofensivos

Embora os yuxin da maioria dos animais e de algumas plantas podem


adquirir agência humana e entendimento quando descorporificados do animal ou
vegetal, alguns animais e plantas são descritos enquanto não possuindo esta
qualidade e, portanto, são “apenas” animais (yuinaka beslí) ou “apenas” plantas.
Isso significa que o único yuxin (agência) que estas plantas e animais possuem é
aquele pertencente a suas próprias espécies, habilitando-os a agir como age sua
espécie. Esses animais não têm a capacidade de assumir outros estados do ser. Eles
são incapazes de se fazer entender para os humanos e, desta forma, são incapazes
de agir contra os humanos de outro modo senão através do efeito direto de suas
ações corporais. Estes animais nunca exercerão a vingança póstuma (kupi) sobre
os humanos pelas agressões sofridas e, por isso, são considerados seres
inofensivos. Na sua qualidade de vítimas passivas, ocupam o nível mais baixo de
uma escala cosmológica dos seres que têm agência. Diz-se que o tatu “não se
vinga, ele não tem yuxin (outro que não o de sua própria espécie), ele é totahnente
liso” (Yaix kupinamaki, yuxiumakí) (Antônio Pinheiro).
Isso não significa que a única maneira que os animais com um duplo
humano se manifestam seja através da vingança. Alguns animais com muito yuxin
não se vingam mandando doenças quando são mortos pelos humanos. O jabuti “é
um xamã, ele sempre chama ex ex. Ele tem yuxin (capacidade de comunicação)
mas não faz mal a ninguém” (Ámve yuxianki, ex ex imiski. Yuxiabia haiu
kupismaki). O mesmo acontece com o jacaré cuja carne, não obstante, é muito
apreciada. “O jacaré é yuxian (xamã), mas ele não se vinga” (Kape yuxianki,
yuxiabia hatu kupismaki). No caso do jacaré deve ser entendido que Antônio está
se referindo à intenção de vingança do yuxin através do ato de mandar doenças e
não à sua capacidade, quando importunado, de atacar e matar nadadores desatentos
54
ou viajantes bêbados.

c. Animais que se vingam

Os animais caracterizados pela possessão do yuxin com a capacidade de se


vingar sem usar o corpo, pertencem à classe de seres com duplo. E somente seres
com um duplo são descritos como tendo yuxin. Estes seres são capazes de vingar-
se dos humanos, o que significa que tomam-se como humanos. Vingança implica
agência e intencionalidade, características da ação humana. Neste sentido, o que
era ou parecia ser não mais que uma caça passiva pode transformar-se em um real
inimigo.
A vingança potencial de determinados animais, através da transmissão de
doenças para parentes próximos do ofensor, é revelada para a consciência humana
através ide sua aparição em forma humana nos sonhos e visões. Como vimos
acima, a recíproca não é verdadeira: agência e intencionalidade não implicam,
necessariamente, em vingança através do envio de doenças. O que faz do jacaré e
do jabuti animais com um forte yuxin (yuxiarí), a despeito de seus yuxin não
produzirem vingança, é o fato de que existem mitos sobre estes animais, eles têm
fala, canções e também nomes próprios. Tudo isso aponta para sua humanidade
em um outro nível de realidade. Não é somente um lugar na cadeia predatória, mas
a capacidade de comunicação que é levada em consideração na produção de uma
classificação dos animais enquanto humanos, estes com um poderoso yuxin.
A explicação nativa para a aparência antropomorfa dos animais nos sonhos
e visões é que eles são seres humanos em outro plano de realidade. Neste outro
registro da realidade, o passado mítico é trazido de volta a vida através das
atividades noturnas do yuxin (imagens animadas). Essas plantas e animais são
classificadas como humanos, “têm yuxin", isto significa que tem igualmente
agência yuxin.
Sugiro, que, neste contexto, ter yuxin deve ser entendido no sentido de ter
"yuxin humano”. O duplo humano é umjwx/Tz com agência humana e consciência,
55
que tem a capacidade de assumir a forma e linguagem humana quando são
percebidos pelos sentidos humanos no outro registro de realidade. Neste mundo de
imagens o perceptor e percebido se encontram em um estado descorporificado do
ser.
Um fator importante na classificação destes seres que no tempo mítico eram
humanos é que uma vez foram huni kuin, parentes, ou inimigos dos huni kuin.
Quando referidos em linguagem ritual, o primeiro será chamado por termos de
consanguinidade enquanto o segundo será designado por txai, cunhado. De um
macaco-caiarara, por exemplo, pode ser dito: “Olhe lá! Kakanlaxu Bane. O
cunhado vilão está chegando” (Uinwel Kakanlaxu Bane. Txai itxakanika huaí!íí).
Nos tempos míticos, estes macacos eram inimigos dos Kaxinawa, chamados
Xumani. Na forma atual de animais, o único modo encontrado para se vingarem
dos humanos é enviando doenças. Os cabelos do corpo queimados e a pele destes
macacos tem um cheiro que produz tontura, dor de cabeça e possíveis doenças
(nixun, o mesmo nixun que os yuxibu da samaúma provocam). A carne destes
macacos não deve ser comida por pessoas fracas.
A maioria das caças comestíveis pertence à categoria de “yuinaka huni
kuinki", “caça com a qualidade de ser humano”. Desta declaração segue que o que
é comestível, boa comida, é fundamentalmente da mesma categoria que a dos
comedores humanos. Este é o caso dos macacos (à exceção dos macacos de hábito
noturno) e os animais considerados grandes tanto da água quanto da terra. Estes
animais têm nomes pessoais e mitos que nanam sua história particular de como
deixaram de ser humanos e transformaram-se, na maioria dos casos
voluntariamente em função de infelicidades na ordem social, em animais. Outros
mitos descrevem-nos enquanto animais que repentinamente se apresentam na
forma humana em função de ensinar ou casar com os humanos e, existem ainda,
uma coleção de mitos que relatam suas interações com outros animais
humanizados. Nestes mitos, os protagonistas não são totalmente animais porque
eles pensam e falam como humanos e nem são plenamente humanos porque nunca
perdem a forma corporal animal e o comportamento relacionado à sua espécie.
Não é porque carne é comestível, boa comida, pertencendo a classe da
56
“carne verdadeira” (yuinaka kuin) 19 que é inofensiva. O macaco prego (xinu) e o
macaco-preto (z.siz) são terrivelmente vingativos, embora sua carne seja
considerada totalmente “saudável” (kuin). O mesmo ocorre com a anta (awa),
queixada (yawa), veado (ixaxu), cotia (mari). Estes animais, e outros menos
valorizados enquanto caça enviam doença através dos sonhos. Enquanto dorme, o
bebê ou criança cujos pais comeram da carne destes animais específicos durante o
período de gestação, temporariamente “toma-se” o que os Kaxinawa designam
como o filho do animal que envia a doença. Convulsões e espasmos noturnos que
se apoderam da vítima são designados yawa bake, filhote de queixada, xinu bake,
filhote do macaco-prego, ou amen bake, filhote da capivara, citamos apenas os
mais comuns e os mais violentos.

d. Doenças enquanto processo de tornar-se “outro”

A diagnose da doença é feita pela observação dos trejeitos e gestos


corporais da vítima inconsciente, mas, também, pela história da criança. Os pais
podem ser acusados de negligência em relação às prescrições alimentares e por
isso tentam lembrar o que comeram; pequenos incidentes envolvendo a criança são
rememorados como por exemplo sustos que a criança sofrera ou sonhos; e,
fmalmente, distintos tratamentos a base de ervas são administrados. Se o
tratamento não funciona, a possibilidade de outro agente causar a doença é, então,
considerada.
Eu acompanhei o caso da jovem Filomena de seis anos de idade que

19 Ver Kensinger (1975) e Deshayes & Keifenheim (1982) para os Kaxinawa do Peru, com
relação à classificação de animais, coisas e seres seguindo um quádruplo esquema
classificatório composto pela superposição de pares kuin kuinma (verdadeiro ou próprio
ou pertencendo à esfera do “eu”/não verdadeiro ou não próprio, não pertencendo à esfera
do “eu) e bemakia/kayahi (totalmente impróprio/bom). Assim, determinados tipos de
alimento podem não ser concebidas sob a categoria de totalmente próprio ou verdadeiro
(kuin), por exemplo, mas continuar sendo perfeitamente comestíveis na maioria dos casos
por todas as pessoas. Neste caso, a comida é kuinma, não kuin, mas continua sendo boa e
de certo modo própria, kayabi. A qualidade de bemakia se encontra no extremo da escala
de impropriedade e, no caso de comida, significa que é incomestível.
57
começou a sofrer do que parecia, aos meus olhos, ataque epiléptico, seis meses
antes de minha chegada. A primeira hipótese dada a mim por seus parentes, foi
que kuxuka, o boto transformado em homem bonito, tentou raptá-la quando estava
sozinha às margens do rio. Ela caiu na água quase se afogando mas foi salva por
seu pai. Naquela noite teve seu primeiro ataque. Gotas nos olhos, banhos e fumaça
contra o kuxuka foram administradas, entretanto, nada fazia efeito e Augusto, o
herbalista, após ter observado vários ataques que acometiam a moça, afirmava que
o problema era “filhote de queixada”. Antônio, Kaxinawa de meia idade mas
continuando aprender os ensinamentos de Augusto que vem a ser seu pai adotivo e
cunhado, descreveu do seguinte modo a fenomenologia do “filhote de queixada”:
“O filhote de queixada morde a língua e empurra a gente e fica se
debatendo. Aah!, aai!, ele grita, com espuma na boca e tremendo. Ela pegou esta
doença porque seus pais comeram queixada quando sua mãe estava grávida ou
quando ela estava amamentando.” (Antônio Pinheiro)

Augusto preparou uma mistura de dez plantas, todas tendo o nome de uma
das partes do corpo do queixada (pelo, pele, testículos, orelhas etc) e falou para os
pais da moça, todas as noites e manhãs, lavarem o corpo da menina com a infusão
destas plantas. Os ataques diminuíram e depois de algumas semanas os pais da
moça deixaram a casa do herbalista retomando para sua própria aldeia. Passado
um mês, os ataques reiniciaram. Duas possibilidades foram postuladas: ou a
doença não era causada pelo queixada mas por algum outro animal que provoca
convulsões e espasmos semelhantes, ou então, os pais não tinham observado as
prescrições sexuais e alimentares recomendadas.
Do mesmo modo que Augusto estava convencido que os pais da criança não
tinham observado as prescrições sexuais e alimentares durante a gravidez e
amamentação, estava, também, convencido que eles não tinham conseguido, desta
vez, observar as ditas prescrições. Somente quando certo de que os pais iriam
observar o “jejum” recomendado, ele seria capaz de curar a doença e excluir a
outra mais perigosa possibilidade de a doença ser “filhote de capivara” (“os dentes
do filhote de capivara batem, xenx1 Xenx!, eles mordem. Sem remédio a pessoa
morre”.bakeirã hawen xeta xenx xenx amiski hawen meslekinã dauuma
58
mcrwamiskí) (Antônio Pinheiro).
O nome da doença, como filhote de queixada, filhote de capivara etc., assim
como a diagnose através da observação dos movimentos corporais da criança
inconsciente e possuída pelo agente que causa a doença, sugerem uma
interpretação da doença enquanto processo perigoso e incontrolado de tomar-se
outro. O corpo imita seu invasor de tal modo que a sua existência humana é posta
em perigo. O yuxin pode ter sido levado pelo queixada, causando a morte do
corpo, ou a pessoa como um todo desaparece, como pareceu ter acontecido,
segundo me foi contando, com jovens das aldeias do Peru que se perderam na
floresta e se transformaram em animais selvagens não sendo mais vistos por
ninguém. Uma pessoa triste ou com raiva, insatisfeita com sua relação com os
parentes próximos, é descrita como propensa a deixar-se levar pelos chamados do
yuxin durante a noite e desaparecer quando entra sonâmbula mata adentro.

e. Animais Yuxin

Animais pertencentes à categoria de “verdadeiros seres humanos” são


distinguidos dos outros animais mais perigosos que ao invés de “terem” yuxin são
ditos “serem” yuxin, não obstante, existir corpo ou existência incorporada. Sua
carne é venenosa e seus gritos predizem eventos futuros, na maioria das vezes
morte. Um dos fatores que marca a distinção entre animais yuxin normais e
anormais é se são ativos durante o dia ou durante a noite. A maior parte dos
animais ativos durante a noite são chamados animais yuxin apesar de ter exceções.
Como vimos, a anta e paca são comestíveis apesar do fato de serem ativos durante
a noite. Sua carne não é venenosa mas têm o poder de provocar doença e morte. A
ordenação do tempo através da alternação do ritmo do dia e da noite, luz e
escuridão, atividade corporal e atividade yuxin, é a chave do dualismo
cosmogônico Kaxinawa e os animais que transgridem essas fronteiras, gritando,
cantando ou movimentando-se durante a noite ao invés de dormir, são vistos como
perigosos. Estes animais são mediadores entre os dois lados da realidade que são
59
normalmente postos separados para salvaguardai’ a ordem do mundo e a vida
saudável.
Aqueles que fazem a mediação e que pertencem simultaneamente as estes
dois lados são mensageiros ou adivinhos (duaí). Assim, o kunixu maka, “um rato
que anda durante a noite” (mexumedan kaimiskí) gritando “kuntxu! kuntxu!" é um
rato yuxin\ “ele prepara para você o caminho do céu” (mia nai hai waikikí)
(Augusto Feitosa). Isso significa que escutar o seu grito é um mal presságio.
Escutar o penetrante grito da coruja, pupu yuxin, é sinal da morte de um parente
próximo. A coruja é descrita como sendo definitivamente maisjwxz/7 do que corpo.
Pássaros em geral, e em menor grau macacos que vivem nas árvores altas,
pertencem a uma classe específica e, por isso, ocupam uma posição entre o
“humano” e o animal yuxin. Especialmente os pássaros que voam alto são
considerados mediadores entre o céu e a terra e, consequentemente, entre a vida e
a morte. Seus gritos e canções podem anunciar a morte de pessoas ou de
queixadas. A Harpia (nawa leie) prediz a morte de humanos e a arara (xawa) de
chefes de aldeia (xanen ibu) e de mestras em desenho (ainbu keneya). Um pássaro
preto chamado bunta, o pica-pau (bui) e o tucano (xuke), assim como o macaco-
prego e o macaco-preto, anunciam a morte de queixadas (yawa duaimiskí). Os sons
dos pássaros e dos macacos são descritos enquanto um lamento ritual que prediz a
morte de seus parentes, os queixadas. Os pássaros de vôo alto além de predizer a
morte também predizem o tempo. Um bando de periquitos (pilsu) é sinal de que o
sol vai aparecer, enquanto o urubu afasta as nuvens para longe com seu cheiro.
Outros exemplos dos animais yuxin são aqueles animais que mudam de
forma durante a vida, como a yuxin pudu, a lagarta, que transforma-se em
borboleta (“xena bepukudu damimiskí", Antônio Pinheiro). Eu testemunhei a
reação amedrontada de uma jovem grávida, Laura Feitosa, proferindo um grito
quando viu uma lagarta em sua roça de mandioca. Ela matou a lagarta enquanto
suas irmãs mais velhas riam por causa de seu comportamento descontrolado diante
da lagarta. Não obstante, elas confirmaram a propriedade de nos movermos
rapidamente para longe daquele lugar. Laura assegurou-me que a lagarta pode
matai’ as pessoas embora não seja venenosa. Quando se vê uma lagarta em uma
60
roça, existe um grande risco de sonhar que se faz sexo com o yuxin deste animal.
Mulheres grávidas parecem estar em risco diante dos poderes transformadores
destes animais yuxin. Isto deve-se à vulnerabilidade e maleabilidade do feto em
estado de formação. Toda intervenção yuxin, como o contato sexual de uma
mulher grávida com o yuxin, pode gerar deformações na criança. Crianças nascidas
com defeitos físicos são conseqiientemente chamadas de yuxin bake ou “criança
yuxin"20.
O sapo é descrito enquanto um animal que está no cruzamento das
fronteiras entre o humano e o yuxin\ “os girinos se transformam em rãs” (Tukudu
xakada damikainmis). Juntamente com o poder de transformar o corpo durante seu
ciclo de vida e mover-se tanto na terra quanto na água, muitas espécies de sapos
têm secreções venenosas sob sua pele e outros tem a capacidade de um grito que
seduz e rapta a pessoa para outro mundo. A classe dos sapos é considerada ser
uma classe de animais yuxin. Alguns deles são considerados tão poderosos que
Augusto os classificou, não como “sendo” yuxihu, porque yuxihu são descritos
como não pertencendo a este mundo e não tendo um corpo (ver abaixo esta
distinção entre yuxihu e yuxin), mas como “tendo” yuxihu (yuxihu hayaki'). Isso
significa que eles têm poder transfonnativo e que, embora possam assumir a forma
de um corpo, sua habitação é realmente outro lugar. Eles são mensageiros dos
verdadeiros yuxihu. Augusto mencionou os loa, txaxux, panu e ixlinka, sapos que
gritam e podem abduzir suas vítimas. O mais perigoso é o loa cujo grito é
especialmente alto e assustador ao cair da noite.
No cair da noite, não se deve andar sozinho porque esta é a hora em que os
dois lados da realidade se encontram. Mulheres e crianças nunca voltam da roça ou
do rio ao anoitecer, na penumbra, mas antes desta hora e os homens raramente

20 Entre os Wayana-Apalai (Van Velthem, 1995) e os Pirahã (Gonçalves, 1995), a lagarta


é, também, considerada um símbolo chave para a transformação dos seres. Os Pirahã usam
a imagem da transformação de uma lagarta em borboleta para explicar o modo como um
novo Abaisi (Deus) surge no cosmos, enquanto que os Wayana-Apalai escolhem este
pequeno animal como epítome do comportamento predatório que caracteriza os seres
poderosos. Nesta última acepção, a lagarta torna-se um monstro voraz em miniatura, uma
imagem terrestre das capacidades predatórias dos poderosos monstros predadores que
61
fazem isso. Se os homens vão caçar durante a noite, por exemplo para tentar matar
um jacaré visto próximo ao rio, saem de casa quando já é noite, evitando, assim, o
crepúsculo.

f. A Cobra
O paradigma de mediação entre os mundos separados é a jibóia, Yube Xeni,
um animal capaz de viver na terra, nos galhos altos das grandes árvores, nos
buracos e dentro d’água. Os Kaxinawa consideram a jibóia, manã dunu, e a
anaconda, hene dunu uma mesma espécie. O fato de uma delas habitar a tena e a
outra a água é considerado uma diferença em idade e tamanho e não uma diferença
de espécies ou diferença em suas inerentes qualidades. A cobra, nas suas múltiplas
manifestações, é um conceito chave do pensamento Kaxinawa e isso será discutido
ao longo deste trabalho. Mas comecemos com as citações seguintes:
“E assim. Por exemplo, você vai copiar um mapa. Tem muitos igarapés, tem
muitos rios que passam. Você fica com aquele mapa desenhado. A mesma coisa é
o dunu (a cobra). O dunu tem, tem muitos, vários dunu. Tem esses valentões, tem
esses que matam a pessoa. Mas elas também se transformam numa dunuã (sucuri),
Yube. Se ela vê que está engrossando mesmo, ela vai para a água. Aí ela se vira
numa cobra, sucuri.”
“Ah, ela vira cobra d’água?” (eu)
“Sim, d’água mesmo. Lá ela fica e não sai mais. Lá ela produz e faz o que
quer lá. Não sai mais. Tem aldeia na água. Você vê Yube Xeni, a jibóia, na ten a
porque ele foi ferido muito, diz-se. Porque ela foi morta na tena. E por isso que
ele volta para o seco. Mas ele vive sempe na água, que é onde é a cidade deles.
Você sabe que a anta tem outra ciência também, que fica cruzando com Yube. Até
a anta cai na água e vira numa cobra”. (Edivaldo Rodrigues)

“No barranco do rio, tem o buraco onde vive a cobra. O pai (ibu) nunca sai.
Não pode, é pesado demais para se movimentar. Manda seus filhos. Ele é chefe,
chefe mesmo, como governo. Aqui, no barranco, é encantado, tem galinha e
cachorro latindo. E um lugar perigoso porque a barco pode afundar. Quando a
gente passa este remanso, sempre tem medo.” (Antônio Pinheiro)

“Antes, em tempos antigos, o xanen ibu, chefe das cobras, era Besan
(salamanta), uma cobra grande e muito velha. Agora não tem mais poder porque

habitam o céu e os mundos aquáticos.


62
passou tudo para Yube (a jibóia). Com o jabuti aconteceu a mesma coisa. Tinha
poder mas agora somente Yube tem. A cutiaia passou seu poder para a anta. É
outra geração do mundo, como Jesus está para Moisés, é assim que aconteceu.”
(Agostinho Manduca)

A jibóia é morta em rituais privados, levados a cabo tanto por homens


quanto por mulheres, com a intenção de falar com o seu yuxin no exato momento
de sua morte, quando o yuxin escapa do corpo da cobra. É somente quando morre,
ou melhor, quando descorporifica (porque a jibóia, em função de sua capacidade
de trocar de pele (uma metáfora para trocar de corpo) é considerada um dos
poucos seres neste mundo que nunca realmente morre), que o yuxin da jibóia irá
ouvir a súplica secreta de seu matador. A jibóia é mais do que um “animal yuxin"
com matéria espiritualizada ou carne incomestível.
Sendo uma das manifestações do xamã primordial Yube, mestre do mundo
aquático, com suas várias manifestações em forma de lua, arco-íris e cobra
cósmica, a jibóia não é apenas um animal com yuxin mas tem também yuxibu
(poder para transformar o mundo a sua volta). A jibóia sustenta uma relação
metoníinica direta com este princípio cosmogônico, que, em combinação com o
Inka, o mestre do mundo celeste, é responsável pela contínua criação do mundo.
Yube, ibu (criador, genitor, mestre, dono) do mundo aquático, é a manifestação do
poder transfonnacional e demiúrgico da "yuxinidade", a qualidade de yuxin que
habita o mundo das formas incorporadas e das imagens descorporificadas.
Uma das cobras d’água, colorida e belamente desenhada, é designada Inu
munu bena, outra, a escura, com padrões em sua pele é chamada inu dunu, a cobra
onça (Augusto Feitosa). O que parece interessante nesta última designações da
cobra é a junção dos símbolos complementares da onça, representante do Inka,
mestre do mundo celeste, com a cobra, mestre do mundo aquático. O que liga
ambos e assegura a inspiração para o nome é o fato da pele destes animais
apresentar motivos de desenho.
A verdadeira cobra d’água, prototípica, bem maior que a jibóia e que nunca
deixa a água, é descrita sem desenho. As cobras da água com desenhos são aquelas
que se movem entre a terra e a água. O desenho expressa o conhecimento e poder
63
da Yube Xeni (a velha, gorda jibóia) e é o resultado de sua função mediadora.
Quando grande, esta jibóia recebe o nome próprio fíadi Exeke e quando pequena o
nome Badi Sidika. Nestes nomes podemos reconhecer o elemento sol (badí)-, é a
luz do sol que revela seu desenho. É a jibóia que é morta sobre a terra que repousa
nos galhos das árvores e põe seus ovos nos ocos dos troncos, que ensina a
humanidade e dá as pessoas seu conhecimento através de seu coipo, coração,
língua e olhos. Sua carne é a única consumida crua pelos Kaxinawa 21. O contexto
específico deste ritual será abordado mais adiante.
A anaconda é descrita como não muito generosa. “É a jibóia que nos ensina;
a anaconda somente nos manda vertigens e tonturas” (Paulo Lopes). Isso é porque
Yube (a jibóia) é designada como o maior dos xamãs em função de ser um
mensageiro, nunca restrito a um único mundo, viajando do mundo da água para a
terra e retornando, trocando de pele todo o tempo, transformando-se a si própria e
o mundo a sua volta.
Outra manifestação da qualidade de ligação e de transformação do mestre
das águas, com sua capacidade de ligar domínios separados mas complementares,
é uma classe de cobras da terra que são descritas como tendo sido pássaros. Os
sinais desta identidade anterior foram guardados nas cores e padrões de sua pele.
Estas cobras são piísu dunu, periquito cobra, kana dunu, arara cobra, bawadun,
papagaio cobra, e xuke dunu, tucano cobra. A característica que une esses pássaros
transformados é sua capacidade de falai- (hanlxaki) e imitar as vozes de outros
seres. Esta imitação, agência criativa é um forte indicador de “humanidade” e está
ligado à “yuxinidade".

21 Erikson (1986:195), entretanto, menciona a consumação ritual da carne crua da onça


pelos Kaxinawa do Peru. Este ritual de consumo ocorre no contexto da iniciação
xamânica (comunicação pessoal de Deshayes). É esclarecedor ligar esta informação a
observação feita na nota 7. Se para os Kaxinawa do Peru a metade inu (onça) é ligada ao
interior (“nossa carne”), como a metade dua (ligada à cobra) o é para os Kaxinawa do
Brasil, esta aparente inversão pode ser considerada como obedecendo a mesma lógica do
consumo daquilo que é similar, ou daquilo que se quer tornar similar a si mesmo. Não se
deve esquecer, entretanto, que, mesmo se a cobra e a onça podem ser respectivamente
considerados como ligados à metade que define o pólo do “eu”, são antes de tudo
inimigos. Esses inimigos são então incorporados seguindo o modo canibalistico ameríndio.
64

g. Yuxibu, seres descorporificados do outro mundo

As múltiplas manifestações do “princípio cobra” nos coloca a difícil


questão da distinção entre yuxin e yuxibu. Por algum tempo fiquei intrigada por
esta questão porque estes termos me pareciam intercambiáveis. -Bu, como vimos
acima, é um pluralizador ou aumentativo, e conseqúentemente, juntamente com
outros pesquisadores da cultura Kaxinawa 22, eu pensava que a palavra significa
uma coletividade de yuxin ou uma versão gigante do yuxin . Até certo sentido esta
leitura ainda é valida e ajuda na tentativa de organizar o múltiplo e desconcertante
mundo das classes yuxin, e o uso aparentemente indistinto dos termos yuxin e
yuxibu quando refere-se, por exemplo, espíritos habitando grandes árvores ou
espíritos de animais que seduzem e raptam pessoas, mas a relação entre estes dois
termos é mais complexa que esse uso. Duas descrições esclarecedores de uma
diferença mais fundamental do que aquela de tamanho e de poder, e menos
simples do que uma tradução termo a termo (monstro, demónio), também,
encontrada em Capistrano de Abreu (1941), me foram dadas; uma por Paulo
Lopes, jovem professor de Nova Aliança e outra por Agostinho Manduca, um
Kaxinawa viajado do Rio Jordão que eu encontrei na cidade de Rio Branco.
"Yuxin tem o poder de virar outra coisa. Se eu estiver falando com você e de
repente me tomo outra coisa eu poderia ser um yuxin. Yuxibu é um milagre. Você
está com fome e eu sou yuxibu. Eu te dou comida na hora”.(Paulo Lopes Silva)

Seguindo essa primeira definição, entendemos que o que distingue ambos


os espíritos é a extensão de sua agência e poder criativo. Enquanto o primeiro pode
se transformar diante dos olhos de um observador, uma capacidade de
descorporifícação do yuxin assim como dos animais e plantas com um duplo, o

22 O antropólogo Terri Aquino foi o primeiro a chamar minha atenção para a possível
diferença entre os dois termos (comunicação pessoal). Outra referência à diferença em
qualidade do yuxibu pode ser encontrada nas transcrições de Capistrano de Abreu
(1941:423): “Os yuxibu vivem em grandes lagos. Cultivam grandes quantidades de
legumes. Mas as pessoas não vão lá para colher porque os yuxibu comem gente.”
Capistrano traduz yuxibu como “diablo”. McCallum faz igualmente menção de seres
65
segundo pode fazer mais que o primeiro. Como um demiurgo, criador, ele pode
transformar não apenas a si próprio mas o que está a sua volta, ele pode fazer
aparecer coisas do nada, “como por milagre”. Encontramos mais informações
nesta seguinte reflexão de um informante:
“Os yuxin são seres. Quero dizer que todos os seres têm yuxin. Mas os
yuxibu nunca foram gente ou animal; vivem nas árvores, na água. Lá eles têm sua
família e sua aldeia, sua casa. Se alimentam com as pessoas da terra, com sua
urina, seu suor. Mas têm que voltai’ para suas casas embaixo da água e nas árvores.
O vento e a chuva os carrega. Às vezes viajam muito longe, eles vão ligeiro. A
terra está viva porque os yuxibu vivem nela. Yuxibu é sempre do outro mundo, (o
mundo) dos yuxibu que ninguém vê. A diferença entre yuxibu e yuxin é como a
diferença entre o visível e o invisível.
Os yuxibu matam o yuxin da caça. Nós matamos a caça, e o yuxin (da caça)
fica para o yuxibu matar. Os que matam yuxin se transtornam em yuxibw, nos
pessoas, nos matamos somente carne. Yuxibu nunca acaba, sempre se transforma.”
(Agostinho Manduca).

A primeira parte desta citação chama atenção para a distinção fundamental


na ontologia Kaxinawa entre visibilidade e invisibilidade. Essa distinção básica
ordena todo o universo, em termos espaciais e temporais. O mundo como existe
hoje veio a surgir pela superação do dia e da noite e suas qualidades oposicionais e
complementares de visibilidade e invisibilidade. Essa distinção está relacionada a
outra oposição complementar fundamental: forma corporificada e
descorporificada. O tempo do dia no domínio da visibilidade dos corpos (yuda),
tempo da noite da revelação ou visualização de imagens, de yuxin flutuando
livremente. “O yuxibu nunca foi animal nem gente”, “vai muito rápido” e são
“sempre do outro mundo”, estas sentenças extraídas do discurso do informante,
apontam para sua completa alteridade em comparação com os seres deste mundo:
humanos, animais e plantas. Enquanto os primeiros, yuxibu, são livres, leves e
rápidos, os segundos, yuxin, são caracterizados pelos movimentos limitados por
sua ligação a corpos pesados, formas fixas pela inércia da matéria.
Yuxibu vive suas vidas escondidas dentro d’água, nas árvores, na terra e no
céu (embora esta último lugar de ocorrência foi omitido por Agostinha em sua

yuxibu em 1996.
66
explicação). Sua existência corporificada não é deste inundo e os Kaxinawa
somente têm acesso a elas quando visualizam-nas na escuridão da noite através da
experiência onírica ou com o auxílio da bebida alucinógena ayahusaca. Somente
os yuxin dos humanos, e não seus corpos em estado de vigília, tem acesso aos
seres yuxibu. O “sonhar bem” é “m/x/ pae keskcT, “igual a experiência visionária
do ayahuasca”, uma razão porque os velhos não precisam mais da bebida para ter
acesso ao invisível mundo do yuxibu.
Quando me ensinava sobre este tópico, Augusto, o líder de canto, começou
por me acordar de madrugada, narrando seus sonhos em forma de canções. Estas
canções narravam visitas as aldeias (mae) dos yuxibu. Canções de sonhos são
chamadas yamai e são misturadas às canções de guerra (designadas pelo mesmo
termo). As canções de sonho e as de guerra são mais melódicas e, apesar disto ser
uma impressão subjetiva, as mais carregadas de emoções que escutei entre os
Kaxinawa . As aldeias que Augusto e sua esposa Alcina visitaram em seus sonhos
foram localizadas sob a água e, também, no céu. No céu eles visitaram as casas da
lua e das estrelas, enquanto debaixo d’água eles estiveram nas aldeias da anaconda
e do jacaré. O mundo celeste têm sua versão celestial dos seres vivos que habitam
a terra e a água. Por isso, lá existe o nai awa, a anta celestial, cujos rastos podem
ser vistos na via láctea, e a nai nexuã, a tartaruga celestial, pondo seus ovos no
verão, um fenômeno visível na forma de constelação que surge no mês de agosto,
anunciando que os ovos de tartaruga poderão em breve ser encontrados nas praias
dos grandes rios de baixo (desta terra).
É somente o yuxin dos humanos e não sua carne que os yuxibu querem
consumir. Mas, se, como aprendemos da citação, “eles se alimentam das pessoas
da terra, com sua urina, seu suor”, toma-se, então, difícil distinguir entre yuxin e
matéria. A urina ou o suor são yuxin ou matéria? O paradoxo poderia ressurgir se
consideramos que yuxin somente toma-se ser ativo quando separado e agindo
independentemente do corpo, seguindo a lógica do duplo. No mesmo sentido, as
secreções corporais, especialmente aquelas que se apresentam em forma líquida,
são yuxin ou contém um alto grau do yuxin. E através do suor, urina e fezes que os
seres humanos alimentam a terra, as águas e seus habitantes yuxibu. Esses hábitos
67
alimentares do yuxibu (seres do outro mundo) podem ser vistos como marca da sua
diferença em relação a seus próximos, os yuxin. Se yuxin e yuxibu comem apenas
yuxin (essência vital), eles não fazem isso do mesmo modo. A citação que vimos
acima sugere que os hábitos alimentares do yuxibu são inofensivos para os corpos
dos humanos. Eles representam a circulação da essência vital entre diferentes
domínios do mundo. Mas existem exceções: o yuxibu chamado monstro ou
demónio.
Estes monstros, como outros yuxibu, são provenientes do outro mundo (isto
é, um mundo em que nenhum ser humano vive), mas seus lugares de morada não
são muito longe. Eles vivem em grandes árvores e são descritos como canibais.
Um exemplo é Nibu bakapiana (talvez uma tradução possível seja: “escorpião que
come peixe” ou “escorpião que come sombra”), também designado nixun yuxibu,
um monstro preto cabeludo que vive na árvore samaúma, provoca tonteira nos
passantes e os mata enquanto dormem.

h.Vivendo com um seryuxin

Diferentemente dos yuxibu, os yuxin costumavam ter corpos e foram uma


vez ‘deste’ mundo. E por esta razão que são invejosos do coipo dos humanos e
continuam dependentes e desejosos destes. Quando um ser humano vive em
contato descontrolado e próximo com yuxin, ele ou ela fica magro. Isso é
explicado pelo fato que o yuxin que vive com ou na pessoa, come com aquela
pessoa. Sugando o yuxin de sua comida, pouco valor nutritivo sobra e o
“hospedeiro” toma-se fraco. Magreza é sinónimo de doença.
Outro resultado da convivialidade descontrolada com yuxin é a erupção de
‘perebas’ (txuxix,) no yuxian (aquele que se entregou ao yuxin). Essas erupções
não são devidas à má nutrição que resulta da insaciabilidade do hóspede/parasita,
mas ao excesso de ingestão pelo hospedeiro de substâncias que não pertencem à
categoria comida. O yuxin tem sexo com os humanos penetrando através da boca.
O intercurso sexual de uma mulher que vive com um yuxin foi descrito em termos
ÁREAWDÍGENA
A VALE DO JAVARÍ Envira
T ACRE E REGIÃO ADJACENTE

Feijó

R.T*r*uacá Manuel
R. Muru
Urbano R. Puruí

Sena
Madureira
ÇNoya Aliança

Moemi
I. Envira
Rio Branco

R. Curanja

R. Ucayalí I Brasiléia
Brasil
Peru
Bolívia
68
de um sem fim de penetrações levadas a termo por uma coletividade de yuxin, os
familiares do yuxin vivente coin/dentro da mulher23.
Essa excessiva ingestão oral do sêmen do yuxin, associada com a falta de
ingestão suficiente de comida verdadeira, leva à perda da saúde e de força vital e
se manifesta na desfiguração do corpo. A inversão do comportamento sexual e do
processo alimentar apropriados, transforma a pessoa humana lentamente em uma
vítima do yuxin e depois de um tempo a pessoa doente toma-se irreconhecível. Ele
ou ela perde a consciência e a fala propriamente humana, come apenas folhas e
moscas, que são a comida dos yuxin e nunca toma banho. A pessoa fica coberta em
seus próprios excrementos e secreções, veste-se com folhas de palmeiras e aplica a
pintura do urucum em excesso.
Esse tipo de convivialidade com o yuxin necessita ser curado com ervas e
encantações. Para evitar a recaptura pelos yuxin, a pessoa é tratada com o sumo de
plantas espremido nos olhos, ou com banhos e folhas queimadas. Se decidir aceitar
o desafio da iniciação para se tomar xamã, a pessoa, seja ela homem ou mulher, se
retira em sua rede e começa a fazer dieta com a intenção de ganhar controle sobre
a relação com o yuxin de maneira que possa usar esta relação para o bem-estar dela
própria e de sua comunidade.
A pessoa ganha familiaridade com yuxin e yuxibu específicos com os quais
estabelece laços que o guiarão no mundo imaterial. Esses novos laços servem de
proteção aos ataques predatórios movidos pelos espíritos. Mas, coabitação com o
yuxin têm o seu preço no que se refere aos “prazeres mundanos”. O iniciado não
come carne e comidas doces e não pode ter relação sexual durante seu
aprendizado.
Eu soube de uma mulher que era aprendiz yuxian (xamã). Delsa, primeira
das duas esposas do líder da aldeia Fronteira, tomou-se uma depois de uma

23 Vale a pena chamar a atenção para o contexto em que obtive esta informação. Augusto
me descreveu esta cena repulsiva e ameaçadora em detalhe e com sorriso irónico,
alertando-me para os perigos de um interesse exagerado no assunto. “Se perguntar demais
sobre yuxin”, me disse, “os yuxin virão te pegar!” Depois desta afirmação, sugeriu que
acompanhasse as mulheres para o roçado.
69
experiência assustadora em um dos lugares mais perigosos da alteridade conhecido
pelos Kaxinawa: o hospital. A estória que ela me contou, passo a nanar. Delsa,
grávida de seu último filho, estava na cidade acompanhando seu marido. Quando
estava prestes a dar a luz, os médicos queiram operá-la de modo a esterilizá-la. Os
médicos agiram de acordo com o desejo de seu marido. Delsa, entretanto, recusou
veementemente. Ela disse que se quisesse não ter mais filhos ela poderia usar seus
próprios métodos para evitar a gravidez. Na sociedade Kaxinawa são as mulheres
que controlam a fertilidade e não os homens.
Deste modo, no hospital e próximo a dar a luz, Delsa “ficou doida”. Ela
gritava e batia, não queria deixar os médicos levarem a diante a esterilização.
Quando teve seu ataque, Delsa teve visões. O hospital, lugar onde as pessoas vão
para morrer, tem uma alta concentração de yuxin. Depois de algum tempo, quando
já tinha retomado para a aldeia, Delsa aprendeu a ter controle sobre suas visões.
Primeiro ela começou a receber visitas e ensinamentos de seu falecido pai,
quem foi, também, umywx/aw (xamã), e depois se “casou” com Yube Xeni (o yuxin
da jibóia). Deste momento em diante o espírito da cobra vinha fazer sexo com ela
todas as noites. Em função deste novo marido espiritual, Delsa diz que não faz
mais sexo com o seu marido. Um dos sinais de sua aliança com o mundo dos yuxin
é sua boca deformada, as pessoas dizem que o yuxin está comendo sua boca, outro
sinal é seu sucesso em curar febre em crianças pequenas.

i. Diferentes tipos de yuxibu


Retomemos, aqui, nossa discussão a propósito de yuxin e yuxibu. A
diferença nos hábitos alimentares entre os dois está relacionada a diferentes
lugares de habitação. Para os yuxibu, as moradas dos seres mundanos (humanos e
animais) são lugares para ser visitados somente em expedições de caça. Suas
próprias casas estão longe, do outro lado da realidade (a profunda floresta
inexplorada, os lagos e rios, as altitudes do céu). Os yuxibu são caracterizados por
movimentos rápidos e suas visitas são transitórias. Alimentam-se das secreções
70
corporais ou, no caso dos monstros, de puro yuxin extraído de corpos mortos. O
yuxin parasita, por outro lado, escolhe o coipo humano como lugar de morada, e se
nutre dentro dela da carne humana, matéria repleta dej/zm/?.
Os três yuxibu mais poderosos são ibu (criador, genitor, guardião, dono) dos
três níveis interconectados deste mundo: água, floresta e céu. O termo ibu descreve
uma qualidade demiúrgica de criação, assim como uma contínua responsabilidade
pela criação, e tem, por isso, uma conotação de liderança e
patemidade/matemidade. No mundo social, o termo ibu significa acima de tudo
mãe e pai, e, por extensão, líder. Os diferentes líderes da comunidade são
designados como ibu; o homem e a mulher chefes de uma aldeia, xanen ibu e
xanen ainbu ibu; o líder masculino de canto, ixana ibu; e a líder de canto feminina
e mestra tecelã, Ixana ainbu ibu ou ainbu keneya (literalmente “mulher com
desenho”). No nível cosmogônico, os donos e criadores do mundo são Yube/\ua, o
ibu do mundo aquático; Inka, o ibu do mundo celeste; e o Ni ibu, o guardião das
plantas da floresta.
Os yuxibu menores são guardiões e criadores de determinadas espécies. O
termo yuxibu é usado quando o falante quer deixar claro que ele está lidando com
mestres de coletividades de seres pertencendo a uma mesma classe, e não com os
yuxin de uma planta ou animal particular. Deste modo pode-se dizer do algodão
que ele tem yuxin e ‘é gente’, mas seu dono, ibu é xapu yuxibu, uma entidade
protetora invisível invocada para curar doenças. Os guardiões de uma espécie são
versões gigantes (nawa) do animal natural da espécie. Um rnukaya (xamã, “aquele
com o amargo”) totalmente iniciado pode, ao sentar-se em sua rede à noite, deixar
esses donos masculinos e femininos das espécies, yawa yuxibu, awa yuxibu etc.,
vir e falar através de sua boca (ou, como dizem alguns, no seu pescoço). Cada uma
destas entidades tem nome, canção e voz próprios.
O mundo aquático é o lugar, par excellence, da procriação yuxibu. Os
yuxibu da água são o peixe-boi (bakawa), o boto (kuxuka), o jacaré (kape) e a
anaconda (dunua). O peixe-boi vive onde o barranco do rio é alto e a água
profunda. Sua carne é descrita como misturada: “Tem carne de verdade, e também
carne de peixe, tem carne de veado, de queixada e de anta” (Antônio Pinheiro). Se
71
uma mulher comer esta carne enquanto estiver grávida de gêmeos, os corpos das
crianças nascerão com um brilho reluzente. O brilho é sinal de pertencimento a um
outro mundo e as crianças morrem imediatamente depois do parto (yuda txaxa
kaini mawamis, Alcina Pinheiro).
Encontramos o boto (kuxuka), referido acima, no caso de Filomena. O boto
é tido como responsável por todas as mortes por afogamento. Devido ao fato dos
Kaxinawa saberem nadar bem, as pessoas somente se afogam quando estão
bêbadas ou quando perdem seus sentidos. Ficam inconscientes e o kuxuka surge
para raptar suas vítimas para o mundo aquático. O guardião dos jacarés, kape
yuxibu, chamado Taratxamani, é conhecido e evocado por causa da sua saúde
infalível e pessoas procuram sua proteção contra picadas de cobras, através do uso
de colares produzidos de seus dentes. Esses colares são designados como “dau”.
Dau é um conceito polissêmico capaz de significar veneno, remédio, encanto e
ornamento, com diferenças em ênfase dependo do contexto.
Deixando o mundo da água e retomando para a tena, encontramos um
yuxibu que tem a capacidade de pular entre várias espécies, trocando sua pele, isto
é seu corpo: o esquilo, kapa yuxibu, guardião (criador) das plantas cultivadas. Um
mito nana como este yuxibu, depois de ter dado a arte do cultivo de plantas para a
humanidade, libertando-a do estado miserável de ter que sobreviver comendo tena,
toma a fonna de um morcego, kaxi, para se vingar de sua mulher infiel e de seu
amante. O morcego corta com os dentes o pênis de seu rival humano, e o dá para
sua esposa, preparado na fonna de um veneno que a mata.
A manifestação tenestre deste yuxibu é o morcego vampiro, nawa kaxi, que
era temido por chupar o sangue e cortar pedaços da pele do nariz e dedos do pé
das pessoas antes da introdução do mosquiteiro, quando os Kaxinawa viviam em
grandes malocas nas cabeceiras dos rios. O morcego é tido como capaz de “plantar
muka" dentro do coração de uma pessoa, a substância amarga que transforma uma
pessoa em xamã ("kaxm mikin muka mistukin", Augusto Feitosa e Antônio
Pinheiro). No coração a amarga substância xamânica irá crescer até que seu yuxin
72
esteja maduro e possa assobiar24. Deste momento em diante o xamã pode usar esta
substância amarga para atacar suas vítimas. Para capturar suas vítimas, o yuxibu do
morcego, arma uma armadilha numa trilha de caça, transformando assim o caçador
em caça.
“O morcego lhe dará seu pae, sua força. Quando você cai na armadilha, ele
pode lhe transformar em um rato, em kunlxu maka, o rato yuxin que anda de noite.
Enquanto você está deitado, ele abre sua boca. Espera você cair, pronto para bater
com a borduna. Você chega e ele bate. Você cai com sangue na boca. Não fala
mais nada. Talvez morrerá lá mesmo. Você deitado, morto, e o yuxibu grita, haaa\,
para os outros virem olhar.
Seus parentes chegam e dizem que você já está morto e que os yuxin já se
foram. Vão chamar os parentes. E aí está você, deitado, morto. Sacodem para lhe
acordar, lhe chamam. Lhe chamam de novo e você começa a acordar. Agora você
já está acordado.
Seus parentes sempre choram. Mas ele já está acordado e dentro do seu
coração o yuxin começa a cantar Xei! Xei! Xei! Xei! É o yuxin que canta Xei! Xei!
O yuxibu do morcego sempre planta muka (a substância xamânica amarga) no
coração da sua vítima. Coloca o yuxin que canta xeuxeu dentro, coloca o muka
dentro.( Agora já está crescendo. Quando o yuxian, aquele com yuxin, está
dormindo, seu yuxin sempre canta Xeuxeu! Assim as pessoas falam com sue yuxin,
enquanto ele dorme
“Você, quem é você?” “Eu? Eu sou eu mesmo”, responde o yuxin. “É você,
pai?” “Sou eu, meu filho”, responde. “Como vai você?” “Estou olhando você, meu
filho, para você não ficar doente, tome cuidado.” Pode perguntar qualquer coisa
que quiser. Pode perguntar se há visita de longe que está chegando, ou se vão
trazer uma caça grande no dia seguinte. Ele vai dizer. “Você vai matar veado”,
“Amanhã você vai matar veado.” E assim saíam antigamente para caçar. Você fala
com todos os yuxin. O mukaya, quando acorda, nunca lembra nada.” (Antônio
Pinheiro)

Aqui, vemos de novo o quanto iniciação e doença estão próximas na


classificação nativa dos estados do ser. A introdução de grandes doses de
“yuxinidade” pode causar o enfraquecimento da vítima que acaba perdendo seu
próprio yuxin, mas pode também significar o início do crescimento de uma nova
força dentro do corpo, um poder que, uma vez maduro e crescido como uma

24 O último mukaya morreu em Conta há aproximadamente dez anos. Seu filho, Leôncio, é
liderança de Conta, aldeia Kaxinawa do lado peruana, próxima à fronteira com o Brasil. É
um cantor de cipó reconhecido. Ao explicar-me a “profissão” do pai, Leônico salientou
duas caraterísticas do mukaya'. o fato deste ser inconsciente quando os yuxin vêm falar
através dele, e o fato dele ter o poder de chupar e extrair o duri, substância xamânica dos
73
árvore, irá assobiar para fazer sua voz ouvida e pode ser usado pelo iniciado
mukaya para curar e causar doenças25. O corpo e o poder do xamã são resultados
de uma predação mal sucedida. O xamã é um guerreiro que conquista um inimigo
no campo de batalha representado pelo seu próprio corpo. Os agentes intrusos,
uma vez controlados, tomam-se aliados e, embora obedeçam determinadas regras
prescritas pelo mundo e sensibilidades dos seres yuxin, é o xamã que controla a
interação usando seu poder para seus fins26.

j. O código culinário

Retomando à citação de nosso informante Agostinho, podemos ver dois


fatores definindo o que diferencia a condição de yuxin da deyuxibu (seres de outro
mundo). A primeira diferença foi a distinção entre visível e invisível, deste mundo
e do outro mundo, uma distinção ligada às suas moradas e ao fato de estarem ou
não vinculados a um corpo. Yuxibu nunca foram animais ou humanos, isto
significa que nunca tiveram este tipo de corpos, enquanto os yuxin foram ou são. O
segundo fator definidor é que a identidade da pessoa depende do que ela come
(uma compreensão que nos leva de volta ao código culinário estabelecido por
Lévi-Strauss nas Mitológicas).
Esse é um ponto que necessita maior elaboração. Esta maneira de classificar
os seres é perspectivista no sentido que é a intenção predatória que determina

Culina.
25 Deshayes (1992:95-106) estabelece interessante paralelo entre a substância yupa que
entra o corpo do caçador deixando-o 'yupa' (surdo pra os sons da floresta, e incapaz de
encontrar a caça) e a substância de nuika que igualmente altera a capacidade auditiva do
caçador, transformando gritos de animais em conversa inteligível. O resultado da ‘surdez’
do caçador é desastroso e a vítima seguirá dieta assim como usará ervas para tentar se
curar, enquanto a alteração auditiva do xamã pode ou não ser aceito pela ‘vítima’, para ser
usada a favor da comunidade, nas suas negociações com os yuxin.
26 A mesma lógica de predação malsucedida que se transforma em poder criativo para a
pretendida vítima pode ser encontrada na teoria da concepção Pirahã. Quando uma mulher
é assustada por um evento natural não esperado, concebe. Desta maneira, se o evento
assustador não mata ou machuca a vitima, não deixará por isso de causar profundos
efeitos: escapando à intenção predatória, uma nova vida é concebida (Gonçalves, 1995).
74
como um ser é percebido: se como caça ou não. A diferença entre jwxzh e yuxibu é
determinada, não apenas pela qualidade cambiável da visibilidade ou invisibilidade
de um ser, mas pelo que este ser come. Nas palavras de Agostinho: “aqueles que
comem yuxin tomam-se yuxibu." Vimos, no entanto, que o yuxin também come
yuxin (essência vital). Mas o yuxin comido por yuxin é yuxin que ainda não se
separou do corpo, vegetal, animal ou humano, que anima. Os hábitos alimentares
do yuxin e dos humanos são simbióticos. Alguns yuxin, entretanto, comem
alimentos nunca comidos pelos humanos, como moscas e folhas, comida yuxin.
Assim faz o yuxian, o xamã, no seu processo de tomar-se yuxin. Os Yuxibu nunca
comem yuxin (essência vital) vinculado a um corpo e nem moscas ou folhas.
Yuxibu, superlativo de yuxin, come apenas o puro yuxin, isto é, o yuxin das
secreções de um corpo vivo ou o yuxin que escapa de um corpo morto.
Pode parecer, deste modo, que os territórios de caça deste mundo e do outro
mundo estão claramente divididos, mas esse não é totalmente o caso. Os territórios
de caça estão sobrepostos e o risco de cruzar fronteiras e trocar o ponto de vista
representa um real perigo para o caçador que pode se perder e se transformar em
“outro”, como animal e caça para os yuxibu e yuxin. Quando o caçador persegue
sua caça tem intenciona apenas sua carne. Quando os yuxibu estão perseguindo
suas caças intencionam tanto yuxin do caçador como o yuxin da caça (Cf.
Deshayes & Keifenheim, 1982). A sobreposição das atividades de caça ocorre
quando os humanos estão caçando pássaros para obter penas e plumas.
Quando se atira em arara, por exemplo, grandes cuidados devem ser
tomados em função de não deixá-la cair diretamente sobre o solo. O pássaro deve
ser pego ainda quando está caindo, no ar (em processo de descorporificação do
yuxin). Isso é importante para não se perder o yuxin da pena, “senão o seu “dono”
leva ele embora e as penas tomam-se frágeis e quebradiças perdendo toda a
resistência”, Antônio Pinheiro). O dono ou guardião que irá levar o yuxin é xawã
yuxibu, guardião das araras. Podemos observar que, quando estão caçando
pássaros para obter penas, yuxibu e humanos estão competindo sobre a mesma
75
substância 21.
Como vimos acima, alguns animais são descritos não somente como tendo
um forte yuxin, mas por serem mais do que isso, não apenas animais nem humanos
disfarçados na forma animal, e nem mesmo um yuxm animal com perigosas
canções e carne venenosa, mas um verdadeiro yuxibu. Nas palavras de Agostinho:
“estes animais não são deste mundo”. Ser yuxibu significa possuir poderes
transformativos extraordinários. Esses animais podem mudar de forma quando
querem e então serem vistos não apenas enquanto animais que estão na realidade
humana, mas seres que são mais do que humanos, eles são demiurgos, mestres da
transformação. Eles são yuxibu porque são mais yuxin (agência, potência) do que
coipo e portanto não precisam estar ligados a um corpo específico para agir de
forma “incorporada” no mundo. Pessoas e animais são mais corpos que yuxin
porque não podem trocar sua pele quando querem, estão confinados à sua forma
corporal para o resto de suas vidas.
Em função dos seus hábitos alimentares, animais sanguessugas e predadores
têm um estatuto especial no sistema classificatório. Esses animais são algumas
vezes descritos “como humanos”, isto é, como tendo a agência e pensamento
humanas e outras vezes são classificados como yuxibu. Então, o mosquito, bi, e a
mutuca, xiu, são descritas como sendo yuxibu, nomeadas, respectivamente,
Taukanixetxantxa e Mancxetunku. A mutuca preta, por outro lado, é uma mutação
de um homem dos tempos primordiais, chamado Ixan, cujo envolvimento amoroso
causou a mais dramática das transformações sofridas pela humanidade no começo
dos tempos da criação (veja a capítulo 4). O sinal de potência aqui é o hábito de
“sugar sangue”. Sangue é um veículo do yuxin e por isso extremamente perigoso
28. Seguindo a lógica que a pessoa se toma o que ela come, o ser que come sangue
adquire uma grande quantidade de yuxin, aproximando-se, portanto de um ser

27 Veja Crocker Vital souls (1985).


28 É interessante notar neste contexto que os Cashibo (pano) consideram sangue e, por
estenção, animais que sugam sangue como tão perigosos que, para evitar sujar-se com
sangue, proíbem formalmente a matança dos numerosos insetos que os atacam (Frank,
1983:68, citado por Erikson, 1986:196).
76
yuxibu.
O consumo pelos homens do coração e da língua cruas da jibóia e o
consumo de seus olhos pelas mulheres, nunca ocorre em contexto de consumo
alimentar, pertence à esfera do ritual privado realizado secretamente na floresta.
Consumo de sangue e pedaços crus de uma cobra recém morta significa aquisição
de suas qualidades, seu conhecimento, xinan, seu poder mágico para caça,
tecelagem, feitiçaria e fertilidade. O consumo de sangue está próximo do consumo
de puro yuxin. Considerando o fato que o propósito primeiro da alimentação não é
adquirir as qualidades do ser que é consumido (algo que, pelo contrário, na
maioria dos casos evita-se, através da cuidadosa preparação e cozimento), mas
adquirir substância, corpo, força, o consumo de órgãos crus e do sangue representa
uma atividade que não pertence à categoria do consumo alimentar. Se um ser
humano estivesse comendo carne crua fora de um consumo ritual, seria
considerado não mais humano, alguém que pertence à categoria dos inimigos e
feras selvagens que consomem carne crua, como a onça, ou o monstro canibal Inka
pintsi (Inka faminto por carne). A lógica da comunhão de substância com a jibóia é
de uma outra ordem: uma comunhão de poder e conhecimento através do
compartilhar substâncias corporais cruas.
Outra importante distinção a fazer no código culinário é a distinção entre
predação e vingança. Humanos predam os herbívoros e omnívoros e não predam
os carnívoros, enquanto os carnívoros podem predar os humanos. O que é
consumido não é comido em função de sua qualidade de alteridade mas por causa
de sua similaridade. Dentro da classe de comestíveis, prefere-se a carne do
omnívoro queixada, considerada macia e saborosa, do que a carne ‘dura’ dos
macacos herbívoros. A carne do queixada lembra mais do que outras caças o sabor
da carne humana cozida, um fato mencionado por Augusto, único Kaxinawa com
quem falei sobre sua experiência de comer carne humana (prática endocanibal
abandonada nos anos quarenta ou cinquenta). Esta similaridade em sabor, textura e
qualidade (em função dos queixadas serem classificados não apenas como
humanos (huni) mas como verdadeiros humanos (huni kuin), nukun yuda (nosso
corpo, nossa carne) é uma das razões porque esta carne tem um alto valor e é
77
considerada um alimento relativamente inofensivo. Este exemplo revela uma
lógica culinária do comer que implica que o que alguém come irá se tomar sua
carne e por esta razão não deve-se comer aquilo que é demasiadamente diferente
de si mesmo. Como vimos, a mesma lógica sustenta o antigo costume do
endocanibalismo.
Sanguessugas e carnívoros consomem o sangue humano. Por esta razão a
atitude dos humanos em relação a estes animais é de defesa e vingança ao invés de
ataque direto. A relação dos humanos para com as onças é tipicamente concebida
em termos de hostilidade, inimizade, uma potencial mas irrealizável afinidade, e
no mito, as onças são relacionadas às estórias do deus canibal Inka^. Os humanos
nunca predarão estes animais para comer de sua carne porque eles são
classificados como incomestíveis por terem um forte yuxin. A qualidade de sua
carne é a consequência de seus hábitos alimentares. Enquanto os seres humanos
consideram um refeição própria aquela que vegetais são misturados à carne («#/),
estes canibais comem apenas carne crua. A carne do urubu é ainda mais perigosa,
seu corpo é feito de came apodrecida. Em função do processo de apodrecimento
ser associado à fertilidade e transformação a came de um comedor de podre está
imbuída da qualidade de mutabilidade e, portanto, comer o fígado do umbu causa
a morte.

2.2 yuxin/yuda (corpo e “alma”)

“Behind your thoughts and feelings, my brother, there stands a mighty ruler, an
unknown sage - whose name is self. In your body he dwells; he is your body.”
Nietsche, Thus spake Zarathustra

Uma pessoa é um corpo vivo pensante (yudá). O mesmo é afirmado para os


animais. Carne (nami) toma-se corpo quando imbuído com espírito ou agência

29 Em estudo comparativo de mitos pano, Melatti (1985, 1989b) demonstra a proximidade


dos temas do jaguar, dos Incas e da possessão do metal. Veja também Cofacci (1994) que
complementa o esforço comparativo com dados sobre os Katuquina (pano).
78
(yuxin). Ou mais precisamente, um corpo é sempre vivo, ser em crescimento desde
o seu começo. Sua origem é yuxin feito matéria, líquido sem forma, endurecido e
modelado na solidez do corpo humano. O sangue feminino coagula através
repetida mistura com o sêmen; assim, um tunku, bola, feto está sendo modelado.
Esse processo é visto como uma união das capacidades produtivas femininas e
masculinas em que a mulher cozinha (ba) a criança em seu útero enquanto o
homem dá a forma e a estrutura de sustentação (damiwa). Essa modelagem e
cozimento são considerados trabalho pesado e quando estão trabalhando (dayakí)
em uma criança, o casal despende muito tempo na rede e na floresta (sobre este
tópico Cf. McCallum, 1989a).

a. Gênero no processo de modelagem de um novo corpo

Sêmen e sangue são líquidos doadores de vida. Apesar de não ter


encontrado uma palavra para líquido, este conceito parece ser uma categoria
implícita no pensamento Kaxinawa: representa movimentos livres e pura
potencialidade de forma. Como a água se adapta às diversas formas e recipientes
possíveis, o mesmo acontece com o sêmen e sangue. Enquanto categoria de
pensamento, líquido representa a multiplicidade e constante mutabilidade das
formas assim como a ausência de toda forma incorporada durável, uma condição
do mundo aquático primordial é que tem excesso deyuxin.
A fluidez das imagens livres flutuantes do tempo antes da criação está
associada à potencialidade de forma presente nos líquidos assim como ao caos
ameaçador que resulta da ausência de força solidificante.
Para o mundo ganhar forma incorporada, uma técnica de fixação é
necessária. Esta técnica é o processo de cozimento. O mundo verdadeiramente
humano ganhou forma através da introdução do fogo de cozinha (e, em um nível
cósmico, da luz e do sol em um frio mundo de escuridão). O fogo teve de ser
roubado pelos seres primordiais do “grande inimigo/estrangeiro avarento” (yauxi
kunawa na terra e Inka no céu). Neste sentido, o mundo atual humano é a síntese
de qualidades complementares: o calor e o fogo de cozinha, pertencente ao
79
domínio do mundo celeste, são introduzidos no escuro mundo aquático para
solidificar e transformar líquidos sem forma em corpos. Luz é introduzida na
escuridão para revelar suas cores e formas escondidas.
As contribuições de gênero para a criação de um novo corpo não são apenas
complementares em termos processuais, em que um modela e o outro cozinha, mas
também nas substâncias que irão constituir o novo corpo. Esta inerente dualidade
na origem do corpo continua a ser refletida em sua estrutura. Sêmen é de origem
vegetal, feito no interior do corpo masculino daquilo que sobrou da caiçuma de
milho consumida durante a vida. Essa substância vegetal produzirá a estrutura
óssea do novo ser. O sangue menstrual, por outro lado, é produzido pela carne
ingerida, e, uma vez coagulado, cria os músculos e a pele envolvendo o corpo.
Uma citação e uma canção30 do ritual de fertilidade, Kaixanawa, dança do
tronco oco da árvore tau pustu (palmeira paxiúba), ilustrará que a transformação
da comida vegetal em sêmen é expressa literalmente. A canção é designada bake
kenaki, “chamar criança”, e de mulheres que escutam esta canção é esperado que
fiquem grávidas em breve. Esta canção é entoada pelos jovens e homens maduros
que dançam em círculos em volta do tronco oco da árvore. O ritmo da dança
gradualmente aumenta e o canto fica cada vez mais alto na medida em que as
pessoas ficam mais estimuladas (usualmente com a ajuda da cachaça). A canção
faz uma ligação explícita entre a produção de sêmen e a bebida de caiçuma de
milho, oferecida pelas esposas potenciais aos maridos potenciais, cunhados.
A canção inicia com o milho e prossegue com a invocação das caiçumas
(í/wa)'31 feitas de todos os tipos possíveis de vegetais, nem todos comestíveis mas

50 Para demonstrar a importância dada ao poder invocativo deste canto, menciono o


contexto de sua gravação. Sendo impossível sua transcrição por causa dos gritos e da
hilaridade generalizada durante o ritual que tornaram o canto irreconhecível, pedi a Milton
Maia para cantá-lo novamente para mim. Este concordou ao explicitamente redefinir o
‘setting’ da performance: “Tudo bem, vou cantá-lo de novo. Você quer escutar o “chamar
bebê”. Não sei bem como cantá-lo, sabe. Vou cantá-lo para você como de mentira.”
31 Uma, me asseguraram meus interlocutores, é o nome ritual para mahex, caiçuma. O
canto ritual sobre a caiçuma, entretanto, é executado para torná-la “forte”, pae (unia pae
wakinã). Pae é o termo usado para designar bebidas alcólicas, alucinógenas, tóxicas ou
venenosas. E por esta razão possível que o uma ao qual o canto se refere seja fermentado.
80
todos cultivados nas roças (banana, macaxeira, mamão, batata, cana-de-açúcar,
urucum, algodão, pimenta, palmito e tabaco). Caiçuma é feita de mandioca,
banana doce ou milho e, como opção, pode ser misturada ao amendoim tonado e
moído. A invocação das caiçumas associadas às plantas não comestíveis intenciona
ligar explicitamente a fertilidade humana e vegetal. Cada invocação de uma planta
é seguida pela frase “pondo na barriga dela”. Vejamos uma parte da transcrição
das canções (Milton Maia):

ho ho ho ho (3x) ho ho ho ho (3x)______________________________
Hidikan xankini pondo na barriga dela__________________________
ho ho ho ho Ho ho ho ho_________________________________
inu hanu uma Banu (nome para mulher da metade dua) está
fazendo
caiçuma para inu (nome para homens da metade inu)
ho ho ho ho____ Ho ho ho ho_________________________________
nun haki maneni Estamos enchendo o interior dela (com nosso sêmem)
ho ho ho ho_____ Ho ho ho ho_________________________________
xeki hewan uma Caiçuma de milho_____________________________
ho ho ho ho_____ Ho ho ho ho_________________________________
narne karne Enchendo-a, já esta se tornando uma criança
kidani_________
ho ho ho ho ho ho ho ho

Neste caso uma significaria chicha em vez de caiçuma não-fermentada. Esta hipótese
encontraria reforço na importância dada a chicha (caiçuma fermentada) nos rituais de
fertilidade e de iniciação de outros grupos pano (como, por exemplo, entre os Sharanahua,
Siskind, 1973; os Matis, Erikson, 1996; os Marubo, Montagner, 1985; os Yaminawa,
Townsley,1988). A chicha é também um ingrediente importante nos rituais dos ‘alter-
egos’ e vizinhos dos Kaxinawa, os Culina (Pollock, 1985,1992) e dos Kampa (Weiss,
1969). As mulheres Kaxinawa, entretanto, não preparam a bebida fermentada, seja ela de
milho ou de macaxeira, e dizem nunca tê-lo feito. Esta é também a convicção de
Kensinger. Quando chegou entre os Kaxinawa peruanos nos anos cinquenta, estes não
preparavam nenhuma bebida fermentada (comunicação pessoal). Atualmente, porém, os
homens bebem cachaça durante os rituais de fertilidade assim como durante o ritual de
iniciação. Afirmam que precisam de xia (cachaça) para se animar e para aguentar a noite
de dança. Mulheres parecem desaprovar o uso da cachaça pura (apesar de apreciarem a
‘limonada’, mistura de cachaça com água, limão e açúcar). Homens sob o efeito de pae,
embriaguez, se tornam como nawa, argumentam as mulheres: ciumentos e violentos. O
mesmo comportamento feminino foi observado por Calavia (1996) entre os Yaminawa.
Calavia suspeita que a recusa feminina de preparar a caiçuma fermentada seja recente e
argumenta que esta recusa reflete uma ruptura na complementaridade de gênero. Seria
uma resposta feminina ao fraco desempenho masculino na caça. Esta interpretação não se
sustentaria para os Kaxinawa.
81
Hawen hadã Copulando, colocando para dentro
hadanti
ho ho ho ho ho ho ho ho_______
tama hewã uma caiçuma de amendoim
ho ho ho ho ho ho ho ho_______
Hidikan xankini pondo na barriga dela

“A semente (olho) do amendoim é sêmen (Tama bedu hudakiri). Os pedaços


que não foram moídos se tomam fezes, seu líquido vira urina, seu papa (sêmen
vegetal), sua semente sempre se transforma. Se transforma em gente, se transforma
dentro da barriga. A macaxeira também tem semente (bedu). Seu papa, seu sêmen
sempre se transforma (hawen huda damimiski)." (Abel Nascimiento)

Deste modo, não apenas milho e amendoim têm sementes, mas, também,
diz a citação, mandioca. Semente representa aqui o sêmen, o que fica no corpo e
produzirá a substância que, por sua vez, formará os ossos da criança. Essa
substância vai se acumulando no coipo dos homens e das mulheres, mas é somente
no corpo dos homens que produzirá sêmen.
“Um homem precisa tomar muita caiçuma de milho, misturado com
amendoim para se tomar forte. Quando uma criança bem nutrida nasce, sabemos já
que foi por causa da comida que comemos. A criança com ossos feitos de
macaxeira cresce devagar e fica pequena, mas a criança com ossos feitos de milho
cresce e rápido e vai ficar forte.” (Edivaldo)

O motivo do xeki xau, espiga de milho, será pintado com jenipapo na testa
de um menino seis dias após seu nascimento, enquanto a testa da menina será
pintada com o motivo xapu hexe, semente de algodão. O primeiro desenho refere-
se aos ossos fortes e à produção de sêmen, enquanto o segundo se refere à saúde e
a vida longa (“ter um yuxin de algodão”, significa ser saudável e forte) assim como
à fiação e menstruação (o que será visto mais adiante quando abordamos o mito de
Yube, a lua).

b. O processo de concepção

Na vida cotidiana acredita-se que as mulheres menstruam pela primeira vez


8;
após terem relações sexuais. É o sexo que produz nelas o sangramento. Eu lembro

de uma menina, Graça, sendo pressionada para casar embora sua mãe achasse que
era jovem demais para isso. Sua mãe contou-me que Graça, aos seus 12 anos de
idade, ainda não sabia cozinhar e não era capaz de fiar. Então, eu perguntei a sua
mãe, Maria Domingos, “Porque a senhora quer que ela case?”. A Resposta foi: “Se
ela ainda não está pronta, ela não deve pinicar (relação sexual), arriscando ficar
grávida”. Eu perguntei: “Mas ela realmente está tendo relações sexuais?”.
Respondeu: “Sim, está. Se não estivesse porque ela estaria sangrando agora. Eu
não quero que minha filha seja uma mãe solteira!”.
Existem métodos contraceptivos usados para permitir que meninas casem-se
um pouco mais tarde. Em tempos antigos, segundo os Kaxinawa, meninas não
casavam antes dos dezesseis anos. Medidas contraceptivas eram usadas
procurando não apenas prevenir a fertilização mas prevenir, também, a pré-
condição necessária para isso, o primeiro sangramento. Isso explica porque o ritual
precisa ser realizado antes da primeira menstruação. O ritual envolve eivas
medicinais, três meses de dieta alimentar e abstinência sexual, assim como a
intervenção do yuxibu da jibóia e da planta dade, planta descrita como tão
poderosa quanto a jibóia. Esse ritual, entretanto, precisa ser realizado antes da
menina ter a primeira relação sexual. Este fato explica a irritação da mãe. A
menina não esperou, teve sua primeira menstruação e, agora, era condenada aos
olhos da mãe de se tomar mãe prematuramente .

32 Outras moças, entretanto, foram induzidas a se casarem ainda mais novas que Graça,
sem a resistência dos pais. Este era o caso de Francisca que casou aos dez anos com a
liderança da aldeia, Pancho. O casamento representava a aliança política entre o pai da
moça e a liderança em um momento de muita tenção política (perigo de cisão da aldeia). O
casamento durou alguns meses. A primeira esposa de Pancho não gostou do arranjo e
tratava a menina com extrema reserva. Francisca tinha a idade das filhas de Pancho e
sempre brincou com elas. Depois do ‘casamento’ nada mudou no seu status ou
comportamento, a não ser uma timidez mais acentuada com relação a Pancho e sua
esposa. A menina ainda não era púbere e o papel de Pancho era o de prepará-la, sem no
entanto ter relações sexuais com a moça. Deste modo, se existissem boas razões para o
casamento de Graça, como foi o caso da Francisca, sua idade não teria sido invocada
enquanto problema. A mãe de Graça não tinha marido e precisava muito de um genro que
vivesse com ela. O homem que desejava casar-se com Graça era um homem maduro, do
Peru. A chance dele ficar por muito tempo na aldeia da sogra, como prometia à mãe da
83
Uma menina toma-se adulta depois de ter dado à luz a seu primeiro filho.
Deste momento em diante ela passa a ter seu próprio fogo no grupo doméstico
materno. Enquanto o jovem casal não tem filhos é considerado parte da família
nuclear que o hospeda, tendo quase o mesmo status que os adolescentes solteiros.
Seu comportamento é brincalhão e nunca toma a iniciativa ou liderança em tarefas
domésticas. Será de vez em quando solicitado a ajudar mas continuam tendo
consideravelmente mais tempo livre do que adultos da mesma idade com filhos.
Um jovem casal será visto muitas brincando e provocando jocosamente seu
parceiro em público. Eles regularmente desaparecem juntos para as roças ou
floresta sem necessitar desculpas ou alguma razão especial senão aquela de
“trabalhar” na criança. As pessoas fazem piada mais para dar apoio do que para
controlar o casal “sem vergonha”.
Sua situação difere dos outros casais, mais jovens ou mais velhos, que são
tão discretos que nunca são vistos se tocando em público. Os primeiros porque sua
liaison é secreta, e os últimos porque eles e outros estão tão habituados com sua
relação que qualquer ostentação tomar-se inapropriada. Manifestar publicamente
afeição é, agora, reservada aos filhos pequenos.
Somente durante os rituais que representam a fertilidade, a provocação
através de insultos sexuais (convites disfarçados) e brigas de brincadeira entre os
sexos de metades opostas, tomam-se regra. A comunidade inteira comporta-se
como um jovem casal, jocosa e abertamente “despertando” o desejo sexual e
invocando os poderes yuxin da fertilidade. "Quando nós pedimos a fertilidade das
plantas e a abundância em nossas roças”, explicou Milton Maia, "estamos ao
mesmo tempo pedindo a fertilidade da nossa gente. Uma aldeia feliz é uma aldeia
onde muitos bebés nascem”.
Concepção é considerada um processo, uma criação acumulativa, não um
único evento. A mãe e o pai contribuem com os fluidos vitais para a formação e
características da criança. Como na maioria dos povos amazônicos, prescrições
alimentares são observadas durante a gravidez pelos pais, porque as substâncias

Graça, não lhe parecia muito provável.


84
consumidas constituem o sêmen e o sangue influenciando a forma, comportamento
e qualidades da criança. A lógica que comanda as prescrições alimentares é a da
semelhança: qualidades do animal ou planta consumidas são passadas para a
criança. Observei Laura recusando comer paca porque é um animal noturno e anta,
porque era “muito grande”33.

c. Crianças Misturadas
Uma consequência das idéias Kaxinawa sobre concepção é a possibilidade
de dar à luz a dois tipos excepcionais de crianças: a criança misturada, husia bake,
e a criança espírito, yuxin bake. A criança misturada é bastante comum e se deve
ao costume difundido das relações extramaritais. Os affairs são bastantes comuns e
percebidos como “inocentes”. O que os Kaxinawa desaprovam não é propriamente
o em si mas a ostentação e a vaidade. É dito que um homem é vaidoso
quando fala para a esposa sobre suas relações extramaritais. O mesmo é dito de
mulheres que se comportam deste modo. A moralidade sexual Kaxinawa sustenta
que nunca deve-se falar sobre ou comparar amantes. A ostentação, comparação e
falta de generosidade sexual provocam crises de ciúme. Quando uma mulher é
saudável e gorda, Antônio disse que é porque “o marido dela nunca fala sobre os
casos dele” (hawen bene txula yusinmakí).
Um marido ciumento é designado yauxi, avarento com sua esposa. Yauxi é
um termo fortemente carregado no vocabulário moral Kaxinawa e empregado, na
maioria dos casos, para designar um comportamento anti-social. Aqui o
significado da palavra é, obviamente, ambíguo. Não significa que um homem
generoso ache coneto que sua esposa tenha relações sexuais com outros homens.
Um marido avarento é um marido paranoico, obsessivo, um homem que desconfia
todo o tempo de sua esposa, seguindo seus passos, espancando-a quando suspeita

33 Para os tabus alimentares veja Capistrano de Abreu (1941:122-123, 126-128);


Kensinger (1981: 155-171 e 1995: 193-206); Deshayes e Keifenheim (1982: 94-95, 172);
McCallum (1989a:98); Lagrou (1991: 106-109).
85
de infidelidade. O bater é condenado publicamente e pode conduzir mudanças nas
alianças políticas e fissão na aldeia.
Uma mulher pode ser considerada avara quando impede seu marido de
viajar ou quando recusa aceitar seu desejo de ter uma segunda esposa. Uma mulher
pode ser considerada avara em relação à sua vagina (yauxi de xebi de hawen). Isto
é dito de mulheres quando recusam ter sexo. O primeiro uso da expressão refere-se
a virgens que não deixam os homens se aproximarem. A menina não quer ainda se
casar e tem medo de ficar grávida. Outro contexto de uso desta expressão é
durante os rituais de fertilidade, quando os primos-cruzados provocam e desafiam,
coletivamente, um grupo de mulheres chamando-as de avarentas. As mulheres
respondem insultando ritualmente, por meio de uma canção, o órgão genital
masculino (também veja McCallum 1989b sobre rituais de fertilidade). Outra
manifestação de mesquinhez da vagina é associada ao parto. Quando uma mulher
tem dificuldades para parir, é dito que sua vagina é avara com a criança (para o
uso da expressão mesquinhez durante o parto ver McCallum, 1996).
Uma criança é misturada quando a ligação da mãe com outro homem toma-
se pública durante a gravidez. Neste caso, se o amante assume seu papel,
contribuindo para a formação da criança, será dito que a criança tem dois pais.
Não é incomum encontrar husia bake (crianças misturadas), especialmente quando
é feito um censo de aldeia esta questão surge quando a criança pertence a ambas
metades. Edivaldo, líder da aldeia Moema, estava orgulhoso por ser um husia bake
e deste modo acumular as qualidades de ambas metades.

d. As crianças filhos de yuxin e gêmeos

Yuxin bake, crianças yuxin, é outra consequência do conceito de concepção


gradual. Uma criança yuxin nasce quando, durante a gravidez, a mãe tem não
somente um amante humano, mas um amante yuxin. Como vimos no incidente de
Laura com a lagarta na roça, visitas de yuxin e relações sexuais com yuxin nos
sonhos é considerada uma ameaça para as mulheres grávidas. Intercurso com yuxin
provoca anomalias, por duas razões. A primeira é que yuxin é associado ao
86
excesso e mutabilidade da forma; a segunda é que esses seres não são humanos,
pertencem a um tipo diferente e a mistura imprópria de excessiva diferença conduz
à deformação.
Não é a quantidade de sêmen ou sua mistura que poderia ser responsável
pelas mutações da forma humana normal. Os únicos agentes capazes de produzir
anormalidades por intercurso são os seres yuxin. Na Aldeia Nova Aliança duas
crianças eram designadas yuxin bake: uma nasceu com uma orelha fechada e a
outra com o pé torto. Outra criança yuxin bake de que ouvi falar nasceu com seis
dedos em uma das mãos.
Gêmeos, tsupibu bake, são considerados yuxin bake, nascidos da união de
um pai humano (ou pais), uma mãe humana e da manifestação de Yube yuxibu
designada Nubu pui keneya (“fezes de um molusco do rio com desenho”) ou Puia
pui keneya (“fezes, fezes com desenho”).
“Para se tomar grávida de gêmeos é preciso comer sementes de algodão.
Você pode fazer isto. Esse aqui é o algodão, aquilo ali é o algodão fiado e você
come a semente. Esta é a comida de gêmeo. E isso que acontece quando você a
engole. Crianças pequenas sempre engolem estas sementes de algodão. A menina
cresce e eles (a menina e Yube} copulam. Assim, Nubu pui keneya vem para ter
relações sexuais com ela. Coloca dois dentro dela, um aqui e outro acolá. Ele têm
dos pênis, um aqui e outro acolá. Com um pênis, ele faz um tunku (bola, feto),
com outro pênis e com sêmen diferente ele faz outro tunku (feto). Nubu pui
keneya, puia puia pui keneya. E isso que ele faz com a menina que sempre come
semente de algodão. Ele se vinga dela (ha kupidiaí), ele se vinga. Porque semente
de algodão são como gêmeos. Olha!: dois. Elas estão entrelaçadas. Alia. Isso que
acontece com uma mulher que quer dois filhos de uma vez. Ela quer duas meninas
ou dois meninos? Não. Ela quer um casal, uma menina e um menino. E assim que
acontece para nascerem gêmeos.” (Augusto Feitosa)

A lógica da semente de algodão segue a mesma do amendoim e do milho. A


semente é o sêmen e permanece no corpo da mulher, esperando para tomar-se
criança. O yuxibu da jibóia, Nibu pui keneya, dono do algodão, vinga-se através do
sexo, como seu duplo divino, Yube, a lua. O que é referido como vingança é, ao
mesmo tempo, um presente, embora um presente ambíguo. No caso de Yube, a lua,
a vingança e a perfuração que provocam o sangramento nas mulheres estão
relacionadas à fmitude e à morte. O sangue feminino é simbolicamente equivalente
ao sangue perdido pela cabeça agonizante de Yube enquanto escalava o céu e,
87
também, é a substância responsável para fertilidade feminina.
O mesmo se passa com a vingança de Nibu pui keneya, responsável pela
anomalia de dar à luz aos gêmeos. Nos seus sonhos, a mulher grávida é penetrada
pelos dois pênis da cobra como conseqiiência das sementes gêmeas que comeu
durante a infância. Por um lado, é dito que o yuxibu da serpente se vinga, e por
outro lado, que a mãe deseja ter gêmeos. Ao insistir no estranho hábito de comer a
semente de algodão, pode-se dizer que mãe estava chamado Nibu pui keneya. A
mãe de gêmeos é considerada poderosa por sua cumplicidade com o mundo de
yuxibu.
“Kin era gêmeo, ele era muito inteligente. Seus pensamentos eram fortes
(ele predizia tudo). Sua fala tinha força. É por isso que ninguém teria coragem de
ficar com raiva dele. Tem que agradar ele. Assopra em você. Quando o gêmeo
pequeno não fala, so fala quando está grande. Quando ele fala que vai morrer,
você morre. Quando um gêmeo vai defecar o outro vai com ele. Quando um deles
vai urinar, o outro também vai. Quando um vai dormir, o outro também vai.
Quando um chora, o outro também chora. Quando um tem fome, o outro também
tem. Só isso.
Quando um morre você não fala para o outro porque se não o outro também
morre. Ele é como o Yube Xeni (jiboia). Ele tem o poder de Kuxuka (o boto). Ele é
como Dade (a poderosa planta). Sua mãe tem muito poder e passou esse poder
para você. Eu tenho medo de você! (risos)54.” (Antônio Pinheiro)35
“Você realemente tem que criar os dois. Se um mone, o outro morre. Se
você separa um corpo do outro e o mantém longe do seu gêmeo e sozinho, aquele
que fica só pensa no outro (hawen betsa xinaí), e sempre mon e. Se não quiser que
morram, tem que criar ambos. Têm que deixar crescer os dois. Se você quiser cria
os dois. Se não morrem.” (Alcina Pinheiro)

34 O Kin desta citação é Ken Kensinger, antropólogo e ex-missionário, e o primeiro branco


a viver com os Kaxinawa do Peru, desde os anos cinquenta. As lembranças do próprio
Kensinger da revelação de sua identidade de gêmeo, são primeiramente a consternação
dos Kaxinawa (visto que um dos significados de tsupibu parece ser “ter vermes”), e depois
a surpresa: como poderia ele saber tão pouco (sobre a floresta) e ainda assim ser gêmeo?
(1995:210) Na ‘mitologia’ Kaxinawa, entretanto, os ‘poderes’ de Kin continuam
inigualados. No final da citação o narrador se refere ao fato da antropóloga ser,
igualmente gêmea.
35 "Kin tsupibu bake unahaida, hama pae unanika. Hawen hantxa pae haida. Haki
sinatamaki. Tua haida watiki. Mia xuanu. Tsupibu bake ixtadan yuitemaki. Ewatanai
atiki yuikinã. Mi yuiadan mawamiski. Tsupibu bakedan puiayadan betsadan puidiakiki.
Isunayanã idiaikiki. Uxaiya uxadiaikiki. Kaxaya kaxadiaikiki. Buniaya bunidiaikiki.
Hatiski. Betsa mawaken yuitema yuiadan niawadiamiski. Yube Xeni keskadiki. Kuxuka
88
As crianças gêmeas são chamadas Yubebu (plural de Yube) ou,
simplesmente, yuxibu, ou yuxian (xamã). Os gêmeos já nascem curados, “nasceu
curado” (Paulo Lopes), porque são considerado imunes a mordidas de cobra
(imunidade devida a uma consubstancialidade com o mestre das cobras que ajudou
a produzi-los) e capazes de curar com o suor, com as mãos e a saliva. O fato de se
ter uma vida protegida é ligada ao poder de provocar a morte. Palavras faladas por
gêmeos, como aquelas faladas para yuxin da jibóia, Yube Xeni, no momento em
que morre, tomam-se realidade; as suas maldições (yupu) causam a morte
inevitável de suas vítimas. O dilema em manter os gêmeos vivos ou não pode ser
entendido quando os Kaxinawa afirmam que poder nas mãos de um ser
descontrolado é perigoso.
A possibilidade de causar morte com palavras (yupuá) não é exclusiva aos
gêmeos. As pessoas evitam recusar presentes às pessoas mais velhas pela mesma
razão que devem ter cuidado ao lidar com gêmeos. O poder das pessoas mais
velhas para amaldiçoar é devido ao seu conhecimento de "como falar com a
cobra". A repetida ingestão ritual do coração e da língua da cobra, seguida por um
período de três mês de rígido jejum, estabelece uma comunhão em substância e
identidade com a jibóia que os toma Yube (significando jibóia e xamã). O poder
das palavras é indireto: tem que “passar pela” a jibóia. Uma jibóia é morta e a
maldição é falada a seu yuxin que escapa de seu corpo, é este que vai afligir a
vítima.
Os Kaxinawa acreditam que não é incomum os tsupibu bakebu (os gêmeos)
apresentarem algum tipo de anormalidade física. Um dos dois, por exemplo,
normalmente, nasceria um anão, enquanto o outro seria alto. E dito que uma
poderosa mulher anã mora no Peru. Ela recusa ser fotografada e permanece
solteira. “Se você tentasse levar o yuxin dela (tirar uma foto)”, Milton Maia me
advertiu, “ela a atacaria”. Quando separado e longe, um gêmeo causa enfermidade
no outro, tristeza é considerada a causa principal. A interdependência entre os
gêmeos é descrita na forma que um tem sorte, e é “forte”, enquanto o outro atrai

paepadan. Dade keskaki. Min ihu ainbu paepahaidaki, mia binuaki. Miki dateai."
89
má sorte e é “fraco”, mas a cooperação entre eles resulta em grandes feitos como o
corte da enorme samaúma que escondia o sol pelos gêmeos míticos lyô e Ipi.
Qualidades diferentes e complementares em um par de seres basicamente
semelhantes e quase iguais produzem uma dependência mútua que está na base do
pensamento dualista encontrado em muitas sociedades ameríndias. O mundo
criado a partir deste princípio é composto da combinação de diferenças e sua
separação seria o fim de todo o movimento e vida na terra. A igualdade dupla, uma
idéia que fascina tanto o pensamento ocidental (desde os mitos de gêmeos na
antiguidade até a representação e a invenção da clonagem), parece ser inconcebível
para o pensamento ameríndio, porque na representação indígena uma pessoa
necessariamente nasce antes da outra, dois seres serão únicos e diferentes.
Outro estado especial definido com o nascimento é quando a criança nasce
com o cordão umbilical enrolado ao pescoço. Estas crianças “nascem curadas", “já
curadas, desde o começo”, como gêmeos. Mordidas de cobra não os ferem. O “já
curado” refere-se à imagem curativa típica de uma visão produzida pelo
ayahuasca.
Quando alguém é curado na experiência visionária, a cobra (o dono do
ayahuasca) surge enrolando o corpo do paciente até o seu pescoço e sua língua
lambe o nariz do paciente. A cobra fica durante algum tempo olhando nos olhos do
paciente, hipnotizando-o enquanto “reza” com sua língua. Quando se desenrola do
corpo, a cobra leva toda a doença consigo. Um bebê que nasce com o cordão
umbilical ao redor do pescoço (a mesma imagem da cobra) passou por uma
experiência semelhante à cura e, por isso, é dito que está protegido das cobras para
o resto de sua vida.

e. Parto e primeiros cuidados

Depois do nascimento, as prescrições alimentares diferirão daquelas


praticadas durante a gravidez. A criança está agora exposta, não somente aos
fluidos corporais de seus pais, mas a todos os tipos de outras influências presentes
em seu ambiente externo imediato. Se o pai caça um macaco-prego, por exemplo,
9(
é esperado que a criança fique agressiva e morda as pessoas fortuitamente. Porém,
a maior parte dos cuidados são observados pela mãe visto que continua
influenciando diretamente os “conteúdos interiores” da criança através de seu leite.
Enquanto amamenta, a mãe comerá somente animais fêmeas. Os parentes
próximos, especialmente os doadores de nomes, os avós (xutá), que estão em
contato próximo com a criança, tomam cuidados para não expor a criança a
influências perigosas.
Para combater as influências as quais a criança é exposta quando deixa o
mosquiteiro36, existe uma grande variedade de banhos com ervas e queima de
ervas fragrantes debaixo de sua rede. Agindo deste modo, parecem explicitar a
continuidade e a ligação entre o corpo da criança e o ambiente humano e não-
humano. Cheiros, fluidos e sons influenciam a criança: sua forma, habilidades
corporais (pode ser um aprendiz rápido ou preguiçoso, razão pela qual a carne do
papagaio é dada a uma criança que aprende falar), a qualidade e textura de sua
I
pele (aos diferentes tipos de ovos são atribuídos espinhas e doenças de pele), seus
sonhos e a qualidade de seu sono. Por causa dos corpos fracos e dos yuxin jovens
ainda não fixados, as crianças estão expostas, especialmente, às chamadas
noturnas do yuxin; e os bebés assustados pelo yuxin tem, em geral, febre alta e
choram toda a noite.
“Você lhe deu seu corpo”, Laura dizia para mim enquanto olhava para a
face do seu bebê. “Bedu nankepixta hayaki, hawen bu mia keskaki", “ele tem
pequenos olhos azul-verdes e o cabelo dele é da cor do seu cabelo”. Embora não
tivesse experiência com partos, ignorância que foi logo percebida, pediram-se para
ajudar no nascimento do filho de Laura, o neto de Augusto. Para alívio meu,
entendi depressa que o convite não teve nada que ver com o suposto conhecimento
de um branco. Haviam especialistas nativos à mão.
A motivação para minha inclusão neste empreendimento privado, para o
qual apenas são admitidos os parentes próximos da mulher e alguns poucos

36 Quando as pessoas viviam em malocas, e não existiam os mosquiteiros para proteger a


privacidade de mãe e filho, pequenos tapiris eram construídos para o parto. Estes tapiris se
91
parentes masculinos (o marido, o pai e, em circunstâncias excepcionais, o irmão da
mulher ), foi uma escolha pessoal o que veio a mudar profundamente minha
relação com a família da parturiente. Não era um conhecimento especializado que
eles requeriam de mim mas sim meu envolvimento, minha participação física e
emocional no evento. Uma das razões que penso ser responsável para a minha
inclusão neste acontecimento foi o fato de estar vivendo no círculo interno da casa
durante vários meses (visitas que se tomam co-moradores movem as pequenas
barracas, mosquiteiros com rede, gradualmente, das extremidades para o centro da
casa onde as famílias nucleares dormem). Outro fator foi a interpretação, dada por
Augusto, e por sua esposa, de que eu devia participar do parto porque sou gêmea.
Junto com as outras mulheres presentes ao parto, aprendi a cantar o cântico
ritual para “alisar” o caminho da criança . O trabalho de parto de Laura durou
mais de doze horas e a canção/reza foi repetida indefinidamente: "Isku isku pui,
nerun nernn kaini, min bali txuka menuikiki, menã kaindiwe!", “Fezes do pássaro
Isku, fezes do pássaro lsku\ venha por este caminho, por este caminho; suas velhas
roupas estão queimando; rápido, nasça!”. O significado da canção/reza foi
explicado como segue: "Isku pui é para tomar liso o caminho, e para o bebê nascer
depressa você diz que suas roupas estão velhas".
Enquanto duas mulheres massageavam as costas da parturiente e outras
duas mantinham suas pernas abertas, coube a mim massagear sua barriga com uma
infusão morna feita a base de ervas, incrementada com alho (minha contribuição) e
tabaco. Ò trabalho de parto de Laura foi considerado excepcionahnente longo para
os padrões Kaxinawa e, num certo momento, a mãe dela deixou o mosquiteiro e
suavemente começou a entoar um choro ritual.
A criança, Siã, nasceu com o cordão umbilical enrolado ao pescoço. A

chamavam kene (Capistrano de Abreu, 1941:124).


37 O esposo segura a parturiente nos braços, sustentando-a embaixo das axilas. A
parturiente pode, temporariamente, procurar apóio na rede, mas é durante a maior parte
do tempo segurada por um homem. Quando o marido se cansa, pode ser substituído pelo
pai da parturiente, ou pelo irmão. Este é o único papel desempenhado por homens no
parto. Homens não cantam, nem preparam banhos medicinais durante e após o parto. O
conhecimento destas plantas é um conhecimento considerado feminino.
92
minha tarefa era a de segurar a criança quando saísse do corpo de sua mãe até a
placenta descer. A placenta (xama) é imediatamente levada para a floresta ou pode
ser enterrada próximo a uma nascente (tatxa) o que proporciona um coração forte
para a criança (huinti kuxiwa), dando a ela “um coração de uma nascente” (txatxa
huinti inankiney. “A vida da criança será como uma nascente que nunca seca”.
(Augusto Feitosa).
E esperado que a mesma pessoa que apara a criança corte o cordão
umbilical. O cordão umbilical é posto para secar e depois enrolado ao arco do pai
da criança para ter boa sorte na caça. A primeira caçada depois do nascimento da
criança será, então, com o arco protegido pelo cordão umbilical seco (antes disso o
pai não pode caçar). Depois de aparar a criança os Kaxinawa solicitaram que eu
moldasse a face do bebê, aplainando as pequenas bochechas, endireitando o nariz.
Este momento é considerado o “final touch" na modelagem da criança (damiwa),
momento em que fazia pleno sentido a observação de Laura: “eu estava dando meu
corpo para criança”. Depois disso a criança foi embrulhada em um pano por sua
avó. A avó ajudou a filha a deitar na rede e colocou a criança em cima dela.
Na manhã seguinte a criança foi banhada, com uma infusão morna de mais
de dez diferentes ervas, e pintada com urucum. Uma possível interpretação para o
uso da pintura de urucum pode ser o fato de que o urucum neutraliza, por imitação,
o sangue da mãe que cobriu a criança na hora do nascimento39. A mãe é banhada
com ervas e bebe infusões para estancar seu sangramento. Quando a criança é
pintada com urucum sua orelha é perfurada. Outras perfurações eram
tradicionalmente feitas após a o ritual de iniciação (Nixpu pima).
A criança e a mãe deixarão o mosquiteiro, pela primeira vez, somente
quando o umbigo da criança estiver seco. Neste momento, um parente próximo
considerado um bom trabalhador e com conhecimento, ou o líder de canto no caso
de um menino, irá, enquanto canta uma canção ritual, tingir de preto (jenipapo) a
criança pintando sua testa com o padrão de desenho da semente de algodão ou da

^8 • .
A transcrição e tradução deste canto coincidem com a de Cecília McCalIum (1996:21).
39 Esta é a interpretação dada por Vilaça à mesma prática registrada entre os Wari (Vilaça,
93
espiga de milho. O canto entoado durante a pintura invoca o pêlo escuro dos
macacos e a penas pretas de determinados pássaros. A pintura protege o corpo
tomando-o invisível aos predadores yuxin.
Acredita-se que as mãos, o suor e as palavras usadas no ritual passam o
caráter, o poder, o dau (encantamento, medicamento) e o dua (brilho, saúde e
sorte) para a pessoa que os recebe. A fala ritual, o sopro e o toque passam os
pensamentos (xiná) e o conhecimento (una) para aquele que recebe as
encantações. Assim, não somente o corpo mas todos os aspectos da pessoa são,
simultaneamente, modelados. O corpo não é percebido como uma entidade
independente, separada de outros corpos. Sua forma e estado são resultado de uma
modelagem e fabricação coletivas, e é uma preocupação dos parentes próximos.
Esta responsabilidade coletiva para com o bem-estar e o estado dos outros
corpos explica porque, uma vez que fui aceita em suas casas, era importante para
os Kaxinawa que meu corpo estivesse em um estado saudável e com beleza para
ser mostrado a minha família quando de meu retomo para minha casa. Ouvi,
repetidas vezes, a seguinte frase: “Nós queremos que você esteja gorda e saudável
quando regresse para sua família". Neste sentido, o estado de meu corpo seria o
testemunho mais eloquente do modo que eu tinha sido tratada por eles. Alguém
que está triste perde o apetite e a alguém que é excluído sociahnente não será
oferecida muita comida. Magreza é, quase sempre, um sinal de infelicidade.
Quando um casal está brigando, por exemplo, ou quando um marido fala para sua
esposa que ele está tendo um caso, ela ficará magra. O formato do corpo, se magro
ou gordo, será objeto de preocupação e comentários.
Como vimos acima, magreza é também sinal de interferência de yuxin.
Yuxin interferem na vida de uma pessoa quando seus vínculos sociais normais não
estão fortes o bastante para impedir um yuxin parasitário de ocupar o lugar de um
parente próximo ou levar a vítima para morar com eles na floresta juntamente com
os seres ni yuxin. Por exemplo, quando morre um parente próximo (filho, esposa
ou marido) e o enlutado não consegue superar a perda; quando se vive em uma

1992).
94
aldeia sem parentes próximos; quando uma pessoa sente solidão, raiva ou ciúme
deve ficar deitado na rede por um longo período, chorando silenciosamente ou
deixar a aldeia para passeios solitários na floresta. Os yuxin escutam o seu choro e
entendem que esta pessoa “quer morrer” {mawa kaliski), este é o momento exato
da intervenção dos yuxin.

f. Conhecimento dos Sentidos

A definição de corpo é estar vivo, um ser social que têm percepção, se


move, fala e pensa. Quando o yuda, o corpo pensante, é ativo e completamente
saudável, significa que seus yuxin estão junto com o corpo. Yuxin somente existe
enquanto entidade separada, nomeado e percebido, quando se separou do corpo.
Isto explica porque o conhecimento não é atribuído aos yuxin da pessoa, mas ao
seu yuda (corpo). O conhecimento de como produzir efeitos desejáveis no mundo
é percebido enquanto um conhecimento incorporado. A aquisição e a
demonstração de conhecimento para ser eficaz e signifícante necessita de um
cenário apropriado. Palavras e ações fora de contexto são vazias e sem direção: são
ineficazes ou sem sentido.
A concepção Kaxinawa de conhecimento não baseia seu método e
justificação na representação, distanciamento e objetificação da praxis para obter
um entendimento sobre um fenômeno. Pelo contrário, para o conhecimento
adquirir significado é necessário uma familiaridade com o desempenho e o pôr em
prática das técnicas que incorporam tanto conteúdo quanto intenção40.

40 A resistência dos Kaxinawa para falar sobre assuntos fora do contexto foi também
notada por McCalIum (1989a). No meu caso, determinou a escolha dos tópicos tratados
na tese. Meu plano era o de estudar o desenho e a tecelagem, assim como as iniciações
específicas nestas artes (o ritual da jibóia). Augusto, entretanto considerava necessário
conhecer (entender e transcrever) primeiramente o rito de iniciação, Nixpupima que
deveria ser completado pelo Txidin, festa do lider de canto, para começar depois o estudo
específico da tecelagem. Infelizmente, Augusto sofreu um derrame durante as transcrições
do primeiro ritual, acidente que nos forçou a deixar a aldeia prematuramente. No caso do
Nixpupima, descobri que muitas das informações coletadas em entrevistas antes de
atender o ritual foram contraditas pela performance (quando tudo de repente começou a
se encaixar). O mesmo vale para outras experiências no campo. Mais de uma vez ouvi ‘os
95
A importância dada ao contexto, incorporação e o pôr em prática o
conhecimento na criação contínua de um mundo significante que “funciona” e se
ajusta não é exclusiva dos Kaxinawa e nem específica a culturas orais. A
associação entre conceito e ação e entre conceito e corpo tem sido um tópico de
discussão e reflexão na Filosofia, nas Ciências Cognitivas e Psicologia41. Nestes
diferentes campos de investigação sobre o funcionamento da mente humana
percebe-se, freqiientemente, a necessidade em superar as limitações de um
dualismo Cartesiano. Os cientistas estão começando a perceber que enquanto o
papel do corpo e das emoções não forem levados em conta em um desempenho
cognitivo, continuaremos aprisionados em falsos problemas. Ontologias não-
ocidentais lançam novas luzes para as velhas perguntas, e podem ser, assim, úteis
para arejar nossa reflexão sobre a condição humana através de uma mudança de
ponto de vista42.

anciãos’ reclamarem: “Para que ela quer saber isto se não vai continuar vivendo aqui?” ou
“Porque quer saber? Não entende!”
41 Na filosofia, esta discussão remete a Heidegger, Gadamer e Wittgenstein. O que a
hermenêutica, a fenomenologia e o existencialismo têm em comum na sua oposição ao
dualismo descartiano e à Razão Pura de Kant, é a critica à descontextualização do
conhecimento ou, para colocá-lo em termos Heideggerianos, “a amputação do ser do
Ser”. O fato primordial inegável da Geworfenheit (o ser jogado) do ser humano em um
mundo que pré-existe e o cerca como o fundo constitui a figura, requer que esta
precondição da existência seja levada em consideração quando se julga processos de
pensamento e de ação. A pré-existência de um fundo que delineia a figura do indivíduo
implica em historia, ambiente humano e não-humano, emoções, corpo, valores e
motivação. Processos de pensamento e sistemas de conhecimento podem somente ser
entendidos ao levar-se este pano de fundo em conta como parte constitutiva e integral da
questão. Uma discussão esclarecedora da importância do corpo e do contexto no campo
da psicologia cognitiva pode ser encontrada em Shanon, B., 1993. No campo da filosofia,
Jacob Meltjie, desenvolveu, a partir do estudo do obra madura de Wittgenstein, uma
abordagem praxiológica do conhecimento. Aplica a idéia da estreita ligação entre conceito
e ação em campos muito próximos à Antropologia (o autor foi fortemente influenciado
por Evans-Pritchard durante sua estadia em Oxford). Com exemplos tirados da vida
cotidiana de pescadores noruegueses e dos Saami, criadores de rena, demonstra como a
participação ativa na paisagem e o dominio das técnicas da profissão, modulam a respetiva
percepção da paisagem e do barco. (Melcfie, 1983,1989).
42 A propósito desta questão Jackson (1996) escolha o caso Kaxinawa para ilustrar novas
formas de concepção do conhecimento, assim como para ilustrar porque e como outras
ontologias não-ocidentais devem ser levadas a sério pelo pensamento científico e
filosófico.
96
Kensinger (1994, 1995) identificou vários conhecimentos particulares que
se ligavam ao corpo e ao sentido. Ele menciona o conhecimento da mão (meken
una), o conhecimento da pele (bitxi una), o conhecimento do olho (bedu una), o
conhecimento da orelha (pabinki una), o conhecimento genital (o conhecimento
dos testículos no caso masculino e no caso feminino não foi especificado), o
conhecimento do fígado (laka una). Uma pessoa cuja corpo inteiro sabe é uma
pessoa sábia, unahaida (“sabe forteinente”). “One leams about things like the sun,
wind, water, and rain through the sensations they produce on the surface of the
body. It is In this sense that knowledge of the natural world is skin knowledge,
bichi (bitxí) una, that is, knowledge gained through and locate in the skin”
(1995:240). O Conhecimento do mundo circunvizinho que é adquirido pelos olhos
é um “knowledge about the jungle’s body spirit” (Jbid.).
O yuxin do corpo é designado yuda baka yuxin (yuxin da sombra do corpo).
E a sombra, o reflexo da pessoa na água ou em um espelho, a imagem capturada
pela fotografia de pessoas e coisas. Durante o dia ou durante a noite o mundo
conhecido pelo yuxin do olho é um mundo de imagens. Para algo se tomar
conhecimento incorporado outros sentidos devem ajudar a enraizar esta percepção
do mundo circundante através da pele, das orelhas, das mãos, do corpo.
As capacidades que fazem de alguém um bom caçador são variadas. Há um
conhecimento do olho para fazer a pontaria com a flecha, há um conhecimento das
mãos para controlar a técnica do tiro, conhecimento da pele para sentir o ambiente,
a capacidade para cheirar a caça ou produzir um cheiro para seduzir a caça com
ervas, assim como a utilização de apitos e canções para atrair a caça (veja
Deshayes, 1992).
Os caçadores imitam as técnicas de caça e qualidades da jibóia mais que as
da onça. A jibóia é famosa por seduzir sua presa atraindo-a pela emissão de um
som, por hipnotizar através de seus olhos e por seu encantamento (dau)
incorporado no desenho de sua pele. Edivaldo disse que outras cobras e a tartaruga
que compartilham o dua da jibóia através do seu desenho, são capazes de atrair
caça, mas que somente a jibóia atrai as pessoas. A pessoa sabe quando há um
jibóia por perto, explica Edivaldo, “quando você percebe que você pensou que
97
estava seguindo um caminho, quando na realidade você estava caminhando em
círculos ao redor da jibóia, os círculos ficam menores e menores até que você está
ao alcance dela".
Tecer, um conhecimento das mulheres, é descrito enquanto um
conhecimento dos olhos e das mãos, manifesta-se na capacidade em visualizar um
padrão não visto enquanto se tece linha após linha. Enquanto um conhecimento
das mãos, é um conhecer de como se fazer algo. Para adquirir tal conhecimento, a
menina necessita de paciência para sentar-se e olhar por horas uma tecelã mestra.
Mais tarde é a menina tenta ela mesma tecer, ela progride tecendo de faixas a
desenhos simples. Enquanto uma parte do método de iniciação da jovem tecelã
consiste em observação e prática, a outra parte pretende agir diretamente sobre sua
memória incorporada. Assim, a menina será, sistematicamente, tratada com gotas
nos olhos que induzem sonhos com padrões de desenho e com a Mestra do
Desenho. Sidika, a jibóia fêmea, aparece para a tecelã sob a forma de uma anciã
que lhe mostra todos os tipos de padrões de tecelagem, cada um destes padrões é
acompanhado pelas respectivas canções de tecelagem.

g. Emoções como conhecimento incorporado

Emoções pertencem, também, à esfera do conhecimento incorporado. A


necessidade de se ter por perto uma pessoa amada é expressa nos mesmo termos
que sede, o desejo por água: “ew umpax (água) manuaii", “en mia (você) manuaii".
Amor é uma necessidade mútua: “manu-name-aii" (um sedento pelo outro).
Desejo é glosado em termos de “mia xeakalis" (querendo engolir, tragar),
enquanto ódio e ira contra uma pessoa são descritos como “miki hantxaismaki"
(não falar com você), “mia pikalix" (querendo comer você), ou a ameaça de
canibalismo. O ciúme é expresso em termos de fadiga e preguiça, enquanto
felicidade provoca entusiasmo por trabalho.
E comum entre os pano (Erikson, 1996) e entre os Ameríndios (Colson,
1976:422-499) encontrar a oposição entre doçura (bala) e amargo (muká), quente
(ku) e frio (maísi), termos produtivos quando se fala sobre coipo assim como
98
estados emocionais e caráter. Alguém com um “fígado doce” (taka halapa), ou um
“fígado que sabe muito” (hawen taka unahaida), é generoso e sociável, um estado
interno expresso na superfície por uma “face doce” (besu balapá) (Kensinger,
1995:243). Doçura é especialmente atribuída às mulheres, enquanto os homens são
mais frequentemente associados a generosidade e a sociabilidade, são duapa
(bom), com brilho, um brilho em sua face. Se o primeiro caso associa um estado
psicologicamente agradável ao paladar, o segundo é associado a um prazer estético
para os olhos. Embora as mulheres sejam descritas como quentes e os homens
frios, e o frescor do coração é recomendado aos homens (ser quente significa
perder a calma), o par amargo/doce parece ser mais produtivo no discurso
emocional e corporal, assim como nos discursos sobre saúde e poder do que a
oposição quente/frio. Observa-se a mesma associação entre outros grupos pano
(ver especialmente Erikson sobre a oposição amargo/doce entre os Matis,
1996:194-209).
Porém, há uma ambiguidade ou relativismo nestas dicotomias. Como
acontece com os conceitos cognitivamente importantes neste estilo de pensamento,
o significado e valor de um conceito depende do contexto. As pessoas, em geral,
precisam de uma certa quantidade de amargura no corpo porque a amargura
endurece-o. Entretanto, os homens necessitam mais da amargura que as mulheres
porque estas alimentam os bebés e estes inicialmente precisam somente do doce e
de comida neutra porque seus corpos ainda são macios, maleáveis e vulneráveis.
No outro extremo, um xamã, niukaya (aquele com o amargo), é saturado de
amargura, e neste contexto amargura representa poder. Este poder não deve ser
entendido no sentido metafórico que nós atribuímos a um coração amargo. O
coração do xamã é amargo, o seu sangue e sua carne são amargas e o seu paladar
se tomou amargo. O xamã está saturado de amargura e por isso a carne tem sabor
de resina (sempá), gosto que explica porque o xamã perde o desejo de comer
carne. Este é um exemplo da relação simetricamente inversa entre falar e comer
(como no caso citado acima a recusa do falar associado à ameaça de canibalismo):
aquele com quem se fala, não se come, e vice-versa. O xamã, impossibilitado de
comer e matar animais (porque eles falariam com ele antes que pudesse os matar)
99
pode, todavia, ajudar a outros caçadores pregar peças nas presas, seduzindo-as
para sua roça, com a promessa de que “tem muita banana apodrecendo”.
O uso prolongado e sistemático do pó de tabaco (rapé) combinado a jejum
rigoroso (nenhuma carne, doce, sal, ou especiarias) é outro modo de adquirir o
amargo e, assim, um corpo poderoso, o corpo de um xamã. A história do xamã
herói mítico Tene kuin dumeya ("Tene com tabaco") é a epopéia das vitórias
sucessivas sobre yuxibu aqueles que tomaram os caminhos da floresta inseguros. A
carne de Tene ficou amarga como veneno. Quando ele mergulhou no rio para
tomar banho, os peixes morreram como envenenados (puikama) (veneno de peixe).
Deve ser mencionado, porém, que Tene se banhou após matar sua esposa e o
amante desta. Não está claro no mito se a qualidade venenosa de sua pele é devida
a amargura do tabaco ou se é devida ao estado do homicida que pelo ato de matar
absorve o sangue e o yuxin de suas vítimas43.

h. Yuxin dos humanos


No pensamento Kaxinawa, como vimos acima, o corpo é a pessoa, o “eu”
pensante e o agente sensível responsável por seus atos. O corpo vivente trabalha e
produz resultados no mundo na forma de artefatos, roças, caça e outras pessoas.
Os resultados da existência de uma pessoa e suas atividades, porém, não são
sempre fenômenos palpáveis. Uma pessoa deixa para trás recordações e imagens,
sombras intocáveis que assumem uma existência e agência independente do corpo
e tomam-se, assim, o duplo do corpo. Entretanto, este duplo autónomo continua a
afetar seu “dono” através da lógica da metonímia. Estes subprodutos não-palpáveis

43 Para os Matis e os pano em geral parece existir uma ligação explicita entre sangue e
“alma”, especialmente quando lidando com sangue humano. Erikson (1986:194-197):
“Alors que Fon peut chasser et consommer quolidiennement avec très peu de prècautions
rituelles la pluparl des animaux (en minimisant letir “sanguinité"), le meurtre cFhumains,
au contraire, est accompagné cFabsorpUon cTânie liée à Feffusion de sang...Mais le
guerrier pano, contrairement à son homologue jivaro .... fie cherche pas à s"approprier
Fexcédent d'âme acquis eu luanl (ou consommant). 11 se livre au contraire à des rites
destines à le débarasser du sang-âme adverse."
100
da existência de uma pessoa são chamados os seus yuxin.
Opiniões sobre a quantidade de yuxin que um corpo humano é capaz de
produzir varia. A maioria dos Caxinólogos e informantes, porém, concordam em
quatro4"1 tipos de yuxin. Apenas uma vez escutei Antônio Pinheiro mencionar que
saliva tinha ou era yuxin. Mas, em geral, yuxin é atribuído ao excremento, urina,
olho e a sombra. Nunca foi mencionada qualquer referência sobre a existência de
um yuxin próprio do sangue, do dente, da unha, do cabelo, embora estas
substâncias e produtos corporais continuem afetando metonimicamente o corpo.
Uma primeira distinção a ser feita é entre “ser” e “ter” yuxin. Os yuxin acima
mencionados não somente estão imbuídos de carne corporal (nami), carne com
vida, mas são capazes de agência independente, separada do corpo. Este não é
completamente o caso para outros fluidos (como suor, sangue e saliva, embora
sejam condutores da força vital de uma pessoa) ou para partes destacáveis do
corpo.
“Existem quatro yuxin numa pessoa: yuda baka, a sombra ou yuxin do
corpo, isun yuxin, o yuxin da urina, pui yuxin, yuxin do excremento e bedu yuxin, o
yuxin do olho. O yuda baka, a sombra, fica como batedor: aonde a pessoa passava
ele grita. O isun yuxin cruza com os yuxibu da água, o pui yuxin com os da terra. O
bedu yuxin é o nosso pensamento. Nosso peso se deve ao fato da gente comer
carne se não estaríamos leves. Você pensa na Bélgica e já está lá. Isso é o seu bedu
yuxin. Mas, nós, temos que viajar para ver. O bedu yuxin se movimenta pelo ar. E
isso que o cipó nos ensina (ayahuasca)(Agostinho Manduco)
Desta citação fica claro que só o yuxin do corpo {yuda baka) e o yuxin do
olho {bedu yuxin) podem ser consideradas verdadeiras “almas” no sentido
normalmente dado para o termo, isto é, que anima e dá consciência a um ser. A
existência de duas “almas” diferentes e complementares que juntas animam o
corpo é comum na literatura amazônica e é outra manifestação do complexo

44 Apesar de Deshayes e Keifenheim (1994), e Keifenheim (ms, 1996) adicionarem uma


quinta “alma”, a alma do sonho {nania yuxin), acredito que o yuxin do sonho e do olho
sejam o mesmo (ou, que um seja parte de outro), pois meus interlocutores costumavam
usar ambos os conceitos como intercambiáveis.
101
dualismo que caracteriza os estilos de pensamento ameríndio45. Antes de
considerarmos a complementaridade destas duas “almas” no pensamento
Kaxinawa, vejamos mais detalhadamente outros yuxin, o yuxin da urina e o yuxin
do excremento, versões um tanto quanto anómalas da “noção de alma”.

i. Oyuxin da urina e do excremento e os seus destinos

Os yuxin da urina e do excremento ganham existência quando estas


substâncias são liberadas pelo corpo. Por que este estatuto especial atribuído ao
resto corporal, considerado poderoso e vulnerável (inseparável, como vimos, no
pensamento Kaxinawa) é capaz de produzir yuxin, réplicas ou duplos do ser
humano que os produziu? Só recentemente pesquisadores do pensamento
ameríndio começaram a prestar atenção ao significado dado as substâncias
excretadas pelo corpo.
Entre o Piaroa, o excremento é percebido enquanto excesso de fertilidade
(Overing, 1993). Em tempos míticos, os primeiros seres nasceram através da
defecação. Uma vez que a comida dos Deuses criadores eram substâncias

45 Exemplos deste fenômeno de almas duplas podem ser encontrados em Overing (1993),
para os Piaroa: “lhe life of lhe senses" e “lhe life of ihoiights", em Viveiros de Castro
(1992), para os Araweté: o ta"o we, duplo do cadáver e /-, alma celeste, em Carneiro da
Cunha (1978, 1991), para os Krahó; em Gonçalves (1993, 1995) para os Pirahã onde a
pessoa tem um ‘nome’ (alma) do corpo e um ou vários nomes celestes (recebidos dos
deuses), produtores de ‘almas’ e onde cada uma destas ‘almas’ se divide com a morte em
uma “alma’ canibal e outra ‘presa’; em Gow (1991) para os Piro: alma dos ossos
(monstro) e alma celeste etc. Como podemos ver, cada exemplo de almas duplas
demonstra uma complementaridade diferente. Em alguns casos reconhecemos a oposição
entre uma alma animal (e geralmente mortal) e uma celeste (imortal) coabitando num
mesmo corpo; em outros reconhecemos a oposição entre uma alma interior (alma dos
ossos) e outra exterior (imagem especular da pessoa), em outros ainda, a oposição
recapitula a organização dos seres em predadores e presas. O que é interessante para
razões comparativas é o fato destas cosmologias enfatizarem o caráter inerentemente dual
da agência e consciência humana, sem, entretanto, reduzí-la à clássica oposição entre
corpo e alma. O caso etnográfico mais próximo aos Kaxinawa é o dos Bororo, descrito
por Crocker (1985). As similaridades entre a ‘alma’ do olho e a ‘alma’ do corpo, de um
lado, e o aroe e bope, de outro, foram primeiramente notadas por Townsley (1988) para a
alma do olho e do corpo dos Yaminawa, e para os Kaxinawa por McCallum (1989a). Cf.
102
alucinógenas, seus fluidos corporais tomaram-se altamente potentes contribuindo,
assim, para a criação dos seres do mundo. Excesso de poder e criatividade
conduziram à promiscuidade e violência e tiveram que ser controlados para ser
possível o tempo histórico humano. Portanto, o poder da “vida dos pensamentos”
foi separado do poder da “vida das sensações”. Os deuses foram viver uma vida
etérea e não-corpórea no céu, sem “sensações”, enquanto os animais perderam a
“vida dos pensamentos”. Assim, os seres primordiais perderam sua fertilidade
descontrolada para se tomarem seres humanos normais, quer dizer, seres que
combinaram ambas “as almas”, a “vida do pensamento” e “as sensações”. Uma vez
que a vida das sensações foi dominada pela vida dos pensamentos, os homens não
se reproduziram por meio da defecação mas por meios conceptivos.
Entre o Emberá a defecação é considerada produtiva, uma contribuição da
humanidade para a regeneração do ciclo vital. Os Emberá têm o hábito de defecar
no rio. As fezes alimentam os peixes que, por sua vez, alimentam os humanos.
I
Considera-se que os humanos e outros coipos viventes nutrem-se mutuamente, os
seres humanos produzem alimento através de seus restos corporais e se alimentam
de sua produção: os coipos dos peixes. Uma comunhão de essência física é a
consequência desta reciclagem de energia (Isacsson, 1993).
Uma inteipretação equivalente pode ser dada à seguinte sentença “O isun
yuxin (força vital da urina) cruza (vai viver) com o yuxibu da água, o pui yuxin
(força vital do excremento) com os da terra”. Durante a vida de uma pessoa, suas
excreções, fezes e urina, nutrem os mundos da tena e da água com yuxin (força
vital); quando de sua morte um verdadeiro duplo é liberado, uma entidade
chamada yuxin, um yuxin que será transformado (através de seus cruzamentos) em
ten a e água.
O importante papel que o cheiro desempenha na identificação de objetos e
seres deve ser levado em conta. A força do cheiro é uma indicação de potência.
Quando algo cheira, significa que tem uma parte de seu yuxin volátil. Fezes não
são consideradas matéria morta, mas, pelo contrário, “vivas”. O mesmo se coloca

Lagrou (1991).
103
para o apodrecimento e para a fennentação. Um corpo morto está realmente morto
uma vez que está totalmente seco, sem qualquer líquido ou cheiro. Isto nos leva de
volta a oposição básica entre seco que designa morte e umidade que implica
atividade, que denota vida. Esta oposição complementar organiza a ontologia
Kaxinawa e será tratada em mais detalhe adiante.
Outra importância do cheiro é o papel da fumaça (kui) como um veículo
para a transmissão de influências contagiosas. Os Kaxinawa dizem que alguns
especialistas em ervas conhecem uma planta com um cheiro venenoso que, quando
queimada, emite uma fumaça letal que inviabiliza a vida nas aldeias. Os Kaxinawa
comparam o poder desta fumaça às bombas. Deste modo, vento e fumaça
transportam venenos voláteis e o cheiro é o sinal transmitido às sensações deste
poder invisível.
O excremento, além de cheirar, é associado à qualidade de amargo. O único
excremento que os Kaxinawa comem é o do pequeno peixe bodó. O líder de
canção, Augusto, parecia gostar de comer deste excremento. Certa vez disse, não
sem seu humor característico, que gostou de bodó por causa do gosto amargo
produzido pelo excremento (hawen pui muka pehaidaki.). Portanto, o excremento
deste peixe é preto, associado ao amargo, e nunca comido por crianças pequenas.
A palavra Matses para amargura é chimu, que também significa picante, acre, e,
ainda, excremento (Erikson, 1996:195). A mesma associação entre a qualidade de
amargura e excremento é encontrada entre os Wariapano (um grupo pano pouco
conhecido) que emprega o termo muka (amargura). Outra associação entre
amargura e excremento pode ser encontrada na palavra puikama, veneno de peixe,
extremamente amargo e escuro, que contém o termo pui, excremento.
Deste modo, temos uma cadeia associativa de relações simbólicas entre
amargura e potência, veneno e excremento. Amargura da carne, do cheiro e do
gosto expressam um certo tipo de poder yuxin. Encontramos, também, "aquele com
o amargo", o xamã (mukaya), cuja cante e o paladar tomam-se saturados de
amargura, impossibilitando-o de provar da carne sem associá-la à resina, sempa.
Isto leva a uma outra associação, a de que o sangue tem gosto doce e que a
amargura do paladar do xamã está relacionada ao “falso sangue”, o líquido de uma
104
árvore, resina. O xamã é um vegetariano não por escolha ou hábito mas como
conseqiiência de sua distorcida percepção gustativa: não mais provará a doçura da
carne (nami: polpa das fintas assim como carne animal), somente experimentará a
amargura que caracteriza o sumo do cipó e das folhas, comida de yuxin.
Para os Matis (Erikson, 1996:194), o gosto amargo inclui gostos picantes e
azedos, enquanto no idioma Kaxinawa azedo é chamado bunkax e picante, xia.
Mas, uma similar classificação dos gostos parece estar em operação tanto entre os
Kaxinawa quanto entre os Matis: dividem todas as coisas e seres em duas classes
seguindo linhas de gosto que separam o campo do amargo, substâncias
relativamente perigosas, do da doçura que é relativamente inócuo. O mundo do
poder yuxin, enfermidade e xamanização, é associado à amargura, enquanto o
mundo do crescimento dos jovens corpos humanos em uma atmosfera protegida é
associado à doçura e, também, inclui o sal (isto parece ser regra entre os pano).
Não surpreende o fato destes campos estarem ligados à diferenças de
gênero. O homem absorve todos os tipos de substâncias amargas para assegurar
sucesso em expedições de caça. Esta categoria de "amargura" ardente inclui
mordidas de inseto, urtigas e eméticos como a injeção do veneno do sapo (aplicada
a uma bolha de queimadura sobre o ombro) que induzem à resistência e ao
endurecimento da carne. A mulher precisa de uma cota de amargura e pode usai' as
mesmas injeções de veneno de sapo para ficar grávida, mas sua dieta diária inclui
uma maior dose de “doce” na comida que a dieta masculina. Os homens evitam
comer mamão, banana doce e cana. Estas fontes de doçura são apreciadas pelas
mulheres e crianças nas expedições para as roças.
Alguns aspectos da idéia do poder de contágio associado ao excremento
foram explicados quando colocamos este conceito no contexto semântico mais
amplo da amargura. Mas resta ainda explicar a urina. Se concordamos com
Erikson que no pensamento pano acidez é semanticamente ligada a amargura,
assim como o sal à doçura, entenderemos porque estes fluidos corporais, e nenhum
outro, têm um estatuto especial entre os pano. Através do cheiro forte e “gosto” da
urina e das fezes, estas substâncias comunicam aos sentidos algo sobre seu poder
inerente.
105
No momento da defecação, o yuxin (força vital) do excremento é liberado e
ganha existência em um mundo de seres de seu tipo, o mundo de yuxin. Isso
acontece na floresta, espaço liminar, domicílio do yuxin selvagem, lugar perigoso
para os seres humanos. Neste momento o corpo produz um ser yuxin que escapa de
seu controle e que pode, ainda, afetá-lo. O yuxin liberado é caçado, toma-se presa
e é comido pelo yuxibu da terra e da água sem qualquer dano para seu “dono”, seu
“pai” (ibu), a pessoa que o liberou via a defecação.
Mas os yuxin também podem falar com os yuxin liberados da urina e do
excremento. Siã, um jovem do rio Jordão, disse que existem yuxin da urina e do
excremento que não pertencem aos humanos mas que são yuxin que flutuam
livremente, que podem vir a falar com a pessoa durante o processo de excretar
estas substâncias do organismo. Enquanto o yuxin fala com a pessoa ela não
consegue parar de urinar ou defecar. Isun yuxin e pui yuxin podem sequestrar uma
pessoa por isso, quando possível, as pessoas (especialmente as mulheres e
crianças) vão defecar e urinar na companhia de outros.
As pessoas tomam cuidado considerável com os excrementos enterrando-os,
escondendo-os dos olhos de quem potenciahnente têm alguma má intenção. Caso
contrário, o herbalista/feiticeiro (dauya, "aquele com (ya) o remédio(c/aw)")
poderia achar estas substâncias e misturá-las a um veneno cozinhando-a em uma
folha de bananeira. Se isto acontece, a pessoa produtora das substâncias sentirá
uma forte enxaqueca por volta de meia-noite seguida vómito e de uma diarréia
mortal. Dizem que “antigamente” muitas pessoas morreram deste modo.
A maioria, se não todos, dos adultos têm conhecimento sobre estas plantas
venenosas, porque é até mesmo perigoso o simples toque quando se cruza
acidentalmente com estas plantas. Mas, poucas pessoas estão preparadas para lidar
com estas plantas venenosas. Os herbalistas/feiticeiro (dauya) são introduzidos
neste campo de conhecimento através de rígidas regras de socialização que evitam
o risco de morrerem pelo contato com estas plantas.

j. Os Especialistas em medicamentos amargos e doces


106
“Not until another discovered through his own need that a real Master was at hand
was it leamed that the teaching had been imparted, and even then the occasion
arose quite naturally and the teaching made its way in its own right...”
Zen Stories 1978:67.

“Quando as pessoas sabiam usar o veneno e botar feitiço, parentes matavam


parentes. Quando as pessoas começaram a morrer das doenças de branco,
perdemos muitas gente. Decidimos que precisávamos crescer, para não
desaparecer. Já tínhamos diminuído muito. Agora nossas aldeias estão crescendo.
Muitas crianças nasceram e a nação dos Kaxinawa começou a ficar grande de
novo. Nesta nova aldeia que está celebrando seu terceiro aniversário, dezoito
crianças nasceram e somente duas morreram. Isso é assim porque nossa aldeia é
uma aldeia alegre. Ninguém deveria jamais matar parente de novo. Hoje em dia os
Culina matam sua própria gente com duri. E eles também matam nossa ente com
duri. Nossos velhos conhecem o veneno que pode matar mais ninguém sabe como
tirar duri."
Manuel Sampaio, liderança de Nova Aliança.

No caso Kaxinawa, poderia-se duvidar se o conceito de xamanismo ajuda a


clarificar ou serve apenas para obscurecer uma análise baseada no uso de
categorias nativas. Considerando que matéria e espírito são inseparáveis, uma
distinção entre aflições do corpo e aflições da “alma” não está em operação.
Enfermidade manifesta-se dentro do corpo. Porém, um corpo é uma materialidade
sustentada pela atividade do yuxin, e uma das manifestações de enfermidade é a
separação potencial ou temporária das “almas” que o habitam. Para atacar estes
sintomas são combinadas diferentes práticas terapêuticas. Uma das mais
proeminentes é o uso de ervas medicinais. O papel do curandeiro/herbalista é
importante entre o Kaxinawa . Outros tratamentos adicionais incluem prescrições
alimentares, rezas para o yuxin errante que aflige a vítima, ou para o yuxin cuja
proteção ou ajuda é solicitada no processo curativo. O tabaco é usado para tomar
poderosa a saliva do curandeiro, e a ingestão de ayahuasca para descobrir as
causas da doença. Os sonhos têm um papel importante na identificação do agente
causador da enfermidade.
Esta variedade de técnicas curativas, executada por diferentes especialistas,
foi classificada por Kensinger (1974, 1995) sob a categoria de dau bala (“remédio
doce”), administrada pelo huni dauya (“o homem com o remédio”), e de dau muka
107
(“remédio amargo”), administrada pelo huni mukaya (“o homem com o amargo”).
O mukaya é o único especialista curativo, ou aquele especialista que lida com o
mundo yuxin, que pode receber o título de “xamã” segundo a literatura sobre o
tema. Os Caxinólogos, assim como os meus informantes, concordam que não
existe mais nenhum mukaya na forma que é descrita para os “velhos tempos”
Kaxinawa . Neste sentido, poderia-se questionar se estamos lidando com mais um
exemplo de xamanismo sem xamãs.
Como vimos acima, todas as pessoas são especialistas nos seus
procedimentos com yuxin e "yuxinidade", uma categoria que perpassa todos os
aspectos da vida diária Kaxinawa 4Ô. Líderes de canto cantam para o yuxin e para o
yuxibu nos rituais, assim como em todas as ocasiões que requerem uma solicitação
às forças do yuxin. Os caçadores, tecedores e mulheres jovens preocupados com
fertilidade, falam e obtêm ajuda da jibóia, o yuxibu por excelência. São usadas
amplamente outras práticas para aumentar a “amargura” do corpo. Estas práticas
variam do uso do veneno de sapo ao consumo ritual de ayahuasca. O sonho é
ritualizado e canções específicas relacionam os encontros do sonhador com todos
os tipos yuxibu em suas jornadas noturnas. O universo Kaxinawa está densamente
povoado por yuxin e todo adulto é treinado no procedimento formal para lidar com
suas atividades, sua potencialidade de efeitos perigosos provenientes de uma
exposição ao yuxin.
Vimos que uma pessoa específica assume o papel de mediadora entre o
domínio ào yuxin e o dos seres humanos. Estes especialistas são chamados yuxian.
O mais exposto a "yuxinidade" toma-se o mais associado a seus poderes amargos e
curativos. Mas, segundo os Kaxinawa, nenhum especialista é forte o suficiente
para enviar para o corpo, ou extrair dele, a substância xamânica designada muka
(amargo), ou curar uma vítima de uma enfermidade causada por uma substância
xamânica equivalente, usada por seus vizinhos Culina, designada duri. Assim, se a

46 Uma abordagem ‘democrática’ da figura do xamã, similar a esta, pode ser encontrada
entre os Kagwahiv, onde “everyone who dreams has a little bit of a shaman” (Kracke, W.,
1992), assim como entre os Pirahã, onde todos os homens adultos são xamã (Gonçalves,
1995).
108
definição de xamanismo é limitada ao envio e extração de “flechas” xamânicas ou
substâncias mágicas como duri ou muka, a sociedade Kaxinawa não teria xamãs
embora possuindo uma forte visão de mundo xamânica. Porém, se considerarmos a
existência de especialistas lidando com as forças yuxin invisíveis que habitam a
floresta como um critério que define xamanismo, a cosmovisão Kaxinawa e sua
prática podem ser classificadas como xamânicas.
Em contraste com seus vizinhos Culina (que são considerados pelos
Kaxinawa como tendo xamãs poderosos), os Kaxinawa parecem ter mais medo dos
feiticeiros (huni dauya), especialistas no uso do veneno, que dos xamãs (mukaya).
Para clarificar a distinção entre estes dois tipos de especialistas, uma comparação
com o caso clássico Azande poderia ser útil (Evans-Pritchard, 1937).
Porém, existem diferenças entre o caso Azande e Cahinahua. Entre os
Azande, como entre o Kaxinawa, o feiticeiro, o dauya, faz uso de objetos materiais
para causar enfermidade, enquanto o bruxo, o mukaya, ou o xamã não faz.
Feiticeiros usam fetiches (réplicas), venenos ou partes corporais da vítima para
intencionalmente causar dano (por contágio direto assim como através de
metonímias), do mesmo modo os feiticeiros Kaxinawa envenenam o excremento
ou jogam feitiço sobre um fio de cabelo da vítima. Os meios pelos quais os bruxos
e os xamãs atacam suas vítimas são, ao contrário, imateriais. Para um bruxo, seu
poder se materializa pela enfermidade causada em sua vítima (ou, em alguns casos
específicos, por uma autópsia em um bruxo morto). No caso do xamã seu poder
pode ganhar uma manifestação material na forma de objetos mágicos, muco ou
pedras podem ser exteriorizados de seu corpo ou de corpos de pacientes.
No entanto, a diferença mais importante entre o xamanismo Kaxinawa e a
bruxaria Azande é o fato de que a bruxaria Azande é inconsciente, enquanto um
xamã é totalmente consciente e responsável por suas ações, suas palavras e
pensamentos. Um xamã é um prático treinado para ajudar seus parentes. Isto nos
leva a outra diferença, o fato de que os bruxos nunca são os curandeiros enquanto
os xamãs são, primeiramente, os curandeiros, os que “guerream” e vencem os
inimigos distantes, nunca um parente.
O feiticeiro, huni dauya (“o homem que possui o remédio”), não só é capaz
109
de matar através do envenenamento por excrementos mas pode esconder o veneno
nas saias das mulheres, obtendo os mesmos resultados. A noite a mulher sentirá
uma enxaqueca, depois vomita podendo vir a morrer. As vezes os ataques do huni
dauya às suas vítimas é direto, arranha sua fronte com a longa unha de seu dedo
polegar direito. Esconde o veneno sob a unha e dentro dos brincos feitos de bambu
e fechados com cera (bui). Quando um feiticeiro matou recentemente alguém diz-
se que suas mãos são tingidas de negro com jenipapo e o branco dos seus olhos é
vermelho (ele está “cheio de” ou contaminado pelo sangue de sua vítima). O dauya
é, nas palavras de Antônio, uma pessoa furiosa e sem senso de humor:
“Se você achar graça de sua cabeça careca, porque os dauya são sempre
carecas, se você acha graça, ele põe veneno em você. Se você for sovina (yauxi)
com ele, ele põe veneno em você. Se você recusar de ter relações sexuais com ele,
ele põe veneno em você. (Com um sorriso malicioso). Ser você for sovina comigo,
eu poderia envenenar você. Se você ficasse brava comigo, eu poderia envenenar
você, se eu fosse um dauya. O dauya nunca come carne e nunca cheira perfume.
Quando ele mata alguém passa um mês sem falar com ninguém. Ele não pode
tocar em mulher. Eu não quero saber sobre dau, eu não quero morrer.”

Desta citação percebemos que estamos lidando com o “mal”, versão


perigosa do tipo ideal de dauya, a pessoa que mais deve-se temer na imaginação
Kaxinawa (mais que os guerreiros (que nunca matam um parente) ou xamãs, por
razões referidas acima). A descrição do dauya é uma caricatura de comportamento
anti-social, abuso de poder, cuja presença nunca seria tolerada em uma aldeia.
Apenas.uma única vez ouvi suspeitas de que um velho poderia estar se preparando
para pôr em prática seu conhecimento sobre plantas venenosas. Isto aconteceu no
contexto de uma fissão de aldeia, numa atmosfera de conflito.
Durante uma sessão de ayahuasca, o filho do chefe da aldeia teve uma visão
na qual o pai do líder dos separatistas queria envenená-lo. Esta visão preocupou o
grupo de parentes do rapaz, mas uma vez que os separatistas partiram e foram
deixados em paz, o medo e animosidade cessaram. Este episódio demonstra que no
caso Kaxinawa é o feiticeiro e não o xamã que assume o papel do guerreiro
(embora, a procura de visão com ayahuasca expressa, também, um caráter
110
fortemente bélico)47.

O especialista que cura com plantas medicinais é chamado pelo mesmo


termo com que se designa um feiticeiro. A ambiguidade do termo dauya (“o
especialista no uso de dau"} deve-se à polissemia do termo dau. Dau pode
significar remédio, encantamento e ornamentação. A roupa de um líder de canto é
decorada com penas. As penas são designadas o dau da roupa do líder de canto.
Quando está usando sua roupa, o líder de canto é chamado dauya (“aquele com o
remédio”). Isto é devido ao fato de que está, literalmente, "com o encantamento” e
que os adornos que porta aumentam a eficácia do ritual que está realizando. Outro
fator porque o líder de canto é chamado dauya é pelo fato de que foi iniciado no
conhecimento das ervas.
Plantas de cheiro agradável, pintura corporal, colares de conta e pulseiras
são designados como o dau de uma pessoa. Existem dois lados no poder daw. pode
ser usado para embelezar e curar ou para enganar e matar. Um exemplo da
ambiguidade de dau pode ser encontrado no papel que desempenha o cheiro:
usado para atrair e seduzir, seja em uma expedição de caça, seja em jogos
amorosos. Assim, dizia-se sobre um líder de aldeia, do qual as pessoas se

47 Os homens, tomadores de cipó, das aldeias de Moema, Nova Aliança e Cana Recreio
(população de origem predominantemente ‘peruana’), temem as sessões semanais dos
tomadores de cipó em Fronteira, aldeia habitada por Kaxinawa provenientes da área do rio
Envira, onde trabalhavam na seringa até os anos setenta quando se mudaram para o Alto
Purus. Meus interlocutores afirmavam que o cipó de Fronteira era excessivamente forte e
que nesta aldeia tinha ‘gente que sabe botar feitiço no cipó’. As sessões de cipó de
Fronteira evocam as descritas pelos Yaminawa (Cf. Calavia 1995) que qualificavam o
modo antigo de se tomar cipó como verdadeiras competições ‘guerreiras’ entre grupos
diferentes que se encontravam na floresta para tomar juntos e ‘ver’ quem dominava
melhor o conhecimento do shori (ayahuascá) (Calavia, 1995:116). O mesmo papel de
simulação de ou incitação à briga parece ser desempenhado atualmente pela embriaguez
provocada pela cachaça. O autor conclui que o álcool assumiu o lugar das sessões com
shori, levando a brigas com surpreendente regularidade, assim como assumiu o papel de
sua grande popularidade (1995:115). Esta situação é similar à encontrada entre os Pirahã
onde a ingestão ritual de paricá (pó psicoativo que se ingeria através da aspiração) foi
substituída pela ingestão ritualizada de grandes quantidades de álcool. Assim como
acontecia com o paricá, a pessoa toma sozinha, sem acompanhantes. O estado de
intoxicação resultante transforma o usuário temporariamente em ‘predador’ agressivo que
ataca indiscriminadamente quem se aproximar dele. Persegue os próprios parentes, mas
suas vítimas preferidas são, quando possível, os estrangeiros (Gonçalves, 1997).
111
ressentiam por ele acumular poder e bens, quando retomava das visitas
("expedições de caça") a cidade, trazia um perfume tão poderoso que era capaz de
“enfeitiçar” todas as mulheres da aldeia.
Encontramos a mesma ambivalência com respeito à possibilidade de
acumulação de poder pelo xamã quanto a encontrada em relação ao especialista
em ervas. Embora os Kaxinawa afirmem que os xamãs eram mais poderosos no
passado, observações feitas por outros pesquisadores entre os Kaxinawa e entre os
pano parecem concordar que o papel do xamã é temporário e tema delicado entre
os grupos pano, e ainda menos acentuado e institucionalizado que entre outros
grupos amazônicos (Erikson, 1986:196, 205) 48. Entre os Kaxinawa, xamãs
{mukaya) nunca eram os líderes. A chefia e o lidar com o mundo dos espíritos
eram papéis complementares ligados às metades opostas (Kensinger, 1975). O
líder representa o provedor supremo, o conciliador, o que sabe falar às pessoas,
enquanto a figura do mukaya era mais problemática. Este não caça nem come
carne e não pode ter relação sexual. Não participar destas atividades, constitutivas
do comportamento social, o colocaram à margem das relações sociais cotidianas.
Enquanto o líder de aldeia fala ao amanhecer chamando os homens para o
trabalho, os mukaya falavam somente à noite com e em nome dos que povoam o
mundo dos yuxin.
O fato que os Kaxinawa suspeitem de qualquer acumulação de poder, é um
fator importante que determina a função ambivalente e instável do xamanismo
enquanto um papel social. Um líder de aldeia só é aceito enquanto tal quando se

48 Entre os Matis (Erikson 1996 e sd ) nenhum especialista da “substância amarga” parece


ter sobrevivido ao trauma e à desmoralização pelo contato abrupto e recente com os
brancos. A categoria de substâncias amargas inclui ayahuasca, rapé, veneno de sapo e a
substância xamânica rnuka. O autor argumenta que depois do contato, e a consequente
perda da geração mais velha através de doenças, ninguém se sentia forte o suficiente para
lidar com estas substâncias perigosas. Por esta razão os Matis tinham somente
especialistas no campo das substâncias doces {bata). Os Matis diziam que eram todos
“crianças”, tendo perdido seus velhos, “aqueles que sabem”. Mas esta situação é
considerada provisória pelos próprios Matis e pelo autor, que constatou durante uma
segunda visita aos Matis, que estes já tinham reintroduzido a tatuagem, importante traço
de identificação étnica, porém considerada amarga e perigosa para a saúde, assim como o
veneno de sapo.
112
comporta a favor do bem-estar de sua comunidade; um xamã só será xamã se
conseguir esconder seus poderes especiais. Visto que é considerado não somente
de boa conduta mas também estrategicamente importante negar a posse de poder e
conhecimento, o xamã nunca existirá enquanto posição socialmente aceita. O
xamã surge quando a situação requer um curador poderoso.
O poder pode, facilmente, da mesma maneira que um sonho que desvanece,
ser perdido. Poder não só é perigoso para a vítima mas para o bem-estar de que o
detém. As pessoas têm medo de provocar nos outros inveja, raiva e rejeição porque
estes sentimentos podem gerar vingança por envenenamento ou por “xamanismo
de cobra”, um recurso, em tese, acessível a todos. Como causas para morte “em
tempos antigos”, os mesmos motivos continuam sendo apontados: a falta de
generosidade, a abundância de plantas nas roças da vítima, e a recusa por parte de
uma mulher em aceitar os avanços sexuais de alguém poderoso.
Os Kaxinawa são curiosos e auto-críticos, sempre prontos para reformular
uma pergunta ou se culparem pela própria falta de conhecimento quando se
comparam com os “velhos”, quando não havia brancos ao redor e enfermidade no
mundo. “Naquele tempo, ninguém morria de doença, só de idade, velho, de feitiço
e de veneno”. Diagnose e métodos de cura são, constantemente, negociados e
redefinidos à luz de novas evidências e hipóteses convincentes. Xamanismo é uma
função, não uma posição.
Outro fator que pode ser apontado para a falta de ênfase no poder
xamanístico é uma complementaridade dos elementos idiossincráticos dos
Kaxinawa do rio de Purus em relação ao seus vizinhos “alter-egos”, os Culina,
uma diferença que ajuda a precisar a especificidade das distintas identidades
construídas na relação entre estes dois grupos. Deste modo, os Culina se
especializaram em xamanismo, enquanto os Kaxinawa concentraram-se no
conhecimento detalhado sobre plantas e venenos. O problema reside no seguinte
fato: dau bata (remédio doce feito de extratos de planta) não cura duri, o
equivalente Culina de dau rnuka (remédio amargo). Este feito só poderia ser
alcançado por um “verdadeiro” xamã, o mukaya, e não por suas versões menores,
que são “doces” para a amargura do poder dos Culina.
113

k. O Yuxin do olho e a sombra

Em contraste com os yuxin da urina e do excremento que estão ligados ao


interior do corpo, o yuxin do olho (bedu yuxin) e yuxin do coipo (yuda yuxin) ou
sombra (yuda baka) são ligados aos sentidos e são visíveis na superfície do corpo:
o yuxin do olho é visível na pupila dos olhos, enquanto o yuxin de corpo é visível
na forma de sua sombra. O yuxin do olho é responsável pela visão, e o yuxin do
corpo é responsável pela memória, fala e audição.
O yuxin do olho é chamado o “verdadeiro” (yuxin kuiri) e sua origem é
celestial, enquanto o yuxin do coipo cresce com o coipo como faz sua capacidade
para falar e agir socialmente (Cf. McCallum, 1989a). O verdadeiro yuxin é como
uma semente divina (bedu) ou uma luz plantada no coração e visível nos olhos. A
semente é o yuxin e o coração é seu invólucro, o que a nutre. Quando o feto é
formado esta semente cria raízes em seu coração. A metáfora de uma semente que
cresce em uma árvore é usada para descrever a qualidade da força vital do yuxin do
olho que está enraizada no coipo e é responsável por seu crescimento. Um ser
humano será o resultado deste ato de plantar, quando a semente (yuxin kuin) cria
raízes no coração e faz o coipo ganhar peso e força até que aquele ser humano se
toma um adulto maduro. Como uma árvore ele “saberá” como viver uma longa
vida, isto é, como ter um “coração forte” (huinli kuxi), e quando morrer.
Voltaremos à metáfora da “árvore da vida” mais adiante quando abordamos a
forma do banquinho ritual, uma metáfora chave para o ritual de iniciação de
meninas e meninos.
A presença do yuxin kuin (“o verdadeiro”) no coipo faz-se sentir na batida
do coração e na luz dos olhos. Estes são os lugares onde o verdadeiro yuxin mora.
A origem e o destino do yuxin do olho é o céu, pode-se, então, considerar que o
vínculo deste yuxin com o coipo é transitório. Enquanto para o yuxin do coipo não
há possibilidade de existência fora do coipo, porque ele cresce com o corpo e
incoipora as experiências vividas, para o yuxin do olho existe esta possibilidade.
Sem um coipo toma-se espírito (yuxin) que viaja pelo céu para ir viver na aldeia
114
do Inka celeste, deuses canibais.
Durante determinados “estados do ser” que um pessoa passa, no processo
de sua construção, o yuxin do olho pode abandonar o coipo temporariamente. Por
exemplo, o yuxin do olho deixa o coipo todas as noites quando uma pessoa está
sonhando ou viajando pelos mundos de yuxibu revelados pelo ayahuasca. Pode,
também, deixar o corpo quando este entra em um estado alterado causado por
febre alta ou desmaio, ou quando está desorientado e é capturado pelo yuxin nas
roças ou em expedições de caça. A ausência deste yuxin é percebida quando os
olhos permanecem brancos, sem a íris e sem as imagens refletidas na pupila. No
momento em que o bedu yuxin escapa, um som assobiado, xe! xe! xe!, é ouvido e a
rede da pessoa que dorme balança.
Um das razões por que às vezes é dito que uma pessoa tem só dois yuxin em
vez de mais, pode ser em função desta capacidade do yuxin do olho e da sombra de
se apresentarem independentemente do coipo, não só como imagens mas como
duplos do coipo, como entidades com agência e pensamento independentes. O
yuxin do olho é responsável pela capacidade da visão. Durante o dia esta
capacidade é realizada pelos olhos, durante a noite o yuxin percebe sem as
limitações dos olhos, rosto ou perspectiva.
“Se não tivéssemos sobrancelha e cílio e se nossa testa não fosse tão alta,
nós sempre poderíamos ver o mundo invisível de yuxibu", disse Antônio. Isto
significa que a finitude da forma de nosso coipo limita a original (mítica ou
descorporificada) capacidade ilimitada de visão do yuxin do olho, a essência da
visão holística, agora limitada pelo olho encarnado e emoldurada pelo crânio,
cílios, sobrancelhas (tradicionalmente arrancadas, mas não mais hoje em dia) e
pela testa.
Esta capacidade para visão ilimitada é recuperada durante as experiências
visionárias em que o campo visual muda devido à ausência de um coipo, um
horizonte e um ponto de vista fixo. Descrições deste tipo de visão apresentam o
agente visual como sendo incluído no objeto visto (várias canções repetem a frase
"nós estamos no centro, totalmente dentro de"). Deste modo o agente da visão vê o
que está atrás e na frente dele, sendo levado pelas ondas de visão interior de
115
formas variáveis.
A sombra do corpo, por outro lado, é umywx/w social, com origem terrestre,
cresce junto com o corpo, estando quase ausente no momento do nascimento.
Conforme o corpo cresce, seu yuda baka acumula recordações, emoções,
experiências. Qualquer transformação sofrida pelo corpo tem consequências
diretas no(s) yuxin que o anima. O significado da palavra yuda, “corpo”, expressa
esta qualidade de ser dotado com agência e capacidades para sentir, pensar e agir.
O yuda baka (“sombra do corpo”) é inseparável do corpo, como uma sombra. A
sombra é de fato uma de suas manifestações. Quando o corpo está em repouso, o
baka pode deixar o corpo e pode vagar em lugares distantes onde é percebido
como um fantasma ou como assombração, vulto indefinido que aparece ao
anoitecer. Tais aparecimentos são agourentos porque avisam da morte ou doença
seria que seu dono porta.
Em contraste com o yuxin do olho cuja natureza e capacidade produtiva é a
de viajar durante a noite coletando sugestões, imagens e pensamentos para o
próximo dia, é um mal sinal quando o yuxin do corpo é visto a uma distância do
corpo ao qual pertence. Q yuxin do olho é um agente consciente em suas jornadas
e traz do espaço noturno novidades na forma de premonições sobre visitas,
chegadas, idéias para caçar, rastros para seguir, suspeitas ou hipóteses sobre
possíveis inimigos, ladrões e mentirosos. A sombra perdida errante, entretanto, não
devolve informação sobre sua viagem. Mas, por seu mero aparecimento, comunica
a seus parentes que algo está errado com o corpo a que pertence. Porém, a sombra
é apenas uma sombra que aparece no crepúsculo. Os que a vêem precisarão de
muita conversa e exegese para descobrir a que corpo aquela sombra pertence e que
sombra é aquela que foi vista.
A complementaridade entre o yuxin do corpo e o yuxin do olho segue a
ordem cósmica básica do tempo na forma da sucessão do dia e da noite. O dia é
reservado para a manifestação e atividades dos corpos yuxin incorporados,

49 Alguns informantes afirmam que o que se vê no crepúsculo não é o yuxin do corpo, mas
o yuxin do olho. Esta parece ser também a interpretação de McCallum (1996) quando diz
116
enquanto a noite pertence ao yuxin desincorporado e ao ser yuxibu. Em sonhos a
pessoa se toma o que ela, de certo modo, é: yuxin; o ser humano é esta dualidade
fundida em um: yuxin em conjunção com a carne se tomará em corpo pensante e
atuante. A noite provoca a separação e a potencialização desta dualidade.
Considerando que durante o dia precisa-se ser um, agindo com harmonia para
levar a cabo uma vida diária normal, durante a noite, o yuxin do olho (bedu yuxin)
deixa o corpo, deixando para trás o corpo adormecido.
A interferência do corpo, fazendo a pessoa falai’ durante o sonho, é um mal
presságio e tem que ser tratado com gotas medicinais nos olhos. E se o sonhador
tomar-se sonâmbulo, a situação é ainda pior. Como vimos acima, gestos e
movimentos feitos enquanto o corpo dorme é interpretado como sinais de doenças
específicas. Os gestos e expressões são identificados como posturas e expressões
de determinados animais que serão responsáveis pela enfermidade.
O que parece claro nestes exemplos é que noite e dia, devem ser mantidos
separados. A mistura imprópria dos comportamentos do dia e da noite provoca
doenças. Enfermidade é, aqui, novamente, entendida em termos de caos. Mistura
imprópria significa descontrole e produz uma mutação de matéria. Enfermidade é
uma deformação do corpo produzida por um excesso de atividade yuxin.
Falar e agir nos sonhos significa que não apenas o ''yuxin do sonho” (outro
nome para o yuxin do olho ou o verdadeiro (kuiri) yuxin), mas o corpo inteiro está
envolvido nas experiências noturnas. Este é um sinal da invasão noturna de yuxin
da floresta no espaço familiar e seguro da casa. Estes yuxin não querem somente se
engajai’ com o bedu yuxin mas com a pessoa, chamando-a para ir viver entre eles.

I. Morte e o destino dos yuxin e da carne

O corpo deixa de ser um corpo para se tomar só carne quando as forças de


vida que o animam, e o almoldaram em sua origem, escapam; isto é quando todos

que oyuda baka nunca abandona o corpo.


117
os yuxin deixam o corpo, nenhum movimento, nenhuma agência permanece na
matéria morta. Isto não significa que a carne permanece totahnente sem yuxin.
Enquanto há sangue na carne crua, existe yuxin significando perigo para
comedores potenciais. Para algo tomar-se comestível, tem que sofrer uma
transmutação de qualidade pela ação de fogo. Como veremos adiante, este fato é
de relevância para a compreensão do endocanibalismo Kaxinawa .
A previsão da morte é anunciada quando o paciente está inconsciente. O
bedu yuxin já partiu, os olhos estão abertos e brancos. Isto não significa, porém,
que o “verdadeiro yuxin” (yuxin kuiri) deixou o corpo, porque parte dele ainda vive
no coração e continua animando o coipo. “Mi Bexuxail” (Você já é cego!) “Na en
mia\" (Não! Eu ainda estou aqui!). "Yama uinlã kaxamishuki. Mia lakakinã bedu
yuxin kakinã” (Quando “aquilo com que se vê”, nós (os parentes de perto) sempre
choramos. Quando o bedu yuxin parte um choque elétrico é sentido".) (Antônio
Pinheiro). Cinco ou dez dias depois, a pessoa é declarada “realmente” morta.
Quando uma pessoa doente está inconsciente, "quer morrer", toda a família
é chamada para se congregar ao lado de sua rede. Assim, quando Augusto sofreu
um derrame no meio da noite, crianças e adultos, quase a aldeia inteira, ficaram
acordados em tomo de sua rede, pranteando-o rituahnente. Edivaldo, seu genro,
líder da aldeia, gritou em seu ouvido: “Olha, sogro, escuta! Aqui estão sua esposa,
aqui estão seus filhos, olhe para ela, ela está te chamando!”. Foram queimadas
folhas fragrantes para mandar embora os yuxin que tinham vindo para levá-lo.
Augusto contou para a audiência o que via: pupu yuxibu (o yuxibu da coruja)
anunciando sua morte, a irmã morta lhe oferecendo sopa de milho, seus parentes
mortos chegando e o chamando. Neste momento, os vivos gritaram mais alto e os
seus olhos “voltaram”, se abriram de novo. Seu genro o sacudia, ele abriu os olhos
e pôde ver novamente. "Eles estavam todos lá", Augusto sussurrou à sua esposa.
O destino do bedu yuxin (yuxin do olho) é a terra dos mortos, a aldeia
divina do Inka. O bedu yuxin da pessoa doente sabe que vai morrer e começa a
explorar o caminho que leva a aldeia de Inka no céu. Mortes súbitas, como as de
homens brancos que morrem por tiros ou são esfaqueados em brigas, são
problemáticas, porque, segundo Edivaldo, estes yuxin se perdem. A morte por
118
doença e envelhecendo ajuda a pessoa agonizante e sua família a se preparar
corretamente para a separação.
Informações sobre o destino do yuda baka (“sombra de corpo”) são
contraditórias. Uma primeira compreensão sugere que somente o bedu yuxin
(yuxin do olho) empreenderia a jornada para o mundo celeste, enquanto o yuxin do
corpo seria transformado em um monstro cabeludo (esta é, também, a
compreensão de McCallum (1989a)). O fato de que o yuxin do corpo cresce com o
corpo, e incorpora seus sentimentos sociais dificulta a separação deste yuxin do
corpo e de seu lugar no mundo. O monstro é a manifestação de pesar, de dor, um
não-ser, um duplo do morto e não do vivo (como entre os Krahó, Carneiro da
Cunha, 1978). Desde de que não se tenha um corpo, nem um lugar na aldeia, o
monstro se toma um ser desenraizado, um yuxibu, "não deste mundo", um outro.
Um ser vagante que assusta e persegue os vivos e que a partir de agora retraça os
passos do corpo, desde sua origem, até chegar onde o coipo nasceu. Durante
I . .
minha última viagem de campo, Augusto negou, msistentemente, esta
interpretação afirmando que por causa de seu caráter etéreo, sendo uma sombra, o
yuda baka (sombra do coipo) segue o yuxin do olho para o céu. Não tem
substância para ficar preso à terra. O que fica na terra são as pesadas substâncias
corporais, as que contêm líquido. Augusto explica do seguinte modo:
“Quando a pessoa morre, sua carne é transformada, seu sangue é
transformado, em cabeça de prego, fonniga-de-fogo, ixam pakeya (aranha grande),
arriba-saia, taioca, pui milidan (formiga que somente come fezes); a pessoa morta
se transforma; suas veias se tomam minhocas, minhocas que vivem na terra, seu
sangue, sangrando na terra.”50

O corpo é um todo signifícante, é tão físico quanto mental e social. A


decomposição do corpo dá origem a novos seres, novos fenômenos no mundo. Na
explicação dada por Augusto, ele refletia sobre a morte de um corpo de um ponto
de vista físico, transfonnativo. Os elementos que uma vez constituíram um corpo
têm que se tomar outra coisa. Sangue, que é o agente da transformação por

50 “Huni mawai, hawen nami dami, hawen hinú dami, tsisa besui, mai humpux, ixam
pakeyu, pui pi.si, maisan, pui niitidan; mawa damia, hawen punu dami nuinã, nuin
119
excelência, não desaparece quando é enterrado, transforma-se: veias transformam-
se em minhocas, a carne em formigas e o sangue passa a irrigar a terra. O sangue é
parte do fluxo constante de energias que constitui a cadeia de predaçào, de
plantação e de transformação.
O yuxin do olho, por outro lado, volta para o lugar de onde veio.
Desaparece no céu na forma de um pássaro voador (ou besouro, McCallum, 1996).
Nuvens cobrem o sol e os deuses Inka preparam a sua recepção (Deshayes e
Keifenheim, 1982). De um ponto de vista físico, como aquele tomado por Augusto
na discussão sobre morte, a sombra de um corpo é tão leve quanto o bedu yuxin
(yuxin do olho) e deveria seguí-lo: quando a fusão do mundo divino e aquático é
quebrada pelo advento da morte, o que é leve sobe e o que é pesado permanece em
baixo. O que era dois tomou-se um no corpo animado, que podemos designar por
pessoa. No momento da morte a pessoa transforma-se em outro, e cada elemento
volta para sua origem separada. Para um novo ser humano ganhar existência, as
partes separadas terão, mais uma vez, que se misturar.
Mas existe também uma interpretação social e emocional sobre o coipo e de
seus yuxin após a morte. A definição do coipo é social, porque, como vimos
acima, a pessoa Kaxinawa inclui seus parentes próximos. Pessoas que viveram
junto por muito tempo, se alimentaram e foram alimentadas uns pelos outros.
Comida é uma metáfora importante na sociabilidade Kaxinawa. Não compartilhar
comida sinaliza falta ou recusa de relação social: alguém que não compartilha
comida e palavras "quer comer você", está com muita raiva; anti-socialidade é
expressa pela metáfora do canibalismo. A oposição complementar de compartilhar,
alimentar e cuidar é predação.
Isto explica a existência social do monstro que cresce da sombra: é a
memória mutuamente compartilhada pelos mortos e vivos que não querem se
separar, se despedir. Enquanto o lugar social e pessoal ocupado pela pessoa
falecida faz parte da memória, o monstro estará por perto. A maioria das pessoas
dizem que baka, a sombra do coipo, a memória e a fala (a consciência social da

maianu, hawen himi maeanu himei." (Augusto Feitosa)


120
pessoa), não seguem o bedu yuxin (yuxin do olho). A sombra poderia parecer leve
em sentido físico, mas é emocionalmente muito pesada.
Uma ilustração do monstro proveniente de uma morte inaceitável e de uma
difícil despedida é a cabeça insaciável e, etemamente, sedenta do Yube morto (o
irmão mítico incestuoso) assombrando seus parentes vivos e lhes pedindo,
incessantemente, água. Porque não tinha corpo, a água não podia ser retida e,
assim, a cabeça não consegue saciar sua sede. Esta figura exemplifica em uma
imagem dramaticamente evocativa o dilema da morte (uma memória sedenta sem
um corpo vivente) e mais uma vez o vínculo semântico entre estar sedento e perder
uma pessoa amada ganha significação com a palavra manuaii (perder, precisar,
sentir falta de água ou de uma pessoa amada).

2.3. Dualismo Simbólico: Yube/Inka, Dua/Inu

a. Seções e Metades entre os pano

“The self gains its existence with the individual assuming the role of the other,
viewing itself and responding as the other would.”
Shanon, B„ 1993:141.

De um ponto de vista comparativo, a organização social pano oscila entre


uma ênfase em grupos formados pelas seções doadoras de nomes (como entre os
Marubo que não tem um sistema de metades, Melatti, 1977:83-120) e uma ênfase
na relação complementar entre metades. Embora os Kaxinawa compartilhem com
outros pano o fenômeno de seções designado xuíabu (grupo de homónimos),
resultado de regras do matrimónio de tipo kariera associadas a um sistema
onomástico em que os nomes retomam a cada geração alternada, na vida ritual
assim como no ordenamento conceituai do universo acentua-se o papel
complementar e simbólico das metades.
Uma razão para esta ênfase nas metades às expensas das seções kariera
poderia ser encontrada na sóciopolítica Kaxinawa . Duas metades podem
121
idealmente constituir juntas o todo, uma sociedade “auto-suficiente” socialmente.
Uma aldeia Kaxinawa é, preferencialmente, endogâmica. O casamento realiza-se
no interior do grupo de parentes (primos-cruzados de primeiro grau) em detrimento
de afins não relacionados ou genealogicamente distantes, construindo, assim, um
sistema de matrimónio baseado na prescrição do casamento com uma pessoa de
uma seção oposta embora equivalente no sistema.
Este não parece ser o caso de outros grupos pano como os Shipibo-Conibo e
Cashibo do rio Ucayali e os vários grupos nawa do Juruá-Purus designados pelos
Kaxinawa sob o nome Yaminawa (incluindo os de relação próxima como os
Sharanahua, Marinahua e Mastanahua, assim como os de relação mais distante
como os Amabuaca e os recentemente contatados Parquenahua referidos como
Yora ou Nahua). E também não é o caso dos Katuquina (Cofacci, 1994),
Jawanahua, Mayoruna (incluindo Matis, Matses e Korubo) e Marubo da área do
Javali. A maioria destes grupos (excluindo os da área do Ucayali) é, de fato, uma
mistura de um número grande de grupos menores que desapareceram como
conseqiiência das perseguições (“correrias”) empreendida por mateiros. Estes
mateiros precederam a invasão dos seringueiros durante o boom da borracha que
durou do último quartel do século XIX até a primeira década deste século.
Há outro fator de interferência, interno, próprio aos grupos pano, não
relacionado à penetração dos brancos na região que foi responsável pelo arranjo
dos grupos pano nesta vasta área: “o contraste paradoxal entre a drástica
atomização e homogeneidade considerável entre os grupos pano”. Erikson
considera que esta é uma característica forte dos pano ligada ao fato de que
“embora “alteridade” e “violência” conduzam objetivamente à guerra, emicamente,
são antes de tudo a base fundamental da ontologia dos povos pano" (1986:185).
Ou, guerra e antagonismo que conduzem à extrema diferenciação entre pequenas
comunidades que se confundem com as famílias extensas, poderia ser o idioma
sociológico que os pano compartilham sendo responsável, por meio da constante
troca antagónica, por uma homogeneidade comparável ao que foi observado para o
caso Jívaro e Yanomami.
Os Mayoruna foram especialmente temidos por sua beligerância,
122
sequestravam mulheres e crianças (a maioria pano) que eram introduzidos e
adotados por sua sociedade. A iniciação dos novos membros no grupo era marcada
pela imposição de uma tatuagem facial, a marca mais importante e visível da
identidade étnica pano. Os Shipibo sequestraram mulheres para o casamento e
homens para serem trocados por armas de metal com os comerciantes regionais
(Keifenheim, 1990:90). A regra de casamento Shipibo é casar com alguém
genealogicamente distante obedecendo, porém, os limites étnicos; uma inversão da
regra Kaxinawa. Os Shipibo incorporaram, também, os Conibo e, agora, os
extintos Shetebo. A prática de casar e, com isso, incorporar o inimigo não soa
estranho na paisagem pano e amazônica.
Este trabalho pretende demonstrar que em comparação com este estado de
coisas encontradas nos demais pano está em forte contraste com a endogamia
Kaxinawa e sua pacificidade social revela um contraste acentuado de ideologia e
praxis. Esta diferença no estilo e valor, não precisa ser tão antiga quanto
poderíamos ser levados a pensar. Erikson, de um ponto de vista Mayoruna ou pano
geral, sugere que o isolamento atual ("m/7 repti conlemporain sur eux-mêmes ") dos
Kaxinawa deve ser temporário e a pouca ênfase dada às seções em favor das
metades poderia estar ligada a um isolamento auto-imposto.
Keifenheim, abordando a questão a partir de um ponto de vista Kaxinawa,
sugere que eles e não os seus vizinhos pano poderiam ser os mais próximos de um
“modelo proto-pano”. Os pano compartilham uma lógica concêntrica que divide a
humanidade em três categorias: “nós”, “outros” (semelhante a nós), e
“estrangeiros” (os brancos). Keifenheim afirma que apenas o sistema conceituai
Kaxinawa identifica o polo do Outro em termos que merecem ser designados
enquanto uma categoria, enquanto outros grupos menos homogéneos (Matis,
Yaminawa, Amahuaca etc.) subsume a alteridade sob um único polo bem definido,
aquele do “eu”, qualificado pela categoria de kuin (“próprio”, “verdadeiro”) e seus
equivalentes em outras línguas pano (kikin em Shipibo, kimo em Matis, koi em
Yaminawa etc.).
O pólo do Outro entre o Kaxinawa pode ser representado pela categoria
bemakia (“impróprio”, “outro”, o que é excluído do campo do “eu”) e deste modo
123
o estrangeiro absoluto (nawà) seria designado por huni bemakia, um ser humano
com quem nenhuma relação poderia ser possível. Através da aplicação das duas
oposições classificatórias kuin/kuinman (totahnente próprio/não totalmente
próprio) e kayabilbemakia (bom/impróprio) ao campo da identidade, a autora
obtém, por um lado, uma dualidade entre eu/não-eu e, por outro lado, não-
outro/outro 51. Ambos os pólos de referência, “eu” e “outro”, são considerados
"clairement défini" e "fermée et immuable" (Keifenheim, 1992:80). Na primeira
oposição, o termo “eu” está definido, enquanto na segunda oposição o definido é o
termo “outro”. Juntos, ambos os termos, definem o campo intermediário do não-eu
e não-outro, o campo de transição entre identidade e alteridade.
O "empobrecimento da conceitualização" da alteridade entre os não-
Kaxinawa pano em que a única qualificação para alteridade é um “não-eu”,
poderia estar refletida em uma "perigosa permeabilidade" das fronteiras e limites
étnicos (Keifenheim, 1992:83). Se este argumento fosse tomado à letra, a maioria
das ontologias ameríndias correriam o risco de dissipação e desaparecimento,
devido ao seu difundido caráter “canibalístico”, um elhos cultural que “consome”
alteridade em um processo constante de se reinventar.
O fato é que os Kaxinawa, assim como seus vizinhos mais próximos, os
Yaminawa do Peru (Townsley, 1988), apresentam um elaborado simbolismo de
metades. Um dualismo que é “bom para ser pensado”. Um dualismo que permite
flexibilidade nos limites assim como é uma reflexão elaborada sobre o papel
constitutivo da alteridade na construção da sociedade. Em todos os rituais uma
metade desempenha, altemativamente, o papel de estrangeiro, do inimigo
interiorizado, enquanto a outra desempenha o papel do anfitrião. Dualismo de
gênero, jogos de inversão de papéis e antagonismo entre os sexos seguem a mesma
lógica do dualismo de metades, especialmente durante os rituais que tematizam o
aumento da fertilidade52.
A possibilidade de inversão de papéis de gênero e metades reflete uma

51 Categorias identificadas e previamente interpretadas por Kensinger (1975).


52 Para rituais de fertilidade e simbolismo de gênero entre os Kaxinawa veja McCallum,
124
preocupação com o significado da alteridade e uma curiosidade em refletir sobre
como alguém se sente quando ocupa o lugar de outro. Embora os papéis de gênero
na vida diária sejam claramente expressos, esta divisão nunca é representada pelas
partes envolvidas como algo dado, mas sim como resultado de escolhas. A ênfase é
posta na escolha. A mensagem parece ser que a possibilidade de se transgredir
simbolicamente os limites do gênero no mito e no ritual, expressa a verdadeira
possibilidade de exceções e inversões na vida diária, tópico ao qual voltaremos
adiante. Ser capaz de se engajar em atividades produtivas marcadas pelo gênero
implica o pertencimento a um grupo, grupo com autonomia dentro de seu próprio
campo e orgulhoso de suas realizações. O jovem adolescente para pertencer a este
grupo tem que ganhar domínio sob determinadas técnicas e jogos, e é dentro deste
grupo que ele/ela adquirirá uma identidade moldada por meio de um estilo
específico de comportamento e de falar, assim como aprende lidar com o outro
gênero, a outra metade indispensável a ser conquistada.
Ó paralelo entre gênero e complementaridade de metades não pode ser

levado muito longe porque se as associações simbólicas para o pertencimento as


metades existem, na vida diária não há nenhuma diferenciação, de fato, no papel
desempenhado por membros que pertencem a metades diferentes. As mulheres,
inani (a parte feminina da metade da onça) assim como as banu (a parte feminina
da metade do brilho), cozinham, fiam, pintam, tecem, enquanto os homens, inu (a
metade da onça) e dua (a metade do brilho), caçam, pescam, tecem cestos de carga
e confeccionam arcos e flechas. Algumas especializações parecem estar associadas
às metades mas nunca de um modo rígido. Mais que o vínculo simbólico entre por
exemplo as qualidades de uma pessoa dua e a função de xamã, e as qualidades de
uma pessoa inu e a de líder de canto (ou líder de aldeia), parece existir uma
necessária complementaridade entre ambas funções.
Para uma aldeia ser considerada completa, precisa ter um líder de canto e
um líder político. Normalmente, uma nova aldeia origina-se através da junção
destes dois líderes com seus papéis e habilidades complementares. Os tipos de

1989a.
125
aliança podem variar na constituição de uma nova aldeia. Idealmente (Kensinger,
1975) os líderes deveriam ser da mesma geração e trocar suas respectivas irmãs,
porém, mais freqiientemente (nas aldeias que observei) o núcleo de uma aldeia
nova foi construído em tomo da junção de um líder de canto mais velho e de um
genro mais jovem. O sogro segue o genro na abertura de uma clareira para a
construção das casas e constituição da nova aldeia. Se o genro "sabe falar a seu
“povo” e o faz se sentir feliz e cheio de energia para trabalho", e se o sogro é
capaz de atrair as pessoas pela performance dos rituais, outros parentes próximos
sentir-se-ão motivados a seguí-los. Considerando-se que a aliança entre duas
famílias por matrimónio é a pedra de toque de uma aldeia nova e que um
matrimónio formal é contraído entre pessoas de metades diferentes, há uma chance
significativa do líder de canto e do líder de aldeia pertencerem a metades opostas.
Dependendo da personalidade, conhecimento e experiência da esposa do
líder de uma aldeia, esta pode se tomar a líder das mulheres o que implica que ela
organize o trabalho das mulheres, convocando-as para trabalho. O líder feminino
convocará reuniões apenas para o trabalho coletivo de colheita e fiação de algodão
e para as grandes festas. O trabalho diário é organizado por meio de convites
informais para os parentes próximos ou amigas para acompanhar a dona de uma
roça e compartilhar a colheita.
Por outro lado, homens encontram-se diariamente ao amanhecer em frente
da casa do líder da aldeia para discutir as atividades que cada membro da
comunidade desempenhará naquele dia. Atividades masculinas, como caça e
pesca, são solitárias, embora algumas tarefas excepcionais, como a construção de
uma casa, a limpeza de uma roça nova ou a preparação de rituais são atividades
coletivas. Observa-se que reuniões formais masculinas não refletem uma vida
social ou coletiva mais fortemente marcada para homens do que seria o caso para
mulheres, consideradas pela Antropologia tradicional (Collier & Rosaldo, 1979),
limitadas universalmente ao “privado”, à esfera doméstica. Pelo contrário, os
homens reúnem-se para compensar o relativo isolamento que a maioria de suas
atividades diárias lhes impõem; as mulheres executam todas as atividades, de
plantar à preparação, da comida e cuidados com os filhos, em companhia de
126
grupos, menores ou maiores, que incluem a família, os vizinhos e visitantes. As
casas Kaxinawa são abertas em parte ou completamente e são construídas umas
próximas às outras o que possibilita uma intensa comunicação e visibilidade entre
casas como se vivessem juntos numa grande maloca. Os Kaxinawa dizem que
estas malocas alojavam aldeias inteiras e comportavam até cem pessoas. Este estilo
habitacional foi abandonado quando mudaram-se das cabeceiras dos rios para às
margem dos rios navegáveis.
Especialidades masculinas estão divididas em uma variedade de papéis,
mutuamente exclusivos, de liderança: líder de aldeia, líder de canto, curador
herbalista (há vários tipos de curadores herbários, cada um especializado em
doenças diferentes), líder de sessão de ayahuasca, professor e pastor (quando há
um). Posições femininas de liderança podem ser ocupadas por várias mulheres
proeminentes. É suposto que as esposas do líder de uma aldeia (o líder, via de
regra, tem duas esposas) tenham grandes roças para a frequente preparação de
comida para a coletividade. A primeira esposa é que tem a responsabilidade de
convidar e organizar. O papel de anfitriã pode ser executado por sua mãe
(normalmente a esposa do líder de canto). Este é o caso quando a esposa do líder
de aldeia é ainda jovem. Enquanto precisa-se do apoio logístico da mãe da esposa,
o casal compartilhará a casa dos pais da esposa (devido a uxorilocalidade nos
primeiros anos do casamento). A posição de sogra do líder de aldeia parece ser
estratégica. Enquanto os homens velhos retiram-se da discussão política tomando-
se, relativamente, silenciosos em público, as mulheres mais velhas podem ficar
bastante influentes; elas falam nas reuniões das mulheres assim como nas dos
homens. Um caráter notável na fala destas mulheres mais velhas é que falam mais
alto que as mulheres jovens e estas últimas, quando em público, preferem falar
baixo, quase sussurrando.
Somente se a esposa do líder de aldeia ou líder de canto é uma reconhecida
tecelã será ela que irá organizar as sessões de fiação coletivas no momento da
colheita do algodão. Parece existir uma associação entre o tecer e as qualidades de
uma pessoa banu, por um lado, e a pintura corporal e as qualidades de uma pessoa
inani, por outro (esta é uma informação derivada da canção ritual e da fala
127
masculina, não é parte dos discursos femininos no dia-a-dia). Novamente, o que
parece prevalecer é uma complementaridade nos papéis e habilidades, mais que
um vínculo rígido entre determinados papéis e o pertencimento a metades. As
metades conceituam a dependência mútua entre diferentes elementos no mundo e a
necessidade da alteridade para identidade existir, não definindo prerrogativas de
grupo ou classificando pessoas em categorias mutuainente exclusivas por meio de
definições substancialistas das especialidades de cada metade. Deste modo, todo
ser e toda forma é considerado o resultado da mistura apropriada da diferença. E
por meio desta raiz ontológica que sustenta que dois são necessários para fazer o
um que gênero e metades se encontram. Neste sentido, não nos surpreende o fato
de encontrar entre os Yaminawa, assim como entre os Matses e os Matis (Erikson,
1996:90-108) a ligação entre gênero e metades: uma ligada à feminilidade e a
outra à masculinidade. Uma associação semelhante entre gênero e metade pode ser
encontrada, também, entre Kaxinawa (McCallum, 1989a).
Seguindo Townsley (1988), a metade Yaminawa Roa representa o mundo
aquático e celeste, enquanto a metade Dawa representa a terra e a floresta. A
primeira metade está qualificada pelo feminino e é ligada ao interior. As
qualidades de maciez, apodrecimento, umidade, consanguinidade, e chefia estão
sob a rubrica desta metade, e os anciões, as crianças pequenas, assim como as
mulheres estão ligados ao espaço interno da aldeia. Por outro lado, a metade dawa
é ligada de forma explícita ao exterior, à aqueles que vêm de fora {dawa é a
variação Yaminawa para o nawa dos Kaxinawa), à dureza, a secura, a vida adulta
masculina e, a sua expressão mais característica, à caça. São os homens que
negociam com o mundo estrangeiro, com os brancos e com os espíritos da floresta.
A floresta é considerada um espaço masculino e o homem se quer ter êxito na
expedição de caça, deve evitar carregar consigo cheiros da esfera doméstica. Neste
sentido, a metade masculina dos estrangeiros {dawa) é perfumada (da mesma
forma que o morto quando passa a morar nos mundos celestiais), enquanto a
metade feminina dos parentes (próximos), o lado dua da realidade, exala cheiro de
material perecível, orgânico e odores corporais.
Entre os Matses da área do Javali (Erikson, 1996:90-108), uma metade é
128
chamada bedi (“pintada”, designação metonímica para onça) e é ligada ao
comportamento predatório masculino, enquanto a outra é designada macu
(fermento (Erikson) ou minhoca (Romanoff, 1984)) e é ligada à esfera feminina da
fermentação. Deste modo, as metades expressam a complementaridade de gênero
entre a dádiva da carne, masculina, e a da bebida fermentada de milho, feminina.
A associação da metade macu à produtividade feminina é expressa pelo fato de
que as pessoas desta metade eram responsáveis para manter as minhocas longe das
plantações de milho, enquanto não era permitido para as pessoas da metade da
onça olhar para o milho com medo disto lhe causar algum malefício (Romanoff,
1984:96). Outro aspecto do dualismo Matses (assim como do dualismo Matis e
Yaminawa) é que, embora o casamento com primos-cruzados seja recomendado, a
exogamia de metades não parece ser obrigatória. Observa-se, então, que este
dualismo é mais “simbólico” que “prático” se comparado às metades Kaxinawa
que não servem apenas para conceitualizar forças cósmicas que atuam no universo
ou para estabelecer o pertencimento de todo ser humano a uma destas duas
dimensões que dividem todos os seres do mundo, mas, também, para organizar a
vida social, no nível prático das escolhas matrimoniais.
Há, ainda, outra interpretação para a flexibilidade do sistema de metades em
relação as preferências matrimoniais, interpretação que deriva do fato de que
metades estão ligadas aos pólos complementares do interior e exterior. Se, como
vimos, os Mayoruna e os Yaminawa reproduziam de forma atomística suas
sociedades pela introdução e adoção de cativos, podemos entender porque a
alteridade real toma-se mais importante do que a divisão simbólica da sociedade
em interior e exterior. Se para os Yaminawa a metade associada à alteridade é
qualificada como masculina, enquanto as mulheres pertencem ao interior, entre os
Mayoruna, parece ocorrer o oposto. Mulheres são cativos e homens são
capturadores. Deste modo, são as mulheres, e não os homens, que estão associadas
à alteridade, ao exterior e à inimizade.
Os Matis apresentam um dualismo em latência. Erikson (1996:90) sugere
que isto poderia ser devido, parcialmente, à redução populacional drástica sofrida
pelo grupo nas últimas décadas. Parece ter existido duas metades, uma chamada
129
ayakobo e a outra tsasibo (tsasi: endurecido), e dois motivos recorrentes, losangos
e círculos, poderiam ter estado, tradicionalmente, ligados às metades. Por dedução
e associação com os dados obtidos entre os Matses, grupo mais próximo dos
Matis, o autor conclui que ayakobo deve estar relacionada ao feminino, ao
perecível, à doçura e à fraqueza, enquanto tsasibo estaria ligada a onça, a predação
masculina, à amargura e à dureza. Porém, hoje em dia nenhum Matis reivindica
pertencer a esta metade ayakobo, e todos os ayakobo são identificados como
estrangeiros: Matis Utsi, “outro povo”, “mais ou menos ridículo (ou perigoso)
como os Marubo e, acima de tudo, os Korubo", seus inimigos e ‘péssimos e
preguiçosos caçadores’ (Erikson, 1996:94). O costume Matis, tanto masculino
quanto feminino, de prender longas e finas espinhas aos pequenos orifícios
perfurados nas narinas, evoca de um modo, notavelmente rico, a identificação
visual com os “bigodes” da onça. Ao invés de identificar uma metade com o
exterior, os Matis parecem ter esvaziado uma de suas metades, aquela vinculada à
alteridade, projetando-a sobre o exterior. A mesma consciência da
indispensabilidade da alteridade e a necessidade vital de incorporação dos poderes
exógenos para a existência da sociedade ainda persiste, e esta parece ser a mais
importante fundamentação lógica por trás da grande variedade dos dualismos
amazônicos. Deste modo, a permeabilidade das fronteiras pano que separam o
interior do exterior parecem ser entendidos pelos nativos como de importância
vital para a constituição de sua identidade e, consequentemente, de sua
sobrevivência social.
Entretanto, temos que lembrar novamente que quando falamos em
dualismos estamos lidando com gradações e não com oposições mutuamente
exclusivas. Para usar um exemplo Kaxinawa, todo ser humano é formado por
substâncias masculina e feminina (ossos e pele, respectivamente) e por comida
amarga e doce, da mesma maneira como compartilham qualidades dua e
qualidades inu. Seres humanos e os fenômenos incorporados do mundo foram
criados pela mistura apropriada destas qualidades cósmicas. O estado de “pureza”
primordial era o de não-ser, um tempo de extremos, de letargia no mundo do céu e
de fluência de formas no mundo da água. Este era o tempo de antes do mundo
13(
terrestre adquirir a forma e substância que tem hoje. Esta forma e substância é
consequência da interdependência das metades e do gênero.

b. Yube, o ancestral / Inka, o inevitável afim

“In the tension between dark and light lies the power of the universe.”
Provérbio Tibetano53

No nível da ontologia, a vida é percebida pelos Kaxinawa como


consequência da existência de distinções entre qualidades diferentes: a cavidade da
escuridão permaneceu separada do amanhecer, a da friagem separada do calor. Os
seres primordiais uniram e ordenaram estas qualidades de friagem e calor,
escuridão e luz em uma sucessão rítmica para alternar dia e noite, assim como
compensar o calor com o frescor. Isto aconteceu em um tempo quando o mundo do
céu ainda não era separado da terra e do mundo da água. A vida na tena resultou
da divisão e subsequente ligação dos mundos de cima e debaixo. A tena é uma
síntese destes mundos e ao mesmo tempo estado de transição entre eles, a
humanidade é uma fonna temporária de solidez (a existência incorporada) entre
fluência aquática e eternidade solar.
Esta origem dual da vida na terra está refletida nas metades. A metade dua
(brilho) é ligada ao mundo da água e ao seu Ibu (o pai, dono ou mestre), a
primordial anaconda, Yube, dona dos líquidos doadores de vida, da chuva ao
sangue e às drogas. Estas associações ligam Yube à maciez e maleabilidade, a
potencialidades de fonnas assim como tudo aquilo que é perecível. A metade inu
(onça), por outro lado, está ligada ao mundo do céu e seu mestre é o Inka, dono do
ouro, das contas, do metal (mane), fogo, pedra e gelo, aquilo que sustenta a
qualidade de dureza e o que é imperecível. Yube reina durante a noite através de
sua incorporação lunar, enquanto Inka reina durante o dia através do fogo de
cozinha, do sol.

53 Citado em Lindsey Crickmay, paper 1997.


131
Embora os emblemas de cada metade, fi^e/lua e Inka/So\, sejam vistos
como símbolos de alteridade (que implica inimizade e comportamento predatório),
no mito, o Inka parece ser considerado mais exterior que Yuhe. Isto pode ser
explicado pelo fato de que o Inka é associado aos mortos, enquanto Yube é ligado
à vida. Os Inka são o destino do yuxin do olho. Enquanto mestre dos mortos e do
domínio celeste, os Inka surgem na mitologia Kaxinawa como afins potenciais.
Esta potencialidade somente se realizará com a partida definitiva do yuxin do olho,
com a morte.
Na canção ritual, porém, os termos estão invertidos. Ao invés de expressar a
tentativa frustrada em negociar a sociabilidade como aparece no mito, as canções
de iniciação no ritual Nixpupima convidam os Inka para a aldeia. Solicitam às
pessoas do mundo celeste que sejam generosas em seus presentes e os anfitriões se
sentem recompensados pela reciprocidade dos Inka. Os Inka trazem o fogo e o
milho, enquanto o líder de canto dança vestido como um Inka. Neste contexto do
ritual, os humanos, que no mito eram, explicitamente, associados ao domínio da
água, tomam-se aliados do Inka', e o conhecimento que em tempos mitológicos
teve que ser conquistado do inimigo é dado gratuitamente pelo mestre do mundo
celeste quando é corretamente convidado para vir à aldeia no momento ritual.
O mito de origem da humanidade (veja Parte II) expressa a idéia de tomar-
se outro ou tomar-se Inka no sentido escatológico. A jornada da mãe primordial
Nete é um movimento para fora da alteridade rejeitada do domínio da água, em
direção à desejada, mas perigosa, alteridade do domínio do céu. Esta jornada
representa a jornada da vida que termina com sua chegada na terra dos mortos. A
idéia ontológica básica é que a origem da humanidade repousa no mundo aquático,
enquanto seu destino está situado no mundo celeste. Esta é a razão porque um dos
pólos do dualismo Kaxinawa é conceitualizado como mais exterior aos humanos
do que o outro.
A mãe primordial Nele foi uma das únicas sobreviventes do grande dilúvio,
enviado pelos mestres do domínio da água em vingança à falta de reciprocidade
social dos humanos. Nete cria seus quatro filhos em uma cuia onde o rio deságua e
o céu e a terra se tocam, e viaja rio acima com seus filhos, das regiões úmidas para
132
as secas. Ao término de sua jornada chega às terras altas, mawan, que significa,
também, morte. Neste lugar Nele intenciona visitai’ seu “irmão”, está procurando
hospitalidade e generosidade de seu anfitrião e sua esposa, mas o que acha é a
morte. Seu “irmão”, na figura de um gigante aliado do Inka a mata.
Este mito declara que a relação dos Kaxinawa, pessoas que subiram do
mundo da água para viver no domínio intermédio da terra, com aquelas que vivem
nas terras altas (simbolizando os habitantes do céu) é de afinidade potencial mas
mortal e, por isso, irrealizável, pelo menos, enquanto se vive. Por causa de um
matrimónio incestuoso e infértil, o sogro potencial criava animais ao invés de
filhos e não teve filhas ou filhos para dar em casamento aos filhos de sua irmã.
Enquanto o comportamento próprio de um irmão para com uma irmã visitante seria
o de oferecer bebida e comida, ele lhe envia um vento glacial que mata-a. Não há
nenhuma reciprocidade com o mundo do céu, um mundo percebido, neste mito,
como aquele que tira mas não devolve. Esta é a imagem da morte, uma jornada,
sem retomo, para a alteridade.
Yube e sua esposa Sidika, a anaconda mítica, são considerados pelos
Kaxinawa parentes ao invés de afins. Esta informação deriva do mito: durante o
grande dilúvio, um par entrelaçado deitado em uma rede coberta de desenhos foi
transformado na grande anaconda. Esta é uma das explicações para a recorrente
declaração: “Yube é nossa carne, nosso corpo”. Em função do compartilhar de
uma “essência” ou “substância” diz-se que a anaconda é capaz de transformar-se
em uma pessoa quando quer capturar alguém para o mundo da água, um mundo
paralelo ao terreno.
O que se segue é como a humanidade aprendeu a preparar e beber o
psicotrópico ayahuasca, designado nixi pae (cipó forte) ou nawa huni (o
estrangeiro, uma pessoa). O caçador, seduzido pela aparência do coipo de uma
mulher (cobra) formosamente desenhado que emerge de um lago, copula com ela e
a segue para o mundo da água. Por compartilhar líquidos e substâncias (sexo,
bebida de banana, ayahuasca, filhos), e pelas emoções e recordações contidas na
experiência, o homem ganhou o nome Yube (cobra). Em função de seu duplo
pertencimento à terra e aos domínios aquáticos, Yube adquiriu a capacidade do
133
xamanismo. Ele morreu e seu corpo foi enterrado. De suas pernas e braços
nasceram quatro tipos de cipó: estes são os cipós capazes de induzir a embriaguez
(paè) de Yube, mestre do domínio aquático.
Os quatro tipos de cipós nascidos do corpo de Yube provocam visões em
quatro cores predominantes. O primeiro cipó, nascido do seu braço esquerdo foi
designado xane huni (povo do pássaro xane azul) produzindo visões azuladas. O
cipó que cresceu do braço direito foi designado xawan huni (povo da arara
vermelha) desencadeando visões avermelhadas. Diz-se que a pessoa quanto bebe
deste cipó vê muito sangue. Das pernas brotaram ni huni (povo da floresta), um
cipó que proporciona visões escuras, e baka huni (povo do peixe), produz visões
em tons pastéis. De um corpo, explicou Agostinho e Edivaldo, brotaram visões de
cores diferentes porque do mesmo modo que o corpo tem “quatro movimentos
diferentes”, tem quatro substâncias diferentes: a visão azul vem do fel do corpo
morto, o vermelho do seu sangue, o negro de seu intestino putrefato e a visão em
branco de seus ossos. A cada preparação da bebida fermentada é utilizada uma
parte diferente do corpo da planta, o que revela aspectos distintos da vida de seu
dono. Como nunca se pode beber o líquido preparado dos quatro tipos de plantas
de uma só vez, a pessoa terá uma visão parcial dos mundos possuída pelo mestre
do domínio aquático.
Ao ingerir este cipó, os humanos adquirem a capacidade para visitar esta
realidade oculta, um mundo de imagens yuxin oposto ao mundo terrestre dos
corpos. Ayahuasca produz imagens móveis e uma pulsação constante de formas
que flutuam livremente, um mundo de pura potencialidade de alteridade. Estas
imagens do “outro-mundo” são caracterizadas pela presença do desenho cobrindo
os corpos, utensílios e casas do yuxibu do céu, da água e da floresta. Esta realidade
necessita estai- escondida da luz do dia, mas continua vivendo por trás (e no
interior) da forma e movimento dos corpos. A noite, os homens que bebem o cipó
tem acesso a um conhecimento inacessível para a consciência do estado de ser
diurno. As visões permitem a exploração de mundos conhecidos ou imaginários.
Em suas visões, os caçadores localizam caminhos que pretendem seguir no
próximo dia à procura de caça, e os jovens visitam cidades grandes como São
134
Paulo, Rio, Nova Iorque, Lima e Bélgica, a “cidade” da antropóloga.
A primeira experiência com ayahuasca é a de uma “morte”. O corpo do
iniciado é constrito e subsequentemente engolido pela anaconda. A anaconda é um
predador experiente em canibalizar suas vítimas. O neófito experiencia a escuridão
e o forte medo. Pensa que morrerá porque as cobras estão o comendo e, por isso,
grita. Se vê algo na escuridão do interior do corpo da cobra, é um colorido caótico
e redemoinhos de desenhos que tomam a forma do corpo da cobra. Quando escuta
as canções, está escutando vozes ao longe, de seus parentes que o chamam de volta
mostrando-lhe o caminho. O caótico redemoinho dos desenhos lembra os padrões
encontrados nos quadros de Escher, que ao engolirem-no, desorientando-o,
produzirão um modo mais ordenado e reconhecível de um grupo de labirintos que
caracterizam o estilo gráfico de seu próprio povo. O neófito seguirá estas linhas
como um caçador perdido segue caminhos que cortam a floresta. Finalmente, a
anaconda visionária o vomitará sobre uma praia branca onde, então, ele verá o
amanhecer do dia iluminado a margem do rio onde seus parentes estão sentados,
cantando e à sua espera. Os parentes que vê não são seus parentes verdadeiros mas
seus parentes "do outro lado o povo de nixi pae (o povo do cipó), ou o povo de
Yube, que tiraram as “roupas” de cobra para se apresentar como pessoas iguais a
ele.
As duas citações que se seguem são tentativas heuristicamente interessantes,
feita por dois homens Kaxinawa, que têm um extenso conhecimento do universo
simbólico da sociedade brasileira, em traduzir o conhecimento sobre o ayahuasca
de forma inteligível para estrangeiros.
“O dunuan isun - urina da sucuri - é o mesmo cipó que o huni, o negócio é
que a cobra o chamou assim. Explicou para o homem que ele era sua urina. Na
nossa língua chama-se o cipó de muitas coisas, dunuan isun, dunun himi - sangue
de cobra -, huni. A gente toma o sangue dele porque ele permite - porque ele já foi
ressuscitado como Jesus que está no céu. A gente toma isso para limpar a doença
que tem dentro. E para ver ele, Yube, sua vida que ele vai assim mostrando para
nós.” (Edivaldo, 16/08/95)

“Quando a gente toma o sangue dele, ele nos amostra tudo que ele fez na
vida, sua aldeia, sua ciência. Yube se transforma em várias coisas, várias cobras,
plantas, cipós, em gente, em água, em pássaro. Todas as malhas dele podem se
135
transformar em miração. O kene é Yube se apresentando. Dami, as figuras, é que
nem yuda baka - a sombra do corpo. Você vê, mas você não segura. Vai embora
depois do nixi pae. É o dami - a transformação - do nixi pae do yuxibu. Ele morreu
mas não morreu. Porque seu coipo se transformou no cipó. Yube é nosso Deus. Ele
deixou essa bebida para seu pessoal não chorar mais, não ter mais saudades dele,
porque ele está aí, se mostrando. Assim como seu filho vai ver tudo que você fez
na vida, porque ele veio de dentro, o cipó, quando está dentro de você te faz ver
aquilo que é dele.” (Agostinho, 12/08/95)

Ambas citações explicam, independentemente, o mesmo conceito de


consubstanciação, de como o compartilhar das substâncias viva (sangue ou yuxiri)
produz um compartilhar de pensamentos e conhecimento. Este conceito sustenta o
conceito Kaxinawa de corpo enquanto uma entidade pensante e qualquer
intervenção física no corpo produz conseqíiências mentais. A mesma
fundamentação lógica se encontra no ritual de iniciação de crianças pequenas
(Capítulo 4) em que é declarado, explicitamente, que enquanto os adultos
modelam os corpos das crianças estão, modelando, também, seus pensamentos54.
Deste modo, as citações acima nos enviam para o código culinário,
discutido previamente, em que observamos que o processo de comer e ser comido,
não apenas, cria identidade entre o comedor e o comido, mas pressupõe algum
grau de semelhança entre ambos. A qualidade de alteridade dos comidos em
relação ao que come é preservada e é, obviamente, de importância crucial. Só
alguém “faminto por carne” (pinlsi), como a figura trágica de um ]nka solitário que
aparece no mito do Inka pinlsi (d’Ans, 1991:379-381), se entregaria ao ato auto-
destrutivo da autofagia.
Isto posto, os Kaxinawa preferem comer os seres que consideram ser, no
nível mítico ou simbólico, relativamente próximos (como os queixadas que foram
seus parentes nos tempos míticos), e se recusam em comer seres que consideram
diferentes, portanto, perigosos como a onça, o urubu ou a harpia. Estes animais são
predadores perigosos e os dois últimos são animais que cruzam os limites da terra
e do céu. O fato de que preferem comer o que é próximo é a explicação para o
endocanibalismo que foi totalmente abandonado pelos Kaxinawa na década de 50,
136
mas que costumava ser um dos modos possíveis de dispor do morto. Para decidir
se comeriam ou não, a regra aplicada era, em primeiro lugar, que as pessoas mais
próximas do defunto deveriam reclamar e concordar com o seu consumo e,
secundariamente, que os comedores fossem parentes próximos. Os Kaxinawa
parecem nunca ter comido inimigos ou parentes distantes.
Entretanto, não importa quão próximo o ser consumido é daqueles que o
consomem pois é necessária que se realize uma profunda transformação para que
sua carne seja comestível. O alimento considerado próprio, comestível, deve ser
processado no fogo. O processo de cozimento transforma o que restou da parte do
ser vivente em matéria morta. O alimento próprio é cozido e “misturado”, isto é,
combinado a outros alimentos. Para ter certeza de que o que é comido está
realmente morto, os Kaxinawa lavam bem a carne e depois cozinham-na por um
longo período eliminando, assim, qualquer resíduo de sangue. Os seres humanos
não comem sangue porque consideram-no um potente veículo de yuxin. Yuxin, por
outro lado, comem yuxin e chupam o sangue dos seres vivos. A multiplicidade de
formas que podem assumir e a capacidade de transformar-se é consequência da
“jwx/nidade”, resultando, por sua vez, em agência excessiva. O que falta a estes
seres, porém, é a verdadeira experiência de existência incorporada, solidez
somente adquirida através da aceitação de forma, espaço e tempo limitados: a
mortalidade da condição humana.
Nas citações acima a bebida fermentada feita do cipó psicotrópico
(Banisteriopsis caapi, Der Manderosian & Kensinger, K. et. al. 1970:7-14;
Kensinger 1973) é referida como o “sangue” ou a “urina” de Yuhe. O caso,
descrito acima, do consumo real do coração cru, língua e olhos da jibóia, ato
excepcional de consumo de sangue de um ser vivo, não é incluído na categoria de
consumo de comida mas é entendido enquanto uma consubstancialização com a
entidade consumida, processo de transformação, embora temporária, em um
“Outro” de forma poder “conhecer sua ciência”, isto é, o poder de seu
conhecimento, seus pensamentos.

54 Uma abordagem similar pode ser encontada em Belaunde (1992) para os Airo Pai
137
A alimentação ritualizada da carne da cobra lembra o mito Desana de
origem do uso do yagé (nome dado ao cipó, Banisleropsis Caapi, no noroeste
Amazônico). No mito, a mãe de yagé entra na maloca com seu filho yagé recém-
nascido, embrulhado em uma brilhante, reluzente, formosa toalha desenhada. Os
homens não resistem a esta visão e, intoxicados, saltam sobre criança, puxam seus
braços e pernas e a devoram. O que os homens devoram não é “comida
verdadeira”, ou uma “criança verdadeira”, mas a substância “imaterial” da criança
yagé, substância que provoca um estado de admiração e exaltação produzido pelo
poder psicotrópico da carne de um Deus (Reichel-Dolmatoff, 1972, 1978) 55. Os
Kaxinawa fizeram um paralelo entre a Eucaristia Católica e o cipó, no sentido de
ambos representarem a ingestão de corpos transubstanciados.
Em uma canção ritual, o guardião da ayahuasca, Yube, é invocado para se
obter uma visão tranquila, porém, próspera. Yube é qualificado como ibu (dono,
pai) do cipó nixi pae. Foi o demiurgo Yube que plantou o cipó e continua, até os
dias de hoje, cuidando de seu crescimento. A justaposição do mito de origem,
aludida na citação acima, em que o cipó nixi pae cresce do cadáver de um homem
que vivia com o povo da cobra, com a informação sobre a identidade de seu
plantador, sobrepõe, assim, dois modos de relacionamento entre seres diferentes. O
primeiro modo une uma pessoa mítica através de seu cadáver putrefato aos poderes
revelatórios do cipó, enquanto o segundo modo vincula o plantador e o seu
produto metonimicamente, expressando uma interdependência contínua enquanto a
planta vive. Esta mesma lógica é encontrada na simbologia do milho.
O mito dá substância aos versos das canções "Yube é o dono porque
plantou o cipó" especificando que "Yube é o nosso pai porque tem o nosso corpo".
A justaposição destas duas frases associa a relação entre o plantador e o que ele

55 Em Conklin (como em Clastres (1963) sobre o endocanibalismo Guayaki), encontramos


uma explicação similar para a diferença crucial entre carne cozida e crua: “The assertion
that eating corpses involved no transfer of biosocial substances or energies is consistent
with the logic of Wari” ethnomedicine, conception theory, and shared substance concepts,
in which attributes are transferred among individuais only by blood and its analogues
(breast milk, semen, vaginal secretions, and perspiration), not by ingesting roasted flesh.
(Conklin, 1993:96).
138
plantou, com a relação da pessoa cujo cadáver transformou-se em um cipó com a
planta que cresceu de seu corpo. Ambas as relações são intrínsecas e essenciais
porque implicam a partilha de substâncias físicas, pensamentos e conhecimento.
Deve-se notar como esta interdependência entre mente e matéria está presente no
pensamento nativo. E a interdependência que explica o cuidado tomado na
manipulação do corpo e objetos de um morto. Outra ligação deve ser observada, a
relação entre plantador e planta é semelhante a do progenitor e sua descendência.
Seja uma planta, um bebê ou um artefato, o pensamento nativo estabelece o
mesmo tipo de vínculo entre uma pessoa e o que produz56. Este fato explica
porque os pertences de um morto são enterrados ou destruídos. Considerando que
os pertences permanecem relacionados ao seu dono, o falecido, devem ser
eliminados para que as pessoas possam esquecer o dono dos objetos.
Através deste exemplo de consubstanciação e das visitas visionárias
regulares ao mundo de Yube, o relacionamento próximo estabelecido com a cobra,
Yube, e o mundo de água é vivido de um modo concreto e esta aheridade de um
mundo de origens abandonadas é menos estranho aos Kaxinawa que o mundo
desconhecido de seu destino. Por meio da ingestão do cipó é vivido o paralelismo
entre o microcosmos do corpo e o macrocosmos do universo expresso ritual e
simbolicamente. A visão é experienciada como vindo do próprio corpo da pessoa,
posta em uma dimensão que o céu é tragado, descortinando, assim, novos mundos.
Este evento visionário é invocado na canção de nixi pae:
"Meu filho adotivo, vamos esquentar o cipó, secar a força do cipó. Novo na
barriga do homem. Vamos caminhar, faz tempo que tomamos e não passa, está
subindo, quebrando galhos para encontrar o caminho. A força ilumina o caminho
como luz, meu filho adotivo, o céu está vermelho, a força está vermelho. O homem
o engole na sua barriga, no interior, engole o céu vermelho. Faz tempo que
tomamos a bebida e continua forte. Raspe o pae (forte, embebedor) e tome-o.
Passou tempo desde que raspou o pae. Tomando-se mulher, esticando a mulher, a
força esticada do nixi pae. Meu corpo está cantando, girando como um tição em
chamas. O homem vai virar mulher. Vai preparar comida. A mulher quer preparar
comida, se estica e foi embora... Lá no céu está o rapaz nambuã. O mel do céu é

56 Veja David Guss (1989) para os Yekuana e Van Velthem (1995) para os Wayana-
Apalai para um estudo detalhado da congruência entre a fabricação de artefatos e do
corpo.
139
doce, toma tudo. Está muito doce na nossa barriga, raspe-o e tome-o. Na nossa
raiz, você na raiz do nixi pae, outro mundo está saindo, gente saindo da minha
barriga...” (Leôncio liderança de Conta, tradução Antônio Pinheiro).
Além da interpenetração do micro e macrocosmos, outra importante
inversão ocorre na visão descrita por esta canção: a inversão radical do gênero em
que o homem bêbado com cipó toma-se “grávido”. Pela ação do fogo transforma-
se em mulher, que bebendo mel, uma imagem para sêmen, dá à luz, então, a
“novos mundos”. Deste modo, menstruação "masculina" e fertilização são
possíveis através da bebida incontrolavelmente fértil da anaconda, Yube, seu
sangue, um sangue de “inimigo” (nawan himí). Absorver este “sangue” significa se
expor a um excesso de atividade yuxin dentro do coipo que logo se fará sentir
através da transformação violenta da percepção sobre o interior e o mundo
exterior. Ao mesmo tempo observa-se uma transformação temporária de
identidade: um homem toma-se uma “mulher”, grávida de um multiplicidade de
pessoas e mundos. Este é um dos processos múltiplos de tomar-se outro que um
homem experimenta quando está, temporariamente, impregnado com o sangue do
inimigo.
É revelador ler os dados contidos neste canto associados ao mito da lua e da
menstruação. Este mito é bem conhecido e difundido na região57. É a estória do
irmão incestuoso Yube que decidiu tomar-se lua depois de ser descoberto, por
causa de seu rosto pintado de jenipapo, que era amante de sua irmã. Enquanto
escalava o caminho para o céu, Yube pediu para ser lembrado por suas irmãs.
Quando viram seu rosto subindo ao céu, suas irmãs apontaram a lua nova e, ao
invés de dizer "Olhe! A cabeça de Yube está no céu", disseram, "Olhe! É a lua
nova”. Como vingança para o esquecimento das irmãs, Yube fez com que as
mulheres sangrassem à cada lua nova. Uma versão do mito nana que Yube desce
nas noites de lua nova para fazer sexo com as mulheres com seu rabo de arara
vermelha (pênis). Deste modo, as mulheres receberam a menstruação como
vingança que, pode, entretanto, significar uma dádiva suprema visto que a
menstruação é a precondição para fertilidade. De acordo com a teoria da

57 Cf. Lévi-Strauss (1968:67-88) sobre mitos Kaxinawa da lua.


140
concepção Kaxinawa somente depois da penetração é que pode-se considerar que
uma mulher é capaz de perder sangue, sinal de sua fertilidade. Sem sexo, os
Kaxinawa dizem, o útero de uma mulher “seca”. O papel dos homens é o de
manter as mulheres “molhadas” e férteis.
Enquanto as mulheres Kaxinawa recebem de Yube, a lua/cobra, o sangue
que lhes dá poderes de criação para produzirem corpos, os homens recebem, do
mesmo demiurgo, a bebida ayahuasca, a “urina” (dunuan isuri) ou o “sangue”
(nawa himi) de Yube. A bebida aumenta o poder criativo dos homens
possibilitando a produção de imagens nas quais se vêem como mulheres que dão à
luz mundos, nas sessões noturnas da fertilização cósmica. O poder primordial
andrógeno de Yube (que originou-se do casal primordial entrelaçado) é distribuído
de um modo limitado entre homens e mulheres, conformando o gênero. Este é o
segredo de sua interdependência: no mito da cobra hermafrodita, assim como na
paz noturna de uma rede (também uma encarnação da anaconda), o marido e a
esposa formam o “dois em um”.
Da mesma forma que os homens são complementares às mulheres, as
imagens são aos corpos, e a noite o é em relação ao dia. Porém, para o mundo
ganhar forma foi necessário mais do que a fluidez da imagem de Yube e da
fertilidade que emana dos seus fluidos corporais (sangue e urina). Alguma outra
coisa ou ser era necessária para dar a Yube uma estrutura, endurecer a maciez dos
produtos efémeros do noturno mundo aquático. Esta qualidade complementar
pertence ao Inka e a seus atributos de dureza, secura, frieza e calor e a sua
associação com metal e tudo o que é imperecível.
Um corpo humano é composto por ossos, associado ao Inka, e pele,
associada a Yube. O mundo terrestre é feito do encontro entre estes dois princípios
antagónicos. O mundo passou a existir quando o sol (Inka) revelou o que estava
escondido na escuridão (Yube). Esta revelação de formas escondidas na escuridão
ocorre a cada dia, ao amanhecer. O amanhecer é descrito na canção xabaya
(amanhecer): a luz que passa pelas frestas do teto da casa significa o desenho do
sol: “sonhando com o padrão do amanhecer, olhando o seu amanhecer (pena kene
namanun, hawenpena uinai)."
14
A concepção do sol como a mão que desenha, cortando a escuridão da
floresta em feixes de luz coloridos filtrados pelas árvores ou pelo telhado da
maloca é expressa nas canções entoadas pelas mulheres para obter o desenho. A
canção pode ser entoada à pele seca de uma jibóia ritualmente morta pendurada no
teto de uma casa, ou, como foi dito por Augusto, para uma pequena jibóia
domesticada, guardada em uma vasilha. A mulher que deseja aprender o desenho
pede para a cobra lhe "dar o desenho do sol (badi kene)", "desenho do Inka (Inkan
kene)".
A associação do Inka com o sol é associada ao poder de seus ígneos olhos.
Em contraste com o domínio de Yube que é, freqiientemente, visto nas viagens
noturnas com o ayahuasca, o mundo do Inka não é para olhos humanos. O brilho
destes olhos é tão forte que cega os humanos, seus olhos são puro fogo. O yuxín
humano do olho é perdido quando cruza o olho do Inka. E através do olho do Inka
(ou de seu fogo) que o yuxín humano é consumido e reintegrado no mundo de
onde veio. Na concepção Kaxinawa do princípio da unidade na dualidade, o que
constitui os seres está refletido na duplicidade ác> yuxín humano: o yuxín do olho
pertence à metade ínu, do Inka, enquanto o yuxín do corpo, o yuxín da pele, está
ligado à metade dua, de Yube. O yuxín do olho, como os seus familiares cósmicos,
o sol e o Inka, não cresce, permanece do mesmo tamanho, do nascimento à morte;
o yuxín do corpo cresce durante a vida acumulando suas recordações, suas
experiências, do mesmo modo como o corpo da cobra cresce sem cessar .
Embora o que dê vida a um corpo, o yuxín do olho, e o que dá sua estrutura,
os ossos, pertençam ao domínio do céu, do Inka, o "Inka", emblema da metade
ínu, é considerado como mais exterior que Yube. O Inka não tem uma relação
patri-fíliativa com os humano. Neste sentido, ao invés de ser designado pai (ibu) é
referido pelo termo "txai", “cunhado”, “distante”. Esta expressão é usada para se
referir aos não-parentes com quem uma pessoa deseja estabelecer relações

58 Roe (1982:179): “Indians have noticed that anacondas, like the other reptiles and
amphibians with which they are identified - such as lizards, cayman and frogs - never stop
growing until their death, although the rate of growth does progressively slow down as
they age.”
142
amigáveis. Na região do rio Jordão, os Kaxinawa têm o costume de se referir e
evocai' os trabalhadores de ONGs (mulheres inclusive, não sem uma discreta
ironia) pelo termo ixai.
Txai transforma-se em um termo de parentesco quando referido à
possibilidade da afinidade masculina, e ganha um significado escatológico ao
evocar a figura mítica do Inka. Na linguagem mítica, as mulheres Inka são
designadas tsabe (cunhada) pelas mulheres que as visitam e xanu (cunhada, esposa
potencial) pelos visitantes homens. O morto, seja homem ou mulher, casa-se com
Inka que, para os seres humanos nada mais são que a quintessência do estranho,
monstro canibal, Deus. Pode-se, assim, entender a ironia do engano que sucedeu
aos missionários quando, seguindo a sugestão de um tradutor Kaxinawa,
associaram a noção Cristã de Deus à expressão “Inka nosso Pai” e Diosun Inkan,
Inka Deus59.
Os mitos sobre o povo Inka nanam a admiração pela sua cultura. Os Inka
I
são descritos como aqueles que sabem viver, bonitos e com o conhecimento. Suas
roças são prósperas, suas aldeias, limpas e grandes. Embora possuam abundância
de alimentos, descrita pela imagem de plantas que apodrecem nas roças, são
considerados avaros. Nunca deram nada aos humanos e nem mesmo lhes
ensinaram como plantar: uma total recusa em criar vínculos de parentesco.
Homens e mulheres Inka aparecem bonitos às pessoas, usando roupas tecidas e
desenhadas e com a face, delicadamente, pintada. Os Inka os convida para dançar.
Dançando ou não, as pessoas foram mortas por seus anfitriãos. Os que dançaram
não foram comidos (Capistrano de Abreu, 1941). Os Inka ajudaram as mulheres a
dar à luz (naquele tempo, os humanos não sabiam usar as plantas medicinais
relacionadas ao parto), devolviam os bebés aos Kaxinawa e devoravam as mães.
Na mitologia, os Inka são descritos nas relações com seus próprios parentes
enquanto pessoas que se comportam de forma apropriada, dentro dos parâmetros
sociais e morais esperados. Seu comportamento considerado “monstruoso” é em

59 Depois de ter sido usado pelo primeira vez por tradutores Kaxinawa no contexto da
tradução da bíblia pelo Instituto linguístico de verão, o uso do conceito Inka com o
143
relação aos Kaxinawa . Os Kaxinawa acentuam a relatividade da prática do que é
considerado moralmente bom e mal que leva em conta a semelhança ou diferença
do “outro”. Os Inka consideram os Kaxinawa muito diferentes, enquanto os
Kaxinawa sonham em tomar-se bonitos (implicando em ter o seu conhecimento)
como os Inka. Mas no desenrolar do mito os Kaxinawa mudam de idéia e deixam
para trás o desejo de estabelecerem uma relação de troca com os Inka, os matam e
mudam-se para longe.
A figura do Inka aparece com outros atributos nos mitos que descrevem os
primeiros tempos da criação. O Inka é descrito enquanto um deus solitário e não
como conformando um povo. O Inka habitava o céu e possuía a periodicidade do
tempo, dia e noite, frio e calor. Era avaro para com o urubu que pertencia à metade
dua porque detestava o seu cheiro, e generoso com a harpia da metade inu com
quem compartilhava o poder sobre o céu. Temos, novamente, a representação do
Inka que é a de seletividade social.
Este deus Inka pode descer para ver e ser visto pelos humanos. Mas se esta
visita não ocorresse no momento ritual, o Inka levaria, para todo o sempre, o yuxin
humano consigo. Em resumo, ninguém retoma vivo de um encontro com o Inka
(isto explica o fato de ninguém ver o Inka seja nos sonhos, seja sob a interferência
do ayahuasca). O olhar do Inka consome o yuxin do olho no momento em que o vê
levando-o para morar consigo. Esta concepção do processo de morrer lembra a dos
Araweté no sentido que o destino humano é o de tomar-se cônjuge dos deuses
(“comidos” no duplo sentido) ( Viveiros de Castro, 1986). Quando o Inka desce à
terra para levar o yuxin do olho do morto consigo, segue um grande caminho, reto
pela floresta, livre de espinhos. O caminho é adornado com penas vermelhas,
azuis, negras e brancas. Inca hawendua, o Inca bonito, usa uma coroa de penas
azuis, um cushma tecido e desenhado e vem tocando flauta. "Ele está lindo",
dizem os Kaxinawa . Os pais da pessoa morta cantam:
“Vá para o céu, vá ficar com o Inca, vá e não volte, vá e vista as roupas do
Inca, vá e vista a roupa amarela, vá, não pare a meio caminho, vá, nunca volte”.
(Moisés Kaxinawá).

sentido de “nosso pai Jesus Cristo” foi também registrado por McCalIum (1991).
14<

O Inka do céu não vive totalmente separado das pessoas. Embora perigoso
demais para ser visitado pelo yuxin do olho em seu próprio território ele pode
visitar com segurança os Kaxinawa durante o ritual. De fato, é este Inka do céu
que é chamado e é invocado pela canção ritual e performatizado pelo líder de
canto durante o ritual Txidin, nos funerais e no rito de iniciação Nixpupima. O
povo Inka pode ser representado nas festa de máscara designadas damian. Damian
é uma caricata teatralização cómica que transforma o “medo do Inka" em riso. Nas
festas de damian, que presenciei em 1991, ‘seringueiros bêbados’ tinham
substituído os Inka canibais (veja, também, McCallum, 1992:14).
Vimos acima que Yube e Inka, “monstros” e ao mesmo tempo emblemas da
beleza, ocupam lugares opostos de alteridade acima e embaixo da terra. Na
imaginação Kaxinawa, excesso de beleza está ligada a excesso de poder. Neste
campo de lidar com a alteridade a beleza desempenha o papel da visualização do
desejo e ao mesmo tempo do medo pelo estrangeiro. Portanto, foi a beleza da pele
pintada da mulher cobra que fez com que o visitante humano a acompanhasse para
o mundo aquático; foi a mesma beleza que o iniciou no conhecimento secreto do
dono dos desenhos. Esta aventura, o pertencendo a dois mundos diferentes e a
acumulação de mais conhecimento que poderia suportai; custou-lhe a vida60. De
forma similar, é a música sedutora da flauta e o aparecimento fascinante e radiante
da elaborada decoração do Inka do céu, com sua saia amarela, coroa de penas
azuis e olhos brilhantes, que sequestram o yuxin do olho.
Há o perigo de exposição às qualidades do Inka/owça em que o corpo pode
ser vítima de várias formas de enfraquecimento. Em estados vulneráveis uma
pessoa pode perder líquido ou ter febre alta por causa do excesso de sol na cabeça,
enquanto olhar diretamente o sol causa “cegueira” temporária. Isto é explicado
pelo fato de que o sol é mais poderoso do que o yuxin do olho, e por isso cruzar os
olhares pode ser perigoso para a saúde física e espiritual da pessoa, provoca

60 O mesmo entendimento do perigo que deriva de um excesso de conhecimento pode ser


encontrado entre os Piaroa (Overing, 1985:244-78).
145
vertigem e enxaqueca. Olhos, como líquidos e cheiros, são veículos de transmissão
do poder yuxin e uma pessoa deve, então, ter cuidado com quem olha nos olhos e o
modo que isto é feito61. Outra causa de doença e fraqueza do corpo associada ao
Inka é a perda de sangue pelo cortar e morder. Observamos, que no imaginário
Kaxinawa o Inka e a onça estão ligados à dureza, assim como com o cortar e
rasgar a pele com metal e dentes.
Vítimas da onça (inu) ou dos ataques do Inka perdem muito sangue,
tomam-se “secas” vindo a morrer. As vítimas do ataque de Yube sofrem de um mal
oposto: excesso de sangue e retenção de água. Neste caso, o corpo incha e entra
em um estado perigoso de mutação e retenção de yuxin. Quando a substância de
yuxin está concentrada em uma parte do coipo da vítima ela pode, ainda, ser
sugada mas, uma vez, espalhada pelo coipo é fatal (Antônio Pinheiro em Lagrou,
1991:47). Morte ou doença causada por envenenamento ou pela presença
multiplicadora da atividade yuxin é associada ao domínio de Yube e manifesta-se
nas formas de cobras, insetos e plantas venenosas assim como por drogas.
Existem “remédios de onça” e “remédios de anaconda” para tratar destas
diferentes doenças. O medicamento que pertence ao domínio da onça, metade inu,
é designado dau bata (medicamento doce) incluindo todos os tipos de tratamentos
herbários. No mito, uma esposa humana foi curada pela onça de uma exposição ao
domínio de Yube através de um banho com eivas. Seu processo curativo e sua
enfermidade foram associadas às relações sexuais com seres que pertencem ao
domínio não-humano e ao “outro” animal, associados, respectivamente aos
domínios dua (minhocas) e inu (onça). A estória se passa do seguinte modo:
Enquanto vivia na casa dos pais, a jovem mulher fiava sem parar, sentada
em sua esteira. Sua mãe, desconfiada, olhou o tapete da filha e descobriu num
buraco dentro dele uma grande minhoca que foi morta com água fervente. A filha,
lamentando seu amante, fugiu para a floresta, chorando e chamando a onça para
matá-la e comê-la. Ao invés de matá-la, a onça decide levá-la como esposa. Mas

61 O mesmo foi notado por Erikson (1996:201) entre os Matis: ‘7e canal ocidaire semhle
constituer une autre voie de circulation de sho (poder xamânico).”
146
logo em seguida, descobre a atividade repulsiva das minhocas em sua vagina. A
mulher estava grávida da minhoca. O marido onça limpou sua esposa humana com
o auxílio de ervas engravidando-a, desta vez, com gente-onça.
Enquanto o medicamento da onça é doce e pertence aos corpos, o
medicamento amargo (dau muká), atribuído a Yube, pertence ao domínio das
imagens e da “yuxinidadé”. A substância xamânica, muka, é a mais amarga de
todas as substâncias. Próximo desta substância, em poder e amargura, está a planta
dade, também designada muka, usada em rituais específicos, muitas vezes ocultos,
acompanhados por uma severa dieta que proíbe a doçura (carne e água, por
exemplo). A lógica que fundamenta esta abstinência é a que atribui às substâncias
amargas a agência do yuxin o por sua vez induz a mutações corporais. Doçura e
puro líquido (água) poderiam fertilizar este processo até o ponto de tomar
incontrolável a metamorfose ou multiplicação dos yuxin no coipo. Nixi Pae (o
alucinógeno preparado do cipó) pertence à categoria de remédio amargo, assim
como o rapé do tabaco, o veneno de sapo e o suco adstringente ardente de
determinadas folhas usados para serem pingados nos olhos dos caçadores e tecelãs.
Observa-se uma inversão de campos em operação, expressando, novamente,
uma dependência mútua entre opostos. Se o yuxin do coipo é, por meio da imagem
da pele e do sangue associado ao domínio Yube, e o yuxin do olho através do olho
e de sua origem celestial está associado ao domínio do Inka, seus medicamentos
têm uma função curativa invertida: o medicamento amargo de Yube cura os
“olhos” e as doenças espirituais associadas aos olhos (pesadelos, a frequente
visualização de yuxin etc.), enquanto medicamento doce cura doenças de pele,
causadas por uma variedade de picadas de insetos (veículos da atividade de yuxin e
do veneno), infestação de vermes, picada de cobra e doenças ligadas ao domínio
de Yube. O medicamento doce, inu, é ligado à pele, intestinos e ao yuxin do corpo,
e é “feito” da matéria de Yube, enquanto o medicamento amargo, dua, está
associado ao olho e à seu yuxin, “feito” da matéria do Jnka.
Seres humanos são a arena do combate de forças antagónicas, e a saúde é
alcançada através de um equilíbrio, temporário, entre a dureza amarga e a maciez
doce. A vida na terra, o domínio intermediário destas duas forças da alteridade que
14'
compartilham a qualidade da vida eterna (circular no caso do InkalsoX e cíclica no
caso de Yube/Lua), é caracterizada, todavia, por uma limitação que falta tanto ao
mundo Yube das imagens quanto ao mundo Inka da pura luz: a inescapável
mortalidade. Mortalidade é o que faz do humano, humano, e, também, é a
mortalidade que cria a temporalidade no mundo.
A imagem do tempo, e da vida humana como um processo de crescer e
morrer, é expressa pela Samaúma, xunu, da qual o banquinho usado no ritual de
iniciação é esculpido. Como uma árvore que cria raízes para se sustentar firme, um
ser humano é somente considerado uma pessoa verdadeira se pertence a algum
lugar onde as pessoas podem cuidar dele. Uma pessoa verdadeira é alguém que
“não anda por aí sem destino”, mas permanece firme, como uma árvore plantada, e
é “olhado” por seus pais ihu (pais ou plantadores). Uma pessoa, como uma árvore,
cresce firme até frutificar, mas sabe, também, quando deixar de crescer: "uma
verdadeira pessoa sabe quando é tempo para morrer". As Pessoas não mudam de
pele, como as cobras e outros répteis, e este fato, como é apresentado no mito, está
na origem do envelhecimento, consequentemente, da morte. A árvore que une o
mundo de água, onde deita suas raízes, com o mundo do céu, por onde espraia
seus galhos, simboliza a vida na terra e a vida humana em particular, uma transição
temporária entre dois extremos. O tema e a simbologia da samaúma será abordado
no final deste trabalho quando examinamos o papel central que desempenha no
rito de iniciação masculina e feminina.
No mundo natural, o pertencimento dos animais e das plantas às metades
inu (onça) ou dua (brilho) está relacionado ao seu tamanho. Espécies de tamanho
pequeno ou variações desta espécie são designadas dua, enquanto as de porte
grande são inu. Os dois tipos de onças são classificados em metades distintas: o
grande, inu keneya (onça com desenho), é inu, enquanto o menor, txaxu inu
(“veado onça”) é dua?2 A harpia, nawa lete é da metade inu enquanto um outro

62 A cor dos animais pode ser igualmente associada as metades: vermelho (cor
intermediária e mediadora do sangue e da fertilidade) é dua. O ixaxu inu se chama ‘onça
veado’ por causa da cor da pele do veado ‘vermelho’. O branco com preto, por outro
lado, pertence à metade inu (associada ao harpia e ao !nkd). Durante o Katxanawa,
148
tipo de gavião maspan ixaipaya leie (gavião de cristã grande) é da metade dua. O
nawa, a versão maior de uma espécie, pertence à metade mu. A mesma lógica em
classificai’ os animais pode ser aplicada ao domínio das plantas. Árvores são
classificadas como inu (onça) ou dua (brilho) de acordo com a comparação de seu
tamanho levando-se em consideração seu volume. A samaúma, xunu, maior árvore
da amazônia, é classificada inu, e por isso designada por nawan xunu. A cumaru,
árvore mais alta que a samaúma, é associada à metade dua. Embora a samaúma
seja menor que o cumaru, têm seu tronco mais grosso e sua copa mais larga. Neste
sentido, o critério mais importante levado em consideração para esta classificação
é o volume e a força da matéria que se classifica e não, propriamente, sua altura.
Os Kaxinawa ao descreverem pessoas empregam a mesma distinção
relacional aplicada às plantas e animais por meio das qualidades dua (banu) e inu
(inani). Os que pertencem à metade da onça (inu) são maiores (mais gordas), e têm
os ossos feito do milho (explicitamente associados à metade do Inka inu),
enquanto as pessoas que pertencem à metade do brilho (dua) são menores (magras,
embora possam ser altas) e têm ossos feito de mandioca. As pessoas inu não
exalam odores corporais e têm a pele macia e imberbe, enquanto pessoas dua têm
cheiro forte e pêlo. Esta última qualidade atribuída às pessoas dua pode ser
explicada pelo fato de que esta metade é associada ao apodrecimento, crescimento
e deterioração, enquanto a metade inu é associada à permanência.
Estas qualidades poderiam somente ser detectadas em seres humanos se as
pessoas fossem completamente inu ou completamente dua. Como isto não ocorre,
visto a necessidade da mistura constante, os opostos complementares são
entendidos em relação: em termos de mais e menos, mais velho e mais jovem, mais
forte e mais fraco, e não em termos de qualidades mutuamente exclusivas.
Observa-se que em relação às qualidades de com e sem pêlo atribuídas as
metade, os Kaxinawa agem e pensam como “povo de fronteira”, consideram-se
uma síntese de extremos. Ao se conceberem como um povo proveniente da mistura

pessoas que pertencem à metade dua, pintam a boca de vermelho com urucum para imitar
a onça vermelha, enquanto pessoas da metade inu pintam sua face com manchas pretas
149
da “presença e falta de pelo” situam-se a meio caminho entre os pano
denominados fluviais e interfluviais. O primeiro grupo, representado pelos pano do
Ucayali peruano (Roe, 1982), detesta os pelos corporais, e associam os pelos à
selvageria, animais e inimigos (especialmente aos brancos barbudos), enquanto o
grupo posterior, interfluvial, representado pelos Mayoruna (Erikson, 1996), cultiva
barba e bigode positivamente associando-os à ferocidade e a sinal de experiência e
maturidade, relativo à qualidade de xeni que significa velho, gordo e forte.
Apesar dos Kaxinawa se colocarem a meio caminho neste continuum do
significado dos pêlos corporais, sua cosmética não aprecia a presença de pêlos
corporais. Esta estética tem uma semântica social: uma vez que os pêlos corporais
são arrancado pelo cônjuge ou amante, e nunca por si próprio, a presença de pelos
corporais é sinal de solidão e abandono. O leve desconforto que provoca o
arrancar dos pelos é parte da lúdica sexual entre amantes, da mesma forma quando
os amantes se arranham com objetos pontiagudos como o bico de um pássaro ou a
unha do tamanduá. Pele lisa representa um corpo sociável, um corpo tocado por
amantes e pelos parentes próximos. Estes embora não arranquem os pêlos podem
ser vistos limpando a pele de um parente, espremendo picadas de inseto e catando
piolhos.

2.4. Nawa/Huni (estrangeiro/humano)

“A primeira vez que o branco viu um índio ele não tinha roupas e estava brincando
com morcego (...). O branco perguntou para o índio quem ele era e ele, não
entendendo português, respondeu na língua: estou matando [brincando com]
morcego. A gente chama morcego Kaxi. Assim o branco deu o nome: “você e sua
tribo são Kaxinawa (kaxi-nawa)"
Mito Kaxinawa 63

Esta história, escrita por um jovem Kaxinawa, em um curso de treinamento


para professores indígenas, expressa com humor a lógica do significado dos
etnônimos entre o pano. O etnônimo vem do exterior, dado por um estrangeiro, um
nawa que chama o seu interlocutor, também nawa, por um nome. Por exemplo

em jenipapo para invocar a onça pintada.


150
kaxi-nawa, “povo do morcego” (Kaxinawa), ou yami-nawa, “povo do machado”
(Yaminawa).
De acordo com o mito, o nome é o resultado de um engano, do fato do
nawa realmente não entender (ou querer entender) o que está sendo dito64. Se não
houvesse problema de comunicação, o estrangeiro teria chamado seu interlocutor
de huni kuin: "aquele que é propriamente humano ", como todos os pano referem-
se a si próprios. O ser humano “verdadeiro” é alguém que se comporta, fala e
entende coisas de forma apropriada. Huni quer dizer “pessoa” e kuin constitui uma
referência para a identidade, semelhança ou similaridade a si mesmo ou à coisa
que se refere. Deste modo foi traduzido como “real” ou “verdadeiro”: “povo
verdadeiro” (huni kuin), “língua verdadeira” (hantxa kuin), “desenho verdadeiro”
(kene kuin). Esta tradução pode entretanto, sugerir um etnocentrismo Kaxinawa e,
em geral, pano (que usam variações dialetais para o mesmo termo) do qual não
podem ser acusados (ver, também, Erikson 1995: 7; e Keifenheim, 1990:80).
A tecelagem ‘verdadeira’, designada lenia kuin, é mais próxima do tecer
propriamente dito do que a tecelagem com desenho (lenia keneya). Do mesmo
modo, um ser humano ‘verdadeiro’, huni kuin, é o mais próximo da referência à
identidade daquele que profere a classificação, do que uma pessoa simplesmente
designada huni, não considerada kuin. Entretanto ambos são humanos, isto é, esta

63 Em Lindenberg Monte, ed., 1984:29.


64 A maior parte dos etnônimos, dados por grupos pano a outros pano, era ofensiva.
Assim, Torralba (1986: 12-13), dá outra explicação ao nome Kaxinawa. Os Yaminawa
chamaria este grupo de kaxi-nawa (povo do morcego), por causa do suposto hábito destes
de andar de noite. O etnônimo para os Cashibo (kaxi-hu), grupo pano peruano, recebido
dos vizinhos Shipibo, significa igualmente “povo do morcego”, neste caso porque os
Shipibo acusavam os Cashibo de serem canibais (Erikson in How crude is Mayoruna
Poltery, s.d ). Os Culina por sua vez (que não são pano mas aruak) são chamados pelos
vizinhos Kaxinanwa de pisinawa (povo que fede), enquanto Tastevin anota no início deste
século (1925:24, 415) que os Kaxinawa eram chamados de pisinawa pelos Paranawa
(grupo pano atualmente inexistente sob este nome). Com relação aos Yaminawa,
Townsley parece corroborar a visão expressa na epígrafe, de que estes nomes se tornaram
etnônimos somente depois da chegada dos brancos na região: "It was actually extremely
difficult to know who, precisely, the Yaminahua were... It also became clear that names
such as Yaminahua or Sharanahua were of relatively recent invention and had become
accepted ethnic labels only as a result of non-native immigration to the area. AU
Yaminahua also answered to a variety of other nahua names..." Townsley (1988:8).
151
forma de classificação não produz uma gradação entre o mais ou o menos humano;
o que ela engendra é uma qualificação, sempre suplementar, a uma noção de
humanidade constituida. O exemplo da tecelagem demonstra que o uso do
qualificativo kuin não transporta qualquer juízo de valor, apenas adere uma
qualidade a um significado preestabelecido. No caso da diferença entre tema kuin
e tema keneya, o produto mais valorizado é aquele com desenho, o que demonstra
a complexidade e beleza do trabalho de tecelagem, e não o designado kuin.
(Outros exemplos deste tipo são encontrados no sistema taxonômico da cultura
material Kaxinawa proposto por Kensinger, 1975).
Os critérios mais importantes usados pelos Kaxinawa para incluir um
estrangeiro na categoria huni kuin são semelhança linguística, uso coneto dos
nomes próprios (ligados ao sistema kariera de transmissão dos nomes), aparência
física e modo de vestir. O líder de canto Augusto classificou os Yaminawa,
Katuquina e Shipibo (povos pano com os quais teve contato pessoal durante sua
vida) assim como os Yuda recentemente contatados do Parque Manu no Peru
(cujas fotografias65 lhe lembraram seus antepassados) pelo teimo huni kuin
(pessoas como nós mesmos), porém qualificou esta inclusão com o uso do teimo
“betsa" (outro): huni kuin helsaki (eles são “outros huni kuin"), nukun nabu
betsaki (“eles são relacionados a nós (parentes) mas são “outros” (/>e/.sa)”).66
Esta citação revela uma diferença entre a lógica classificatória escolhida por
meu informante Kaxinawa do rio Purus no lado brasileiro, e aquela usada pelos
infoimantes de Keifenheim do lado peruano. Parece que estamos lidando mais com
nuances de estilos e ênfases do que com uma verdadeira diferença no discurso
sobre identidade étnica. Em função do intenso contato entre pessoas e famílias que
cruzam a fronteira brasileira-peruana, não existe, de fato, uma divisão que pode ser

65 Fotos provenientes de Verswijver, 1987.


66 Quando os Kaxinawa se referem a povos pano arredios com os quais freqúentemente
entram em conflito, estes são chamados de Yaminawa pelos Kaxinawa. É interessante
neste contexto a informação dada por Calavia (1995: 150) com relação ao uso do termo
Kaxinawa pelos Yaminawa. Um grupo pano arredio encontrado pelos Yaminhua foi
classificado como “kaxi nawa" (povo do morcego). Este grupo foi parcialmente
incorporado pelos Yaminawa. Segundo os Yaminhua os índios que são designados hoje
152
traçada entre eles, todos os Kaxinawa têm parentes próximos em ambos os lados
da fronteira.
A diferença e a lógica usada para a classificação étnica a qual estou
recorrendo, parece interessante se a colocamos no contexto mais amplo das
etnografias pano em que se observa maior flexibilidade e ambiguidade na
atribuição da identidade étnica e alteridade que a sugerida para os Kaxinawa
peruanos por Deshayes e Keifenheim (1982 (1994)). Ao aplicarem o esquema
conceituai proposto por Kensinger, kuinlkuinma (eu/não-eu), kayabi/bemakia
(outro/não-outro) para um modelo tripartite da identidade étnica (eu, domínio
intermediário, Outro), o resultado foi uma clara demarcação dos limites étnicos.
Neste sentido, todos os Kaxinawa seriam incluídos na categoria de “huni kuin"
(pessoas que pertencem ao mesmo grupo étnico), enquanto seus vizinhos pano
seriam chamados por “hum kayabi" (não-eu e não-outro), e todos o não-pano
“huni bemakia" (Outros).
Para melhor explicar o significado contextuai do que significa kayabi (“bom
sem ser o próprio) e bemakia (impróprio), aplicarei estas noções ao domínio do
desenho. Quando uma pintura corporal gráfica Kaxinawa é executada
corretamente, isto é, seguindo as regras estilísticas é chamada kene kuin (“desenho
verdadeiro”). Uma tentativa mais ou menos bem sucedida feita por uma aprendiz
que segue às regras de estilo mas falta-lhe perfeição na conclusão dos padrões
Kaxinawa, é designada kene kayabi (“bom mas não próprio”). Existem ainda mais
especificações. Um desenho pode ser razoavelmente bem feito mas não receberá a
mesma classificação atribuída à aquele grafismo desenhado por uma pessoa
qualificada ou que têm o “saber” do desenho. Deste modo, quando um homem
tenta fazer um kene kuin, prerrogativa feminina, será ridicularizado pelo
comentário de uma mulher: ‘Wa kene bemakiaki !” (“Este é um desenho
impróprio!”) ou ainda, “kenemaki, damiki !” (“Este não é um desenho, é uma
figura!”, que significa que não obedece a regra gráfica). Do mesmo modo, uma
tentativa bem sucedida de um não-Kaxinawa, quando eu mesma, imitei o kene kuin

em dia por Kaxinawa são na verdade os Shaindawa (povo numeroso)


153
foi classificada por uma especialista como “kene kayabiki\" (“isto é um desenho,
não o “próprio”), enquanto um “professor” mais generoso encorajou as minhas
tentativas mostrando a outros e dizendo como eu tinha produzido, finalmente, o
verdadeiro desenho.
Como foi mencionado acima, Augusto não usou o qualificativo kayabi
(não-eu) para seus vizinhos pano do Peru, nem chamou os brancos pelo termo huni
bemakia (Outros). Como pólos extremos da classificação usou huni kuin
(“realmente pessoas como nós”) para aqueles que considerou relacionados e ncrwa
kuin (verdadeiros estranhos, inimigos), para aqueles não-relacionados. O que ou
quem é incluído em uma ou outra categoria não é, sempre, claro e, depende, do
contexto. Além disso a qualificação pode ser ajustada pelo termo "belsa", outro. Se
o tópico fosse a diferença entre hábitos ou costumes indígenas e não-indígenas,
alimentação ou política, por exemplo, até mesmo os Culina poderiam ser incluídos
na categoria kuin (nós). Porém, quando o tópico é mais específico e lida, por
exemplo, com nomes e idioma, os Culina são excluídos e designados não-huni
kuin: huni kuinma.
O termo, belsa (outro), usado por Augusto para diferenciar os Kaxinawa
(huni kuin) de outros grupos pano (huni kuin belsa) segue o padrão geral pano da
nomeação dos “outros próximos”, ocupando o domínio intermédio. Portanto,
seguindo a comparação feita por Erikson para os pano (1986:185-209), os
Amahuaca (Dole, 1979:35) referem-se a si próprios pelo termo namivo (“aqueles
que compartilham nossa carne”) e os demais pano são referidos por yoratsa
(equivalente de yuda belsa, “outro corpo”); os Sharanahua (Siskind, 1873:49-50)
se auto-referem pelo termo noko kaifo (“nossos”, “os que cresceram juntos”, um
equivalente do Kaxinawa nukun nabu, parente próximo) e aos seus vizinhos yura
futsa (“outro corpo”); os Matis usam o termo Malis para auto-referência (“povo”,
equivalente de huni), enquanto chamam seus vizinhos pano de Matis ulsi (“outro
povo”).
“Si l’on s’en tient aux deux premieis termes, l’image utilisée est donc celle
d’individus liés par une relation d’altérité, les uns étant définis comme ulsi, futsa,
etc. par rapport aux autres. Mais à y regarder de plus prés, l’on s’aperçoit
rapidement que considérée sous cet angle, cette soi-disant altérité définit 1’identité
154
commune plutôt que la différence. En effet, dans tous les systémes pano,
1’utilisation d’ “autres” comme tenne de parenté sous-entend qu’il s’agit d’un autre
soi. Mes “autres”, ce sont avant tout ceux de ma session, de mon sexe, et le plus
souvent de ma génération, à savoir, ceux dont la position est équivalente à la
mienne dans le système de parenté.” (Erikson, 1986:189)

Na terminologia de parentesco Kaxinawa (como entre os demais pano,


Erikson, 1986) en belsa (“meu outro”) é usado para designar um irmão, irmã ou
primo paralelo do mesmo sexo de ego, significando alguém que embora seja
diferente pode ser considerado “alguém como eu” por ocupai’ a mesma posição. A
diferença está no corpo, embora o corpo seja semelhante a outros corpos, é, por
definição, único. Belsa também qualifica uma relação enquanto diferente da
relação “própria”: ewa kuin (mãe verdadeira) e ewa belsa (“outra mãe”, a irmã da
mãe). A aplicação do termo belsa pode ser seguida do qualificativo kuin: en belsa
significa primo paralelo, enquanto en belsa kuin, irmão para ego masculino e irmã
para e^o feminino. Quando estes termos, de “outros similares” que se referem a
pessoas que, hipoteticamente, poderiam ocupar o mesmo lugar de ego (como no
caso dos gêmeos), são estendidos aos demais pano, resulta em uma concepção
flexível e relativista da identidade étnica, consciente da possível reversibilidade de
posições.
Uma autodenominação menos inclusiva que a de huni kuin, usada pelos
Kaxinawa para se auto-referirem, é a do compartilhar um “corpo” que alude ao
processo de crescimento, uma singularidade histórica que não é intercambiável.
Assim, nukun yuda (nosso coipo) não inclui outros pano, estes têm o “corpo
produzido” de forma semelhante mas não idêntica ao “corpo Kaxinawa ”. Uma
definição ainda mais restrita do pertencimento é sustentada pela expressão, en
nabu, meus parentes próximos. En nabu refere-se a uma consubstancialidade
alcançada pelo compartilhar de vida e comida e do contato corporal; define-se,
também, pelo trabalho, crescer e viver em uma mesma comunidade construída em
tomo dos ideais da partilha e da troca.
Outros povos têm, também, um coi-po construído e cuidado de um modo
semelhante ao que é considerado "nosso", mas é um coipo diferente. Adotando-se
155
um ponto de vista a partir da noção de corpo, o outro absoluto é um ser sem um
corpo e sem um lugar próprio. Neste contexto, o morto é o outro real, assim como
os yuxin, familiares do morto. Porque os nawa (verdadeiros estrangeiros) não
vivem em seus coipos da mesma forma que os huni kuin fazem (não há o
compartilhar do mingau de banana, milho, mandioca e caça, o viver entre os
parentes próximos) considera-se que seus corpos são diferentes e por isso não são
designados “corpos”. Estrangeiros verdadeiros não são designados yuda betsa
(outro corpo) e nem mesmo yuda bemakia (corpo impróprio); não há referência ao
processo de crescimento da carne e do corpo, poderiam ser considerados como
yuxin, vagam solitários e se alimentam de farinha de mandioca e café67. Estas
pessoas são chamadas nawa, inimigos; uma palavra que conota diferença e
antagonismo. Yuxin e caça podem ser designados, também, nawa quando sua
hostilidade é invocada nas canções rituais.
A importância do corpo e da memória incorporada, construída pelo cuidar
dos coipos um dos outros no interior de uma comunidade o que, por sua vez, leva
a uma consciência da identidade compartilhada criada pela circulação simultânea
de substâncias e de experiências têm implicações não apenas na constituição da
sociedade Kaxinawa, mas numa concepção ameríndia do parentesco. Deste modo,
Seeger (1981:283) cunha o termo organização “coipórea” ao invés de “grupos
corporados” ao se referir às sociedades ameríndias. Viveiros de Castro chamou
atenção para a importância da “fabricação social do corpo” pelos Yawalapiti do
Xingu que concebem toda intervenção no coipo como uma modelagem simultânea
do coipo e da personalidade social (1979:40). A formulação original sobre o valor
social atribuído ao corpo e sua importância na constituição de um socius encontra-
se justamente em um texto que associa, diretamente, corporalidade à construção da
pessoa:
“Cada região etnográfica do mundo teve seu momento na história da teoria
antropológica imprimindo seu selo nos problemas característicos de épocas e

67 Diversos especialistas sugerem a possibilidade da oposição entre ‘espírito’ e corpo


humano ser a principal distinção classificatória para os pano. Cf Calavia (1995), Erikson
(1996), Deshayes (1995).
156
escolas. Assim, a Melanésia descobriu a reciprocidade, o sudeste asiático a aliança
de casamento assimétrica, a África as linhagens, a bruxaria e a política (...). A
originalidade das sociedades tribais brasileiras (de modo mais amplo sul
americana) reside numa elaboração particularmente rica da noção de pessoa com
referência especial à corporalidade enquanto idioma simbólico focal. Ou, dito de
outra forma, sugerimos que a noção de pessoa e uma consideração do lugar do
corpo humano na visão que as sociedades indígenas fazem de si mesmas são
caminhos básicos para uma compreensão adequada da organização e cosmologia
destas sociedades” (Cf. Seeger,A., da Matta, R. e Viveiros de Castro, E., 1979: 2-
3)

Espero ter demostrado, a partir do material Kaxinawa, que estas idéias


seminais ainda estão vivas nas questões etnológicas atuais. As consequências desta
problematização do corpo para uma reflexão sobre a concepção de “sociedade”
ameríndia se fazem sentir, apenas recentemente, o que conduz, por exemplo, a
uma revisão no significado de “história” para ameríndios em termos de uma
“história incorporada” (Gow, 1991:264), e para problematizar os dualismos
cultura/ natureza, corpo/mente no universo transfonnacional ameríndio (Overing,
1996, Arhem, 1993, Isacsson, 1993).
Outro fato etnograficamente recorrente é o uso do corpo como metáfora
para uma orientação no mundo. Assim, em uma região que se estende da amazônia
ocidental para a norte oriental, dos Emberá da Colômbia (Isacsson, 1993),
passando pelos Marubo (Montagner, 1985:470-482, e Melatti, 1989a, Montagner
& Melatti, 1986) e Matis (Erikson, 1987, 1989, 1996), aos Yekuana (Guss, 1989),
os Wayana-Apalai (Van Velthem, 1995) e os Barasana (Hugh-Jones, C., 1979;
Hugh-Jones, S„ 1979, 1995), para citar apenas alguns exemplos de um fenômeno
largamente difundido, a metáfora do corpo é usada na orientação e descrição da
casa. A casa é vista como um ser orgânico e suas partes diferentes são designadas
por temos que equivalem a partes do corpo: a entrada pode ser sua boca ou
vagina, o telhado seu cabelo, a saída seu ânus. A casa, por sua vez, representa uma
metáfora da forna e funcionando do cosmos, ou às vezes toma-se o próprio
cosmos, em que a entrada em um novo mundo é descrita enquanto uma entrada em
uma casa. Voltaremos a este tema em função da importância crucial do conceito de
“visão xamânica interior”, visão em que são sobrepostos os níveis micro e macro,
157
corpo/cosmos, casa/cosmos.
159

2.5. Desenho, imagem, yuxin e suas relações com o corpo humano

a. Uma etnografia do gosto

“Ze style c 'est l 'homme."


Buffon1

“If we are to understand the ethical mies of a society, it is aesthetics that we must
study.”
Leach, 1954:12.

“The individual mind is immanent but not only in the body. It is immanent also in
pathways and messages outside the body; and there is a larger Mind of which the
individual mind is only a sub-systein.”
Bateson, G., 1977.

A especificidade da experiência visual Kaxinawa revela as mesmas


categorias fundamentais que determinam os processos cognitivos encontrados em
outros campos da experiência e da ação. Nesta seção, demonstrarei que na trilogia
dinâmica constituída por kene (desenho gráfico, padronizado), ciami (figura,
modelo, máscara, transformação) e yuxin (agência espiritual/ser) está a chave para
a compreensão da experiência visual e prática artística Kaxinawa. A interconexão
destes três conceitos, aproximadamente relacionados, constitui um campo de
reflexão abstrata no que se refere à fabricação, mutação e desintegração do corpo
humano e da pessoa. Isto significa que na classificação dos fenômenos visuais e na
relação complexa que existe entre estes termos, podemos apreender idéias sobre a

1 Em Bateson (1977:168).
160

estrutura do ser: a dialética entre identidade e alteridade, entre visível e invisível,


perecível e eterno, vida e morte, feminino e masculino, o invólucro e o envolvido,
criação e destruição.
O que pretendo demonstrar com a interconectividade dos campos de
reflexão e de ação é a impossibilidade em apreender o estético enquanto domínio
separado. Ao procedermos desta maneira, as qualidades criativas, sensíveis e
perceptivas de experiências pessoais e coletivas são concebidas enquanto um fait
social total. Este procedimento não significa uma redução do ‘estético’ ao
‘sociológico’ querendo, assim, negar sua unicidade e originalidade. Pelo contrário,
damos à experiência estética sua voz (embora silenciosa) no quadro polifônico de
outras vozes que juntas constituem o socius, entendido como uma interconexão de
discursos sobre, ou visões do mundo vivido, refletindo as possíveis experiências
do mundo que fazem sentido através da repetida interpretação inter-subjetiva e da
comunicação contínua no interior de um grupo de pessoas que se reconhecem
como seres de um mesmo tipo.
Esta abordagem pode ser denominada social ou cultural, assim como inter-
semiótica. O termo inter-semiótico parece o mais apropriado para lidar com o
nosso universo de interpretação por comportar vozes dissonantes e reconhecer
discursos distintos embora relacionados (mutuamente ‘traduzíveis’) em um todo
interligado; os termos ‘cultural’ e ‘social’ transportam uma conotação ‘totalizante’,
que queremos evitar. A abordagem inter-semiótica da etno-estética é uma tentativa
de analisar a organização das capacidades de leitura visual das pessoas que
produzem expressões estéticas específicas, na sua interdependência com outros
discursos ou práticas simbólicas (percepções não-visuais, ritual, mito, organização
social, escatologia etc.) que se contradizem ou se reforçam no jogo criativo que é a
constante reinvenção da vida social.
A leitura de elementos visuais depende do ‘olhar da época’ (Cf. Baxandall,
1972) assim como do ‘olhar do lugar’. A distinção entre formas e relações entre
161

formas é determinada por categorias mentais que estruturam a percepção das


formas e das cores associando-as a conteúdos semânticos específicos que
enfatizam relações e contrastes cognitivamente significativos para o grupo. Nas
palavras de Geertz esta abordagem “olha para as raízes da forma na história social
da imaginação” (1983:119), enquanto na concepção de Wagner (1986:xi) (veja a
epígrafe do capítulo ‘Perspectivismo’) estamos trabalhando com a “forma de
percepção que chamamos de ‘sentido’”. Assim, a estética está englobada por uma
hermenêutica:
"Instead of limiting... aesthetics to a description and determination of the
characteristics of the object of a particular mode of experience, the aesthetic, the
hermeneutic questioning challenges the very notion of a purely "aesthetic"
experience. The encounter with an aitwork is a project of interpretative
understanding, not merely a passive, distanced reception and appreciation of an
independent object... The philosophical task in thinking about art is no longer to
explain t|ie eternal beauty of nature but to clarify the conditions for the process by
which art comes to be understood and interpreted." (Hoy, 1978:137)

Esta concepção filosófica se aproxima do que uma antropologia da arte, da


estética, ou do ‘estilo’ deve ser, ou seja, o projeto de entendimento interpretativo
do significado das qualidades sensíveis na percepção, expressão e cognição nativa.
Esta compreensão progride por meio de um mover-se espiralado entre o global e o
particular sem a lente ou grade de possíveis métodos ou conceitos pré-concebidos
colocados entre o perceptor e o percebido. Assim, conceitos e idéias preconcebidas
que determinam e tomam nossa percepção possível são, sistematicamente, sujeitas
à duvida sempre que a observação e escuta cuidadosas não refletem seu
significado original (Gadamer, 1982).
Procedendo deste modo, o primeiro obstáculo que encontramos é o fato de
que a maioria das sociedades não-ocidentais, incluindo-se aqui os Kaxinawa, não
possuem uma palavra para ‘arte’. Nem mesmo possuem um conceito subjacente e
equivalente ao conceito de arte que poderia existir sem ser nomeado como tal.
Precisa-se, entretanto de pouca familiaridade com a vida destes povos, para
162
perceber que este fato não significa que lhes falta a idéia de ‘beleza’ ou o juízo
estético, ou que não estão interessados em ‘embelezar o (seu) mundo’
(Witherspoon, 1977).
Poderia-se na verdade afirmar o contrário, que ao invés de nada, tudo é
julgado esteticamente, não somente produções materiais mas, também, ações: o
modo de falar, sentar, comer, os gestos, o comportamento social, o cheiro e a
textura corporal, a saúde. O campo inteiro de interação e produção está sujeito ao
juízo estético, de modo que se poderia dizer que termina por não caber mais na
categoria daquilo que nós chamaríamos de ‘puramente estético’. Isto é o caso
porque nada é produzido ou apreciado pelo único motivo de ser ‘belo’ (como
acontecia com a arte ‘pura’ ocidental que obedecia à concepção l'arl pour 1'art).
Beleza não existe enquanto campo separado de apreciação, está associada a outros
domínios de percepção, cognição e avaliação2.

2 A arte moderna tem sido enfática na defesa de sua independência de outros domínios da
vida social. “A arte pela arte” é um credo tanto de artistas quanto dos que pretendem levar
a arte a sério e reflete, a meu ver, uma dificuldade em pensar a criatividade individual e a
autonomia pessoal juntas com a vida em sociedade. Na tradição pós-iluminista o artista
assume a imagem do indivíduo desprendido, livre das limitações do ‘ senso comum
sociocêntrico. Neste contexto, há uma associação entre coletividade e coerção e o poder
de criatividade é projetado fora da sociedade. Um resultado deste estatuto solitário de
gênio é que o artista moderno perde, através de um uso idiossincrático de signos e
símbolos,’ sua capacidade de comunicação: não há linguagem fora da sociedade. Lévi-
Strauss (Cf. Charbonnier (1961:63-91), Entretienx avec Lévi-Suauxx) faz uma primeira
tentativa de analizar, de um ponto de vista antropológico, a diferença entre arte moderna e
“primitiva”. Para Lévi-Strauss a tradição intelectual ocidental é responsável por três
diferenças entre arte “acadêmica” e arte “primitiva”, diferenças que a arte moderna tenta
superar: 1. A individualização da arte ocindental, especialmente no que diz respeito a sua
clientela, que provoca e reflete uma ruptura entre o indivíduo e a sociedade em nossa
cultura - um problema inexistente para o pensamento indígena sobre sociabilidade; 2. A
arte ocidental seria representativa e possessiva enquanto a arte “primitiva” somente
pretenderia significar; 3. A tendência na arte ocidental de se fechar sobre si mesma:
“peindre après les maítres”. Os impressionistas atacaram o terceiro problema através da
“pesquisa de campo” e os cubistas o segundo, recriando e significando, em vez de
tentando imitar de maneira realista - aprenderam das soluções estruturais oferecidas pela
arte africana-; mas a primeira e crucial diferença, a da arte divorciada do seu público, não
163
A beleza não é considerada como algo externo, existindo em um mundo de
objetos independentemente de quem os perceba, mas como algo que pertence à
relação entre o mundo e uma capacidade de ver, baseada no conhecimento
adquirido. A importância da relação inter-subjetiva de co-presença entre o
perceptor e o percebido, assim como uma compreensão da percepção como um
processo ativo e não passivo, aproxima-se das abordagens fenomenológicas da
percepção, como expressa por Heidegger quando faz a seguinte observação sobre a
percepção auditiva: “only he who already understands can listen” (Kurt Mueller-
Vollmer, Ed., Sections 31-34 from Being and Time (1927):237). Sobre a
percepção visual, declara que é um processo em que a significação tem prioridade
sobre a recepção passiva:
“By showing how all sight is grounded primarily in understanding (the
circumspection of concem is understanding as common sense [Verstãndigkeit]),
we have deprived pure intuition [Anschauen] of its priority, which corresponds
noetically to the priority of the present-at-hand in traditional ontology.”(219).

O ‘present-at-hand’ é a definição de Heidegger da Natureza, não vista como


algo que existe lá fora sem relação alguma com a consciência humana e a ação
incorporada, mas algo que existe por causa do nosso envolvimento com ela:
“That which is ready-to-hand is discovered as such in its serviceability, its
usability, and its detrimenta/z/y. The totality of involvements is revealed as the
categorial whole of possible interconnection of the ready-to-hand. But even the
‘unity’ of the manifold present-to-hand, of Nature, can be discovered only if a
possibility of it has been disclosed. Is it accidental that the question about the
Being of nature aims at the ‘conditions of its possibility’?” (217).

Assim como o mundo exterior, ser humano no mundo (Daseiri) é um


projeto de tomar-se, constituir-se:
“(A)s Being-possible... Dasein is never anything less; that is to say, it is
existentially that which, in its potentiality-for-Being, it is nolyet. Only because the
Being of the “there” receives its Constitution through understanding and through

pôde ser superada e resultou num “academicismo de linguagens”: cada artista inventando
seus próprios estilos e linguagens ininteligíveis.
164
the character of understanding as projection, only because it is what it becomes (or
altematively does not become), can it say to itself ‘Become what you are’, and say
this with understanding.” (218)

O entendimento fenomenológico da Natureza e da existência humana em


termos de possibilidade e de processo, como um ‘tomar-se’ (becoming), poderia se
aproximar mais da visão ameríndia sobre a existência do que uma idéia clássica da
Natureza que a percebe como uma realidade objetiva e exterior, a ser revelada e
descoberta em seu ser puro e por si. Este poderia ser um dos modos para
entendermos o significado mais profundo das razões porque os ameríndios
entendem natureza enquanto physis, um todo interconectado de seres não-humanos
com intencionalidade e agência semelhantes à nossa, capazes de adotar um ponto
de vista.
Se as realidades a serem percebidas mudam com a agência incorporada que
vê e age de acordo com uma perspectiva, os seres adquirem identidades múltiplas,
apesar de estarem interligados num mesmo campo significante de uma percepção
informada pela intenção de mútua predação ou cuidado. Deste modo, Natureza, a
soma desta intrincada malha de seres e coisas, toma-se, também, múltipla (sobre o
conceito de multi-naturalismo ameríndio ver Viveiros de Castro, 1996).
Poderíamos afirmar com Goodman (1978), Overing (1990) e Schweder que “When
people live in the world differently, it may be that they live in different worlds.”
(Schweder, 1991:23)
O que examinamos acima tem uma relação direta com a teoria Kaxinawa da
percepção e da criação estética, porque a questão da percepção e criatividade
somente pode ser entendida se captarmos como o pensamento nativo concebe a
realidade. Levando em conta a ênfase ontológica fundamental da concepção
amazônica do mundo na constante transformação de um ser em outro, somos
obrigados a reinterpretar a relação entre, por um lado, percepção e criação (com a
percepção sendo, de alguma maneira, uma criação) e, por outro, entre aparência,
165

ilusão e realidade. Esta última questão nos leva ao problema dos estados de
consciência. Desde que consciência é inconcebível sem uma consideração do
estado do corpo, estados de consciência tomam-se estados do ser.
Desta maneira, a clássica questão nas teorias da percepção sobre a relação
entre ilusão e realidade, é substituída por uma consideração da relação entre
estados diferentes de ser dos humanos assim como dos não-humanos. Esta questão
será tratada em maior detalhe na próxima seção quando abordaremos a tríade kene
(desenho), dami (transformação), yuxin (ser, imagem no espelho). Neste momento,
quero apenas enquadrar esta questão num quadro mais amplo da reflexão teórica.
Encontramos nas reflexões de Schweder (1991) sobre estados da mente e como
estão relacionados, questões próximas a nossa problemática:
“Some argue, for example, that imagination is opposed to perception...
Some argue that perception is a fonn of imagination (for example that visual
perception is a “construction”), while others argue that imagination is a forni of
perception (for ex., that dreaming is the witnessing of a plane of reality). Still
others argue both ways, and dialectically, for imaginative perception and
perceptive imagination.” (Schweder, 1991:37)

Um exemplo da relação entre percepção imaginativa e imaginação


perceptiva pode ser encontrado em uma das características estilísticas mais
marcantes do tecido desenhado feito pelas Kaxinawa: considerando que os padrões
são interrompidos imediatamente depois de terem começado a ser reconhecíveis no
pano tecido, precisa-se da capacidade imaginativa para perceber a continuação do
padrão através de uma visão mental. A técnica sugere que a beleza a ser percebida
no exterior está tanto, ou até mais presente no mundo invisível ou no mundo das
imagens a serem visualizadas pela criatividade perceptiva, do que na beleza
extemalizada pela produção artística.
Este dispositivo estilístico revela um elemento importante do significado do
desenho na ontologia Kaxinawa: o papel desempenhado pelo desenho na transição
entre percepção imaginativa e imaginação perceptiva, ou a transição de imagens
166

percebidas pelos olhos no estado de ser cotidiano, para as imagens perceptíveis


somente para o olho mental ou o yuxin do olho. Desenho é um sinal do yuxin.
Desta maneira, a única resposta que Dona Maria Sampaio, quase cega e portanto
impossibilitada de fazer desenhos, me deu à pergunta sobre o significado dos
desenhos foi que: "O desenho é a língua dos espíritos” (kene yuxinin hantxaki).
Voltaremos a esta frase mais adiante.
Os Shipibo (pano do Ucayali) vão mais além na importância dada à
percepção imaginativa quando afirmam que o corpo humano pode ser visto como
estando permanentemente desenhado, quando se tem a capacidade de vê-lo. A
pintura invisível funciona como armadura contra a invasão da doença. Gebhart-
Sayer (1986) interpreta a transição de visibilidade à invisibilidade na manifestação
Shipibo da pintura corporal como medida de proteção usada pelos Shipibo na sua
relação de proximidade com não-nativos, lllius (1987), por outro lado, duvida que
a pintura corporal tenha em algum tempo sido usada fora do contexto ritual. Os
não-Shipibo somente têm acesso à manifestação exterior dos belos e complexos
padrões Shipibo através da pintura na cerâmica e em panos (estes desenhos não
são, como entre os Kaxinawa tecidos mas aplicados sobre o tecido pronto) (Roe,
1982).
Os próprios Shipibo, entretanto, podem visualizar estes motivos, com alta
significação cultural, sem precisar tê-los materialmente na sua frente. Mulheres
com conhecimento de desenho podem sonhar sobre o assunto (frequentemente
com a ajuda de plantas que induzem sonhos com desenho (lllius, 1987), como o
fazem as mulheres Kaxinawa), enquanto homens, mais especificamente os xamãs,
visualizam, com a ajuda dos seus cantos, o desenho invisível que cobre a pele de
seus pacientes, quando sob a influência da ayahuasca (Gebhart-Sayer, 1986). lllius
e Gebhart-Sayer sugerem que a relação sinestésica entre canto e desenho na
experiência com a ayahuasca diz mais respeito à melodia do que às palavras do
canto. Mais adiante teremos oportunidade de voltar a esta relação complexa entre
167
os sentidos na experiência holística da percepção imaginativa.
Os Navajo dos Estados Unidos atribuem igualmente grande importância ao
lado oculto da beleza. Witherspoon afirma:
“For the Navajo beauty is not so much in the eye of the beholder as it is in
the mind of its creator and the creator’s relationship to the created (that is, the
transformed, or the organized). The Navajo does not look for beauty; he generates
it within himself and projects it onto the universe. The Navajo says shil hózhó
‘with me there is beauty’, shii hózhó ‘in me there is beauty’, shcici hózhó ‘from me
beauty radiates’. “Beauty is not “out there” in things to be perceived by the
perceptive and appreciative viewer; it is a creation of thought. The Navajo
experience beauty primarily through expression and creation, not through
perception and preservation.” (1977(97): 151)

Uma bem-conhecida manifestação da filosofia de vida dos Navajo e da


atitude frente à arte que dela decorre, são as pinturas na areia, destruídas logo
depois ou durante os rituais de cura. Os Navajo não vêem sentido na tentativa de
I
tentar fixar ou guardá-las (através da fotografia por exemplo) e consideram tal
atividade como potencialmente perigosa. O perigo é ligado ao princípio básico que
associa vida ao movimento e morte à ausência de movimento. O prazer estético
Navajo reside no ato de criação, não na sua contemplação e conservação.
Witherspoon completa:
“Navajo society is one of artists (art creators) while Anglo society consists
primarily of nonartists who view art (art consumers)...The nonartist among the
Navajo is a rarity. Moreover, Navajo artists integrate their artistic endeavors into
their other activities. Living is not a way of art but art a way of living.” (153)

Retomando à nossa discussão sobre o conceito de estética, estou


convencida de que, no sentido amplo da palavra, as sociedades cultivam sua
‘estética’ ou teoria do gosto ligado a um valor e, conseqíientemente, julgamento.
Percepções visuais, gostos, cheiros e sons que agradam serão sempre contrastados
com outros que desagradam e esta percepção implica em interpretação e valor,
pressupondo esquemas de significação que precedem a mera possibilidade de
percepção. Percepções dos sentidos são classificadas e julgadas de acordo com o
168

que significam para o perceptor. Grupos sociais se diferenciam em termos do que


gostam, e os critérios variam de acordo com o uso político ou social do julgamento
estético.
Na sociedade ocidental moderna, o ‘gosto’, o cultivo do julgamento
estético, tem sido usado como critério de distinção social e é ligado aos fenômenos
de pertencimento de classe e mobilidade social (Bourdieu, 1984)3. O gosto tem
sido cultivado como campo especializado de julgamento refinado. E difícil mudar
o gosto porque implica em um processo lento de aprendizado e de ‘incorporação’
de atitudes, é o tipo de conhecimento corporal que se adquire através dos hábitos
compartilhados e do viver junto. E por esta razão que o gosto é tão importante na
comunicação, um pertencer que expressa uma filosofia social e história de vida. O
gosto guia ações, percepções e desejos sem reflexividade consciente do sujeito.
Visto nesta perspectiva, o gosto se toma de importância crucial para as
identidades pessoal e grupai. Deste modo, não deveria surpreender-nos o fato de,
ao serem perguntados a respeito dos seus ‘outros’ próximos, meus interlocutores
Kaxinawa responderem exatamente com este tipo de julgamento e valor estético. A
questão que mais os preocupava era o ‘jeito’ e a aparência dos próximos (pessoas
que, como os Culina ou os Yaminawa, ocupavam frente ao branco, uma posição
equivalente à deles): se usavam ou não roupas e decorações bonitas; se cheiravam
bem ou não; como se alimentavam etc. A qualidade dos objetos produzidos cai
igualmente sob esta rubrica, mas não me parecia o mais enfatizado.
Mais importante que a maneira que o conhecimento era estocado em
objetos externos, era o modo com que as pessoas incorporam o conhecimento,
conhecimento social assim como a arte de viver bem e sem doença. Arte é, como
memória e conhecimento, incorporada entre os Kaxinawa e objetos não são senão

3 Cf Weiner, J., ed. 1994. “Aesthetics is a cross-cultural category”. Debate organizado na


University of Manchester, Out. 1993, com a participação de Howard Morphy, Joanna
Overing, Jeremy Coote, Peter Gow.
169

extensões do coipo. Esta prioridade explica porque as expressões estéticas mais


elaboradas dos grupos indígenas são ligadas à decoração corporal: pintura
corporal, arte plumária, colares e enfeites feitos de miçanga, roupas e redes tecidas
com elaborados motivos decorativos. Os Kaxinawa não estocam suas produções
artísticas. Como os Navajo, estão convictos de que objetos rituais perdem seu
sentido e sua beleza (assim como seu dua, brilho, encanto) depois de terem sido
usados. Um exemplo é o banco ritual usado pelos iniciantes durante o rito de
passagem. Se durante o ritual o banco é belamente pintado e pode somente ser
usado pelo iniciando, depois ele se toma um simples banco, com a decoração
desaparecendo lentamente, podendo ser usado por qualquer homem (mulheres não
sentam em bancos mas em esteiras).
Povos indígenas variam muito no valor que atribuem à produção material4,
mas podemos afirmar que, em geral, a produtividade tecnológica e a inovação
acumulativa não têm o mesmo valor que para a sociedade industrializada.
Geralmente, as populações indígenas, e os Kaxinawa em particular, desejam os
produtos industrializados como se afirmassem uma superioridade tecnologia dos
‘brancos’. Esta questão ocupa um lugar central em suas reflexões sobre a relação
que estabelecem com os brancos. A maior parte das mitologias levantadas a
respeito, considera a diferença em produtividade tecnológica a consequência de
uma escolha feita no passado: a explicação de que ‘nos escolhemos arco e a flecha,
enquanto eles escolheram armas de fogo’ é uma conclusão recorrente na reflexão
mitológica dos Ameríndios a respeito deste tópico. Neste contexto, a importância

4 Comparar por exemplo os ritualisticos Kayapó-Xikrin (Vidal, 1992), Bororo (Dorta,


1981) ou Wayana/Apalai (Van Velthem, 1995) com sua exuberante arte plumária e
elaborada cestaria, com a sobriedade da cultura material Pirahã (Gonçalves, 1995). O
interessante no caso dos Pirahã é que estes vêem seus Deuses como possuidores de toda
qualidade de técnicas enquanto são, ao mesmo tempo, incapazes de pô-las em prática por
causa dos seus corpos inperfeitos (deformados). Para fazerem as coisas precisam da ajuda
dos humanos. Os humanos, por sua vez, ‘nada sabem’ mas têm um corpo perfeito e são
pescadores sofisticados e prendados que, com o uso de instrumentos simples mais
170
da sua própria agência no processo da tomada de decisão é enfatizada, sem, no
entanto, defender a decisão como a melhor possível.
Percebemos um sentido manifestamente político e social nesta ênfase dada
à escolha que ocorre no mito que, por sua vez, produz a diferença entre o estilo de
vida indígena e o dos brancos. Se não fosse porque escolheram viver assim,
poderiam ter migrado para as cidades ou se misturado aos brancos, e a distinção
entre eles e os brancos teria sido abolida. Sabe-se, por outro lado, que o
tradicionalismo ou conservantismo indígena é uma idéia mais dos antropólogos do
que dos nativos. As pessoas não vivem da maneira que o fazem hoje porque
sempre o fizeram assim, mas vivem deste modo porque assim o escolheram. Vale
notar que esta é uma decisão que por definição não pode ser tomada
individualmente. Como o caso Kaxinawa nos deixa entrever: a ‘vida indígena’
reside exatamente no fato do ser Kaxinawa significar viver em comunidade com
parentes próximos ao invés de viver em famílias nucleares como os brancos.
A filosofia social que resulta da escolha de viver em sociedades de pequena
escala, politicamente autónomas e construídas ao redor do parentesco, tem
consequências de longa alcance para o estilo de vida e para a produção, e por esta
razão também para a práxis social do julgamento estético. Especialmente quando
esta escolha da prática social tem sido feita contra um fundo de estilos de vida
diferentes e ao alcance. No caso dos Kaxinawa e seus vizinhos pano e aruak, a
tentação e ameaça do ‘Estado Nação’ é mais antiga que a primeira chegada dos
Espanhóis na costa peruana. Sua posição fronteiriça entre o altiplano Andino e a
floresta Amazônica os colocou em contato próximo com a expansão quéchua e
incaica, e a pesquisa histórica sugere que alguns destes grupos (possivelmente os
Kaxinawa e Conibo) trabalharam nas minas de ouro de Potosi quando os primeiros
cronistas lá chegaram (Renard-Casevitz, Saignes and Taylor, 1988, vo] 1:121-132).

provenientes de soluções sofisticadas, obtêm resultados infalíveis.


171
O contato esporádico com o contexto político do Estado dos Inca onde o
poder coercitivo regulava a relação entre conquistador e vassalo, atraía os povos da
Montanha (floresta) tanto quanto os repelia. Fontes do primeiro período colonial
mencionam que estes povos da floresta nunca foram totalmente subjugados.
Vinham e iam, desaparecendo na Selva quando queriam e retornando quando
precisando de metal, ouro, ou outros bens inexistentes na floresta. Esta modalidade
de relação foi transposta para a relação com os missionários e seringalistas:
trabalhavam temporariamente para estes, mas podiam a qualquer momento
desaparecer de novo. Por esta razão, é compreensível, sociologicamente falando,
que o Inka, antiga figura dos mitos, tenha sobrevivido hoje em dia enquanto
imagem operativa para a conceitualização da relação ambígua de atração e
resistência com relação aos invasores brancos (Cf McCallum, 1992; Kensinger,
1986a para a relação entre a figura do Inca e os brancos).
Deste modo, a escolha dos grupos amazônicos em continuar sua vida em
comunidades de pequena escala, cuja filosofia desencoraja a acumulação de bens e
de poder assim como a coerção autoritária ou a limitação da autonomia pessoal.
Neste sentido, a resistência à incorporação ao mundo exterior teve que ser, por esta
razão, conscientemente elaborada. Isto foi feito no mito, no ritual e na práxis e
avaliação estética.
Na seção acima foi mencionada a fascinação Kaxinawa pela beleza
perigosamente atraente dos seus ‘outros’ poderosos. Enquanto algumas sociedades
indígenas manifestam sua repulsa ao poder excessivo representada no honor ao
exagero ostentatório que recai, sobretudo, nas manifestações materiais5, os

5 Este é o caso para os Piaroa (Overing, 1985). A estética Piaroa parece ser uma
afirmação explícita sobre os perigos do poder cultural não controlado. Poder, quando fora
do controle, se torna repulsivo em comportamento e forma. A beleza é associada com o
moralmente corretto e socialmente domesticado. O poderoso nunca é bonito em si; para
tornar-se bonito, precisa ser constantemente limpo no luar pelos cantos do xamã. Este
entendimento de uma estética ligada de perto a uma ética e à vida social, é elaborado na
172
Kaxinawa cultivam uma admiração secreta e um desejo de fusão com seus
emblemas de alteridade e de poder. Assim a mitologia sobre o mais belo dos seres,
o Inka (Inka hawendud), não se caracteriza pela rejeição mas pela projeção no
futuro, em uma escatologia, de uma reunião fmal com esta divindade celeste. O
povo das cobras é igualmente belo e sedutor, como o são os outros yuxibu quando
visitados nas suas casas, todos eles, dos reinos aquáticos, terrestres e celestes, são
keneya, isto é, decorados com o ‘verdadeiro’ desenho. Sua beleza é o reflexo do
seu poder, conhecimento, e saúde, e é expressa no uso da decoração corporal
(especialmente na plumária, na pintura e nos colares). Sua aparência é tida como
colorida e luminosa, uma energia visual que deriva do dua, brilho destes seres.
Hawendua, termo em Kaxinawa para ‘bonito’ poderia ser interpretado
como contendo a palavra dua (brilho), precedido por hawen. O significado da
primeira parte da palavra ha-wen, não é clara, hawen poderia significar ‘seu’ dua,
assim como ‘aquele’ (/?<?) ‘com’ (ire) dua. Poderíamos igualmente empreender a
tentativa de decompor a palavra para bondade, gentileza, lduapa\ que pode
iguahnente estar ligada à dua, mas novamente, estas são questões espinhosas para
antropólogos à procura de sentido. Se, entretanto, estas nês palavras, dua,
hawendua e duapa fossem semanticamente relacionadas, como sua decomposição
poderia sugerir, teríamos encontrado na língua Kaxinawa a confirmação de uma
associação do julgamento ético e estético, notada com frequência em outros
contextos nativos.
Quando falamos da ligação entre estética e ética, é importante estabelecer,
desde o começo, a distinção entre prática social e imaginação social. A prática do
julgamento estético é intrínseca e ligada a problemas ontológicos que ocupam a
reflexão nativa: a natureza do poder como coexistência inevitável dos seus lados
criativos e canibalísticos e a recusa de aceitar o poder económico e coercitivo no

mitologia Piaroa. Assim, seu Deus mais criativo e poderoso Kuemoi, era também o mais
repulsivo de todos.
173
seio da comunidade, ligados à mencionada obsessão ameríndia com “a noção
filosófica do significado do ser similar ou diferente...” (Overing, 1986:142).
Assim, no julgamento estético concreto, os Kaxinawa valorizam a
moderação, nitidez e detalhe nos cuidados com o corpo, no comportamento e no
uso de ornamentos e desenhos. A relação da arte com o senso de comunidade e
com a criação de um modo culturalmente próprio de vida é construtiva ao invés de
destrutiva. O estilo artístico não demonstra nenhuma tendência de quebrar com a
tradição pois a criatividade é considerada possível somente dentro e nunca fora da
sua rede específica de sentidos sociais e sensíveis.
Vemos deste modo que as regras que guiam a criação e o juízo artísticos
são a visualização de outro aspecto da imaginação estética que aquela expressa na
descrição dos seres poderosos do outro mundo. Em vez de experimentar com as
manifestações perigosas do excesso, expressam a lógica contrária da moderação e
da medida, prática estética que exprime o funcionamento pragmático de uma
filosofia social que não permite a diferença extravagante e exagerada ao nível da
verdadeira vida incorporada. Deste modo, enquanto sua vida imaginária pode
visitar todas as possibilidades de forma e luxúria visualizadas nas cidades
coloridas dos nawa feitas de pedra, cristal e feno, na vida cotidiana, a expressão
artística ganha valor não através do espetáculo e exuberância, mas através de
pequenos detalhes idiossincráticos.
Acima, no capítulo sobre Perspectivismo, mencionamos o uso da assimetria
em um tecido, marcada pela alternância simétrica entre figura e contra-figura
(expressão mais acurada do que ‘fundo’). Usei o conceito de studium
(Barthes, 1980) para referir o discurso visual dominante da combinação alternada
de um número igual de unidades de desenho e seus opostos complementares,
marcados por cores contrastantes (geralmente preto e branco num tecido, ou
174
vermelho e preto na pintura facial)6.
Desta maneira, o conceito de ‘tecido da vida’ concebido enquanto
entretecimento de elementos iguais (seres ocupando a mesma posição no sistema),
cada um pertencendo a uma das duas metades contrastantes (figuras escuras
alternadas com figuras claras), é evocado no tecido que mostra como o
entrelaçamento repetido e sistemático de opostos complementares, opostos na cor
mas iguais na forma, pode formar um padrão infinito. Assim, um tecido reúne o
que é oposto mas ao mesmo tempo essencialmente igual em forma, substância e
qualidade: motivos pretos e brancos são feitos do mesmo algodão, e inu e dua, ou
homem e mulher são ambos feitos dos mesmos fluidos corporais e agênciayuxin.
O tecido desempenha a função de uma pele ou placenta, contendo o espaço
corporal no seu interior, filtrando e protegendo, ao mesmo tempo em que conecta o
que está dentro com o que está fora. E seguindo a lógica do ‘invólucro protegendo
a semente’ (onde ‘semente’ representa a potencialidade de um conteúdo) que as
associações simbólicas de placenta com desenho, e desenho com pele ganham
sentido. A mesma lógica associa pele com as paredes da casa (chamadas kene), e o
teto esférico com a cúpula do cosmos.
Se o conceito de corpo (yuda) pode ser estendido a nukun yuda (nosso
corpo), incluindo parentes próximos que partilham comida e teto (antigamente
grandes malocas podiam hospedar uma aldeia inteira), o fato da casa ter sido
escolhida como metáfora daquilo que contém o corpo segue como consequência
lógica. As aldeias dos yuxibu no cosmos são imaginadas da mesma maneira como
conjuntos fechados de corpos e comunidades: são esféricos e fechados e a entrada
é uma porta. O que liga estes fenômenos é o conceito de desenho (kene), um
desenho que nunca existe como conceito abstrato mas que adere sempre a alguma
coisa ou é incorporado em um suporte. Desenho é aquilo que separa o que é dentro

6 Veja ilustração em anexo.


175
daquilo que é fora do ‘corpo’ (ou mundo), assim como é aquilo que constitui o
meio de comunicação entre ambos os lados7.
Deste modo, voltando à análise formal do estilo e do significado que o
estilo revela quando a forma é associada às estruturas principais que orientam a
concepção Kaxinawa do mundo, chegamos a uma unidade sintética na dualidade.
Nos capítulos anteriores, vimos como esta estrutura básica expressa a característica
principal da vida na terra. Assim como esta é constituída pela separação e ligação
simultâneas dos mundos celeste e terrestre, e pelo entrelaçamento das qualidades
opostas (dua e inu, masculino e feminino), a fabricação de tecido ou a superfície
pintada são o resultado unificado da sistemática repetição das unidades de
desenho, idênticas e alternadas nas cores claras (/>?«) e escuras (dua), que
representam respectivamente o domínio celeste e aquático, o dia e a noite, o
masculino e o feminino. A unidade do coipo e da vida é o resultado do encontro e
da mistura dos princípios opostos do gênero e dos domínios aquáticos e celestes.
Consequentemente, o discurso manifesto do estilo, seu studium, enfatiza a
essencial igualdade de todos os elementos, em sintonia com uma filosofia social
que reage contra qualquer exacerbação de diferenças (todos os humanos são mais
ou menos iguais como o são as unidades de desenho), e que realça a ligação dos
seres humanos com o cosmos cujos corpos e seres são cobertos na mesma malha
de desenho. Visualiza igualmente o fato de todo coipo ser composto da união das
qualidades de inu e dua, e da união das qualidades femininas e masculinas. O
studium, em suma, bata da homogeneidade e coerência e expressa a idéia da
comunidade como sendo um coipo social (nukun yuda), coberto pela mesma ‘pele’
(roupa) cultural, ou rede de caminhos (as unidades mínimas de desenho são
chamados de ‘caminhos’, baí) cobrindo todo o mundo domesticado (ou explorado,
conhecido).

7 Veja ilustração em anexo.


176
O punctum, ou detalhe esteticamente agradável, por outro lado, vem do
domínio dos eventos imprevisíveis e da criatividade pessoal. Por este motivo um
ângulo a mais em uma das múltiplas gregas que compõem um padrão, perturbará a
simetria perfeita da estrutura e chamará a atenção para a autoria da peça de arte,
assim como para o fato de, mesmo num padrão geral de similaridade, nada é
produzido duas vezes sem ter sofrido uma pequena transformação no processo de
reprodução. Do mesmo modo que o ser humano é único por causa da sua história
pessoal e singularidades corporal, todo produto do trabalho humano é único na
técnica e na concepção, e o artista Kaxinawa nunca deixa de marcar esta
singularidade no detalhe sutil. Deste modo a qualidade de ser único apesar de
parecido é conscientemente visualizada através da introdução de pequenas
distorções nos padrões clássicos, distorções estas que dão à peça seu caráter.
Outro fenômeno que aumenta a particularidade e qualidade distinta de uma
peça de tecido desenhado é a transformação suave de um padrão em outro.
Transformações de padrões ocorrem somente em panos com motivos que cobrem
uma superfície extensa8. Este fenômeno me foi explicado da seguinte maneira:
“Na pele de Yube tem todos os desenhos possíveis. A cobra tem vinte e
cinco malhas, mas cada uma dá vários outros desenhos. No fim das contas, todos
os desenhos pertencem à mesma pele da jibóia.”

Edivaldo verbalizou a questão em termos parecidos: “o desenho da cobra


contém o mundo. Cada mancha na sua pele pode se abrir e mostrar a porta para
entrar em novas formas. Tem vinte e cinco manchas na pele de Yube, que são os
vinte e cinco desenhos que existem.”
Em contraste com o desenho na tecelagem, a unicidade na pintura corporal
ou facial não é de difícil obtenção, surge a partir do suporte assim como do estilo
da mão que pinta: cada face refletirá o mesmo padrão diferentemente, e a
superfície complexa força o desenho a adaptar seus ângulos em curvas,

8 Cf. Keifenheim (1996).


177
acompanhando o relevo do corpo pintado. Desta maneira, o desafio da pintura
corporal ou facial não reside tanto no detalhe assimétrico (que no entanto aparece)
e na discreta originalidade escondida en um campo globalmente simétrico, mas na
habilidade de cobrir a superfície irregular sem perder a coerência do desenho e a
distância regular entre as linhas que compõem o padrão9.

Na arte plumária, por outro lado, assimetria parece ser mais importante que
simetria, pelo menos com relação à colocação e tamanho das penas, apesar da
necessidade de se obter como resultado final um ‘buquê’ balanceado e
harmonioso. As faixas de bambu que servem de suporte ao equilíbrio móvel das
penas, por sua vez, são caracterizadas por uma disposição do desenho no suporte
que é menos dinâmico do que a encontrada nas pinturas faciais e nos tecidos, onde
o centro de gravidade do desenho nunca é no meio do campo. A descentralização
do desenho na tecelagem e na pintura corporal aumenta a impressão da
continuação do desenho fora das bordas do campo decorado como se o desenho
estivesse cortado ao meio10, enquanto o desenho na coroa de bambu é disposto em

9 O mesmo desafio na tentativa de manter o equilíbrio entre a coerência do padrão e a


aplicação em suporte irregular foi notado por Lévi-Strauss na sua análise da pintura facial
Kadiwéu (1955, 1958) e por Gow (1988) na sua análise do desenho Piro. Gow sugere
uma correlação entre a complexidade da relação dinâmica entre os elementos gráficos e
plásticos no estilo artístico e o suporte primário no qual o estilo se desenvolveu, e conclui
que esta poderia ser a explicação para a grande elaboração do desenho na tecelagem
Kaxinawa por um lado, e um sistema de desenho mais complexo na pintura corporal Piro
por outro. As mulheres Kaxinawa eram principal- e primeiramente tecelãs, as Piro
desenhistas. A mesma hipótese foi sugerida para a tecelagem Kaxinawa em relação à
pintura corporal por Dawson (1975:131-150). Este argumento da determinação técnica de
toda elaboração artística lembra o argumento de Boas no seu clássico Primitive Art
(1928), estudo que critica o cego ‘reading-into’ de significados simbólicos em unidades de
desenho, método usado sem avaliação crítica nos estudos superficiais pelos estudiosos da
arte étnica do seu tempo. O tratamento da arte enquanto diretamente denotativa, não leva
a resultados com sentido coerente. A razão para este fracasso interpretativista, entretanto,
não reside no fato das formas serem meras formas sem sentido a comunicar (puramente
sensoriais e não conceituais ou cognitivas), mas reside no fato da linguagem visual
comunicar sua mensagem de modo diferente à lógica denotativa, e ‘simbólica’.
10 O mesmo artificio estilístico foi notado por Múller (1990) entre os Asurini; Cf
178
fileiras sem cruzamento diagonal11.
No cocar, o equilíbrio assimétrico das penas é complementar ao anel com
decoração simétrica que os segura. O suporte do cocar pode também ser coberto
por um tecido de algodão. Também neste caso, o motivo da base é rígido, como se
tivesse que compensar a falta de simetria no topo.
Para o Txidin (festa do gavião real) fabrica-se a ‘roupa do gavião real’ que
cobre o corpo inteiro com adornos plumàrios feitos com as penas do gavião: a
cabeça, o peito e as costas. As penas da haipia são difíceis de obter e são
guardadas enquanto possessões raras e preciosas pelas pessoas que conseguem
matar a ave, mas não por isso serão por eles usadas. A comunidade inteira
contribui com suas penas para a fabricação do traje do líder do canto e do seu
aprendiz. Cada pessoa que se junta como aprendiz ao líder, terá o direito de se
cobrir com o traje durante o tempo da performance. O traje é uma roupagem ritual
que pertence à comunidade e é montado unicamente por ocasião do ritual. É o
produto das contribuições de cada caçador da aldeia que teve a sorte de obter
penas da haipia. Deste modo, o traje contribui para a coesão social em vez de se
tomar ostentação de propriedade ou habilidade privadas.
Cocares são igualmente usados no ritual de fertilidade Kaixanawa. Aqui
cada participante veste seu próprio cocar e por esta razão a ocasião se presta com
facilidade à competição e demonstração de prestígio social. A análise feita por
Rabineau (Dawson, 1975:87-109) de uma coleção de adornos plumàrios
acompanhada de notas de campo, trabalho realizado por Kensinger nos anos
sessenta, revela interessantes ligações entre o julgamento estético e social12. Os
cocares feitos pela liderança da aldeia e seu filho são consideradas belas obras,

Lagrou(1991).
11 Veja ilustração em anexo.
12 Atualmente, a produção de adornos plumàrios nas aldeias que visitei é rara e a qualidade
da produção não se compara com os especimens encontrados nas coleções feitas por
Schultz e Chiara em 1950-51 (Museu Paulista) e Kensinger nos anos cinquenta e sessenta.
179
demonstrando domínio de técnica e delicadeza na execução e escolha do material.
Especialmente o trabalho do filho é “elogiado pela economia de penas e elegância
no desenho”( 1975:96). Seu comportamento é discreto e sua ambição de suceder o
pai não é abertamente expresso. O produtor do cocar dominou a estética da arte
plumária e da etiqueta social.
O caso de Muiku era diferente. Muiku era o rival da liderança da aldeia e
parecia não guardar suas ambições para si. Usou para o Kaixanawa penas da
harpia, cujo uso era apropriado unicamente no contexto do Txidin e do Nixpupima,
e porque não possuía penas suficientes para completar um cocar (outras pessoas
evidentemente não colaborariam com ele neste contexto), teve que misturá-las com
as penas de jacamim. Esta mistura e o uso de penas demasiadamente prestigiosas
no contexto errado foram esteticamente desaprovados pelos parentes. Outro cocar
feito pel^ mesma pessoa, foi iguahnente desaprovado em termos de beleza. Apesar
de demonstrar boa técnica, Muiku exagerou, desta vez no uso de penas amarelas e
por esta razão seu trabalho foi considerado “excessivo”.
Os exemplos dados por Rabinau ilustram bem a conexão entre regras
sociais e gosto estético. O significado da estética da arte plumária é, entretanto,
mais complexa. Penas têm yuxin (Kensinger, 1991c) e precisam, por isso, ser
usadas na combinação e contexto apropriados, e pela pessoa certa. Não é (como
sugere Rabineau) a liderança da aldeia que usa as penas da harpia como signo de
prestígio e autoridade política, mas o líder do canto e seu aprendiz (um dos quais
pode mas não, necessariamente, é a liderança da aldeia). O uso desta roupa se dá
em contexto ritualmente controlado. As penas da harpia formam parte do traje do
representante ritual do Inka no Nixpupima e no Txidin. Pelo fato do dono das
penas, o Inka na sua manifestação da harpia, ser chamado para o terreiro da aldeia
e assim ser considerado presente durante as festividades, a pessoa que usa o traje
deste personagem necessita saber os cantos certos que acompanham a
performance, senão se expõe a um perigo da ordem da ‘yuxinidade ’.
180
Não é a liderança da aldeia, nem o xamã, que se especializa na arte de lidar
com as penas das aves, dos pássaros e de seu uso, mas o líder do canto, por causa
da óbvia ligação entre os pássaros e sua especialidade: a arte de memorizar e
executar os cantos rituais, uma arte que se considera como tendo sido aprendida
com os pássaros. Estes cantos são ligados ao Inka, enquanto outros cantos (como
os yuan entoados durante as sessões com ayahuasca) são ligados a Yube e à
visualização ritual das realidades ligadas aos jwx/w tyuxibu.
Percebemos, desta maneira, que as regras que guiam a combinação de cores
e de materiais são mais complexas do que as regras que visam somente à regulação
da demonstração de prestígio social. Através da categoria dau (encanto, remédio,
veneno) que se aplica à roupa assim como às decorações usadas pelo líder do
canto, fica claro que o uso de certos emblemas carregados de prestígio social têm
consequências que implicam em compromisso ritual e não somente em posição
social.
Objetos e palavras usados para o canto são meios de comunicação com o
universo social extra-humano com o qual se quer estabelecer uma conexão.
Precisa-se usai- as penas apropriadas em função do seu dau que aumenta o dua
(brilho) do usuário. A pessoa, entretanto, usa unicamente as roupas que está
preparada para usar. O poder é perigoso para quem não está preparado para a
tarefa e precisa por esta razão ser mantido tão invisível quanto possível. Do
contrário, a pessoa se expõe à competição, inveja e vingança. Esta regra vale para
a ostentação de bens materiais assim como para o conhecimento ritual. O poder
mais exposto de todos, entretanto, é o do xamã, e esta é a razão porque pertence ao
oculto. E o poder mais ambivalente e volátil conhecido pelos Kaxinawa. Aqueles
que não querem perder ou enfraquecer seu poder, precisam ser fortes o suficiente
para resistir à tentação de partilhar o segredo do seu pacto com Yube.
181
b. Desenho (kene), figura (dami) e yuxin

“To any vision must be brought an eye adapted to what is to be seen ”


Plotinos13

“Art is the buming glass of the sun of meaning.”


Roy Wagner, 1986:27.

“There are two ways of not seeing what there is to see. One is where you locate
the action to its proper activity space, but you are not experienced enough, or not
(as yet) conceptually equipped, to catch its richness. You don’t see enough of it.
The other, more dramatic, is where you allocate it to the wrong activity space. You
are blind to it.”
Jakob Mel<f>e, 1988:91.

A sensibilidade Kaxinawa para a presença de desenho (Ae/?e) no mundo


envolvente é responsável pela classificação de seres e coisas (humanos, animais,
plantas e artefatos) em termos de ‘com’ ou ‘sem desenho’. O fato de um ser ter
padrões na sua pele, é sistematicamente mencionado no seu nome através do
adjetivo qualificador keneya (com desenho). Os dois tipos de onça, por exemplo,
são distinguidos pelo fato de um deles, o inu keneya, ter desenho e o outro, txaxu
inu (onça veado, ou onça vermelha) não. Entre as folhas de sororoca usadas para
fazer ‘patrasca’ (kawa), existe iguahnente um tipo que se distingue dos outros
através do seu desenho. O nome genérico para a sororoca se refere à forma que é
similar a da folha da bananeira, mani pei (folha da banana), enquanto a folha com
nervuras violetas na superfície verde é qualificada como mani pei keneya.
A. sensibilidade para a existência do desenho na natureza se liga à alta
valorização do sistema complexo de desenho que caracteriza sua própria produção
artística na pintura e tecelagem. Esta ênfase no desenho é tão marcada que foi
escolhido como elemento crítico na sua auto-imagem. Em comparação com seus
vizinhos, que não usam desenho (como os Culina ou os Kampa, ou os que não

13 Cf. Furst (1972:142).


182
usam um sistema de desenho tão elaborado quanto o seu, como os Yaminawa) os
Kaxinawá se distinguem como "povo com desenho".
Os Shipibo são considerados como sendo igualmente um povo com desenho
(queneya em Shipibo) e esta pode ser uma das razões porque Augusto os chama de
huni kuin, não obstante sua afirmação de nunca tê-los conhecido o suficientemente
para realmente julgar sua similaridade ou diferença. Por causa do desenho, os
Shipibo são considerados bonitos. Possuem também, nos olhos de Augusto,
grandes quantidades de cordões feitos de miçanga, que usam ao redor do pescoço,
dos pulsos, dos braços, embaixo dos joelhos e ao redor dos tornozelos, como o
fazem os Kaxinawa e outros grupos pano. Estes cordões representam a
manifestação de riqueza e beleza para os Kaxinawa ( tema ao qual voltaremos no
capítulo 5).
Os Yaminawa, por sua vez, não são totalmente considerados 'nukun yuda’
(nosso corpo) e são chamados de outros 'huni kuin'’ (huni kuin beisa), não obstante
a similaridade do sistema onomástico e da língua. A diferença de seus corpos é
marcada pela falta de ‘desenho de verdade’, kene kuin. O desenho deles se chama
Yaminawa kene, uma coleção menos elaborada de desenhos, alguns dos quais
foram incorporados pelos Kaxinawa e usados pelas crianças, adolescentes e
adultos jovens em ocasiões festivas ou quando celebram o retomo dos caçadores
de uma caçada coletiva.
O kene kuin (desenho verdadeiro), por outro lado, pode ser usado somente
por iniciados, jovens que passaram pelo rito de passagem, Nixpupima. Apesar de
ser mais comum em ocasiões rituais ou quando se espera visita do Peru, todo
adulto que queira se embelezar pode deixar-se pintar, sempre que há jenipapo à
mão, com o kene kuin por uma parente feminina próxima ou por sua esposa.
Intimamente ligado à importância do desenho na experiência estética
Kaxinawa é a experiência visionária com ayahuasca. Mais do que para curar,
183
toma-se ayahuasca para ter visões14, A visualização bem-sucedida dos mundos dos
yuxibu é experimentada como estética e emocionalmente intensa. O efeito da
bebida não é considerado como algo dado, automático, mas depende de uma
negociação com o dono da bebida. Considera-se a percepção imaginativa não
como o produto da criatividade do perceptor mas como a entrada em um mundo
com dinâmica própria. Se nada é visto durante uma noite inteira, apesar da
ingestão de doses substanciais da bebida, duas hipóteses são levantadas: a
chacruna (Psychotria Viridis) era velha demais para produzir a luz que produz a
visão, pois o cipó (Banisleriopsis Caapi) apenas produz o efeito de pae (pulsação,
embriaguez, força); ou o dono da bebida, o yuxibu Yube, foi avaro (yauxi) e não
abriu seu mundo de imagens (dami eyuxiri) para o visitante que não pode ver outra
coisa que escuridão.
Os primeiros sinais da presença de Yuhe
Yube no coipo do bebedor
(paradoxalmente também o momento em que o bebedor entra no ‘corpo’ (mundo)
de Yube) são sentidos como uma aceleração na batida do coração, que é expresso
nos termos: “a força vem chegando como trovão”. Algumas pessoas vomitam, mas
a maior parte das pessoas não sente náuseas. O vomito pode ocorrer em vários
estágios do efeito da bebida, não necessariamente no começo, e tem o efeito de
liberar e aliviar os efeitos. Diz-se que a visão fica melhor depois do vómito, por
causa da ‘limpeza’ feita. A chegada da visão é anunciada pelo aparecimento de
pequenas figuras luminosas, que são chamadas hawen kene, o desenho dele, isto é
de Yube. Depois vêm ‘só coisas do cipó’ (nixi pae bestí), figuras de lagartas e
cobras em movimento, e fínahnente aparecerão cenas mais estáveis nas quais
aparecem também figuras humanas.
A experiência regular de visões pela maioria dos homens adultos (e por

14 Deste modo, o uso Kaxinawa da ayahuasca difere significativamente do uso feito da


bebida pela população ribeirinha na Amazônia Peruana, onde ayahuasca é associada com
a figura do xamã enquanto especialista de cura. Veja Gow, 1993a e 1995; e Luna (1986).
184
algumas mulheres) tem profundas consequências para o significado e
‘presentifícação’ da cosmologia. O tempo mítico e os mundos dos yuxibu se
tomam acessíveis à experiência através de uma imersão no mundo das imagens,
chamadas dami e yuxin. A significação cognitiva e existencial deste contato
visionário com o mundo imaginário da mitologia não está somente na consequente
vivificação de suas imagens, mas, o mais importante, no conhecimento
experimental adquirido desta maneira, é o processo constante de transformação do
cosmos, idéia que funda a visão de mundo Kaxinawa. Assim, o quadro desta
experiência visual específica circunscreve um movimento que vai de corpos com
ou sem desenho, para o desenho se transformando em imagens visionárias e destas
imagens para a manifestação visionária dosjwjr/Tr.
A presença simultânea destas duas manifestações culturais da experiência
estética, assinala o grande investimento simbólico, cognitivo e emocional do ethos
Kaxinawa na experiência visual, e aponta para o papel importante desempenhado
pela visão na sua percepção, classificação e apreensão do mundo. O fato da visão
receber grande ênfase, não significa, entretanto, que os outros sentidos são
negligenciados.
Assim, para a identificação de plantas na floresta, o olfato e o gosto são de
crucial importância. Estas capacidades sensoriais parecem ser muito mais
confiáveis do que a visão, visto que a forma e a cor das folhas variam
constantemente de acordo com o tamanho da planta, sua localização e sua posição
geotrópica. Para a caça, por outro lado, é necessário ter boa audição. A imitação de
gritos de animais e cantos de pássaros são truques eficientes para chamar a caça. O
olfato é igualmente importante, especialmente a arte de reproduzir cheiros,
novamente com a intenção de enganar a caça.
Na floresta, cheiros e sons são guias, indicações da proximidade e
identidade de animais ou pessoas. Porém, a confirmação da presença e verdadeira
identidade de um ser que é percebido será confirmada somente através da
185
combinação da visão com o tato: capacidades representadas respectivamente pelo
yuxin do olho e do corpo. Se a audição e o olfato indicam a proximidade de um
ser, a visão define se é de animal ou pessoa e a experiência táctil confirmará sua
identidade: se o ser percebido é um corpo ou um yuxin. Deste modo, a distinção
entre imagens e corpos somente pode ser feita através do tato. Nas palavras de
Agostinho:
“Dami (figura) é como yuda baka (yuxin do corpo). Você vê mas não
segura. Desaparece depois do nixi pae (cipó), é o dami (transformação) do nixi pae
do yuxibu.”

As imagens (dami, yuda baka, yuxibií) pertencem à esfera da visão noturna


do yuxin do olho que age nos sonhos e nas visões com ayahuasca\ enquanto os
corpos pertencem ao dia: são pesados e não desaparecem ao serem tocados. O
tempo e espaço certos para a percepção das imagens é quando o corpo descansa,
enquanto o lugar/tempo de lidar com corpos é quando se está acordado.
O desenho é o meio de ligação que opera a transição entre estes lados
separados dos mundos perceptíveis. Na sua relação com os mundos opostos e
complementares representados pelas imagens e os corpos (yuxin yuda, noite/dia,
imortal/mortal), o desenho funciona como a “metáfora” por excelência no sentido
de ponte e ligação, traçando caminhos para e entre mundos separados, ou entre os
lados complementares do mesmo mundo, assim como entre os estados
complementares do ser ou da consciência humana. Desenhos são vistos no estado
de vigília (em coipos e artefatos) e nos sonhos (nos corpos das imagens). São guias
usados pelo yuxin do olho ao viajar entre a percepção imaginativa diurna e a
imaginação perceptiva noturna .
A cobra, que possui todos os desenhos em sua pele, é atribuída vida eterna
por causa da sua capacidade de trocar a pele, e mulheres são férteis porque trocam
sua ‘pele interna’ durante a menstruação. A associação entre desenho e placenta,
ambos mediadores importantes na concepção Kaxinawa, parece ser confirmada no
186
significado de alguns nomes (intuição que, entretanto, necessitaria de uma
confirmação linguística).
Um motivo recorrente usado em redes é designado xamanli. O termo
poderia ser decomposto na palavra para placenta (xama) e o sufixo -ti,
modificador que indica instrumentalidade ou locação (Camargo, 1991:299). Se
escolhessemos o primeiro significado do modificador, a tradução poderia ser “por
meio da placenta” ou “aquilo de que a placenta é feito”. Esta hipótese está em
perfeita sintonia com outros dados etnográficos que apontam para a relação entre
desenho e placenta, em que a placenta aparece como “o desenho original” que
protege o coipo (como entre os Desana, no mito de origem da ayahuasca citado
acima (Reichel-Dohnatoff, 1972, 1978), e para os Piro (Gow, s/d - “Sun”)).
Se levarmos em conta, entretanto, que xama é nasal izado, encontramos o
verbo xaman-, que significa “passar a mão na virilha” (Camargo, 1995:109). Esta
tradução se aproxima mais da tradução de xamanli que me foi dada por um
Kaxinawa: “colocar as coxas na pessoa; quando coloca, já está juntado” (Paulo
Lopes). Paulo fez um gesto que cruzava as mãos na altura do púbis, indicando que
o local da junção das coxas com o tronco representava a junção ou continuidade
das linhas no desenho. Estes verbos descrevem o ato de juntar e de envolver e,
apesar de não mencionar o útero, se situam na mesma região do coipo. Neste
sentido, parece que as tentativas de aproximação ao significado do desenho se
reforçam mais do que se contradizem: o desenho une as linhas (a região da virilha
une tronco e pernas), englobando desta maneira outro desenho em seu interior.
Outra associação que pode ser feita entre fertilidade feminina e desenho, é a
derivada do verbo xankeikiki, “tecer desenho” (Montag, 1981:394). A raiz xank-
da palavra xankin significa “matriz ou útero” (Capistrano, 1941:616), “buraco e
canal” (Montag, 1981:394) ou “cavidade numa árvore” (Camargo, 1995:109).
A placenta faz a mediação entre o feto e o coipo da mãe, filhando as
influências que vêm de fora e protegendo o coipo no interior, possibilitando desta
187
maneira o contato controlado com a força exterior que alimenta a vida. A pele da
anaconda cósmica, coberta por desenhos, funciona da mesma maneira, servindo de
véu entre os mundos visíveis e invisíveis. Os padrões aparecem no espaço liminar
em que o yuxin do olho é levado de um lado da realidade (o lado da luz solar)
para o outro lado, onde as imagens estão prestes a se mostrar na penumbra.
Na discussão sobre o significado do desenho (kene), exploramos a relação
entre desenho e corpo, entre a percepção do desenho e a experiência visionária e a
função mediadora do desenho na transição entre os dois lados da realidade, o
mundo diurno dos corpos e o noturno das imagens (yuxin, dami). É necessário,
agora, abordar a relação entre os conceitos relacionados, embora distintos, de dami
e yuxin. Porém, antes de prosseguirmos neste caminho, a especificidade do
‘desenho’ (kene) enquanto algo distinto da ‘figura’ ou ‘imagem’ (dami, yuxin)
requer, ainda, maior elaboração.
No discurso Kaxinawa sobre a percepção e produção visual, yuxin e dami
são usados para referir-se à ‘imagem’ ou ‘figura’ enquanto oposta ao desenho
abstrato e geométrico, kene. Os Kaxinawa separam, primeiramente, o fenômeno
kene de outras imagens percebidas ou produzidas, para depois associá-lo à ‘escrita’
(o kene dos estrangeiros). Se kene é associado à escrita, a questão a ser formulada
é o que pode ter chamado a atenção dos Kaxinawa para estabelecerem uma
similaridade entre kene e escrita e não por exemplo entre kene e outras atividades
gráficas como o desenho de uma figura ou de um retrato.
Começaremos por abordar a proximidade entre kene kuin (desenho próprio,
verdadeiro ou ‘nosso’) e nawa kene (o kene (a escrita) dos brancos). Quando da
minha primeira viagem aos Kaxinawa, logo após a saída do barco do Porto de
Manuel Urbano a caminho da aldeia, enquanto escrevia minhas impressões uma
Kaxinawa tirou a caneta de minha mão e passou a desenhar em sua própria mão
padrões estilizados, desenhos tipicamente Kaxinawa que conhecia das fotografias.
Em seguida, Dona Maria Sampaio, sorrindo, mostrou como fazer o mesmo na
188
minha própria mão. Percebendo que queria desenhar, ofereci canetas coloridas e
papel. Instalou-se um uma ‘competição’ de quem ‘escrevia’ mais.
Dona Maria não parava de fazer kene, e durante os quatro dias de viagem
desenhou mais de 30 pranchas, interrompendo o desenho somente para comer e
dormir. De fato, parou de desenhar apenas quando avistou do barco sua aldeia.
Quando cansada de escrever resolvi, também, desenhar rostos e formas humanas
de nenhuma pessoa em particular.
Perguntei a Dona Maria se o que desenhava poderia ser considerado kene.
Respondeu negativamente e disse que o meu desenho era dami, figuras. Passado
um tempo comecei a desenhei retratos dos Kaxinawa que estavam no barco. Estes
desenhos geraram muitos comentários pois a pessoas tentavam identificar o
modelo desenhado e faziam julgamentos sobre a similitude ou falta de similitude
entre o desenho e a pessoa retratada. Um destes dami era de tal forma semelhante
à pessoa retratada que um observador surpreso exclamou: “olhem este!, damimaki
(este não é uma ‘figura’), yuxinki, hawen yuxinki (é uma imagem, é sua imagem!
(seu yuxin))".
Foi deste modo que obtive, desde o começo, a chave para a exploração da
classificação Kaxinawa sobre a percepção e expressão visual. Somente muito mais
tarde aprenderia a fazer os verdadeiros kene, kene kuin. Mas mesmo se soubesse
como produzi-los naquele tempo, senti que não era apropriado tentá-lo porque
minhas tentativas tímidas tinham sido rejeitadas por Dona Maria que com irritação
dizia não serem “verdadeiras” (kenemaki (não é desenho) ou kene kuinmaki (não é
um desenho próprio)). Parecia querer me dizer com isso que eu deveria me ater aos
meus próprios kene, que visivelmente sabia como produzir em grande quantidade.
O que interessou aos Kaxinawa, mais do que meus kene, foi minha atividade de
produzir jwjczm: “representações”, “imitações” de rostos de pessoas. Soube depois
que fotos são, iguahnente, chamadas de yuxin, assim como a imagem refletida no
espelho ou na água parada.
189
Ao aprender sobre outros usos dos termos yuxin e dami, aprendi que uma
das distinções cruciais entre estes dois termos de um lado, e o conceito de kene de
outro, se refere ao volume ou falta de volume, ou, em outras palavras, à sua
qualidade de aderência ou não. Kene é aplicado a toda sorte de suportes, mas um
suporte em si nunca é chamado kene; os conceitos yuxin e dami normalmente
significam a entidade em si mesma, com ou sem corpo. Deste modo, o duplo, a
aparência efémera da imagem de uma pessoa, é yuxin, um ser que pode ou não ser
percebido como decorado com kene. Uma figura modelada em argila ou esculpida
em madeira, ou uma pessoa que porta uma máscara pode ser chamada de dami,
podendo ou não ser decorada com kene.
Kene é essencialmente gráfico, um padrão desenhado que cobre a pele ou as
cerâmicas usadas para servir comida; um tecido, cesto, ou esteira que serve de
parede da casa; enfim algo criado para conter o alimento ou o corpos. Yuxin e
dami, por outro lado, são entidades, imagens com agência própria, com ou sem
matéria e forma corporal. Yuxin e dami cobrem ambas as categorias de artefatos,
“coisas feitas”, e de seres (“artefatos animados”), mas não podem ser chamados de
“corpos verdadeiros” (yuda kuin). ‘Corpos verdadeiros’ (yuda kuin) cobertos com
o ‘desenho verdadeiro’ {kene kuin) são a suprema realização estética de seres
humanos específicos que precisam dominar outras artes para ser capazes de
produzir, modelar e decorar coipos da maneira que gostam, isto é: corpos bonitos
(hawendua), saudáveis {xua, literalmente gordo, forte) e alegres {benima). Dami e
yuxin não precisam da perfeição, finalização assim como estabilidade de forma e,
por esta razão, não podem ser considerados como ‘sendo’ coipos. Embora possam
‘ter’ um coipo, não é seu coipo mas sua relação especial com coipos que identifica
sua maneira específica de ser.
Com relação à demarcação do campo do kene, entretanto, não basta afirmar
que kene é gráfico porque, como vimos no episódio que se passou no barco
durante a viagem, figuras dami (figura) e yuxin (retrato) pode às vezes ser,
190
também, gráfico. O que toma kene especialmente diferente é o fato de ser um
estilo abstrato, estilo que identifica todos os produtos e artefatos Kaxinawa como
pertencendo à mesma tradição, enquanto que a expressão bi-dimensional de dami e
yuxin não pertence à tradição Kaxinawa. O desenho de figuras em papel foi
introduzido por missionários e nas escolas, e sua execução está confinada a estas
esferas de atividades classificadas como nawa. A única expressão figurativa
tradicional é a tri-dimensional, mesmo se em baixo-relevo.
Em estilo e execução, kene é um sistema complexo de desenho,
identificável e estritamente codificado. Kene constitui um sistema coerente que usa
os mesmos padrões e motivos sobre todos os suportes em que se aplica (apesar da
variação das designações). Este fato, por sua vez, não desconsidera a influência do
suporte na execução e na forma do desenho. A forma do suporte força o desenho a
adaptar suas curvas e seus ângulos para se ajustar à superfície. A unidade do estilo,
que continua reconhecível em todos os suportes e corpos em que o desenho se
aplica é, entretanto, tão importante quanto sua relação com as superfícies que
cobre.
Mencionei acima que a única informação explícita que obtive de Dona
Maria sobre o significado do desenho foi a afirmação de que o desenho era a
linguagem dos yuxin: "‘kene yuxinin hanlxaki". Desta frase surgem questões do
tipo: Que tipo de linguagem ela está se referindo? Como se relaciona esta
afirmação com a primeira informação que Dona Maria me deu ao declarar a
explicita associação entre desenho e escrita no momento que tirava a caneta de
minha mão? Esta associação foi reiterada, quando da realização do rito de
passagem, Nixpupima, pela ação ritual de pingar gotas do sumo de plantas
medicinais nos olhos das crianças iniciandas. Se anterionnente estas gotas eram
administradas pelas mestras do desenho somente nas meninas de forma que
pudessem aprender o desenho (kene), na ocasião deste ritual, foi incumbida a mim,
enquanto antropóloga, a tarefa de administrar as gotas nos meninos com o intuito
191
de que tivessem êxito no aprendizado da escrita e da leitura.
Outras culturas que possuem sistemas de desenho altamente estilizados
tanto na pintura quanto na tecelagem, também, associam seu estilo gráfico à escrita
( Kayapó-Xikrin, Assurini, Siona. Cf. Vidal, 1992). Uma qualidade que a arte
gráfica e a escrita tem em comum é seu caráter estilizado, não-figurativo ou ‘não-
representativo’.Com relação ao uso do termo ‘não- representativo’ em relação aos
padrões gráficos podem existir, de acordo com o contexto, limites para seu uso.
Este ponto será abordado quando considerarmos os aspectos icônicos do kene.
Para os Kaxinawa, entretanto, a escrita e o kene têm mais coisas em comum
do que o simples constrangimento estilístico e o fato de poderem ser inscritos em
superfícies e corpos. Kene parece estar ligado à linguagem, e através da linguagem
ao conhecimento e ao poder. O fato de kene ser considerado a língua dos yuxin e
não a do$ humanos, coloca o problema de sua tradução, do tipo de linguagem com
que estamos lidando e, conseqúentemente, dos tipos de conhecimento e das
diferentes modalidades de comunicação existentes na concepção Kaxinawa.
Deste modo, kene e as questões que evoca nos leva diretamente para o
campo de discussão sobre a arte e o que exatamente a arte comunica. A arte não se
expressa do mesmo modo que a linguagem verbal o faz, porque se o fizesse não
precisaríamos da expressão artística. E porque arte comunica algo diferente da
língua falada, e porque cada arte o faz de maneira específica, que o artista não
pode explicar ou traduzir em palavras o que acabou de comunicar em imagens,
sons ou gestos15. Por esta razão, a resposta de Picasso a este tipo de pergunta foi:
“Everyone wants to understand art, why not try to understand the song of a
bird?”(Geertz, 1983 :94), enquanto Isadora Duncan respondeu: “If 1 could tell you
what it means, there would be no reason for me to dance” (Bateson, 1977:177).

15 Para uma demonstração e análise da especificidade da mensagem e do código musical,


distintos e independentes da mensagem verbal no canto ritual Kamayurá, veja Bastos
(1989).
192
No caso da comunicação não-verbal, estamos lidando com um tipo de
mensagem que seria falseada se a comunicássemos através de palavras (Bateson,
1977:177). Se desta constatação segue que ‘aquilo sobre o qual não se pode falar
precisa ser calado’, seríamos obrigados a encerrar a discussão sobre comunicação
não-verbal. Porém, como Geertz (1983) observou, experiências que nos tocam
emocionalmente são apreendidas enquanto plenas de sentido, e pessoas são tanto
movidas a falar sobre a paixão, mesmo quando plenamente conscientes do alcance
limitado das palavras neste contexto, quanto o são a falar sobre performances ou
criações artísticas que conseguiram comovê-las.
Esta necessidade de comunicação não existiria se fosse possível perceber a
‘forma pura’, destituída de significância cognitiva ou emocional, pois neste caso
uma contemplação silenciosa e ‘puramente’ estética seria satisfatória. Formas e
sons expressam para nós somente porque são significantes desde o começo.
Escutamos aquilo que, até certo ponto, podemos entender e percebemos, o que de
alguma maneira já conhecíamos, mesmo se não ‘conscientemente’. Porém, é
necessário ainda uma conceituação mais satisfatória do que ‘consciência’ poderia
significar. Do contrário, arriscaríamos projetar o problema da comunicação não-
verbal no chamado ‘inconsciente’ ou ‘pré-consciente’, o que queremos a todo
custo evitar pois, deste modo, estaríamos incorrendo no perigo de adotar uma
perspectiva que toma o ‘inconsciente’ como explicação última e enquanto chave
para a interpretação da manifestação artística.
Encontrei sugestões interessantes para esta questão em Bateson (1977) e em
Solomon (1976). Começarei com Solomon, psicólogo cognitivo e filósofo, que
sugere uma maneira de abordar as emoções que será complementar às
considerações de Bateson sobre a ‘linguagem’ ou o ‘código icônico’ da arte, dos
sonhos e de outras mensagens do ‘inconsciente’. Solomon não escreve sobre arte,
mas cita Tolstoi para justificai- a inclusão da arte na sua reflexão sobre as paixões.
Tolstoi afirma que: “It is only the expression of sentiment that gives the arts their
193
meaning.” (in Solomon, 1993:132). Desta maneira, se quisermos entender as
expressões artísticas, precisamos entender, não somente as regras estéticas às quais
cada peça de arte tem que de alguma maneira obedecer para ser minimamente
‘legível’, mas antes de mais nada os sentimentos que suscitam. Segundo Solomon,
emoções devem ser entendidas, não como impulsos cegos que escapam ao controle
da razão, mas como originais, essencialmente cognitivas e racionais:
“The passions are judgements, constitutive judgements according to which
our reality is given its shape and structure.” (xvii)

“The way the world is for us is never simply the way the world is... It is our
passions - and our emotions in particular - that set up this world, constitute the
framework within which our knowledge of the facts has some meaning, some
“relevance” to us. This is why I insist that the emotions are constitutive
judgements; they do not fmd but “set up” our surreality. They do not apply but
supply the framework of values which give our experience some meaning.”
(Solomon, 1993:135)

Deste modo Solomon dá prioridade aos juízos de valor sobre qualquer


consideração puramente cognitiva, estética ou de outra qualidade. Isto significa
que este modo de pensar filosoficamente sobre as emoções, pretende demonstrar
seu caráter consciente, cognitivo e sintético. O que está em jogo é a ação
proposital em oposição à atuação cega movida por impulsos desconhecidos.
Emoções refletiriam a síntese de um processo cognitivo no sentido amplo da
palavra, um processo cognitivo que encontraria seu objeto focal de reflexão e
percepção na qualidade de relação entre o eu e o outro. Solomon inclui não
somente a arte neste campo de juízo subjetivo e intencional (com inspiração
explícita nos escritos de Nietzche), mas igualmente a mitologia, cuja meta não
seria tanto o de tomar o mundo inteligível quanto o de tomá-lo pleno de sentido
(Solomon, 1993:144).
As reflexões de Solomon e de Bateson sobre ‘arte’ (ou o pensamento não-
analítico em geral) se interconectam quando definem o objeto principal e primeiro
da ‘arte’ enquanto uma relação entre o eu e o outro. A este núcleo relacional,
194
Bateson adiciona a relação do eu com seu ambiente (não-humano). Bateson vai
mais além ao demonstrar o caráter sistemático desta comunicação não-verbal sobre
o estar relacionado, enquanto Solomon procura ampliar o campo de ação do agente
intencional.
Para Bateson, entretanto, o mistério não é o inconsciente ‘desconhecido’,
mas o eu consciente. Enquanto os métodos combinatórios do inconsciente são
entendidos como sendo continuamente ativos, necessários e universais, a maneira
em que coisas e pensamentos surgem para a consciência é que parece menos óbvio
(1977:175). Existem muitas maneiras da pessoa se comunicar, e para Bateson a
modalidade principal de toda comunicação não é a verbal mas a corporal, a
comunicação através da expressão e do gesto. O verdadeiro objeto da maior parte
das comunicações não seria tanto a informação trocada sobre coisas, pensamentos
e pessoas, quanto o testar e o confirmar a relação da pessoa com o outro e com o
ambiente.
Para Bateson, a essência e raison d'êlre da comunicação é a criação de
redundância e de sentido, e a redução do acaso através da restrição (1977:170).
Todo estilo, o estilo pessoal assim como o estilo de uma obra de arte, responde,
segundo Bateson, a esta caracterização da comunicação no sentido amplo da
palavra, e por esta razão todos os produtos criativos da imaginação de uma pessoa
comunicam. Para entender uma mensagem, é importante distinguir o nível de
comunicação e escutar a mensagem da maneira coneta. Não somente a entidade
representada, ou o componente narrativo (o nome ou o referente) de uma peça de
arte significam, mas também (e de maneira mais importante) o estilo, o ‘código
icônico’ que transformou o referente em novo artefato, e o meio ou material
usados, a composição, o ritmo, e a habilidade demonstrada na performance ou na
realização do produto.
As idéias de Bateson sobre o que e como a arte comunica esclarecem sua
qualidade comunicativa, sem cair na armadilha de tratar a arte como um tipo de
195
língua (reduzindo-a ao modelo da representação ‘icônica’ e narrativa nos moldes
da ‘alegoria’), ou como um tipo de escrita (tentando lê-la enquanto um código
linguístico). As mensagens contidas em sonhos, mitos, poesia, percepções
induzidas por alucinógenos, e artes visuais, comunicam, segundo Bateson, através
do código icônico de imagens descritivas, e não através do código digital e
arbitrário que caracteriza a parte verbal da língua. Uma vez usada na estrutura
mais ampla da comunicação, entretanto, a língua se toma igualmente icônica,
apesar de seu código básico ser digital (1977:172).
Esta afirmação está de acordo com as pesquisas recentes no campo da
metáfora, às quais nos referimos no primeiro capítulo, que sugerem que, no fim
das contas, toda linguagem é figurativa e metafórica. Toda linguagem pode ser
considerada metafórica porque cria, por meio da junção de significados e campos
previainente desconectados, um sentido para realidades previamente
desconhecidas. Deste modo, podemos facilmente entender o impulso de uma
conversação contínua entre pessoas (e povos) como a demonstração de um
objetivo, qual seja, o de relacionar-se uns com os outros através de uma linguagem
evocativa que tenta traduzir em frases as mensagens críticas transmitidas pela
linguagem codificada do pensamento icônico, não-linear.
Bateson afirma que o objeto de toda comunicação artística (assim como dos
sonhos e dos mitos) é o que define por ‘graça’ (grace). Seres vivos e produtos
fabricados têm graça (são graciosos) quando todas as partes da mente, destes seres
ou da pessoa que produziu a peça, estão integradas. O sucesso ou o fracasso da
integração psíquica seria o conteúdo da comunicação artística, e esta seria a razão
porque as expressões culturais que partem de contextos culturais desconhecidos
podem ser reconhecidos como tal, mesmo por um olhar desinformado. Quando,
entretanto, a consciência não está em ligação com o circuito de atividade psíquica
que funciona ininterruptamente por baixo do nível do estado normal de
consciência, a consciência se tomaria deformada e estreita. A consciência,
196
desassistida pela arte, pelos sonhos, poesia etc nunca será capaz de apreciar a
natureza sistémica da mente, assim como a ligação de uma mente com outra e da
pessoa com seu meio ambiente, conclui Bateson.
A idéia posta neste nível demasiadamente geral, parece problemática uma
vez que a arte comunica mais do que uma integração psíquica universalmente
reconhecível ou a qualidade do estar relacionado. Para reahnente poder apreciar a
qualidade metafórica ou comunicativa de uma expressão artística, é preciso uma
grande familiaridade com as referências cognitivas e emocionais com as quais o
trabalho dialoga. E, por outro lado, igualmente certo que obras de arte podem
expressar algo para nós, mesmo quando não sabemos nada sobre o mundo que
descrevem ou pintam. Segundo Bateson, tal efeito é possível graças a uma certa
‘graça’ (ou um certo charme) que, como a de um gato ou de um cavalo, fala para
nós de um modo particular, intraduzível.
E igualmente um fato que a performance de um artista requer um certo grau
de inconsciência com relação à maneira que alcança seus feitos, frutos do hábito.
Esta é a inconsciência do saber executar tão bem um ato, que não é mais preciso
pensá-lo enquanto é executado. A ação e criação fluem e ganham forma de tal
maneira que parecem vir do nada (seria na verdade impossível sobreviver se a
maior parte das nossas ações não fossem executadas desta maneira). Bateson se
refere aqui ao conhecimento incorporado, afinado com seu ambiente humano e
não-humano, como aquele expresso nos gestos elegantes do mestre em alguma
forma de arte. Se refere também à relação do indivíduo com o mundo envolvente,
um saudável saber viver que considera mais próximo da sabedoria (consciência do
estar relacionado) do que do pensamento puramente racional.
De uma determinada maneira, a abordagem de Bateson repercute bem sobre
meus dados. O estilo gráfico e a arte plumária Kaxinawa correspondem às idéias
básicas deste povo sobre o significado da similaridade e da diferença (a relação
entre o eu e o outro), assim como sobre a relação das pessoas com (outros seres
197
no) o mundo (a relação entre a pessoa e o ambiente). Como no exemplo de
Bateson de uma pintura Balinesa, estas idéias básicas não são expressas de modo
unívoco e denotativo, como seria o caso em uma representação alegórica de idéias
abstratas, mas de modo sintético e polifônico, permitindo assim, simultaneamente,
leituras e interpretações diferentes e complementares. No caso da pintura de Bali,
apresentada por Bateson, a mensagem mais importante não está na procissão de
cremação, tema representado no quadro, nem no simbolismo fálico subjacente à
imagem da torre de cremação, mas na combinação destes níveis diferentes, assim
como na composição global da cena, onde a agitação das figuras no fundo do
quadro contrasta com e corresponde à tranquilidade das imagens na parte superior.
Assim, conclui Bateson:
“En demière analyse, ce tableau peut être comme 1’affinnation que choisir
entre turbulence et sérénité, comme projet humain, serait une grossière erreur.
Concevoir et exécuter le tableau foumit une expérience qui expose cette erreur.
L’unité et 1’intégration du tableau affinnent qu’aucun de ces deux pôles
contrastantes ne peut être choisi à 1’exclusion de l’autre, parce qu’ils sont
mutuellement dépendants. Cette vérité profonde et générale est dite, en même
temps à propos de la sexualité, de 1’organisation sociale et de la mort.”( 1977:194)

De modo similar, a expressão estética Kaxinawa não ‘fala’ especificamente


ou exclusivamente sobre as relações sociais (igualitarismo, interdependência e a
hipotética permutabilidade das posições sociais) ou sobre a complementaridade
constitutiva das metades e do gênero (o dualismo do pensamento social expresso
nas cores contrastantes das figuras e contra-figuras entrelaçadas). A estética
Kaxinawa também não é uma referência exclusiva à interdependência dos lados
visíveis e invisíveis do mundo, ou à união sexual (apesar desta ser uma das leituras
possíveis (sugeridas por alguns informantes) das linhas de desenho que se unem).
A expressão estética é, entretanto, uma comunicação sintética que se refere a todos
estes níveis simultaneamente.
E esta é, segundo Bateson, a razão porque estas expressões estéticas podem
ser chamadas de ‘boa arte’: ao invés de serem meras ‘representações’ ou
198
ilustrações de um conhecimento denotativo sobre o mundo que pode ser melhor
expresso em palavras, a boa arte cria algo novo, uma nova maneira de perceber a
relação entre o eu, o outro e o mundo. É a consciência sintética e referência
simultânea da interconexão de diferentes níveis existenciais que constitui a
especificidade da comunicação não-verbal. O código visual comunica a
compreensão e percepção de uma ligação existencial que é consciente em um nível
que escapa o discurso verbal pela simples razão de ser impossível verbalizar tudo
de uma só vez.
A maneira de entender a arte, sugerida por Bateson, é interessante por
explicitai’ sua especificidade e por realçar a necessidade de sua tradução para que
possa ser integrada no discurso verbal. Mostra igualmente seu efeito estimulante
sobre o pensamento analítico por iniciar um processo de reflexão e associação que
serve para ampliar o circuito mental e o campo de percepção cognitiva.
Penso, entretanto, que não devemos esquecer outro aspecto importante da
comunicação (não-verbal), que reside na sua necessária abertura de sentido
(1’oeuvre ouverle). Nenhum trabalho ou expressão carrega em si a totalidade do
seus sentidos. Não há nenhum sentido inerente, secreto ou absoluto a ser
encontrado, a não ser no encontro entre o observado e o observador.
Retomemos à tríade perceptiva dos Kaxinawa: kene, dami, e yuxin. Espero
ter demonstrado a especificidade do conceito kene. Resumindo, kene é um tipo de
código escrito, inscrito em corpos e objetos, e segue regras estritas de composição
e execução. Kene não é o corpo, nem o yuxin a que refere. E sua ‘língua’, um
código composto de signos que aludem a uma presença, à possibilidade de
revelação de yuxin em forma incorporada. Kene contém a possibilidade de formas
e de seres.
Esta interpretação encontra suporte nos comentários de Agostinho e
Edivaldo sobre o papel do desenho original {kene) na pele da jibóia, quando sob a
influência da ayahuasca: a pele da jibóia, contendo todos os desenhos, contém
199
igualmente a possibilidade da transformação destes desenhos em imagens e corpos.
As manchas na pele da jibóia são seus desenhos que se transformam em animais e
plantas durante a mutação constante do campo visual visionário. Por esta razão,
completa Francisco, não se deve nunca sair do desenho, é preciso usá-los como
guia para não se perder no mundo dos yuxibu.
Desenho, entretanto, tem esta capacidade de multiplicação da forma
somente no nível do yuxin, mundo de imagens livres. Não restringida pelo lento
processo de crescimento de corpos pesados. Este é o significado da afirmação que
kene é a linguagem dos yuxin, e não dos humanos: precisa ser ‘traduzido’ pelos
humanos para ganhar seu lugar no mundo humano. Por causa da sua ligação com o
mundo exterior dos yuxin, desenho pode ser perigoso para a saúde da pessoa, não
somente porque pode produzir imagens mentais (e desta maneira provocar ou
iniciar a percepção de yuxin), mas também porque traça caminhos a serem
seguidos pelo yuxin do olho quando sonha. Informação adicional obtida por
Keifenheim (1996) reforça esta interpretação: pessoas doentes não dormem em
redes desenhadas porque o desenho pode enredar o yuxin do olho na sua teia e
guiá-lo para o caminho da morte de onde não voltará.
O fato do kene ser considerado similar à linguagem e à escrita, no sentido
que alude de forma codificada a corpos e yuxin, em vez de coincidir com estes, e o
fato das imagens serem de alguma maneira a efetiva manifestação da forma atual
de yuxin e de corpos, sugere a possibilidade de uma aplicação esclarecedora do
modelo, igualmente tripartido, dos signos não-verbais (não-lingúísticos) de Peirce.
Na sua relação semiótica com dami (imagem, transformação), yuxin pode
ocupar o lugar do “objeto dinâmico” de Peirce, no sentido de uma pressuposição
metafísica que indica a verdadeira qualidade do ser; enquanto dami, na sua
qualidade de signo metonímico, se refere a este, sem jamais com este coincidir.
Yuxin é o referente de dami, sua imagem mais completa e fiel, invisível para
os humanos no estado cotidiano do ser, mas sempre presente; pertencendo a outro
200
lugar, porém sempre ativa. A imagem de yuxin coincide com seu ser. Quando
yuxin se revela para o olhar humano (yuxin do olho) como huni kuin (ser humano
próprio), este evento é uma ‘revelação’, porque ver yuxin implica em
conhecimento compartilhado e partilha no ser que deste modo se mostra. “Ver é
conhecer”, e assim o yuxin que se tomou visível em forma humana, falará uma
linguagem inteligível, comerá comida comestível, em breve, ter-se-a tomado em
um outro similar.
Por esta razão se diz 'yuxin' quando se vê a aparição de uma imagem
humana móvel sem corpo. Neste caso, o yuxin pode ser o duplo que deixou seu
corpo, ou um ser sem corpo, ou mesmo pura energia, livre para assumir qualquer
forma ou corpo. Esta mobilidade não é limitada pela inércia da matéria. Em outras
palavras, para o yuxibu (mestre dos yuxin) o corpo é como uma pele ou uma roupa
que pode se vestir ou se tirar à vontade. Isto, no entanto, não é o caso para os
yuxin que pertencem a animais ou seres ‘deste mundo’, pois estes criaram raízes
no corpo que habitam.
A imagem de um ser nunca é mera aparência. Neste sentido, yuxin é como o
psychè na Grécia antiga (Vemant, 1992:186-191): a manifestação do ausente. O
que se vê ‘é’, pois se mostra ao olhar em todos os seus detalhes, com o
movimento, a definição e a graça de um ser humano vivo. Mas não é um corpo, e
não é deste lugar. Não pode ser tocado, senão desaparece imediatamente.
Dami, por outro lado, é um tomar-se ou um devir (transformação) e conota
movimento. Dami significa imagem, mas é uma imagem deformada, ou uma
imagem no processo de ser formado. Deste modo, a palavra dami é um termo
relacional, um signo que existe enquanto referência a algo que é exterior ou que o
transcende. Yuxin pode, neste sentido, ser lido como a potencialidade do ser que
existe em e para si mesmo, pois quando se manifesta vem a ser algo. Sua
manifestação mais reveladora é antropomorfa pois nesta forma se toma idêntico à
forma e ao ser humano, uma precondição para a comunicação e o entendimento
201
mútuo.
Dependendo do contexto, manifestações diferentes do mesmo ser podem
por esta razão ser chamadas de seus dami, suas transformações ou ‘mentiras’
(txanf), disfarces através dos quais o yuxibu assusta ou confunde o espectador.
Esta é a lógica que subjaz a experiência com ayahuasca. Primeiramente vê-se, as
‘mentiras’, ‘nixi pae besti' (só coisas do cipó), répteis, ‘toda qualidade de bichos’
e cipós entrelaçados. A cobra que engole o iniciante pertence a esta mesma fase de
dami (transformações). O verdadeiro nome, e a verdadeira imagem da bebida,
entretanto, é huni, gente e o tomador será satisfeito com a experiência, somente se
conseguiu ver ‘gente’, huni, o povo do cipó se mostrando como gente. O próprio
yuxibu, entretanto, em termos de agência e potencialidade, é todas estas coisas ao
mesmo tempo. E simultaneamente Yube, o xamà, e Sidika, a mestre do desenho, e
combina desta maneira as capacidades produtivas masculinas e femininas.
Usa-se o verbo dami para descrever a transformação de imagens percebidas
na ayahuasca: "dami en uiin” (vejo transformações); ou para mencionar a
transformação que o próprio tomador percebe em si mesmo: "en damiai" (‘Estou
sendo transformado’ ou ‘Estou transformando’). A mesma expressão damiaii,
transformar, é usada para expressar o processo através do qual uma lagarta se
transforma em borboleta. Do mesmo modo, os mitos que se referem à
transformação de animais em humanos e vice versa, usam o verbo damiai.
Dami significa modelar, produzir formas. O pai modela o feto na barriga da
mãe: damixvai (Cf McCallum, 1989a), e a modelagem de figuras em argila é
igualmente chamada de damiwai. As máscaras e o disfarce feito de folhas de jarina
para esconder os dançarinos durante a ‘invasão da aldeia’ (rito de fertilidade,
Katxanawa') são damiai (mascarar). Com o mesmo motivo de disfarce, as pessoas
podem se pintar com urucum ou jenipapo. Esta pintura consiste em manchas,
pontos e traços grossos, aplicados com os dedos, e evocam as peles dos animais
que pretendem imitar. Este tipo de pintura não é chamada de kene (traçar padrões)
202
mas puxa (manchar ou colorir), e forma um nítido contraste com os delicados
motivos em jenipapo, aplicados pelas mulheres nos corpos e nos rostos das pessoas
com finas varetas embrulhadas na ponta com algodão. As manchas são aplicadas,
na floresta pouco tempo antes da ‘invasão’ pela metade ‘visitante’, sobre os
desenhos anteriormente pintados com jenipapo, e são chamados de dami, pois
significam a imitação e temporária transformação das pessoas assim ‘manchadas’
em animais.
Os únicos desenhos feitos por meninos e homens, são figuras desenhadas
em papel (atividade ligada a contextos de interação com os nawa), chamados,
novamente de dami. Qualquer tentativa dos homens em produzir kene, é
ridiculizada pelas mulheres como “kenemaki, damiki\" (Não é desenho, só figura!).
O verdadeiro kene é uma atividade estritamente feminina, da mesma maneira que o
são cozinhar, fiar, tecer e fazer cerâmica.
A última inscrição gráfica, relacionada ao domínio masculino, e igualmente
designada como dami, é a tatuagem. A tatuagem é aplicada na forma de pequenos
signos ou traços, na face ou no peito. As únicas tatuagens que vi eram usadas por
três homens de idade bastante avançada. Apesar desta interpretação precisar
alguma confirmação, creio que a tatuagem é ligada à guerra. Minha hipótese é a de
o costumava era tatuar homens que mataram um inimigo (os três homens com
tatuagem tinham matado Yaminawa quando jovens). A imposição ritual da
tatuagem16 está relacionada, evidentemente, com a transformação da identidade,
desta vez permanente, e poderia assinalar a transformação que o homem sofre ao
matar um inimigo, expondo-se desta maneira ao yuxin de sua vítima.
A relação de dami (em seus diferentes usos, desde o ‘fazer de conta’ ao
‘tomar-se como’) com seu yuxin (a forma perfeita e terminada a que refere) é
simultaneamente indexical e icônica. A relação é indexical porque dami é

16 Aplicado por um txai, primo-cruzado.


203
‘fisicamente’ (ou metonimicamente) ligada ao seu objeto (como pegadas na areia),
e icônica porque a relação de dami com seu yuxin não é somente baseada na
contiguidade e na metonímia, mas também numa similaridade formal. Na sua
qualidade de signo concreto e visual, idiossincrático e sem validade generalizada,
dami pode ser classificado sob os sinsignos icônicos peirceanos. Sua percepção e
expressão não são padronizados, pois o dami não adere a limitações e convenções
estilísticas específicas, comparáveis, por exemplo, às regras que guiam a execução
do desenho padronizado, kene. Deste modo, se kene e dami estão, ambos, ligados
ao yuxin como significantes visuais, o são de modos distintos.
Não obstante o fato de kene ser um sistema complexo e altamente
padronizado de desenho, que não representa mas significa o mundo dos yuxin,
kene não é um símbolo, no sentido peirceano de símbolo, do seu referente yuxin. O
símbolo peirceano é conectado ao objeto por força de uma idéia e sua associação à
forma do signo é convencional e arbitrária. O símbolo não é, neste sentido, da
mesma natureza que aquilo que representa. A escrita é um sistema simbólico no
sentido pleno da palavra, pois representa a palavra falada através de um sistema
gráfico que não necessita qualquer relação icônica ou indexical com seu
significado, estando conectado àquilo que representa, somente pela força da idéia.
Deste modo, o kene poderia somente ser chamado de "escrita" em sentido
metafórico, referindo-se ao caráter padronizado e estilizado que ambos os sistemas
gráficos compartilham.
Por esta razão é mais apropriado chamar kene de legisigno icônico. A
categoria peirceana de legisigno diz respeito ao alto grau de focalização e
abstração do grafismo, enquanto o adjetivo icônico indica que a relação entre o
significante e seu significado não é arbitrária ou convencional, mas de semelhança.
Entre os Kaxinawá esta semelhança pressupõe metonímia. Assim, as duas imagens
do yuxin, uma figurativa e concreta, o dami, outra padronizada e exprimindo
qualidades mais abstratas do referente, o kene, estão, mesmo assim, ambas ligadas
204
a seu referente de maneira indexical. Ambas, como parte de um todo maior,
partilham a qualidade daquilo a que se referem, invocando-o em vez de
‘representá-lo’ e substituí-lo.
Vemos assim que os três termos usados pelos Kaxinawa para falar da
percepção visual, mantém estreitas relações entre si; relações estas caracterizadas
pela complementaridade, transição e potencialidade de transformação. Kene pode
se transformar em dami durante a experiência visionária, enquanto dami está a
caminho de se tomar yuxin, a manifestação dos verdadeiros seres aos quais alude.
Na experiência visionária com ayahuasca esta manifestação significa a revelação
dos yuxibu como humanos. Deste modo, os termos kene, dami e yuxin, cada um
constituindo um conceito altamente polissêmico, constituem um discurso
complexo sobre a fenomenologia do ser que coloca a transfonnabilidade do
universo no centro de reflexão.
Do precedente podemos concluir que para os Kaxinawa todas as imagens
são, de algum modo, ‘duplos’ dos seres aos quais se referem. Deste modo, os
Kaxinawa não se colocam o problema de identificar o verdadeiro e o ilusório na
percepção, do mesmo modo que a tradição filosófica tem feito desde Platão.
Vemant afirma que as imagens começaram a ocupar um lugar diferente no
pensamento grego, a partir do período em que se democratizou o uso da escrita; e
ilustra esta passagem com os escritos de Platão, que defende, enquanto
contemporâneo do processo de mudança, a contemplação distanciada contra o
sistema educacional tradicional, baseado nos métodos da mimesis. O ideal
educacional de Platão era, nas suas próprias palavras, somente possível através do
uso da escrita.
Platão completa a ruptura com o sistema de transmissão oral do
conhecimento que usava como método de memorização a recitação oral de cantos
poéticos, habitualmente acompanhada por dança. Este método promovia o
aprendizado através da empatia e identificação do público com o ator ou cantor
205
que representava os papéis em questão. Este método mimético carecia, na visão de
Platão, da necessária distância para a busca do conhecimento objetivo, distância
esta que somente a escrita poderia criar. A crítica de Platão com relação à mímesis
o levou a uma reformulação da noção de imagem que marcou, nas palavras de
Vernant, “a stage in what might be called the elaboration of the category of the
image in Western thought.” (Vernant, 1991:174)
A ‘imagem’ se toma uma pura aparência superficial que aliena o estudante
da verdadeira ‘essência’ do ser, que é estática. A performance personalizada, usada
no processo de memorização e transmissão do conhecimento oral, mergulharia o
estudante no fluxo sensível do devir, evocado através da linguagem dramática,
rítmica e emocional dos sofistas e impossibilitaria desta maneira qualquer
possibilidade de reflexão e distância por parte do receptor da informação.
Sob a pena de Platão, sofistas, poetas e atores foram acusados de se
perderem na multiplicidade das aparências sensíveis que pertencem ao domínio da
mera opinião (doxd), e estariam cegos para o verdadeiro conhecimento do ser
(episteme), procurado pelo filósofo. A verdade para o filósofo residiria na idéia da
‘essência’, da estrutura interna do ser, que é única e permanente e independe do
ponto de vista do observador. Esta posição filosófica pressupõe a existência de
uma realidade objetiva e lógica, exterior ao sujeito e governada por leis universais,
conhecíveis unicamente pelo intelecto. E um modo de pensai' sobre a relação entre
ser e parecer que mudou radicalmente o status ocupado pela imagem no
pensamento grego arcaico. Nos detemos neste tópico porque clarifica algumas das
idéias sobre realidade e ilusão que ocuparam o pensamento ocidental por muito
tempo, e que foram desafiadas somente pelo advento das teorias psicológicas sobre
o papel ativo da imaginação nos fenômenos da percepção17. Cito Vernant:
"For archaic thought, the dialectic of presence and absence, same and other,

17 O conceito de ‘imaginação’, enquanto associado à capacidade da mente de produzir


imagens, surgiu no segundo século da nossa era (Cf. Vernant, 1991:185).
206
is played out in the otherworldly dimension that the eidolon, by being a double,
contains, in the miracle of something invisible that can be glimpsed for just an
instant. This same dialectic is found again in Plato. However, once transposed into
a philosophical vocabulary, it not only changes its register and assumes a new
significance, but the terms as well are also in some sense reversed. The image, a
"second like object", being defined in some respects as the Same, also refers to the
Other. It is not confused with the model because, having been denounced as the
untrue, the not-real, it no longer, as in the case of the archaic eidolon, bears the
mark of absence, of elsewhere and of the invisible, but rather the stigma of a really
unreal nonbeing. Instead of expressing the irruption of the supernatural into human
life, of the invisible into the visible, the play of Same and Other comes to
circumscribe the space of the fíctive and illusory, between the poles of being and
nonbeing, between true and false. The "apparition", along with the religious values
that invest it, gives way to a "seeming", to an appearance, a pure "visible" where
the question is not one of making a psychological analysis but of determining its
status from the point of view of its reality, of defíning its essence from an
ontological perspective." (Vemant, 1991:168)

Desta maneira, o sensível se toma ilusório e falso, enquanto o inteligível,


seu oposto, se toma a única realidade. A idéia da imagem como ilusão e a
possibilidade de ver o que não é real, estão na base dos conceitos de ‘alucinação’ e
‘representação’. A idéia do jaux-semhlanl e da representação artística são
consequências desta "secularização" da imagem. No momento desta divisão
epistemológica, a imagem começa a simulai- a presença de algo sem qualquer
partilha metonímica na qualidade (ou ‘essência’) do representado. A noção de
representação supõe a ausência daquilo que substitui, assim como supõe uma
diferença qualitativa entre a coisa representada e a imagem que a substitui. A
imagem não tem nenhuma realidade além de ser semelhante à coisa a que se
refere.
A busca deste tipo de ‘puro espírito’ (ou idéia), presente somente para si
mesmo, poluindo-se quando imerso na matéria e nas formas cambiáveis da vida,
ocupou o pensamento ocidental até o século dezoito quando começa a ser
questionado pela hermenêutica e pela emergência das ciências sociais. Teorias
modernas da percepção reintroduziram a noção de agência e a noção das
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capacidades criativas da mente humana no conceito de imagem e desde então o
papel da imaginação e a relação entre realidade e aparência começaram a ser
reavaliadas. O problema do sentido da ficção e da mímesis está na ordem do dia na
antropologia, nas artes e em outras áreas das ciências humanas. Deste modo nos
tomamos melhor preparados para aceitar uma leitura e um significado diferente da
vida das imagens sugerida pelos Kaxinawa.
Resumimos, à guisa de conclusão, algumas das características específicas
do pensamento Kaxinawa sobre a experiência visual. A visão é concebida como
um processo dinâmico e nunca como passivo ou estático. Na produção de desenho,
não se procura fixar o ponto de vista de quem olha. Visto que não há fundo ou
figura em que os olhos podem posar sua atenção, e sim uma dinâmica
desassossegada da percepção alternada de figura e contra-figura, o olhar do
perceptor é sugado para dentro da kinestesia do desenho geométrico (Cf Guss,
1989:122). Vemos assim que a ‘escrita’ (kene) Kaxinawa, uma ‘inscrição’ do
sentido na acepção ampla da palavra (Cf Derrida, 1967), trabalha com um conceito
de visão que difere bastante do papel dado à visão, assim como à pintura e à
escritura, na cultura clássica ocidental, onde a escrita era considerada antes de
mais nada a técnica que permitia fixar o fluxo do pensamento e da fala numa
forma visual permanente, tomando-o desta maneira suscetível à observação
distanciada e objetivada (Ricoeur, 1981, Vemant, 1991).
Os Kaxinawa consideram o conhecimento como algo incorporado. Assim,
quando um Kaxinawa se refere ao conhecimento contido nos cadernos do
etnógrafo, não se refere às letras {kene) no papel, mas ao papel que contém as
letras. Por esta razão chama papel de conhecimento {una) . Como alusão a sua
concepção corporal do conhecimento, comentários irónicos dos Kaxinawa me
fizeram entender que a preocupação dos brancos com o armazenamento de

18 Veja Gow(1990) para uma abordagem semelhante referindo-se, também, à escrita ente
os Piro.
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conhecimento em objetos fora dos seus corpos, fez com que seus corpos pararam
de conhecer. Os livros são contentores de conhecimento, una\ as fita cassete são
‘captadores da voz’, huibiti\ e as câmeras acumulam imagens perfeitas de corpos,
ou seja, yuxin, e são por esta razão chamadas de ‘captadores de yuxin’
(yuxinbití)19. “Mas para aprender ‘de verdade’-”, me disse Augusto em uma das
últimas tardes em que trabalhamos juntos; em vez de prosseguir sua frase, me
pegou no braço e começou a cantar, dançando.

i9 Deshayes e Keifenheim (1982) reportam que os Kaxinawa do Peru interpretaram a


causa de uma epidemia que os afligiu pouco tempo depois de uma visita a suas aldeias do
cineasta/antropólogo Shultes e sua esposa Chiara em 1950/1951, como efeito da filmagem
feita por estes na ocasião. A captura do yudci baka, yuxin do corpo, teria reduzido seu
tamanho e deixado as pessoas que foram filmadas fracas e suscetíveis à doença.

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