A Flecha Do Ciúme. O Parentesco e Seu Avesso Segundo Os Awet
A Flecha Do Ciúme. O Parentesco e Seu Avesso Segundo Os Awet
A Flecha Do Ciúme. O Parentesco e Seu Avesso Segundo Os Awet
AFLECHADOCIME OparentescoeseuavessosegundoosAwetidoAltoXingu
2010
AFLECHADOCIME OparentescoeseuavessosegundoosAwetidoAltoXingu
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-graduao em Antropologia Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Doutor em Antropologia Social.
AFLECHADOCIME OparentescoeseuavessosegundoosAwetidoAltoXingu
Marina Vanzolini Figueiredo Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-graduao em Antropologia Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Doutor em Antropologia Social. Aprovada por: _______________________________ Prof. Eduardo Batalha Viveiros de Castro - orientador PPGAS/MN UFRJ _______________________________ Prof. Aparecida Vilaa PPGAS/MN UFRJ _______________________________ Profa. Bruna Franchetto PPGAS/MN UFRJ _______________________________ Prof Marcela Coelho de Souza UNB ______________________________ Prof. Renato Sztutman FFLCH/USP Rio de Janeiro, Junho de 2010
A flecha do cime. O parentesco e seu avesso Segundo os Aweti do Alto Xingu/ Marina Vanzolini Figueiredo. Rio de Janeiro, PPGAS-MN/UFRJ, 2010.
Agradecimentos
Minha gratido pela generosidade dos Aweti por me receberam em suas casas e compartilharem comigo um pouco de suas vidas e seus conhecimentos muito maior do que poderia expressar aqui. Que fique registrada em papel, contudo, este bem de valor de que dispomos, na academia, para manifestar nosso reconhecimento s pessoas queridas. Pelas razes que exponho na introduo, no citarei neste trabalho os nomes dos Aweti com quem convivi, protagonistas das histrias que vou contar. Gostaria assim de nome-los agora, tanto para fortalecer o agradecimento, quanto para que a sonoridade de seus nomes, de que tanto gosto, confira um pouco de vida tese. Agradeo pois, a Jakumin, Wawar e Ul, a Talakwaj, Awajurup e Meweku, a Kajan e Kanuke, a Kaluan, Mahy, Ariw, Warit e Ulaw, a Kamih e Mawalaw, Praa, Kamiru e Tiaju, Kawak Wiriri, Kupenu e Kawlaku. Agradeo tambm a todos os jovens e crianas, filhos e netos desses casais, que sempre estiveram muito presentes em minha vida na aldeia, e foram diversas vezes meus melhores companheiros. Agradeo especialmente a Awajatu, Macha e Waranaku, meus professores e amigos, no s pelo cuidado que sempre tiveram comigo, como tambm pela pacincia e seriedade na execuo de nosso to aguardado projeto, que um dia finalmente saiu. E ao pessoal do Saido: Nikumalu, Kaimum, Kamajulalu, Tiapuku e Pataku, Gatinha e Tsukujyt, Miruwi, Kwaray, Tom, Tsehu e a todos os demais que no pude nomear aqui.
Agradeo tambm a Jumui Mehinaku, por ter me recebido por uma semana em sua aldeia, com perfeita hospitalidade. Carlinhos e Kurur to bem me acolheram ento em sua casa. Leto foi meu motorista de volta para casa. Da aldeia Ipatse (Kuikuro), onde tambm tive a honra de ser recebida, agradeo especialmente a Afukak, Mutu e Jamalu, por me ajudarem de diversas maneiras, sempre com uma gentileza mpar. No posto Leonardo, o governador Kokoti sempre me recebeu com um sorriso, um prato de comida, um oferecimento de ajuda. Os professores da escola indgena, muito amveis, permitiam que usasse a internet ali vez ou outra. O pessoal da sade, com quem sempre pude contar para passar uma noite no Posto, uma conversa, um mate, foi um apoio fundamental. Na aldeia Aweti, os auxiliares de enfermagem Emerson e Arlindo mostraram-se dois timos cozinheiros, alm de amigos. E agora todos aqueles que me ajudaram, de uma maneira ou de outra, em casa: As bolsas de estudo que recebi da Capes, nos primeiros dois anos de doutorado, e da Faperj, nos dois ltimos, foram fundamentais para que pudesse me dedicar integralmente a esta pesquisa. Minhas viagens a campo foram parcialmente financiadas pelo PPGAS/Museu Nacional e pelo projeto Ontografia comparativa e equivocao controlada: cinco estudos etnogrficos e suas implicaes reversas(CNPq). Agradeo a compreenso e gentileza das funcionrias da biblioteca, do pessoal da Xerox e dos funcionrios da secretaria do PPGAS/MN ao longo dos anos de mestrado e doutorado. Agradeo a meu orientador, Eduardo Viveiros de Castro, pela leitura deste trabalho desde suas etapas preliminares. Sua orientao sempre dosou em boa medida interesse pelas histrias que eu trazia do campo, respeito pelas opes que fui fazendo
tanto no momento da pesquisa quanto na anlise do material, e precisas indicaes de leitura. Marcela Coelho de Souza me levou aldeia Aweti pela primeira vez e continuou, ao longo desses anos, sendo meu porto seguro em Canarana e depois Braslia. Foi uma sorte ter por perto Sebastian Drude, o lingista dos Aweti, generosamente compartilhando cada novo resultado de seu trabalho, alm de diversos materiais coletados por ele na aldeia. As preciosas dicas que me deu sobre a lngua aweti ao longo destes anos fizeram toda a diferena. Agradeo a Aparecida Vilaa e Carlos Fausto pelos comentrios e sugestes que fizeram em minhas duas bancas de qualificao, alguns dos quais espero ter conseguido incorporar ao trabalho, outros que temo ter sido incapaz de aproveitar, mas que seguem registrados aguardando elaboraes futuras. Tive o privilgio de ingressar no mestrado no Museu Nacional logo aps a criao do Ncleo de Transformaes Indgenas (NuTI), que financiou boa parte de minha pesquisa de campo atravs do projeto Pronex (Faperj) Transformaes indgenas - os regimes de subjetivao amerndios prova da histria. Agradeo a todos os pesquisadores associados a este ncleo por ter podido contar com tal ajuda. Mais do que isso, porm, as reunies semanais que comearam a ser realizadas naquele mbito foram para mim, uma estudante de jornalismo recm chegada antropologia, um ambiente de formao intelectual maravilhoso. O mesmo deve ser dito do Ncleo de Antropologia Simtrica (NAnSi), que deu continuidade aos encontros de Sextas na Quinta. Foi a, descobrindo o que faziam e pensavam meus colegas, e apresentando etapas desta pesquisa, que comecei a virar antroploga.
Agradeo especialmente aos comentrios de Marcio Goldman sobre algumas apresentaes que fiz naquele contexto. No posso deixar de notar tambm a influncia que teve sobre meu modo de pensar a antropologia o curso de Teoria Antropolgica II ministrado por Goldman nos idos de 2004. O curso sobre perspectivismo amerndio ministrado por Tnia Stolze Lima e Anne-Marie Colpron na UFF, em 2006, foi tambm um momento marcante na minha formao. A presena de Tnia Stolze nas reunies do NuTI-NAnSi e, sobretudo, nossas conversas fora dali sobre a escritura da tese, ajudaramme de uma forma que ela dificilmente ter calculado. Gilberto Velho, desde o mestrado, um amigo-parente cujo estmulo e apoio constantes tm para mim enorme valor. Sem os amigos queridos que tive a sorte de conhecer no PPGAS/Museu Nacional, estou certa de que este trabalho teria sido impossvel. A comear pelo inesquecvel grupo de estudos no primeiro ano de doutorado, as marilynianas, com Antnia Walford, Luciana Frana, Ana Carneiro e Paula Siqueira. Luciana, Bruno Marques, Pedro Rocha e Beatriz Matos so colegas do projeto de pesquisa CNPq, meus contemporneos na etnologia com os quais trocar experincias e idias foi importante. Salvador Schavelzon mesmo morando em terra estrangeira, esteve sempre perto para discutir Pierre Clastres y otras cositas ms. Mara Bhler, que no era do Museu mas estava sempre junto, foi uma calma conselheira. Algumas conversas sobre feitio com Edgar Barbosa me ajudaram a pensar especificidades do caso aweti. Na reta quase final da escrita, as viagens com os tesistas Nicols Viotti e Ana Carneiro, para trabalhar com um pouco de ar fresco, locro e boa companhia, foram imprescindveis. Julieta Quirs, recm doutora sobrevivente, acompanhou de perto a fase Buenos Aires da escrita. Virna Virgnia Plastino foi
companhia e me para o momento do flego final. Julia Sauma integrou o esforo conjunto de amigos na reviso ortogrfica deste trabalho. No tenho como agradecer a ela, Ana, Virna, Clara e Joana pela leitura de diversas partes do texto. Agradeo ainda queles que estiveram por perto ao longo de todo o doutorado: Ceclia Campello, Felipe Sussekind, Magdalena Toledo, Mrcia Nbrega, Felipe Evangelista, Chloe Naum. Miguel Conde fez parte da equipe de reviso, oferecendo muito generosamente seu revisor ortogrfico. Adriano Melhem, companheiro de aldeia e em casa durante boa parte da pesquisa, foi com quem pude compartilhar primeiro as idias contidas neste trabalho. Joana Miller tem sido desde o mestrado minha grande conselheira e referncia para falar sobre o trabalho de campo, suas alegrias e sofrimentos, a escritura de tese, a vida acadmica e o resto. Agradeo tambm a Luis Costa, pelo estmulo no momento da escrita. Meus compadres Clara Flaksman e Moreno Veloso fizeram tanto por mim que fica difcil dizer. No posso deixar de agradecer pelo melhor escritrio do mundo, na Abade, e pelo cuidado constante, mesmo da Bahia. Meus pais e irms nunca deixaram de me dar todo o apoio que puderam e de se interessar pelo que fao, o que no pouco. Sem eles no teria chegado at aqui. Mariano Giorgio me recebeu em sua casa, em Caseros, onde pude terminar esta tese muito mais feliz do que estaria em qualquer outro lugar.
mytum itowatsat, pacu itowatsat, mytum itowatsat pacu itowatsat, mytum itowatsat, pacu itowatsat moat ete eym ita iteowatsazunku, iteowatsazunku iteowatsazunku mutum meu inimigo, pacu meu inimigo, mutum meu inimigo pacu meu inimigo, mutum meu inimigo, pacu meu inimigo no de gente que quero me fazer inimigo Canto de morezowagetu aweti
Resumo
A tese uma etnografia sobre a feitiaria e suas imbricaes com o parentesco no sistema multilnge do Alto Xingu (MT) segundo um dos povos que o integram, os Aweti (tupi). Notando-se que o feitio ocorre geralmente entre pessoas muito prximas, o que contrasta com a imagem, nativa e antropolgica, do pacifismo como marca da relao entre os povos xinguanos, busca-se descrever aqui como a feitiaria pode ser uma anttese do parentesco e, ao mesmo tempo, dele derivada.
Abstract
The thesis presents an ethnography of sorcery and its relation to kinship within the multilingual system of the Upper Xingu (MT), according to one ofits constituent groups, the Aweti (tupi). Noting that sorcery occurs generally among people that are closely related, and in contrast to the native and anthropological image of peaceful relations between the xinguano peoples, the thesis describes how from an indigenous point of view sorcery can be the antithesis of kinship while also being derived from it.
Grafiaepronncia
Tentei seguir na grafia dos termos nativos, que aparecem sempre em itlico exceto no caso de nomes prprios (inclusive de personagens miticos e lugares), os padres estabelecidos pelo lingista Sebastian Drude ao lado dos professores indgenas Waranaku e Awajatu Aweti (ver Drude et al., 2007). Estou ciente, contudo, de que o modo como grafei alguns termos pode divergir desse padro, sobretudo em alguns casos em que a juno de uma consoante muda a uma vogal produz o som de r, nos quais preferi manter a distino original para facilitar a compreenso do sentido de certos termos. Escolhi grafar, por exemplo, tekat atytu (sovina), ao invs de tekaratytu - apesar da segunda opo ser um melhor indicador de pronncia - para distinguir as noes que compem o susbstantivo: te-kat (coisas dele) + atytu (doloroso). Aviso tambm que no fiz uso da terminologia tcnica lingstica ao arriscar algumas anlises etimolgicas (hipteses tentativas, que fique claro) mas procurei explicar, em linguagem leiga, a funo desempenhada pelos afixos na composio dos termos.
As vogais soam normalmente como na lngua portuguesa. O y, um som inexistente no portugus, deve ser lido como um u produzido na garganta, ou . O w deve ser lido com som de u, como no ingls. O deve ser lido como nh no portugus. O z soa prximo ao j na lngua portuguesa.
O ng indica que o som de n produzido na garganta. O j consoante mas deve ser lido como o i no portugus. O t palatalizado; quando no houver palatalizao ser grafado th.
A lngua aweti possui a consoante oclusiva glotal, indicada pelo smbolo , como em moat, que deve ser lido como uma interrupo antes da palavra que se segue ao smbolo , em contraste com a pronncia incorreta moat, por exemplo.
Sobre lenio: o t e o p quando aparecem ao final das palavras so sempre mudos. O t seguido de vogal adquire o som de r, como no exemplo acima, e desaparece quando seguido de consoante, como em moaza (moat + za, sufizo coletivizador). O p seguido de vocal ganha o som de w, como em akwawawoko (akwawap + oko, sufixo de aspecto temporal que indica ao futura ou contnua). Seguido de consoante o p mantm-se mudo, mas perceptvel. O trema sobre uma letra indica nasalizao, quando o ~ no pde ser usado. A lingua awet possui harmonia nasal, ou seja, um elemento intrinsecamente nasal causa a nasalizao fontica de outros segmentos sua esquerda, fazendo com que a nasalidade possa se estender atravs de vrias slabas na palavra. No h um acordo quanto ao uso de acentos. Em palavras simples sem sufixos, o acento usualmente ocorre na ltima slaba da raiz.
Sumrio
Introduo ............................................................................................................... 1 I. Os Aweti no Alto Xingu ................................................................................ 16 II. O todo e suas partes...................................................................................... 26 III. Aweti, Enumaniah....................................................................................... 34 III.i Tempo das epidemias; a aliana com os yawalapit .................................. 40 III.ii Novo chefe; Saido................................................................................... 44 IIII. Nota sobre a pesquisa ................................................................................ 47 Captulo 1 Moat eym tupiat itatza: os feiticeiros no so gente .......................................... 50 1.1 Diagnstico e cura: flechinhas de quem?.................................................... 54 1.1.2 Diagnstico e cura: o mopat vai procurar coisas fora de casa ................ 61 1.2 Sobre a ang: quero ir para casa .............................................................. 68 1.2.1 Sobre corpos: ex-coisas............................................................................ 77 1.2.2 Ps morte: ainda um pouco parente ......................................................... 80 1.3 Os verdadeiros humanos ............................................................................. 91 1.4 O humanismo dos outros ............................................................................ 96 1.4.1 Topatapuza etomowkap: a origem dos cantos rituais ............................ 105 1.5 Karika tene, kat: coisas somente, e coisas que so pessoas..................... 110 1.5.1 Coisas de trocar...................................................................................... 117 Captulo 2 Tupiat itaza porywyt: o que fazem os feiticeiros ................................................ 127 2.1 Ser atado morte: flechas de japi e outros objetos................................... 133 2.2 Sob o fogo de cozinha: nota sobre a casa ................................................. 139 2.3 Outras tcnicas: objetos que matam e objetos que atraem a morte........... 143 2.4 Kuriti: a loucura do afim........................................................................... 148 2.5 Poderes do homem noturno ...................................................................... 153
2.6 Ser nutrido................................................................................................. 158 2.7 Vingana ................................................................................................... 160 2.8 Todo enfeitiado parente........................................................................ 171 2.9 A violncia deve ter um fim...................................................................... 176 Captulo 3 Moakatu: para fazer gente ................................................................................. 182 3.1 Manter vivo, manter prximo, tornar grande............................................ 185 3.2 Pais e filhos por fazer................................................................................ 191 3.3 Para ter ndegas de tapir ........................................................................... 198 3.4 Porque aprender a caminhar difcil para nossos filhos........................... 208 3.5 Montang itatza, os donos dos remdios .................................................... 213 3.5.1 Nota sobre a noo de dono ............................................................... 220 3.6 Adornos, sonhos e rezas: outras associaes ............................................ 226 3.7 Tabaco, fazedor de gente .......................................................................... 233 3.8 O pagamento dos mopat........................................................................... 240 Captulo 4 Nkywa aty: os braos fortes do feiticeiro .......................................................... 247 4.1 Ser e tornar-se morekwat .......................................................................... 250 4.2 Um homem forte ....................................................................................... 261 4.3 Pele de jaguar ............................................................................................ 267 4.4 A comunidade contra o dono .................................................................... 270 4.5 Esse nome no darei a meu filho .............................................................. 276 4.5.1 Nopir, o pobre ....................................................................................... 284 4.5.2 Os outros que nos chamam ................................................................. 290 Captulo 5 Desfazendo parentes ........................................................................................... 294 5.1 A flecha do cime ..................................................................................... 297 5.2 Somos todos parentes................................................................................ 306 5.3 Otokwawap: reconhecer-se parente .......................................................... 313 5.4 Izetu eym kaj: do que se passa entre parentes ........................................ 320 5.5 Consanguinizao dos afins, afinizao dos consanguneos .................... 333
5.6 Quase parentes .......................................................................................... 343 5.7 Palavras que no deveriam circular .......................................................... 347 5.8 Dos oponentes: desvirar parente ............................................................... 353 5.9 O parentesco pervertido ............................................................................ 361 Captulo 6 An tut ewaupwyka moaza ete:............................................................................ 364 no venha desconfiar de ns (quando um dos seus estiver morrendo) ............... 364 6.1 Tomowkap ................................................................................................. 371 6.2 Histrias para dormir, histrias na mo do sovina.................................... 378 6.3 Azoj katikaju tene: acusar sem ter certeza ............................................... 387 6.4 Conversa de mulher .................................................................................. 393 6.5 Fofocas sobre fofocas ............................................................................... 396 6.6 Morezowagetu ........................................................................................... 402 6.7 Eplogo: formas da diferena .................................................................... 415 Bibliografia ......................................................................................................... 423 Anexo 1 Terminologia de parentesco ................................................................................ 436
Introduo
muito comum na aldeia Aweti que, durante a noite, escute-se de dentro de casa agudos assovios produzidos com pequenas flautas de ossos de animais: tit...tit...So feiticeiros rondando a aldeia, vindos da floresta que a circunda, e que usam esses instrumentos para comunicarem-se entre si. Os Aweti preferem estar em casa quando cai a noite, pois nessa hora em que se sentem vulnerveis ao ataque de malfeitores. Moaza wekoju, tem gente rondando, aqueles que fazem tit, comentam entre si. A impresso que se tem, de sada, que os feiticeiros esto vindo de longe, e que so gente estranha este o sentido do termo moaza, gente, aqui. Nas histrias de enfeitiamento que comecei e ouvir na aldeia, no entanto, os feiticeiros eram muitas vezes pessoas bastante prximas que no estavam propriamente rondando, pois viviam ao lado. Este trabalho uma tentativa de pensar o descompasso entre o lugar de onde se espera vir a feitiaria e o lugar de onde ela geralmente vem. Se meu ponto de partida foi essa observao sociolgica, o que tentei fazer aqui foi conect-la tanto ao universo cosmolgico em que a feitiaria est inserida, quanto microsociologia dos sentimentos que vejo como motores do feitio da o foco no cime. Os Aweti so um povo falante de lngua tupi1 que vive s margens dos rios Curisevo e Tuatuari, dois afluentes do rio Culuene, principal formador do Xingu, ao norte do estado do Mato Grosso, no planalto central brasileiro2. Os povos indgenas que habitam a regio foram primeiro
Prxima ao sater-maw e s lnguas da famlia tupi-guarani, a lngua aweti tem sido recentemente considerada parte de um ramo maweti-guarani do qual teriam se desenvolvido, por um lado, as lnguas T-G, e, por outro, satermaw e aweti (Drude, 2007a). 2 A regio compreende, a oeste, os rios Ronuro e Batovi, que desembocam no Culuene na altura da regio conhecida como Moren, onde passa a se chamar rio Xingu; os principais formadores do Culuene a leste so: Curisevu, Tuatuari, Mirassol e Tanguro.
descritos na literatura por Karl von den Steinen (1940), que l esteve em duas expedies, em 1884 e 1886, e encontrou uma situao bastante similar que conhecemos hoje. Falantes de lnguas distintas, essas populaes integram um sistema de trocas rituais, matrimoniais e econmicas conhecido na literatura etnolgica como Alto Xingu, sistema xinguano ou sociedade xinguana. Encontram-se ali atualmente os Wauja, Mehinaku e Yawalapit, de lngua aruak; Kalapalo, Kuikuro e Nahukw, de lngua karib; Kamayur, povo falante de tupi-guarani, e Aweti, de lngua tupi; e os Trumai, de lngua isolada. Em 1961, foi criado, graas ao esforo dos irmos indigenistas Orlando, Claudio e Leonardo Villas-Boas, o Parque Nacional do Xingu, mais tarde transformado em Parque Indgena do Xingu. A rea indgena abrange no apenas as cabeceiras do Xingu, como tambm segue este rio em seu curso at a fronteira do Par, onde se encontram os Ikpeng (tambm conhecidos como Txico), Kajabi, Yudj (ou Juruna) e Kisdj (Suy). O fato de que os Aweti pensam sobre si mesmos como membros de uma comunidade maior com a qual compartilham seu modo de vida tornaria uma limitao rgida do objeto deste estudo bastante artificial; por outro lado, seria impossvel garantir que as informaes e impresses obtidas entre eles so igualmente vlidas para os demais povos xinguanos, pois uma comparao exaustiva foge aos objetivos deste trabalho. A ideia produzir, portanto, no uma etnografia sobre os Aweti e tampouco uma etnografia sobre o Alto Xingu, mas uma etnografia a partir dos Aweti sobre, entre outras coisas, o Alto Xingu. Aweti o nome que vou dar ao ponto de vista que procuro descrever aqui, a partir da experincia que tive com pessoas que se identificam desta maneira. Gostaria que essa tese pudesse caminhar alguns passos no sentido de superar duas lacunas da etnologia regional xinguana. A primeira delas diz respeito falta de informaes que temos
sobre os Aweti, um povo bastante pouco etnografado, em comparao com seus vizinhos xinguanos Kamayur (objeto dos trabalhos de Oberg 1948, Galvo 1950, 1953, Agostinho 1974, Junqueira 1975, Bastos 1985 e muitos outros); Kalapalo (Basso 1969, 1973, 1987, 1995); Mehinaku (Gregor 1977, 1985 etc., Stang 2009); Kuikuro (Carneiro 1956/58, 1978, 1995, Franchetto 1986, Heckenberger 2000, 2005 etc.), Wauja (Dole 1964, 1973, Barcelos Neto 2004, Mello 2005, Ball 2007) para citar apenas alguns autores, e alguns poucos trabalhos de cada autor. Quanto aos Aweti, dispomos de um nico estudo monogrfico, a tese de Zarur, publicada em 1975 com base numa pesquisa de trs meses na mesma aldeia em que agora trabalhei, e um artigo de Coelho de Souza que oferece a anlise de uma narrativa mtica coletada em campo, mas nenhum trabalho baseado em pesquisa de campo de maior durao (ainda que os 13 meses que pude despender entre os Aweti sejam definitivamente pouco para falar em pesquisa de longa durao). Coincidentemente ou no, ambos os trabalhos de Zarur e Coelho de Souza exploram com alguma sistematicidade o tema da feitiaria. Zarur fornece-nos diversos relatos de acusaes que em muito se parecem com o que pude presenciar em minha pesquisa, enquanto Coelho de Souza formula uma hiptese sobre o papel que a feitiaria desempenharia no sistema xinguano que me parece extremamente pertinente, e teve grande influncia sobre este trabalho. Quero crer que h certa coincidncia, contudo, nessa confluncia de enfoques (Zarur, a bem dizer, faz uma monografia sobre parentesco que resvala no tema da feitiaria, aparentemente um caminho oposto ao meu, que parti da feitiaria para chegar ao parentesco). Em um, como o prprio autor descreve, breve estudo de mitologia Kamayur, Ordep Serra (2006) transcreve trechos do caderno de campo que fez em uma visita ao Alto Xingu no incio dos anos 80, suponho (o autor no nos informa a data). Gosto, pela mistura de
descompromisso com a preciso e precisa sensibilidade que s um texto de caderno de campo pode ter, de uma frase que aparece ali solta, no por sua desimportncia, mas justamente pelo destaque que o autor lhe confere: De acordo com todo mundo, todo mundo feiticeiro (idem, 26). Temos ento testemunhos parecidos, a respeito da pregnncia da feitiaria, entre os dois povos tupi xinguanos, Aweti e Kamayur. Nada indica, contudo, que estamos diante de um caso de matriz cultural tupi, especificamente. Gregor afirma algo muito similar a respeito dos (aruak) Mehinaku, na dcada de 70: Every Mehinaku men was regarded as a witch by at least one informant, and two men were named as witches by every informant (1977, 207). Dole (numa srie de artigos no publicados), reporta algo similar entre os (karib) Kuikuro, associando, como Ellen Basso (1969) para os Kalapalo (tambm karib), as acusaes de feitiaria s disputas em torno da chefia alde. Dole (1976) e, depois dela, Heckenberger (2005), associam a intensidade das disputas polticas desintegrao de linhagens de chefes em decorrncia da depopulao provocada pelo contado. O problema que vejo nessa interpretao, e minha crtica no nada original, que ela retroprojeta um mundo ideal em que a tradio, a cultura ou a estrutura social, como se queira chamar, um dia foram intactos, dando inclusive conta de prevenir a irrupo, ao menos to frequente, do conflito. J vi muitos Aweti dizendo que os ndios brigam por causa das coisas de branco, que antes da chegada do branco no havia tanta briga e quando dizem briga, via de regra podemos ler feitio. Duas coisas podemos apreender, de sada, desses depoimentos: primeiro que as pessoas brigam, e fazem feitio, por causa de coisas. Segundo, que a introduo de certas coisas em seu universo, coisas que obedecem a um regime particular de entrada e circulao no mundo indgena, provocou provavelmente o acirramento, de conflitos em torno de bens em geral. Por outro lado os prprios Aweti contam inmeras histrias dos antigos - um termo que
encobre desde a mitologia de origens at relatos de acontecimentos de dcadas atrs (antigos designando, genericamente, ancestrais desconhecidos) envolvendo feitiaria. No acredito, pois, que, retomando a observao de Serra, todo mundo s comeou a dizer que todo mundo feiticeiro porque os brancos chegaram, as grandes linhagens de chefes desapareceram, e a chefia que era hereditria tornou-se objeto de disputa. At porque, pela experincia que tive entre os Aweti, no diria que a disputa poltica explica ou resume a feitiaria, o que no significa dizer que a feitiaria no tem diversos pontos de contato com a vida poltica. Por outro lado, como lembra Kapferer (1997, 2002) criticando anlises da feitiaria na Africa ps-colonial, creditar a proliferao do feitio degenerao do modo de vida tradicional pela invaso do capitalismo equivale a imputar aos ndios uma irracional e impotente resposta transformao de seus mundos: sem entender o problema social e econmico real que os acomete, comeariam a acusar uns aos outros de feitiaria. Parece-me mais que seria o caso, pois preciso levar em conta a observao dos Aweti sobre os bens de branco haverem se tornado motor do feitio na vida alde, de considerar de que modo esses bens se assemelham e se distinguem de outros bens em torno dos quais j girava a feitiaria (inspiro-me na formulao que Gordon oferece de sua anlise do consumismo Kayap, em Gordon 2006, 95); seria ainda preciso e entender, antes disso, se o feitio est sempre necessariamente associado aos bens, nativos ou exgenos, e porque. Infelizmente, isso algo de que me dou conta agora, aps escrever a tese. E talvez este trabalho no possa mais que apontar algumas questes a serem desenvolvidas no futuro. Mas volto segunda lacuna da etnologia xinguana que gostaria de ajudar a comear a preencher com este trabalho. Todos os etnlogos da regio registram a incidncia e insistncia da feitiaria na vida alde, mas as anlises so poucas. Ou melhor, faltam, antes que anlises,
descries mais detidas sobre o tema. Como notei acima, as anlises de que dispomos em geral pretendem explicar a feitiaria como epifenmeno da poltica, ora como instrumento de manobra na luta pelo poder, ora como efeito da degradao (e neste ltimo caso, as acusaes poderiam ser vistas como explicaes irracionais de problemas de outra ordem, como sublinha Kapferer). Em primeiro lugar, creio que podemos deixar um pouco de lado tentativas de explicar a feitiaria, e buscar entender o que o feitio. Quando se tenta explic-lo pela poltica, deixa-se de lado as tcnicas e seus efeitos sobre as pessoas, considerando-se apenas as acusaes e seus efeitos. Esse um ponto que tento perseguir. Por outro lado, se desejamos de algum modo explicar a feitiaria, seria mais interessante comear pelas explicaes que as pessoas envolvidas do para o assunto. Os Aweti, at onde eu sei, no dizem que a feitiaria um instrumento de manobras polticas, e muito menos que pessoas acusam-se e perseguem-se umas s outras motivadas pelo desejo de assumir ou manter-se em posies de poder, nem mesmo que o feiticeiro um homem que almeja ao poder, no sentido estrito de termo. Eles certamente podem desconfiar que seus chefes sejam feiticeiros, mas no s deles desconfiam. Descrever o que os Aweti dizem sobre porque se faz feitio, e porque existe o feitio no mundo, o outro ponto que tento perseguir na tese. O enfoque nas razes nativas, e no em razes obscuras incompreendidas pelos nativos, como a degenerao da vida social, deve-nos permitir tambm sair do registro da irracionalidade do feitio para uma busca da racionalidade prpria ao mundo do feitio que os discursos sobre feitiaria nos permitem divisar. Se tivesse tido a clareza de formular perguntas que gostaria de responder com esta tese antes de comear a escrev-la, imagino que elas seriam: por que, para os Aweti, uma pessoa faz feitio? E o que, para os Aweti, um feitio faz com uma pessoa? Minha descoberta etnogrfica na verdade um fato arqui-conhecido e documentado no apenas para o Alto Xingu explcito inclusive nas etnografias que acabo de citar - como tambm
para diversas sociedades: o feiticeiro um parente. Cito a observao de Middleton (1963), na introduo de sua coletnea de artigos Witchcraft and Sorcery in East Africa:
It should be noted at the outset that the accusations of wizardry against specific individuals are always made by people against others with whom they are mutually involved in a network of social relationships and, furthermore, the relationships between the accused and the accusers are usually important to them. This has been reported for, among others, the Azande (Evans-Prtichard 1937), Lozi (Gluckman 1950), Gusii (Mayer 1954), Cewa (Marwick 1952), Lovedu (Krige 1943), Pondo (Hunter 1936), Amba (Winter 1959) and Lugbara (Middleton 1960).
Observe-se que Middleton fala em relaes importantes e no em parentes, o que me obriga a fazer uma correo. Penso que os Aweti nunca concordariam com a afirmao que acabo de fazer acima. O feiticeiro no pode ser um parente, pois o feiticeiro nem gente , como se ver. Minha afirmao tem decerto um carter retrico, mas no apenas, pois pretendo com ela dar conta das duas perguntas que elaborei acima, sobre a tcnica do feitio, e sobre suas motivaes (etno)sociolgicas. (Etno)sociologicamente, o feiticeiro xinguano (abaixo comento a distino aweti/xinguano) e no um parente, dependendo do contexto. Mas, como bem definiu Middleton, sempre algum com quem o enfeitiado mantm uma relao importante. Parentesco aqui somente o nome da relao: como volto a comentar ao longo da tese, os Aweti e, penso, amerndios em geral, tendem a traduzir toda relao em termos de relao de parentesco, uma maneira de determinar o que se passa ou o que deve se passar entre os termos em relao. Outra maneira de afirmar o que disse Middleton seria dizer que o feiticeiro algum prximo, o que evidenciado, para o caso xinguano, pelas observaes de Gregor e Serra a respeito dos Mehinaku e Kamayur, respectivamente: em aldeias de no mximo duzentas pessoas, todas as pessoas so relativamente prximas, e todos se dizem, em determinados contextos (ou nveis de contraste) parentes; mas tambm dentro desse cosmos, segundo os
autores, que todo mundo diz que todo mundo feiticeiro. Num sentido (no muito) mais estrito, contudo, que me parece refletir uma noo indgena, parentes so pessoas que tm influncia umas sobre as outras. O feitio, enquanto tcnica, tambm uma forma de influncia, j tendo sido em outras ocasies comparado ao parentesco (ver sobretudo Leach 1961, Wagner 1967, Viveiros de Castro 2009). Mais do que isso, o parentesco e o feitio, da forma como pude entend-los, so feitos pela mesma via, atravs da circulao e manipulao de coisas que operam como partes destacveis das pessoas. Aqui preciso esclarecer que estou trabalhando com uma concepo no biolgica do parentesco (cf. Schneider 1968, 1972), isto , entendo-o como algo que no dado, mas precisa ser construdo, e ainda ciosamente mantido (ver Viveiros de Castro 2002e), como espero poder demonstrar frente. O que h de especfico a descrever neste caso so os processos pelos quais ele construdo. O feiticeiro um parente. Primeiro, porque algum prximo, e no h toa: algum com quem a proximidade produz o dissenso. Pelo que pude observar entre os Aweti, esse dissenso est em geral relacionado a mgoas e insatisfaes de relaes de parentesco, seja entre afins reais, seja entre consanguneos geralmente no to prximos, mas eventualmente extremamente prximos. O que proponho aqui simplesmente descrever com maior mincia, e fazer algumas consideraes, sobre esse fato j amplamente etnografado. Para tanto, tento descrever o que seria um parente do ponto de vista Aweti, o que me leva a considerar as conexes entre tcnicas de aparentemento e feitio. Como notou um Aweti numa afirmao que citei acima, os bens do branco so hoje um forte motivo de brigas na aldeia. Apesar de, como j lamentei, no ter tido aqui flego para explorar a insero especfica dos bens de branco nesse sistema, espero que as consideraes aqui apresentadas sobre o papel fundamental dos bens em geral tanto na
construo do parentesco, quanto na feitiaria, ilumine o caminho para futuras investigaes. Ao discutir brevemente a con-fuso entre chefes e feiticeiros, voltarei a essa questo. Confesso que a afirmao o feiticeiro um parente me agrada tambm pelo que chamei de seu carter retrico, pois reflete certa ingenuidade minha em campo que em larga medida explica o tema desta tese motivo pelo qual talvez valha a pena coment-la. No cheguei aldeia pensando estudar feitiaria, e tampouco cheguei pensando estudar poltica, como dizia o projeto que escrevi para ingressar no doutorado. Cheguei pensando em ver o que se passava na aldeia mas, como havia escrito uma dissertao bibliogrfica sobre poltica xinguana na qual havia me estendido sobre as imbricaes desta com o feitio, teria j certamente o ouvido atento para o tema. S comecei, no entanto, a pensar em tomar a feitiaria como foco a partir das histrias que presenciei de enfeitiamento, que muito me impressionavam por dois motivos: pela intensidade das dores provocadas pelo feitio, do sofrimento do enfeitiado e seus parentes, e da raiva contra feiticeiro; e pelo fato de que esses feiticeiro acusados, tanto quanto os acusadores, eram pessoas que eu conhecia quase sempre de bem perto, pois, numa aldeia com menos de 100 pessoas, eu convivia muito prxima (ainda que no igualmente aproximada) de todos. Nada disso novidade em termos de dados etnogrficos, mas viv-lo geralmente vendo-me no meio da intrigas entre, por exemplo, uma famlia que me convidada para comer todo dia e a famlia que me hospedava, foi uma experincia bastante perturbadora, que fez aumentar meu interesse pelo assunto. A meu ver, parte do horror da feitiaria justamente o fato dela vir de perto, de lugares de onde no deveria, ainda que seja sempre mais ou menos esperada. esse horror tambm o que gostaria de tentar descrever na tese. Em algum momento deste trabalho afirmo que um xinguano no imagina que um noxinguano faria um feitio contra si. preciso explic-la pois primeira vista parece confirmar
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uma imagem j bastante, e ao meu ver, com justia, criticada sobre o sistema xinguano. Von den Steinen, que fornece o primeiro relato de que dispomos sobre os habitantes daquela regio, chamava j ateno para o fato da homogeneidade cultural, em contraste com a heterogeneidade lingustica, que reunia aqueles povos em uma comunidade pacfica de trocas. Esse aspecto cosmopolita e pacifista dos ndios da rea foi o que chamou a ateno da maioria dos pesquisadores que passaram pela regio at pelo menos a metade do sculo XX, exercendo um grande fascnio, me parece, ao indicar que ali poderia haver algo mais que as tribos isoladas da floresta amaznica a ponto de Oberg (1953) sustentar que o Alto Xingu seria um caso de chefatura teocrtica. Galvo, para dar conta dessa homogeneidade que conectava os povos xinguanos, prope a designao da regio como rea cultural, nomeando o Alto Xingu rea do uluri, devido ao uso difundido deste adereo pubiano feminino. Nesse contexto, uma das definies mais pregnantes do Alto Xingu, como sociedade de fronteiras bem definidas, era o pacifismo interno, enquanto com os grupos de fora se fazia guerra. Dentro, em contrapartida, havia o feitio. A tese de Patrick Menget (1977) sobre os Txico/Ikpeng, que no perodo de sua pesquisa haviam sido recentemente trazidos para dentro da rea indgena depois de uma longa histria de inimizade com os povos xinguanos, alterou significativamente essa imagem. Menget apresenta o Alto Xingu como um sistema aberto e incorporativo, mostrando de que modo a relao do xinguanos com os Ikpeng podiam passar da guerra incorporao de traos culturais (rituais, esttica), geralmente atravs de alianas de casamento, num contnuo. Este trabalho suscitou a produo de inmeros estudos sobre o carter histrico e processual do sistema xinguano, notadamente a tese de Rafael Bastos sobre os Kamayur, cuja ultima parte uma descrio do carter histrico e processual do prprio povo Kamayur, que descobrimos tratar-se de um
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agregado nada uniforme, nem pacfico, de contingentes tupi-guarani diversos que teriam migrado na direo sul para encontrarem-se com as populao karib, aruak e provavelmente os Aweti, vindos do sul, que j habitavam a regio. Tambm seguindo a pista de Menget, Coelho de Souza formula o que me parece ser a teoria mais interessante sobre a feitiaria xinguana, apontando-a como o meio atravs do qual o sistema pode incorporar novos corpos sociais, internalizando a diferena, que no entanto se mantm enquanto tal, potencialmente letal. Dole (1964), pesquisando entre os Kuikuro, analisara a feitiaria como mecanismo de limpeza, atravs do qual a diferena poderia ser expurgada do universo xinguano, garantindo assim a manuteno da paz e estabilidade interna. A autora sustentava, grosso modo, que o medo de ser acusado de feitiaria sendo o feiticeiro descrito como o avesso do homem moral e social - levava os xinguanos a agirem moralmente3. A partir de sua pesquisa entre os Mehinaku, Gregor (1992), nota que contendas internas que podem levar a acusaes de feitiaria contra o chefe implicam que o grupo local no pode se unir como unidade guerreira contra outros grupos locais vizinhos. A instabilidade interna provocada pelo medo da acusao de feitio resultaria em estabilidade externa, garantindo assim a manuteno do sistema pacfico regional. Concordo com o que afirma o autor a respeito dos efeitos da feitiaria sobre a instabilidade polticas das aldeias, mas quanto a seus efeitos globais sobre o sistema xinguano creio que Coelho de Souza oferece uma perspectiva mais interessantes. Ambos, Dole e Gregor, sugerem que a feitiaria (mais bem, o medo do feitio e da
Note-se que esta anlise ressoa com alguns pontos da descrio de Rivire (1970) sobre a feitiaria entre os Trio, povo karib das Guianas, em artigo publicado na coletnea de Douglas: o feiticeiro Trio sempre de fora do grupo local porque, mesmo quando ele de dentro, a proliferao de fofocas que antecede s acusaoes abertas costuma levar ao exlio do suspeito de feitiaria; a feitiaria teria com isso o efeito de regularmente reafirmar a autoidentidade do grupo local expulsando para fora certos elementos que ameaam sua homogeneidade interna.
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acusao de feitio) promove a estabilidade da unidade xinguana atravs do controle moral, diferenciando-a do exterior para o qual est reservada a violncia organizada. Coelho de Souza aponta, em primeiro lugar, que a feitiaria e suas consequncias (a execuo de feiticeiros) so em si uma expresso de violncia que, do ponto de vista xinguano, no se opem guerra, sendo to terrveis quanto esta; e, segundo, que a moralidade pacifista na qual se funda a rede de trocas xinguana implica uma forma de oposio entre ns e outros distinta daquela vivida em contextos de guerra, mas no inexistente. Relatos nativos (Basso 1995, Coelho de Souza 2000) registram que o processo de entrada nessa rede de trocas processo de tornar-se xinguano, ou virar gente - implica o abandono da perspectiva guerreira, e adoo de um iderio pacifista. O que ocorre neste processo, sugere Coelho de Souza, que as diferenas entre grupos antes inimigos so internalizadas e convergem na feitiaria:
Com efeito no parece existir para os xinguanos soluo de continuidade entre a ao de feiticeiros e a de inimigos: ambos matam, ainda que por meios diferentes, e a resposta dos atingidos em cada caso expedio de represlia ou execuo do feiticeiro difere apenas em escala e grau de organizao (Menget 1985, 134-135). Entenda-se: no se trata de desconhecer a profundidade dos reajustes necessrios participao em um sistema regional cujas caractersticas (concentrao populacional em grandes aldeias prximas umas das outras e provavelmente ligadas por intensas relaes rituais e de troca) impunham formas de regulao e expresso de conflitos obrigatoriamente distintas das desenvolvidas em outros contextos. A oposio entre xinguano e no-xinguano, mais precisamente, warajo/putaka (aruak), ou kre/nikogo (karib), emerge possivelmente nesta conexo, exprimindo aquela expanso do julgamento tico de que fala Basso [1995]: para participar desse sistema era preciso virar gente. Mas como esta transformao no podia nunca ser tomada como definitiva, e alm disso aparecia muitas vezes como uma questo de ponto de vista, foi preciso realmente converter os conflitos guerreiros no jogo de acusaes de feitiaria e execuo de feiticeiros, que (re)internalizava no entanto a mesma oposio ns/outros(Coelho de Souza 2000, 370-1).
A feitiaria seria, pois, uma transformao da guerra, a atualizao da diferena dentro do universo xinguano. Quando digo que somente os xinguanos fazem feitios contra xinguanos, no
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pretendo reviver com isso a ideia de que o Alto Xingu uma unidade fechada, um dado, mas ressaltar que se, como sustento, a feitiaria se d sempre entre pessoas em relao, quando os xinguanos tendem a acusar algum de feitiaria porque este outro j parcialmente mesmo, j parceiro em algum tipo de relao. Em suma, os xinguanos realmente internalizam a diferena quando o assunto feitio. Como notou Favret-Saada para um contexto radicalmente distinto, uma comunidade camponesa no Sul da Frana: no que o vizinho seja um feiticeiro, o feiticeiro que, pelo fato de fazer feitiaria, definido a posteriori como um vizinho4 (Favret-Saada 1989). Estou sugerindo que, como entendo afirmar Coelho de Souza, a feitiaria um elemento atravs do qual um outro no xinguano pode gradualmente ou alternativamente (em um dado contexto e sob determinados pontos de vista) ser considerado xinguano. Para que uma pessoa seja acusada de feitiaria preciso que ela seja j um pouco gente, xinguana, e a acusao tem um efeito paradoxalmente inclusivo, apontando outros, mas outros internos. Seu outro efeito disjuntivo: a feitiaria efetivamente separa pessoas que esto socialmente prximas, sendo a nica causa que conheo para a constante fisso das aldeias xinguanas. A feitiaria como a guerra - parece ser aos olhos dos xinguanos o oposto da tica que apresentam como definidora de sua identidade xinguana, o pacifismo. Com isso, pode parecer s vezes (ou assim temi, em momentos da escritura desta tese) que insistir no tema do feitio seria como acusar os xinguanos os Aweti no caso de no serem to xinguanos quanto dizem ser, ou quanto gostariam de ser. A meu ver, contudo, e essa a tese principal deste trabalho, a feitiaria est no centro da xinguanidade, no pelo efeito moralizante que possa vir a ter, como sugeriram Gregor e Dole, mas porque a feitiaria como feita e pensada no Alto Xingu um aspecto
A autora alega que o caso francs distingue-se, justamente, dos estudos africanos em que, como afima Midletton, o feiticeiro algum socialmente prximo. Mas ela nota tambm que os enfeitiados sempre comeam desconfiando das pessoas mais prximas, enquanto o desenfeitiador se empenha em apontar que os culpados so na verdade desconhecidos (vizinhos a posteriori).
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integral do processo de identificao que a produo daquele corpo social implica. No estou com isso apontando um lado positivo da feitiaria, o que me pareceria extremamente distanciado da experincia nativa do feitio. Digo que ele , em sua negatividade, inerente s relaes de identidade que compem o Alto Xingu, um efeito da identidade que serve como comentrio sobre o que pode haver de indesejvel nela. A feitiaria expressa a diferena interna porque, como sugere Coelho de Souza, a transformao de povos inimigos em parceiros de trocas matrimoniais no podia nunca ser tomada como definitiva, e alm disso aparecia muitas vezes como uma questo de ponto de vista. Este processo de transformao em xinguano no um evento histrico isolado, mas um de contnua recriao, atravs de tcnicas de fabricao corporal, da vida ritual e das relaes cotidianas, sendo nestas onde o resultado da constituio fsica e moral de um xinguano como xinguano tambm posto prova. Esta tese trata da vida ritual xinguana muito brevemente, j que o foco recai sobre a feitiaria, que o anti-ritual, o que previne a realizao de rituais, justamente. Mas o ponto que desejo enfatizar que tanto no rito quanto nas tcnicas de fabricao corporal, o tornar-se xinguano se faz atravs da relao com outros, sobretudo no humanos mas tambm brancos, que so a origem dos atributos pessoais e bens de valor que circulam em seguida como conectores das redes de parentes. Sugiro que a diferena interna ao corpo social xinguano que a feitiaria revela em parte resultado desses processos, e do risco que eles engendram de tornar-se outro. A feitiaria no seria, como se afirma para a guerra entre alguns povos amaznicos (como os tupi quinhentistas e Arawet descritos em Viveiros de Castro 1986, os Parakan em Fausto 2001, os Jvaro em Tayor 2003) o instrumento de absoro de potncia estrangeira, aqui aparentemente desempenhados pelos rituais de cura (cf. Barcelos Neto 2004, Sztutman 2005, 222-3) e tcnicas de fabricao corporal. Ela daria apenas evidncia de que
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esse processo no se deu a contento, e as alianas erradas com a alteridade foram feitas. Num plano sociolgico, contudo, a feitiaria no est associada ao excesso ou descontrole da relao com os outros no xinguanos/no humanos, mais ao excesso de proximidade com o mesmo xinguanos. nesse sentido que vejo-a como efeito da identidade, inevitavelmente produzida a contrapelo do aparentamento. No apenas a diferena internalizada, mas a diferena produzida pela internalidade. Meu esforo maior foi no sentido de produzir uma etnografia do feitio, ou a partir do feitio, como pensado e vivido pelas pessoas com quem convivi. Comparaes com a literatura amazonista e com a antropologia produzida alhures so aqui mais indicadas que desenvolvidas: espero poder persegui-las com maior afinco num futuro prximo. No entanto, preciso deixar claro que este trabalho se apia, em seus pressupostos bsicos, em alguns desenvolvimentos da etnologia amaznica das ltimas quatro dcadas, sobretudo na crtica aplicao das noes ocidentais biolgicas de corpo e parentesco na descrio de cosmologias no ocidentais. A influncia da literatura melanesista recente tambm talvez se faa notar. Sem me debruar sobre as trajetorias terica dos autores, segui algumas intuies produzidas naquele solo etnogrfico que me pareceram prolficas para a descrio aqui proposta. Vejo, por exemplo, a insistncia de Strathern (1988) quanto ao papel constitutivo da troca sobre os termos de uma relao como um caminho interessante para a conceitualizao da figura do dono xinguano enquanto sujeito individual ou coletivo definido em termos daquilo que pode fazer circular. Essa perspectiva nos permite, em primeiro lugar, no essencializar os grupos tnicos que compem o sistema xinguano, tomando sua existncia como um objeto da descrio. E, segundo, explicar a necessidade de constante reafirmao das relaes de identidade atravs das quais se compem as parentelas, corpos coletivos de natureza altamente instvel. O problema antropolgico de
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definio do objeto de estudo estaria, assim, em continuidade com um problema indgena de definio de corpos de parentes. As consideraes de Wagner (1977) acerca da aliana matrimonial como um corte sobre relaes precedentes, a partir do qual linhagens se constituem enquanto tais antecipando o que Strathern iria afirmar sobre da circulao de objetos me ajudaram a pensar como o feitio poderia incidir sobre relaes de parentesco via aliana, isto , dar-se entre parentes tornados oponentes pelo matrimnio. Mas estas foram influncia difusas, mais que apoios tericos, sobre as quais preferi no me deter. Com um pouco mais de preciso, ou com uma reflexo mais demorada, procurei situar este trabalho na literatura sobre a regio etnogrfica onde se deu a pesquisa.
I.OsAwetinoAltoXingu
Os Aweti s vezes dizem de si mesmos que so um povo pequeno, ou povo pobre. As implicaes de cada uma dessas adjetivaes so um pouco distintas, mas esto relacionadas. Os povos pequenos do Xingu, porque so pequenos (em populao), recebem menos ateno de fora: da organizao indgena que controla o sistema de sade, dos polticos locais de quem esperam que construam escolas ou postos de sade, abram estradas ou forneam bens materiais, dos turistas e antroplogos que levam presentes e dinheiro aldeia. Mas no , ou no principalmente, falta de bens de fora que se referem ao falar de sua pobreza. Falam que so pobres, por exemplo, pelo fato de no terem flautas karytu (flautas que no podem ser vistas por mulheres) em sua aldeia. E se no tm flautas, explicam, porque faz-las sai muito caro: um servio que deve ser pago, como diversos servios no Alto Xingu, com bens de alto valor, entre
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os quais se incluem, hoje em dia, no apenas objetos tradicionais como colares de caramujo e panelas de cermica, mas tambm bens industrializados, como colares de mianga, panelas e bacias de alumnio, eletrodomsticos etc. A ausncia das flautas pode, assim, em alguma medida, ser creditada ausncia de afluxo de bens estrangeiros. Flautas so espritos, de modo que ter flautas na aldeia significa manter permanentemente estes espritos entre si, os quais devem ser periodicamente alimentados com grandes quantidades de comida oferecida ritualmente. Isso tambm significa que as flautas so trabalhosas de manter, e tambm est relacionado ao fato de que um povo pequeno tem menor contingente produtivo para bancar rituais importantes. Alm disso, a prpria aprendizagem dos rituais hoje em dia fortemente mediada por objetos apreendidos fora, como gravadores, e por gente que vem de fora, como as ONGs e antroplogos que implantam programas de registro lingustico e musical, escolas de cantos rituais, coletneas de mitos, vdeos etc. Mais uma vez, o pequeno afluxo de coisas de fora tm como efeito o menor afluxo de coisas da tradio. Por outro lado, um povo com menos tradio preservada um povo menos interessante para as pessoas de fora. Menos antroplogos, menos miangas, menos gravadores, menos flautas; menos gente, menos apoio politico, menos barcos, menos antroplogos (que no tm como chegar na aldeia); menos gente, menos especialistas rituais, menos famlia para produzir comida ritual, menos festas intercomunitrias, menos visitas de polticos. Pobre e pequeno, por fim, querem dizer a mesma coisa: menos relaes que possibilitem novas relaes, seja entre coaldeos, seja destes com os seres no humanos cuja presena em sua vida crucial, ou destes com os outros xinguanos, e com os variados tipos de brancos cuja presena em sua vida parece ter-se tornado tambm imprescindvel. Quando pessoas na aldeia me falavam sobre ser mais ou menos xinguano, a respeito de si
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mesmos, de seus vizinhos xinguanos ou de ndios no xinguanos (este ltimos genericamente desigados waraju), os comentrio giravam sempre em torno de uma dessas trs caractersticas: a dieta, a ornamentao corporal, os rituais. Dizia-se muito, por exemplo, que os Kamayur comem qualquer coisa, porque onde vivem no tem peixe, a protena bsica da dieta xinguana, que exclui a maioria das carnes de caa; tampouco tm roa, porque so preguiosos. Ou, lembrando da transformao dos Ikpeng de inimigos a ndios iguais aos xinguanos, comentavam como agora as mulheres l tm o cabelo cortado moda xinguana. Sobre o mesmo processo Ikpeng, falavam sobre os rituais xinguanos que esto aprendendo. O xamanismo, em contrapartida, no lhes parece uma tcnica distintiva de seu modo de vida; quanto feitiaria, h um modo tipicamente xinguano de faz-la, sem dvida, o que no significa que outros povos no tenham os seus feitios, inclusive os brancos. Os Aweti consideram-se plenamente integrantes do Alto Xingu, mas sua viso no necessariamente compartilhada por outros povos xinguanos: enquanto eles prprios falavam sobre perda de conhecimentos com a morte dos especialistas rituais, um chefe Mehinaku que tive oportunidade de conhecer afirmava que os Aweti nunca haviam chegado a possuir tais conhecimentos e nunca haviam sido grandes lutadores de huka-huka, o esporte onipresente em todos os rituais que congregam aldeias xinguanas, smbolo da competio pacifista que substituiu a guerra entre essas populaes. Em todo caso, esta uma etnografia de uma populao marginal dentro da unidade do qual faz parte, ou melhor dizendo, de uma populao que se v e vista como marginal dentro de uma unidade englobante. Isso pode significar um vantagem, permitindo-nos distinguir com maior clareza certos processos obscurecidos nos grupos mais centrais, maiores e mais ricos. Trocando em midos, a feitiaria e outros processos disruptivos talvez sobressaltem vista pelo fato do ritual e outros mecanismos de estabilizao poltica e
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acumulao de poder estarem enfraquecidos entre os Aweti. Isso deve responder em parte pelo vis clastreano, ou anti-estatal, desta tese, mas desejo assumir, por outro lado, a responsabilidade pelo que segue, ao invs de creditar tudo ao material que tinha em mos. Este o momento de admitir que muito do que escrevi foi no sentido de questionar a imagem de um Alto Xingu pr-estatal que vem sendo projetada pelas interpretaes de Heckenbeger (2000, 2000b, 2005) a partir de uma pesquisa arqueolgica e etnolgica. Os mritos do seu estudo para o conhecimento que temos da pr-histria xinguana so indiscutveis, o que evidenciado pelas referncias constantes feitas ao seu trabalho por quem pesquisa na rea atualmente (inclusive o presente trabalho). Tampouco me vejo na posio de questionar suas interpretaes sobre evidncias arqueolgicas. Mas a nfase do autor nos mecanismos de acumulao de prestgio, de crescente distino hierrquica e estratificao social, sua comparao do sistema poltico xinguano s chefaturas polinsias (onde princpios de descendncia parecem ter sido realmente operantes, o que no pode ser comprovado a respeito do Alto Xingu do passado, e absolutamente no se verifica hoje) e sobretudo as inferncias que faz do que poderia ter sido o Alto Xingu no fosse o contato, me motivaram a procurar descrever os mecanismos contrrios que podem explicar como as distines hierrquicas e a concentrao de poder podem ser limitados, a meu ver, por razes inerentes ao universo em questo, e serem apenas creditadas a aspectos contingenciais. O problema dessa escritura reativa que me levou muitas vezes a ignorar ou subavaliar a distino entre os xinguanos que, inegavelmente, possuem poderosos mecanismos de estabilizao das distines hierrquicas, e outros povos amaznicos conhecidos por um forte vetor centrfugo que conjura desde sempre tais estabilizaes (cf. Sztutman 2005). Ainda, em reao ao papel excessivo conferido poltica nas anlises sobre feitiaria xinguana, a prpria
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descrio do fenmeno poltico foi reduzida aqui. Este trabalho poderia ento ser definido, talvez, como descrio micropoltica dos vetores centrfugos da socialidade xinguana. Como aludi acima, os trabalhos de Bastos (1984/85, 1987/88/89, 1989) sobre os Kamayur so um marco no sentido de explorar o dissenso e a agressividade como traos inerentes ao cosmos xinguano. O que me parece mais valioso em seu trabalho no o que revela sobre o processo histrico de formao do Alto Xingu, mas o que demonstra quanto s fronteiras das unidades que o compem os grupos lingusticos ou grupos locais, at ento tratados como entidades monolticas. O que se v claramente atravs da obra de Bastos que no apenas a sociedade xinguana aberta por mecanismos de incluso e excluso de corpos sociais, como tambm as unidades que ela engloba so abertas e contingenciais, o que significa dizer, internamente divisveis. Bastos demonstra que o coletivo Kamayur nada tem de homogneo, em primeiro lugar por ser o resultado histrico de um amlgama de variados contingentes tupi. Mas sua descrio nos permite entender que a alteridade interna quele grupo no se deve apenas ao fator histrico, sendo tambm resultado de uma dinmica inerente s relaes: de fato os temas do cime conjugal e da disputa por mulheres, importantes para o desenvolvimento de meu argumento (cf. cap 5), so centrais em sua tese sobre o ritual do Jawari (Bastos 1989). Que as aldeias xinguanas so internamente divididas por divergncias polticas j havia sido bastante bem descrito por Basso (1969, 1973) a respeito dos Kalapalo, mas a etnografia de Bastos permite ver que tais oposies no obedecem fronteiras grupais, dado que parentelas tambm atravessam o grupos locais e lingusticos. Com isso somos obrigados a perceber o carter no apenas contingencial mas tambm contextual dos corpos sociais, sejam os grupos xinguanos, seja o prprio Alto Xingu enquanto unidade englobante. E se tais unidades no so autoevidentes, se Kamayur no uma unidade tnica, lingustica ou poltica, mas se s vezes aparece
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assim, os processos pelos quais identidades e diferenas so continuamente criadas emergem como objetos a descrever. H um ponto em que talvez discorde de Bastos. O autor sugere que o pacifismo xinguano seria mais produto do contato que expresso de um ethos autctone: os irmos Villas-Boas teriam instigado a paz (como de fato se deu, por exemplo, no caso da pacificao dos Txico, que foram a um s tempo pacificados para os brancos e para os xinguanos, isto , xinguanizados) como estratgia de sobrevivncia aos grupos indgenas que j estavam e aos que foram trazidos para aquela rea delimitada sob controle do Estado brasileiro (Bastos 1989, 551). A prpria configurao do que conhecemos como Alto Xingu seria, sustenta Bastos, o resultado do congelamento de relaes ora de aliana, mas tambm frequentemente belicosas, sobretudo na disputa por terras. No h dvida de que isso seja em parte verdade, e de que a criao da rea indgena tenha tido profundos efeitos no quadro que conhecemos hoje, sobretudo talvez no sentido de sua cristalizao e das tentativas de excluso da violncia interna, o que visvel sobretudo na condenao moral da execuo de feiticeiros5. Ainda assim, seria distanciar-se demais da viso que os xinguanos tm de si mesmo negar seja seu desejo de pertencimento a uma comunidade de fronteiras mais ou menos definidas, o que no significa fechadas, seja a definio desta sociedade em termos morais, pela negao da guerra. Todos os povos xinguanos possuem um termo que os diferencia dos demais ndios e brancos com quem esto em relao, sendo ao mesmo tempo diferente dos termos que usam para designar subgrupos lingusticos e locais dentro de tal comunidade. No importa se este termo ora aplicado a uns ora negado a outros, o fato de sua existncia diz respeito ao reconhecimento nativo de uma coletividade que no poderia ser pura
Que no chegou a se tornar um caso de policia, como registra Stasch (2001) para os Korowai na Nova Guin.
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fico estrangeira. Mais importante, se a interveno estatal incentivou a incluso e a permanncia de determinados contingentes no coletivo, essa incluso sempre pensada pelos xinguanos em termos de pacificao: tornar-se xinguano abrir mo da violncia. Os xinguanos, diz o mito de origens registrado por Heckenberger, recusaram a cabaa de sangue oferecida pelo demiurgo, vertida pelos brancos e demais ndios. por isso que os xinguanos so pacficos, brancos e ndios violentos (2004: 182). Imagino tambm que o projeto cosmopolita dos VillasBoas para o Xingu foi enormemente ajudado por condies que j estavam l: o pacifismo j devia estar no horizonte de pelo menos alguns daqueles grupos. Com isso quero dizer que a existncia de coletivos tipo Alto Xingu, Kamayur ou Aweti no pode ser creditada completamente a aspectos histricos, ainda que estes devam se levados em conta, e que tampouco devemos imagin-los como meros constructos antropolgicos ou coisa similar, uma vez que os vemos ser a todo momento mobilizados por sujeitos que a eles se identificam. O que nos resta descrever os processos atravs dos quais eles podem se constituir, assim como os processos contra os quais se constituem, ou os contra-processos que sua constituio engendra. A feitiaria me parece oferecer um ponto de vista privilegiado para tanto porque, como sugeri, ela incide sobre corpos identitrios tipo Aweti e Xinguano denunciando a proximidade como um problema, e produzindo diferena. Mas a imagem projetada por Bastos, sua nfase na diferena e na diferenciao interna, e sua insistncia na necessidade de uma viso diacrnica (seguindo a intuio crucial de Menget) do conjunto xinguano tm alta relevncia para entendermos o que se passa hoje na regio. Desde os primeiros relatos de que dispomos sobre os povos xinguanos, as publicaes de Steinen, cada grupo lingustico parecia corresponder a um grupo local. As etnografias de que dispomos sobre a rea, anteriores e posteriores criao do PIX, revelam a mesma equao: uma lngua = uma
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aldeia. Sabemos que na dcada de 50 sequncias de epidemia provocadas pela intensificao do contato com o mundo branco levaram a populao xinguana a seu mnimo. Os Aweti neste momento foram reduzidos de 80, na dcada de 20, a 23 indivduos, enquanto grupos mais populosos, como os Kamayur, passaram de 240 nos anos 40 a 120, em 19546. Mas sabemos tambm pelos estudos arqueolgicos de Heckenberger, que o padro de ocupao na rea j foi de grupos locais muito mais populosos do que os atuais, formados por aldeias circulares com diversos anis de casas ao redor a praa central, enquanto hoje apenas as aldeias maiores, como Kuikuro e Kalapalo, possuem algo similar. Baseado nestas evidncias, o autor conclui que a forma de organizao poltica dos xinguanos foi drasticamente afetada, ainda que no alterada em sua natureza7, por perdas populacionais que antecedem em muito aos primeiros registros sobre a regio. Antes da chegada do branco, chegaram as doenas do branco, provocando uma baixa demogrfica responsvel pela configurao j encontrada por Steinen em fins do sculo XIX, e aparentemente mantida at a chegada dos irmos Villas-Boas, em meados do sculo XX (Heckenberger 2000, 2000b). Os traos fundamentais dessa organizao poltica cujo contato afeta, mas no altera, segundo Heckenberger, seriam a ordenao hierrquica da sociedade baseada na transmisso agntica do status de chefia, a centralizao do poder e a ordenao hierrquica dos grupos locais em torno de uma aldeia me e seus satlites, alm da relao com grupos distintos em bases pacficas este ultimo aspecto indicado pela existncia de grandes estradas ligando as aldeias, sinal de que as relaes eram to intensas quanto amistosas (idem, 2005).
Estes e demais dados relativos populao xinguana foram retirados da enciclopdia on line Povos Indgenas no Brasil. 7 Natureza esta que seria marca de uma matriz aruak, compartilhada com os povos que foram o sistema multilngue do Alto Rio Negro, no noroeste amaznico. Os trabalhos de Hekenberger supracitados desenvolvem o tema, tambm explorado na coletnia de Hill e Santos-Granero (2002). Em minha dissertao de mestrado (Figueiredo 2006) apresento com mais detalhe esa discusso.
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A populao atual da regio aumentou consideravelmente. Dados de 2006 apontavam para os Kalapalo em torno de 500 pessoas, para os Kuikuro cerca de 450 indivduos, Waur 300, Kamayur 490, e os Aweti somam cerca de 200, entre as duas principais aldeias e indivduos dispersos (ver abaixo). Com isso algumas aldeias como Kalapalo e Kuikuro contam um nmero considervel de moradores, mas o que se observa desde do anos 2000 um processo de multiplicao de aldeias, com cerca de cinco grupos locais identificados como Kalapalo, trs Kuikuro, dois Mehinaku, dois Wauza, dois Aweti, dois Aweti-Kamayur, e conversas sobre a iminente fisso das aldeias maiores sempre iminente. Essas fisses so sempre, at onde tenho conhecimento, motivadas por casos de feitiaria. Isso significa que as aldeias novas esto em geral em relao de oposio com as aldeias originais, e no se ordenam em termos hierrquicos como satlites da aldeia principal. No caso Aweti, um grupo comparativamente pequeno em termos populacionais, duas aldeias novas foram originadas a partir da aldeia principal em menos de dez anos: Saido e Mirassol (esta ltima Aweti-Kamayur, e pelo pouco tempo de sua formao no sei dizer se considerada pela vizinhana xinguana mais uma coisa ou outra). Nenhuma das duas aldeias novas mantm vnculos de dependncia com a aldeia de onde saram aquelas famlias, possuindo ambas autonomia poltica e ritual. Relaes entre tais aldeias so frequentes, mas flutuantes, s vezes de cooperao, s vezes extremamente tensas. O que me parece estar claro a partir do quadro atual que a centralizao da poltica xinguana constantemente abortada por dinmicas inerentes ao sistema, ainda que sejam certamente afetadas pela histria desses povos, como a introduo massiva dos bens de branco. O movimento dispersivo visto com tristeza pelos prprios xinguanos: Mirassol no tem aldeia, dizia uma vez, pelo rdio, uma moa Aweti, xingando uma ex-amiga que havia recentemente mudado para aquela nova aldeia, grupo local de uma famlia s. Sobre o novo
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aldeamento, alguns da aldeia Aweti comentavam, com piedade, que a vida l muito triste, pois no h festa, no h gente no centro no fim a tarde. Uma jovem kamayur casada entre os Aweti reclamava o mesmo a respeito desta ltima aldeia, pois estava acostumada a viver num grupo muito mais populoso e, logo, mais animado. E lembro-me tambm de uma mulher, num momento em que sua famlia estava sentindo-se alvo de feitiaria de vizinhos da aldeia, comentando comigo o fato de que havia recentemente muitas aldeia pequenas na regio: por causa do feitio que as pessoas ficam assim. No se pode prever o futuro, mas no me parece absurdo imaginarmos, baseados nessa percepo nativa de que a vida melhor em aldeias grandes, populosas, onde as pessoas podem se alegrar, que em algum momento o processo de disperso dos grupos locais seja contrabalanado por um movimento de re-unio em aldeias maiores. A prpria histria Aweti apresenta essa dinmica: tendo abandonado em massa sua aldeia na dcada de 60 - uns passando a viver no Posto Leonardo, onde tinham parentes, alguns entre os Yawalapit, onde tinham afins, outros entre os Kamayur, pelo mesmo motivo - os Aweti foram retornando, um a um, sua aldeia de origem na dcada seguinte. certo que havia a o desejo de viver entre si, pois a convivncia com afins, no se revelara to simples, mas as desconfianas sobre feitiaria que haviam motivado a partida voltarei a essa histria a seguir neste momento haviam arrefecido e sido superadas pelo desejo de viver junto. esse movimento est relacionado a um fato de que tratarei na tese, a ideia de que as disputas devem ter fim, as inimizades, no atravessar geraes, o esquecimento trabalhar em prol da coletividade. Para viver junto preciso, quanto a certas coisas, ter memria curta.
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II.Otodoesuaspartes
O kwarup um ritual funerrio realizado idealmente cerca um ano aps a morte de um chefe, criana ou jovem recluso, patrocinado por seus parentes mais prximos que, auxiliados por todo seu grupo local e mais uma aldeia selecionada para ajudar na organizao da festa8, devem prover comida aos convidados, que vm de todas (ou quase) as demais aldeias xinguanas. Gregor (1992) faz uma observao a respeito desse rito com a qual concordo: apesar de ser um ritual de celebrao da chefia, uma vez que motivado pela morte de grandes chefes (enquanto demais falecidos do perodo so celebrados a reboque), o kwarup acima de tudo uma celebrao da pax xinguana, isto , da rede formada por unidades heterogneas que compem a comunidade moral xinguana, como descreve Basso (1995). O rito celebra ao mesmo tempo a instituio da chefia e a comunidade xinguana porque a chefia o meio pelo qual essa comunidade se realiza: o chefe representativo smbolo e artfice da convivncia pacfica entre os grupos xinguanos (ver anlise de Franchetto, 1993, sobre discurso do chefe enquanto afirmao da identidade distintiva Kuikuro, e de sua posio no corpo coletivo xinguano, simultaneamente). Vale notar que, analisando a narrativa Kuikuro da chegada dos primeiros brancos, Franchetto descobre uma alternncia histrica entre chefes pacificadores e chefes vingadores guerreiros. Os Aweti, falando igualmente da chegada dos brancos (eventos da pr-histria xinguana, isto , anteriores ao relato
O que aqui chamo de festa, um evento cuja designao na lngua aweti seria tradutvel por reunio (tomoatu) apenas a etapa final de um ciclo ritual que dura diversos meses, restrito quase todo o tempo aos moradores da aldeia onde um morto celebrado. Apenas na noite anterior ao final do ciclo as aldeias convidadas chegam aldeia realizadora do ritual e dormem em acampamentos afastados do crculo de casas locais. Na madrugada seguinte os convidados fazem sua entrada na aldeia, numa dana cerimonial, qual se segue a luta do huka-huka (cujo nome remete ao som emitido pelas lutadores, e que lembra, se me permito uma comparao grosseira que a ajude o leitor a formar uma imagem mental do evento, o sum). O enviou de convidadores s aldeias que participaro dessa etapa final do ciclo do kwarup tambm extremamente ritualizado. Remeto o leitor ao trabalho de Agostinho (1974), onde se encontra uma descrio minuciosa deste ciclo, e uma anlise (com a qual no necessariamente concordo) de suas relaes de correspondncia com o mito de origem do kwarup. Franchetto (1993) analisou os discursos de chefes neste contexto ritual, a partir dos Kuikuro, e tambm Ball (2006), entre os Wauja.
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pioneiro de Steinen, em fins do sculo XIX), tambm referem-se frequentemente a chefes vingadores. Pode-se pensar que essa figura histrica do chefe violento que objetifica-conduz o grupo local contra seus inimigos reaparece hoje, transformada, no chefe idealmente pacifista que no entanto ora acusado de feiticeiro, ora executor de feiticeiros, e assim objetifica seu grupo faccional contra o restante da aldeia (sobre o chefe como executor, ver Menget 1993). Mas por ora retorno festa, e (re) instaurao (peridica) da comunidade xinguana. O objetivo do kwarup terminar o morto. Em aweti, a expresso usada, moapytewe kwatypwan, significa literalmente fazer desaparecer na forma de kwarup, sendo o termo kwatyp (cuja pronncia similar ao aportuguesamento kwarup) referente s efgies dos mortos produzidas no ritual, segmentos de troncos (yp, pau, rvore) de cerca de um metro e meio, adornados como humanos cada tronco /representa um morto especfico. Trata-se de um marco importante para o fim do luto, pois o que o rito deve realizar a definitiva expulso da alma penada do falecido para a aldeia dos mortos no cu. O mito do primeiro kwarup faz parte de uma longa saga dos gmeos demiurgos Sol e Lua, uma histria que explica tambm a origem no exatamente da unidade xinguana, mas das diferenas que ela engloba. Como farei referncia a este longo ciclo mtico em diversos momentos da tese, aproveito para resum-lo aqui, esperando com isso auxiliar a leitura do que vir. A narrativa que apresento a seguir apenas um esboo da saga de origens xinguana, no qual omito episdios importantes, pois implicariam um prolongamento excessivo do relato. Devo ainda dizer que essa histria me foi contada por dois narradores, que tinham uma discordncia profunda sobretudo em relao a seu incio um deles me dizia que jamais ouvira falar sobre a relao entre o Morcego e Wamutsini. O episdio em questo foi registrado por Agostinho (1970), que gravou-o com um narrador Aweti (provavelmente no Posto Leonardo). Quanto ao
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restante da saga, narradores divergiam sobretudo nos detalhes, que de todo modo no entram aqui alguns aparecero quando voltar a comentar trechos do mito no corpo da tese. No agreguei dados de outras verses recolhidas da narrativa, nem empreendi comparaes (ver, sobretudo, para um estudo comparativo pan-xinguano, Agostinho 1970; para uma coletnea geral, VillasBoas 1970; para uma coletnea Wauja, Schultz 1965/6; e para uma anlise comparativa intrakamayur, Serra 2006). Temo, com tudo isso, que para o leitor familiarizado com a mitologia xinguana, o que vem a seguir no representar grande acrscimo.
Tatia, o Morcego, casado com duas filhas do grande chefe das rvores, Ywawytyp (Agostinho, 1970, pg 469, registra para uma variante aweti Jatob, mas at onde sei em aweti o jatob seria matyp). A esposa mais nova o rejeita sistematicamente, mas Tatia, fazendo-se passar por seu irmo, consegue engravid-la. Nasce Wamutsini, criado por seu av Ywawytyp para ser chefe (morekwat), pois era filho e neto de chefes. Wamutsini cresce, e d incio a uma srie de tentativas de fazer gente de pau. Ele faz sua esposa de ywawytyp, mas no faz nela um tero, de modo que a moa no pode ter filhos. Por fim Wamutsini confecciona seis filhas, duas de cada tipo de madeira. Como elas no tm cabelo, vai buscar palha na beira do rio. Essa palha a fibra do arco do chefe jaguar Itsumaret, um ser muito antigo que sempre existiu (Wamutsini criana, perto dele, nota um narrador). os jaguares descobrem Wamutsini e para no ser devorado este promete suas filhas em casamento ao jaguar. De volta sua casa termina as filhas de madeira, dando-lhes cabelo (uma tinha cabelo cor de palha, o das outras pintou de negro) e chamando dois homensrvore para fazerem nelas o buraco da vagina. Wamutsini envia suas filhas, das quais a mais velha chama-se Tanumakalu, aldeia de Isumaret. Apenas Tanumakalu consegue chegar aldeia, pois cada uma de suas irms se perde no caminho por um motivo, seduzida por seres da floresta que vo encontrando. Por engano, Tanumakalu casa-se com o tio de Itsumaret, o Lobo-Guar, um homem pobre sem roa e muito feio. Itsumaret consegue recuperar sua noiva predestinada. Nesse tempo os jaguares caavam os humanos, que viviam no campo volta de cupinzeiros, como se fossem porcos. Tanumakalo consegue convencer o marido a no
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fazer mais isso. Certo dia quando ele no est em casa, ela assassinada por sua sogra jaguar, Uperiru, reagindo ao que supe erroneamente ter sido uma falta grave de respeito da nora. Tanumakalu estava grvida de gmeos, Sol e Lua Kwat e Taty, na lngua aweti. Eles haviam sido formados pela ponta dupla da flecha de Itsumaret que ela introduzira pela vagina. Sabendo, porque de tudo sabe, da morte de sua filha, Wamutsini viaja ao Moren durante a noite, a desenterra e retira os gmeos de seu ventre, colocando duas aves no lugar. Mais tarde Itsumaret far o mesmo, tirando da barriga da morta as aves que cria como se fossem seus filhos at dar-se conta do engano. Os gmeos crescem no Myren, aldeia de Wamutsini, e muito rpido tornam-se dois insuportveis meninos chores pedindo comida ao av sem parar. Enfastiado com os netos pedintes, Wamutsini manda-os aldeia do pai Itsumaret. Kwat e Taty passam um perodo entre as duas aldeias, at que um dia, quando esto no Myren, Wamutsini os manda buscarem amendoim no campo, para que parem de lhe pedir comida. O amendoim plantado por Kujatirik (provavelmente a ema), que flagrando os gmeos que lhe roubam a plantao, conta-lhes a verdade sobre sua me, que at ento ignoravam: que fora morta pela sogra jaguar. Da se segue que Kwat e Taty iro se vingar primeiro da av, que fora exilada pelo filho Itsumaret e vivia sozinha numa cabana na floresta rodeada por vespeiros, abacaxis, e outras plantas espinhentas. ao morrer, a velha solta peidos letais que atingem o nariz de Taty, modelando-o perfeitamente, enquanto Kwat permanece com um feio nariz adunco. Em seguida os gmeos tentam desenterrar a me na aldeia de Itsumaret, mas muito tempo havia passado e ela j no tinha mais carne, de modo que a ressurreio impossvel. Neste momento, choram longamente sua morte, inventando com isso todas as lnguas xinguanas e outras existentes. E ento decidem realizar um kwarup para ela, homenageando-a, na aldeia do pai. O povo do jaguar anfitrio da festa, e os peixes convidados. A narrativa do primeiro kwarup extremamente longa e intrincada, e explica a origem de diversos peixes, que a ganharam as caractersticas que tm hoje e deixaram de ser gente, tornando-se definitivamente animais. Kwat mostra-se um adversrio de luta desonesto e um anfitrio invejoso, que tenta se apropriar dos adornos corporais de seus convidados. A festa termina com a chegada de um grupo de ariranhas, atrasadas, que vinham matar os peixes e terminam sendo mortas pelos gmeos, que as enganam dizendo que vo furar suas orelhas, mas enfiam-lhes flechas pelo nus (a furao de
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orelhas dos meninos d-se idealmente na sequncia do trmino do kwarup). Kwat e Taty desejam matar seu pai, Itsumaret, como vingana pelo assassinato de Tanumakalu. Eles fazem flechas e, soprando-as com fumaa de tabaco, transformam-nas em gente. As flechas invadem a aldeia das onas e promovem uma chacina, mas Itsumaret poupado e consegue fugir para o cu. Essas flechas so a origem dos humanos atuais. Kwat distribui diversos bens a cada grupo de pessoasflechas, que assim se diferenciam formando os povos de hoje. De volta ao Myren, Kwat e Taty iniciam um processo de instaurao da ordem temporal atual, atravs da conquista de diversos bens, como a ereo, os peidos, o cime. Mas frente, d-se o episdio de origem do sol, astro iluminador, a partir das penas vermelhas que Kwat consegue roubar ao urubu rei.
O que me interessa por hora pensar o que o mito e o ritual a ele associado nos dizem sobre a natureza das unidades xinguanas. A mitologia d conta do processo de criao, primeiro, de uma humanidade comum9 e, depois, de diferenas produzidas tanto pelas lnguas (tiinku, no lamento fnebre) quanto pelos objetos possudos por cada grupo, que so no mito os bens (kat ou kazamene), sobretudo as armas, distribudas pelo demiurgo Sol a todos os povos que cria a partir da transformao de flechas em gente. A mitologia define entidades, assim, a partir das coisas que possuem, objetos que so sempre mediadores de relaes sejam pacficas, na troca (inclusive lingustica), sejam no pacficas, na guerra, j que os povos so distinguidos por suas armas. Existem vrias verses sobre o episdio da distribuio de bens. Nas narrativas reunidas
Note-se, contudo, que diversos critrios de diferenciao vo sendo paulatinamente introduzidos no processo de criao dos humanos: primeiro, os paus diversos que Wamutsini utiliza para confeccionar suas filhas; depois, os cabelos distintos que lhes d; na verso coletada por Agostinho (1970), o narrador tambm enfatiza que as flechas que Kwat fabrica e transforma em gente tambm so feitas e madeiras diversas, o que explica as diferenas fsicas entre os povos. os gmeos a todo momento tambm se prestam diferenciao, um de nariz bonito e outro feito, um de bom temperamento o outro mau sempre Kwat, o mais velho desempenhando o pior papel.
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por Agostinho (1970), observa-se algumas constantes, como a atribuio da cermica aos Wauja, do arco preto aos Kamayur, dos colares de caramujo aos povos karib, mas note-se que em muitas verses os objetos que cada grupo toma para si no so necessariamente exclusivos ou distintivos o arco branco, por exemplo seria de muitos povos, a borduna, as penas de tucano tambm. Algumas verses enfatizam apenas a distribuio entre xinguanos e a distino entre estes, em geral, e os brancos, que pegam a espingarda, enquanto a verso Aweti que Agostinho toma como base refere-se aos waraju (modo como os Aweti referem-se aos ndios no xinguanos, ou ndios bravos10): Yudj, Kisdje, Kayap, Munduruk e Ikpeng. J ouvi tambm narrativas da mesma histria em que a nica oposio relevante, no que concerne distribuio de bens pelo demiurgo, se d entre os ndios que pegam flechas e bordunas, e os brancos que pegam armas de fogo. Antigamente, segundo essa verso, os ndios tinham armas e os brancos flechas; a diferena j existia, apenas foi invertida. O mito parece prestar-se, assim, marcao de diversos nveis de diferenas. De qualquer maneira, a distribuio dos objetos evocada sempre no sentido de explicar as caractersticas de um povo, ainda que a posse de um determinado bem no implique exclusividade. Isso tem ressonncia com o que sugiro frente a respeito sobre o papel de certos objetos, enquanto mediadores de relaes, na constituio de corpos individuais e coletivos, e das conexes deste fato com a feitiaria. Assim como o kwarup tem uma longa fase domstica, e termina com a chegada dos convidados de outras aldeias, todos os ritos xinguanos (ver primeiro captulo) so primeiro realizados somente entre co-aldeos, e com o tempo terminados com a presena de convidados (for a o kwarup, normalmente apenas uma aldeia e convidada); ou seja todo rito na verdade um ciclo ritual que tem um fim, para o qual a participao dos demais xinguanos fundamental.
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Nessas reunies intergrupais, os convidados sempre participam seja como cantores, seja como tocadores de flautas, e quando o rito envolve danas entre homens e mulheres, as anfitris devem participar acompanhando os convidados. Segue-se, inevitavelmente, um sesso de lutas entre anfitries e convidados. Todo rito, portanto, promove tambm uma troca de servios rituais (cantos, msicas de flautas), ensaia uma troca de mulheres e afirma a oposio no violenta entre unidades equivalentes, atravs do esporte. A presena obrigatria da luta deixa claro justamente que, medida em que unifica, essa rede de trocas atualizada sobretudo no ritual tambm o meio de contnua distino entre as unidades xinguanas. Com a proliferao de grupos locais formados a partir do fissionamento de aldeia maiores, torna-se cada vez mais difcil acompanhar seu nmero (sobretudo dos grupos karib margem do Culuene), e por vezes tambm precisar a identidade de cada novo grupo, uma vez que diversos deles so vistos como compostos de dois contingentes lingusticos distintos. No caso Aweti, h pelo menos duas aldeias que hoje podem ser consideradas Aweti-Kamayur: Mirassol, recm-formada na cabeceiro deste rio, um afluente do Culuene, e Moren, cuja idade no sei precisar, mas que conta j com algumas dcadas, localizada na confluncia dos formadores do Xingu. No entanto a literatura j registra esse tipo de arranjo h muito, como por exemplo a aldeia Aweti-Yawalapit, ento chamada Yawarawit, encontrada por Steinen em 1886 (1940, pg 140). Casamentos inter-grupais entre falantes de lnguas distintas, no costumam representar mais do que um quarto das unies matrimoniais em um grupo local; vemos que se essa porcentagem sobe at representar a metade dos casamentos, pode gerar confuses identitrias. Seria o caso de perguntar se o fenmeno percebido do mesmo modo pelos prprios habitantes da regio, ou seja, se a idia de um grupo misturado relevante desde seu ponto de vista. A resposta est parcialmente dada pelo problema: me seria impossvel discernir que Moren um grupo Aweti-
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Kamayur se no tivesse sido assim informada pelos Aweti, j que meu contato com os habitantes daquela aldeia foi praticamente nulo ao longo da pesquisa. Por outro lado, no creio que essa mistura seja constantemente experimentada como um problema de identidade. Ao que me parece, a questo das identidades diferenciais s se coloca realmente nos rituais intercomunitrios: o que importa saber ao lado de quem o pessoal daquela aldeia nova vai participar do kwarup, o ritual funerrio que rene virtualmente todos os grupos que se autodefinem e so reconhecidos pelos demais xinguanos como xinguanos. Os alinhamentos seguem quase sempre o critrio lingustico, mas preciso considerar que uma aldeia fissionada divide sempre grupos inimigos, e a reunio pode se tornar impossvel. Quero enfatizar com isso, mais uma vez, como j disse acima ao comentar as descobertas de Bastos a respeito do coletivo Kamayur, que os grupos xinguanos no so unidades autoevidentes, dados, mas produto de um trabalho de identificao interna e diferenciao externa. Diversas etnografias sobre a regio enfatizam que a distino lingustica, bem como a especializao produtiva, no so apenas efeito natural da reunio de povos variados numa dada regio, sendo antes ativamente mantidas, o que nos leva a tom-las como meios de um projeto nativo de criao ou recriao de unidades distintas (cf. sobretudo Franchetto 1986). No se trata de negar a origem evidentemente diversa de cada grupo, ou cada aglomerado lingustico, nem os elementos especficos que podem ser apontadas como contribuies distintas de cada uma dessas coletividades ao todo que hoje conhecemos por exemplo, ritos de origem tupi, karib ou aruak. Mas meu interesse no momento foi entender mecanismos de identificao e diferenciao que levam os Aweti a considerarem-se parentes de uns e no de outros, parentes em determinadas circunstncias e no outras, distintos pela lngua ou pelo que dito mecanismos pelos quais veremos aparecer as diferenas tnicas entre os grupos xinguanos, mas tambm outras. Posso
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mesmo dizer que essas outras diferenas so aquelas das quais me ocupo nesta tese. Numa tentativa de qualific-las melhor, voltarei no ltimo captulo s distines entre unidades xinguanas, e ao modo como so criadas em contextos rituais, propondo um contraste com o que ser descrito a seguir. O fato que o foco da minha pesquisa de campo no foi histrico, e aqui sei que fico devendo, se anunciei que gostaria de contribuir para alargar o parco conhecimento que temos dos Aweti, um trabalho a ser realizado no futuro.
III.Aweti,Enumaniah
Existem hoje duas aldeias hoje reconhecidas como aweti: Tazujyt (nome de uma espcie de formiga), entre a margem esquerda do Curisevo e a margem direita do Tuatuari, e Saido (tambm conhecida como Sava ou Fumaa), margem direita do Tuatuari. A aldeia maior, Tazujyt, contava em 2008 com cerca de 80 indivduos, divididos em oito casas tradicionais, cada uma abrigando uma famlia extensa em torno de uma grande praa central. Saido comeou a ser formada em 2002 como dissidncia de Tazujyt, numa rea que fora inicialmente a fazenda de uma famlia Aweti isto , um local de roa onde seus membros passavam parte da estao seca colhendo mandioca, como costumam fazer diversas famlias xinguanas. Em 2008, Saido tinha cerca de 60 habitantes, divididos em cinco casas, num aldeia circular. A regio de Tazujyt a mesma em que Karl von den Steinen (1940) encontrou os Aweti (a que denomina Awet), em 1886. Os Aweti contam que antes de chegar ali regio habitavam um lugar chamado Para, margem direita do Curisevo, onde viviam tambm, em aldeias vizinhas, os karib Bakairi (ou Makayryza, em sua lngua) e um povo canibal chamado Urawara
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(ou Yrawara), provavelmente de lngua tupi. Num relato da histria aweti analisado por Coelho de Souza (2000), o narrador conta que os trs povos haviam ido guerrear contra os Kuikuro beira do lago Tahununu, tendo os Bakairi e Aweti decidido se mudar quando, a caminho de casa, os Urawara11 so devorados por monstros aquticos. Como lembra Coelho de Souza, Heckenberger (1996) situa a ocupao de Tahununu pelos Kuikuro num perodo anterior a 1750, o que nos permite inferir que a chegada dos Aweti regio ocupada hoje tenha se dado em fins do sculo XVIII. Os Bakairi, saindo de Para, teriam ento decidido buscar novas terras para o sul, enquanto os Aweti descem o rio rumo ao norte, at chegarem a Tsuepelu, o porto no Curisevo que utilizam at hoje. Surpreendentemente, nos comentrios de Pina de Barros (2000) histria oral Bakairi, no encontramos meno convivncia com os Aweti naquele perodo, apesar de haver referncias, nos relatos coletados pela autora, ao aldeamento de Para. Para chegar a Tsuepelo, os Aweti teriam descido pelo Curisevu, mas citam tambm diversas aldeias no Tuatuari, ao sul de sua localizao atual, por onde teriam passado no trejeto rumo ao norte. Isso significa que um grupo originrio dividiu-se, saindo de Para, uns tendo chegado direto ao Tsuepelo, outros descendo pelo rio Tuatuari. Uma aldeia neste ltimo rio, Wazatipyhy, que fica a cerca de cinco horas a remo, rio acima, de Tazujyt, ainda regularmente visitada pelos Aweti em busca de mangaba e pequi12. O nome da aldeia sugere que aquela seria
Bastos (1989, 533) registra, a partir da histria oral Kamayur, a presena de um povo tupi Wyrawat, que seriam aliados dos Aweti e Anumani (ver abaixo). O autor no teve maiores informaes sobre seu desaparecimento. 12 Como j notaram diversos autores (cf. por exemplo Basso 1973, Gregor 1977), os pequizais so uma marca de ocupao humana reconhecida pelos xinguanos. Marcam, mais do que isso, ocupaes determinadas, pois quase sempre tm dono, ainda que seja o conjunto da populao de certa aldeia do passado e no um indivduo em particular. A presena e explorao de diversas plantaes de pequi em torno da aldeia Tazujyt mais uma prova de que a rea foi intensamente habitada pelos ascendentes da populao atual. Os pequizais constrem, portanto, uma dimenso histrica e territorial dos grupos. Ao mesmo tempo, a relao com as plantaes, e com o territrio atravs de sua presena, uma que requer constante manuteno, por um motivo bastante simples: preciso limpar a mata que d acesso ao pequizeiro para coletar ali (cf. Gow 1991). Ou seja, como no caso de outros produtos de coleta explorados pelos Aweti - o aguap do qual produzem sal vegetal, por exemplo - ser dono de um pequizeiro implica, talvez tanto quanto plant-lo, limpar a rea que d acesso a ele. Os Aweti apontaram-me diversos pequizais volta
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uma antiga ocupao aruak (-pyhy ou pwihi designa stio, lugar nos idiomas aruak xinguanos), provavelmente Wauja, j que os Aweti apontam diversos aldeamentos antigos desse grupo na mesma regio. Foi quando estavam nessas aldeias do Tuatuari, dizem os Aweti, que seus antepassados decidiram pela primeira convidar os Kuikuro para festejar um kwarup. Teria sido a, portanto, que deixaram de ser bravos, para adotar o ethos pacifista xinguano, tornando-se gente, moat13. Um homem de mais ou menos 70 anos contava-me ter nascido numa aldeia chamada Japjaja, situada, como os aldeamentos antigos aweti, na margem esquerda do Tuatuari. Awakakujyt, chefe daquele aldeia, contava-me meu interlocutor, no era gente, era bravo, matador - por isso eu sou bravo, por isso ns somos todos bravos. Isso s pode ter acontecido paralelamente instalao de outro contingente prximo ao Tsuepelu, onde, em 1886, os Aweti foram encontrados por Steinen (1940, 140) j plenamente integrados ao sistema de trocas xinguanos: o viajante alemo chama a ateno para a posio central daquele grupo no sistema de trocas xinguano e para a presena de diversos estrangeiros em sua aldeia, comenta sobre uma produo artstica de mscaras notvel, mas nota tambm grande nmero de bordunas usadas para a guerra. Mas o contraste entre a descrio de Steinen e aquele do narrador aweti pode ser explicado no s pela diviso de um grupo originrio em contingentes que teriam se integrado ao sistema de trocas xinguano em momentos distintos. Temos elementos para supor tambm que, se
da aldeia abandonados por seus donos, o que significa, na prtica, impossibilitados de uso. Quem planta um pequizeiro (petiyp; yp rvore ou pau) no o faz pensando no futuro imediato, pois a rvore demora alguns anos para crescer e frutificar, mantendo-se produtivo pelo tempo de vida de uma pessoa. comum um p de pequi ser plantado por um homem em nome de seus filhos e at de seus netos: no momento mesmo de plantar ele avisa qual de seus descendentes ser o dono (itat) daquela rvore ou do pequizal (petiyp typ; typ indica multiplicidade). Alm disso, mesmo que o pequizeiro seja plantado a tempo de ser colhido no futuro por aquele que o plantou, uma rvore desse porte ultrapassa o tempo da vida humana e certamente ser lembrada e explorada sempre como a rvore de um determinado ascedente (apaj epetiyp, ange epetiyp o pequizeiro de papai, o pequizeiro de mame. 13 Este processo o tema da anlise de Coelho de Souza (2000), baseada num relato aweti que evoco aqui para complementar informaes que recebi em campo. Ver tambm o estudo de Basso (1995) sobre narrativas kuikuro que dizem respeito adoo da tica pacifista xinguans a partir de relaes belicosas com outras populaes.
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Awakakujyt nas primeiras dcadas do sculo no era ainda completamente gente, e ainda mantinha relaes hostis com grupos vizinhos que j no guerreavam entre si, poderia estar em curso a um processo de passagem da belicosidade ao pacifismo, atravs da transformao de grupos inimigos dos quais mulheres eventualmente eram capturadas em aliados de casamento (como descrito por Menget 1977 e Bastos 1989, para os Ikpeng e Kamayur, respectivamente). Aqui preciso introduzir um elemento novo na histria. Os Aweti de hoje dizem que os Aweti de verdade (awytyza ytoto) acabaram h muito tempo. Foram dizimados pelos Tonoly, que atacaram a aldeia daquele povo e matarm toda a sua populao, flechando as mulheres na vagina e os homens no umbigo. Apenas um homem Yawalapit, que vivia naquela aldeia com sua esposa Aweti (kujamenan, na condio de esposo, isto , recm-casado), e que sara para banhar-se, sobreviveu, alm de uma nica mulher Aweti, que conseguiu chegar aldeia vizinha Enumaniah e contar o que havia ocorrido. Os Enumaniah viviam perto dos Aweti, eram seus aliados e falavam uma lngua similar, mas distinta (os Aweti de verdade eram falantes de tupi, portanto). Os chefes Aweti haviam se casado entre os Enumaniah: ao me explicar essa histria um homem desenhou no cho dois crculos vizinhos que representavam as aldeias desses dois povos; no esquema traado no cho de terra, uma espcie de tnel levava de um crculo interno da aldeia Aweti diretamente aldeia Enumaniah (eram atravs de seus chefes que os Aweti se relacionavam com o exterior, portanto). Todos os que ficaram conhecidos como Aweti, e que chamei de Aweti at aqui, so na verdade descendentes de Enumaniah. Meus anfitries me contavam que os Enumaniah eram ainda um povo guerreiro enquanto os Aweti de verdade j haviam adotado a tica pacifista xinguana. Os Aweti eram gente, moat, enquanto os Enumaniah eram ainda waraju, ndios bravos. Segundo Bastos, os Kamayur afirmam que Tonory so os Ikpeng (1989, 529), mas os
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Aweti no registram tal associao, referindo-se aos Ikpeng como Txico, e a um povo distinto chamado Tonoly, hoje desaparecido. No relato recolhido por Coelho de Souza, o narrador afirma que, de Para, os Enumaniah saram junto com os Aweti, para se fixar em Tsuepelu o que leva a autora a supor que o massacre teria se dado antes do grupo chegar ao seu territrio atual. Ao contar-me essa histria, contudo, o mesmo narrador com que trabalhou Coleho de Souza comentava que o ataque dos Tonoly ocorreu quando os Aweti estavam em Ywitytyp14, regio que fica no caminho entre Tsuepelu e sua aldeia atual. Stio de um aldeia em meados do sculo XX, a rea era ento reconhecida como rea de ocupao mais antiga do grupo. Segundo a verso que escutei, no tempo do massacre dos Aweti os Enumaniah viviam na regio de Tazujyt. No caminho que leva do Tsuepelu a Tazujyt, passando por Ywitytyp, desemboca uma picada menor, conhecida como txico oapoatempap, lugar onde os Txico despontaram da mata, pois o caminho que tomaram para fazer um ataque aos Aweti/Enumaniah no passado. Podemos supor ento que os Aweti e os Enumaniah estavam reunidos em Para, de onde talvez tenham sado em levas separadas. O povo de Awakakujyt era Enumaniah, dizem os velhos de hoje, mas possvel que aqueles encontrados por Steinen fossem ainda Aweti. Existe um homem em Tazujyt reconhecido como Aweti de verdade, descendente, por linha materna, daquela nica mulher sobrevivente ao massacre. Poderamos imaginar que, como nota Bastos a respeito do Kamayur, essa origem diversa seria evocada no contexto de disputas internas da aldeia. De fato, este nico aweti de verdade tambm um dos chefes em disputa pela liderana alde, e sua descendncia por vezes lembrado por ele, e por seu oponente, um Enumaniah. Por outro lado, este homem tornou-se chefe substituindo seu pai, um Enumaniah, e
O termo designa o cinto de palha usado pelas mulheres, pois naquele local teria ocorrido uma cerimnia de iniciao feminina ritual hoje abandona pelos Aweti.
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seus principais oponentes nas ltimas dcadas tm a mesma origem de seus ascendentes: todos saram de Japjaja, a aldeia de Wakakujyt, o chefe guerreiro. Como todos os Aweti de hoje se dizem Enumaniah, com aquela nica exceo, as clivagens internas ao grupo acabam sendo remetidas a outras diferenas. Por economia de linguagem, salvo nos momentos em que a distino se mostrar relevante, seguirei me referindo ao povo com quem convivi como os Aweti. assim que, mais geralmente, costumam se referir a si mesmos: awytyza, awytyza tiinku, awytyza etam, os Aweti, a lngua aweti, a aldeia Aweti. Logo que nasceu em Japjaja, contava-me aquele senhor, todos os habitantes da aldeia mudaram-se para Tazujyt, menos sua me que havia acabado de parir, tendo se juntado mais tarde ao grupo. provvel, ento, que nas primeiras dcadas do sculo XX os contingentes divididos aps a sada de Para tenham comeado a se reunir na regio da aldeia atual. De um local prximo ao que esto hoje, uma aldeia chamada Wemuluj, um grupo Aweti teria se mudado na dcada de 1940 (perodo da infncia do narrador que me explicou essa passagem), para Ywitytyp o local onde, como disse, teria ocorrido o massacre dos Aweti de verdade pelos Tonoly, certamente numa ocupao anterior. Os Aweti contam de uma aldeia chefiada por uma mulher aweti de verdade, sem marido e sem filhos, e que rejeitava todos os seus pretendentes. Chamava-se Maits. Algumas pessoas afirmavam que essa era uma histria muito antiga, anterior ao tempo dos seus avs, enquanto outros diziam que a aldeia de Maits fora contempornea a uma ocupao dos Aweti (com Enumaniah?) em Ywitytyp. Na narrativa recolhida por Coelho de Souza, a aldeia de Maits aparece num tempo em que os brancos j haviam chegado de avio ao Xingu provavelmente, o perodo da expedio Roncador-Xingu, no incio do anos 40. Ainda segundo o relato transcrito por Coelho de Souza, Maits teria substitudo o grande chefe Awajatu, av do
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atual chefe de Tazujyt. Nesse mesmo perodo haveria ainda um pequeno grupo chefiado por um homem de nome Morep, ao qual teriam se juntado os habitantes da aldeia de Maits apos a morte desta. Aps a morte de Morep o grupo segue ento para Ywitytyp (Coelho de Souza, 2000, 366). Apesar da impreciso desses dados, o que se percebe a existncia de diversos grupos locais simultneos, fundindo-se mas eventualmente fissionando-se (o grupo de Morep parece ter se formado como dissidncia da aldeia de Maits) na primeira metade do sculo. Ywitytyp era uma aldeia grande, conta-se, com tantas casas a ponto de terem de ser construdas uma atrs da outra, em anis concntricos em torno da praa central. Nesta aldeia morreu um grande chefe Aweti, Mawalaj, sempre lembrado pelos de hoje como um chefe de verdade (morekwat ytoto). Conta-se que havia pedido a um homem que no comesse a carne de pequi que estava sendo guardada pelos aldees para a cerimnia de iniciao dos meninos, entre os quais estav seu neto; foi enfeitiado pelo outro, por vingana. Com sua morte, justamente o feiticeiro que torna-se chefe num novo aldeamento, quando os Aweti voltam margem esquerda do Tuatuari, em Typakajuti.
III.iTempodasepidemias;aalianacomosyawalapit
dessa ltima aldeia que se inicia um xodo para o Posto Leonardo, provavelmente em meados da dcada de 1950. O chefe do grupo adoece gravemente, e levado por seu genro para ser tratado pelos brancos, sendo ento seguido por seu irmo. Num outro contexto, algumas pessoas me explicavam que a gripe, o sarampo, e outras doenas de branco so terrveis feitios que, manipulados pelos ndios (amarrados, ver cap. 2), matam muita gente um indcio de que a mudana da famlia do chefe no teria sido apenas em busca de tratamento mdico, mas tambm
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um movimento fissional. Apenas dois irmos permanecem com suas famlias em Typakajuti. Logo o Posto da FUNAI foi assolado por uma grande epidemia de sarampo: os Aweti acabaram, os xinguanos acabaram. Passado o auge da epidemia, o ltimo homem que havia ficado em Typakajuti decide mudar-se para a aldeia Yawalapit, grupo de sua esposa, de modo que a rea ocupada pelos Aweti completamente abandonada neste momento entre fins dos anos 50 e incio dos 60. Este homem passa entre os afins, contudo, no mais de trs anos, pois logo surgem problemas: seu filho de dois anos morre engasgado com uma espinha de peixe, ao tropear enquanto comia, e mais tarde seu pai encontra o feitio que teria provocado o acidente. A famlia patrocina ainda entre os Yawalapit um kwarup para a criana falecida, mas pouco depois um sobrinho (ZS) que fora criado como seu filho vai busc-lo, incitando-o a retornar ao territrio antigo do grupo: vamos embora, tio, teria dito, antes que eles [Yawalapit e Kamayur, que vivem na mesma rea] acabem com a gente. Com isso comea a ser refeito o grupo local Aweti em Tazujyt, agora tendo como chefe aquele que fora o ltimo a deixar a regio, e que voltava da aldeia de seus afins Yawalapit. Noto que no h meno aos ascendentes deste homem, e ao fato de terem ocupado posies de chefia, no relato recolhido por Coelho de Souza e isso no toa: o narrador da histria recolhida pela autora fora seu co-chefe, ex-genro e antagonista. Vale fazer um aparte sobre as relaes entre Aweti e Yawalapit no momento em que o futuro chefe Aweti vai viver entre eles, com seu cunhado. Este homem casara-se com uma mulher Yawalapit recebida em pagamento pela execuo, perpetrada por seu irmo, do chefe daquela aldeia, Aritana. Mais tarde um tio (no sei precisar se real ou classificatrio) da jovem yawalapit casa-se com a irm do homem Aweti em questo. Uma execuo, em suma, paga com um mulher, e este casamento logo engendra outro, quando o homem Aweti cede sua irm ao
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tio de sua esposa Yawalapit. Ora, este ltimo tem com a esposa Aweti uma filha que ir se casar com um neto (DS) de Aritana, o chefe assassinado o filho da filha deste chefe com um homem que foi tambm chefe dos Aweti. Atravs de alianas com os Aweti, portanto, duas famlias inimigas yawalapit, uma mandante da execuo de um chefe, outra dos descendentes do executado, estabelecem alianas matrimoniais. Os co-sogros aweti que se aliam atravs desse matrimnio so tambm oponentes na disputa pela chefia em sua aldeia so eles, justamente, os homens cujos filhos co-atuavam na chefia, em tensa disputa, no perodo em que iniciei minha pesquisa. assim surpreendente que, ao casar-se com uma mulher Yawalapit de um grupo inimigo aos dos chefes daquela aldeia, o irmo do executor tenha ainda podido residir ali por algum tempo. De fato, a morte de seu filho foi interpretada como vingana da famlia do chefe executado. Von den Steinen j notara um alto contingente de mulheres ywalapit casadas entre os Aweti; Zarur, pesquisando em meados de 60, nota a centralidade de um grupo de quatro de irms yawalapit na rede de parentesco Aweti. Uma dessas mulheres era justamente a esposa do homem que reabre a aldeia Aweti e torna-se chefe quando o grupo retorna do Posto Leonardo, a mulher cedida em pagamento pela execuo de Aritana. No me parece que atualmente os Yawalapit continuem sendo parceiros matrimoniais preferenciais para os Aweti, que vejo mais voltados para a reafirmao de alianas recentes entre os Mehinaku e Kamayur. possvel, assim, que a execuo do chefe daquele grupo e os casamentos ocorridos imediatamente aps aquele evento tenham marcado uma interrupo, antes que o incio, da relao entre os dois grupos. O chefe Yawalapit foi executado durante o funeral de um sobrinho, filho de irm classificatria Kamayur, pela morte do qual fora acusado (cf. Bastos 1984/85). Ora, o prprio fato dos Aweti estarem l pranteando o morto indica que j estariam honrando relaes
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estabelecidas com a famlia Yawalapit/Kamayur do falecido: quem chora um morto, mesmo vindo de longe, parente, ainda que afastado genealgica e socialmente. Podemos imaginar, pois, que no foi a execuo o que levou ao pagamento na forma de uma aliana matrimonial, como afirmei acima, mas o fato de que j haviam alianas matrimoniais estabelecidas (como sabemos atravs dos relatos de Steinen) o que criou as condies de possibilidade para a execuo15. A tentativa de restituir a relao entre as duas faces mistas aweti-yawalapiti foi rapidamente abortada: como disse, um rapaz aweti, filho de me yawalapit e pai aweti, o neto, pelo lado materno, do chefe executado, casa-se com uma mulher filha de pai yawalapit e me aweti, neta do executor do chefe. O mesmo homem casa-se tambm com a prima (MBD) dessa moa, filha do ento chefe de Tazujyt, mas a jovem morre repentinamente, e seus familiares acusam o vivo, que acaba fugindo para o Posto Leonardo. Este homem, cujo pai fora chefe de aldeia provavelmente antes da migrao massiva do grupo para o Leonardo (tendo morrido l, ou antes), assumira ento o posto de capito, ou chefe de branco, dos Aweti. com ele que Zarur chega aldeia Aweti, em 1965, sem dar-se conta revela o antroplogo que seu guia estava se valendo da situao para recuperar uma posio que havia perdido por conta da briga com o exsogro, o chefe principal da Aweti (Zarur 1975, 43-4). O guia de Zarur tambm o narrador do relato analisado por Coelho de Souza em seu artigo. Este relato apresenta uma dificuldade, pois no faz referncia partida em massa do grupo para o Leonardo, no perodo de acirramento das epidemias (momento em que j teriam sido
A anlise de Bastos dos discursos Yawalapit acerca da execuo do chefe Aritana deixa claro que o evento teve conseqncias dramaticas para aquele grupo que, aps o assassinato, dispersou-se completamente entre afins Kuikuro e Kamayur. Foi entre os Kuikuro que os Villas-Boas encontraram Paru, filho do chefe executado, o homem que tornou-se seu principal guia na rea. Esta relao rendeu quela famlia Yawalapit apoio para reconstruir sua aldeia, atravs de uma estratgia de atrao dos afins para um grupo local ento formado ao lado do Posto Leonardo (Bastos 1987/88/89).
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reduzidos a um nico grupo local), mas apenas partida isolada deste homem no momento em que falece sua segunda esposa (a sobrinha, ZD, do chefe Aweti que era pai da esposa falecida anteriormente). Foi dele tambm que ouvi parte da histria relatada aqui. Contando-me passagens de sua vida, este mesmo homem comentara que ainda no era casado quando os Aweti retornaram do Posto Leonardo. Ele teria partido da aldeia ento no uma, mas diversas vezes: primeiro acompanhando o chefe Aweti doente, sendo seu pai naquele momento, conforme narrou a Coelho de Souza, o segundo chefe da aldeia. Os Aweti foram retornando aos poucos a seu territrio original, convocando parentes que haviam se dispersado indo viver entre afins (dois homens casados entre os kamayur) e no Posto Leonardo. Algum tempo antes da chegada de Zarur, portanto, o narrador deve ter retornado a Tazujyt, casado-se com a filha e a sobrinha do chefe, e assumido o posto que fora de seu pai, tornando-se chefe de branco. Com a morte de uma das esposas, contudo, e a briga decorrente com o ex-sogro, voltou ao Posto, onde foi encontrado por Zarur. Ele retorna ento aldeia Aweti, mas com a morte de sua segunda esposa parte dessa vez em direo aldeia Kamayur, onde suas irms se haviam casado, e desposa uma viva (de um homem cuja morte fora creditada a um feitio do FF de seu novo marido Aweti).
III.iiNovochefe;Saido
Nas dcadas seguintes os Aweti permanecem com apenas um chefe, casado com duas mulheres. Uma, aquela Yawalapit dada em troca da execuo, teve quatro filhas, das quais apenas uma ainda reside entre os Aweti. A outra esposa do chefe era a nica Aweti de verdade do grupo, descendente da remanescente do ataque dos Tonoly. Dos diversos filhos que teve, apenas o primognito e uma mulher esto vivos at hoje. O filho, que substituiu seu pai na chefia quando
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este faleceu em 1996, foi-me apresentado como o chefe da tradio quando cheguei aldeia. seu filho quem atualmente ocupa o cargo de chefe principal do grupo. O grupo continuou habitando a mesma rea, transferindo a aldeia pequenas distncias, ora em direo ao Curisevu, ora em direo ao Tuatuari. Na dcada de 90, os Aweti resolvem chamar o filho primognito daquele seu antigo chefe de branco para assumir o posto que fora de seu pai. Aps a morte de sua me, quando teria cerca de sete anos, este homem mudara-se para a antiga base area so Jakar onde trabalhou e foi alfabetizado pelo pessoal da FAB. Mais tarde, chegou a estudar no interior do Mato Grosso e em So Paulo, mas numa visita ao pai terminou por casar-se com duas irms Kamayur, filhas de me Mehinaku. Quando a mais velha tinha j quatro filhos, muda-se com a famlia para o posto de vigilncia do Curisevo, passando a viver ao lado de parentes Mehinaku de suas esposas em fins dos anos 80 e incio dos 90. L contudo
permanecem pouco tempo, at que o homem chamado para retornar sua aldeia natal, na condio de chefe de branco dos Aweti. Em 2006, ele traz da aldeia Kamayur seu pai, a esposa deste a alguns irmos para viver consigo. Em 2008, por conta de crescentes tenses com os aldees, a famlia se muda para abrir uma nova aldeia, e a chefia agora ocupada por um jovem professor indgena, filho e neto dos dois ltimos chefes da tradio de Tazujyt. Em 1965, Zarur encontrara os Aweti vivendo em uma aldeia de cinco casas, com 44 pessoas. Na dcada de 1990 seriam cerca de 140 indivduos vivendo em Tazujyt, at que a morte de um recluso provoca uma fisso: os pais do rapaz, creditando a morte a feitiaria de vizinhos de aldeia, muda-se para o terreno onde mantinham j uma roa de mandioca, originando a aldeia Saido. Seguem-nos, gradualmente, seu filho primognito, que assume a chefia da aldeia nova, filhos mais novos ainda solteiros, trs filhas com seus maridos e filhos, e por fim um filho casado que havia permanecido junto ao sogro, Tazujyt, mas que com a ecloso de uma nova onda de
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acusaes entre sua famlia e seus afins acaba mudando-se. Saido ocupa uma rea bastante menor que a aldeia Tazujyt, mas contava em 2009 com nmero no to diferente de indivduos. A aldeia foi aberta no local de uma antiga ocupao Yawalapit, mais tarde cedido por este grupo aos Mehinaku, que fugiam de ataques Ikpeng, provavelmente na dcada de 60. Como a populao de Saido crescera recentemente, por conta da migrao de parentes que estavam alguns entre os Aweti, outros no Posto Leonardo, os moradores planejavam em 2008 abrir perto dali uma aldeia maior, onde as famlias pudessem viver com mais conforto. Aguardavam, no entanto, h algum tempo, o auxlio dos polticos locais que haviam prometido mandar um trator para limpar o terreno da aldeia nova. Como j mencionei, esta aldeia no mantm com Tazujty nenhuma relao de subordinao. As duas aldeias recentemente se reuniram para formar um time de futebol para os campeonatos regionais realizados no Posto Leonardo ou em Gacha do Norte, municpio ao qual esto ligadas as aldeias do Curisevo e regio do Leonardo, Saido e Aweti. Algumas ocasies de colaborao ritual entre as aldeias tambm ocorreram nos ltmos tempos. Visitando Tazujyt para participar de uma festa, o pessoal de Saido no tem o mesmo estatuto de outros convidados xinguanos mais distantes, porm tampouco so necessrios para a realizao de um rito, assim como no dependem de Tazujyt para festejar em sua aldeia, apesar de por vezes serem compelidos a reunir-se pela falta de especialistas rituais. Mas nunca associaes desse tipo acontecem sem longas deliberaes e negociaes: reunir pessoas de aldeias distintas, mesmo em se tratando de duas aldeias de gente proximamente aparentada ou talvez por isso mesmo, ainda mais - sempre um assunto poltico, e os riscos de surgirem problemas so enormes. Antes de terminar essa breve histria, repleta ainda de pontos obscuros, gostaria de notar o seguinte: ao descrever o passado, mesmo ao falar de pocas relativamente prximas como o
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perodo aps a delimitao da rea indgena, em 1960, acabei apresentando-a muitas vezes luz da disputa pela chefia alde. As pessoas que protagonizavam essa disputa ao tempo de minha pesquisa eram tambm meus narradores, sendo um deles o mesmo narrador do relato que usei aqui como contraponto, o que explica em parte a centralidade que certos personagens e temas assumiram aqui. Uma das teses que defendo neste tese, contudo, que nem a poltica alde se resume a faces estveis e bem delimitadas, como esta reconstruo histrica demasiadamente esquemtica pode fazer crer, nem a histria de alianas e clivagens do grupo se resume disputa pela chefia alde. Tudo o que vem a seguir uma tentativa de dar corpo a tal idia. Estou ciente de que o modo como foi contada a histria Aweti ter confundido o leitor por dois motivos: primeiro, porque praticamente no cito diretamente nenhum relato nativo, nem esclareo com preciso quem foram os principais narradores dos relatos que reuni aqui; segundo, porque omiti os nomes de personagens importantes, justamente aqueles que esto no centro de oposies polticas atuais e seus ascendentes diretos. necessrio explicar-me.
IIII.Notasobreapesquisa
Cheguei a Tazujyt pela primeira vez em Novembro de 2004 levada por Marcela Coelho de Souza, que havia marcado uma visita aos Aweti, com quem tinha uma relao de longa data. Estudante de mestrado, fui com perspectiva de voltar, se eles gostassem de mim e eu deles, para uma pesquisa de doutorado, o que felizmente aconteceu. Esta etnografia fruto de uma pesquisa de campo de 12 meses, ao longo de quatro anos, fora as duas curtssimas viagens que fiz aldeia no perodo do mestrado. Desde aquela primeira visita, em 2004, os Aweti deixaram claro que esperavam de
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qualquer pesquisador que fosse trabalhar entre eles apoio para a elaborao de projetos de interesse da comunidade. Decidimos j naquele momento levar adiante um projeto que haviam tentado escrever com a ajuda de uma ONG, mas que ficara inconcluso, visando o aumento da produo do sal vegetal, a mais valiosa moeda de troca do grupo com outros povos da regio. Apenas em 2008 o projeto foi finalmente aprovado pelo Programa Demonstrativo de Povos Indgenas, Do Ministrio do Meio Ambiente, e segue em plena execuo neste exato momento. Nesse meio tempo, com a ajuda de Sebastian Drude, lingista que trabalha com eles desde os anos 90, os Aweti receberam o Prmio Culturas Indgenas do Ministrio da Cultura com um vdeo sobre a produo de artesanado em palha de buriti, redes e esteiras, tambm artigos importantes de troca dos habitantes de Tazujyt e Saido com seus vizinhos xinguanos. Duas especificidades desta tese merecem explicao. Uma diz respeito pesquisa. Quando cheguei aldeia, muitas pessoas contavam-me dos inmeros antroplogos e linguistas que haviam passado por l, gravado cantos e histrias e nunca mais retornado. Pelo desejo de diferenciar-me deles, marcando que minha inteno no era levar nenhum bem, mas conviver ao lado dos Aweti o mximo que pudesse, decidi no gravar quase nada. Alm disso, um dos reconhecidos narradores de mitos da aldeia recusou-se expressamente a gravar qualquer narrativa antes que eu pudesse entender o contedo das histrias que me contava. Com o tempo, entendi que sua atitude refletia um pensamento que valia a pena levar a srio sobre as histrias, e sobre o papel que desempenham nas relaes entre pessoas. Este ser um dos temas tratados no ltimo captulo desta tese. A segunda especifidade a que me refiro, que tambm voltarei a comentar no captulo 6, diz respeito forma narrativa aqui adotada. Minha opo por no citar nomes, e no localizar precisamente histrias, obviamente movida pelo desejo de no comprometer as pessoas cuja vida estou expondo: o fao por temer, mais do que nomear feiticeiros, nomear
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acusadores de feiticeiros. Pois algo que penso ter entendido em minha convivncia com os Aweti que as certezas, e as suspeitas, sempre podem mudar, de modo que no quero ser eu a cristalizlas no papel. Esclareo ainda que apesar de ter feito algumas visitas aldeia Saido e de ter l permanecido uma semana em novembro de 2008, minha pesquisa foi feita basicamente em Tazujyt. Como os prprios moradores e seus vizinhos xinguanos referem-se a essa aldeia como Aweti, farei o mesmo ao longo da tese, com o intuito de simplificar a leitura.
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Captulo1 Moateymtupiatitatza:osfeiticeirosnosogente
H basicamente duas maneiras na lngua aweti para designar o adoecimento. A mais branda refere-se ao sintoma: wakupaju16, ele est quente, diz-se. A segunda forma, igualmente comum, descreve o adoecimento como uma etapa da morte: omaoju17, ele est morrendo. A segunda maneira mais aplicada a casos de adoecimento grave, mas no no mesmo sentido em que "morrendo" seria usado por um ocidental - referido somente pessoa em seu leito de morte. A descrio da doena como um processo de morte, ou um tipo de morte, aqui se refere ao fato de que ambos dizem respeito a uma transformao da pessoa, pensada como destacamento de um aspecto a que chamaremos por ora de alma, e que ser tomado como objeto de investigao frente. Toda doena e toda morte so entendidos como resultado da agncia de uma pessoa humana ou no humana, sendo portanto resultado de uma relao que poderamos descrever como social. Se algum est morrendo, preciso sempre perguntar: kojyka wejkyju18, "quem o est matando?". verdade que existe a possibilidade de se questionar, no contexto de um adoecimento: karika wejkyju?, "o qu o est matando?", caso em que o meio da ao, e no mais o agente, enfocado. Se primeira pergunta esperaramos ouvir como resposta o nome de uma
Wakupaju: w-, prefixo pronominal de terceira pessoa singular; -akup, quente; a(t), tornar-se, "cair"; -ju, sufixo aspectual, indica progresso. 17 Omaoju: o-, pref. pron. de ter. p. sing.; -mao; morrer; -ju, suf. aspec. progressivo. 18 Koyka, quem; wej- pron. de ter. p. sing., agente da ao;-kyj, raiz de matar, -ju, suf. aspec. progressivo.
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pessoa ou simplesmente kat wejkyju, um esprito o est matando, no segundo se poderia dizer tupiat wejkyju, "feitio o est matando", ou tambm kat wejkyju. Descobrir o qu mata algum no entanto o caminho para se determinar quem o est fazendo. Na medida em que a doena pensada como envolvendo um agente dotado de intencionalidade, seja kat, esprito (ver baixo), seja um feiticeiro humano, a pergunta mais relevante sempre quem. para a identificao desse agente que se volta boa parte da atividade xamnica, pois os tratamentos mais eficazes envolvem aes diretas sobre as causas do adoecimento, cuja origem, por assim dizer, social requer um tratamento igualmente social. Em caso de feitio, a acusao pblica a nica estratgia ao alcance dos parentes da vtima para interromper o enfeitiamento: espera-se que o feiticeiro denunciado em pblico se envergonhe e desfaa o feitio. De resto, a famlia pode tentar vingar-se do feiticeiro aps a morte do parente enfeitiado. No caso de adoecimento por kat, preciso presentific-lo ritualmente e aliment-lo para recuperar o doente, cujo estado moribundo sinal de uma ausncia: ele (sua alma) est parcialmente em outro lugar e deve ser trazido de volta. Meu objetivo neste captulo descrever como o adoecimento entre os Aweti coloca em jogo uma etno-antropologia, definindo o feiticeiro como um humano desumano, enquanto outras formas de adoecimento revelam em agentes no humanos a essncia da humanidade. Se um dos temas caros ao americanismo recente tem sido a descrio de sociocosmologias que postulam a existncia de muito mais gente (em potencial) no mundo do que se pode ver de sada, meu problema aqui descrever um regime em que h, digamos assim, muito menos gente nossa volta do que parece. Como nota Viveiros de Castro (2002e, pg. 370) o duplo engano amerndio do ponto de vista ocidental - por um lado reconhecer humanidade em animais e seres inanimados e por outro negar humanidade a povos vizinhos, por exemplo. Negar a humanidade
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do feiticeiro seria um exemplo do segundo tipo de erro. A feitiaria, contudo, no apenas nega humanidade a pessoas que ns ocidentais reconhecemos como humanas, mas a nega a pessoas que parecem humanas para os ndios, mas que em determinados momentos deixam de s-lo. Apesar da feitiaria entre povos amerndios ser um fato bastante atestado nas etnografias (veja-se por exemplo Goldman 1963, Maybury-Lewis 1967, Seeger 1981, Crocker 1985) seu baixo rendimento na literatura da rea notvel (uma exceo seria a tese de Albert 1985, mas a feitiaria entre os Yanomami muito distinta do que ser descrito aqui). O americanismo de vis sociolgico mais forte (como exemplificado pelos trabalhos de Turner e Rivire) quando se debrua sobre o tema, seguindo o exemplo da antropologia africanista da metade do sculo, tende a reduzir o feitio s acusaes de feitio, transformando-as num operador classificatrio (ver por exemplo Rivire 1970). Por sua vez a antropologia mais voltada para questes de ordem cosmolgica pode dar a impresso de que um fenmeno como a feitiaria, envolvendo problemas entre humanos, e fenmenos envolvendo relaes entre humanos e no humanos so no apenas de ordens totalmente diversas, mas tambm mutuamente exclusivos - uns ocorrendo aqui, outros acol, uns na Amrica, outros na frica por exemplo19. Mas, se tentamos considerar a feitiaria desde um ponto de vista cosmolgico, tratando as relaes intra-espcie nela engendradas em continuidade com as relaes inter-espcie, creio que estamos em ambos os casos diante de uma questo indgena comum a respeito da (in)determinao do humano. Se,
Na introduo de sua etnografia sobre os Bororo, Crocker (1985) afirma que entre os amerndios, ao contrrio do que se passa na frica, a doena no envolve problemas de ordem moral, j que decorre de trocas incontrolveis entre pessoas e "pedaos da natureza misticamente carregados"; sugiro, ao contrrio, que entre os Aweti a doena sempre um problema de ordem moral, isto , um problema que concerne esfera da ao humana. Vale notar que a prpria etnografia de Crocker no sustenta a oposio: a relao dos Bororo com a "natureza", precisamente, est inextricavelmente ligada s relaes entre os Bororo, o que por si s j seria suficiente para demonstrar como o adoecimento compete, sim, esfera das relaes entre pessoas tambm ali. Talvez a dificuldade resida na confuso entre social e moral pois, se, como afirma Crocker, uma doena entre os Bororo no envolve atribuio de culpabilidade entre pessoas (o que no verdadeiro para os Aweti), isso no o mesmo que dizer que no envolve de maneira nenhuma relaes entre pessoas.
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parafraseando Viveiros de Castro (1986) a cosmologia indgena imediatamente uma sociologia, a sociologia indgena s pode ser tambm imediatamente uma cosmologia. Pois no feitio estamos falando de pessoas que conviveram prximas a vida inteira, humanas uma para as outras em princpio, acusando-se violentamente de no ser humano. Adiante comento o que j se anuncia aqui como um uso equvoco do termo humano, adquirindo ora um sentido objetivo, referente espcie humana, ora um sentido subjetivo, referente condio de identidade entre objeto e sujeito de um juzo. Uma vez que a feitiaria revela no o excesso de pessoas nos cosmos, mas sua falta onde se esperaria encontr-las, coerente que no se apresente como uma tcnica de absoro de potncia/subjetividade. Em certo sentido, e sobretudo nos discursos nativos, a feitiaria pura negatividade, aniquilao. Nem o feiticeiro nem o enfeitiado podem convert-la num evento produtivo, no sentido em que a preenso de subjetividades alheias tem sido descrita como produtiva no xamanismo, na guerra e, no que diz respeito ao contexto alto-xinguano, nos rituais de cura (sobre este, cf. Barcelos Neto 2004 e Sztutman 2005). A feitiaria no engrandece, no agrega potncia, medida em que opera uma inverso de valor do humano. Os povos amerndios, como sintetizou Viveiros de Castro (1996, 2002e), reconhecem humanidade por toda parte porque reconhecem que diversos seres do universo veem a si mesmos como humanos. Humano, portanto, seria a condio de quem v a si e a seus iguais, condio de quem v e nesse sentido de quem ocupa a posio do sujeito do ponto de vista. Alm disso, neste universo povoado de sujeitos em potencial, um ente se define como humano no apenas na sua condio de identidade com outros humanos (seus congneres, cf. Viveiros de Castro & Taylor 2006), mas tambm em relao queles que aparecem como objetos da sua subjetividade. A posio cannica do humano na Amaznia, quando se define em relao aos no humanos, seria aquela do predador frente a
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sua presa por ser presa que um animal animal para seu caador (pois para si mesma ser humana), enquanto na condio de predador que um humano humano para si mesmo, e para sua presa (cf. Lima 1996, 2005; Vilaa 1992, 2009). Humano, nesse sentido, mais que a posio de um ente dotado de auto-reflexividade, seria a posio predatria, incorporadora, de um agente sobre um paciente. No que concerne feitiaria, contudo, a agncia enquanto potncia predatria no mais desejvel, e os humanos de verdade pacifistas, generosos - so na verdade as vtimas de humanos desumanos, os feiticeiros. Em suma, na feitiaria a presa sempre mais humana que o predador. E no entanto a maldade que caracteriza o feiticeiro considerada um trao sumamente humano. O feiticeiro, em outras palavras, a um s tempo congnere e predador. No que vem a seguir, apresento resumidamente o processo diagnstico e os procedimentos curativos utilizados pelos Aweti. A descrio com que inicio tem o intuito de situar a investigao, no restante do captulo, sobre as noes indgenas aqui traduzidas por humano, pessoa, esprito, alma etc. De modo que peo licena para usar as tradues cannicas (alma, corpo) dispensando as aspas. Meu objetivo imediato no tampouco analisar aspectos da prtica xamnica, alguns dos quais sero tratados no terceiro captulo, mas desenhar uma cena imaginria, baseada em diversos processos de diagnstico e cura que acompanhei ao longo de minha pesquisa, que pode auxiliar a leitura no apenas deste captulo, mas de toda a tese.
1.1Diagnsticoecura:flechinhasdequem?
Suponhamos que uma criana amanheceu febril na aldeia Aweti. Certamente a primeira
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medida tomada por seus pais ser dirigir-se enfermaria, uma casa de alvenaria e madeira pintada de verde, construda no comeo dos anos 2000, com apoio do municpio, ao lado da casa do chefe. Os pais da criana iro submet-la a todos os procedimentos recomendados pelo auxiliar de enfermagem da aldeia20, seja a ingesto de analgsico ou antitrmico, seja inalao, durante o perodo prescrito. Algumas doenas que afligem as pessoas ali so consideradas "de branco", isto , doenas que remetem a uma origem exterior ao universo indgena. Quando fazem exames, os mdicos veem, no sangue da pessoa ou dentro de sua barriga, o que est fazendo mal a ela; eles ento podem agir com remdios contra essa causa. J vi pessoas na aldeia se referirem a esse tipo de problema simplesmente como doena. Assim, uma me me assegurava certa vez que sua filha fora enfeitiada, e que portanto seu problema no era doena, como diziam outros da aldeia. Tudo que no doena "coisa de ndio", waraju eyp (ver abaixo sobre noo de yp, prprio de) o termo waraju, geralmente empregado para designar ndios no xinguanos aqui aplicado para ndios xinguanos e no xinguanos em oposio aos caraiwa, brancos. Quando assim, os mdicos podem fazer mil exames e nunca vero nada, porque eles simplesmente no sabem ver as coisas de ndio. Mesmo nesses casos, no entanto, nunca vi ser rejeitado um remdio prescrito pelo mdico; se for rejeitado, menos pela percepo de que no funciona do que pelo fato de ser insuportavelmente amargo, e coisas amargas so eventualmente
Muitas aldeias tm um auxiliar de enfermagem residente, e todas possuem um auxiliar indgena de enfermagem que se reporta via rdio aos enfermeiros e ao mdico que trabalham no Posto Indgena Leonardo Villas-Boas, onde h uma Unidade Bsica de Sade para atendimentos simples e de onde os casos mais complexos so enviados cidade. Durante muitos anos o sistema de sade em todo o Parque do Xingu foi controlado pela Escola Paulista de Medicina, tanto o Alto como as regies conhecidas como Mdio e Baixo Xingu, que abarcam as terras ao norte da confluncia entre Culuene e Batovi-Ronuro, onde vivem os povos Ikpeng, Yudj, Kaiabi e Kisdj. Em 2005 o Instituto de Pesquisa Econmica e Ambiental do Alto Xingu (IPEAX), formado por algumas lideranas da regio, passou a coordenar o atendimento de sade do Alto, enquanto a Escola Paulista permaneceu frente do atendimento do restante da rea. O fato de haver uma organizao indgena local controlando recursos governamentais, o que faz dos ndios patres dos mdicos e enfermeiros brancos contratados pela ONG, muitas vezes citado como um motivo de orgulho pelos Aweti. Por outro lado, esta no e nem outra jamais poderia ser uma organizao indgena com ampla representatividade. Como tudo que diz respeito poltica local, a organizao possui diversos grupos de opositores, alinhados de acordo com parentelas e alianas translocais.
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perigosas. Quando um remdio tomado tendo-se ao mesmo tempo um diagnstico xamnico sobre a origem indgena de uma doena, me parece que a expectativa similar que se tem com relao s diversas drogas vegetais conhecidas pelos ndios - que sirva para aliviar sintomas. Por outro lado, existem coisas "de ndio" que se transformam em doenas, como por exemplo o cncer, e nesses casos preciso recorrer a todas as modalidades de cura possveis. Ao mesmo tempo em que procuram um enfermeiro, caso a febre torne-se preocupante pela persistncia ou pela intensidade, os pais daquela criana adoentada estaro arranjando a visita de algum xam, um mopat. Esse xam muitas vezes o prprio pai ou av do doente, pois entre os Aweti quase sempre os chefes de famlia, depois de uma certa idade, iniciam-se no xamanismo. Se for o pai, no preciso fazer nenhum arranjo, ele simplesmente decide cuidar da sade do filho. Se for um av, normalmente a me ou o pai da criana iro pedir formalmente pela cura - pedir que o seu prprio pai venha de outra casa, de outra seo residencial dentro da casa, ou de sua rede que fica ao lado, o que indica ser o av um consanguneo j no to imediatamente identificado ao neto. Caso a doena no seja curada rapidamente, os pais da criana devero buscar um ou mais xams diferentes em outras casas e eventualmente aldeias vizinhas. De um parente extremamente prximo comum passar-se, assim, a um especialista distante, buscado entre os xams de maior renome na regio, para operar uma cura. Digamos que se trate apenas de uma febre moderada. O xam vai realizar a operao mais simples e corriqueira dentre suas atividades, uma limpeza do corpo do doente. O termo que designa tal operao, apozypu, refere-se o ato de limpar alguma coisa esfregando uma superfcie com as mos21. Para realizar o apozypu, o xam retira de sua esteira de guardar fumo (p upap) as
O mesmo termo usado, por exemplo, para descrever a ao de limpar os paus que sustentam a esteira usada na produo de polvilho de mandioca brava.
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folhas de tabaco (p), a folha cheirosa que usa como invlucro de seu cigarro, e algumas sementes de palmeira (kuku'je) que usa pelas propriedades olfativas para agradar aos espritos com os quais vai entrar em contato atravs da ingesto do tabaco. Cada xam tem sua proviso de fumo, sempre plantado colado cobertura de palha de sua casa; folhas de enrolar cigarro, que retira das que nascem espontaneamente beira da gua; e uma quantidade de sementes de kukuje recolhidas no incio da estao chuvosa, cozidas na gua onde foi cozido o pequi para realar o cheiro, e depois enfileiradas como contas num colar. Munido do cigarro que acaba de confeccionar, o mopat senta-se ao lado da rede do paciente, pergunta-lhe onde di ou o que sente, e comea a fumar. Para fazer essa limpeza no preciso ingerir uma quantidade muito grande de tabaco (o ato de fumar tambm comumente designado pela expresso "comer tabaco", pwaw). Depois de algumas tragadas passa ento a soprar sobre a regio dolorida do corpo do paciente - cabea, joelhos, barriga, olhos, peito etc. -, repetindo esta ao algumas vezes. O prximo passo a extrao do corpo estranho identificado origem da dor, esfregando com ambas as mos a pele do paciente na regio afetada com um movimento de trazer para fora. Ele suga em seguida o local dolorido, para extrair o objeto patognico com a boca. Com isso ele retira atravs da pele um fragmento mnimo de qualquer coisa, que imediatamente mostrado ao paciente. Segue-se uma tentativa de interpretao do que foi retirado, pois sua natureza nem sempre evidente. O termo genrico para um objeto assim retirado kat uwyp, "flecha de kat". Muitas vezes, quando perguntados, os xams diro apenas isso - kat uwyp aok n ti, "tirei dele kat uwyp". Digo que o termo genrico porque ele no especifica nem explica muito bem a origem do mal-estar. Kat, o termo que at agora traduzi por esprito, designa entes normalmente invisveis ao olho humano que provocam doenas nas pessoas atravs da introjeo de suas
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flechas igualmente invisveis no corpo das pessoas. Mas ao dizer que retirou flechas de kat de um paciente o mopat no est especificando de qual kat se trata, e nem em que ocasio ou por que motivo suas flechas foram parar no corpo da pessoa fazendo-a sentir dor ou mal estar. A julgar pela alta frequncia com que muitas pessoas passam por esse tipo de limpeza, temos a impresso de que ter eventualmente algumas kat uwyp dentro de si um problema banal e inevitvel. Uma dor na vista, uma dor de cabea, na garganta, podem ser resultado de flechinhas invisveis que penetram os corpos das pessoas sem que essas percebam, aparentemente porque em qualquer lugar por onde a pessoa passa est sujeita a tonar-se alvo delas22. Saber que um xam retirou kat u'wyp de um paciente diz pouca coisa; no seu sentido mais abstrato essas flechinhas podem ser definidas somente como "corpo estranho" ou "objeto patognico", enquanto sua conexo com o agente causador, e mesmo a natureza deste, resta amplamente indefinida. Voltemos ao exemplo da criana com febre. Se ela for ainda muito pequena, um beb de colo, muito provvel que seu adoecimento seja resultante de uma ao de seus pais, e no diretamente de kat. Um mopat pode retirar da barriga de um menino a sardinha em lata que sua me havia comido no dia anterior, e que estava fazendo mal ao corpo ainda muito vulnervel da criana. Ainda mais comum retirar-se um pouco de smen do pai do corpo do filho, quando o progenitor teve relaes sexuais com a me ou qualquer outra mulher antes de terminado o perodo de resguardo requerido aps o nascimento (ver cap. 3). Nesses casos, se perguntado o mopat provavelmente diria apenas que retirou kat u'wyp do doente. E mesmo tratando de uma pessoa enfeitiada, o mopat procede com o apozypu, isto , a limpeza e extrao
Algumas situaes aumentam as chances de isso acontecer: tomar um susto no mato, sair de casa depois de ter um pesadelo, sair de casa com saudade de algum ou com uma vontade no satisfeita de comer uma coisa especfica. Essas condies propiciatrias do estabelecimento da doena tem sido descritas para outros povos xinguanos (Barcelos Neto, 2004, Stang 2005). Entre os Aweti esta prediposio para ser afetado por agncias no humanas descrito pelo termo ybyza.
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de kat u'wyp do corpo do paciente. Muitas pessoas no souberam explicar-me a necessidade desse procedimento em casos de enfeitiamento. Um xam esclareceu que o feitio ativa (wejtatyka) flechinhas de kat que tenham ficado no corpo da pessoa, fazendo-as voltar a provocar dores nos locais onde se encontram. Suspeito tambm que o apozypu seja necessrio uma vez que nunca se tem certeza absoluta sobre a causa de uma doena, e via de regra o diagnstico aponta para uma srie de problemas combinados. Mas a explicao do mopat, com a qual concordaram diversas pessoas para quem a apresentei mais tarde, bastante interessante: ela sugere que os corpos humanos esto sempre penetrados por objetos estranhos que podem ser reativados em determinadas situaes, a despeito de todas as limpezas xamnicas por que passa uma pessoa ao longo de sua vida. Digamos que aquela criana (para seguirmos no exemplo fictcio) no melhore nem com os remdios, nem com a limpeza empreendida, dia aps dia, pelo mopat que vem cuidando dela. A longa durao e a intensidade do adoecimento j tero levado seus familiares mais prximos, entre os quais se inclui o prprio mopat em ao, a especular se no esto diante de um caso de feitio. A pedido da famlia ou, caso seja suficientemente prximo, por conta prpria, o mopat vai ento fumar novamente seu tabaco, desta vez no para limpar o corpo mas para ver a alma de seu paciente. Ser assim capaz de determinar se h um feitio e onde este se encontra. Se estivermos falando de um paciente j adulto, outro importante elemento do diagnstico so os sonhos que tem quando desfalecido por causa da doena. H um problema no entanto que aflige quase sempre as vtimas de feitio, a incapacidade de falar. Com isso, mesmo tendo visto quem o feiticeiro, a pessoa no consegue expressar-se. Pode ocorrer tambm dela ter uma viso enganosa, ver algum que na verdade outra pessoa, ou ver apenas uma parte do corpo do culpado. Isso tambm se d nos transes xamnicos induzidos pelo tabaco. Certa vez um mopat
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aweti realizou seguidas sesses de transe visionrio para averiguar a situao da alma de um paciente Mehinaku que havia lhe contratado. Em seu transe, o mopat viu um homem escondido atrs da porta da casa do paciente. Contudo no podia ver seu rosto, que estava encoberto, mas apenas seus ps, de modo que continuou sem saber ao certo a identidade do matador. Foi um kat, seu esprito auxiliar, que lhe contou por fim de quem se tratava: era mesmo aquele de quem estavam todos desconfiando, que o prprio doente j vinha encontrando em seus sonhos. O mopat pode tambm ver a alma do paciente durante o sono, em sonho, sabendo assim se ela se encontra com algum kat no entorno da aldeia, ou se est sendo vtima de feitio, e se est forte ou fraca. Problemas simples podem ser resolvidos com a administrao de remdios pelo auxiliar de enfermagem, e decorrem normalmente da ao de entidades cuja natureza os Aweti desconhecem, necessitando da viso dos mdicos para identific-las, mas isso no significa que no envolvam atribuio de culpa. No se passa um surto de gripe na aldeia sem que se aponte sua origem em algum viajante que a trouxe de fora. Todos sabem, por exemplo, como comeou uma epidemia de gripe que matou muitos xinguanos na dcada de 60, quando um chefe Kamayur foi a So Paulo a convite dos irmos Villas Boas. Mas circular muito j perigoso para o viajante: fui tantas vezes cidade, que os caraiwa terminaram colocando alguma coisa [alguma doena] no meu sangue, comentava uma mulher certa vez, considerando que as inmeras viagens que fizera para tratar-se poderiam ter contribudo para piorar seu estado de sade, expondo-a entrada de corpos mais estranhos que as prpias flechas de kat. Identificar a origem no necessariamente implica um julgamento moral, mas comum que as pessoas sejam criticadas por andarem demais por aldeias distintas e principalmente por circularem demais pelo Posto Leonardo, polo do atendimento de sade de vrias aldeias da regio, onde quem chega com uma doena costuma sair com outra, diz-se, seja por contaminao,
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seja por feitio. O fato que uma doena sempre aparece como resultado da ao de uma pessoa sobre outra, mesmo que tal ao no seja intencionalmente maldosa. Veremos que a motivao do agente, marcada pelo que podemos designar como presena ou ausncia de um comportamento moral, um diacrtico importante na classificao nativa da doena.
1.1.2Diagnsticoecura:omopatvaiprocurarcoisasforadecasa
No caso de doenas persistentes ou graves, ao mesmo tempo em que procede retirada de kat u'wyp do corpo do doente, o mopat fuma para ver sua alma, e juntando informaes sobre o que retirou e o que viu pode dar um diagnstico aproximado, que ser ainda combinado s declaraes feitas pelo prprio doente a partir das vises que teve desmaiado. Essa prtica de ver a alma costuma ser chamada de te'apytajunku, expresso cuja glosa poderia ser "prestar ateno", "manter-se atento", com o sentido de escutar com ateno, pois apyta significa ouvido23. A expresso teapytajunku usada por exemplo quando se est esperando notcias de algum pelo rdio: ate'apytajungoko, "vou ficar atento, prximo ao rdio", diz-se comumente. Essa expresso relacionada prtica xamnica provavelmente est ligada ao fato do mopat escutar notcias sobre a alma do doente, ou sobre o que estiver procurando, de seu esprito auxiliar. A tcnica pode ser empregada para buscar outras coisas, alm da alma de um doente. Certa vez, um mopat aweti viajou a outra aldeia onde haviam sido roubados os valiosos colares de caramujo (mijuaibe) de sua filha: oto mijuiabe ete oteapytajunkaw, foi para escutar sobre o colar de caramujo, disseram-me. Mas acabou no encontrando nada. A literatura xinguana registra uma diviso entre xams que s escutam e xams que tambm conseguem ver espritos,
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mas entre os xams aweti todos podem fumar para retirar feitio, uma prtica que implica ouvir as notcias dadas pelo seu xam espiritual mas tambm envolve algumas propriedades visuais. Um mopat que dizia no ser muito poderoso e ver, quando em transe provocado pelo tabaco, apenas um pouco, revelou-me enxergar o feitio como um ponto brilhante, cujos contornos no se pode muito bem distinguir. Outro xam, mais requisitado, disse-me que em transe via como vemos durante o sonho, imagens confusas. Alm de fazer comer tabaco [fumar], wejmopeu, a expresso usada para designar a contratao do servio que chamei aqui de "ver a alma" do doente wejtupukat, "ele fez ver [ao paj]"; um contratante diria, por exemplo, ao xam: ita'yt yotup jyt ikyty, "d uma olhada no meu filho por mim". As pessoas eram explcitas ao associar esse procedimento ao que venho chamando de alma da pessoa, sua ang: mo'at a'ang wejtupwoko mopatza, o mopat v a ang das pessoas, explicavam-me. Quem v, alis, a 'ang do mopat: ote'ok, ele "parte" ao fumar seu tabaco, isto , desmaia, e sua ang carregada por kat, que lhe mostra as coisas24. O mesmo se pode dizer de um doente que sofre diversos desmaios, ote'ok te'ogogo25. Dado que em ambos os casos a ao da ang, e no da pessoa desperta, as vises do xam e do doente so igualmente revelatrias no processo diagnstico, mas tambm igualmente enganadoras e obscuras: confusas como num sonho. O caso abaixo ilustra um procedimento de teapytajunku e nos deve ajudar a perceber os modos em que mobilizada a noo de alma, a que retornarei abaixo. Uma mulher aweti, membro de um grupo de cinco irmos, filhos de um antigo e importante chefe da aldeia, casou-se e reside na aldeia Mehinku h muitos anos. Em uma das viagens que fiz a campo ela caiu extremamente doente; acompanhvamos seu estado de sade em
O prefixo -te- , que indica reflexividade agregado ao verbo 'ok, tirar, de modo que a traduo de ote'ok poderia ser "ele se retira". 25 Onde a duplicao do verbo indica repetio da ao, e a terminao -oko um aspecto temporal que aqui indica ao continuada no passado, "ele ficava desmaiando".
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comunicaes praticamente dirias via rdio, pois uma das irms da doente era dona da casa onde eu me encontrava, e a preocupao era grande. Um dos xams cuidando do caso era seu irmo por parte de pai, que mora na casa vizinha casa em que eu vivia. Ele j havia fumado (oteapytajung) diversas vezes e vira que o feiticeiro provinha da aldeia de seu cunhado, onde sua irm reside. Os xams daquela aldeia, por sua vez, haviam fumado tambm a pedido da famlia da doente (wejmopeu ts, lit. eles o fizeram comer tabaco) e viram que o feiticeiro no estava entre eles, sendo na verdade um aweti, gente dos lados de c. Uma explicao sobre os mtodos de xamnicos de indicao de culpados. Os xams muito comumente simplesmente indicam a direo de onde vem o feiticeiro um jeito de apontar sempre para fora do local de onde falam. No caso em questo, as duas aldeias mehinaku encontram-se ao sul das aldeias aweti, de modo que ambas as aldeias aweti podem ser indicadas pela mesma direo norte a partir de uma aldeia mehinaku. Da aldeia onde eu me encontrava, contudo, a direo norte indicava a outra aldeia aweti, enquanto o sul indicava ambas as aldeias mehinaku. Apontando para um lado ou para outro o mopat aweti indicava se o matador era um aweti da outra aldeia ou um mehinaku qualquer (subentendendo-se que vinha da aldeia onde residia a doente, e no da outra). Os Mehinaku, por sua vez, podiam simplesmente indicar o norte (suponho) como maneira de dizer que o feiticeiro era um aweti, sem especificar de qual das duas aldeias. Essa maneira bastante vaga de acusao explicada pelos Aweti de duas maneiras: por um lado, a distncia realmente faz com que um xam no saiba muito bem precisar a identidade do feiticeiro, que ademais costuma se esconder, como o feiticeiro atrs da porta, na viso do xam relatada acima; por outro, costuma-se dizer que os xams sabem mas no dizem quem o feiticeiro, principalmente se for algum prximo, por isso costumam apontar para uma direo qualquer. O que me parecia notvel nessa histria que s havia duas possibilidades de
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provenincia do feitio: ou gente prxima historicamente da vtima, seu povo, ou gente geograficamente prxima dela, o povo de seu marido. Ao acusarem-se mutuamente, nem Aweti nem Mehinaku aventavam uma terceira possibilidade. Tendo sido informado de que havia feitio dos lados de c, o xam aweti fumou de novo e realmente achou um feitio pelas redondezas: aparentemente havia uma legio de feiticeiros agindo associados. Com a retirada desse feitio ela melhorou bastante, suou, recobrou suas foras ficamos sabendo via rdio. Poucos dias depois, contudo, recebemos uma nova notcia: na noite anterior ela tivera vrios desmaios, e nesse estado vira o que estava lhe passando. Sua alma (naang) fora at o Posto Leonardo (ou Apa Kwat, lit. Buraco da Ariranha, como chamam esta regio os Aweti), onde vira seu amarrado (ttsam), o feitio. Isso indicava que era o pessoal da aldeia aweti l perto que a estava amarrando. Ela tambm teria visto seu amarrador (ttsat, um outro modo de chamar o feiticeiro): dissera que era gente, moat, e revelara sua identidade, anunciando que tratava-se na verdade, como sempre, de um grupo de pessoas que haviam contratado um feiticeiro Kamayur26. Essa notcia promoveu uma comoo em minha casa: Faz muito tempo eles (os contratantes) esto nos matando. Eles so realmente nossos inimigos (kajeowatsaza), diziam-se uns aos outros meus anfitries. No outro dia, o xam aweti, irmo da doente, voltou a fumar, a pedido da filha dela, tambm casada e residente entre os Mehinaku. O mopat aweti contou o que viu retornando do transe: o pessoal da aldeia onde mora a doente est se escondendo (otemimpeju), disse, mas so eles que a esto amarrando. O pessoal da outra aldeia (apontava em direo ao grupo aweti que vive prximo ao Posto Leonardo) est ajudando. Disse ainda que somente o feitio retirado ontem estava matando-a, no havia outros por ora (nessa
Noto o uso do discurso direto na seguinte expresso, onde o termo em portugus contratar adotado como sendo a melhor descrio da relao entre os mandantes e o executor do feitio: contratar ti ei ts tupiat itat pe, diz que eles falaram contratar para o feiticeiro. O que eles fizeram equacionado a um ato, ou descrito via um ato de fala; falar fazer, e fazer falar. No captulo 5 volto a este tema.
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poca o mopat estava fumando quase diariamente, e diversas vezes retirava feitios). Agora sua alma est boa (naang ikatu), afirmou. Apenas miu ty27 est com ela. Era preciso agora, segundo orientao do mopat, buscar outros xams para ver quem eram exatamente os que estavam se escondendo, os feiticeiros da aldeia onde ela mora, pois os xams de l no estavam dando conta de acusarem-se uns aos outros. Dada a alta frequncia com que um adoecimento grave envolve acusaes de feitiaria, o te'apytajunku quase sempre termina com a retirada de um feitio pelo xam. Assisti a este procedimento diversas vezes, e em todas observei mais ou menos a mesma sequncia de aes. O lugar onde o mopat inicia o trabalho no importante e no h necessidade de estar prximo ao doente. imprescindvel apenas que o ambiente esteja silencioso e calmo, porque a algazarra poderia afastar o kat que vir auxiliar o mopat, contando-lhe e fazendo-o ver. Sentado, depois de haver enrolado um ou dois cigarros e mastigado uma semente de kuku'je, perfumando-se para a chegada de kat, o mopat comea a fumar, tendo atrs de si um ajudante qualquer - um filho ou filha, esposa, sobrinho, qualquer pessoa prxima o suficiente para estar disposta a cuidar dele. Ao contrrio do que faz todas os fins de tarde na roda dos xams no centro da aldeia, e tambm do que faz operando o apozypu, dessa vez ele tem que de fato ingerir a fumaa do tabaco. Ao final do primeiro cigarro, que tem cerca de 30 cm, ele j est tremendo, gemendo e tonto. Com mais algumas tragadas, nas performances mais impressionantes que vi, o mopat cai duro no cho, ote'ok, "ele parte". Dentro de alguns minutos recomea a bufar e a mover-se, e devagar se levanta; agora kat j est com ele e no se pode fazer nenhum rudo. Durante o desmaio o mopat deixa de ver com seus prprios olhos normalmente, e passar a ver aquilo que seu mopat lhe
Miu, de comer; ty, me. Lit. "me da comida", nome de um kat feminino que a dono da mandioca e frequentemente rouba a alma de pessoas na roa.
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mostra: wejmomae, ele (kat) faz olhar, mostra. Caso haja feitio, seu mopat vai lhe mostrar onde est, mas com imagens embaralhadas, ou pouco claras; o xam levado em sonho por seu mopat para o local onde est o feitio, mas no percebe bem o caminho e nem onde se encontra. Quando se levanta do desmaio, como um zumbi o mopat se lana at o local mostrado por kat, e o ajudante precisa acompanh-lo para garantir que no vai se machucar. Retornam no muito tempo depois, e ainda andando trpego o mopat traz um pequeno objeto informe nas mos, e senta-se no cho da casa. Ele desenrola o fio que envolve o objeto, uma bolota de cera de abelha que encerra dentro o feitio: uma flechinha de madeira lixada colada pela cera a um fragmento de algo que entrou em contato com a vtima, como a espinha de um peixe que tenha comido, um chumao de cabelo ou fios de palha ou algodo de seu cinto, adereo bsico de ocasies rituais que todo xinguano deve ter. preciso aqui haver uma audincia; dentre os parentes mais prximos do doente um ter de interpelar o mopat sobre o que viu. O mopat fala com dificuldade, repetindo frases. Ele aponta para o lugar de onde vem o feiticeiro, caso esteja em outra aldeia, ou fala quais os kat esto retendo a alma da pessoa. Fala se viu a alma, se ela est bem. Normalmente d informaes contraditrias, ou fala to enrolado que pouco se pode entender. Muitas vezes diz que coisa de kat, mas sabe que na verdade h tambm um feiticeiro humano envolvido. Por mais confusas, as informaes trazidas assim so ansiosamente esperadas: elas normalmente confirmam o que j se pensava - " feitio", "foi o pessoal de fulano", "akyky [o guariba, outro tipo de kat] est com ele". H tambm uma enorme curiosidade quanto tcnica de feitio empregada: "tinha pele de cobra", "era o cabelo dela", "um palito de fsforo, por isso deu febre" (ver cap. 2 sobre tcnicas de feitio). Ainda outro procedimento xamnico deve ser empregado quando se considera que a
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pessoa, sua ang, distanciou-se definitivamente para viver com kat. A atividade, designada em aweti pela expresso t junku, lit. "colocao de canto", s ode ser presenciada por outros xams, de modo que posso apenas descrever o que me foi contado (ver tambm descries em Barcelos Neto 2004; Becker 1969; Viveiros de Castro 1977, Bastos 1984/85). Segundo me explicaram, um xam experiente fuma e canta para atrair os kat que retm consigo a alma da pessoa. Ele necessita sempre nesses casos da ajuda de outros xams para fortalecer seu canto em coro, mas apenas um deles conhecedor das canes, t itat, "dono da msica". Cozido de peixe e beiju so oferecidos para kat na beira do rio, a comida ser trocada pela alma do doente. Os mopat vo beira do rio e trazem de l a alma devolvida por kat sob a forma de uma imagem humana, mo'at a'ang, um boneco de palha confeccionado por eles. Dizem que o mopat v kat segurando a alma da pessoa, ele v kat segurando a pessoa. Dizem que quando esse kat v o mopat ele sai correndo, assim libera a alma. Eventualmente, o prprio grupo de mopat que vai ao mato atrs do local onde viram estar a alma da pessoa e os kat que a retm. Conta-se que um grupo de mopat certa vez percorreu enormes distncias em busca de um casal de crianas que haviam sido roubadas por kat; toda vez que os mopat se aproximavam, os kat fugiam levando as crianas embora, e tudo que os homens encontravam eram cascas de frutas pelo cho, comida de kat que as crianas tinham comido. No final conseguiram que elas fossem trazidas de volta aldeia com t junku, cantando para atrair kat. O canto para recuperar a alma do doente constitui uma atividade muito especial e separada das outras prticas xamnicas, que apenas um dos cinco xams da aldeia Aweti domina, porque aprendeu de seu pai no tempo de sua iniciao xamnica. Aprender cantos caro e perigoso, pois se errar uma cano o cantor pode morrer. Alm disso os cantos so altamente secretos. Se uma pessoa qualquer escuta t junku o cantor pode morrer tambm, por isso o ritual
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ocorre na casa do doente, a portas fechadas, com apenas os outros mopat presentes. Esses perigos parecem estar ligados ao fato de que kat pode ficar bravo com os erros do mopat, e lev-lo, ou levar sua alma, embora. Todo o procedimento bastante complexo e caro, j que todos os especialistas envolvidos devem ser pagos com bens de alto valor pois esto arriscando suas vidas, explicam-me os Aweti - sendo acionados somente em casos graves. Muitas vezes a coisa se resolve com uma limpeza/suco de flechinhas do corpo da pessoa, e muitas outras vezes se resolve com a retirada de feitio. Os casos de feitio nunca excluem completamente roubo da alma por kat, mas os casos graves nunca envolvem apenas roubo da alma por kat, pois sempre h feitio. Mobilizei diversas vezes os termos alma e corpo para descrever os procedimentos de cura xamnica, utilizando-os grosseiramente como traduo dos termos aweti 'ang e '. A fim de compreender melhor a mecnica do adoecimento e da cura, tento agora me acercar com mais sutileza dessas noes.
1.2Sobreaang:queroirparacasa
A palavra empregada na maioria das vezes quando se deseja comentar o tamanho de uma pessoa, coisa ou animal: ne watu significa seu grande corpo/trax, um elogio comum s moas mais adequadas ao padro de beleza local. De resto, tudo que existe, inclusive as almas, tm , no sentido de que tem um volume. O termo no usado no sentido de continente, e tampouco se ope alma numa relao de exterioridade e interioridade. O de uma pessoa objeto de diversas tcnicas de moldagem, fortalecimento e desenvolvimento de habilidades desde o nascimento: cintos, braadeiras e joelheiras servem para
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fazer ndegas, braos e pernas fortes, assim como escarificaes e poes vegetais servem para tornar a criana leve, capaz de andar, e colrios so usados para aguar a viso do pescador. Apesar de ter me referido ao processo de remoo de kat uwyp como limpeza do corpo, as descries nativas do processo de adoecimento envolvem a ideia de que sintomas como dor e febre no se resumem a algo que se passa com o , estando associados a algo que se passa com um aspecto da pessoa denominado ang28. Termos correlatos em outras lnguas indgena foram frequentemente traduzidos por alma, uma traduo por sua vez j abundantemente criticada, por implicar associaes muitas vezes imprprias entre esta noo ocidental e noes indgenas. A ang aweti possui algumas caractersticas que a assemelham imagem ocidental da alma como definida pelo senso comum - justificando o uso deste segundo termo feito at aqui: a ang geralmente invisvel, mais leve ou mais etrea que uma pessoa viva, algo que se desprende do corpo e que vive no cu aps a morte. A etnologia, contudo, j props tradues alternativas para noes similares, como veremos. O adoecimento pensado como um afastamento da ang, seja porque ela passa a viver com kat, um processo concomitante introjeo de flechas invisveis no corpo do doente, seja porque anda rondando um feitio ou um feiticeiro que age contra ela. Tanto o feitio quanto o adoecimento por kat implicam um descolamento da 'ang do vivente - implicando na verdade sua atrao por outra pessoa, o agente do adoecimento. Quero ir pra casa, teria dito uma jovem aweti ao av que lhe agarrava pelo cabelo, enquanto ela tentava entrar no rio, no meio da noite. No era casa de seus pais que se referia, mas casa do kat com que vinha convivendo h vrios
O termo aparece sempre possudo: iang, minha ang, na primeira pessoa singular; ejaang, segunda pessoa singular; na'ang/iang em linguagem masculina/feminina, respectivamente, terceira pessoa sigular; azoaang, primeira pessoa plural exclusivo; kajaang, primeira pessoa plural inclusivo, eiaang, segunda pessoa plural, ts aang/tai aang, terceira pessoa plural em linguagem masculina e feminina, respectivamente.
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dias. Ela est estragada29, no volta mais, comentavam alguns aweti quando souberam da histria. Em certo sentido a ang funciona como um princpio vital, j que sem sua ang a pessoa morre. Mas note-se que apenas nos contextos de doena, morte, sonhos ou delrios (inclusive xamnicos) ang e aparecem como termos separados, ou melhor, apenas em tais contextos a ang mencionada, fato que Vilaa (2005) nota para um termo que podemos ver como correlato entre os Wari (Txapacura de Rondnia). De resto, h uma pessoa (moat) e seu corpo (neo), que produto de seu trabalho e dos seus familiares (ver cap 3). No caso de uma pessoa viva e saudvel, a ang aqui no tem nada a ver com um princpio de conscincia ou subjetividade, em oposio ao corpo, como nos poderia conduzir a pensar sua associao ideia ocidental de alma. A ang de fato se confunde com a prpria pessoa. Se ela v um parente em sonho, por exemplo, foi sua ang quem viveu o encontro, mas no h nada de irreal ou simblico nessa experincia - a pessoa efetivamente encontrou um parente. O que se passa sua ang em sonho, ademais, tem efeitos sobre ela desperta. muito comum as pessoas deixarem de sair para uma pescaria ou para o banho matinal no rio, por exemplo, porque sonharam mal e algo de ruim poder passar-se com elas: qualquer sonho ruim pode levar a pessoa a ser picada por uma cobra, furar o p num toco etc. Por outro lado a ang mantm alguma autonomia, como observamos neste evento que se passou uma mulher aweti enquanto caminhava por uma trilha prxima casa que estava prestes a abandonar. Ela recentemente decidira se mudar de aldeia, por conta de uma srie de desentendimentos que vinha tendo com uma famlia daquele grupo local. Neste dia, retornando da roa, voltou inconscientemente seu rosto para trs e viu um velho da famlia inimiga, escondido atrs de uma rvore. Ela teve certeza ento de que o homem estava de tocaia
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para flech-la com feitio. Por sua alma ter previsto o ataque, por ter previsto sua prpria morte, a mulher foi levada a fazer com a cabea aquele gesto brusco que a salvou, explicaram-me as pessoas que comentavam a histria. Kajang otekwawap ikyjokwat, injywo kajmowka, nossa alma sabe, a respeito de si mesma, que ser morta, e nos avisa. O termo ang tem uma multiplicidade de significados, fato recorrente para noes similares em diversas lnguas indgenas, que vale a pena considerar.Ang qualquer reproduo imagtica de uma coisa, um desenho, uma escultura30. O termo se aplica tambm sombra produzida por qualquer corpo. Uma nuvem acumulando-se, fazendo sombra, est angeju (onde a terminao eju um aspecto temporal que indica progresso). Imitar, reproduzir, tambm inclui a noo de ang: taang. Aprendendo a falar aweti, eu estava imitando (-taankeju) sua maneira de falar. O termo imitar tambm se aplica a uma performance de canto ritual: os cantores reproduzem (wejtaang) os cantos de outrem, sejam os cantos de kat, sejam cantos dos antigos (cf. Vilaa 2005 para considerao dessa mesma recorrncia de sentidos entre os Wari). No faria sentido perguntar que seres e objetos do mundo tm ou no tm ang, j que tudo potencialmente reprodutvel, duplicvel. No provvel, contudo, ouvir um aweti falar sobre a ang de um ente no humano como personagem numa histria, o que se passa comumente com uma ang humana, em suas aventuras seja durante o sono do indivduo, seja depois da morte. Se para os humanos as atividades da ang so distintas das atividades das pessoas desperta, enquanto um objeto passivo que se identifica a ela sempre (seu volume corporal, sua aparncia), o mesmo no se passa com outros entes do universo notadamente os seres kat. Mas se os Aweti no distinguem os diversos sentidos do termo ang, no significa que devemos
No sentido de imagem o termo mais precisamente seria aang, mas me parece evidente que no se trata de uma homonmia, e sim de raiz comum.
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entender que um desenho de uma arara ser para eles (o correspondente para ns de) a alma da arara. Como j sustentaram diversos etnlogos (cf. Carneiro da Cunha 1978; Stolze Lima 2005) enfrentando os mesmos problemas de traduo, a noo de duplo a nica que parece dar conta dos diversos contextos em que a noo deang acionada. A diferena entre um desenho de arara uma ang humana reside no que o duplo pode fazer, sua eficcia. Algumas vezes ser inequivocamente provido de agncia, aparecendo mesmo como a prpria origem da agncia, de modo que seu afastamento revela um corpo inerte, como se passa com o duplo de um homem. Mas esse no parece ser o caso, por exemplo, da sombra de uma rvore, que no creio se confundir com nenhuma possvel agentividade da rvore. No que rvores no possam ter agncia; o grande chefe Jatob, para citar um exemplo um personagem central da mitologia xinguana. De fato, existem muitos casos em que as rplicas possuem sim uma agentividade que nos permite compar-las noo de alma enquanto sede da subjetividade. Certas rplicas podem tornar-se altamente poderosas, pois elas chamam a coisa cuja imagem reproduzem para perto de si (owajaang, elas renem): algumas imagens de peixe (pirayt aang), as esculpidas em pedra, chamam peixe; uma imagem de abelha (tserere aang), feita de cera, chama abelhas; imagem de gente (moat aang), feita de cera e pau, chama alma penada. Existem no mundo dois tipos de imagens assim, as feitas de pedra, que foram produzidas em tempos imemoriais pelos gmeos demiurgos Kwat e Taty, e outras, de materiais variados, mais flexveis, produzidas por feiticeiros atuais. Quase sempre so objetos malficos; o nico com efeito benfico de que tive notcia a imagem de peixe gravada em pedra, conhecida como pirayt ty, me do peixe. Quanto s rplicas atuais, por tratar-se de uma modalidade de feitio, ningum se mostra muito disponvel para discutir de que modo tornam-se poderosas, se h por exemplo encantamentos
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envolvidos, mas arriscaria dizer que no este o caso pois o mesmo me foi dito acerca de outros tipos de feitio. O que nos importa por ora que, enquanto a pessoa decomposta necessariamente em um duplo que se confunde com sua agncia e um corpo sem agncia, as coisas do mundo, inclusive as pessoas, so externamente replicveis em duplos que, mediante certos procedimentos mgicos, podem adquirir potncia, tornar-se partes da sua pessoa (ou sua pessoa distribuda, sensu Gell 1998). As imagens devidamente tratadas seriam como almas externas das coisas, extenses da sua potncia31. H um outro sentido em que ang aparece para designar uma reproduo visual. Karika etup etejzaw? Karikaang ika?, O que voc viu em seu sonho? Ser que era ang de qu?, pergunta-se a algum que acaba de despertar. Aquilo que foi visto era uma ang, imagem-duplo de algo, mas no como reproduo imagtica, e sim como outra imagem da mesma coisa: para uma mulher, pintar-se com urucum em sonho pode ser ang de, pode significar, que vai ficar menstruada. Um macarro comido em sonho pode ser ang de uma gripe que vai atacar a pessoa, enquanto um jaguar sempre ang de um feiticeiro visitando sua vtima. Se no caso do feiticeiro poderamos pensar que sua alma jaguar, ou tem a aparncia de um jaguar, a associao entre o macarro e a gripe muito mais aberta. A pessoa conjectura, ao acordar, que um deve ser o outro porque so ambos coisas de branco coisas, ademais, que se introjeta e que so agentes de transformaes corporais. Em sonho a pessoa v as coisas de um modo distinto, pois sua ang que v. Isso no significa que o macarro seja sempre a alma da gripe, mas que uma gripe pode aparecer a uma ang como um macarro aparece pessoa em viglia. Esse uso esclarece que a noo de ang no remete a uma essncia das coisas, mas existncia de um outro estado da percepo: tanto a ang humana v coisas distintas daquilo que
Cf. Barcelos Neto (2004) para uma anlise aprofundada dos modos e efeitos dessa identificao entre objetos e pessoas entre os Wauja (aruak xinguanos).
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a pessoa desperta v, quanto ver a ang de uma coisa pode ser indcio de que aquele que percebe est num estado alterado. Existem ainda dois usos lingusticos do termo ang que me parecem bastante significativos. Moat angywo, sob a sombra/imagem humana uma maneira de se dizer que a pessoa foi morta por feitio de gente. Vi tambm uma jovem explicando a morte de sua av: Sarampo wejkyj. Moat wejkyj sarampo angywo, Sarampo matou-a. Uma pessoa matou-a com sarampo. No sentido de sombra, a ang literalmente uma projeo do , mantendo com ele uma relao metonmica; quando passamos ao uso metafrico, a ang uma projeo da capacidade de uma pessoa de agir sobre outrem. Algo feito sob a sombra/com a imagem de algum ou algo algo feito por algum ou atravs de algo. Outra maneira de usar o termo ang se refere falsidade, ou dubiedade, de uma situao descrita. Por exemplo, para explicar que estava sendo acusado injustamente de enfeitiar a prpria sogra (a quem se refere aqui como me, ver cap. 5) um homem dizia a seu irmo, pelo rdio: kyju aang kajtyza, estou matando aang as nossas mes. Ou veja-se o modo de falar de uma moa, desconfiando jocosamente do irmo mais jovem que ausentava-se de casa toda tarde com a desculpa de que estava abrindo sua primeira roa: okutapeju aang, ele est abrindo sua roa aang. O efeito da introduo de ang numa sentena deste tipo similar ao produzido pela incluso da partcula, ti que podemos traduzir como diz que - aps qualquer afirmao sobre terceiros, como por exemplo: oto kaa watu ti, diz que ele foi pro mato, ou wakupat ti, diz que ele est doente. Com o ti, trata-se de afirmar mantendo sempre a possibilidade de dvida, enfatizando-se que se tem apenas uma informao de segunda mo. Quando um homem diz kyju aang kajtyza, este aang introduz um distanciamento radical, indicando que h um outro ponto de vista sendo reconhecido aqui: o mesmo que dizer para eles, mentirosos, estou matando nossas mes. Temos assim, no primeiro
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caso, ang como metfora da agncia; no segundo, ang indica a coexistncia de pontos de vista em disputa, e portanto a existncia de uma agentividade outra que a do enunciador. Aang pode assim designar simultaneamente o sujeito e sua existncia entre outros sujeitos. Isso nos remete proposio de Viveiros de Castro (1996) acerca da noo de alma entre os amerndios: na medida em que nessas cosmologias todo ser que tem alma v a si mesmo como humano, a posse da alma seria condio para que um ente assuma a posio de sujeito, ao mesmo tempo em que aponta para a possibilidade de adoo dos pontos de vista de outros sujeitos; a alma seria, assim, uma espcie de pr-requisito para a potncia de adoo de uma subjetividade alheia manifesta na alterao perceptiva. Esta potncia sendo aquilo que caracteriza a atividade xamnica - os Aweti dizem que o esprito auxiliar faz ver ao xam, mas podem se referir a este processo dizendo que o xam v atravs dos olhos de seu auxiliar. A alma seria a parcela humano/sujeito que est potencialmente, na viso amerndia, em tudo que existe, e nesse sentido aquilo que une os humanos ao demais entes do mundo, o elo comunicativo (ver tambm a este respeito a etnografia de Miller, 2007, sobre os Mamaind). Disse cima que os Aweti no se referem s atividades desempenhadas pela ang de uma rvore, ou pela ang de um esprito kat, e que no faria sentido perguntar se este ou aquele ser tem ang. Um kat s pode ser visto pela ang de uma pessoa, ou por uma pessoa na condio de ang, em sonho, delrio febril ou transe xamnico. O humano tm um duplo que lhe permite ver kat e ver como kat, mas kat no precisa ter uma ang seja para ver o vivente, seja para agir sobre o vivente. Kat ang, por isso age sobre a ang, e por isso ir viver com kat virar pura ang, morrer do ponto e vista dos vivos. Mas kat pode virar humano tambm como se ver na histria de karytu que evoco abaixo - o que mostra que no existe uma distino substantiva a respeito de ter ou no ter ang. Seria mais uma questo de poder ser ou no poder ser ang. E tudo na
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verdade por ser ang, uma canoa, uma rvore. E tudo, em seu estado ang, inclusive a ang humana, kat. Uma maneira de dizer que a pessoa vai morrer se refere ao fato de que humano um estado da pessoa, mas no o nico: katsu moatzan oupeju, de jeito nenhum ele seguir sendo humano, comentava comigo uma jovem aweti sobre um rapaz que fora vtima de feitio em outra aldeia. Humano , nesse sentido, a condio do vivente (cf. Urban 1996 sobre mesma afirmao entre os Xokleng, apud Viveiros de Castro 2007a, nota 20). A expresso indica que a pessoa seguir sendo alguma outra coisa, alma penada ser agora um sujeito no humano. Sobre a jovem que desejava ir para casa ao despertar no meio da noite, dizia-se: moat eymywo omye, despertou sendo no gente; ou kat powo omye, despertou na mo de kat. Se no a posse da ang que define a condio de pessoa, pois uma canoa pode ser um agente dotado de intencionalidade e neste caso ela ang em si mesma (e no tem ang), um ser humano vivente se define tanto por possuir essa possibilidade de ser ang, quanto pelo fato de no ser apenas isso ver kat todo o tempo significa ser kat, estar morto. Quando se diz contudo que kat tm a ang de fulana em suas mos (kat naang wejzezupeju), ou que a ang de fulano est fraca (an tangtaka naang), a ang parece ser uma coisa que se pode perder para outro, ou que pode desaparecer. No entanto, quem perde alguma coisa so os parentes: a pessoa deixa de existir entre eles, mas continua vivendo alhures, seja entre os mortos, seja entre kat que vivem na floresta ou nos rios32. Menos do que perder a ang, como quem perde um objeto, o que pode
Ver a anlise de Taylor (1996) sobre a noo de wakan dos Achuar, povo Jvaro da Amaznia equatoriana. A autora prope uma interpretao radicalmente no substantivista do termo, geralmente traduzido por alma, como projeo das imagens do self pelas pessoas com quem ego est em relao. Wakan seria uma projeo no exatamente do eu (como geralmente pensamos a sombra), mas das memrias desse eu refratadas por aqueles com quem ele convive (proposio inspirada nas interpretaes de Marilyn Strathern sobre a pessoa na Melansia) (ver tambm anlise de Viveiros de Castro sobre o taowe Arawet, 1986, 507). Wakan seria assim uma descrio, produzida relacionalmente, de um ser entre outros seres, enquanto a doena seria o processo de enfraquecimento ou
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acontecer a algum perder-se; s quando isso acontece, ele aparece como um ser desmembrado, dividido entre vrios mundos, um onde ficou seu , semi-morto, sobre o qual j comeam a chorar os parentes, outro onde est sua ang, semi-identificada aos (ex-) parentes humanos, semi identificada aos novos parentes no humanos. Quando um feiticeiro age sobre uma pessoa, tambm sobre sua ang que se exerce a influncia ou, melhor dizendo, sua influncia tem tambm o efeito de fazer a pessoa desmembrarse em um ang que j se encaminha em direo a uma sociabilidade outra, na aldeia das almas, e um sem agncia. O feiticeiro opera a partir de objetos que so tambm partes desmembradas da pessoa: ao apropriar-se de tais objetos, est de fato se apropriando de sua ang, donde se entende que um (objetos, exvias) correlato do outro (ang), ou que os objetos (kat) so formasang que se desprendem da pessoa desperta, em vida, e que se constituem como meio das relaes nas quais algum se engendra ou engendrado contra sua vontade, sejam relaes de parentesco, seja um enfeitiamento.
1.2.1Sobrecorpos:excoisas
Separados, e ang da pessoa morta sero doravante chamados ang ut e put, exalma e ex-corpo. Mas no apenas isso. Tudo que foi da pessoa ser agora ex para ela: nok ut, sua ex-casa, naty put, sua ex-esposa, nayt put, seu ex-filho, ne ini put, sua ex-rede etc. O lamento fnebre o ltimo momento de enunciao da relao de parentesco como se
perda dessa imagem: em face da alta instabilidade das relaes no mundo Achuar, mundo de vendetas e feitiaria entre afins, parentes distantes e tambm, eventualmente, parentes prximos, esse duplo constitudo em relao seria tambm altamente instvel; da que a doena ali sempre pensada como resultado da ao de algum.
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fosse ainda atual. O carpido (tezotaku lit. choro por algum) consiste na repetio insistente do lao de parentesco que ligava o morto quele que o lamenta: itemiamuju ayt, itemiamuju ayt!, meu pobre neto, meu pobre neto! - diz-se, ou imenbyt up ayt, imenbyt up ayt!, pobre pai do meu filho, pobre pai do meu filho!. Como observou Viveiros de Castro (1986) acerca do uso de partculas temporais de passado nas lnguas TG (das quais se aproxima o aweti), elas podem servir para marcar uma relao entre parte destacada e todo: um cabelo separado do corpo sempre um ex-cabelo, uma roupa dada uma ex-roupa em relao ao dono original. O uso da partcula indica, portanto, uma conexo pregressa perdida. Mas se a relao entre a pessoa e o fio de cabelo arrancado da mesma natureza que sua relao com um pertence depois da morte ou com seu av, tal modo de falar revela os parentes, os bens, a alma, o corpo, tudo o que foi da pessoa viva como constituintes seus, no apenas corpos distintos com os quais ela se relacionava, mas partes integrantes do seu prprio ser. Ou seja, tudo aquilo com que uma pessoa tem relao um "constituinte" ou "componente" seu. A pessoa literalmente constituda pelas relaes em que entra, e que deste modo a definem: tudo que "meu (no sentido do pronome possessivo: meu pai, minha canoa etc.) sou "eu". Se a pessoa est distribuda, expandida ou estendida por um certo nmero de lugares no mundo por via da alma, o mundo est concentrado na pessoa, formando um corpo. Esse aspecto central para pensarmos a teoria nativa do adoecimento, pois manipulando partes desse corpo introduzindo nele alguns objetos, subtraindo-lhe outros que o acesso ang pode ocorrer. Enquanto a entrada de flechas de kat na carne sugere que a doena est ligada a um excesso de permeabilidade ou abertura do , o desmembramento das (doravante ex-) partes da pessoa na morte oferece a imagem de que esta constituda por coisas que vo muito alm de seu
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corpo, partes cujo destino est interligado33. Se disse acima que a ang se confunde com a pessoa, por se comportar como sua potncia relacional, sem a qual ela no mais existe na condio de pessoa vivente (porque a ang foi se relacionar alhures, com outrem), no seria menos verdadeiro dizer que todos esses componentes destacveis, entre os quais os prprios parentes, so tambm a prpria pessoa. Neste caso, chamo de corpo algo que se estende muito alem de seu , volume. J vimos que a expresso flechas de kat pode se referir tanto a projteis efetivamente lanados por esses seres contra os humanos quanto a qualquer comida estranha introduzida no corpo de um beb, por exemplo, pelo fato de ter sido ingerida pela me. Se uma ao da me altera a pessoa do filho, sobre o qual ela exerce uma influncia decorrente dos processos de concepo e cuidado aps o nascimento, com kat passa-se mais ou menos o mesmo: ele primeiro atinge uma pessoa, estabelecendo uma conexo fsica para a partir da desenvolver com ela uma relao tambm de cuidado, compartilhamento de comida etc., atraindo a ang para viver consigo como parente. No caso da me a consubstancialidade resultante de relaes pregressas condiciona seu acesso ao corpo do filho, enquanto com kat o acesso ao corpo concomitante (porque no podemos afirmar que ele preceda temporalmente o descolamento da ang) instaurao de uma relao. Ou seja, a entrada de kat uwyp o correlato (resultado e causa) de um estado de mtua constituio por compartilhamento de substncia estado de identificao similar s relaes entre parentes. Em suma, as flechas de kat operam uma espcie consubstancializao destes com humanos34. de
O que sugiro que devemos colocar num mesmo plano as substncias corporais, os bens, o duplo/alma, as relaes de parentesco, tudo isso sendo visto como parte da pessoa. 34 Sobre o mesmo processo entre os Wauja, descreve Barcelos Neto:
Tem-se, portanto, uma dupla apapaataizao: uma incidindo substancialmente sobre o corpo (repleto de microcorpos patognicos [flechas dos espritos apapaatai]) e outra incidindo perspectivamente sobre a alma (com pontos de vista alterados [pois vive com apapaatai como se fosse parente), sendo ambas o efeito de uma troca simtrica e inversa, pois a substncia que
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1.2.2Psmorte:aindaumpoucoparente
Presenciei a trgica morte de uma menina de cinco anos entre os Aweti. O perodo que ela esteve em tratamento, desde que comeou a reclamar de dores no abdmen, foi extremamente curto, uma semana na aldeia sob cuidado dos xams, mais duas semanas no hospital em Cuiab, e recebemos a notcia de seu falecimento quando a me dois dias antes havia nos comunicado pelo rdio, animada, que a filha estava brincando e comendo. Houve uma comoo muito grande dos irmos e irms da me da menina morta, dos irmos do pai, e dos avs da criana. Na casa onde ela morara, quando o corpo chegou aldeia e abriu-se o caixo para prepar-lo, as pessoas choravam embalando objetos da menina, como se fossem a prpria criana. Uma das avs, que embalava uma lancheira, chegou a desmaiar de tanto chorar e teve que ser removida. A me e o pai, muito jovens, nem se aproximavam do corpo; a me prostrada em sua rede era consolada por outras mulheres. Enquanto isso o av materno da felicidade, na casa de quem ocorria o velrio, cantava e danava sem parar, numa ladainha Minha neta! Minha neta!. Ao longo desse dia, o av saiu diversas vezes, espingarda no ombro, cantando e danando porta de casa. Cantava e repetia acusaes de feitiaria contra uma famlia aweti que residia em outra aldeia, e contra a me do rapaz que organizara recentemente as olimpadas indgenas no Posto Leonardo, ocasio em que a menina havia sido flechada por feitio, na semana anterior sua remoo da aldeia Aweti. Essas acusaes tiveram que ser traduzidas para mim, j que nada pude compreender
Segundo Barcelos Neto, os prprios corpos de apapaatai so constitudos de flechas, ou melhor dizendo, as flechas so fragmentos corporais deles; sua introjeo no corpo humano seria de fato um processo de mistura de substncias, concomitante transformao da alma humana em apapaatai.
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dessas palavras enunciadas muito rpida e melodiosamente. Pouco, portanto, sei a seu respeito, fora o fato de que certas pessoas estavam sendo acusadas. O corpo foi decorado por uma jovem que se ofereceu para faz-lo, irm por parte de pai do av materno da morta. preciso que seja algum relativamente distante. Ajudada por sua me e uma sobrinha, a moa decorou as pernas da criana com os desenhos femininos tpicos xinguanos (ywantan), usando como base uma seiva cheirosa misturada a fuligem, que produz uma tinta preta e espessa duradoura, usada comumente pelas xinguanas quando se pintam. Arrumaram-na com cinto de corda de palha de buriti (tsotsowit), joelheiras (tyta), cortaram sua franja, pintaram em cada ma do rosto um pequeno tringulo (takwaraw) em tinta preta de fuligem e seiva e sobre os olhos uma faixa vermelha de tinta de urucum: ela foi preparada como uma adulta para assim ficar na aldeia do cu, onde no existem crianas. Vestiram-na com calcinha e chinelo, e cobriram sua cabea com duas esteiras para usar como escudo contra os pssaros canibais no cu. Por cima de tudo o vestido branco com que fora mandada de Cuiab. O caixo foi fechado e logo enrolado numa rede, na qual o carregaram para fora de casa. Os trs coveiros, que tambm devem ser relativamente distantes, nesse contexto sendo classificados como no parentes (izetuza, ver cap. 5), carregaram o corpo at a cova de dois buracos, que haviam aberto no centro da aldeia. Acompanhado de um mopat com um chocalho (tezua), o qual s pode ser visto por pessoas comuns nesse contexto35, o cortejo saiu de casa pela porta da frente, deu a volta pela lateral direita at entrar pela porta traseira, saiu pela dianteira de novo dando a volta na casa agora pela esquerda, entrou pelos fundos, rodeou o poste central at sair em direo ao centro descrevendo, em suma, um smbolo do infinito nesse percurso. Chegando o grupo cova dupla como a av fora enterrada assim, ela tambm deveria ser (ver
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Fora isso, s usado para t junku, chamar a alma das pessoas, um procedimento secreto, como j disse.
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cap. 4), ao invs de sentada como normalmente so as mulheres e os no-chefes, em cova simples o av materno precisou ser retirado de um dos buracos, transtornado. Os irmos da me da morta choravam sobre a terra que seria usada para cobrir o corpo. O caixo foi ajeitado num tnel que une os dois buracos, ps para o leste, de modo que o corpo pode fitar o sol nascente. No buraco na regio de sua cabea foi colocado sobre um caixo um tacho de assar beiju (taybyti), e por cima dele a terra; o tacho serve para proteg-la do peso da terra e dos passantes. O mopat, pai do av materno, que havia tratado da menina enquanto ela ainda estava na aldeia, despedaou com o p seu chocalho e jogou os restos na cova ainda aberta. Cobriu-se tudo e a terra restante foi levada embora. Por cima de tudo uma placa de telha de amianto cobria o local do enterramento: para prevenir, explicaram-me, que o feiticeiro caminhasse por ali durante a noite. Poderamos distinguir alguns cuidados dirigidos ang e sua vida na aldeia das almas, ang ut etam, como a pintura e a esteira, e outro dirigidos ao corpo que fica sob a terra, como o tacho de beiju e a telha de amianto. Quanto a esses ltimos, parecem indicar que o corpo no torna-se imediatamente inanimado. Um episdio da saga dos gmeos demiurgos confirma essa ideia Quando sua me, Tanumakalu, morta pela sogra jaguar Uperiru, seu corpo enterrado de tarde pelo povo do marido, o chefe jaguar Itsumaret. Naquela mesmo noite, seu av Wamutsini vem at Tanumakalu, chamando-a sobre a cova. A morta responde: hai! Com a ajuda de duas formigas Wamutsini desenterra Tanumakalu e retira os gmeos de seu ventre, colocando no lugar duas aves. Os meninos crescem dentro de um bambu (mempea) na aldeia do av, o Myren, e s depois de crescidos descobrem a verdadeira histria de sua me: que fora a morta pela av e enterrada pelo pai dos gmeos. Quando finalmente eles se dirigem ao local do enterro, na aldeia de Itsumaret, e chamam por Tanumakalu por sobre sua cova, ela j no responde mais. Desenterram-na, mas como seu corpo j no tem carne, no possvel reviv-la. Eis a origem da
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mortalidade. Esse episdio mtico recorda-nos que ainda hoje possvel falar com um morto recm enterrado: justamente por isso, dizem os Aweti, que o feiticeiro caminha por cima da cova de sua vtima, o que se procurou evitar no enterro relatado cobrindo o local do enterro com uma telha de amianto. O feiticeiro chama pelo nome do morto. Se este responder - hai! -, significa que o matador ir perecer de contra-feitio (ver cap. 2). Se o morto no diz nada, o feiticeiro sobreviver. Diz-se ainda que o ex-corpo, sob a terra, est escutando os lamentos funerrios entoados pelos parentes. Ademais, apesar de reconhecerem o apodrecimento da carne e no demonstrarem nenhum interesse pelos ossos, os Aweti se referem uma cova como o lugar onde permanece a pessoa falecida. Diz-se dos parentes mortos que esto nas aldeias onde foram enterrados, e esse um motivo importante para que se deseje viver num lugar: permanecer onde sempre estivemos, onde esto nossos pais e avs. Se em vida a ang entretm uma relao de identificao com a pessoa que est onde sua ang est - , aps a morte, do ponto de vista dos vivos, a pessoa est onde seu ex-corpo est. Nunca se diz de um falecido que se encontra na aldeia dos mortos. Quem se encontra l sua ang ut, um princpio que j no se confunde com ela. Meu falecido pai, minha falecida av, meu falecido irmo, dir um aweti, esto nesta ou naquela aldeia. O enterro do put e a ascenso da ang ut no so destinos necessariamente associados. Isso fica claro quando consideramos a morte de um feiticeiro, pois se diz que no deve ser enterrado, muito menos no centro da aldeia. Quando quis saber se sua alma vai para a aldeia dos mortos, ningum mostrou-se especialmente interessado no assunto; era de se esperar que, caso a ascenso da ang fosse condicionada ao enterro do cadver, as pessoas seriam capazes de afirmar que a ang ut do feiticeiro definitivamente no vai para o cu. O enterro, portanto, tem mais a ver
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com uma homenagem ao morto e a preservao da sua memria. A ascenso da ang, pelo contrrio, associada ao desligamento das relaes estabelecidas em vida. Ver uma alma tem estritamente o mesmo efeito que ver um esprito kat: quem v ou visto por uma, adoece gravemente. Ou antes, a viso indcio de um estado perceptivo alterado, pois esse estado, em que a pessoa v como ang, isto , desligada de si mesma e de seu mundo social, a prpria doena. O tempo do luto, cerca de um ano, o intervalo mdio entre uma morte e a realizao do kwatyp, ritual funerrio que, como aludi acima, deve operar o desaparecimento da pessoa: moapytewetu onde a raiz tewe indica sada do campo de viso, tornar-se invisvel36. Esse desaparecimento, entenda-se, representa o definitivo deslocamento da ang para o cu. Mesmo que no seja realizado o ritual, no entanto, a alma ir ascender, no mais tardar, na ocasio de um eclipse, quando, como sabemos pela histria de um falecido que voltou para buscar seu amigo, o trnsito entre cu e terra facilitado ocasio tambm da guerra dos mortos contra seus inimigos no cu, as aves canibais. No mais tardar, digo, porque certamente no se imagina que a alma fique na terra esperando tanto tempo at desaparecer; o problema mais grave, aqui, a saudade37 que os ex-parentes sentem do falecido. A ang retm a memria do morto, tem saudade dos vivos. Para os vivos, contudo,
Uma etimologia tentativa: - mo certamente um afixo causativo; - tewe, desaparecimento. - taty otewe, a lua desapareceu, diz-se, por exemplo, a respeito da lua nova. Suspeito que apy- aqui venha de apyt, fim; naapyt, o fim de uma histria, por exemplo. Fazer desaparecer o fim seria nesse caso a glosa literal. 37 A expresso que designa saudade significa, literalmente dar um olhar ou levar o olhar: teta moto, eu dou/lano o olhar, iteta azoto, eu levo meu olhar. Esse deslocamento da viso resulta numa fragilizao da ligao entre a alma e o corpo, deixando a pessoa vulnervel ao adoecimento (veja-se o caso de um enfermeiro no indgena que, de tanto sentir saudades da namorada enquanto morava na aldeia, acabou pegando malria). Levar o olhar para o morto o mesmo que ver com o morto, estar l onde ele est, morrer um pouco, portanto. Ver algum que no est perto, como no sonho, implica que a alma est se distanciando do corpo. A saudade um distanciamento de si mesmo. Viveiros de Castro (1977) e Bastos (1989) desenvolveram o tema em etnografias sobre os Yawalapit (aruak) e Kamayur (tupi-guarani), respectivamente.
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tornou-se outro, perigosa (o tema, notado por inmeros etngrafos, recebeu uma explorao sistemtica em Carneiro da Cunha 1978). A ang una, no existe entre os Aweti uma noo de espectro que se distinga dela, como se encontra entre outros grupos tupi e, segundo Barcelos Neto, entre os Wauja. Aps a morte, a alma do morto, sua ang ut, permanecer ainda algum tempo rondando sua antiga casa. Ela permanece por perto no apenas por ter saudade das pessoas, mas tambm de seus bens, ela volta para ver suas coisas, dizem os Aweti, fato que me parece significativo do valor atribudo aos objetos naquele sistema: parentes e coisas esto numa posio equivalente para o sujeito. Nesse estado, contudo, tornou-se maligna para os vivos, pois deseja levar a alma dos antigos parentes consigo para o cu, causando-lhes a morte, portanto. Mas os cuidados com a pessoa aps a morte sugerem que a ang tampouco tornou-se definitivamente outro. Ao ser decorado o corpo da menina cujo funeral presenciei, pintaram-lhe, em tinta preta, um padro idntico ao da tatuagem feminina usada, dizem os Aweti, idealmente s pelas chefas, kuj morekwat. Quatro finas linhas horizontais paralelas, em semicrculo, em cada brao, abaixo do ombro, trs linhas do mesmo tipo em cada pulso. Muitos Aweti reclamavam que hoje tatuagens so feitas em qualquer pessoa, e no apenas nas kuj morekwat, tendo deixado de ser marcas distintivas. Elas podem ser feitas com gua de limo ou qualquer tinta preta introduzida na pele com uma agulha. Qualquer um pode execut-la, e quem o sabe, porque praticou e aprendeu, cobra pelo servio. Vi diversas meninas serem tatuadas por suas irms ou primas, mas uma dessas histrias foi-me especialmente esclarecedora. Em 2006, uma jovem da casa onde eu morava havia tido algumas complicaes de sade provocadas, segundo seu av xam, por feitio. Naquele ano sua me tentou enviar a filha comigo cidade para passar uma temporada, mas acabamos desistindo do plano por problemas logsticos. Quando retornei aldeia em 2007, notei que a moa estava tatuada, e comentei com
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sua me, que me explicou: como ficara muito preocupada com a sade da jovem no ano anterior motivo pelo qual quisera mand-la para fora da aldeia, longe dos feiticeiros, depois vim a entender pagara cunhada para tatuar sua filha. Assim, se chegasse a morrer, a moa no seria obrigada a levar no cu a vida ao avesso que levam as pessoas comuns (moat tene) na aldeia das almas. Na entrada dessa aldeia, disse-me a me da jovem recm-tatuada, h uma mulher com um seio grande e outro pequeno, cujo leite na verdade ps (kajpew), do qual as pessoas so obrigadas a mamar. Ela como a polcia, explicou-me, controlando quem entra, e libera dessa triste dieta apenas os morekwat, as pessoas tatuadas. Outras descries que escutei sobre a vida aps a morte no mencionavam a mulher de seios irregulares, mas reforavam que na aldeia das almas no h mingau de beiju nem peixe; em seu lugar toma-se ps e come-se barata (makujalu). Todos os relatos enfatizavam tambm que apenas os chefes, tatuados, so poupados tanto da dieta ignbil, quanto da devorao canibal pelo chefe do cu, ywapit emorekwat, o urubu de duas cabeas, ozoapiryt monkoj aputytu, que tem uma esposa da mesma espcie. Ser morekwat a condio para seguir levando uma vida de gente, alimentando-se como gente e sem morrer devorado, aps a morte. Era com isso que os parentes da menina morta estavam preocupados ao pint-la no funeral: ela foi feita kuj morekwat naquele ato (no cap. 4 retorno a esta histria). Quase tudo o que sabemos da vida dos mortos resulta do relato de um homem que esteve no cu, segundo uma muito conhecida histria dos antigos. Dois amigos (too tatyp) eram muito ligados, e combinaram que quando um morresse viria buscar o outro para visit-lo. E assim se deu. No dia do eclipse (taty wytapu), o falecido veio buscar seu amigo. Levou-o para a aldeia dos mortos, mas todos de l haviam sado para lutar com os pssaros, seus inimigos, como acontece sempre durante os eclipses. A vida das almas extremamente frgil; elas andam quase flutuando, pois no tm peso, e podem morrer a qualquer momento, por um pequeno ferimento qualquer.
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Por isso, apenas um vivente teria chance de combater as aves, que bicam a cabea das almas38 e as levam para seu chefe necrgafo, o urubu de duas cabeas. No trajeto para a aldeia dos pssaros (karay put etam), as almas precisam superar diversos obstculos que para um vivente no representam nenhum problema: um terreno coberto de folhas de jatob (mti op), onde as almas podem escorregar, cair, e morrer definitivamente; um campo de sap (tatap), onde podem furar o p e morrer; palmeiras espinhosas (tazantu), onde tambm podem se furar. Como elas tm muito medo de passar, o amigo visitante vai abrindo o caminho. No acampamento onde pernoitam durante o trajeto, o vivo pede fogo ao amigo morto, apontando para uma fogueira. O falecido lhe avisa que aquilo na verdade uma pessoa (moat), e explica que ao dormir as almas viram kat: taza watu (fogo sobrenatural) , moj (cobra).... O vivo toca uma flecha no cho; ela acorda, era uma pessoa. Toca o jatob, uma pessoa. Nossas almas veem assim explica-me o narrador aweti. No dia seguinte, o vivo conclama as almas a seguir, liderando-as: nawyj kaminuaza!, vamos l crianada! (fala aos mortos como se fosse seu chefe). Ao encontrarem mais obstculos, ele vai limpando o caminho para os mortos: espinho gigante, em seguida sap pequeno. Outra noite passam acampados, para atacar bem cedo na manh seguinte. As almas tm, no lugar da mo, um pau, que usam para matar os pssaros batendo-lhes sobre a cabea. Durante a batalha, o amigo quer matar o urubu de duas cabeas, dono do cu, mas o falecido no permite: Esse urubu o dono do sol (kwat itat) - explica - se ele morrer, o sol acaba (verso alternativa: o cu desaba). Deixando a aldeia dos pssaros, o vivo vai conhecer a aldeia dos mortos, que muito bonita, muito limpa. De noite os amigos tm que dividir a rede, pois o vivo no trouxe a
Assim como as almas morrem toa, os velhos tambm levam a vida por um fio. Como notou uma amiga aweti a respeito de um casal de velhinhos da aldeia, que trabalhavam todo dia em sua roa, eles deveriam andar constantemente com a cabea coberta por uma rede, para evitar a bicada de um pssaro que pode levar-lhes morte. Os velhos so, portanto, j um pouco almas penadas, frgeis como elas. como se seu corpo fosse j to frgil que fossem quase pura ang.
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sua (o narrador enfatizava, ao mesmo tempo, que as almas no dormem em rede, e sim no cho). Mas o falecido avisa: No se assuste se durante a noite voc acordar e vir uma raposa na sua rede. Sou eu, pois ao dormir todas as almas se transformam em alguma coisa. De fato, quando o amigo acorda de noite e v uma raposa na sua rede, toma um susto to grande que chuta o outro pra fora. Eu te avisei!, comenta o falecido. No dia seguinte ele desce trazendo o amigo de volta aldeia na terra: Sua me est chorando, pensa que voc morreu. O falecido deixa o amigo na estrada reta que conduz entrada da aldeia (japop), e o avisa para ir andando sem olhar para trs. Mas este no consegue cumprir o combinado, depois de alguns passos se volta para ver se o outro ainda est l. Nesse momento ele v o falecido, que lhe indica o nmero trs com os dedos: significa que em trs dias ele ir morrer definitivamente. Ele no podia ter olhado pra trs. Como se v, a alma no tem nada de imortal, pelo contrrio, leva uma vida ainda mais delicada que a vida humana, mas os perigos que lhe ameaam so outros. E, se depois da morte da ang no h mais nada, ela no parece ter um duplo ou ser duplicvel; trata-se de uma verso enfraquecida da pessoa. Quando se diz que fulano no continuar sendo gente, como maneira alternativa de dizer fulano ir morrer em breve, a ideia de que ser alguma coisa menos que gente. Essa imagem se repete na afirmao de que as almas no so capazes de realizar tarefas comuns e constitutivas da vida dos vivos. Um xam aweti me explicava assim: Angut tem dente, tem barriga, tem pele - tm corpo, portanto. Sobre a devorao dos pssaros necrfagos, esse xam me dizia: Kaje put weju, Ele [o urubu] como nosso ex-corpo. Claramente no estamos falando aqui de algo que se passa quilo que enterrado, mas quilo que vai para o cu, o corpo das almas. O xam continua: Eles no pescam e no tm roa, porque no tm habilidade, an okytiryka. Tambm no tm roa, e nem sabem fazer sexo. Ao morrer, levamos nossas coisas conosco, kajekat tizoto. Os brancos abrem os corpos de seus mortos, isso no bom
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pois ficaro assim no cu. Se a pessoa morrer queimada, vira fogo na aldeia das almas, se morrer afogada, vira gua. Ao mesmo tempo em que falava com medo e nojo do anti-alimento e da vida frgil que marcam a existncia das almas no cu, esse xam tambm dizia que l que est nossa aldeia de verdade, kajetam ytot, onde a vida boa. Os vivos se compadecem do destino de seus parentes mortos, depositando, em dias de eclipse, uma esteira e uma flecha para que a alma use como escudo e lana na luta contra as aves canibais. Em alguma medida, portanto, preservam a memria do parentesco e lidam com a poro outro do falecido como parcialmente mesmo, ainda. Como bem explica o mito, alis: de dia parente, amigo, de noite, kat. Um mito que relato abaixo, tambm sobre uma visita ao cu, confirma a ideia de que h continuidade das relaes de parentesco aps a morte. Os homens devem manter boas relaes com seus animais de estimao na terra, cujo modelo de relao a paternidade39, pois iro reencontr-los no cu (tema destacado por Basso 1973 e Viveiros de Castro 1977, e retomado em Erikson 1984). Dizem tambm os Aweti que a pessoa depois de morta vai viver na casa de seus consanguneos (tooza) no cu. Quanto aos ex-cnjuges, vivero separados de modo que no parecem constituir-se como ex-partes de uma pessoa, tanto que um marido falecido lamentado como ex-pai do meu filho (retomarei este tema no cap. 5). Essa identidade parcial que se mantm com os mortos indica que de algum modo a exalma, ang ut, e o ex-corpo, put so ainda constituintes da pessoa. Mas dos vivos, e no daquele que faleceu. Como membro de uma comunidade de parentes, um falecido no o deixa simplesmente de s-lo permanece sendo um ancestral sob a terra, marcando a relao histrica
No que os animais de estimao sejam chamados de filhos, havendo um termo prprio na lngua para design-los: -puz (sempre aparece possudo). Mais de uma histria contudo apresenta-os como filhos ou correlatos de filhos de seus donos, notadamente um trecho do ciclo de inveno do feitio pelos gmeos Kwat e Taty: no primeiro episdio, os irmos tentam matar-se um ao outro com feitio; em seguida, conseguem matar seus respectivos filhos; no ltimo episdio do ciclo, matam as aves de estimao um do outro, a quem os donos se referem como meu filho, ao lamentar sua morte.
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do grupo com aquele territrio, uma ligao que no parece estar de todo desatrelada do fato de que a ang ut permanece sendo um amigo ou parente no cu, a quem se espera reencontrar um dia. Comentei acima que a prefixao de tudo o que foi de uma pessoa como ex- pemite-nos pensar em relaes, objetos e partes do corpo como elementos constitutivos seus com o mesmo estatuto. Em relao aos mortos, o que importa no aquilo que foi deles um dia, mas o fato de que eles so agora ex-partes dos vivos. em relao ao vivo que um parente falecido e um chumao de cabelo cortado esto na mesma posio ambgua, de ser o mesmo e j no o ser completamente. Um cabelo cortado j no mais a pessoa (ou da pessoa), sendo ex- seu, mas porque persiste uma identificao entre ambos que um feitio pode ser feito atravs do cabelo. Ora, um parente morto tambm pode ser veculo de feitio. Imagem de alma penada (ang ut aang), uma pequena escultura antropomorfa feita de cera e pedaos de pau, um tipo razoavelmente comum de enfeitiamento (ver prximo captulo). Nestes casos, at onde sei, no uma alma penada qualquer o que aparece, mas justamente um parente: como a menina, vtima de um feitio, que comeou a ser visitada por seu falecido av40. E um ltimo comentrio sobre a vida das ang ut: enquanto os mortos continuam a ser constituintes dos vivos, ao menos na parcela de identidade que lhes resta, as almas penadas talvez pudessem ser descritas como entidades menos complexas, porque constitudas por menos relaes. No cu no h alimentao humana, nem trabalho, o que significa que, mesmo havendo consanguinidade, o que falta so as conexes de cuidado e compartilhamento que fazem dos consanguneos realmente parentes. Faltam aos mortos, ainda, relaes de afinidade; ou pelo menos relaes de afinidade relevantes: os mortos no conhecem o sexo, e alm disso vivem com
Crocker (1985) nota que entre os Bororo um feiticeiro falecido perigoso especialmente para sua famlia, pois so os consanguneos mais prximos as primeiras vtimas dos ataques de sua alma penada, que se transforma em jaguar. No caso xinguano, o feiticeiro um anti-parente que usa a conexo de parentesco como veculo. Este o caso, como defendo ao longo da tese, no apenas para o tipo especfico de feitio acima relatado.
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esposas genricas, pois a afinidade estabelecida em terra se perde com a morte. Os mortos vivem em festa, de modo que lhes falta vida cotidiana, na qual as relaes de parentesco so produzidas. Se vivem em festa, significa ainda que vivem sendo outros - kat - pois, como veremos abaixo, os participantes de um ritual presentificam kat no centro da aldeia. Por outro lado, eles no adoecem e morrem, como os vivos, por causa das relaes que estabelecem seja com vizinhos feiticeiros, seja com seres de outra ordem, morrem de acidentes banais, como um espinho no p. De modo que os rituais aparentemente no operam ali o mesmo tipo de apreenso de potncia exterior que operam os rituais de cura na terra, sendo pura expresso da coletividade um sentido importante dos rituais dos vivos, mas no o nico. De resto, os mortos no vivem apenas em festa, mas vivem em guerra contra os pssaros, porm sempre como vtimas canibalizadas, uma posio que eles jamais podem inverter, enquanto os vivos so os vencedores da luta contra as aves, mantendo-as como cativos na terra. Essa ausncia de relaes que talvez responda pela condio de leveza (seus ps mal tocam o cho) e extrema fragilidade das almas. O peso e a resistncia dos viventes parece ser produto das relaes que os constituem. Da tambm a pertinncia de tratarmos essas relaes como corpo.
1.3Osverdadeiroshumanos
Usa-se o termo moat em aweti para designar uma pessoa que o falante reconhece como xinguano, contrastando-o como waraju (ndio no xinguano) e caraiwa (branco); para designar a humanidade como espcie, quando rene ndios xinguanos, no xinguanos e os variados tipos de caraiwa opondo-os a no humanos, como animais de pelos; e para designar um ser antropomorfo, mesmo que possa ser visto como antropomorfo apenas em determinados
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contextos. Moat, em suma, designa o mesmo, ou congnere, em diversas escalas contrastivas. A expresso tambm frequentemente usada com um sentido moral, na negativa: moat eym41, que os Aweti traduzem como no gente, designa uma pessoa brava, irascvel, sem auto-controle. Raramente, no gente pode ser usado como um elogio, em contextos em que falar duro uma caracterstica esperada de um homem - defendendo sua famlia ao acusar um feiticeiro na praa central da aldeia, ou de um chefe exigindo coisas numa reunio com autoridades brancas, por exemplo. No obstante o fato de que num chefe de aldeia a agressividade pode ser uma caracterstica positiva em determinadas circunstncias, o oposto de moat eym no seria exatamente moat ytot, gente de verdade ou humano, mas morekwat, chefe: o que se diz de uma pessoa que corresponde ao ideal moral. Isso especialmente evidente quando o termo aplicado a um branco, muitas vezes pessoas que nada tm de chefes no sentido estrito do termo; mesmo no caso de ndios, contudo, o termo morekwat muitas vezes aplicado como descrio de um tipo de personalidade. O feiticeiro um humano apesar de haver feitio de no humanos tambm, como se ver que no gente: simultaneamente moat e moat eym. notvel que de muitos entes no humanos se diga tambm que no so gente. Em agosto de 2009, quando temia-se a entrada de uma epidemia de gripe na rea indgena, os Aweti sempre comentavam que aquela gripe monstruosa, mapap watu42 no gente, porque mata. De um mosquito persistente se pode dizer o mesmo, moat eym, assim como de um homem sovina. Isso coloca sovinas, mosquitos,
Eym uma negao nomial, indica permanncia da condio negativa, como em wurat eym, que no voa ou n kwawapat eym, no conhecedor de algo. A partcula contrasta com a negao verbal, formada pelo prefizo anassociado ao sufixo yka, como em anakwawawyka, eu no sei [neste momento] ou aniteopwyka, eu no tenho dinheiro [literalmente: no minha folha]. 42 Mapap o termo para gripe, o qual nunca vi usado em nenhuma outra ocasio. Uma gripe no , em princpio, decorrente de um contato com kat, mas a gripe em si pensada como um objeto que pode ser usado na confeco de feitios altamente letais.
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gripes e feiticeiros num mesmo grupo de gente que no gente. Note-se que a expresso moat eym parece ter um sentido similar ao desumano para ns: algo que no dizemos de um cachorro, por exemplo. No gente, em suma, um qualificativo aplicvel somente a quem, de algum modo, gente. Consistentemente, em diversos sentidos os seres no humanos que habitam o cosmos aweti so descritos como gente, isto , iguais, seja pela forma, seja pela forma de viver. Moat eym uma formulao que apresenta o imoral como um aspecto do moral, na medida em que a desumanidade s pode ser um atributo da humanidade. Se mesmo para falar de um gripe brava preciso afirmar sua condio de gente, a violncia, que o imoral do ponto de vista xinguano, parece ser uma qualidade definidora ou intrnseca do humano. At certo ponto, podemos manter o termo gente para distinguir essa condio moral/cultural (humanity na dupla acepo do humano notada por Ingold, apud Viveiros de Castro 2002e, 381), que pode ser compartilhada pelos Aweti, os pssaros e os brancos, da condio especfica do humano (humankind, ibidem), que distingue os Aweti e os brancos dos pssaros43. O problema que essa distino no corresponde a uma categorizao nativa. De modo que se os Aweti dizem que o feiticeiro no gente, h que entend-los literalmente: o feiticeiro no gente porque ser gente talvez no seja mais do que ser gente como a gente, ser moral. No entanto, a mitologia se refere no apenas criao de uma humanidade que remete espcie humana assim como a entendemos abarcando ndios xinguanos e no xinguanos e caraiwas como pr-existncia de uma diferena entre humanos e os demais seres da era mtica. Sol e Lua, seus ancestrais e todos os demais seres que aparecem na mitologia de origens so kat quando considerados em oposio s mulheres de madeira criadas pelo demiurgo
As lnguas aruak xinguanas possuem um vocbulo para designar xinguano(que remete ao humano no sentido moral), putaka, que designa tanto uma aldeia quanto pessoas que vivem em aldeia (Viveiros de Castro 1977, Gregor 1977, Ireland 2001) e outro que designa humano no sentido biolgicoou morfolgicodo termo, neuni (mehinaku), inyaun (wauja). Em kamayur, aw, gente (Bastos 1989).
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Wamutsini. O demiurgo estava h muito tempo tentando fazer gente de verdade, moaza, conta o mito, at que por fim consegue fazer suas filhas de pau. Das cinco confeccionadas por ele, contudo, quatro perdem-se, passando a viver com kat na floresta, a meio caminho da aldeia do jaguar Itsumaret, a quem haviam sido mandadas como esposas. Apenas a mais velha, Tanumakalu, chega a seu destino final, para ser logo assassinada pela sogra jaguar. A humanidade atual foi criada por Kwat, o gmeo demiurgo filho de Tanumakalu, no mesmo episdio em que expulsa da terra o povo de Itsumaret, seu pai, o chefe jaguar (cf. VillasBoas 1972 e Agostinho 1970, 1974 para variantes deste mito). Kwat finca no cho uma srie de flechas e as sopra, transformando-as em guerreiros que vo ajud-lo a liquidar o povo de Itsumaret, como vingana pela morte de sua me, Tanumakalu. Na luta, morrem muitas onas, algumas fogem para o mato, transformando-se nas onas atuais, enquanto o chefe Itsumaret e outros companheiros fogem para o cu. Em seguida Kwat distribui uma srie de objetos que sero responsveis pelas diferenas entre os povos os brancos pegam armas de fogo, os ndios arcos e flechas etc. Essas diferenas repetem uma diferenciao lingustica que fora originada com o lamento fnebre dos gmeos sobre o tmulo da me morta, um episdio anterior ao massacre do povo-jaguar. Mas o mito tambm fala de uma humanidade contempornea chefia de Itsumaret na terra, um povo que vivia nos campos e era predado como caa pelas onas. Certa vez, quando o povo de Itsumaret retorna aldeia de uma caada, trazendo pedaos de corpos humanos esquartejados como se fossem porcos, Tanumakalu reconhece sua gente da seguinte maneira: ela enxerga tatuagens, invisveis aos olhos dos demais, nos pulsos e ombros da caa que as onas vo comer. As tatuagens, como notei ao falar do destino ps-morte dos xinguanos, so idealmente uma marca exclusiva dos chefes, a ponto de se reclamar constantemente por estarem
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perdendo tal qualidade distintiva. O mito apresenta no entanto uma situao um pouco diferente. Todos os seres humanos verdadeiros, moat ytoto, que se distinguiam dos falsos humanos que habitavam a terra ento como gente, esses humanos da origem eram tatuados com marcas invisveis aos olhos dos jaguares, que no reconheciam ali humanos, apenas presa. As tatuagens de hoje em dia seriam ento externalizaes de uma condio interna dada? Disse acima que o contrrio de no ser gente ser chefe, o que consistente com o fato de que os chefes so de fato a gente verdadeira44. No so apenas os lderes, portanto, que deveriam sobreviver devorao canibal e dieta ignbil no cu, aps a morte: seguir sendo humano na aldeia dos mortos deveria ser o destino de toda a humanidade verdadeira. A julgar pela imagem que os Aweti comumente expressam do que se passa com seus mortos, contudo, poucos parecem ser suficientemente chefes/humanos para tanto. A verdadeira humanidade marcada por uma inscrio corporal que precisa ser tornada visvel. Mas essa marca corresponde a um comportamento moral muito especfico: quando faz tatuagem, voc no pode mais mentir, an tut emoemyka, voc agora morekwat, morekwazan eupu explicou-me uma jovem aweti, quando sua me insistia para que eu tambm me tatuasse. Ao mesmo tempo em que torna visvel algo que j era a humanidade ou qualidade de morekwat de uma pessoa a tatuagem tambm tem o efeito de criar as qualidades humanas onde inscrita. As tatuagens humanas parecem bons exemplos da afirmao de Viveiros de Castro (1996, 2002e) a respeito das diferenas entre as espcies nas cosmologias indgenas amaznicas, elas esto situadas no corpo. Mas, como ressalta o autor, corpo mais bem um feixe de afetos, isto , de formas distintivas de relacionar-se. No se trata, ou no somente, de um corpo de
Tanumakalu, que gente de verdade, ser sempre chamada de kuj morekwat, chefa, pelas figuras que encontra a caminho da aldeia de Itsumaret.
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substncia, mas tambm de um formado pelos conhecimentos que orientam suas aes no mundo. Em aweti a raiz de saber, -kwawap, a mesma do termo que designa conscincia ou qualidade de quem age moralmente, kaakwawapu. Este sentido, por sua vez, um dos principais indicativos de humanidade: dos feiticeiros, que no so gente, se diz sempre que no tm conscincia, an o kaakwawapwyka; o mesmo dito dos bebs, que ainda no so plenamente gente (ver cap. 3). Em suma, a condio de humanidade no ser determinada apenas pelo compartilhamento de substncia, mas tambm pelo compartilhamento de saberes e coisas. Nos captulos a seguir meu objetivo ser descrever como o humano se constitui para outros humanos como parte de um mesmo corpo de substncias, bens e conhecimentos, e como o feiticeiro, desumano, emerge nesse contexto.
1.4Ohumanismodosoutros
Os Aweti eram categricos ao afirmar a diferena entre flechas de kat (kat uwyp) e flechas de feitio (tupiat). Esses objetos no nos permitem distinguir, contudo, doenas provocadas por kat e doenas provocada por humanos. Alguns kat tambm tm tupiat, pois o receberam de Kwat, o gmeo demiurgo. So eles tatia watu, o morcego, tyzywatu, o veado grande e akyky, o guariba. Com seus feitios, esses seres no humanos podem atingir as pessoas de duas maneiras: podem fazer amarrados, ou podem tambm nos atingir diretamente, lanando suas flechas com um arco. As flechinhas tupiat de kat, disse-me um mopat aweti, so to perfeitas que parecem feitas por humanos, moat etupiat zomene. A diferena de um feitio de kat, explicou-me outra pessoa, que kat no amarra, no enrola um fio de algodo em torno da massa de cera que envolve o feitio, como o fazem os humanos. curioso como essas duas
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observaes constrem uma imagem de kat como entes um pouco menos habilidosos que os humanos, assim como as almas penadas, ang ut. Na prtica, contudo, no parece ser fcil diferenciar um feitio de kat e um feitio de gente. Sobre o mesmo caso de adoecimento, que se arrastava h anos, ouvi dois comentrios antagnicos. S pode ser kat, porque se fosse feitio de gente ela j teria morrido, disse um homem, irmo daquele que, algum tempo depois, foi acusado pela famlia da vtima. S pode ser gente, pois se fosse kat j teria desistido dela, disse uma filha da enfeitiada. No prximo captulo me detenho sobre as variadas tcnicas de feitio, mas por ora necessrio esclarecer que existem dois modos bsicos, um em que as flechas de tupiat so amarradas a uma exvia da vtima, outra em que as flechas so diretamente lanadas. Esta ltima parece ser a tcnica mais comumente usada por kat. A pessoa sente uma dor no local onde foi flechada, e comenta: kat iapi. Essa expresso altamente ambgua, pois significa kat me atingiu, mas tambm o que me atingiu? ou alguma coisa qualquer me atingiu. Alm da polissemia do termo kat (ver abaixo), um outro fator induz confuso: a pessoa pode ter sido atingida por kat uwyp ou por tupiat de kat. Por fim, quase sempre as pessoas dizem kat para ocultar outro problema, e evitar uma acusao pblica. Uma mulher comentava o prprio adoecimento assim: kariaw kat opoogyka iti?, por que kat no desiste de mim?. Discuti essa frase com um amigo, pois suspeitava que ela me havia dito kat iapi para disfarar o fato de que sabia na verdade estar sendo vtima de um feiticeiro humano. Realmente, ele concordou, ao dizer kat iapi ela poderia estar se referindo a uma pessoa, e impossvel saber do que est falando de fato, a no ser perguntando. Mas ao dizer que kat no desistia dela estava se referindo a kat mesmo, conjecturou ele. Acontece que essa mulher estava sendo vtima, vim a perceber depois, de todos os tipos de ataque possveis, de humanos e no humanos.
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Um feitio sempre obra de uma ao maldosa, o que significa que kat, assim como os humanos, tambm podem ser desumanos. Mas nunca um ataque de feitio por um no humano provoca uma comoo como aquela provocada pelo feitio humano. Isso pode estar relacionado ao fato de que de kat no se espera especial humanidade, ao passo em que os humanos que fazem feitio contra uma pessoa so justamente pessoas prximas de quem no se esperaria (mas sempre se espera) um ataque. Mas sobretudo, creio que o feitio de kat nunca entendido vistas como fruto de uma maldade dirigida, enquanto as relaes com kat que resultam na introjeo de kat uwyp no corpo de algum so, elas sim, fruto de um amor dirigido especificamente vitima. Elas decorrem do fato de que os kat desejam/amam (owyat) as pessoas, gostam delas e querem lev-las para viver perto de si (as teses de Barcelos Neto, 2004, e Stang, 2009, exploram especialmente o tema). O desejo de sociabilidade deles ainda persistente: kat an opoogyka kajti kat no desiste da gente. A feitiaria, por sua vez, se caracteriza como ato sumamente imoral, antissocial; coerentemente, as respostas a ela s podem ser igualmente antissociais a execuo do feiticeiro ou a feitiaria de vingana, que idealmente provoca a morte do feiticeiro. Voltarei a isso no prximo captulo. A doena causada pela aproximao com kat tem um desenvolvimento inverso: ela o motor da realizao de quase todos os rituais xinguanos, com exceo do kwatyp, que no entanto se organiza segundo o mesmo esquema. Rituais de cura foram recentemente objeto da monografia de Aristteles Barcelos Neto (2004, 2009), que pesquisou entre os Wauja, trabalho ao qual remeto o leitor; por economia de tempo farei apenas um breve esboo de seu funcionamento e algumas observaes que nos permitiro comparar as relaes engendradas nas diversas formas de adoecimento e os tipos de agente a envolvidos. Quando o mopat detecta que a pessoa (sua ang) est com um ou mais kat, caso decida-se que o doente dever patrocinar um ritual de cura, pessoas da aldeia, prximas ou distantes da
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vtima (momati, todo mundo), comparecero sua frente trazendo kat (-zezut) para ela. Esses sero os representantes de kat, danarinos e produtores das roupas e mscaras a serem usadas quando o ritual propriamente dito (teaykap45) for realizado. Doravante, o doente torna-se dono (itat) do ritual, dono de kat: akyky itat, dono do guariba, jorojyt itat, dono da andorinha, morezowagetu itat, dono de morezowagetu, karytu itat, dono de karytu. Isso significa que ele e seu grupo familiar so responsveis pelo oferecimento da comida de kat: peixe assado e cozido, beiju e mingau, molho de pimenta dependendo do ritual realizado servidos no centro da aldeia. Como bem notou Barcelos Neto, se no adoecimento kat est convertendo a pessoa num igual, trazendo-a para seu universo social, no ritual a operao se inverte: kat trazido para a aldeia, alimenta-se com os humanos, alegra-se e com isso deixa de fazer mal pessoa. Todo o objetivo da festa alimentar e alegrar (como diz o nome) kat. Uma vez dona de um kat, a pessoa est mais ou menos comprometida a continuar alimentando-o no centro da aldeia periodicamente, como uma forma de manter a boa relao estabelecida46. Os danarinos/organizadores (jawitaput47), depois de diversas vezes alimentados (em oferecimentos peridicos no centro), resolvem organizar uma nova apresentao, como pagamento pela comida recebida: eles ficam com vergonha (okytsits), diz-se, de comer sem retribuir. Depois de realizadas algumas festas no mbito interno da aldeia, hora de promover um evento maior, com convidados, que funcionar como encerramento de um ciclo de dana e alimentao de kat. Nessa ocasio a comida recebida
Teaykap: te- reflexivo; ay - alegria + ap- instrumentalizador. Oteaykaju ts, eles esto se alegrando (fazendo ritual); outra maneira de dizer seria wazungkeju ts, eles esto danando. Quando a festa envolve outros grupos locais convidados: otomoaju ts, expresso que seria derivada de moat (+ aspectivo ju), que indica a reunio de muita gente, segundo meu professor Aweti. 46 Barcelos Neto (2004) e Mello (2005) registram que o kat do qual a pessoa torna-se dona passa a atuar como seu protetor contra o ataque de outros kat. Os Aweti no fazem referncia a isso. 47 A etimologia poderia ser jap-itat-put, ex dono da conclamao. Outra maneira de se referir a algum que inicia um projeto, algo que se faz sempre em nome de outrem, tiinku itat, dono da fala. Por exemplo, um sobrinho organiza um mutiro para plantar a roa do tio. Ele o organizadir do evento, tiinku itat, e portanto responsvel por distribuir a comida que o tio dar em pagamento aos que trabalharam, no centro da aldeia.
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paga em bens de valor: os kat do panelas de alumnio ou cermica e colares de caramujo e mianga quele que os alimentou os kat, espritos, pagam a comida com kat, objetos de valor. Digo que essa forma configura um tipo de ritual porque ela se aplica a eventos de natureza razoavelmente diversa, cuja origem suspeito ser bastante heterognea. Ao lado das festas realizadas somente por ocasio de um adoecimento, com a presentificao de um ou mais kat que entraram em relao com o doente, h festas realizadas anualmente, notadamente o ciclo ritual do pequi (descrito por Gregor, 1985, que pesquisou entre os Mehinaku, conhecidos na regio por serem donos, isto , grande conhecedores, das festas do pequi). O pequi possui os mais diversos donos espirituais, estabelecidos em tal posio em diferentes episdios mticos sobre os quais no nos deteremos aqui. Festas diferentes para cada um deles, ao longo de cerca de um ms, so realizadas no auge da colheita, por volta de novembro, com o objetivo de garantir a abundncia da fruta no ano seguinte. No obstante seu carter obrigatrio, as festas do pequi obedecem ao mesmo esquema ritual de outras festas de cura, pois os espritos donos do pequi so kat que, como qualquer outro, so atrados pessoas e as atraem para viver em sua esfera de sociabilidade, devendo ser alimentados para que o processo se reverta. Na aldeia Aweti, por exemplo, h uma moa dona do nop nop (esprito vagina, um dos kat donos do pequi), porque foi h muito atacada por esse kat, mas as demais festas no so realizadas porque no h donos alimentar outros donos do pequi. por isso, suspeita-se alis, que a colheita desta fruta tem sido fraca nos ltimos anos entre os Aweti. As festas de troca, jorojyt so outro caso em questo. As pessoas se engajam em trocas rituais o tempo todo: jorojytzan kaj, estamos [trocando] como jorojyt, um convite que se faz vizinha ou mesmo irm co-residente a qualquer momento. Mas jorojyt um kat/pssaro (andorinha) que faz pessoas adoecerem, e a realizao de encontros inter-aldeos de troca requer
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a presena do dono de jorojyt como mediador entre as partes, funo que, num jorojyt intraaldeo comum, pode ser realizado por qualquer pessoa que no seja morador da casa onde se est trocando. Nesse ritual (os representantes de) kat so as pessoas que trocam: elas so ali as prprias andorinhas, e so elas que consumiro a comida oferecida pelo dono tambm. Por outro lado, h casos de pessoas que se tornam donos de kat sem terem adoecido. Entre os Mehinaku, por exemplo, quando visitei sua aldeia acompanhando uma famlia aweti em novembro de 2008, um grupo de homens vinha confeccionando um conjunto de flautas karytu, pois as que haviam antes na aldeia haviam sido levadas embora por seu dono que se mudara h alguns anos. Quando perguntei quem seria agora dono das flautas disseram-me que no fora decidido, mas que seria provavelmente o chefe tinha que ser ele porque o dono de flautas deve ter condies materiais de financiar a festa. Era isso que enfatizavam os Aweti o tempo todo: s pode ser dono quem consegue patrocinar uma festa, quem tem roa, ikotu. Os Aweti dizem que a pessoa v seu kat em sonho como se fosse um filho, pedindo comida; como uma criana, ele tem vontade de comer tal ou tal coisa, e pede a seu dono. Quando o mopat v a ang do doente, v que est nos braos de kat (otepot). Os presentes dados em retorno pela comida so comparveis aos objetos que, como veremos no captulo 5, circulam entre parentes, justamente porque se trocam coisas por alimentos (ne miu epyzan, como retorno por sua comida) e no coisas por coisas ou servios. E no so apenas os espritos que ficam contentes, a festa alegra a todos os participantes, danar divertido, ela proporciona ocasio para as pessoas verem e serem vistas por outras. preciso haver uma festa, por exemplo, para os jovens sarem da recluso, danando ou lutando, exibindo assim para a comunidade o trabalho realizado por seus pais e o resultado de seu prprio esforo e autocontrole. A menina gorda e branca, o rapaz forte e branco, tero ainda, idealmente, um matrimnio arranjado nessa ocasio.
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O trabalho coletivo de preparao para a festa tambm alegra, e a distribuio de comida no ritual no afeta apenas kat: so ao mesmo tempo as pessoas que esto compartilhando alimento, e produzindo para compartilhar. Mais do que isso, a festa a ocasio em que as pessoas mostram-se enfeitadas com todos os seus adornos ao modo propriamente xinguano, que inclui possibilidades de inveno e criao de novas modas nos padres de pintura corporal48. Quem est triste, de luto por exemplo, ou simplesmente preocupado com a doena de um parente prximo, no deve pintar-se nem usar seus colares, pois os adornos so um sinal de alegria. A sada da recluso de um enlutado marcada pela lavagem do corpo, corte de cabelo e pela pintura da pele com urucum. Resumindo todas essas aes diz-se somente otemoanga, ele se pintou de urucum. Por outro lado, escutando repetidamente as narrativas mticas e conversas sobre os antigos, comea-se a perceber que estar pintado faz parte da condio do humano: toda pessoa no mito descrita, minuciosamente, pelos adornos que veste - ne ypatsam, ne tyta, ne mio, ne mijuajbe, ne kywa pytsam, ne takwaraw, seu cinto, sua joelheira, seu colar comprido, seu colar grosso de caramujo, sua braadeira, seu desenho facial. Os jovens so tambm sempre recriminados por no andarem constantemente enfeitados hoje em dia: As meninas no se arrumam mais, no andam de cinto e uluri, por isso elas no transam hoje em dia. Quando elas andavam arrumadas, antes mesmo do banho de manh os rapazes vinham atrs, no caminho da beira, para namorar comentava comigo uma velha aweti. Vocs no usam uluri, no sei com o que vocs transam! concordava o marido dessa mulher, dirigindo-se s meninas. Mais do que algo adicionado
Certa ocasio uma jovem, filha de pai Mehinaku e me Aweti, criada na aldeia paterna, passou uma temporada na casa de sua MZ, onde eu tambm residia. Uma das maiores diverses para suas irms Aweti era aprender com ela alguns padres de pintura de perna feminina (ywantan) que estavam na moda entre as Mehinaku, alm de novos padres geomtricos de pulseirinhas de miangas (que circulam como pequenos presentes entre namorados e amigos).
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pessoa, os adornos parecem ser constituintes da pessoa, parte da prpria atividade reprodutiva. portanto atravs das relaes com kat que a comunidade aparece enquanto comunidade, as brigas so temporariamente deixadas de lado em prol do trabalho conjunto muitas vezes tendo em vista um benefcio conjunto, como nas festas do pequi e tambm que a humanidade aparece plenamente humana, em sua beleza e sua tica pacifista. As pessoas precisam da coletividade, em contrapartida, para manter boas relaes com kat. Em 2008, uma mulher aweti passara diversos meses na aldeia Mehinaku patrocinando a realizao de trs rituais para os kat que estavam fazendo-a adoecer. A viagem fora motivada pelo fato de no haverem entre os Aweti especialistas que conhecessem os cantos daqueles rituais especficos. Um ano depois, como continuasse passando mal, ela decidiu que era preciso de qualquer jeito realizar uma festa entre os Aweti: estou querendo que este pessoal faa festa aqui para mim, ela me disse, pois desconfiava que a festa em outra aldeia no havia satisfeito completamente um dos kat, que no desistia dela. Por fim, atravs das relaes com kat, as pessoas podem exercitar os ideais morais de humanidade e nobreza para um xinguano49: pacifismo e generosidade. E como insiste Barcelos Neto, a exibio de adequao ao padro moral tambm um instrumento para o poder, pois um bom lder deve ser, acima de tudo, uma pessoa extremamente moral e um doador. J diziam os Mehinaku: o novo dono das flautas seria provavelmente o chefe da aldeia; s poderia ser ele. Vemos que o ritual xinguano fornece um modelo de relao dos humanos com no humanos, e dos humanos entre si, baseado na condio de itat, dono. Note-se que tambm o rito funerrio do kwatyp, o nico ritual xinguano que no envolve de maneira nenhuma a ao de
Isso tudo idealmente. A tese de Rafael Bastos (1989) est repleta de relatos sobre as disputas em torno do conhecimento de cantos rituais no Jawari que presenciou entre os Kamayur. altamente provvel que isso se passe tambm nos rituais de cura de que estamos tratando. O Jawari, alis, tambm um ritual de kat, isto , jawari um kat, cujo ataque provoca dores nos ps. Por isso a festa funerria patrocinada no apenas pelos parentes do morto (we put itat, dono do seu ex-corpo), mas tambm pelo dono do jawari, jawari itat, que ocupa essa posio permanentemente. Bastos j notara esse fato.
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kat via adoecimento, organizado nesses termos: os donos do cadver (ne put itat), isto , os parentes homens mais prximos do falecido fornecem comida em troca da apresentao musical e coreogrfica da comunidade neste caso os mortos, que so tambm espcies de kat, ocupam o lugar dos entes patognicos na trade estabelecida entre um homem/um grupo de homens e a comunidade, enquanto a comunidade que o que viabiliza a boa relao entre o dono e aquilo de que dono sem a participao dos especialistas rituais e da comunidade de danarinos e coro musical, um homem no pode garantir-se como dono seja de kat seja de seus mortos ilustres, perde o status. Atravs dessa relao - que no pode ser caracterizada como de posse (a traduo dono para termos correlatos j foi devidamente criticada na literatura regional) indicando antes cuidado ou proximidade, kat, mortos e rituais parecem poder ser includos na lista daqueles componente da pessoa com os quais ela constitui um corpo: haja visto que rituais, como bens de valor, podem ser herdados aps a morte por parentes prximos (Barcelos Neto, 2004, tambm registra este fato para os Wauja). Vale notar a distino entre a relao de itat e aquela descrita pelo termo yp, como na expresso waraju eyp, coisa de ndio, que os Aweti usam para distinguir o feitio das doenas de branco. O termo -yp traduzido pelos Aweti certas vezes por meu particular, sendo particular uma palavra que usam frequentemente, em portugus, em meio a um discurso em sua lngua nativa. Significa que, em contraste com aquele que dono, itat, de algo, e que se coloca numa posio de mediador privilegiado entre este objeto (ou pessoa) e outras pessoas, yp marca uma relao de propriedade que no comporta a troca ou doao. Yp algo prprio de algum, enquanto itat dono de algo atravs do que vai se relacionar com outras pessoas. Significativamente, itat qualifica um sujeito atravs de suas relaes com aquilo de que itat, que com aqueles que no so itat daquela mesmo coisa: donde a lugar dos Aweti do sistema de trocas
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xinguano garantido pelo fato de serem tukyt itat, donos do sal, enquanto os Wauja so donos das panelas de cermica, macula itat. -Yp, por sua vez, no qualifica um sujeito, no uma marca distintiva de sua relao nem com aquilo que lhe prprio/particular (pois muitas pessoas podem ter um mesmo tipo de objeto como seu yp), nem com outros sujeitos. O termo se refere no ao sujeito, mas ao objeto de posse: no waraju, ndio, que se qualifica por certas doenas, mas as doenas que se qualificam por serem de waraju. Algo muda quando se diz que um objeto waraju itatytu, tem o ndio como dono, o que colocaria o ndio numa posio especial em relao ao objeto em questo, uma relao diferente daquela estabelecida por outros sujeitos/povos com este objeto. O que revela o papel fundamental da circulao de objetos-partes de pessoas na determinao de subjetividades. Voltarei relao de itat no captulo 3. Mas os kat no so apenas o meio e o objeto de exerccio da moralidade humana, eles so tambm muitas vezes a origem dos conhecimentos que hoje fazem dos humanos, gente, xinguanos, como sabemos pela histria que segue.
1.4.1Topatapuzaetomowkap50:aorigemdoscantosrituais
Certa feita um grupo de quatro irmos Wauja saiu durante a noite de canoa para pescar. Enquanto isso, na aldeia, karytu (flauta/kat) estava danando. Ao perseguir um enorme pintado (tuzuwi), os pescadores acabam perdendo-se e adentram a Via Lctea (ywywkajtaut), que o rio do cu (ywapit ey). Quando se do conta de onde esto, os pescadores miram seu povo l embaixo, no centro da aldeia, danando. Seguindo por esse rio, encostam em uma margem
Histria dos que se perderam: -topat perder-se; topatat aquele que se perde; put indica passado; -za coletivizador. Esse o modo como o narrador sempre se referia histria que segue, o nome da histria, portanto.
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prximo aldeia dos pssaros. Com medo de serem devorados pelas aves canibais, dizem a uma ave que se encontra por ali que vieram visitar seu filho, o periquito (owiryt). Ao chegar casa deste, apenas os dois irmos mais velhos, Myritawana e Olipiety, se afeioam pelo menino e dolhe de comer, enquanto os irmos mais novos consideram-no chato porque no pra de chorar. Estes dois irmo mais jovens dados por periquito ao urubu de duas cabeas, que os devora, crus, no centro da aldeia; os mais velhos, a que periquito chama de pai, so poupados. Periquito est se preparando para participar da festa de furao de orelha, e desde que chegam na aldeia dos pssaros os irmos so avisados de que iro furar a orelha de seu filho. Durante o perodo preparatrio para a festa, os pssaros tocam no centro todas as msicas de todos os rituais que os xinguanos conhecem hoje em dia: jappyj (furao de orelha), kwatyp, jamurikum, karytu, tawytatut (um esprito dono do pequi), ipitap (outro kat). Todas essas msicas so cantadas para que os irmos Wauja as aprendam: so as msicas tocadas nos rituais de kat e nos ritos funerrios hoje em dia pelos xinguanos. Os dois irmos passam muito tempo ali com seu filho, aprendendo. Quando finalmente realiza-se a furao de orelha de periquito, aps a pescaria que marca a sada da recluso dos iniciados, os irmos podem ir embora: pronto, pai, voc j furou minha orelha. Quando voc for embora, ensine tudo que aprendeu por aqui. O periquito lhes mostra as mulheres que andam na aldeia dos pssaros: Veja essas mulheres, pai, so nossas almas, kaj ang uza51. Conte isso quando voc for embora. Periquito manda seus pais embora para proteglos do urubu necrfago, dono do cu (urubu rei). Na volta terra o irmo mais novo acaba morrendo, pois no segue os conselhos do pssaro que lhe leva nas costas (outra espcie de urubu), abre os olhos antes da hora combinada e cai. Myritawana sozinho aporta vivo, pois
Uma vez que chama aos irmos Wauja de pai, o periquito se refere s almas humanas com a forma inclusiva segunda pessoa plural, kaj-. Aqui indica-se que ele efetivamente virou um congnere ao ser criado, alimentado, pelos humanos.
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mantm os olhos fechados todo o tempo de descida, como for a aconselhado. Contudo no segue um segundo conselho, de no olhar para trs quando urubu for embora: ao voltar-se, o pssaro lhe indica com os dedos que ter agora apenas poucos dias de vida52. Myritawan deixado prximo aldeia Kalapalo, onde karytu est danando (karytuzan oupeju; ver abaixo sobre esta expresso). O recm chegado ensina ento ao pessoal daquela aldeia tudo o que aprendeu com os pssaros. Tempo se passa, e ele parte pois tem saudade da esposa. No caminho passa ainda pela aldeia Kuikuro, onde mais uma vez ensina todos os cantos rituais que aprendeu no cu, at que finalmente chega aldeia Wauja, onde conta sua histria, o destino desafortunado dos irmos e seu aprendizado. Em poucos dias, contudo, ele morre os pssaros vm busc-lo. Antes de partir, ele explica aos homens: cuidem bem de seus animais de estimao (ei epuzaza), pois quando morrerem vo encontr-los no cu. Alimentem seus passarinhos (muzajyt), seus cachorros (tuwawatu), no briguem com eles (kware ei ao). Tambm explica ainda como a vida no cu: Toma-se ps como se fosse leite do peito (kuj kam pew) em lugar de mingau. Quando voc morre, no vai viver com sua esposa, vai para outra esposa (an etoka ejaty tso, izetu tso etotu). A histria, em suma, diz o seguinte: os homens aprenderam todos os rituais que sabem hoje atravs dos pssaros (menos o rito das flautas karytu, fato que mereceria anlise): foi Marytawan quem os difundiu na terra, entre os xinguanos. Isso inclui tanto os rituais funerrios, como o kwatyp, quando o rito inicitico de furao de orelha dos meninos, e rituais que hoje so realizados em contexto de cura, como ipitap (em kamauyr, nome pelo qual mais conhecido: tawarawan), jamurikum, karytu. Creio que devemos entender isso menos como evidncia do fato de que os pssaros tambm realizam rituais funerrios e de cura para seus prprios kat dos quais nada ouvimos falar - que evidncia de que os pssaros tambm tm cultura, moda
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xinguana, pois tambm so humanos. Quero dizer que talvez no devamos pensar nos rituais somente como eventos de cura ou de celebrao dos mortos, mas sobretudo como rituais cuja funo assegurar a humanidade do humano. evidente, contudo, que o mito aponta tambm para o fato de que os pssaros, sendo gente, devem ter tambm os seus prprios no humanos, para quem/com quem celebram seus rituais. Vimos que kat so seres no humanos que sentem pelos humanos uma atrao, por assim dizer, social: eles querem conviver com os humanos assim como estes desejam conviver entre si. Seres no humanos, como explicava-me o velho Aweti, so quase todos ex-humanos. Este homem costumava apontar para qualquer coisa que havia nossa volta, perguntando para meu desespero, j que as opes pareciam infinitas - que histria afinal eu desejava escutar: Mosca gente. Tem histria. Batente da porta - gente. Tem histria. Lagarto - gente. Tem histria.... Seres com histria so aqueles que passaram por uma transformao, que foram alterados a partir de coisas que fizeram a outros, ou que outros fizeram a eles para que assumissem a forma pela qual os conhecemos hoje. Antes de comer um macaco-prego, por exemplo, uma das poucas carnes de caa admitidas em sua rgida dieta alimentar, os Aweti quase sempre comentam que ex-gente, moat ut. Os macacos-prego de hoje em dia so os filhos das mulheres jamurikum que, abandonadas por maridos que viraram porcos do mato, fugiram para fundar uma sociedade s de mulheres, abandonando os meninos de colo dentro do pilo de suas casas. Na roa com uma jovem ela me avisa tambm j que eu, branca, talvez desconhecesse essa obviedade: rama de mandioca tambm ex-gente. Tipicamente, uma sogra que age mal frente a um genro, ou viceversa, ou um grupo de cunhadas invejosas, ou um marido trado so os agentes da alterao de um ser que era como humano engajado em relaes humanas em no humano, um animal da floresta, que passa a viver diferentemente. Mas muitos no humanos de hoje continuam vivendo
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como os humanos, muitos tm casas como as xinguanas, e hbitos similares aos xinguanos, com ligeiras mas significativas diferenas. No apenas vivem como gente, kat aparecem ao doente em sonho e ao xam em transe na forma de gente. verdade que seu antropomorfismo admite variaes considerveis, pois os kat muitas vezes tm uma forma humanide bastante extica: h por exemplo uma figura feminina da floresta, kaa itat (dona do mato), de pele muito branca e cabelos claros, sempre com seus colares de caramujo e cinto de buriti, famosa por seduzir os caadores. Outro tipo comum, awaz, famoso por gostar de crianas, uma espcie de bufo, com orelhas pontudas e dentes longos demais, alm de ser atrapalhado, pregador de peas e devorador de pessoas. H tambm um par de gmeos, menino e menina, que vivem no mato sempre enfeitados de colares, cintos, braadeira, joelheira, todos feitos de caramujo (mio). Quando comecei a perguntar se este ou aquele kat era parecido com gente, moat tsu, as pessoas respondiam logo: Moat! Kat!, gente! Kat!. preciso notar que, ao mesmo tempo em que descrevem kat no apenas como fazendo coisas de gente mas tambm como humanitrios (amorosos, seres que desejam pessoas por perto), os Aweti por vezes falam em virar kat como sinnimo de tornar-se imoral, brutalizado. Quando, por conta de srias desavenas o clima na aldeia tornou-se to pesado a ponto de um ritual que vinha sendo planejado ter de ser cancelado, ouvi muitos comentrios entristecidos sobre o fato daquela aldeia ser j uma ex-aldeia, tam ut - pois cada famlia planejava fugir para um canto - e sobre como os Aweti estavam virando kat: katzan azojwageju, estamos virando kat. Aqui a imagem no a mais a dos pssaros hipercivilizados, ainda que canibais e come-cru, mas aquela apresentada na histria de jamurikum, sobre um grupo de homens que vai pescar para a cerimnia de furao de orelha dos meninos da aldeia. No acampamento de pesca, os
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homens comeam a perder a medida, pegando mais e mais peixes e comendo-os na hora, ao invs de reunir uma quantidade moderada e retornar aldeia. As mulheres, preocupadas com a ausncia prolongada dos maridos, mandam o nico rapaz que restara na aldeia ver o que havia acontecido. Aproximando-se dos pescadores, nota que esto se transformando em porcos, com pelos em lugar da pele humana, dentes e orelhas compridasesto virando kat. Vemos assim que kat podem no ser gente, a transformao em kat implicando a adoo de uma corpo animal, como efeito da adoo de um comportamento antissocial. Mas se os Aweti estavam virando kat, metaforicamente, era justamente porque no estavam virando kat ritualmente, e isso devido ao de gente de sua prpria aldeia, feiticeiros eles estavam virando kat como resultado da ao de humanos, ao invs de virar gente atravs da ao de kat.
1.5Karikatene,kat:coisassomente,ecoisasquesopessoas
Kat significa, na acepo mais genrica, coisa. Numa interrogao, kat empregado no sentido de o que (em oposio ao quem, kojyka) como nas seguintes oraes: Kat emiu? O que voc comeu?; ou, kat ekwakupeju? O que voc est querendo?; Kat etup etejzaw?, o que voc viu em seu sonho?. Suspeito que a palavra karika, que tambm significa coisa/ o qu, derive da conjuno kat+ika (j que o t mudo seguido de vogal soa como r), onde ika enfatiza a interrogao, de modo que karika poderia ser traduzido como no sei que coisa, algo equivalente a uma coisa qualquer. Num sentido mais especfico, kat um objeto de uma pessoa, coisa de valor; o termo empregado sobretudo em situaes de circulao de bens. An itekatyka, no tenho coisas, dizse, por exemplo, justificando a recusa a participar de um jorojyt, uma troca cerimonial. No
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mesmo contexto do jorojyt, quando se trata de um encontro interaldeo, h uma forma estilizada da fala do chefe que conclama seu povo a reunir os bens a serem trocados: Nawyj kaminuaza, kajekat ikataw! Vamos, crianada, procurar nossos bens!. Ou ento, ainda no jorojyt, diz-se: ekat jotup, veja o que voc tem [a dar em troca por alguma coisa que se aceitou de outrem]. Por fim, o termo kat designa os espritos que provocam doenas nos humanos por desejarem conviver com estes, entre os quais alguns so feiticeiros53. Evidentemente, a identidade entre kat-coisa e kat-esprito uma hiptese que no tenho competncia lingustica para comprovar, mas que me parece plausvel por dois motivos. Em primeiro lugar, porque na lngua Aweti o termo kat com o sentido de bem pode aparecer possudo ou no, sob a forma ite-kat, meu bem/pertence, ou simplesmente como substantivo kat, bem, como na expresso kat-atytu54, coisa resguardada, coisa da qual se sem cime. Gramaticalmente, portanto, possvel que kat seja um s termo com duplo significado, e no um caso de homonmia. No que diz respeito ocorrncia dessa dupla significao em outras lnguas tupi, note-se que Boudin (1966, 117) registra em seu dicionrio de temb-tenetehara uma certa polissemia para o termo mae, que designaria alternativamente bem, propriedade, coisa ou objeto indeterminado, coisa estranha; em parintintin, o dicionrio publicado pelo Summer Institute (Betts, 1981, 118) registra para o termo mbater os significados de coisa, posse, mercadoria, mas tambm apario (seria neste ltimo sentido correlato a anhg, apario,
A mesma convergncia de sentidos no se verifica para outras lnguas xinguanas. Para o wauja Ireland registra yakawaka, coisas sem valor, insetos, bichinhos, objetos da cultura material (utilitrios, aparentemente), em oposio a bens de valor, apapai alai yajo (Ireland, 2001). Espritos so apapaatai. Para o yawalapit, Viveiros de Castro d yakawak, coisas, entes e objetos do mundo se distingue de apapla, bens; o autor nota que o yajo wauja designa verdadeiro, logo apapai alai yajo seria coisa verdadeira (2002, 45). O termo para esprito, apapalutpa, tem designa em sentido restrito as flautas karytu. Barcelos Neto, descrevendo os rituais de cura entre os Wauja, descreve minuciosamente os objetos produzidos para o ritual, mas no explora muito o tema dos objetos de valor que circulam como pagamento nos rituais. Em Kalapalo, ingikoguogu, propriedades, itseke, espritos (Basso 1973, 14). 54 A grafia correta seria karatytu, com tranformao do t em r por estar seguido de vogal na mesma palavra, mas mantenho a distino para evidenciar a composio do termo.
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isto , a ang aweti). Em kamayur, mamae designa os espritos patognicos; a duplicao, mama, comum nas lnguas tupi, parece indicar que se trata de um super mae, coisa exagerada ou estranha, justamente. Coisas ou bens so karamem, termo muito provavelmente cognato do kazamene aweti, alternativo ao kat para designar objetos de valor. possvel que kat/ka(t)zamene/karamem sejam cognatos de kara, termo tupi-guarani que designaria o sagrado ou sobrenatural, e que na lngua aweti essa raiz tenha adquirido o duplo significado de coisa/coisa sobrenatural correlato ao mae de outras lnguas tupi, enquanto no kamayur mantiveram-se termos separados. Compare-se alm disso com o termo "bicho" no portugus rstico, usado para designar coisas estranhas em geral, como nota Lvi-Strauss (1950) na Introduo Obra de Marcel Mauss. Como na maioria das lnguas amerndias, no h um termo abrangente que corresponda categoria animal. Kaloleput designa animais da floresta, como caititu e queixada, anta, veado, ona, quati em suma, os ditos animais de pelo, entre os quais no se incluiu o cachorro, tuwawatu55. possvel que kaloleput no seja aplicvel a animais domesticveis, o que seria coerente com a etimologia que apresento a seguir. Alm dessa, a lngua aweti possui apenas duas outras macro-categorias abrangendo espcies diversas os peixes, pirayt, e os pssaros, karayput. Jacar, cobra, lagarto, ariranha, sapo, os mais diversos tipos de insetos, e as diversas espcies de macacos, no so agrupados em nenhuma classe. Por isso me surpreendi certa vez quando uma jovem Aweti perguntou-me se eu conhecia cuzuzu, que uma espcie de sapo; o surpreendente foi a forma da pergunta: ekwawap cuzuzu, karayput?, voc conhece cuzuzu, uma
Quando comecei a frequentar a aldeia aweti, em 2004, apenas uma famlia possua um cachorro, sendo por isso criticados por quase todo o resto da aldeia. As pessoas no apenas tinham medo de levar uma mordida mas temiam tambm que o cachorro passasse alguma doena, pois diziam que twawatu doena itat, dono da doena. Ao longo dos ltimos anos, diversas famlias comearam a criar cachorros, que no entanto tratam com certo desprezo, em contraste com os cuidados dispensados s aves de estimao. As pessoas desejam ter cachorro agora pois ele avisa tanto a presena de kat (pois sente o cheiro) quanto a aproximao de um feiticeiro.
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ave?. S ento percebi que pssaros talvez no fosse a melhor traduo para o termo karayput pois obviamente aquela jovem no pensa que o sapo seja um tipo de ave. Ambos so espcies de filhos de kat: kat ayt put pois as regras de pronncia transformam um t mudo seguido de vogal em r, enquanto o t seguido de consoante desaparece. Os animais de pelo, por sua vez, seriam literalmente kat horrorosos, kat loleput. A etimologia, que discuti com diversos Aweti, me parece bastante plausvel. Na lnguas aruak xinguanas, o termo que designa animais de pelo derivado do termo para esprito, associado a um modificador que foi traduzido nas etnografias como corporificador ou marcador de realizao imperfeita de um prottipo. Temos assim, em Yawalapit, apapalutpa mina, onde apapalutpa designa os espritos patognicos que os Aweti chamam de kat e mina o modificador (Viveiros de Castro 1977, 2002); em Wauja, apapaatai mona (Barcelos Neto 2004. porque classificam alguns animais como sub-espritos, sugere Viveiros de Castro (2007a) que os xinguanos consideram o consumo de sua carne perigoso, alimentando-se somente de peixe, uma espcie de macaco e aves. A designao aweti kaloleput, kat lole put56 pareceria endorsar essa anlise, colocando os animais que so anti-alimento para os xinguanos como uma verso feia ou estragada de kat/esprito. Lol, feio ou ruim, antnimo de katu, bom/bonito e no me parece de nenhuma maneira operar como o modificador mina/mona aruak, correspondendo talvez ao malu Yawalapit, que designaria algo falso ou feio (cf. Viveiros de Castro 2002a). Uma bicicleta que tornou-se lol (ololeat) uma bicicleta estragada, uma roupa loleput uma roupa feia ou velha demais. Moat loleput57 uma pessoa inadequada, seja
O put aqui no parece designar uma relao passada, mas um trmino, a definio de um termo ou categoria de ser, justamente. 57 Trata-se de um jeito muito comum das mulheres se referirem aos homens, julgando-os como namorados ou cnjuges, como fazia uma irm com quem eu conversava sobre casamento: Moat ikatutu, campeo de luta, danarino, especialista ritual, esses no so bons de casar, porque se voc os manda pescar eles ficam bravos, pare
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por comportamento, seja pela aparncia, coisas que geralmente andam juntas; inversamente moat ikatutu, uma pessoa boa, tanto benvola quanto bela. No entanto, quando conversei com algumas pessoas sobre o significado de kaloleput, tive a impresso de que a ideia de referncia que o lol modifica no esprito e sim coisa qualquer. Kaloleput parece-me designar, em suma, uma coisa qualquer horrorosa, uma coisa indefinvel, e sem dvida no comestvel. O mesmo me parece ser verdadeiro para o termo kat na formao de kat-ayt-put, karay put, filho de kat. No creio haver a ideia de que toda ave e talvez alguns sapos - sejam filhos de espritos, mas sim, genericamente filhos de algo. Quando falam de sua aves de estimao, os Aweti sempre usam a expresso filho de, j que realmente esto sempre caa dos filhotes para criar. A relao uma de adoo, o que nos remete novamente histria dos pescadores perdidos na Via Lctea Apenas ao final, o narrador esclarece que o periquito fora animal de estimao (puz) dos irmos, que ao chegarem na aldeia dos pssaros podem portanto evocar a relao de filiao que mantm com ele, por terem-no alimentado. Se as aves so os inimigos dos humanos no cu, sua domesticao na terra uma forma de domesticao de inimigos (cf. Erikson 1984; Fausto 2001), estabelecendo uma relao que tem continuidade no cu. Os filhotes de pssaros encontrados pelos adultos so quase sempre dados s crianas pequenas, mas todos so loucos pelas aves de estimao. As aves no so, portanto, como os animais de pelos, coisas horrveis, so filhos de alguma coisa (no humana) passveis de se tornarem filhos de humanos. Domesticar uma ave literalmente, faz-la gente: moaka (ver cap. 3). Como filhote de alguma coisa, podemos entender porque um sapo pde ser chamado de karayput, ainda que isso no tenha nada a ver com a possibilidade de criar um
de mandar em mim, eles te dizem. Veja o meu marido: moat loleput tene, s um homem ruim [magrelo, feioso, no sabe danar direito]. Se eu falo para ele pescar, ele vai, todo dia ele trabalha na roa. Muitos garotos, contudo, so recusados por suas amadas sob essa alegao: voc moat loleput, no gosto de voc!
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sapo de estimao, coisa que no creio ocorrer a nenhum Aweti. Resta dizer o seguinte: com toda a indefinio que parece marcar as categorias de kaloleput e karayput, os termos tendem a se cristalizar em categorias: da que kaloleput parecia inaplicvel a um sapo, enquanto karayput no. Nesse sentido, me parece que devemos entender os espritos kat como, antes de tudo, coisas sem definio precisa, coisas que no sabemos exatamente o que so (esta seria mais uma noo tipo mana, como o bicho do portugus popular, cf. Lvi-Strauss 1950) Assim como ocorre nas categorias animais, contudo, h um vetor de cristalizao, precipitando uma espcie de ncleo duro, no qual kat designa uma categoria bem marcada de no humanos, os espritos mais comuns do panteo Aweti/xinguano: kaa itat, awaz, miuty, akyky. Ou seja, entre as coisas que no sabemos exatamente o que so, esto coisas que sabemos exatamente que no sabemos o que so, os espritos nomeados. Fora da, muitas coisas so potencialmente kat, no sentido que se depreende desse ncleo, isto , coisas que podem interagir com as pessoas na condio de espritos, ou agente no humanos. Tudo se passa, a meu ver, como se certas coisas especficas (espritos) projetassem suas qualidades sobre todas as coisas em geral: canoas, panelas, um veado no campo, um passarinho no acampamento de pescaria. Com isso, podemos dizer que kat qualquer coisa, mas nem toda coisa kat. Alguns peixes no so, como os demais, simplesmente peixes (pirayt), eles so (auto-) tranformadores, wagat58: Pode-se pescar um pintado (tuzuwi) que na verdade seja um ex-jacar (topepiryt ut), ou uma arraia que um tatu transformado, ou um pirawatu que foi uma paca. Nem todos o so, tanto que seguimos comendo tuzuwi, apesar de outros peixes serem evitados por este motivo, mas a verdade que nunca se tem como saber. Essa qualidade transformacional
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extraordinria faz deles kat, e logo perigosos ao consumo. Mas nem todo ser que j foi outra coisa ser assim classificado: mesmo os peixes comuns eram gente em tempos ancestrais os peixes foram as gentes convidadas por Kwat e Taty quando realizaram o kwatyp de sua me, na aldeia do jaguar Itsumaret. Quanto aos peixes-peixes de hoje em dia, tambm vivem em aldeias, danam em rituais no fundos dos rios, possuem uma lngua prpria: h relatos de homens que, feridos durante uma pescaria, tiveram de noite sua ang carregada para a aldeia dos peixes, onde participaram de festas, aprenderam cantos e depois retornaram superfcie para contar aos parentes. Por que ento os peixes so uma comida menos perigosa que os animais da floresta (kaloleput), e mais perigosa que as aves e os macacos as primeiras carnes comestveis na sada de perodos de jejum, as nicas comestveis para mulheres menstruadas? Aparentemente, algumas coisas devem ser evitadas porque so (ou correm um risco maior de ser) kat, como os animais de pelo, jacars e cobras, e eventualmente alguns peixes; outros no entanto, como os peixes grandes, so evitados pelo excesso de gordura e pelo excesso de um tipo de cheiro, ipylyu, e nesse caso o problema que eles incomodam kat. Voltarei a este assunto no cap 3. No sentido forte do termo, portanto, kat designa um tipo muito especial de coisas: coisas com uma potncia extraordinria, geralmente manifesta como poder agentivo sobre o humano, eventualmente marcada pelo fato de possurem uma aparncia humana, ainda que normalmente invisvel aos olhos humanos. Barcelos Neto fala dos apapaatai como predadores dos humanos; de fato existem algumas histrias de pessoas devoradas por kat o caso dos ancestrais dos Kamayur, por exemplo, praticamente dizimados por uma gigantesca cobra sobrenatural. Mas apesar de temerem muito encontr-los, os Aweti no costumam falar de kat como inimigos ou predadores, vendo-os antes como seres que no desistem das pessoas. No caso dos peixes wagat, contudo, no so nem o desejo de estar com as pessoas, nem uma aparncia humana, nem
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um impulso predatrio que os fazem kat, sua potncia de auto-transformao, sua natureza mltipla, podemos dizer: mais que peixes comuns, so peixes-paca, peixes-cobra etc. - isso que os faz perigosos ao consumo. A agentividade, portanto, seria correlata a uma multiplicidade interna que faz de kat seres transformacionais, wagat (cf. Viveiros de Castro 2007a).
1.5.1Coisasdetrocar
Que dizer sobre a natureza dos bens kat ? Objetos de valor pertencentes a uma pessoa e usados como pagamento e retorno em rituais de troca tambm no so coisas quaisquer, so objetos com agncia. So designados por este termo objetos utilizados em pagamentos por servios variados cura xamnica, servios funerrios, contra-feitiaria, furao de orelha dos meninos ainda crianas ou quando jovens, iniciao xamnica, execuo de feiticeiros ou dados em troca de outros objetos de valor, neste caso configurando uma troca cerimonial jorojyt. O compartilhamento de bens de valor em contextos de pagamento de determinados servios tambm um importante constituinte do parentesco, assunto a que voltarei no captulo 5. No topo da lista dos objetos valorizados esto os colares tradicionalmente confeccionados pelos povos karib (Kuikuro e Kalapalo) a partir de caramujos encontrados no campo (mina), hoje bastante raros. Colares de minoa podem ser sunstitudos por aqueles fabricados a partir de outra espcie de caramujos, que os xinguanos adquirem com os Xavante, geralmente em troca de colares monocromticos de mianga. Recentemente, os Aweti, e certamente outros povos da regio, descobriram que os caramujos conseguidos com os Xavante podem ser tambm comprados em grandes quantidades em Braslia por preos irrisrios. Mas se os colares de mioa so mais raros e mais valorizados, aqueles feitos a partir da espcie de caramujos que se pode
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comprar ou trocar no deixam de ter um preo alto. Esse valor creditado ao tempo e trabalho empregados em sua manufatura, e a seu tempo de durao, fatores que dependem da dureza do material (Barcelos Neto, 2009, ressalta esta relao entre valor e durabilidade das flautas sagradas kawok). Depois dos colares de caramujo, o objeto que est entre os mais valorizados so os colares monocromticos de mianga que os xinguanos produzem com as contas trazidas por gente de fora ou compradas por eles mesmos na cidade. Os variados tipos de adornos plumrios produzidos pelos homens tambm so objetos de troca valorizados. Neste ltimo caso, o valor estaria talvez ligado mais s sua raridade que durabilidade. No que concerne s miangas, sua procedncia exterior, a dificuldade de aquisio e a durabilidade talvez justifiquem seu valor, mas no discurso nativo so suas qualidades estticas (brilho, perfeio das contas, monocromia) que as tornam bens valiosos. Colares de caramujo ou de mianga so classicamente o que os Aweti chamam de kat, bens. So tambm objetos fundamentais para que a pessoa possa aparecer publicamente num ritual (so adereos indispensveis de uma pessoa enfeitada, marcadores de xinguanidade, como foi dito acima) mas na vida cotidiana, guardados na mala quase sempre trancada a cadeado de seu dono, so sua garantia de sade, sua possibilidade de pagar um tratamento xamnico, caso necessrio. Os demais adereos tradicionais, produzidos de palha e algodo, podem ser objeto de trocas59, mas dificilmente valem como pagamento por um servio importante, o que provavelmente se deve sua baixa durabilidade. So, por outro lado objetos preferenciais dos feiticeiros para atingir suas vtimas, um tema que discuto no captulo 5.
Os Aweti so provedores de artigos de palha de buriti (usada na confeco de cintos femininos, esteiras de processar mandioca e redes) a outros xinguanos que no possuem acesso fcil aos grandes buritizais da regio. O produto mais reconhecidamente associado a eles, no entando, o sal vegetal, tukyt, produzido a partir da queima e cozimento das cinzas de uma planta aqutica.
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Mas adornos corporais no so os nicos bens usados para pagar servios ou no so os nicos objetos considerados bens. Panelas de alumnio (em substituio s tradicionais panelas de cermica produzidas pelos povos aruak60) tambm so altamente valorizadas, e em determinadas circunstncias qualquer objeto pode ser usado para pagar o xam, contanto que isso o satisfaa, e mais importante, satisfaa ao xam do xam, seu esprito auxiliar, destinatrio final do pagamento. J vi um homem dar a seu pai algumas caixas de fsforo em pagamento pelo tratamento xamnico da filha; apesar do pagamento ser destinado em ltima instncia ao esprito auxiliar do xam, na prtica um xam da famlia ir requerer pagamentos muito mais baixos que um xam distante. De qualquer jeito, o tratamento caro porque vale a vida do xam: a fumaa do tabaco queima sua boca e lhe faz perder o apetite, o esprito dono do tabaco perigoso, o xam deve se abster de sexo durante tratamentos prolongados (ver cap. 3). Se qualquer objeto, e at mesmo dinheiro, pode ser usado no pagamento de servios importantes, isso no diminui a importncia daqueles assim empregados tradicionalmente - os adornos corporais e utenslios culinrios61. Veja-se o desespero de uma mulher Aweti, num intervalo do que tem sido um longo perodo de convalescena, ao observar entre seus objetos quo poucas miangas e caramujos ela e suas filhas agora possuam, pois tudo havia sido distribudo aos xams que a trataram nos ltimos meses. Sua aflio se devia sobretudo ao fato de que era sua irm, em outra aldeia, quem naquele momento precisava de ajuda para pagar uma cura, e ela realmente pouco podia fazer para ajudar.
As panelas de cermica trocadas com os Wauja e Mehinaku so ainda indispensveis culinria Aweti, mas no so usadas por eles em retorno a outros bens ou servios. Cada casa tem obrigatoriamente um tacho de beiju e uma panela alta para cozinhar mingau de mandioca feitos de cermica. As panelas de alumnio so atualmente necessrias na cozinha para procedimentos que no envolvem cozimento de alimentos: so usadas como receptculo no processo de fabricao do polvilho, como cuias e como receptculos de gua. H ainda as bacias, que substituem os cestos de palha para carregar razes de mandioca da roa para casa. Panelas e bacias de alumnio so frequentemente usados como pagamento pelos Aweti e constituem aquilo que denominam kat. 61 Esperaria-se poder incluir aqui armas de fogo, mas de fato nunca pude observar nem ouvi falar da circulao desses objetos, que parecem permanecer com seus donos, uma vez adquiridos, indefinidamente
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Creio podermos definir como bem (kat) da pessoa tudo aquilo que pode ser transmitido e que vale a vida de seu dono: seja porque quase morreu ao produzi-lo ou adquiri-lo, seja porque com ele que vai garantir sua integridade fsica no futuro. Este o caso por exemplo dos colares de mioa, pois o caramujo tem um dono espiritual, uma cobra, que pode se vingar daqueles que entram em contato com ela sem respeitar certos tabus. o caso caso tambm do sal vegetal produzido pelos Aweti (tukyt), cujo alto valor nos eventos de troca intercomunitria sempre remetido ao fato de as mulheres enfrentarem grandes perigos (como o peixe eltrico e os kat que habitam as lagoas de onde retirado o aguap62) e privaes fsicas no processo de produo; antigamente, diz-se, a fabricao do tukyt requeria ainda a observncia de diversos tabus e poderia mesmo acarretar na morte do seu dono nanywo tepy, por isso caro, explicam os Aweti63. Ao descrever esquematicamente os rituais para kat, ressaltei de que modo as festas proporcionam ocasio para a exibio do corpo xinguano plenamente ornamentado, evento cuja imagem modelar a sada de jovens da recluso, pensada explicitamente como exibio para a comunidade do trabalho de constituio do corpo do recluso. Miangas e caramujos, repito, no so apenas moedas de troca guardadas numa poupana, mas tambm constituem o prprio corpo da pessoa. Mais do que um corpo bonito, os enfeites corporais fazem de uma pessoa xinguana gente, moat, como se sem suas pinturas e adornos no estivesse completa. Mas no apenas os enfeites e pinturas corporais, todos os objetos considerados de valor, kat, podem ser vistos como constituintes da pessoa, sobretudo no que diz respeito sua identidade de gnero. Panelas para
Uma pontederiaceae. O sal vegetal usado somente como pagamento a outros xinguanos, pois os Aweti possuem quase sempre, cada ncleo familiar, uma quantidade para consumo prprio. Alm disso o sal no costuma ser considerado como o que venho aqui chamando de bem nos contextos de cura xamnica, por no ser durvel. Quanto a seu valor de troca, um velho aweti certa vez contou como se recusar receber tukyt de uma mulher tambm aweti em pagamento por t-la salvado de um estupro coletivo pelos Kamayur. Ele exigiu o pagamento em caramujo, pois havia salvado sua vida.
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carregar gua, panelas para ralar mandioca, esteiras, um tacho de assar beiju, uma panela de cozinhar caldo de mandioca e panelas de cozinhar peixe, todos esses utenslios fazem de uma mulher adulta, mulher: sem eles estaria impossibilitada de desempenhar suas tarefas femininas. Quanto aos homens, poderiam tambm circular objetos associados a suas atividades cotidianas, como material de pesca e munio para caa mas, como ressaltei acima, trocas rituais masculinas so muito mais raras, ao menos entre os Aweti. Homens tambm colocam em circulao panelas, caramujos, arte plumria, sal. Esto com isso constituindo o corpo de bens da casa. No captulo 5 volto a comentar o efeito da circulao de objetos de valor como um dos principais constituintes e marcadores das relaes entre consanguneos e afins. O fato de que as pessoas trocam objetos necessrios para sua vida diria, alguns dos quais so guardados para servirem de moeda em transaes futuras, outros entrando imediatamente em uso, no faz das trocas eventos meramente econmicos. Muitas vezes troca-se por trocar, por tdio ou obrigao. Um jorojyt tem o poder de afastar a chuva, e os homens logo incitam suas irms e esposas a trocar seus bens quando comea a chover. Em dias de eclipse, trocar bens tambm obrigatrio: seno corre-se o risco de simplesmente perder o objeto a respeito do qual a pessoa foi sovina64. Na ocasio da morte que presenciei de uma criana Aweti, antes mesmo que o corpo chegasse de Cuiab, a me da menina trocou todos os seus bens com homens e mulheres da aldeia que haviam ido visit-la. Explicaram-me que ela fora obrigada a trocar, pois tivera um pesadelo, e nesse caso era preciso se desfazer de tudo para no arriscar perder seus bens. Uma irm dessa moa, contudo, ofereceu outra explicao: disse-me que era preciso trocar todos os seus objetos para no ficar pensando na filha falecida. Em casos como este, de troca obrigatria,
Ver, sobre o significado e as implicaes do eclipse, o vdeo O dia em que a lua menstruou (2008), de Takum Kuikuro e o Coletivo Kuikuro de Cinema, com o apoio da organizao Vdeo nas Aldeias.
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quase sempre troca-se um objeto por outro praticamente idntico, da mesma natureza: vestido por vestido, mianga por mianga, mala por mala. Quanto me da menina falecida, foram postos em circulao no apenas os objetos valiosos da moa, mas todos os seus objetos mais pessoais. Na verso mais simplificada do jorojyt, duas pessoas simplesmente trocam bens, dizendo que esto jorojyt: o termo designa apenas que um bem ser dado em retorno a outro. A coisa recebida assim jorojyt put, produto do jorojyt. Outra possibilidade que a troca se realize entre duas casas. muito comum uma criana ser mandada de bicicleta casa do vizinho para propor o incio de um ciclo de intercmbio de bens. As iniciadoras comeam mandando seus objetos, um a um, dizendo ou no o que gostariam de obter em troca. Iapakawan, seu retorno significa que a pessoa quer algo da mesma espcie, mas de qualidade diferente, por exemplo deseja trocar miangas amarelas por miangas de outra cor. Ekat jotup, veja suas coisas, significa que a doadora est disposta a ver o que a receptora tem a lhe oferecer em troca. Em seguida a vez das mulheres da outra casa mostrarem o que tm, atravs da mesma criana mediadora, enquanto as iniciadoras da troca que ento decidem o que querem reter, se tm o que dar em troca etc. Por fim, na modalidade mais formal da troca intra-alde, as mulheres se renem e circulam a aldeia entrando de casa em casa. Uma no moradora se senta num banco, assumindo a posio de mediadora ou morekwat, chefe, enquanto as moradoras comeam a mostrar o que tm para trocar. A mediadora sentada pega o objeto do cho, oferece assistncia, pergunta o que a doadora quer em troca. muito deseducado no apresentar nada quando sua casa visitada, como tambm deseducado que ningum pegue nada do que foi oferecido em uma casa. J vi mulheres trocando uma barra de sabo por outra, ou pessoas dando suas ltimas caixas de fsforos, s para evitar esse constrangimento. Se falo aqui sempre de mulheres, porque nunca vi um jorojyt exclusivamente
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masculino, apesar de ser plenamente possvel. Mesmo em encontros inter-aldeos, j vi trocas s femininas, mas em eventos maiores homens e mulheres participam juntos. Segundo as mulheres aweti, os homens no trocam porque so sovinas. Por a v-se que trocar um prazer (soluo para diversos momentos de tdio) e uma necessidade (por exemplo, se uma mulher est precisando de linha de algodo para enfileirar suas miangas, dirige-se casa ao lado jorojytzan, oferecendo um pano ou outra coisa). Mas tambm uma obrigao e um fardo. preciso no ser tekat atytu, apegado a seus bens. Se os objetos constituem pessoas no na condio de marcadores identitrios: os objetos no guardam a memria de seus antigos donos e, logo, no servem para fazer circular nomes e fama, como no kula melansio descrito por Malinowski (1922), por exemplo. Pelo contrrio, uma das funes da circulao de objetos desfazer a memria, desconectar objeto e pessoa conectando a pessoa a outras pessoas, como se passa por ocasio de uma morte. Mas a prpria necessidade de desconeco entre um objeto e seu ex-dono evidencia a fora da ligao que preciso, com esforo, desfazer - evitando ser sovina, por exemplo. Dizer que objetos de valor tm um papel preponderante na constituio da pessoa xinguana tampouco implica que estejamos falando de um sistema em que a acumulao de bens seja um objetivo em si. Ter kat necessrio para parecer gente, ornamentado no ritual, agir como gente, trabalhando na vida diria, e relacionar-se como gente, compartilhando bens entre parentes - donde se conclui que mesmo as coisas mais fundamentalmente associadas ao corpo e ao cotidiano da pessoa existem para circular. A agncia dos objetos de valor seria justamente esse poder de conectar. Mas preciso considerar aqui o papel da acumulao de bens na fixao de distines hierrquicas, um processo que tem sido ressaltado na etnografia recente da rea (notadamente nos trabalhos de Heckenberger, 2000, 2005).
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Quando uma pessoa torna-se dona de kat, patrocinando um ritual em que alimenta o esprito que provocou-lhe um adoecimento, recebe em pagamento dos kat que alimentou inmeros bens de valor. Barcelos Neto (2009) se refere a este circuito de produo e circulao de bens como uma mquina da opulncia. O autor sustenta que essa mquina operaria no sentido de confirmar o status de chefia de determinados indivduos: aqueles que j so respeitados como chefes, e portanto considerados generosos, recebem maior apoio do grupo para promoverem rituais, e assim mostrarem-se generosos, recebendo em troca bens de valor, que funcionam como ndices de sua potncia alargada. Os pajs xinguanos so tambm frequentemente descritos como acumuladores de bens de valor, uma vez que recebem altos pagamentos pelas curas empreendidas. Essa riqueza pode ser entendida como efeito e sinal das relaes bem sucedidas que mantm com seu esprito auxiliar, aumentando tambm seu prestgio, o que o leva a ser mais requisitado etc. Nesse sistema, enfim, a posse de bens de valor tenderia a produzir mais bens de valor, os quais operam como distintivos de status; e se status gera status, a chefia como um status diferencial herdado tenderia a ser confirmada ao longa da vida de um indivduo (Barcelos Neto, 2004). O que me parece que devemos enfatizar, que a posse de objetos de valor no um objetivo em si, mas um meio de estabelecer relaes. Heckenberger j diz isso, ao afirmar que objetos de valor funcionam como smbolos distintivos que possibilitam no a acumulao de mais objetos, mas a acumulao de mais prestgio. Os objetos revelam o sucesso de relaes precedentes - o apoio de um grande grupo familiar na produo de um ritual que culmina com o recebimento de presentes dos espritos, por exemplo. A ttulo de matizar a descrio acima, lembro ainda que o acmulo tanto de objetos quanto de poder (de exclusividade na relao com os brancos, sobretudo) tm por contra-efeito produzir nos outros uma cobrana de generosidade
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difcil de satisfazer por parte do acumulador. Assim comentava, por exemplo, uma mulher aweti a respeito dos altos pagamentos que sua famlia vinha fazendo a seu sogro por servios xamnicos: me di ver que todos as nossas coisas (azoekat) foram parar na mo de titio. De xams assim, as pessoas na aldeia dizem que so exageradamente tepytu, careiros, ou tepy lu, loucos por pagamento, reconhecendo, um pouco desconfiada e mau-humoradamente, que so os espritos auxiliares que no se satisfazem com pouco. Logo, se verdade que a fama de bom xam faz com que um homem tenda a receber mais bens, o mesmo podendo passar-se com aqueles que conseguem maior ajuda para promover rituais ou com chefes que intermediam relaes com o mundo branco, o acmulo de objetos de valor pode gradualmente tornar-se um problema cuja soluo no simples. preciso ter bens para ser generoso para fazer parentes e para mostrar-se parente do grupo enquanto coletividade, nos rituais. O problema que satisfazer os parentes e logo, ser reconhecido como parente - no fcil. Voltando noo de kat, vemos que em sua duas acepes este um elemento constituinte de pessoas (que se reconhecem mutuamente como) humanas: enquanto classe de seres, kat so detentores de uma sociabilidade que incorporada ao mundo humano como meio de afirmao de sua humanidade, no ritual; como objeto de valor, kat tambm um meio pelo qual pessoas estabelecem relaes enquanto possuidoras de bens que colocam em circulao. Note-se que, na condio de objeto do ritual, um kat-esprito ao mesmo tempo um ente cuja potncia apropriada e um bem que seu dono pe em circulao, recebendo kat-bens, em troca. Ao mesmo tempo, as coisas kat e outros elementos que compem uma pessoa so a matria prima do feiticeiro, que os manipula no para afirmar sua humanidade, ou sua humanidade em relao humanidade do outro (como o fazem parentes ao circularem objetos de valor entre si), mas o contrrio. preciso agora entender as tcnicas de feitio para saber de que
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modo a manipulao de objetos um processo comparvel, ao mesmo tempo que oposto, construo do parentesco.
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Captulo2 Tupiatitazaporywyt:oquefazemosfeiticeiros
Os Aweti distinguem com clareza feitio, tupiat, de outras causas de adoecimento. O termo no corresponde exatamente a uma tcnica especfica, compreendendo antes a um conjunto de tcnicas que aparentemente tomam o nome emprestado a um dos modos de enfeitiamento que envolve a projeo de flechinhas invisveis chamadas tupiat. No sentido mais estrito, portanto, o termo designa somente estes objetos, que um feiticeiro tem e os demais no tm. Mas diversos outros tipos de malefcio que no envolvem tais flechinhas so chamados de tupiat pelos Aweti. Tampouco se poderia dizer que o feitio caracterizado pelo agente, distinguindo uma esfera de ao humana de uma esfera de ao no humana. Como vimos, gente e kat igualmente fazem ou tem feitio, ponto que me parece fundamental: se o feitio quase sempre creditado a humanos, vizinhos, isso se deve menos a um princpio cosmolgico que ao fato do feitio ser quase sempre interpretado como resposta a um problema relacional entre pessoas prximas. Isso significa que apenas de fato, mas no de direito, a feitiaria coisa de xinguanos/humanos. Ademais, se tudo potencialmente gente por ali, no h razes para acreditarmos que s um tipo de pessoas seja capaz de fazer feitio o que realmente no se passa. Como definido o feitio entre os Aweti? H, por um lado, um conjunto de tcnicas assim classificadas; ainda que se admitam variaes, possvel identificar alguns procedimentos constantes. No entanto, o conjunto das tcnicas apresenta uma considervel heterogeneidade, o que nos oferece certa dificuldade para definir a partir delas o termo tupiat. O que parece unificar
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tal variedade a intencionalidade maligna que se identifica em sua origem. Creio que os Aweti chamaro de tupiat qualquer malefcio. Por sua vez, a perversidade supe um tipo de desfecho, a morte: kat no mata, s feiticeiro mata. Este aspecto de suma importncia, como venho argumentando, pois so as consideraes sobre a maldade implicada no feitio que fazem dos discursos sobre feitiaria comentrios a um s tempo sociolgicos e cosmolgicos, sobre a natureza das relaes e a natureza dos sujeitos com quem uma pessoa necessariamente se relaciona para viver. O dicionrio parintintin (Betts 1981, 195) define o termo upiar, do qual o tupiat aweti parece ser cognato, como meio, instrumento, sendo especificado que pode designar o meio de mataralgo. Pira upiar seria um instrumento de matar peixe, enquanto kunhano ndupiar, por exemplo, seria qualquer objeto empregado para matar uma mulher, em geral um pedao de roupa ou qualquer objeto pessoal usado para atrair a vtima. Para o temb-tenetehara (Boudin 1966, 232) registra-se rupi como posposio de meio ou instrumento de ao. Montoya fornece para o guarani a chave que conecta os dois sentidos, nominal e adverbial, da raiz: tupicha o feiticeiro, devemos entender aqui o xam, pois a traduo literal seria aquele que tem um esprito familiar; o termo seria composto, segundo o autor, por rupi-guara, onde guara significa grosso modo agente e rupa, coisa danosa ou inimigo, sendo rupi tambm a posposio por meio de". O matador parakan designado morupiarera, onde -ropia seria matador; em ach, o matador brupiar, e no arawet moroph (Fausto 2001, 52), casos em que vemos a raiz ropi adquirir o significado especfico de causar a morte. O tupiat aweti tambm um substantivo, mas aqui passa a designar no o sujeito que causa a morte, mas o objeto que o meio da morte, remetendo ao sentido posposicional que adquire o raiz no temb-tenetehara, e tambm no guarani
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registrado por Montoya. Note-se que para os Parintintin um objeto pessoal seja usado como isca para matar algum atraindo a vitima para perto de seu matador, enquanto na feitiaria xinguana objetos pessoais so o meio pelos quais o matador age diretamente sobre a vtima. Na lngua aweti o termo passa a designar exclusivamente objetos para matar, coisa que o distingue claramente flechas de feitio de kat uwyp, que seriam objetos para atrair ou para conectar, simplesmente. preciso considerar ainda o porqu do termo tupiat ser aqui traduzido por feitio. A traduo evidentemente no minha, apenas reproduzo o que me ensinaram em portugus os Aweti, alm de seguir os etngrafos quanto aos termos correlatos nas demais lnguas xinguanas. A questo em que medida tupiat pode ser descrito como um fenmeno da mesma natureza que o feitio em outra partes do mundo. Isso deve ser dito apenas lembrar que chamar tupiat de feitio estabelecer uma comparao e inscrever esta etnografia num universo mais amplo de anlises sobre feitiaria. Vejamos a clssica e fundante observao de Evans-Pritchard sobre a bruxaria entre os Azande (1937): no se trata de uma explicao irracional ou enganosa para fenmenos que a cincia explica baseada em leis naturais; a bruxaria seria antes definida pelo fato de as pessoas estarem mais preocupadas com os fatores sociais implicados num fenmeno. a distino observada pelo autor, entre bruxaria (witchcraft), fenmeno geralmente no intencional, e feitio (sorcery), intencional, no rela vente para o presente argumento, j que em ambos os casos o malefcio associado a causas sociais, e se realiza como uma influncia mstica65. Como
Mary Douglas (1970) relaciona, a partir da distino de Evans-Pritchard, tipos de malefcio a sistemas sociais classificados de acordo com a presena ou ausncia de estruturas de diferenciao interna, opondo o que chamou de high grid societies e low grid societies. Kapferer (1997) associa tal distino origem social do malefcio, distinguindo a agresso que vem de dentro (ou de um igual) do malefcio vindo de fora (ou de um diferente, proveniente de outra classe social, por exemplo, em sociedades muito diferenciadas internamente). Segundo o modelo deste ltimo autor, assim como a bruxaria uma substncia que reside dentro da pessoa, muitas vezes desconhecida por quem a possui, a bruxaria enquanto fenmeno social est relacionada irrupo do maldade no
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vimos, entre os Aweti toda doena resultado de uma relao entre pessoas humanas e no humanas. O que talvez diferencie o feitio das demais causas do infortnio entre os xinguanos sua frequente imbricao a outras esferas da ao humana, revelada nas exegeses nativas. O adoecimento por kat no motivado por maldade, e logo no suscita muitos questionamentos kat pega a gente simplesmente porque gosta da gente. O feitio apavorante pelo que tem de inapreensvel o desejo de aniquilao de algum prximo - e a maldade que o move requer interpretao: mgoa por um feito do passado, inveja, vingana etc. Com isso vemos que a feitiaria mais do que uma prerrogativa dos humanos em oposio a outros seres do
interior de um grupo; a bruxaria tende a vir de dentro, sendo entendida como resultante inevitvel e descontrolada da tenses da vida social. A bruxaria, em suma, seria o efeito negativo do convvio, e se passa entre iguais. A feitiaria, por sua vez, remete tanto a uma aquisio tcnica do exterior quanto a uma ao externa: prticas do tipo feitiaria tendem a ser associadas a agentes socialmente distintos de suas vtimas, no apenas inimigos de outros grupos, mas tambm reis e chefes cuja posio de liderana os distingue e situa parte do grupo governado - sendo nestes casos a feitiaria incorporada como instrumento nas disputas pelo poder. preciso notar que nem Kapferer nem Douglas supem com essa tipologizao a existncia de fenmenos puros de bruxaria e feitiaria, notando antes certas tendncias de associao entre tcnicas de malefcio e configuraes sociolgicas. Se fosse preciso classificar o fenmeno xinguano teramos que situ-lo ao lado da feitiaria (sorcery) j que, como disse, no existe ali a idia de que o malefcio pode ser provocado por uma potncia inata. Situ-lo no modelo de Douglas, no entanto, ou relacion-lo ao desenvolvimento posterior deste por Kapferer, to difcil quanto classificar a prtica xinguana opondo aprendizado e substncia corporal segundo a matriz da tipologia em EvansPritchard, como se ver no prximo captulo. Ainda que o autor no enfoque a questo da moralidade ou imoralidade do malefcio, a distino zande entre substncia inata e tcnica adquirida comporta uma segunda, relativa presena ou ausncia de intencionalidade no ato mgico. Os bruxos zande muitas vezes no sabem que so bruxos; verdade que a bruxaria implica um sentimento maligno em relao vtima, mas a atualizao deste pensamento foge ao controle do bruxo. Se parece livr-lo da responsabilidade do feitio, essa viso tambm apresenta o bruxo como elemento irremediavelmente maligno, j que seu poder de ao indmito, enquanto o feitio pode ser um meio de relao com o inimigo ou rival poltico, um ato de subverso poltica e portanto eventualmente desejvel. Em sistemas onde tal oposio se verifica o feitio tem positividade, em contraste com a bruxaria, porque possvel fazer um feitio, do ponto de vista de um sujeito, e no apenas ser vtima de um feitio. No Alto Xingu, aspectos-feitiaria e aspectos-bruxaria do malefcio - se adotamos tais esquemas classificatrios - se misturam: a feitiaria sempre um ato de vontade; sempre tambm inequivocamente maligna, j que no existe a possibilidade de fazer um feitio com legitimidade (salvo no caso da contra-feitiaria); e, por definio, a feitiaria vem de dentro do mundo social da vtima, na medida em que entendida como resultado de atritos decorrentes da convivncia. Por outro lado, a importncia das acusaes de feitiaria em processos polticos, o fato - sempre ressaltado na etnografia do Alto Xingu de que os chefes so via de regra alvos preferenciais ora do feitio, ora de acusaes de feitiaria, por vezes encabeando acusaes que culminam com o exlio ou isolamento de seus opositores, ou ento sendo eles mesmos isolados ou expulsos do grupo local, parece confirmar a tese de Douglas de que fenmenos tipo feitiaria tenderiam a eclodir em formaes sociais hierrquicas. A questo de fundo aqui se o que move e permite o malefcio num dado sistema social a diferena (vertical, em contextos de high grid) ou a igualdade (em contextos low grid, para seguirmos com a terminologia da autora). Minha hiptese que a feitiaria xinguana incide justamente sobre a fronteita entre dentro e fora. A dobradia entre diferena hierrquica e igualdade competitiva pode ser associada ao desdobramento do sentimento temyzotu em inveja e cime, tal como apresento no captulo 5.
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universo, mas um elemento de relaes entre pessoas prximas logo congneres. Com isso, como nota Bruce Kapferer (1997, xii), acusaes de feitiaria no se opem a consideraes sobre fatores econmicos, sociolgicos, psicolgicos ou histricos, e no podem ser entendidas como um escape em face de tais realidades. Pelo contrrio, as exegeses nativas do feitio levam sempre em conta tais fatores. Se no podemos dizer, como o fez Frazer, que o feitio seja uma falsa fsica, porque ele deve ser posto ao lado das cincias humanas; o feitio, insisto, uma sociologia nativa. A questo que essa sociologia no se diferencia de uma cincia dos corpos, de um pensamento sobre a constituio da pessoa em suas conexes com outras pessoas, e sobre sua vulnerabilidade a elas; trata-se mais bem de uma sociobiologia. De um modo muito genrico, o feitio pode ser descrito como uma forma, entre outras, de influncia que pessoas (humanas e no humanas) podem exercer sobre a vida alheia (cf. Wagner 1967; Viveiros de Castro 2009). Descrevendo contextos muito distintos, B. Kapferer (1997) e J. Favret-Saada (1977) avanam uma definio que me parece vlida para o caso xinguano: o feitio seria uma forma de apropriao, fora, da potncia/subjetividade alheia. Ele seria uma influncia maligna que toma a forma do roubo (cf. Telle 2002) aspecto relacionado tambm recorrente noo de que possvel atingir uma pessoa atravs de coisas a ela relacionadas, que assim figuram como elementos corporais destacveis e passveis de apropriao por outrem66. A ideia de apropriao coerente tambm com tcnicas de amarrao como mtodo de preenso de tal potncia, como encontramos no Alto Xingu. Kapferer (1997, 39) descreve uma tcnica similar, bandana, amarrado, para o feitio no Sri Lanka, e sugere que a amarrao tem por efeito
Como descreveu Favret-Saada para a feitiaria na regio do Bocage, sul da Frana, a influncia de um homem se extende legitimamente (de forma socialmente reconhecida) sobre uma rea geogrfica e social definida suas propriedades, seus bens, seus parentes - dentro da qual tudo que existe est na condio de ser parte da sua pessoa. Aquilo que atinge sua propriedade ou seus parentes dito ser contra ele; a feitiaria seria uma forma de expanso ilegtima da influncia do feiticeiro sobre a pessoa/as coisas do enfeitiado.
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privar a pessoa de sua agentividade pela interrupo de alguns fluxos de sua comunicao com o mundo circundante: perda da fala, perda da capacidade de locomoo. Estes so efeitos bastante comuns tambm da feitiaria xinguana. A amarrao implica ainda que o controle exercido sobre outro se d pela reunio forada de elementos originalmente separados. Como veremos a respeito da contra-feitiaria entre os xinguanos, o feitio promove uma fuso corporal entre o matador e sua vtima. No captulo anterior comparei a relao de mtua constituio e influncia que uma me tem com seu beb e a relao que entes patognicos kat estabelecem com certos humanos. A me e o beb de sada compartilham substncias, e tudo que se passa com a me atinge o corpo do beb. A influncia de kat sobre um humano, por sua vez, se d em dois movimentos: uma alterao corporal da pessoa provocada pela introjeo das flechas de kat acompanhada de uma alterao de seu campo perceptivo e relacional que leva o humano ir viver com kat como se fossem parentes. Nos dois processos o que se verifica a correspondncia entre convivncia, compartilhamento de substncia e influncia. Mesmo nas relaes com kat a convivncia deve ser anterior influncia, pois o desejo que tais seres sentem pelas pessoas consequncia de verem ou serem vistos por elas. O fato que j habitavam o mesmo espao. O feitio, assim como a relao com kat, difere da influncia entre me-beb (e outros consanguneos) por implicar um afastamento de si, que o prprio adoecimento, pensado como a perda da ang. Ambos diferem tambm da influncia entre parentes pelo fato de produzirem uma aproximao forada, indesejada para a vtima, entre ela e seu matador. Em suma, enquanto a relao de influncia que decorre da consubstancialidade entre parentes prximos constituinte da pessoa viva e saudvel, ainda que implique certos perigos e requeira diversos cuidados para no afetar negativamente aqueles a quem se est deste modo conectado, o feitio e a relao com kat so
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como desvios da socialidade associados ideia de que uma pessoa est sujeita a ser alienada de si mesma misturando-se a pessoas (humanas e no humanas) com quem se relaciona diariamente. Vimos que ter flechas de kat no corpo no nada extraordinrio para um Aweti aonde vai, uma pessoa pode ser atingida, e passar a vida sentindo pequenas dores provocadas por elas. Aqui comeo e descrever o que significa ser enfeitiado e como algum atingido por feitio, e no captulo 5 exploro os contextos sociais em que isso normalmente ocorre.
2.1Seratadomorte:flechasdejapieoutrosobjetos
A forma mais comum de feitio entre os Aweti consiste em um uma bolota de cerca de 1 cm de dimetro reunindo com cera de abelha (kylapit) partes de pertences ou exvias da vtima a uma micro flechinha e eventualmente a outros objetos letais, sendo o conjunto por fim atado com um fio de algodo. Este objeto normalmente designado ttsam, cinto, ou ttingtu,
amarrado. Outra tcnica, mais letal, consiste no lanamento direto, com um pequeno arco, de uma dessas flechinhas contra a vtima (wejapi, ele atinge a vtima). A palavra tupiat, usada genericamente para designar qualquer feitio, refere-se especificamente a essas flechinhas que os feiticeiros fazem da mesma madeira dura usada para confeccionar arcos de caa de alta qualidade, o pau preto (japi yp). Os primeiros feitios foram feitos pelos gmeos Kwat (Sol) e Taty (Lua), referidos conjuntamente como kwaza. Certa vez eu conversava com duas velhas Aweti sobre o problema do feitio com placenta (ver abaixo), e perguntei por que, afinal, existia feitio. Kwaza iypyzunku! Responderam ambas quase em unssono: Kwaza foram os que deram incio a isso!. A histria no fala nada sobre o processo de confeco do feitio. Ela relata na verdade como os
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demiurgos comearam a fazer feitio um contra o outro, por cime das respectivas esposas. Em seguida Kwat e Taty fizeram feitio contra seus respectivos filhos. E por fim, enfeitiaram (wejtti, amarraram) at a ave de estimao (puza) um do outro. Quando cria a humanidade a partir de flechas que crava no cho e depois reza para que virem gente, Kwat distribui objetos diferentes que so a origem das diferenas entre os povos atuais - ndios bravos, os grupos xinguanos e o homem branco. Estes ltimos pegaram as armas de fogo (mokawa), que pareceu pesada demais aos xinguanos, a quem Kwat gostaria de t-las dado; os ndios do Alto Xingu, moaza, pegaram flecha, borduna e tambm o feitio. Mas os brancos tambm pegaram feitio, os ndios no xinguanos, waraju, tambm. Todo mundo tem feitio, voc no v os brancos e ndios morrendo por a?, perguntava-me o velho Aweti que me contava essa histria, quando lhe perguntei, assim como quelas duas velhas, sobre a origem de tupiat. O feitio, portanto, no uma tcnica, e sim uma coisa. As leituras desse mito (cf. por exemplo Agostinho 1974) sempre enfatizaram o fato do episdio marcar a diferenciao entre os povos, coisa que quanto ao feitio no parece ser verdade. Mas fundamental que essa diferenciao seja efeito da posse de objetos, o que nos leva a pensar no s na diferena mas, num sentido mais geral, na constituio dos corpos (coletivos aqui) a partir dos objetos. Com isso, mesmo que o feitio no seja um diferenciador, ele ainda parte constitutiva dos corpos coletivos formados naquele momento. Os feitios atuais no so todos originrios do tempo de kwaza, no so kwaza poatap, feitos por kwaza. At onde posso entender, um feiticeiro atual pega (wejtupit, lit. levanta; toma para si) feitios daquele que o ensinou. Aparentemente, tambm, ele confecciona feitios: wejpiti, ele lixa [um pedacinho de pau]. Quando perguntava se o procedimento deveria envolver algum encantamento, diziam-me que era pouco provvel, mas na verdade ningum
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saberia dizer como que japiyp transformado em tupiat. Por outro lado, cada feiticeiro tm feitios em nmero limitado, e o feiticeiro deseja recuperar os feitios mandados. Nunca vi algum se referir ao feitio de algum como ex-feitio (ne tupiat put, seria a expresso) de algum, o que me parece estar relacionado a uma percepo de que o feitio volta para o feiticeiro, e portanto ao ser mandado no est perdido. Note-se que o termo tupiat no aparece sempre possudo, ao contrrio das partes do corpo ou dos termos de parentesco: possvel dizer feitio sem dizer feitio de algum. Este fato pode ser relevante nos processos de desconfiana e acusao, pois quando se comea a falar em feitio na aldeia no se diz nunca abertamente de quem se est desconfiando: talvez seja um ele, mas talvez seja um voc, digo, o interlocutor da conversa. Contudo, ainda que o termo tupiat no obedea s mesmas regras lingusticas que as partes do corpo as quais so, para um intrprete ocidental, muito obviamente constituintes da pessoa creio podermos falar da projeo do feitio como extenso da pessoa do feiticeiro. Voltemos dinmica do feitio amarrado: o objeto que contm uma exvia da vtima colada com cera de abelha a uma flechinha tupiat depositado num local prximo casa da vtima, ou mesmo dentro de sua casa, sem que ningum tome conhecimento. Apenas o xam, aps ingerir fumaa de tabaco, capaz de ver onde foi colocado o feitio e tir-lo de seu esconderijo. Ele traz o objeto para casa e comea a desmembr-lo (wejzap, desamarra). Cada pequeno fragmento do feitio desfeito retm a potncia letal deste. Quando estive na aldeia em julho de 2009, um mopat quase feriu-se gravemente no ombro porque um feitio que ele retirava do alto de uma rvore caiu perto dele. O cho onde o feitio foi desfeito cuidadosamente limpo, para que no reste nada que possa ferir o p de um passante. O mopat fala com o feitio assim desfeito, avisando-lhe que foi retirado: eoku kita, eoku
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kita, eoku kita, esta sua remoo, esta sua remoo, esta sua remoo. Opythizyk, ele joga seu sopro, reza o feitio, que figura a como um interlocutor. O feiticeiro tambm, diz-se, conversa com o feitio antes de us-lo, avisando-lhe quem a vtima e como o feitio deve atuar, matando-a rpida ou lentamente, por exemplo. Tudo indica, portanto, que o feitio tem uma agentividade prpria, uma pessoa que obedece s palavras de um ou outro, feiticeiro ou xam. Mas o mesmo seria vlido para qualquer flecha, anzol e talvez qualquer bala de espingarda: na caa ou na pescaria, fala-se com as armas para orientar sua atividade, que peixe se quer pegar, o mutum que se quer atingir. O feitio no passa de um tipo de flecha: an ituwyp a moamyka... eu no coloquei minha flecha em riste...67, dizia certa vez um xam Aweti em um longo discurso cujo sentido geral era eles [feiticeiros] esto nos matando, enquanto nunca fiz nada contra eles. Sua flecha seu feitio - eu no tenho feitio, ele estava dizendo. Feitios, flechas e anzis so, dessa maneira, tratados como gente comandada, minpwaj68. Nesse sentido so uma extenso da inteno de seu dono, ao mesmo tempo em que possuem existncia autnoma. Por isso possvel falar diretamente com eles: a fala do xam no se dirige ao feiticeiro, mas ao feitio, como se estivesse capturando-o agora para sua esfera de intenes. O mesmo feito com a retirada de kat uwyp do corpo de um doente: fala-se com os fragmentos de flechinhas de kat antes de faz-los desaparecer esfregando-os em um poste lateral da casa. Kat uwyp tambm um tipo de flecha, e logo um tipo de prolongamento da intencionalidade de algum o desejo de kat. Eventualmente, um amarrado no envolve flechas de japi, valendo-se de outros elementos patognicos, que so igualmente colados com cera de abelha a um elemento pessoal da vtima.
O verbo moam, suspender/pr de p (mo-, causativo + am, permanecer parado) talvez aqui refira-se ao fato de se dizer que um feitio (amarrado) suspenso para/em uma pessoa: wejmoam tupiat nanete. 68 Mi(n)- indica objeto passivo da ao de outrem; -pwaj, mandar, enviar.
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Dizem que quando caiu um avio monomotor com passageiros brancos perto do Posto Leonardo, os feiticeiros da regio comearam a recolher restos dos corpos destroados (caraiwa e put), para usar como feitio. Amarrados, esses restos de corpos causam gangrena dos membros e morte rpida das vtimas, so feitios poderosssimos. Certas doenas de branco tambm so pensadas como feitios, objetos que podem ser colocados em determinados lugares para atingir determinadas pessoas: a traduo do termo pelo qual so designados seria algo prximo a bens do branco, karaiwa tekatikatap69. Muita gente foi morta deste modo por sarampo, e recentemente temia-se que os feiticeiros se apropriassem da gripe A (H1 N1): Vamos nos matar uns aos outros70 com essa coisa se ela entrar aqui, comentavam muito os Aweti71. Tipos muito comuns de feitio envolvem pele de cobra (moj piput), que causa espasmos (tsaratu), e palito de fsforo (taza jyt), que causa febre muito alta. Mais do que a projeo de uma flecha mgica, portanto, enfeitiar colocar em contato uma pessoa a quem se deseja o mal e um objeto que provoca sua morte. Mas o feiticeiro opera fora algo que se passa cotidianamente entre pessoas e coisas - ser invadido, afetado, influenciado pelas pessoas e coisas prximas. Numa das viagens que fiz aldeia, minha me Aweti, em cuja casa eu morava ento, estava passando pelo recrudescimento de um mal estar antigo que a acompanha desde sua juventude. Seu marido mopat estava fumando quase diariamente para livr-la de kat uwyp e j retirara alguns feitios contra ela do mato perto de casa. Tambm seu irmo, mopat que mora ao lado, visitava-a diariamente, de manh e de noite, para limpezas (apozypu) e rezas (pythizyku). Cada sesso de -apozypu, limpeza, era acompanhada de uma longa conversa. O mopat sentava-se
A traduo termo a termo complicada, mas tekat siginica os bens/as coisas de. Minha dificuldade o ap que aparece ao final. 70 Kajtokyjoko, kaj- segunda pessoa plural inclusivo; -to, reflexivo; -kyj, matar; -oko, aspecto de tempo, indica continuidade da ao. 71 O que me parecia notvel no comentrio era a certeza de que um objeto patognico poderoso introduzido na regio seria arma de xinguanos contra eles mesmos, aqueles que falavam incluindo-se no grupo.
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num banquinho ao lado da rede de sua irm, ou deitava-se na rede de um dos filhos dela, tambm ao lado. Discutiam sobre o que seriam os fragmentos que ele estava retirando, genericamente chamados de kat uwyp. Numa das vezes o mopat tirou algo que lhe parecia sangue coagulado. Perguntou se minha me tinha ingerido comida feita por mulher menstruada (miekwatapiput). De fato, no dia anterior, uma das filhas dela preparara o caf, tendo seguido logo depois para tomar banho no rio, onde ficou menstruada. Como j estava cheia de sangue menstrual prestes a sair, contaminou o caf; sua me, num estado de sade altamente fragilizado, foi assim envenenada. Nessa mesma sesso de limpeza, o xam retirou de seu corpo fumaa do gerador que estava sendo usado para ligar a televiso na casa ao lado, e que estava lhe provocando dor de cabea e calor na testa, e peixe tambaqui, que minha me tinha comido na cidade enquanto estivera internada na Casai cerca de um ms antes. Alguns dias depois, retirou dela grandes chumaos de algodo, cuja origem no ficou muito clara. O sangue menstrual perigoso sobretudo para os xams, mesmo letal para eles; os meninos da casa, se consumirem uma comida feita por mulher menstruada, tero no mximo dores no peito (pozya aty), e as mulheres no so normalmente contaminveis. No vou neste momento me deter sobre a questo da contaminao pelo sangue, um tema recorrente na Amrica indgena, relato o episdio apenas para ressaltar que o feitio opera segundo uma lgica de relaes muito mais abrangente. Assim como uma flechinha de tupiat perigosa para quem dela se aproxima, o sangue menstrual tambm o ; mas o feitio , como explicita a traduo, feito. O amarrado produz artificialmente uma relao, aproximando, enquanto o sangue menstrual uma substncia patognica que a mulher carrega consigo, por onde for.
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2.2Sobofogodecozinha:notasobreacasa
Se flechas e kat e tupiat so coisas distintas, seu destino tambm o . Enquanto kat uwyp simplesmente desaparece, como que esfacelado quando o mopat o esfrega numa superfcie qualquer, o feitio amarrado quando desfeito precisa ser colocado na gua para esfriar. Isso faz o paciente suar: o doente e seus ex-componentes amarrados esto completamente conectados ainda, o esfriamento de um provoca o esfriamento do outro. Em seguida, os restos do feitio imersos em gua, numa panela de lata velha e nunca utilizada para comida ou coisa nenhuma, so guardados no vo lateral da casa. Esse vo o espao entre a palha de cobertura e os paus que formam a base mais exterior e mais baixa da construo, em toda a sua volta, da altura da porta, com cerca de 1,70 m. O vo forma um tnel ao longo da circunferncia da casa, um lugar onde se acumulam restos de comida, sobretudo ossos e cascas, e objetos rejeitados pela famlia, como cermicas quebradas, coisas velhas de plstico, trapos de roupas. Tambm costume das crianas brincarem nesse lugar. Ningum d muita ateno ao que se passa nesse local, trata-se de um depsito descuidado de restos da vida familiar, diferente do lixo de cascas de mandioca raspada e cascas de pequi jogadas longe da casa para ali se decomporem. Nesse lugar, o feitio se encontra ainda sob o olhar e cuidado da famlia da vtima, mas de certa maneira est fora do espao da vida. Ele no est, de modo nenhum, abandonado como um osso de peixe jogado inconscientemente naquele vo. No entanto so ambos mais ou menos da mesma natureza; ossos de peixe como os jogados ali so a matria prima do feitio, e nesse sentido aps terem sido desgrudados da flecha de japi eles voltam ao lugar de onde nunca deviam ter sado: o espao dos dejetos controlados. A casa um corpo oval constitudo em torno de um centro, ocupado pelo fogo de cozinha.
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Uma porta de trs, em direo floresta, d acesso aos caminhos que levam s roas, a outras aldeias ou que interligam casas; a porta da frente voltada para a praa central da aldeia e as casas do lado oposto; as laterais, sem portas, costumam aproximar-se das casas dos vizinhos. Sua cobertura, de palha de sap ou folha de buriti, vai apodrecendo e se rarefazendo ao longo dos anos devendo ser consertada e reconstituda diversas vezes durante o tempo de vida de uma residncia, que dura de 6 a 8 anos. Quando comeam as chuvas, evidentemente, sempre um momento de pensar nisso, mas tambm quando as famlias viajam costumam fazer alguns consertos para fortalecer a cobertura e impedir a entrada de ladres durante sua ausncia. Ao lado da porta que d para o ptio de trs das casas, muito comum encontrarem-se enormes falhas na cobertura das residncias. Isso porque as mulheres muitas vezes usam feixes de palha retirados dali para acender o fogo de cozinha, tirando-os displicentemente para ajudar a iniciar a combusto da lenha. A vida na casa, o comer em casa, o fogo de cozinha situado no centro, consome a prpria casa, em certa medida72. Esses buracos ao lado da porta so os mesmos pelos quais penetra um invasor na calada da noite, e que precisam ser periodicamente recobertos para impedir a invaso. Alm disso, mesmo em perfeito estado a cobertura da casa no protege os moradores de outros tipos de relaes por vezes indesejadas com o ambiente: sons, cheiros e fumaa que vazam do sempre conta do que est se passando dentro. Esses fragmentos da vida ntima que escapam so o principal combustvel de fofocas fulano brigou por cime com a esposa, estou muito triste porque ouvi sicrano dizendo s filhas que meu sobrinho feiticeiro e mgoas eles
Isso verdadeiro tambm para jiraus da casa e de secar polvilho, que eventualmente viram lenha na estao chuvosa, quando a madeira seca torna-se rara; castanhas de pequi, um importante complemente alimentar na poca das chuvas, quando o peixe escasseia, vira lenha muitas vezes tambm, por ser um timo combustvel para o fogo de cozinha. H um constante processo de refazer e utilizar de outras maneiras os bens domsticos, mesmo com os objetos de alumnio. Por exemplo, bacias novas servem para armazenar carne de pequi, quando comeam a envelhecer so usadas na roa e para jogar casca de pequi fora, depois viram simplesmente receptculos de lixo.
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trouxeram um tracaj pequeno dizendo que tinham pegado s trs, mas agora esto assando tracaj de novo. Tudo o que vaza alimenta no apenas o que se pensa dos outros mas tambm o que se pensa que os outros pensam de si, e que justificaria, do ponto de vista do sujeito, um ataque de feitiaria por inveja ou cime (ver cap 6). Os feiticeiros costumam colocar feitios prximos aos pequizeiros plantados atrs da casa da vtima, que so pontos marcantes da paisagem da aldeia, alm de remeterem a um projeto de ocupao do terreno e prolongamento das relaes de uma pessoa no espao e no tempo. Os pequizais plantados ao redor de aldeias abandonadas so as principais marcas de ocupao do territrio, e os frutos continuam sendo colhidos de muitos pequisais antigos, por vezes bastante distantes da aldeia. quando planta um pequizeiro ou um pequizal, um homem o faz geralmente pensando em seus netos ou filhos, sendo comum que se prometa um pequizeiro a cada descendente. Assim, o pequizal mais do que um indcio de ocupao passada, mas tambm um projeto de ocupao futura, e de extenso das aes de um homem na figura de seus herdeiros. tambm comum que o feiticeiro coloque o feitio sob as cinzas do fogo culinrio, no centro da casa. Essa a uma imagem bastante forte da violao de um corpo efetuada pelo feiticeiro: ele entra na casa durante a noite, disfarado de um animal qualquer, sem que ningum perceba, o que torna patente a impossibilidade de um controle efetivo sobre o que entra e sai do espao domstico. O tnel que se forma entre a cobertura de palha e os pilares como um espao de transio para tudo que emana dos corpos que nela habitam, coisas que j fizeram parte desses corpos, e que poderiam ser manipuladas por algum de fora; no entanto, o fato de que esse espao est sempre cheio de novos e velhos fragmentos reflete a impossibilidade de se manter o controle sobre as relaes que os moradores da casa estabelecem com o exterior. Mas a casa no apenas uma cobertura que pode ser invadida, tambm uma estrutura
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que pode ruir, o que nos leva de volta s imagens (ang) que atraem tempestades, ventanias ou raios para abater-se sobre a residncia de uma vtima escolhida pelo feiticeiro. H uma espcie de pilares, colocados em X nas laterais da construo (dentes da casa, ok j), que no so imprescindveis para elevao da estrutura, mas oferecem segurana contra desabamento e muitas vezes so afixados quando o construo j tem alguns anos de vida. Certa vez notei um homem Aweti fixando um novo poste de sustentao no interior de sua casa, s vsperas de uma viagem longa que ele faria com parte de sua famlia. Alguns dias antes uma violenta tempestade com ventania havia sido interpretada por esse homem como resultado de um feitio contra si: ele vira que sua casa fora mais castigada que todas as demais da aldeia, e estava certo de que o feiticeiro era algum vizinho. Como viajava agora por meses deixando na residncia visada mulheres, filhos e bens (redes, mquina de costura, televiso e, sobretudo, o polvilho acumulado em grande quantidade para alimentar sua famlia no perodo de chuvas), resolveu fortalecer a estrutura da casa por precauo. Assim, se a invaso da casa correlata invaso das pessoas que moram nela, sua destruio tambm o . Tambm possvel que o feitio se encontre perto da casa do feiticeiro e no da vtima, e atue distncia. Por fim, comum haverem feitios genricos, sem destinatrio fixo, caso em que provavelmente no empregado nenhum tipo de exvia. O feitio amarrado consiste na reunio de um objeto altamente letal a uma pessoa; normalmente isso se d atravs de uma coisa-parte da pessoa cabelo, restos de comida, roupa, cinto de palha ou pano, tornozeleira, braadeira ou joelheira etc. No caso do feitio sem destinatrio fixo me parece que o feitio simplesmente aproximado de quem passa perto: dizem que h um feitio desse tipo, que nunca foi encontrado, na Casai (Casa do ndio) de Canarana, para onde so encaminhados muitos doentes com seus acompanhantes. Os Aweti dizem que provavelmente o feitio da Casai obra de algum ndio
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Kalapalo, ou outro janahukwaryza (karib). Este um dos principais motivos pelos quais eles detestam ir para a Casai e para o Leonardo, onde h sempre gente demais, tu ytot moaza (leia-se, xinguanos) logo, altas chances de enfeitiamento. As mulheres morrem de medo de ter filho nesses locais porque muito comum o feiticeiro amarrar a placenta e com isso provocar a morte da parturiente (a placenta , note-se, parte do corpo da me e no do beb). por isso que as placentas precisam ser enterradas na lateral interna da casa imediatamente apos o parto.
2.3Outrastcnicas:objetosquematameobjetosqueatraemamorte
Uma maneira comum das pessoas comentarem entre si que um parente est sendo vtima de feitio dizer que eles ficam sacaneando a gente, otentatentazoko73 kajet (com emprego do ns inclusivo, pois o interlocutor , por sua posio de interlocutor, em princpio um igual, condolente). Apesar de s o feitio realmente matar as pessoas, o feitio amarrado nem sempre letal, e pode provocar um adoecimento que se arrasta por muitos anos. Primeiro, porque o feiticeiro talvez oriente o feitio, falando com ele, a no matar e sim s sacanear a vtima. Em segundo lugar, os xams esto constantemente retirando feitios e liberando suas vtimas da amarrao, enquanto os feiticeiros esto constantemente fazendo novos feitios, porque nunca desistem de suas vtimas, a no ser que se sintam intimidados por uma denncia pblica. A maioria dos casos de enfeitiamento de que tive notcia nunca chegou a um fim; assim se passava com minha me, desde sua juventude, e tambm com um homem Mehinaku que fez os mais variados exames sem que jamais descobrissem nada. muito comum tambm que pessoas,
-tenta brincar, mas a repetio -tentatenta sempre usada no sentido de uma brincadeira maldosa, uma sacanagem.
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uma vez enfeitiadas, passem a vida inteira com sequelas, como se deu com uma moa Kalapalo que perdeu definitivamente a fala por causa de um feitio. Alguns perdem um membro, param de andar. H tambm o caso de uma menina aweti que comeou a ter episdios de loucura, saindo sozinha no mato de noite, sem roupa, por causa de feitio tambm. Essas pessoas ficam estragadas para sempre, diz-se, ololeat. Tais casos de enfeitiamento normalmente envolvem o amarrado, apavorante menos por ser letal que por ser constante, e terrivelmente doloroso. possvel morrer disso, mas comum simplesmente passar a vida sendo sacaneado por um feiticeiro, ou mais geralmente um grupo deles, ao longo dos anos. A flecha de feitio lanada diretamente sobre a vtima, por sua vez, costuma ter efeito rpido e avassalador. Os feiticeiros possuem arcos pequenos, que mantm escondidos, usados para este fim. O problema de ser atingido dessa maneira, explicaram-me, que normalmente no se tem tempo de procurar uma cura. Abundam casos de pessoas que so flechadas numa tarde, passam a noite queixando-se de alguma dor ou indisposio (tupiat eze, j misturadas ao feitio ou com feitio, sem sab-lo) e logo no dia seguinte morrem. Um dos efeitos comuns do feitio, qualquer que seja o tipo, fazer a pessoa perder a fala. -Tj angta, os dentes ficam duros, dizse. Sem poder avisar o que est lhe acontecendo, a vtima simplesmente morre. Um enfeitiado encontra-se assim na situao desesperadora de ver o que seus parentes no vm, o matador, estando ainda vivo o suficiente para desejar comunicar-se, compartilhar essa viso com os mais prximos: apenas a comunicao poderia salv-lo, mas tem os dentes trincados. So comuns tambm os casos de pessoas que conseguem finalmente denunciar o matador apenas na hora de sua morte; e como veremos a respeito do contrafeitio, mesmo depois de morta a vtima continua sendo a principal fonte de acusao. Existe um remdio de origem vegetal, um montang, que serve para retirar um feitio
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lanado desta maneira, kajapitu ipontang, remdio para quando somos atingidos74. No caso de uma vtima atingida por tupiat, contudo, muitas vezes no se tem tempo de administrar o remdio, que deveria ser aplicado sobre um escarificao, no local dolorido, provocando assim a sada da flechinha atravs da pele. Como disse, o mopat no pode realizar essa operao da mesma forma em que extrai kat uwyp, esfregando e sugando. A principal diferena entre ser atingido por tupiat e ser amarrado a tupiat parece ser, enfim, o tempo de se buscar uma cura; a cura passa, por sua vez, possibilidade de identificar tanto que houve feitio, quanto a identidade do feiticeiro. Outras formas de enfeitiamento no envolvem flechinhas de japi, exvias da vtima, ou amarrados, sendo igualmente designadas tupiat. Mais uma vez sua origem remete saga dos gmeos Sol e Lua, muito brevemente resumida a seguir. Tanumakalu, a mulher de pau esculpida pelo demiurgo Wamutsini para desposar o jaguar, atingida pelos peidos letais75 da sogra e morre ainda com os filhos na barriga, em plena gestao. Wamutsini, que tudo sabe e tudo v, viaja de sua aldeia no Myren at a aldeia de Itsumaret, o chefe-jaguar, para recuperar os netos. Quando comeam a crescer um pouco, Sol e Lua tornam-se crianas insuportveis, constantemente exigindo comida do av, que no entanto no deseja compartilhar os produtos de sua roa e s lhes d beiju de massa de mandioca, uma farinha grossa e sem gosto, subproduto do processamento do fino e saboroso polvilho. As crianas um dia descobrem a enorme roa que o
No pude averiguar a espcie usada e o motivo de ser destinada a tal uso, em parte por minha ignorncia no assunto, em parte porque o conhecimento dos remdios altamente preservado, inclusive (ou sobretudo) dos brancos. Apesar de algumas mulheres Aweti, em caminhadas pela mata, terem me mostrado diversos montang, quanto aos mais raros tinha a sensao de que contavam com minha ignorncia em botnica para que no fossem divulgados. 75 Tanumakalu fia algodo sentada junto porta enquanto sua sogra Uperiru varre a casa. Uperiru solta um peido e Tanumakalu coincidentemnete cospe alguns fios de algodo ao mesmo tempo, mas sua sogra jaguar assume que o cuspe foi devido ao peido, o que seria altamente desrespeitoso. Em algumas verses, Tanumakalu degolada pelas unhas de jaguar da sogra, mas na verso que escutei entre os Aweti so os prprios peidos que atingem Tanumakalu na garganta. Num episdio subseqente, os gmeos tambm so atingidos e mortos por peidos letais da av Uperiru. Retorno a este episdio no captulo 6.
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av escondia delas, e para vingar-se criam os animais que comem ou destroem as roas dos ndios: caititu (tatitu), queixada (tatitu watu), veado (tywapat), tatu (tatupep). Note-se que para os alto xinguanos nenhum desses bichos comida, so antes concorrentes pelos produtos da roa. Porm os animais no so criados diretamente, mas sim atravs de suas imagens: tatitu aang, tatupep aang...essa a origem de tais seres. Essa tambm, no entanto, a origem de um tipo de feitio, que consiste na confeco, pelo feiticeiro, de rplicas usadas para atrair animais vivos. Presenciei, por exemplo, um mopat encontrando sob um pequizeiro ao lado da casa onde eu vivia uma imagem de abelha que era responsvel pelo ataque desses insetos ao polvilho que estava secando sobre o jirau ao sol; tudo isso porque aquela famlia tinha uma produo to impressionante que algum vizinho invejoso resolveu sacane-los. Abelhas sempre atacam o polvilho no jirau, o problema que elas tinham chegado em um quantidade incomum, e cedo para aquela poca do ano. No ano seguinte, houve um caso de imagem de tatu deixada na roa de um rapaz que, por brigas internas, abandonara a aldeia, deixando o que sobrara de sua plantao para as irms de sua esposa processarem. Suspeitava-se que ele prprio, o antigo dono da roa, que tinha deixado tatupep aang l, por despeito famlia do sogro. Imagem de chuva, aman aang, outra coisa muito comum: provoca tempestades violentas, geralmente nos meses de incio da estao mida. Mas chuvas assim produzidas, diferentemente das tempestades comuns, castigam somente uma aldeia, ou somente uma casa da aldeia. Depois de uma dessas chuvas impressionantes perguntei ao dono da casa onde eu vivia, por preocupao genuna, se poderia acontecer de cair um raio numa casa: Pode, mas s se fizerem feitio. Diz que usam fio de eletricidade para provocar isso76.
Fio hoje usados para a ligao de geradores a gasolina ou diesel usados principalmente para aparelhos de som e TV.
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Imagem de gente, moat aang, chama a alma penada (ang ut)de um ex-parente da vtima. Tambm existem histrias de imagem de kat, kat aang. Certa vez colocaram uma dessas perto de uma casa Aweti, e alguns de seus moradores comearam a sentir uma presena estranha durante a noite. Primeiro uma jovem acordou num choque de pnico, mas sem conseguir gritar, como se algo lhe apertasse a garganta. O mesmo se passou depois com sua cunhada, e depois com a sogra, at descobrirem de que se tratava. Outro caso de que soube foi uma imagem de veado (tywapat watu) colocada no caminho da roa de uma mulher para chama-lo; o veado, que um kat dono de feitio, flechou a passante. medida em que remetem a origem do mal a uma agncia humana, as rplicas no se distinguem em essncia das demais formas de feitio. Kat, animais comedores de roa e almas penadas so, assim como as flechas invisveis, veculos pelos quais uma pessoa atinge a outra, e nesse sentido extenses da agncia do idealizador do malefcio. Recordo a histria da doente Aweti que vivia entre os Mehinaku, cuja ang viu no apenas quem eram o enfeitiadores que a estavam matando, como tambm soube do fato de que esses enfeitiadores haviam contratado um especialista de outra aldeia (ver cap. 1). Tanto contratantes quanto especialista figuravam como feiticeiros, tupiat itaza, nos relatos dessa histria. Isso talvez se devesse ao fato de que os contratantes j haviam sido acusados em outras ocasies de possurem tupiat eles mesmos. Por outro lado, suspeito que um contratante qualquer ser quase sempre acusado de feiticeiro tambm. E para o contratante, sobretudo, que se dirige o dio dos familiares de um enfeitiado: o feitio coisa dele, tenha sido ou no executado por outro. Para com o executor, no caso que acompanhei, os Aweti demonstravam uma raiva e um medo genricos, como temem um
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estrangeiro reputado feiticeiro pelo seu prprio grupo77. Isso fica ainda mais claro no caso de uma mulher mandante de feitio (j que mulheres no podem ser executoras, ver cap. 6), quando se realiza o feitio de vingana: no s o especialista, mas tambm a contratante sofrero as consequncias Desenha-se assim um lao entre vtima e matadores que remete expanso e ao imbricamento de intencionalidades, onde importa mais quem pensou o mal do que quem o realizou. O sistema das rplicas imagticas mostra que mesmo uma alma penada ou um feitio de kat podem ser interpretados como agresso entre humanos. A variedade das tcnicas, em suma, no esconde a regularidade do problema. Como Taylor (1996) j notara acerca dos Jvaro (Achuar do Equador), muito rapidamente a ampla gama de causas possveis de uma doena se converte na certeza de que h agncia humana envolvida.
2.4Kuriti:aloucuradoafim
H por fim o feitio amoroso, designado por um termo especial, kuriti78, mas tambm pelo genrico tupiat. Os Aweti dizem que os povos karib (janahukwaryza) so os verdadeiros conhecedores de kuriti, kuriti itat, donos do kuriti, mas tambm costumam dizer que os karib so grandes feiticeiros, e se perguntados diretamente afirmam que todos os povos so feiticeiros, inclusive os brancos. Ento se possvel que kuriti seja uma contribuio karib cosmologia xinguana, no chegaria a ponto de afirmar que este feitio seja distintivamente karib hoje. Tambm neste caso parece impossvel precisar de que composto o feitio, j que ningum sabe (ou diz que sabe) faz-lo. At onde pude entender, utiliza-se uma substncia
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muito comum uma pessoa no ser acusada diretamente, mas somente pela aluso a uma acusao feita por outrem, do tipo os Kamayur esto chamando fulano (da aldeia Aweti, por exemplo) de feiticeiro, ou o pessoal da aldeia dele sabe que ele feiticeiro. 78 O termo parece ser pan-xinguano, e desconheo sua etimologia.
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vegetal desconhecida misturada ao urucum. O pigmento guardado seco em bolotas de cerca de 10 cm de dimetro; na hora do uso despeja-se leo de pequi na palma da mo com a qual se esfrega em seguida a bola de urucum, formando assim a tinta. Adicionando kuriri a essa mistura, um homem toca o brao de sua amada, fazendo-a apaixonar-se perdidamente por ele. Perdidamente a palavra. Maconha tsu, parece maconha, foi uma descrio que escutei diversas vezes sobre esse tipo de feitio: ele faz a pessoa perder a conscincia (-kaakwawapu) de si e do mundo. Acompanhei apenas um caso de kuriti entre os Aweti, e este no se parecia em nada com a descrio padro que acabei de fornecer - a mesma recebida sempre que perguntava o que kuriti. Na aldeia em que eu vivia encontrava-se certa ocasio uma moa aweti que residia com sua famlia em outra aldeia, e passava uma temporada trabalhando na roa do irmo de seu pai. Nessa poca (junho/julho) havia um comentrio geral de que, entre seus vizinhos e parentes da outra aldeia aweti e da aldeia Kamayur, s o pessoal da nossa aldeia ainda tinha roa, seja porque os outros eram preguiosos e no haviam plantado, seja porque tinham perdido suas plantaes em decorrncia de alguma desgraa, como ataque de um caititu voraz (os outros eram, em suma, ou preguiosos, ou feiticeiros). O fato que aquela jovem fora passar uma temporada ralando mandioca da roa do seu upizu (FB) para levar para sua casa e garantir o beiju da famlia durante a estao chuvosa. Inesperadamente, chega um dia seu pai perguntando pela outra filha, irm mais nova da que estava entre ns. A tal moa tinha sado de casa avisando ao irmo que ia para a aldeia Aweti ajudar a irm. Isso fora h dois dias e ningum mais tivera notcias suas. No preciso dizer o estado de nervos em que ficaram todos; dois dias era tempo demais para algum estar perdido no mato. No dia seguinte foi organizada uma expedio de busca na mata prxima casa da jovem
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desaparecida, da qual participaram homens de ambas as aldeias. Nada foi encontrado. Enquanto isso, evidentemente, diversos xams estavam fumando para ver a ang da menina, e para tirar feitios. No havia outro assunto na aldeia. Falava-se que o pai havia na verdade batido na filha pois ela havia se recusado a ajudar a irm na roa, e por despeito a moa fugira. Falava-se que devia ter sido comida por uma ona no caminho. E que, se no estivesse morta, s poderia estar com kat, comendo frutas pela mata (comida de kat, kat emiu), sem chance de voltar. A certa altura comeou tambm a circular a verso de que o culpado era seu primo paralelo (MZS), seu amante havia muitos anos, que teria colocado kuriti para ela, kuriti wejmoam nanete. Tratava-se de um caso de amor proibido, por serem primos paralelos de primeiro grau, um irmo (-kywyt) segundo o sistema de classificao de parentes. Moam o termo usado para qualquer feitio amarrado, o verbo refere-se ao fato de um objeto (feitio) ter sido depositado em algum lugar. Ou seja, kuriti aparece aqui como um tipo de feitio definido menos pela tcnica que pela motivao amorosa e pelo efeito - fazer a pessoa perder a cabea: da vtima de kuriti se diz, an okaakwawawyka, ele perde a conscincia (o termo traduzido pelos Aweti como inteligncia). Um kuriti foi encontrado por um mopat junto face externa da cobertura de palha da casa, prximo ao local onde ela dormia, um boneco antropomorfo de cera e pau (moat aang). Falou-se tambm de um kuriti desse mesmo tipo que fora encontrado em algum ponto do caminho que leva aldeia Aweti, objeto que teria sido posto para chamar (wejtejoj) a garota fazendo-a sair da trilha e entrar no mato (opiat, ela fez uma curva). A menina apareceu poucos dias depois. Segundo uma verso, surgira no meio da noite, sozinha, no Posto Leonardo, batendo na porta de uma mulher Aweti que morava l pois seu marido (MB da jovem) era funcionrio da Funai. Outra verso era de que fora vista durante o dia no Leonardo por uma mulher Kamayur, que comentara com algum, que contara aos familiares
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da moa. De acordo com a primeira verso, ela se perdera de fato no mato, por isso tinha o corpo cheio de marcas roxas, mas por sorte no chegara a ser alimentada por kat e por isso estava muito magra. Segundo a outra verso, ela nunca se perdera no mato, e havia ficado o tempo todo na casa do amante, que tambm residia nessa poca no Posto Leonardo. Por isso ela no havia emagrecido nada, nem tinha manchas no corpo. As duas verses concordavam, contudo, quanto ao fato da menina ter agora um certo olhar perdido (an omaeka, ela no olha). E mesmo a verso segundo a qual ela estivera o tempo todo escondida na casa do amante a tomava por vtima: fora kuriti que fizera ela perder a cabea pois esconder-se para namorar na casa de um irmo significa estar to perdida quanto efetivamente perambulando no mato. Ainda houve comentrios de que havia fugido quando a me brigara com ela por causa do amor proibido. Alguns dias depois de voltar para casa, deu-se um novo episdio: ao sair de noite para fazer xixi, a jovem recm recuperada fugiu correndo para o mato. Na mesma noite, o av a encontrou e conseguiu agarr-la pelos cabelos, nua, prestes a entrar na gua, dizendo que tinha que voltar para casa- falava sobre a casa de kat, naturalmente. Kat ywo omye, ela despertou com kat, ou como kat: a expresso ywo se aplica por exemplo a uma roupa que se veste, mas tambm no sentido amerndio de que vestir-se transformar-se. Quando tive que ir embora da rea, finda minha temporada de campo, uma comitiva de xams da aldeia Aweti se dirigia para a aldeia da menina, para cantar (te junkaw) e pedir a kat que a trouxesse de volta. Ela ainda tinha aquele olhar distante. Essa histria resume muitos aspectos que me parecem fundamentais a respeito do feitio no Alto Xingu. Primeiro, ela mostra que as pessoas nunca sabem o que de fato aconteceu, e as mesmas figuras no param de avanar explicaes hipotticas que elas mesmas caracterizam como tentativas azoteika-teikaju tene, estamos s procurando [a verdade], explicavam-me
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os Aweti muita vezes quando eu comeava a question-los. Este ser o assunto do captulo 6. Segundo, a histria lembra caso meu foco na feitiaria deixasse dvidas que nem tudo feitio, como indica seu desfecho. Por outro lado, um feitio pode envolver mediaes diversas, como supuseram todo o tempo os que acompanhavam o caso, quando foi encontrada a rplica humana que teria atrado a menina para o mato, por exemplo. No entanto, tambm revela a histria, mesmo quando no se tem certeza se h ou no feitio envolvido num caso de infortnio, as pessoas reagem como se houvesse, e ento comeam as acusaes, que mais cedo ou mais tarde vm tona e geram conflitos abertos. No pude acompanhar de perto os desenvolvimentos daquele caso, mas soube que as mes (duas irms) dos dois jovens amantes, que eram vizinhas de aldeia, chegaram a xingar-se (otoao) em pblico, o que poderia ter resultado, mas no resultou, numa ciso de seu grupo local. preciso considerar que a histria dessa briga tambm pode ser fofoca do pessoal da outra aldeia, e talvez as irms envolvidas no a confirmem o que no tive chance de averiguar. Que os primos eram amantes parecia ser ponto pacfico, pelo menos entre as diversas pessoas da aldeia Aweti com quem conversei sobre o assunto. Quanto ao desentendimento das mes no ter sido levado s ltimas consequncias, talvez tenhamos uma pista do porqu num comentrio do FB da jovem, aquele que hospedava a irm dela quando a confuso comeou. Muito preocupado com sua filha (BD), ele me disse que s no estava mais bravo porque sabia que kuriti no era feito para matar. Se fosse outro tipo de feitio, a sim, ele estaria furioso. Por fim, essa histria de kuriti exemplar de um processo, que me parece recorrente, de acusao de feitiaria entre pessoas razoavelmente prximas, opostas por interesses, por assim dizer, amorosos ou conjugais (ver cap. 5). Note-se que este no seria um caso de feitiaria contra afins, mas uma feitiaria de afinizao feita para transformar uma irm em namorada. Dado
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que os jovens j eram de fato namorados, a acusao, essa sim, poderia se dizer que estava dirigida a uma espcie de afim. O kuriti, e a acusao, revelaram que na verdade havia diferena onde se esperava encontrar identidade; aqueles que todos imaginavam irmos j se comportavam como cnjuges.
2.5Poderesdohomemnoturno
Feitio amarrado, flecha lanada, feitio de chamar kat e kuriti, todas essas tcnicas exigem a proximidade fsica entre feiticeiro e enfeitiado: para que o primeiro fleche o segundo, para que possa recolher suas exvias, para depositar a rplica de qualquer coisa prximo sua casa, para tocar sua pele. Uma das caractersticas do feiticeiro, contudo, que ele possui roupas (epit79) de animais que o permitem deslocar-se numa velocidade impossvel para o humano comum. Roupa de jaguar (tawat epit) a mais comum, por isso ver um jaguar em sonho sinal de estar sendo enfeitiado. Essas roupas so uma espcie de kat, entidades sobrenaturais que existem no mato e podem ser encontradas por uma pessoa, mas somente por aqueles a quem se mostram (otemiinkukat) por vontade prpria. Dentre os diversos tipos existentes, todas possuem uma propriedade comum elas permitem enxergar perfeitamente de noite como se fosse dia. Por isso tanto a roupa quanto quem a veste so chamados de ypytakwan, noturno: ypytako wekot, ele anda noite, explicaram-me. Nem sempre ypytakwan uma pele animal, muitas vezes so adornos de seres da floresta que conferem poderes sobrenaturais a quem os usa, como os colares
Epit se refere a algo que se veste ou tira, como a roupa do branco, mas tambm as diversas peles animais a que me refiro a seguir. pit, em oposio, designa somente a pele propriamente dita: kajpit, nossa pele, caraiwa epit, roupa de branco [de pano, roupa em geral].
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de caramujo (mio) do casal de gmeos monstruosos (kaminuumyt) ou os colares de mianga (miokyryt) de um jacar sobrenatural (topepyryt watu). Em todos os casos preciso proceder da mesma maneira. No se deve pegar diretamente um ente desse tipo (ou seus adornos). Antes de peg-los, preciso se comportar como uma xam em iniciao (mopat ytatu), passar diversos dias sem ter relaes sexuais e depois tomar um banho de kukuje, castanha de palmeira que o perfume do xam para agradar kat (ver cap 1). Ao ver ypytakwan, deve-se pedir a ele que mostre onde mora, um buraco na floresta ou no campo: eok jomiinkukat, eok jomiinkukat, mostre sua casa, mostre sua casa deve-se dizer a ele. A pessoa volta sua casa, faz um cigarro ( preciso ser xam, portanto, pois s os xams fumam) e retorna ao mato, trazendo um recipiente para guardar seu achado. Conta-se do homem que confeccionou para si uma roupa de azat, arara vermelha. Fumando ao lado da casa dela, um buraco no meio do campo, ele soprava fumaa do tabaco dizendo item, item, saia, saia. Quando a arara saiu da toca, o homem arrancou uma pena de seu rabo (nuwaj pep). No dia seguinte retornou e roubou outra pena, e assim sucessivamente at reunir tantas penas que confeccionou uma roupa para andar de noite. H tambm o caso de uma cobra sobrenatural cujo corpo um colar de caramujo, tendo apenas a cabea e o rabo de cobra. Um homem que a viu trouxe de casa uma raiz, usada para lavar cabelos (kajap kyzap) que esfregou com gua e lhe serviu numa cabaa como se fosse mingau (y wap). A cobra morreu envenenada, ele cortou rabo e cabea fora e levou para casa seu corpo de contas de caramujo. Depois de cozinh-las bem enfileirou-as num cordo, mas este arrebentou. Cozinhou e enfileirou de novo, mas o colar arrebentou outra vez. S da terceira vez as contas sobrenaturais perderam a fora e ento o dono pode us-las como cinto, para caminhar durante a noite. Do mesmo modo, um homem que roubou o colar de miangas do jacar sobrenatural lhe ofereceu gua com sabo
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em lugar de mingau, para mat-lo. Tanto a reza - saia,saia [do esconderijo] quanto o oferecimento de antialimento, veneno, servem para atrair e amansar esses seres, com objetivo de se apoderar de seus pertences poderosos. Para pegar uma roupa de jaguar, depois de descobrir onde ela mora, preciso construir um abrigo no mato onde a roupa ficar doravante guardada, como um animal de estimao (puz) de seu dono. No se trata de um jaguar de verdade, advertiram-me, apenas de uma roupa, com unhas e dentes reais, mas corpo de algodo (amatitu). Ainda assim ela mata. Vestindo-a, um homem pode viajar muito rpido de uma aldeia a outra. Disseram-me haver uma roupa de jaguar guardada, numa curva do Tuatuari prxima ao porto de banho dos Aweti, cujo dono morreu h muito tempo. Diz-se que alguns homens usam roupas de jaguar apenas para visitar parentes em outra aldeias, ou para roubar comida de noite na casa das pessoas; possuir uma roupa dessas, no entanto, altamente suspeito, pois h uma ambiguidade nos discursos sobre seu uso. Apesar de nem todo homem que possui uma roupa de jaguar ser necessariamente um feiticeiro, uma maneira de se referir ao feiticeiro wepitywan80, aquele que anda vestido. s vezes, tudo se passa como se roupas fossem apenas instrumentos de locomoo; s vezes evidencia-se que elas promovem uma adoo dos afetos do jaguar, um devir jaguar (cf. Viveiros de Castro 1996): muitos narradores enfatizavam que a pessoa v com os olhos do jaguar quando veste sua roupa. Conta-se por exemplo de dois amigos Wauja que vestiram-se de jaguar certa vez comentando um com o outro - vamos caar porcos. Eles na verdade se dirigiram aldeia Kamayur, onde celebrava-se algum ritual, e invadiram o centro da aldeia para comer gente. Quando os homens atiraram com espingarda, um dos amigos foi atingido, enquanto o outro conseguiu fugir. Apenas
Wepitywo indica um estado, vestido. Wepitywan um tipo de ser, vestido. A mesma relao se verifica em ogywo, em casa e ogywan, recluso. Em tatitap apwan, remdio que se usa sobre a pele escarificada, temos tatitap, arranhadeira, apo, sobre + wan. Donde sugiro que ypytakwan indique um estado noturno, ypytako, noite + wan.
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ao ver o corpo do animal morto os Kamayur descobriram que no era um jaguar de verdade, e sim gente com roupa de jaguar viram os ps por debaixo da roupa. Que o feitio exija proximidade, portanto, no indica que o feiticeiro viva perto de sua vtima, pois os donos do feitio so mestres do deslocamento, com suas peles e adornos mgicos que lhes permitem mover-se rapidamente e enxergar noite como se fosse dia. Essas tcnicas justificam o medo que os Aweti sentem de qualquer xinguano a qualquer momento: quase toda noite se detecta a presena de gente, moaza, em torno da aldeia. Os feiticeiros possuem flautinhas (tupijyt) feitas de ossos de um animal qualquer (kaloleput kang ut) que usam em suas andanas noturnas para se comunicar uns com os outros. Eu escutei tit!ontem de noite, vindo de tal direo, uma frase comum de se ouvir ao amanhecer, de pessoas fazendo notar o perigo que s ronda. Tit jat, aquele que fala tit outra designao comum para o feiticeiro. O que disse a respeito da tcnica do amarrado parece ento ser vlido tambm para os demais tipo de feitio: menos ele exige proximidade que a promove. Me parece que o poder mgico de deslocamento do feiticeiro uma imagem superlativa do poder extraordinrio de invaso que qualquer pessoa tm sobre aqueles com quem convive. Todo feitio rene, o feitio uma forma de atrao, como bastante claro a respeito do kuriti e das rplicas imagticas. Flechas lanadas e flechas amarradas parecem ser as verses forte e fraca do mesmo fenmeno ora o feiticeiro invade diretamente o corpo da vtima, ora invade seu espao de vida (sua casa, seu pequizal, sua roa), aproximando a pessoa de objetos que so a prpria morte. Ao mesmo tempo o feitio separa: os irmos so transformados em primos/amantes, os vizinhos so transformados em inimigos. Na medida em que o feitio amarrado o mais comum e tambm mais representativo daquilo que toda feitiaria produz, a conexo da pessoa com os objetos por meio dos quais seu
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destino atado, essa tcnica ganha especial relevncia. Retorno a um ponto sobre o qual insistirei ao longo de toda a tese, a funo dos bens enquanto extenses/intenes de pessoas em suas relaes. Como adiantei na introduo deste captulo, as figuras do ladro e do feiticeiro tendem a se confundir entre os Aweti: recordo-me de uma moa bastante triste com o fato de ter perdido recentemente diversas peas de roupa: Eu chorei. Voc sabe, Marina, quando a gente perde uma coisa nossa, a gente chora. Estou esperando agora ficar doente, fazerem feitio para mim. O sofrimento dela era duplo: no s por medo de que as coisas estivessem sendo roubadas por algum que intencionasse fazer com elas um feitio no futuro, mas tambm por ter perdido bens valiosos. Uma outra moa Aweti teve seus colares de caramujo roubados durante a noite, quando sara para assistir televiso na casa ao lado. Assim como o feitio, o roubo de bens de valor (colares de caramujo, sobretudo) uma forma comum de se manifestar hostilidade a algum. Os casos de fisso de aldeia que escutei sempre envolviam simultaneamente acusaes de feitiaria e roubo dos bens da pessoa que termina por se mudar. Por que fulano de mudou daqui?. Sumiu um colar de caramujo dele. Depois algum viu aquela mulher de outra aldeia usando, perguntaram quem tinha dado e ela disse que fora um rapaz daqui. Foi ele que roubou o colar. O roubo no s uma etapa do feitio amarrado (aquisio de ex-partes da vtima) mas uma ao que em si mesma pode ser vista como uma verso fraca do feitio: invaso do espao e apropriao indevida das coisas/corpo de algum. Conta-se que uma mulher enfurecida com o enfeitiamento de seu irmo falou certa vez pelo rdio com o feiticeiro (que o enfeitiado havia visto em sonho): Se voc no desamarrar o seu irmo mais velho, vou ao banco roubar todo seu dinheiro. Era uma metfora, explicaram-me
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de que ia mandar enfeiti-lo81. Lembremos que as roupas de jaguar muitas vezes no servem a feiticeiros mas somente a ladres que viajam sorrateiramente de noite invadindo cozinhas; j ouvi tambm pessoas falando de um tio que usava sua roupa s para visitar os parentes. No entanto possuir um equipamento desses altamente suspeito. O roubo uma forma de manifestao de hostilidade em parte porque denuncia distncia no se rouba de algum que se considere prximo. O mesmo vlido para o feitio; se ele implica uma aproximao forada porque o estado default que ele evidencia - a separao. O problema, que exploro no captulo 5, que essa distncia surge muitas vezes onde se esperava haver proximidade, da a inveja dos bens no compartilhados (a proximidade se manifestaria no compartilhamento), da a indignao dos enfeitiados. Ao se dar conta do roubo de seus colares de caramujo, aquela mulher Aweti teria dito, a respeito dos vizinhos todos: Vocs so meus irmos, por que fazem isso comigo? 82.
2.6Sernutrido
Existem ainda casos de enfeitiamento que no se encaixam em nenhum dos mtodos at agora descritos, mas que envolvem ainda os mesmos problemas de distncia e proximidade, ou falso julgamento entre o que prximo ou distante. Por vezes feitio parece ser uma coisa simplesmente posta em contato com a vtima: uma menina Aweti foi levada ainda muito jovem
Basso (1987, 199) registra um mito Kuikuro que explica a origem da contra-feitiaria (kune). um homem rouba um peixe da armadilha que Sol havia montado num brao de rio. para vingar-se do roubo, Sol envia um pssaro que rouba um colar de caramujo do ladro, e d o colar a seu filho. anos depois o ladro consegue reaver seu colar, e mata o filho de Sol com feitio. Sol ento amarra o cabelo do filho morto (ver abaixo feitiaria de vingana), mas por fim no consegue matar o assassino de seu filho. Note-se a equivalncia entre peixe-colar-filho. 82 Itooza utepe ei pe, kariaw akyj tsoat ei poatepoat ezoko itet? Itooza, meus germanos (de ambos os sexos, para falante masculino e feminino); o termo muitas vezes usado num sentido genrico que corresponderia nossa noo de parente, mas se refere especificamente aos de mesma gerao de ego. Ver captulo 5.
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por sua me para casar-se entre os Kamayur, com um velho chefe daquela aldeia. L, por inveja da menina, colocaram em seu colar de caramujo algum tipo de feitio, que lhe provocou um problema de pele, coceira e vermelhido, do qual nunca mais pode curar-se, mesmo quando voltou para sua aldeia, tendo abandonado o marido estrangeiro (ningum uso o termo kuriti neste caso, de modo que o mtodo do malefcio permaneceu obscuro para mim). Por fim, os Aweti temem um tipo de enfeitiamento que provm necessariamente de pessoas prximas: o envenenamento alimentar. A pessoa torna-se vtima de algum que presumivelmente lhe quer bem, porque est lhe oferecendo comida, mas normalmente h motivos para desconfiana. H um caso famoso no Alto Xingu de um homem Kamayur que comeu arroz na casa de sua amante Aweti, que residia com o pai no Posto Leonardo, e ao chegar em casa comeou a passar mal. Ao lhe perguntarem por onde andara naquele dia, seus irmos concluram que ele fora envenenado pelo pai da moa. Na verdade, defendem muitos Aweti, este homem fora flechado por dois feiticeiros Kamayur que fizeram uma emboscada em seu caminho de volta para casa. O modo de se referir ao envenenamento dizer que uma pessoa foi alimentada, -pojtu. Fora deste contexto, poj o termo que se usa para o ato de dar de comer a um beb ou a um animal de estimao. A um adulto se faz comer, mokatu83, enquanto um beb e um filhote de bicho so alimentados: -poj implica a passividade daquele que nutrido, a figurando como objeto de um sujeito que alimenta. A vtima do feitio estar sendo, nesse sentido, passiva de uma ao do feiticeiro, que no a alimenta para faz-lo virar gente (moaka), como se faz com bebs e animais de estimao (ver cap. 3), mas para faz-lo deixar de ser gente, morrer. Arrisco dizer que o nutrir, -poj, usado em sentido metafrico, e mesmo irnico, quando aplicado ao
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enfeitiamento. O feitio por envenenamento o inverso da nutrio e do cuidado de uma pessoa com aquele que ela alimenta. Por outro lado, acusar algum de envenenar outro assim o contrrio do que se espera de uma relao entre parentes: supor que o outro entretm dio, ao invs de amor, por si. Saber que um pai ou irmo esto desconfiando de voc desta maneira altamente ofensivo. Ouvi muito falar, por exemplo, que tal e tal pessoa da aldeia no queriam comer o arroz que eu trouxera por medo de ser envenenado; o medo no era de mim ou no s - mas das pessoas que cozinhavam na casa onde eu vivia. Quase sempre as famlias distribuem comida a parentes de outras casas, quando h o suficiente. Em certos momentos, os destinatrios mais evidentes para receber esses excedentes podem se considerar alvos potenciais de enfeitiamento, enquanto os doadores esto preocupados em manter a rede de compartilhamento que a vida em aldeia implica eles doam justamente para afirmar que se consideram suficientemente parentes, que se preocupam, mas a mensagem chega invertida ao destinatrio. Se por acaso eu levava um prato de arroz e feijo a uma dessas pessoas, fingindo ignorar sua suspeita a meu respeito, quando eu voltava o pessoal de casa perguntava curioso: Ele comeu na sua frente? Acho que jogou fora. Acho que deu para outro.
2.7Vingana
No se d com o feitio, como acontece nas relaes com kat, da ang da vtima passar a viver com o agente causador da morte. Uma pessoa pode viver com kat, virar kat/ang deste modo, mas no pode viver com o feiticeiro. Comumente o feiticeiro, projetando sua ang, que se aproxima de sua vtima durante o processo de enfeitiamento. Os sonhos registram isso:
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sonhar com jaguar sinal de estar sendo enfeitiado, pois o feiticeiro aparece para a vtima em pele de jaguar. Mas o feiticeiro est vivo, de modo que a alma penada (ang ut) da vtima no poderia viver com ele; nem tampouco ele se apropria de algo da vtima aps a morte: o corpo enterrado, a ang ut ascende aldeia dos mortos, os bens so queimados ou distribudos como sempre. Se o feitio aproxima feiticeiro e enfeitiado, isso no acarreta em nenhum tipo de incorporao de potncia de um pelo outro nesse sentido falei no captulo anterior que o feitio no produtivo no sentido de aquisio de potncia/perspectiva por nenhuma das partes. Por outro lado ele engendra sim uma conexo duradoura entre feiticeiro e enfeitiado, que se revela no contrafeitio. Num artigo sobre os Lele do Congo Belga, Mary Douglas (1963) comenta os efeitos da proibio da prova do veneno para a deteco de feiticeiros sob a lei colonial. A prova de veneno entre os Lele permitia verificar se a suspeita de feitiaria contra uma pessoa era procedente ou no; o acusado que sobrevivesse ingesto do veneno poderia mesmo processar os acusadores por calnia. A prova parece ter tido um uso correlato ao dos diversos tipos de orculo zande descritos por Evans-Pritchard (1937), com a diferena de que estes permitiam pessoa averiguar a procedncia de uma suspeita antes de transform-la em acusao pblica. Para casos mais controversos os Azande contavam, alm dos orculos particulares, com o orculo real, que era infalvel. Pela descrio de Evans-Pritchard, portanto, temos a ideia de que aquele povo possua mecanismos poderosos de desambiguao das relaes sociais. preciso lembrar ainda que Evans-Pritchard afirma haver uma distino entre o malefcio provocado por meio de uma substncia corporal cuja presena normalmente desconhecida pelo prprio possuidor, de modo que sua ao no necessariamente intencional, a que vai chamar bruxaria (witchcraft); e aquele causado por meios tcnicos, intencionalmente, a que chama feitiaria (sorcery). Ao revelar a
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identidade de um bruxo, portanto, o orculo Azande no produzia um julgamento socialmente disruptivo, fornecendo, pelo contrrio, meios de resoluo de contendas, j que a divinao prev atitudes de reparao do malefcio, uma vez identificada sua fonte. No caso dos Lele, Douglas enfoca os casos de feitiaria, isto , malefcio intencionalmente provocado por uma operao tcnica. Com a supresso do orculo de veneno, a autora nota, as acusaes tenderam a se proliferar indiscriminadamente; mais do que um controle sobre a feitiaria, de fato, a prova do veneno parecia exercer um controle sobre as acusaes. A reao Lele foi a adoo, por meio da compra, de diversos ritos estrangeiros de anti-feitiaria praticados comunalmente, cujo resultado era promover uma limpeza de todo o grupo local, j que o efeito da participao no culto para uma pessoa iniciada nas prticas de feitiaria seria a morte. B. Kapferer, a respeito do Sri Lanka, tambm descreve a existncia de cultos antifeitiaria congregando vizinhos dentre os quais se suspeita haver um feiticeiro na casa do enfeitiado. Promove-se a uma grande festa onde encenada a morte de um feiticeiro cuja identidade no revelada; a cura no requer uma acusao, portanto. Ao mesmo tempo, a oferta de alimentos converte a desconfiana em compartilhamento, tudo convergindo para uma reestruturao das relaes sociais em torno do enfeitiado84. Entre os Daribi, da Nova Guin, Wagner (1967) relata que possvel interromper um enfeitiamento oferecendo ao feiticeiro um pagamento, uma espcie de compensao pelo ato de desfazer o feitio. Em todos esses casos verifica-se a presena, portanto, seja de mecanismos decisrios
Note-se a semelhana entre as perpectivas de Kapferer e Taylor (1996), a partir de contextos completamente distintos: ambos interpretam a doena como efeito da degenerao de relaes sociais, a cura consistindo, consequentemente, no reestabelecimento de laos. Os dois autores exploram a idia, cara etnologia melanesista, de que a pessoa reconhece sua potncia agentiva naqueles com quem se relaciona, atravs das reaes que capaz de provocar neles; a pessoa depende de tais relaes, portanto, para saber quem , por assim dizer. No se trata de uma teoria da identidade forjada em espelho (eu sou o que o no-eu no ) mas de uma noo relacional da pessoa (eu sou o efeito que posso provocar no outro).
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independentes e superiores a acusadores e acusados, como a prova de veneno lele e os orculos azande - sobretudo o orculo real -, seja de mecanismos de resoluo de contendas sociais que conseguem efetivamente interromper o fluxo de violncia, por no responderem ao feitio com uma acusao de feitiaria. As acusaes, nota Douglas para os Lele, so ofensas graves elas mesmas, observao totalmente pertinente para o caso xinguano (ver cap. 6). O que a autora descreve, justamente, a soluo lele para a proibio de um sistema que lhes permitia distinguir, baseados numa instncia superior divina - o veneno - a veracidade de julgamentos pessoais baseados na desconfiana do enfeitiado. Entre os Aweti e seus vizinhos xinguanos, contudo, no encontramos instncias superiores decisrias, nem rituais de cura do feitio. Tenta-se muitas vezes constranger o feiticeiro a interromper o malefcio, isto , desamarrar o feitio, por meio de acusaes pblicas, em que o nome do suspeito permanece velado, ainda que todos saibam, de fato, quem est sendo implicitamente acusado como no caso do chefe que foi ao centro dirigindo-se a todos os homens da aldeia, genericamente : Por que vocs esto matando a filha de vocs? a filha de vocs esta que esto matando. Eliminada essa incerta estratgia de interrupo do feitio, aps a morte de uma pessoa os parentes indignados costumam recorrer a uma tcnica que permite identificar e/ou matar o feiticeiro. No se trata de um procedimento que visa a interrupo da violncia, mas de vingana atravs de um contra-feitio, que nada mais que um feitio, normalmente designado ap ut titu, amarrado de ex-cabelo. pouco provvel que isso acontea no caso da morte de uma pessoa muito velha, apesar de at mesmo num desses casos j ter visto um falecimento ser creditado a feitio. Mas a raiva dos que ficaram ento talvez no seja suficiente para lev-los a executar um contra-feitio, procedimento extremamente caro e penoso para os parentes prximos da vtima. O contra-feitio, ou feitio de vingana, um feitio amarrado que usa partes do cadver da vtima para atingir o
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feiticeiro. Hoje em dia quase sempre usam-se mechas de cabelo, uma retirada de cada lado da cabea, uma da frente e outra de trs, somando quatro chumaos que so amarrados separadamente. Da o nome usual, amarrado de ex-cabelo. Dizem que o contra-feitio mais efetivo quando se utiliza a pele da base do polegar da vtima, coisa que hoje em dia pouca gente tem coragem de fazer, por pena do morto (lembremos que na aldeia das almas, ang ut vive com as mutilaes que seu cadver sofreu). Essa pele boa para fazer feitio, explicaram-me diversas vezes, porque naquele lugar da mo que a pessoa apoia sua comida, um pedao de beiju comido com peixe assado, peixe cozido ou uma ave. A palma de mo entra mais do que outras em contato com o interior da vtima por isso mais efetiva. Neste caso o amarrado deve ser chamado mokut titu, amarrado de ex-[pele do] polegar. Existem uns poucos especialistas em contrafeitio reconhecidos em todo o Alto Xingu. Os Aweti so contra-feiticeiros famosos, pois aparentemente sempre contaram com pelo menos um especialista em sua aldeia. Atualmente o homem mais velho do grupo quem desempenha tal funo. Ser ap ut tsat, amarrador, um negcio altamente lucrativo, mas perigoso, por dois motivos. Primeiro, porque esses especialistas so quase sempre reputados feiticeiros tambm; dizem que quem sabe amarrar feitio de vingana um feiticeiro cansado de fazer o mal. Alm disso, dizem que os feiticeiros odeiam tanto os contra-feiticeiros que, quando algum comea a trabalhar com isso, est correndo risco de ser alvo de feitio ele mesmo. O contra-feitio ainda bastante trabalhoso para o especialista, que deve ficar, durante todo o tempo em que a coisa estiver em vigor, sem comer nada doce sejam frutas, mingau de caldo de mandioca cozido (manioky) ou mel alm de abster-se de relaes sexuais. Por tudo isso, apenas os velhos costumam realizar tal servio: eles tm menos tempo de vida a perder, e maior resistncia para aguentar privaes, sobretudo de sexo. Ao longo do meu trabalho de campo, circulou a histria
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de que um homem de meia idade na aldeia Kamayur estava dizendo que fazia contra-feitio. No final das contas, esse homem desistiu e acabou ele mesmo levando os restos mortais de uma vtima qual era aparentado para serem amarrados pelo especialista Aweti. Nessa ocasio me contou estar com vontade de aprender a feitiaria de vingana, interessado no pagamento, mas que ainda no tinha coragem pois no sabia se aguentaria o jejum. Esse homem tambm estava a meio caminho de uma iniciao xamnica, que exige igualmente um jejum bastante estrito, mas no tinha coragem de chegar ao final. No caso do atual contra-feiticeiro Aweti, diria que ele tambm tem pouco a temer quanto intensificao de uma acusao de feitio contra si; suspeito que a velhice, ao extrair gradualmente a pessoa da vida social, torna-a menos vulnervel s acusaes. Apesar de j ter ouvido muitas pessoas dizendo que o contra-feiticeiro Aweti tem feitio, nunca uma acusao grave se voltou contra ele; elas normalmente so dirigidas a pessoas plenamente ativas socialmente, talvez porque dessas se pense que tenham mais motivo para desejar o mal de algum85. verdade que se diz tambm que quem morre de velhice feiticeiro - as pessoas comuns morrem de feitio. Da o discurso feito por um mopat Aweti, transtornado com um caso de enfeitiamento em sua famlia: Deixa que eles nos matem, eu pensei, deixa que a gente morra. Ningum vai lamentar quando eles morrerem, ningum chora quando um velho morre. Era nisso que eu estava pensando quando fui puxar sal hoje cedo. Entendo a referncia ao trabalho com sal vegetal como uma afirmao de que era preciso seguir vivendo, e no ficar
Nisso a situao Aweti a aqui de fato no posso generalizar para o Alto Xingu por falta de informaes parece diferir de diversos casos africanos em que o conflito geracional um elemento central da feitiaria. Os Lugbara e os Lele, por exemplo, temiam os velhos por considerar que a gradual substituio de sua presena poltica pela dos mais jovens era motivo de inveja e, logo, motor do feitio (Middleton 1963, Douglas 1963). Como nota Douglas, o temor que se tem dos velhos entre os Lele implica uma imagem da velhice que, me parece, no se verifica entre os Aweti, entre os quais a velhice parece acarretar uma perda de fora e motivao generalizada, at para fazer o mal. Veja-se a fragilidade corporal dos velhos, comparvel das almas penadas, que podem morrer com uma simples bicada de pssaro na cabea. O que a velhice no acarreta, a bem da verdade, um desinteresse no pagamento por esse tipo de servio. Mas tudo o que recebiso nesses casos, assim como pelo xam, logo repassado aos parentes jovens.
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paralisado com o medo da morte, no ficar tomado pelas relaes de inimizade sua volta. De fato, naquela manh, mesmo com a preocupao geral em torno do adoecimento de sua irm, este homem sara para puxar sal com a esposa se no o fizesse agora, no apenas ficaria sem sal durante o ano como no teria o que trocar nas festas de kwarup que se realizariam a seguir. Quando uma pessoa morre, seu corpo enfeitado dentro da casa onde vivia por uma pessoa no muito prxima da famlia. Um parente do morto retira neste momento as mechas de seu cabelo e reserva para entregar a um especialista no futuro prximo. O contra-feitio s realizado aps o enterro. Normalmente um av distante ou tio quem se dirige ao especialista para contratar o servio, pois as pessoas mais prximas estaro reclusas em casa, chorando, desesperadas. O contratante leva j o pagamento: panelas grandes de alumnio, uma ou duas, um colar ou cinto de caramujo e grossos colares de miangas. Ele entra na casa do especialista, que j estava preparado para receb-lo, pois as notcias sempre correm. Quando o contratante vem de uma outra aldeia, como vi acontecer trs vezes ao longo de minha pesquisa, j se foi avisado pelo rdio que est a caminho. Ao entrar, tendo-se sentado num banco porta da casa do contrafeiticeiro, deposita o pagamento trazido no cho. O contra-feiticeiro recebe o pagamento de uma maneira peculiar: de quatro, engatinha em volta dos objetos e s ento pode levantar-se e recolhlos, passando para a esposa ou algum que vai guard-los nos fundos da casa. Ele anda com/como jaguar, tawatywo. Eis uma evidncia de que o especialista em contrafeitio um feiticeiro: ambos so jaguar. Recebido o pagamento, o contra-feiticeiro comea a preparar seus instrumentos. Numa esteira como a do xam, guarda um pouco de palha (towpe parecida com a palha de buriti), da qual sua mulher rapidamente produz uma corda que ser usada na amarrao. A esposa prepara tambm uma bebida de pura gua com pimenta (tsampit y) que ele ingere antes de iniciar o
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procedimento. Dirige-se ento a uma clareira no muito distante dos fundos da casa, onde, sentado no cho, comea a trabalhar, geralmente tendo o contratante e seus companheiros, e mais alguns familiares e crianas curiosas, como audincia. O fio de palha encerado com seiva da copaba (matsapezan ytyk) - substncia perfumada tambm usada para pinturas corporais masculinas (apetan, pintura das costas). Fragmentos lixados de cerca de trs centmetros de japi yp (pau do arco preto) ou de mti yp (jatob) so ento cuidadosamente atados com o cordo de palha, de modo a formar pequenas esteiras, dentro das quais os chumaos de cabelo so encerrados. Ao cabelo, o contra-feiticeiro agrega algumas formigas tocandira (tapia) que mantinha guardadas. As esteirinhas so tapadas nas duas pontas com seiva de copaba. Cada cone desses ento cuidadosamente envolvido com cip (tempopit) descascado, uma espcie tambm perfumada, usada em geral para amarrar os peixes que sero trazidos de uma pescaria. Uma ponta e cerca de 40 cm de tempopit deixada para fora do cone, sendo logo amarrada a mais um prolongamento de cip agora formando cerca de um metro de extenso. Segurando ao mesmo tempo as quarto pontas dos cones assim amarrados, o contra-feiticeiro se ajoelha e gira o conjunto diversas vezes sobre a cabea, pronunciando algumas palavras: emaozokotu kita, emaozokotu kita, voc vai morrer, voc vai morrer. Por fim larga o conjunto de uma s vez, caindo no cho ao mesmo tempo. Dizem que, na hora em que o feitio cai no cho, o feiticeiro sente um golpe tambm. Se um deles mordido pela tocandira, o feiticeiro morre, e se a tocandiras agregadas mordem apenas um dos amarrados, signfica que havia apenas um feiticeiro envolvido na morte daquela vitima. Cada um dos cones , pois, uma efgie de feiticeiro: moat aang. O contra-feitio baseado em dois princpios. Um o da estreita ligao entre o feiticeiro matador, o feitio (o ex-cabelo amarrado), o contra-feiticeiro e os parentes mais prximos do
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morto: tudo o que se passa aos ltimos tm efeitos sobre o primeiro. Baseado nisso que se espera matar o feiticeiro matador. O segundo princpio que o cabelo da vtima ou sua pele vo denunciar a identidade do matador: ao morto ainda reputada uma conscincia e atravs de partes de seu corpo possui um tipo de agncia vingadora. Se os contratantes tiverem vindo de outra aldeia partiro com os cones-feitios para casa, onde ser realizada a prxima etapa do contrafeitio. De outro modo, segue-se com as atividades na mesma aldeia, coisa que nunca pude presenciar, de modo que tudo o que sei atravs de relatos. O contrafeitio deve ser levado para a praa central, onde ser colocado numa panela com gua para ferver86. Dizem que essa gua borbulha e produz uma espuma (ytpu) que derrama pelas bordas; o lado para o qual a espuma do cozimento do feitio derramar indica a direo da casa do feiticeiro: o cabelo contando quem o matou. Referindo-se a isso, uma vez em que cozinhvamos um macarro na aldeia, algum brincou ao ver a gua derramando: o macarro est nos contando quem seu matador. O morto tambm aponta, dessa maneira, sua prpria casa ou a casa de seus parentes prximos, por saudade. Findo este procedimento, o ex-cabelo continuar sendo cozido no mais em gua, e sim simplesmente pendurado sobre um fogo que deve ser mantido aceso constantemente, por muito tempo, idealmente muitos meses, dentro da casa dos parentes prximos do falecido, designados neste contexto de donos do ex-cabelo, ap ut itaza. Como efeito do cozimento do contra-feitio, o fogo provoca um calor constante e to intenso no feiticeiro que este j no consegue mais dormir. Se dormisse, ficaria se mexendo tanto de incmodo na rede que acabaria caindo, e todos descobririam sua identidade. Uma vtima de contra-feitio finge que dorme, e
Heckenberger (2004) registra que necessria uma penela de cermica especial, nomeada kun, termo pelo qual se designa tambm toda a operao do contra-feitio, para este momento. Os Aweti afirmam que qualquer panela de alumnio pode ser usada.
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logo sai permabulando de noite pelo mato. De tanto calor tambm, o feiticeiro j no consegue mais comer nada cozido, nem bebe mingau: alimenta-se de peixe cru e sangue de qualquer animal, peixe, ave, tracaj ou macaco. Quando come alguma coisa, para disfarar, na frente de pessoas, o feiticeiro logo se ausenta, com uma desculpa qualquer, para vomitar o que acaba de ser ingerido. Seus impulsos sexuais tambm tornam-se antisociais. Conta-se que um homem foi beira do rio com o amigo, e pediu a este que ficasse longe. Quando veio ver o que se passava, o amigo viu que o companheiro estava fazendo sexo com um peixe morto partido ao meio. Logo soube que era um feiticeiro. De tanto calor, por causa do contrafeitio, o feiticeiro tem chamas que lhe saem pelas axilas, mas que no conseguimos ver. Quando ele finalmente morre, sua pele racha queimada, e o pnis permanece ereto ejaculando sem parar. As restries observadas pelos contratantes e pelo especialista do contra-feitio tm sempre o mesmo objetivo - no amenizar as dores provocadas pelo amarrado no feiticeiro. Se seu efeito for anulado pelo comportamento dos parentes do morto ou do contrafeiticeiro o amarrado deve ser jogado no mato. Por isso no se pode comer doce nem fazer sexo, e nem mesmo rir. Quando falam de um contra-feitio que no deu resultado, os Aweti quase sempre comentam: fulano comeou a rir87 logo, tiveram que jogar o feitio fora. Algumas espcies de aves e peixes so proibidas por serem consideradas demasiado ativas sexualmente: uma espcie de papagaio, tankanyt, famosa pela sempre numorosa prole, por exemplo, deve ser evitada. O mesmo se diz de uma espcie de peixe, tapirap, que transa demais. Macaco no se come porque seu sangue mingau para o feiticeiro. S duas espcies de peixe so recomendadas: kujazjyt (tucunarezinho, um peixe pequeno diferente do tucunar), e piranha. Suspeito que o primeiro seja apenas
Dizer que algum riu parece ser uma maneira eufemstica de dizer que teve relaes sexuais: se uma pessoa ri muito, principalmente uma mulher, porque est querendo namorar.
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considerado neutro, enquanto do ltimo se espere uma intensificao dos males sobre o feiticeiro. Essa intensificao tambm o que se espera da lenha usada para cozinhar o feitio, que no pode ser de qualquer tipo. preciso manter o fogo constantemente aceso, pois se apagar o feiticeiro melhora e todo o trabalho perde o efeito. Algumas lenhas especficas so consideradas amargas (ilp) ou pinicam o feiticeiro: pau de pequizeiro (peti yp), de jatob (mti yp) e da palmeira espinhosa tucum (tucum azy). Quando os donos do ex-cabelo bebem mingau de pequi no centro da aldeia, o feiticeiro vomita. Isso foi feito recentemente entre os Aweti, que desconfiavam de que um homem Kalapalo fora o especialista contratado para matar uma pessoa da aldeia. Ao invs desse homem, contudo, quem passou mal foi um Kuikuro, que estava na Casai naquela poca acompanhando algum parente, e l foi visto vomitando por um aweti tambm internado. Os parentes da aldeia Aweti foram ento avisados que a ingesto do mingau de pequi dera resultado. Existe uma maneira de se referir ao feiticeiro que est sendo alvo de contra feitio: ele mokut etsat, quando o contra-feitio feito com pele do polegar (mokut), ou ap ut etsat, quando feito com cabelo (ap ut) do falecido. Para explicar-me a mecnica do contra-feitio um amigo aweti disse que a relao entre o cabelo ou a pele do defunto e o feiticeiro era similar quela entre o sol e a placa solar. De fato, uma das acepes de -etsat equivaleria a algo como movido a: diz-se de uma lanterna a pilha, por exemplo, que pilha etsat. A metfora no muito simples, pois no creio se pense no contra-feitio como aquilo que alimenta o feiticeiro da mesma maneira que o sol alimenta uma placa solar e a pilha alimenta uma lanterna. Ela expressa antes, me parece, a idia de que o destino do feiticeiro est doravante atado ao contrafeitio: o primeiro no existe mais separado do segundo. Apesar de nunca ter visto essa imagem aplicada ao feitio amarrado, penso que ela exprime bem a relao que se estabelece tambm entre o enfeitiado e o
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objeto que contm suas exvias. O feiticeiro precisa ter braos especialmente fortes para lanar suas flechas de feitio e para isso ele deve enfiar o brao num formigueiro de tocandira, alm de colocar algumas dessas formigas em suas axilas (ver cap. 4). Quando torna-se alvo de contra-feitio, ap ut etsat, a que lhe di; a contra-feitiaria ativa (wejtatyk) a dor sofrida com as picadas, assim como o feitio ativa a dor de kat uwyp (flechas de kat) que uma pessoa eventualmente tem em seu corpo (ver cap 2). O contra-feitio um feitio em que o corpo do falecido atua como parte do corpo do matador pois, ao invs de um pedao do corpo de quem se quer atingir, um pedao de corpo de outro que serve para atingir uma pessoa. Segundo os Aweti, possvel fazer contrafeitio em qualquer tipo de morte, e no somente em casos de enfeitiamento. Se algum morresse atropelado, por exemplo, seria possvel a seus parentes fazerem um contrafeitio para o motorista, usando o cabelo ou a pele da vtima. Se uma mulher contrata um feiticeiro para matar algum, ela sofrer tambm do contrafeitio: fica com a vagina ardendo pelo calor do fogo sob o feitio amarrado. O mesmo se passa com kat. Certa vez amarraram o cabelo de um jovem recluso que soube-se depois - no havia respeitado os tabus relativos ingesto de uma droga emtica e foi morto pelo dono da raiz (ver prximo captulo). O contra-feitio atraiu kat, que apareceu na forma de um redemoinho no centro da aldeia.
2.8Todoenfeitiadoparente
comum entre povos guerreiros da Amaznia a idia de que o matador sofre uma espcie de transformao corporal e logo perceptiva aps o homicdio, um devir inimigo (cf. Viveiros de
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Castro 1986) que em muitos casos deve ser controlado com recluso e jejum. O matador fica impregnado do sangue do inimigo, necessrio para ativar sua prpria potncia reprodutiva; ou adquire momentanemante a viso do inimigo, vendo seus prprios parentes como inimigos, o que o torna perigoso para eles; ou sonha com o inimigo, que lhe apresenta cantos xamnicos (cf. por exemplo Taylor 1994, Viveiros de Castro 1986, Fausto 2001). Em todos esses casos, os perigos do devir outro so compensados pela potncia que apreendida, frequentemente uma etapa necessria para o estabelecimento da pessoa na comunidade como um adulto. O homicdio nesses sistemas uma forma de constituio da pessoa atravs da apreenso de potncia externa. A feitiaria xinguana parece torcer estranhamente esse projeto: se o feiticeiro sofre algum tipo de fuso com sua vtima, tal fuso s resulta na morte prematura do prprio feiticeiro, ao mesmo tempo em que seu destino ps-morte no se diferencia do dos demais, pelo contrrio pois, no sendo chefe, ser subordinado como qualquer simples mortal devorao no cu pelos urubus canibais. Seu devir vtima apenas negativo88. Mais do que se identificar a sua vtima, ele tornase vtima da sua vtima. O feiticeiro decreta sua morte, no como o heri que ser alvo dos parentes do inimigo morto na prxima batalha, como era o caso dos guerreiros tupinamb, mas como defunto de pele rachada, ossos mostra pelo jejum prolongado e sexualidade descontrolada, cujo corpo ser abandonado no mato para que sua pessoa no seja lembrada como um dos que esto entre ns, enterrados no centro da aldeia. a ausncia do seu corpo sob a terra, mais que o destino de sua ang aps o morte, o que interessa aos Aweti: o feiticeiro no estar com nossos avs (kajamujza ypywo), em nossa terra (kajeytaaj). Se o cadver mantm-se identificado a seus familiares vivos, o cadver do feticeiro ostensivamente marcado
A despeito da prevalncia de uma ideologia pacifista que faz com que o homicdio no seja um tema muito freqente de suas conversas, alguns Aweti certa vez me explicaram, a respeito de um homem muito barrigudo que havia sido policial em Braslia, que apos matar uma pessoa um homem matador deve fazer vomitrios e uso de aranhadeira destinada expulso do sangue do inimigo de sua barriga.
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como outro em relao ao grupo local. O fato de que no h nada a ser adquirido ou somado com um homicdio por feitio est obviamente ligado ao fato de que a feitiaria sempre secreta: ningum ganha fama, poder ou renome por matar algum com feitio. A fama dos feiticeiros, alis, no circula a no ser como fofoca; o feiticeiro no pode ter um grande nome se seu nome pronunciado sempre s escondidas. Se em algumas partes da Amaznia existe a possibilidade de uma feitiaria guerreira voltada para os inimigos mesmo que os especialistas, usualmente tambm xams curandeiros, acabem sendo acusados de atuar contra seus coaldeos (o que torna os xams figuras ambguas, tema enfocado na coletnea de Whitehead, 2004, sobre o feitio na Amaznia), no Alto Xingu como se toda feitiaria fosse para dentro, sendo por isso to terrvel. A feitiaria xinguana parece no comportar assim a figura da vtima como um inimigo compartilhado, isto inimigo comum em relao ao qual um grupo pode se situar; toda vtima de feitio suficientemente mesmo para que a feitiaria seja considerada sempre abominvel, mesmo quando praticada contra desconhecidos. Ao escutar histrias pelo rdio ou atravs de terceiros, nenhum aweti fica indiferente a um feitio feito por um Wauja contra outro Wauja, ou por um Ikpeng contra outro, ou por um Kamayur contra um Kayap, simplesmente pelo fato de serem pessoas distantes. Um feitio sempre igualmente abominvel; no h inimigos comuns, no h homicdio justificado, apenas a vingana justificvel. Em suma, se nem sempre de fato, sempre por princpio, o feitio uma agresso contra um parente. Ele assim se diferencia da guerra que, por mais condenada pela moral pacifista xinguana, ainda um meio de ao legtimo contra os outros. Tanto a guerra concebvel quanto meio legtimo de relao que a morte de um mestre do arco, yzapat itat, objeto da celebrao do Jawari, importante ritual interaldeo xinguano. A este respeito Barcelos Neto j notara que os discursos Wauja sobre a guerra sempre
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enfatizam a aquisio de mulheres do inimigo como um desfecho possvel e positivo; a guerra pode ser um passo em direo aliana matrimonial. Quanto ao feitio, algo diferente parece-me ter lugar. Isso fica claro quando observamos as reaes de xinguanos e no xinguanos feitiaria. H casos de xinguanos acusados por no xinguanos de feitiaria, mas no o contrrio (ver cap 5). O feitio parece estar para os no xinguanos como a guerra est para os xinguanos agresso que vem de fora. A guerra pode assim cumprir duplamente um papel identitrio: tanto ela requer que o grupo se identifique internamente em torno de um inimigo comum, quanto ela permite ao grupo e especificamente pessoa do matador engrandecer-se em glria, conhecimentos, afins, descendentes (cf. Sztutman 2005). Na medida em que algo incorporado com a guerra, a potncia que se apreende do exterior transformada, no sem esforo e sem perigos, em matria prima a partir da qual se forja e organiza o interior. A guerra existe sob o princpio de que possvel converter o outro em mesmo (as mulheres inimigas em esposas, por exemplo), lgica que coloca a alteridade no como oposto ou negativo mas como constituinte do eu (cf. Viveiros de Castro 1986). verdade que um sistema funcionando sobre essas bases est fadado eterna irrupo do outro sob forma no domesticada, donde a importncia da recluso do matador ainda impregnado do sangue inimigo, por exemplo. Um mundo fundado na necessidade da guerra dominado por uma fora centrfuga que torna frgeis grupos e identidades forjadas com grande esforo. O matador no a nica figura ambgua nesse cenrio: tambm os xams, meio esprito, meio gente, so frequentemente objeto de desconfiana por parte do grupo (cf. por exemplo Whitehead 2004). Ainda assim, comparada produtividade que a guerra promete, a feitiaria xinguana puro pessimismo: aqui no so os inimigos que posseum uma potncia apreensvel e desejvel, mas os prximos que se mostram incompreensivelmente estranhos. Na feitiaria o sujeito sempre
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se identifica vtima, quele que perde algo por isso a eterna piedade para com os enfeitiados. A no ser que o sujeito esteja sendo acusado mas tambm a considera-se vtima pois, como nota Douglas sobre os Lele, a acusao uma ofensa similar, em natureza, ao feitio (ver cap 6). De qualquer forma, o feitio visto como algo vindo de dentro de onde no se esperaria, e de onde no poderia deixar de vir, por outro lado. Se verdade que a feitiaria unifica num idioma comum xinguanos e no xinguanos que eventualmente acusam xinguanos de terem-nos enfeitiado, e opera, como ressalta Coelho de Souza (2001), uma abertura do sistema, menos porque ela um meio de apropriao de potncia estrangeira, como a guerra, que por se definir como agresso ao social e geograficamente prximo: deste modo, repito, do ponto de vista xinguano qualquer vtima de feitio percebida como se fosse parente, tornando-se mesmo pelo prpria identificao que estabelecida por um xinguano com o enfeitiado. Por outro lado, suspeito que se um no xinguano chega a ser acusado por um xinguano, isso suceder apenas quando algum tipo de relacionamento j estiver em curso, e nesse sentido o no xinguano j ser suficientemente xinguano, parente, para ser considerado feiticeiro. A feitiaria no Alto Xingu me parece sintetizar, enfim, uma potncia centrfuga, sem apresentar em si mesma nenhuma possibilidade de estabilizao, apontando apenas para uma constante disperso resultante da desconfiana generalizada entre pessoas prximas - veja-se o que nota Gregor 1977, sobre os Mehinaku: todos os homens adultos da aldeia eram acusados de feitiaria por algum. Ela pode, no entanto, como notaram diversos etngrafos, ser incorporada s disputas polticas a servio da manuteno do poder de determinados indivduos, na medida em que as acusaes por vezes culminam no exlio forado de concorrentes polticos (cf. sobretudo Basso 1969). Mas no seria o caso de reduz-la isso. O feitio s legtimo na forma do contrafeitio. Idealmente, todos concordam que
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preciso extirpar o mal, eliminando o feiticeiro da vida social. Muitas histrias antigas relatam a morte de feiticeiros por contra-feitiaria, mas todos concordam que hoje isso dificilmente acontece, por motivos que relato a seguir. Resta aos parentes do falecido, tomados de raiva e desejo de vingana, a opo da execuo. Aqui vemos que a contra-feitiaria seria um meio de sano relativamente prximo aos rituais de anti-feitiaria africanos pois, na medida em que o morto que, enfim dotado de plena conscincia e alguma agentividade, denuncia seu malfeitor, no parece haver dvidas quanto corretude de tal julgamento. O prprio estado fsico do feiticeiro o denuncia, no havendo dvidas de que o destino de seu cadver deve ser a devorao pelos urubus. Quanto s execues, contudo, muitas dvidas podem surgir. Quem garante que um homem no foi executado injustamente?
2.9Aviolnciadeveterumfim Voltemos histria que comecei e relatar acima, ocorrida entre o Posto Leonardo e a aldeia Ipavu, na dcada de 60. Ao morrer um homem Kamayur, seus irmos acusam o pai da sua amante aweti de t-lo enfeitiado, via comida. Enquanto os Aweti sustentam que foram dois feiticeiros Kamayur os verdadeiros assassinos, os irmos do falecido organizam uma emboscada para executar o homem de quem suspeitam. Objetos de valor so apresentados no centro da aldeia (nekat wejzotem, eles [irmos do falecido] tiram seus bens [de casa]) e quem est disposto a participar da execuo toma um bem em pagamento como preo do feiticeiro (tupiat itat epy). Dizem que os Kamayur reuniram muitos bens, arregimentando cada vez mais homens para compor o grupo de vingadores.
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Que as suspeitas incidam sobre relaes de relativa proximidade revelado pelo desfecho deste caso: para assassinar o suposto feiticeiro, os Kamayur simularam uma expedio de pesca, para a qual convidaram sua vtima que, sem nada desconfiar, aceitou participar do programa. Ainda prximo de sua casa foi esfaqueado pelos executores. O episdio foi presenciado e registrado por Thomas Gregor (1992), etngrafo dos Mehinaku, que ento se encontrava no Leonardo. At onde sei, o feiticeiro aweti foi identificado a partir de algumas inferncias: onde voc esteve, o que comeu, com quem andou perguntaram ao enfeitiado durante a breve convalescena. Em outros casos, o contra-feitio serviria para identificar o feiticeiro, j que o exdedo ou ex-cabelo do falecido apontam seu matador, enquanto o enfeitiado ainda vivo muitas vezes no consegue faz-lo. Idealmente, o contrafeitio mata, mas diz-se que hoje em dia muito raro isso acontecer, seja porque os familiares da vtima no suportam o jejum de sexo por tempo suficiente, seja porque os remdios de branco anulam os efeitos da feitiaria de vingana. Apontar o feiticeiro, contudo, o mesmo que decretar sua morte: se a famlia da vtima est segura sobre a identidade do matador, dever provavelmente organizar uma execuo, reunindo bens para pagar um grupo de vingadores. Se isso j no mais acontece no Alto Xingu, como parece ser o caso, diria ser devido a transformaes sutis que os Aweti em alguma medida no reconhecem: dizem, pelo contrrio, que um feiticeiro pode ser executado a qualquer momento, e ainda hoje continuamos a ouvir casos de homens que se mudam de aldeia quando acusaes contra si comeam a se acumular e ganhar peso, exilando-se por temer o desfecho fatdico. Certamente o empenho dos irmos Villas-Boas pela pacificao interna - estratgia de sobrevivncia para os povos indgenas ilhados no PIX - conduziu a uma diminuio drstica ou mesmo ao desaparecimento, ao longo das ltimas dcadas, das execues. Ainda que h mais de
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uma dcada no tenhamos notcia de tal desfecho para um feiticeiro, contudo, relevante que a execuo continue a figurar no horizonte de possibilidades dos xinguanos. Se todo feitio interpretado como a morte de um de ns, a feitiaria de vingana e a execuo so legtimas porque se trata da morte de um outro. No ato de enfeitiar, o feiticeiro cria a distncia que o diferencia radicalmente, tornando-se doravante um estranho, um invejoso. Idealmente, portanto, o feiticeiro na condio de matador de um ns o inimigo comum cuja morte de interesse geral, inclusive regionalmente, j que a fama de muitos feiticeiros ultrapassa o grupo local. Como sustentam diversas anlises da feitiaria no Alto Xingu e alhures, portanto, a execuo tem por meta a purificao da comunidade (cf. Gregor 1992; Rivire 1970; Douglas 1970). Na prtica, como vimos no caso do aweti executado, nunca haver consenso. Mesmo quando a reputao de feiticeiro ultrapassa os limites da aldeia, preciso sempre se perguntar: quem, naquela aldeia vizinha, sustenta que fulano desta aldeia feiticeiro? Como j notara Bastos (1987/88/89) os casamentos interaldeos conduzem fomao de faces translocais. Assim, se no contexto ritual as aldeias (ou grupos etno-lingsticos) se mostram como corpos coesos opondo-se uns aos outros, na vida cotidiana observamos interserces conectando-as e atravessando-as, de acordo com as alianas estabelecidas por cada famlia nuclear unidade mais efetiva no que concerne ao compartilhamento de opinies que determinam o alinhamentos das pessoas quanto s acusaes de feitiaria. Acusaes de feitiaria, em suma, so tpicos de divergncia intra e interlocal, o que faz das execues sempre parcialmente ilegtimas ou ilegtimas para uma parcela das pessoas envolvidas. Seria falso, no entanto, afirmar que a contrafeitiaria e as execues de feiticeiros promovem apenas a continuidade da agresso. Uma vingana levada s vias de fato parece provocar um choque que intimida e conduz as pessoas a se questionarem sobre como gostariam
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de viver em grupo a nica forma humana de viver danando, fazendo rituais no centro da aldeia, alegrando-se. Esse o tipo de raciocnio que fez minha me aweti argumentar comigo certa vez, quando comentvamos algumas dificuldades polticas enfrentadas pelos Aweti no contexto regional, que no deveria haver mais rivalidade entre a famlia Yawalapit que est frente da ONG que coordena o sistema de sade local e a famlia dos atuais lderes da aldeia Aweti. De fato esses dois grupos haviam sido inimigos h muito tempo atrs, mas agora todos estavam mortos, e os Yawalapit j haviam vingado a sua baixa, lembrava-me ela. Trata-se de uma histria famosa de feitiaria e execuo que associa duas importantes famlias de chefes aweti e yawalapit (ver introduo). O caso ocorreu pouco antes da chegada dos irmos Villas-Boas regio do Alto Xingu, na dcada de 1950. Segundo os Aweti, o ento chefe yawalapit era um grande feiticeiro, e matou com feitio o pai (FB) da mulher yawalapit que casara-se com o chefe aweti. Em seguida teria enfeitiado um jovem recluso de sua prpria aldeia (ou um filho de irm kamayur, segundo Bastos 1987/88/89, 399 apud Coelho de Souza 2001, 371). O chefe aweti foi com seus pais e irmos velar o morto, como se faz comumente. Por ser o nico na poca que sabia manipular uma espingarda, um dos irmos do chefe aweti foi ento contratado por um grupo kamayur para executar o feiticeiro. O chefe yawalapit recebeu um tiro ainda durante o velrio, na casa do falecido, enquanto ajoelhado pranteava. O episdio levou disperso dos yawalapit. O filho do chefe executado foi viver entre parentes na aldeia Kuikuro, onde contratou um grupo de matadores para pagarem (vingarem) seu pai. O pai do jovem executor aweti havia ficado muito bravo com o filho, pois sabia que os descendentes do chefe yawalapit viriam em seu encalo, e por medo nunca se afastava de casa. Mas um casal que no era prximo daquela famlia saiu certo dia para catar pequi no local onde antes situava-se a aldeia Yawalapit agora abandonada. L foram surpreendidos por uma
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emboscada dos Kuikuro, e o homem morreu. Quando sua esposa apareceu de canoa, na manh seguinte, lamentando o marido falecido, os Aweti logo entenderam o que ocorrera. Dessa vez foram os Kuikuro que ficaram presos em casa, com medo da vingana qweti, que nunca aconteceu. Mas esse no foi o fim da vingana dos filho do chefe yawalapit, que anos depois matou com feitio o filho de um dos irmos do executor de seu pai, uma criana que morreu engasgada com espinha de peixe por causa de feitio amarrado. Outras mortes na famlia aweti foram creditadas a este homem yawalapit, que tornou-se depois chefe de uma aldeia constituda com a ajuda dos irmos Villas-Boas. Dizem ainda que ele conseguiu outro pagamento pela morte de seu pai: num encontro com o executor awet no Jacar (ento base area da FAB), exigiu deste um colar de caramujo como recompensa. O neto daquele chefe executado hoje um dos lderes frente do atendimento de sade no Alto Xingu. Era sobre ele que me diziam alguns aweti: No h porque ser inimigo dos inimigos de seu av. J morreram todos.... Se a histria fala sobre o prolongamento das inimizades atravs de geraes, ela fala tambm que preciso haver um limite a: quando os indivduos desaparecem, as inimizades devem morrer tambm, o tempo de uma contenda o tempo de vida dos seus protagonistas. E no foi de fato nenhum aweti que sugeriu haver uma ligao entre aquele episdio antigo e sua atual situao poltica, fui eu que aventei tal hiptese. Do ponto de vista dessa famlia aweti, os Yawalapit se vingaram diversas vezes, enquanto eles, Aweti, nada fizeram para pagar a morte dos seus. No h muitas dvidas de que a famlia Yawalapit envolvida no caso no deve compartilhar essa viso, mas importa saber o que os Aweti consideram correto ou provvel a respeito de um caso de inimizade de tais propores: que no deve prologar-se indefinidamente, que melhor deixar passar uma vingana sem resposta. O que move as acusaes de feitiaria, no entanto, sempre a suposio de um sujeito sobre os motivos que levariam um outro a vingar-se.
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Nesse sentido a acusao contm muitas vezes um qu de auto-crtica: veja-se a imprudncia daquele jovem aweti levando morte tantos de seus familiares. Esse jogo de projees e avaliaes da prpria conduta o que alimenta a mquina de guerra do feitio, imprimindo dinmica vida poltica e instabilidade aos grupos locais.
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Captulo3 Moakatu:parafazergente
Apesar de circularem longe da vista dos demais, feitios, como outros objetos quaisquer, so coisas que se ganha, troca e fabrica. Sua manipulao, contudo, exige algumas capacidades fsicas especficas do feiticeiro, sobre as quais, a bem da verdade, pouco sabemos, pois, assim como tudo que envolve a feitiaria xinguana, as tcnicas corporais do feiticeiro so secretas, e afirmar conhecimento sobre elas equivaleria a uma confisso. O objetivo deste captulo situar o processo de costituio corporal do feiticeiro, tema do captulo a seguir, no quadro mais geral dos processos de constituio da pessoa no Alto Xingu. Pois se verdade que o feiticeiro necessita de habilidades corporais especficas, que devem ser adquiridas por meio de determinadas tcnicas, isso no menos verdadeiro para qualquer pessoa xinguana. Pois, como j notou h muito Viveiros de Castro (1977) escrevendo sobre os Yawalapit (cf. tambm, para uma generalizao pan-amaznica Seeger, 1979) os xinguanos entendem que o corpo humano no se desenvolve naturalmente segundo propriedades internas determinadas no ato da concepo:
Todo o complexo xinguano da recluso, acionado nos momentos da couvade, da puberdade, da doena, da iniciao xamanstica e do luto, que pode ser visto como tambm incluindo, seno mesmo como tendo por modelo, a gestao (mas tambm o sepultamento) todo esse complexo se radica na idia de que o corpo corpo humano a partir de uma fabricao cultural (2002, pg 75).
O que segue em larga medida uma confirmao do que disse este autor, contudo devo acrescentar algumas observaes. Em primeiro lugar, se o complexo da recluso se apresenta de
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fato como momento privilegiado de fabricao corporal, esta no se limita a tais momentos, mesmo se inclumos a a concepo ou a morte. A constituio da pessoa no s permanente, mas tambm permanentemente cultural, isto , produto de aes intencionais, fruto de uma fabricao. Em segundo lugar, preciso esclarecer a que o autor se refere com a noo de fabricao do humano pela cultura. A frase descontextualizada poderia levar-nos a crer, guiados pelo senso comum ocidental, que a cultura, como distintivo do humano, o que faz dos corpos Yawalapiti humanos, em contraste com os corpos no humanos e a-culturais dos animais. Sabemos, claro, que esta no a idia do autor, que no mesmo texto j demonstra de que modo, para os Yawalapiti, os animais (apapalutpa-mina) so sempre potencialmente espritos, o que significa o mesmo que dizer humanos, condio marcada justamente pelo fato de que vivem organizados culturalmente em aldeias, com chefes, xams e rituais etc. Como veremos, os Aweti possuem um verbo que expressa perfeitamente a idia de que os animais, como os xinguanos, tambm fabricam culturalmente seus corpos para tornarem-se humanos para si mesmos. Isso posto at aqui apenas recordo o que Viveiros de Castro afirma para os Yawalapiti o ponto que irei ressaltar a longo do captulo que a fabrio do humano - ou da pessoa, seja humana ou no humana, se assim me fao mais clara deve ser pensada como um processo de incorporao de qualidades e potncia de outros sujeitos, processo para o qual a alimentao e o domnio de conhecimentos servem-nos alternativamente como modelo (ponto em que o presente argumento se aproxima dos trabalhos posteriores do mesmo autor, ver por exemplo Viveiros de Castro 1986). Desejo enfatizar, enfim, o fato de que os procedimentos (culturais) aplicados construo do corpo (humano) envolvem relaes com humanos e no humanos, ou com variados tipos de pessoa. Poderamos mesmo dizer que a cultura de que se fazem os corpos aweti (e outras
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pessoas do cosmos, devemos supor) no nunca prpria, sempre alheia. Os Aweti valem-se de uma enorme variedade de substncias vegetais, intervenes mecnicas e rezas para fazer seus filhos pararem de chorar, aprenderem a andar, tornarem-se fortes, belos e hbeis. Toda pessoa comum ou deveria ser submetida a tais procedimentos, ao passo que os destinados s posies de liderana, os morekwat, deveriam s-lo de maneira ainda mais rgida, para garantirem sua condio de morekwat de verdade, morekwat ytoto. Alm disso, quase todos os homens aweti quando chegam meia idade acabam tornando-se mopat, xams, seja por escolha seja por fatalidade um processo que tambm promove a constituio na forma de um aumento, como se ver - corporal. Quanto aos feiticeiros, as etnografias da rea registram que so treinados secretamente por seus pais no perodo de recluso pubertria; todo feiticeiro seria filho de um feiticeiro, portanto. Os Aweti sustentam essa idia, mas falam tambm sobre feiticeiros como pessoas que buscaram conseguir feitios pagando a outros feiticeiros quaisquer, num momento qualquer de suas vidas. Falam tambm de feiticeiros que, antevendo a prpria morte por contra-feitiaria, resolvem passar seus feitios a um primo ou parente qualquer que poder ving-lo no futuro. De todo modo, nos interessa aqui que a feitiaria requer tanto a aquisio de objetos e o aprendizado de tcnicas para a manipulao destes, quanto a fabricao de um corpo, processo que por sua vez tambm baseado na apreenso de conhecimento. Tudo isso indica que a distino observada por Evans-Pritchard para os Azande entre o malefcio provocado pela presena inata de uma substncia corporal (witchcraft) e o malefcio provocado pelo domnio de uma tcnica aprendida (sorcery) no pertinente no presente caso uma distino a que retorno pela pregnncia que teve na literatura posterior sobre o tema (veja-se, por exemplo, a coletnia de Whitehead, 2004). O contraste nos ajuda, ainda, a ressaltar o fato de que no universo amerndio o corpo no tem nada de inato, e todo corpo s existe enquanto produto
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intencional de algum ou, como pretendo demonstrar, produto das relaes que uma pessoa deseja e consegue estabelecer em sua vida. E na medida em que feito, o corpo tambm um sinal das relaes que o constituem, aspecto fundamental no que concerne feitiaria, pois diz respeito ao problema de como reconhecer um feiticeiro.
3.1Mantervivo,manterprximo,tornargrande
Existe um verbo na lngua aweti que poderamos traduzir literalmente por fazer tornar-se gente, moak, formado pelo substantivo moat humano em oposio a animal ou kat, antropomorfo, organizado culturalmente, xinguano em oposio a no xinguanos e brancos, moral em oposio a imoral - agregado ao sufixo causativo -ka, tornar. A primeira vez que tomei conhecimento de sua existncia foi ouvindo uma histria sobre o ritual de flautas karytu. Nessa histria, o dono das flautas, que desejava promover um ritual, determina quais dentre os animais sero os flautistas, ensinando a cada um determinado tipo de msica. O ato de ensinar as msicas descrito como um ato de fazer gente: wejmoak nekamaraza89, ele moak o seu povo. Mais tarde conversei com uma famlia sobre o sentido daquela expresso. Ti moak kajepuz, tipoj, an omaoka, A gente moak nossos animais de estimao, damos comida a eles, e assim eles no morrem, respondeu-me prontamente uma jovem. Eatuwo, kajkamy ete ekozoko, ewap, ekotu, an emaoka, moazan eup. Ety emoakatu, Quando voc nasceu, foi alimentada com leite materno, cresceu, andou, no morreu. Voc ficou sendo moat. Sua me fez voc ser moat, foi a resposta da me daquela jovem. O dono da casa me forneceu
O termo kamar foi registrado em vrias aldeias xingunas com o sentido de povo, em oposio a chefe; os aweti usam-no somente nesse tipo de contexto, para designar a gente ou o povo de um detreminado lder. za coletivizador.
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ainda outro exemplo: An utepe moazan oupwyka, itaogezoko utepe, na me, timoak itsa, kajetu. Morekwatzan ti jung. Ok moegetu me, morekwazan oup, moazan, Se por acaso ele [um homem] no se comporta como moat, se ele fica bravo, ei, vamos faz-lo virar moat, dizemos. O colocamos na posio de chefe. Sua casa [de chefe] feita [pela comunidade], ele fica morekwat, moat. Este homem ainda ilustrou seu exemplo: Veja Arapatiw [lingista que trabalha entre os Aweti], quando chegou aqui ele era criana (kaminuat ian). Ensinamos a ele sobre nossos costumes (azo porywyt), histrias (tomowkap), a lngua (tiinku), agora ele chefe de verdade (morekwat ytoto), a gente moak Arapatiw. E voc tambm. Voc kuj morekwat (chefa). Ensinar cantos rituais, alimentar um animal de estimao para que se mantenha vivo e dentro de casa, cuidar de um beb recm nascido para que no morra, reconhecer um homem formalmente como lder, tornar um homem importante ensinando-o coisas, todas essas aes so designadas pelo mesmo verbo, que remete noo de moat. No caso do beb e do xerimbabo, ser moat significa acima de tudo estar vivo. Como vimos no primeiro captulo, a morte no implica necessariamente a aniquilio total da pessoa, mas sim seu afastamento em relao aos vivos. Na condio de kat, ela poder seguir vivendo alhures, seja na floresta, seja na aldeia dos mortos. Isso mais explcito quanto ao animal de estimao - faz-lo moat no apenas mantlo vivo, mas tambm mant-lo junto. Os animais fazem o mesmo com seus filhotes: omenbyza wejmoak otekyty, ele [um animal] faz seus filhos moat para si mesmo90. Isso torna mais claro, alis, que moat no pode ser uma propriedade substantiva, mas apenas uma qualidade perspectiva: os animais fazem de seus filhotes gente para si mesmos, mas do ponto de vista de um aweti um pssaro selvagem no gente, a no ser que passe pelo processo de domesticao.
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Todo ser precisa ser feito, portanto - alimentado para crescer e superar o estgio mais frgil de sua existncia, logo aps o nascimento, e ensinado a reconhecer o meio onde habita. Um filhote de passarinho deve ser mantido amarrado durante as primeiras semanas aps a captura; medida que cresce e passa a reconhecer seu dono e toda a famlia, poder ser solto, pois no ir mais se afastar da casa. Alm de reconhecer as pessoas, passar a reconhecer tambm a lngua aweti, entendendo o que lhe dizem (sem contar os papagaios, que conseguem reproduzir tambm algumas palavras) outro sinal de que est se tornando moat igual. Um pssaro capturado j adulto dificilmente pode ser solto, mesmo tendo as asas cortadas, pois nunca chega a se acostumar totalmente com seu novo ambiente. Quanto a um beb, preciso primeiro garantir que no morrer. Se ele precisa ser feito gente porque no o de sada, ao nascer. O tema recorrente entre os povos da Amaznia. Gow (1997), para citar um exemplo, nota sobre os Piro da Amaznia peruana, que um beb ao nascer submetido a uma avaliao quanto sua natureza humana ou no humana - talvez ele no seja filho de um homem, mas de uma cobra ou de um macaco. Entre os Aweti, parece-me que a condio no humana do beb est sobretudo ligada a sua extrema dependncia com relao aos pais. O beb ainda no completamente gente porque ele ainda no existe propriamente, a no ser como prolongamento corporal dos progenitores, e nessas condies pode morrer a qualquer momento. Sua existncia incerta tambm est ligada ao fato de ainda no possui conscincia das coisas sua volta (kaakwawapu), nem de si (tekwawapu), nem dos outros (kajkwawapu, reconhecimento de ns)91. De um beb se diz, assim como de um feiticeiro, um
Kaakwawap, termo que possui a mesma raiz de saber, kwawap, usado em contextos variados para designar percpeo apurada das coisas, capacidade de distino entre o que perigoso e o que no , capacidade de distino de um comportamente adequado aos variados tipos de relao. Os Aweti s vezes traduzem o termo por inteligncia, como j aludi, mas pelo que pude apreender de seus contextos de uso a expresso porywyt katu seria mais similar noo de inteligncia enquanto capacidade de elaborao intelectual apurada ou esperteza, entre ns.
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homem violento ou um chefe sovina: an okaakwawawyka, ele no sabe o que faz, no tem noo das coisas. notrio que os xinguanos consideram a gemelaridade uma aberrao inaceitvel; pais de gmeos so desprezados, a comida que oferecem no centro da aldeia rejeitada como se estivesse contaminada, pois poderia provocar uma gravidez similar em quem a comer. Parir gmeos tambm pode ser resultado de feitio. Certo dia explicaram-me que o motivo de se desprezar a tal ponto os gmeos a extrema fragilidade de sua existncia: tudo que acontece a um afeta ao outro. Devido a essa interdependncia insolvel, os gmeos existiriam, pois, na eterna iminncia de morrer, virar kat, como se nunca chegassem de fato a virar gente. Isso no acontecia a Kwat e Taty, os gmeos demiurgos, porque eles eram fortes, mas ns no, ns somos fracos. A explicao talvez no d conta da questo da gemelaridade, que parece ter uma dimenso mais profunda e abrangente na Amaznia (cf Lvi-Strauss 1991), mas indica um aspecto importante da viso aweti sobre a pessoa: preciso ter consquistado alguma independncia para que algum possa ser dito gente de fato. Contudo, ser independente no o contrrio de estar em mltiplas relaes, pois, como pretendo mostrar aqui, apenas por meio de relaes que alguma independncia pode ser construda. Os Aweti dizem que um beb feito apenas do esperma do pai (nupyt put); o tero onde o feto se desenvolve apenas seu lugar, nupap, e a placenta sua rede, ne ini ( placenta desligada do feto, aps o nascimento, diz-se ne ini put, sua ex-rede, mas ela antes de tudo vista como uma parte do corpo da me). Os procedimentos que podem influenciar a formao da criana, contudo - seu sexo notadamente, e se sero gmeos - so dirigidos me. Se deseja ter
Porywyt, por sua vez, traduzido como costume ou cultura. Ao contrrio do kaakwawapu, porywyt parece ser menos algo que se desenvolve ou aprende, e mais uma peculiaridade de algo ou algum, uma ao repetida percebida por outros como tal. Pode ser porywyt de algum despertar sempre a tal hora, ou porywyt de um pequizeiro florescer sempre antes dos demais.
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uma filha, por exemplo, ela deve comer utilizando uma concha (kyngta), instrumento de descascar mandioca e descarnar pequi, duas tarefas sumamente femininas, guisa de talher; para ter um filho homem, deve comer o pnis do macaco prego (kajyt), nica espcie de macaco considerada comestvel. Este alimento tambm recomendado aos homens para curar impotncia. Para intervir na formao do sexo da criana a mulher pode tambm fazer uso de poes vegetais ministradas por algum conhecedor, mas existem alguns riscos. H uma flor, por exemplo, cujo ch usado para fazer um filho homem, e que eventualmente leva formao de um casal de gmeos, o que altamente indesejado. possvel tambm induzir formao de gmeos enfeitiando a mulher, isto , amarrando para ela um feitio com imagem de kat. O fato que a criana um ser manipulvel enquanto permanece na barriga da me, de modo que as aes tanto desta quanto do pai influenciam na sua formao. Alm disso, so comuns comentrios a respeito das semelhanas fsicas dos filhos com qualquer um dois pais. A formao do feto a partir do esperma paterno, portanto, no deve ser supervalorizada - a criana possui uma identificao igualmente forte com ambos os progenitores, o que ficar mais claro quando tratarmos do sistema onomstico92. Isso o que se deveria esperar, alis, em um sistema que estende o processo de constituio da pessoa para muito alm da concepo, como observamos nos usos do verbo moak: fazer uma pessoa aliment-la, promovendo seu crescimento fsico para o que contribuem tanto o leite e o polvilho materno quanto o peixe paterno assim como transmitir-lhe conhecimentos que moldam a sua personalidade; aumentar simultaneamente seu corpo () e sua conscincia (-kaakwawapu). Quando aplicado a um adulto, vimos, moak foi usado tanto no sentido de instruir numa
Certa vez ouvi uma jovem Aweti se referindo a uma menina como proveniente dos fluidos vaginais de sua me (fulanayt ut) - uma substncia da qual nunca outra vez ouvi falar. Ao perguntar descobri que esta fora uma piada em cima de uma informao que teriam recebido dos brancos sobre meninas serem formadas de alguma substncia materna e os meninos de substncia paterna - isso uma histria do branco, me explicou a jovem.
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arte ritual quanto no de fazer de um homem lder do grupo, tornar chefe, morekwat. O que me parece surpreendente na explicao que recebi que a deciso de tornar um homem chefe no partiria de um reconhecimento de qualidades que j possui, mas de uma tentativa de proporcionar o desenvolvimento de tais qualidades93. Se um homem muito bravo, resolvemos torn-lo chefe - domestic-lo, portanto, como se domestica um filhote selvagem. Este ltimo processo ainda, como aludi no primeiro captulo, correlato domesticao de inimigos, j que as aves so inimigas dos homens no cu. Um homem feito chefe capturado de sua prpria ignorncia, contudo, no para tornar-se filho, como a ave, mas para tornar-se pai. Fazer um filho e fazer um pai so assim apresentados como processos da mesma natureza e, como se ver adiante, os pais so efetivamente re-feitos quando do nascimento de seus filhos, (um ponto para o qual Viveiros de Castro, 1977, j havia chamado ateno em relao couvade entre os Yawalapiti). Pois o chefe antes de tudo um conselheiro, o que se espera dele que fale para as pessoas no centro, referindo-se a elas como crianada (kaminuaza) - falando, portanto, do lugar de um homem mais velho e sbio; espera-se tambm que d exemplos de empenho, ao lado de uma famlia trabalhadora, e demonstraes de generosidade, compartilhando sempre o que possui. Tornar um homem chefe uma espcie de captura atravs da instruo moral e cultural, e nesse sentido no guarda uma diferena profunda em relao ao processo de ensinar cantos rituais a um homem. Voltarei ao tema da chefia no prximo captulo.
No posso deixar de notar, a respeito da referida explicao do verbo moak no que concerne chefia, que o ento chefe da aldeia ilustrava com perfeio tal conceito: era um homem reconhecido pela braveza, que no obstante fora escolhido pelos Aweti para represent-los mas que, no entendimento de alguns, por fim no havia virado gente como se esperava. Evidentemente esta no a situao ideal, pois seria prefervel que houvesse um jovem criado para a liderana, um que possusse de antemo a confiana e o respeito de boa parte do grupo, enquanto aquele homem passara desde a infncia a vida toda fora da aldeia, e sua famlia j no vivia entre os Aweti h mais de vinte anos. Os aweti haviam elegido um chefe praticamente estrangeiro.
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3.2Paisefilhosporfazer
Desde o incio da gravidez at mais ou menos o primeiro ano de vida de seu filho, os pais devem abster-se de diversos alimentos e atividades que afetariam a vida da criana. Tudo que proscrito aos pais em prol da sade do beb em formao designado pelo termo morazwap ou pelas formas possudas tazwap e teporazwap (o -azwap dele [da criana]) termo cuja etimologia desconheo. Uma jovem explicou-me que tazwap refere-se s coisas que provocam calor/febre (takup) na criana: coisas que fazem-na adoecer. Uma mulher grvida (tyaza) ou me de um filho pequeno (kaminuat ty, lit. me de menino) no deve descascar mandioca nem produzir ou ensacar polvilho, por exemplo, porque o polvilho e a casca da mandica so quentes. A casca do pequi igualmente quente, e a me no deve trabalhar com isso, pois o pequi tambm provoca diarria na criana. Trabalhar na produo do sal, sobretudo queimando as folhas de aguap, tambm proibido, pois o sal quente, e faz arder a criana, wejkoo. Se a me trabalhar fazendo esteiras ou fiando algodo, a criana ter dificuldade para urinar ou defecar. Uma mulher grvida no deve costurar, pois corre o risco de seu filho nascer com as plpebras coladas. Quanto ao pai, est proibido de trabalhar na construo de uma casa, de abrir, plantar ou queimar roa, trabalhar na produo de sal ou cavar um buraco, antes ou depois do parto; para reverter o adoecimento do filho ser preciso desfazer o trabalho. Se tocar as flautas rituais takwara ou tupi, a criana perde o flego, ou pode ficar chorona. Logo que o filho nasce, o pai no pode sair de casa, pois tomar um susto com qualquer coisa uma cobra que cruze seu caminho, por exemplo -, provocaria a morte da criana em casa. Foi deste modo, provocando sustos um no outro, que os gmeos demiurgos Kwat e Taty mataram seus respectivos filhos e por isso no deixaram descendentes (ver cap 5).
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As restries ligadas ao morazwap atestam a dependncia fsica dos filhos em relao aos pais que vigora no perodo em que a criana pensada como ainda em formao (otemoegeju, ele est se constituindo), antes e aps o nascimento, e pode sofrer o efeito de qualquer coisa realizada por seus pais. Vencida essa fase, o beb um sobrevivente, pois no morreu, an omaoka - tornou-se gente. Note-se que neste momento os pais so os nicos que possuem influncia sobre o bem estar de seu filho; quando uma placenta amarrada por um feiticeiro, a me que sofre as conseqncias, e no a criana. O beb, de resto, praticamente no possui nada que possa ser tomado pelo feiticeiro como um objeto para amarrar, e tampouco circula por a de modo a tornar-se alvo de flechadas de feitio. A conquista gradual de sua independncia fsica representa menos que atingiu um estado de invulnerabilidade que a alterao das relaes s quais vulnervel. Ao possuir objetos, caminhar, ser objeto de prticas de fabricao corporal, alimentar-se de outras coisas que no apenas o leite materno, a pessoa expe-se a outras relaes necessrias e produtivas para sua formao, porm potencialmente daninhas. Uma comunidade de substncia com os pais e germanos reais no deixa de existir, mas perde fora ao longo da vida, sendo parcialmente substituda por outras formas de comunicao a um s tempo constitutivas e perigosas (ver cap 5). Voltando dieta seguida pelos pais de um recm nascido, uma parte das restries referese a um regime aplicado a diversas cirscuntncias de vida, morezowatu, que implica basicamente a supresso temporria de qualquer tipo de peixe. Obrigatria aps o parto, essa abstinncia j se insinua durante a gravidez devido falta de apetite dos pais de uma criana em gestao. O cheiro de peixe torna-se extremamente enjoativo para a grvida, e tambm o pai fica inapetente. Se preciso deixar de comer peixe aps o nascimento, isso diz respeito ao sangue do parto e aos sangramentos ps-parto. Tanto o peixe quanto o sangue tm um cheiro forte, pylyu, que a
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associao das duas substncias tornaria excessivo. Uma mulher menstruada segue a mesma dieta, tanto porque no deve quanto porque no tem vontade de comer peixe: Que nojo, ela est comendo seu prprio sangue!, diriam a ns se comssemos peixe enquanto estamos menstruadas, explicou-me uma amiga. Comer peixe menstruada faz a mulher ficar barriguda: seria como estagnar o sangue dentro dela, acrescentar algo que j carrega em excesso e de que preciso livrar-se, assim como o matador precisa expelir o sangue da vitima para no ficar barrigudo. O prprio fato de estar menstruada faz com que a mulher no deseje comer peixe, dizse: an zano ikirajka, tampouco gostoso [comer peixe nessas condies]. O mesmo parece ser verdadeiro a respeito da grvida, pois neste caso a suspenso da menstruao provavelmente entendida como reteno, e no ausncia, de sangue94. Ela poderia comer peixe, mas no deseja, assim como o homem com quem, atravs da criana que esto gerando, ela mantm agora uma estreita relao. O ato de gerar uma criana identifica parcialmente no apenas pais e filhos, mas os prprios genitores entre si. Esta identificao, no entanto, parcial e circunstancial, como se ver no captulo 5. Nos primeiros dias aps o nascimento da criana a mulher no deve comer rigorosamente nada, para no ficar barriguda no futuro - ela apenas vomita, com o auxlio de emticos, pois deve expelir todo o sangue do parto. Aos poucos, comea a se alimentar de mingau cozido de polvilho e gua (miating), que vai ajud-la a ter leite, enquanto qualquer coisa slida atrapalharia o incio da amamentao. Aps uma semana, a mulher pode comear a acompanhar o marido numa dieta de carne de caa algumas aves e macaco prego. Idealmente o casal deve esperar trs meses para recomear a comer peixe. A sada do regime marcada por um ritual ministrado por
Entre os povos amerndios o sangue freqentemente visto como a contribuio feminina para a formao do feto, acumulando-se, como o esperma, no tero da mulher grvida. Esta seria uma hiptese alternativa sobre a concepo mesmo entre alguns povos xinguanos (cf. Viveiros de Castro 1977).
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qualquer homem mais velho, normalmente o pai da me ou pai do pai do recm nascido, a depender do local de residncia do casal, em que ambos os progenitores so perfumados com cheiro de peixe, antes de voltarem a consumir este alimento. O nome deste evento, pylyukatu, significa literalmente tornar pylyu, o que indica que a esta altura o casal j est totalmente livre do sangue do parto. Ao mesmo tempo, a necessidade desse ritual sugere que, se perigoso sobrepor duas substncias do mesmo tipo, como sangue e peixe, tambm necessrio conter em si um pouco de seu cheiro para que o consumo de peixe no seja perigoso. Tornar pylyu como temperar um feijo com cebola - substncia igualmente pylyu -, explicaram-me certa vez. Como se ver adiante, tanto a dieta de caa quanto o pylyukatu so etapas necessrias da recluso pubertria feminina e masculina, enquanto o consumo de peixe deve ser evitado tambm pelas pessoas recm tatuadas, sob o risco da tatuagem no ficar suficientemente preta - e se tatuar tornar chefe (ver cap 1), quando a tatuagem no aparece a pessoa no tornou-se efetivamente morekwat. possvel que o morezowatu neste caso esteja relacionado ao sangue com que se entra em contato no processo de tatuagem, mas me parece estar mais associado a uma idia geral de que h uma transformao corporal em curso, e de que nestes perodos preciso restringir os contatos com elementos potencialmente perigosos (ver abaixo). S se deve comer, aps a sesso de tatuagem, a comida mais inofensiva de todas, a mesma ingerida pela me de recm-nascido, o mingau quente de polvilho e gua. O morezowatu seria assim destinado preservao da sade dos pais, e deve ser observado pela mulher mesmo em casos de beb natimorto ou aborto. Quanto ao pai, segue esta dieta rigorosamente somente aps o nascimento do primeiro filho. Como notou Viveiros de Castro em sua etnografia sobre os Yawalapit, algumas das restries ps-parto indicam que este
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perodo delicado no apenas para a sade do beb, mas tambm para a sade dos pais estes esto, assim como um filho, especialmente vulnerveis aos processos de transformao e moldagem corporal. Ainda na gravidez, por exemplo, a mulher no deve comer entranhas de nenhum animal, seno ficaria com o tero cado aps o parto. Depois do nascimento do filho, dizse, a mulher torna-se mais resistente, ipit etjat, sua pele torna-se forte. Se tem relaes sexuais antes da criana comear a andar, a mulher emagrece tanto a ponto de ficar sem ndegas. Ela deve permanecer em casa sem trabalhar e nem comer peixe, esperando o sangue estancar, para engordar. O pai, por sua vez, passa, no perodo aps o nascimento de seu primeiro filho, por um processo idntico ao da recluso pubertria: ele deve ficar em casa para engordar, deve estar atento aos sonhos, pois se sonhar que est empurrando uma pedra ir se tornar campeo de luta. Finalmente deve encerrar este perodo saindo de casa, e exibir-se para a comunidade lutando towaapitu (esporte conhecido, em portugus, como huka-huka). Este processo tambm repetido no encerramento do luto: o homem deve sair e lutar, mostrando que engordou e est forte. A cada uma dessas etapas o corpo est especialmente sensvel a processos de moldagem. Os filhos subseqentes, contudo, no representam as mesmas possibilidades e os mesmo perigos para o pai; com as sucessivas gestaes, pelo contrrio, um homem vai deixando de lutar, pois a repetio do ato sexual, necessria para a formao de um feto, o faz perder fora. Mas os genitores observam tambm antes e aps o parto diversas restries alimentares relativas sade da criana, neste caso no importando se o primeiro filho ou no restries designadas, como as diversas atividades mencionadas acima, pelo termo morazwap. A lista de alimentos proscritos poderia ser resumida em dois grupos: aqueles sempre perigosos para qualquer xinguano, como a maioria dos animais de plo (kaloleput), jacar e cobra; e alimentos de natureza indeterminada, comestveis mas possivelmente daninhos, entre os quais se encontram
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os peixes de grande porte e muito gordurosos, o quati (wajatawyt), o jacu (takujyt), o mel da abelha-europia (tserere) e algumas frutas, como o abacaxi (kalah) e o ing (tam-tamaryt). O estatuto alimentar do quati polmico, e muita gente considera que no deveria ser comido por nenhuma pessoa pois, assim, como os demais kaloleput e animais no comestveis, sua ingesto pode provocar convulses, sobretudo numa criana pequena. O que os Aweti dizem simplesmente sobre este efeito que tais animais so kat, e no se deve com-los. Talvez o tamanho do quati faa dele menos perigoso que uma anta, e logo semi-comestvel95. A proibio do ing est relacionada do quati: ing assim como, suspeito, todas as frutas selvagens kat emiu, comida de kat. Arrisco dizer que o abacaxi considerado perigoso pelo mesmo motivo pois, se hoje costume plantar a espcie trazida pelos brancos (kalah watu), o abacaxi nativo selvagem, colhido nos matos onde cresce sozinho. Quando se comenta sobre uma pessoa que ficou perdida no mato, vivendo com kat, comum aludir-se ao fato de que ela estava comendo fruta de jatob (mti inemyta, alimento que os Aweti geralmente desprezam, e apenas as crianas comem, raramente), ou simplesmente comendo frutas do mato96. Quanto aos peixes de grande porte, j ouvi trs explicaes um pouco diferentes. Como so tambm bastante gordurosos, provocam diarrias na criana. Tambm se diz que a ang do peixe pode se vingar, vindo roubar a ang do beb: eles so kat tambm, portanto, e por serem grandes so mais poderosos que os demais. Considera-se, ainda, que a gordura desses peixes, se amarrada num feitio, altamente letal: iangywo portitu, pok, omao omenbyt, se for amarrado sua sombra/imagem [ou seja, se fizerem para o beb um amarrado com a gordura do
Outro kaloleput de mdio porte, o tatu (tatupep), que talvez fosse consumvel como o quati, rejeitado por um motivo suplementar: por ter um pnis longo e mole, o tatu provoca impotncia. 96 Entre as quais nunca se inclui o pequi, considerado igualmente uma fruta (ypa, lit. objeto redondo de uma rvore), mas altamente domesticado, apesar de vrios pequizeiros nascerem espontaneamente e serem depois adotados por alguma famlia, ou mesmo manterem a condio de domnio pblico. De qualquer jeito, o pequizeiro pertence por excelncia a algum domnio, mesmo que seja de todo um grupo local.
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peixe comido por um de seus genitores], pok, o filho da pessoa morre. Diz-se que antigamente os feiticeiros matavam muitas crianas, por isso os pais seguiam rigidamente os tabus que visavam preservar a vida de seus filhos. O jacu, por fim, uma ave que estrebucha ao morrer (wetsarat, ele convulsiona), o que provoca convulses na criana. E o mel de tserere provocaria feridas na pele do beb, como se ele tivesse sido picado por tais abelhas, a espcie com ferroada mais dolorosa. Esta certamente no uma lista completa dos alimentos considerados perigosos para pais de bebs e crianas pequenas, mas no creio que poderamos chegar a exauri-la. Enquanto a respeito de alguns dos itens citados parece haver unanimidade (quanto ao abacaxi e ao jacu, por exemplo) outros so matria de intensas discusses entre mes e filhas (avs e mes de bebs), irms e cunhadas, sogras e noras. Fulana est comendo ing?, perguntava-me, por exemplo, uma mulher sobre a me de sua neta de um ano e meio, completando: Ing comida de kat, perigoso (itezak). Ou ento, algum me reprimia por ter comido quati na casa de um vizinho: Fulana comeu isso quando o filho dela era pequeno, e ele quase morreu o que mostra que a me no estava to segura de que devia evitar este alimento na poca. Quando explicaram-me que kaloleput no se deve comer pois kat, e provoca tsaratu, perguntei se o macaco-prego (kajyt) - uma comida sempre permitida97 (salvo na dieta de lactao da me) - no era kat tambm. Claro que tem [alguns que o so]!, foi a resposta. Assim como o quati um alimento possivelmente inofensivo, ainda que razoavelmente perigoso, kajyt um alimento razoavelmente inofensivo, mas possivelmente perigoso: se algum passa mal depois de comer um macacoprego, pode-se supor que na verdade aquele no era um macaco comum. A mesma dvida paira
O macaco no -pylyu, mas apenas pit, cheiroso, o que o provavelmente o faz ser compatvel com dietas de restrio alimentar por causa do sangue: ele no redundante com tal substncia, como o so os peixes.
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com relao s frutas. O que se tem, portanto, uma lista de alimentos mais claramente perigosos que os demais, e principalmente perigosos para pessoas em determinadas condies de fragilidade, como os bebs.
3.3Paraterndegasdetapir
O povo do tempo de kwaza comia de tudo, todos os kaloleput, explicou-me certa vez um xam, pois ainda no tinham peixe e nem sabiam das coisas, an okaakwawawyka ts. Mas eles no ficavam doentes, pois eram fortes (tangta); ns somos fracos, por isso no podemos comer quase nada, ou temos tsaratu. Tsaratu significa ser afetado malignamente pela comida, ser alterado, revelia, pelo que se comeu. A gordura, o cheiro pylyu, o tamanho, e o fato de ser mais ou menos selvagem, so fatores que determinam a potncia patognica de um alimento. Deste modo, a gordura de um peixe grande mais letal, amarrada num feitio, que uma espinha de peixe pequeno: a potncia do peixe, e da gordura, fortalecem o feitio. E se, entre dois peixes, o menor considerado menos perigoso que o maior, os modos de preparao culinria tambm so relevantes: quanto mais elaborado o processamento, melhor, pois ele parece diminuir a potncia da carne animal. Antas, porcos ou tatus so mortos s vezes, em emboscadas noturnas, quando esto atacando insistentemente a roa de algum. O objetivo no a caa, mas livrar-se de um concorrente. No entanto quase sempre alguns jovens se animam a comer um pouco da carne do animal, ainda que sob as crticas dos mais velhos98. Como numa dessas ocasies eu me animasse
Bastos conta de um episdio em que alguns rapazes Kamayur foram obrigados pelos seniores da aldeia a jogar fora diversos porcos do mato.
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a provar a famigerada carne do tapir, minha me no deixou de me incentivar: comendo-a frita, segundo ela, no havia tanto perigo. J a uma menina que estava interessada em comer aquela carne tambm, ouvi algum comentar ironicamente: Vai l comer anta, para voc ficar bunduda!. Mesmo que no fosse sria naquela ocasio, a sugesto de que o consumo da carne de anta - animal tambm conhecido pela alcunha de ipyj kwat watutu, grande nus - ajuda na formao das ndegas, contm implcita uma viso sobre a relao entre o alimento e o consumidor. Incentivando um branco a comer peixe com beiju, por exemplo, um homem aweti comentava que comida de ndio no engorda, e portanto pode-se comer vontade. O ndio passa o dia procurando seu alimento, por isso no engorda, enquanto o branco passa o dia sentado, e engorda, ele explicava. Mas a prpria comida dos ndios que possui tais qualidades, entendi melhor a seguir: o macaco-prego tambm passa o dia procurando comida, e por isso comer macaco no engorda, e tambm no envelhece seguia a explicao. Pelo mesmo motivo deve-se procurar comer o tracaj jovem, com casco ainda liso, e ovos de tracaj. O crebro do peixe recomendado para quem deseja memorizar histrias, pois ali se localiza a inteligncia (kaakwawapu) desses animais; quem deseja memorizar cantos, deve comer o corao dos peixes, stio de outro tipo de inteligncia animal. Como j foi notado, a lista dos alimentos potencialmente daninhos objeto de constantes questionamentos e investigaes. Lembro-me, por exemplo, de um peixe (tsotsowit, desconheo o nome portugus ou cientfico da espcie) que os Aweti desprezam alegando que d cabelos brancos e provoca cansao em quem o come. Certa vez em que os homens de minha casa voltaram da pescaria carregados de peixes dessas espcie, mas apenas deles, vi minha irm comentando com uma visita: a gente est sem peixe, tudo kat. Os Aweti reparam, contudo,
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que os karib xinguanos (janahukwaryza) consideram o mesmo peixe extremamente benfico pois, com seu formato delgado, previne o inchao de barriga nas crianas. Os karib, alis, so o principal referente de comparaes para os Aweti, que os consideram especialmente rgidos quanto dieta - mais plenamente moat, ou xinguanos, nesse sentido enquanto os Kamayur so exemplo de gente que come qualquer coisa (karika wat, comedor de qualquer coisa), pois em Ipavu, o lago beira do qual eles vivem, no tem peixe. As casas de apoio ao sistema de sade na cidade (as chamadas Casas do ndio, ou Casai) so locais de observao donde sempre surgem consideraes a este respeito. Uma jovem aweti observava um dia, por exemplo, que muitos karib rejeitam carne de galinha na Casai pois consideram que pode provocar tosse na pessoa. Para eles a fala da galinha parece tosse, ela comentava com seus familiares. Mas no apenas os alimentos de origem animal so objeto de tais consideraes. Para convencer seu filho pequeno a no tomar caf, um pai argumentava: seno nosso esperma fica preto, kajyt ut kylaw eti. Quase todo mundo na aldeia hoje em dia adora esta bebida, mas no a consomem sem certo receio. Isso, bebe bastante caf, pra voc desmaiar, brincava uma jovem, controlando sua me. Teme-se, sobretudo, que o caf deixe as crianas pequenas irritadias como os brancos. Certa vez um homem me disse sobre um filho seu que adorava brincar com flechas ameaando as pessoas: Ele passou muitos meses na cidade quando era pequeno, por isso ficou assim, bravo. O caf, como as frutas, parece ser perigoso pela identificao que promove com os seres que o consomem. Comendo ing, a me parece sofrer algum tipo de identificao com kat, o que resulta na transformao de seu filho em kat ou, ao menos, em algo diferente de um vivente, xinguano. Que o caf faa mal a uma criana pequena quando consumido pela me ou pai nunca ouvi falar, mas no considero impossvel que isso seja um dia aventado como hiptese para explicar o adoecimento de algum. A gordura um caso parte, pois tratada como dona de
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uma agncia prpria, independente de sua origem. Ela se vinga (wejtepyk) de quem a come. Observaes esparsas sobre os efeitos do caf ou da carne de anta sobre a pessoa que os consome permitem-nos entrever a imagem aweti do processo alimentar. A cincia nos diz que os alimentos so compostos da mesma matria que nossos corpos, que funcionam como mquinas de decompor e recompor tais substncias. Para os Aweti, alimentar-se apropriar-se de diferenas, para o bem ou para o mal. A ndega da anta, ela no est dada no corpo do comedor de anta, ela ser apropriada por ele. Ou a juventude do macaco. Nisso a alimentao no se distingue de diversos outros procedimentos curativos ou voltados para a aquisio de fora e beleza, dos quais tratarei abaixo. Ao comer, assim como ao usar determinadas substncias de origem vegetal ou animal, a pessoa se apropria de qualidades fsicas e morais daquilo que ingerido, ou com o que entrou em contato. A alimentao deve, assim, ser entendida ao lado de outros tipos de associao inter e intra-especficas. Por vezes, o simples ato de matar um animal, mesmo que sua carne no seja ingerida, pode ser perigoso, como sugeria uma jovem aweti ao brigar com seus irmos mais novos que brincavam de flechar lagartos dentro de casa: Isso, fiquem a flechando esses lagartos, para vocs terem convulses depois!. Uma lgica subjacente a todos estes fatos me parece ser a de que quase tudo que uma pessoa faz na vida implica uma relao simultaneamente produtiva e perigosa. Assim como, sob a tica ocidental, impossvel crescer sem consumir carboidratos e protenas, a pessoa aweti s se constitui a partir de determinadas relaes que proporcionam a apropriao de qualidades alheias. importante ressaltar, contudo, que no existe a uma distino entre qualidades fsicas e qualidades intelectuais e morais, nem entre constituio do e constituio da ang. Quando se diz ele tem um grande corpo, , h implcito um elogio moral, pois um belo corpo sempre resultado do empenho da pessoa e seus familiares. A ang,
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em contraste, no algo que se tenha que construir, ou na qual se deva fazer investimentos, pois ela no uma parte do corpo, mas uma duplicao sua, um reflexo. O corpo fsico e moral a um s tempo, um belo corpo uma bela pessoa. Mais do que absoro ou aproriao, portanto, imagens que remetem a um modelo substancialista, talvez seja o caso de falarmos em identificao com o alimento. Como comum em outras partes da Amaznia, o processo de alimentao incorre sempre um risco, seja pela identificao indesejada com a comida, seja pela identificao indesejada com os comensais. O compartilhamento de hbitos e conhecimento e o compartilhamento de substncia no parecem ser processos distintos em sua natureza, de modo que comer comida de kat e comer kat implicam, ambos, um tipo de identificao com kat. Como que contaminado pela imagem que se tem da relao entre comedor e comida, o prprio ato de alimentar-se parece marcar tambm um momento de especial vulnerabilidade da pessoa alterao corporal. Assim, crianas no devem comer na rede pois isso faria com que os meninos ficassem com um pnis longo demais, e as meninas com peitos gigantes. Que esses efeitos no sejam produzidos sobre os adultos est relacionado a uma idia que ainda no esclareci: a pessoa pra de crescer quando tem sua primeira relao sexual. Neste momento um jovem ficou pronto, maduro: owyge. Por esse motivo os pais tentam retardar ao mximo a primeira experincia sexual dos filhos. Quem transa novo fica baixinho. H uma srie de alimentos proibidos apenas para crianas ainda neste perodo de formao pr-iniciao sexual. Os Aweti classificam certas coisas, no apenas alimentos mas tambm certas canes rituais, como kanuaryt99, uma categoria que me foi traduzida como sagrado. Quanto aos
Viveiros de Castro (1977, 73) sugere que o termo de origem aruak. Em Ywalapit e Mehinaku, kanupa. Gregor oferece o seguinte esclarecimento A man avoiding a certain species of fish because of dream of a fish spirit honors
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alimentos, tudo que kanuaryt referido tambm como comida de velhos e velhas, myraza emiu, aripiza emiu. Crianas no podem comer peixe cascudo (mulut), por exemplo, porque trata-se de um ser muito antigo (com aparncia de velho); se uma menina come um cascudo, quando crescer ela vai se casar com velho, o menino casar com uma mulher velha algo considerado abominvel. O peixe tsotsowit, de que falei acima, tambm no comida de criana, apesar de ser geralmente desprezado por todos; quem o come fica cansado, a pele enruga e os cabelos enbranquecem, a pessoa envelhece antes da hora, enfim (suspeito, mas no pude confirmar, que isso tenha a ver com suas espinhas muito finas e numerosas, que lembram cabelos brancos). A piranha preta tambm um ser antigo, e por isso deve ser evitada. A piranha vermelha, por sua vez, jovem (kaminuat, criana, um modo de dizer que um ente recentemente surgido no mundo) e, portanto, pode ser comida por qualquer pessoa. Quem afirmou tais coisas foi Kwat, definindo a dieta da gente que o sucedeu. A carne do pequi tambm kanuaryt: antes de comer as primeiras frutas da estao as crianas deveriam ser arranhadas na regio lateral da barriga, ou seno se tornaro moles e sem disposio mais uma vez, algo que remete ao envelhecimento precoce. Se tomar este mingau de pequi hoje, amanh voc no consegue acordar, avisou-me um dia um velho, completando: o pequi rouba nossa gordura, para usar como leo corporal (tentajy, leo de pequi) - relao que inverte aquela normalmente estabelecida entre humanos e pequis, pois somos ns que roubamos a gordura deles para usar como leo100. O beiju velho, amolecido em gua e depois colocado sobre a brasa para ficar crocante (jumem angta), e o beiju fininho de polvilho puro que
the avoidance because it is kanupa to him. By extension, a woman may be kanupa to a particular men because the relationship would be incestuous (1985:73). 100 Os pequis so gente, portanto: se pintam, danam etc. o que eu no poderia afirmar a respeito das frutas selvagens. J me disseram tambm que o pernilongo rouba nosso sangue para us-lo como urucum em sua aldeia no cu.
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se assa para misturar com gua e fazer mingau toda manh (jumem itirigetu) tambm no devem ser comidos pelos jovens: o rapaz pode machucar o joelho na luta, a moa pode ter a vagina rasgada na hora do parto. S aripi, velha, e myra, velho, podem com-los mesmo porque j no iro lutar ou parir. Jovens que comem alimentos kanuaryt tambm ficam com as solas dos ps rachadas, ou coando. A comida preparada para um ritual de pylyukatu, que encerra o morezowatu ou jejum de peixe, tambm kanuaryt, s pode ser comida por velhos; no caso de um rito aplicado a um jovem recluso, este ainda no se alimenta da comida ritual, enquanto seus pais (homens da gerao de F) comem wayt ete, para/sobre seu filho. Se um jovem come a comida do pylyukatu corre srios riscos de machucar a perna quando caminhar no mato, ou de ver uma alma penada andando atrs de si; para evitar isso preciso proferir uma frmula verbal semicodificada (pythizyku, um tipo de reza) que se usa soprando-desejando algo para algum: fu...fu...Seno a comida se vinga de quem a comeu. O peixe oferecido no ritual das flautas sagradas karytu tambm objeto da mesma restrio. A mulher que espreme em esteira a massa de mandioca para produzir polvilho no pode ter tido contato recente com um pnis, ou seu polvilho no vai render quase nada. Kanuaryt, dizse tambm do polvilho, uma vez que sua produo exige a observncia de certas regras101. Sei
Breve esclarecimento sobre a produo do polvilho (miak). Trata-se do produto de variados tipos de mandioca brava, espcies venenosas que s podem ser consumidas aps processamento. As razes so descascadas e raladas, formando uma massa liquida acumuladas em paneles de alumnio. Em seguida, a massa espremida aos poucos com o auxlio de uma esteira de palha apoiada em estacas de pau sobre uma outra panela de alumnio, de modo que o lquido resultante todo guardado nesta, enquanto a massa que restou na esteira jogada fora. O lquido de toda a massa espremida descanda por cerca de duas horas, at que decante uma massa muito fina de polvilho no fundo da panela. O lquido que cobre essa massa jogado fora ou posto a cozinhar por muitas horas numa grande panela de cermica, produzindo um mingau doce. O polvilho decantado no fundo da panela de alumnio retirado em blocos e posto para secar ao sol sobre um jirau. Seco, o polvilho armazenado em sacos ou numa estrutura de madeira revestida de palha no centro das casas, e vrios meses. A poca de produo mais intensa o incio da estao seca, abril, maio e junho, enquanto no incio das chuvas, em setembro e outubro, as roas so replantadas. Durante a estao chuvosa consome-se basicamente o polvilho que foi produzido e armazenado na seca.
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que a pescaria envolve o mesmo tipo de interdito o homem no pode ter cheiro de sexo ou afastar os peixes. Este tambm aplicado ao sal vegetal (tukyt) pois o sal sente o cheiro de sexo, wejtsu, e desaba do lugar onde foi posto para secar, desabamento este que antev-provoca a morte do seu dono102. Nunca ouvi dizer que o peixe, a pescaria ou o sal fossem kanuaryt. O fato do polvilho ter sido referido desta maneira, assim como a carne do pequi, sugere que o termo pode designar apenas, como me foi explicado, sagrado, ou algo sujeito a restries, perigoso. H por fim os cantos rituais ditos kanuaryt, ou itezagytu, lit. perigosos/que provocam respeito/nojo103, obre os quais tenho poucas informaes. Na srie de msicas de karytu h uma sequncia de trs kanuaryt (no mnimo, pois suspeito que hajam outras). Bastos (1989) registra a existncia de cantos designados kanuw no Jawari Kamayur. Segundo este autor, kanuw so cantos que tm por objetivo enfraquecer os adversrios na disputa de dardos, provocando neles desejo sexual e saudade enquanto o lutador deve manter abstinncia sexual ou perder o embate. Quanto aos cantos kanuaryt de karytu, sei apenas que devem ser pedidos especialmente pelo dono das flautas aos tocadores (t itat, lit. mestres da msica), que ao toc-los no devem ser vistos por nenhuma outra pessoa. Qualquer erro na execuo meldica provoca a morte do tocador. Em seguida uma comida especialmente dedicada ao pagamento dessas msicas levada
Sobre a produo do sal vegetal: as folhas de aguap so retiradas de grandes lagos lamacentos, junto com suas razes, e postas para secar, espalhadas, na margem. Uma vez secas, dias depois, as folhas so reunidas em pequenos montes e queimadas. A cinza recolhida em sacos ou cestos de palha e levada para a aldeia, onde ser coada numa estrutura de madeira revestida de folhas secas. A gua resultante da filtragem ento fervida at secar em grandes tachos de ferro, no fundo dos quais resta numa massa hmida e negra. Usando conchas como colheres, essa massa retirada e arrumada na forma de um castelo de areia sobre o cho revestido com cinza. Depois de descansar um dia, essa pequena estrutura de cerca de 20 cm est branca e dura, o sal est pronto. Um dos momentos considerados difcieis da produo retirar a massa de sal negra aps a evaporao da gua e formar o castelo que ser deixado para secar. Se esse cone desaba, pode ser sinal de grandes desastres. 103 A raiz -tezak (raiz tezak) se aplica a tudo que normalmente caracterizaramos como perigoso, ou que provoca medo: um bicho peonhento, um jaguar, andar de carro em alta velocidade, andar de avio, epidemias etc. Mas o termo tambm se aplica ao que provoca nusea: i ywy tezak, se diz de algo que torna minhas entranhas (estmago) tezak, algo que me fez enjoar. E designa respeito: ti tezak tup, v-se tezak ou vemos como algo tezak a maneira de explicar as diversas restries que devem ser observadas no trato com os afins (ver cap 5).
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ao centro pelo dono do ritual. Assim como o mopat no deve ser visto chamando a alma de um doente (cantando t junku, ver cap 2) sob o risco de seu mopat (esprito auxiliar) enfurecer-se e mat-lo, o fato de que um tocador corre risco de vida caso erre uma execuo musical costuma ser explicado pelo enfurecimento de kat, que mata (leva a ang de) o seu representante ritual. preciso lembrar ainda que mopat e tocador atuam em tais ocasies em fuso com kat: quando o mopat fuma, kat quem v atravs de seus olhos; quando o t itat toca e depois come o peixe e o mingau oferecidos em pagamento, kat quem est danando e se alimentando (cf. Ball 2006 e Barcelos Neto 2005). Apenas no sentido de que so perigosas (para os outros, e no para os cantores, neste caso) as canes kanaw do Jawari parecem ser da mesma natureza que as canes kanuaryt de karytu. Podemos, no entanto, dizer que em ambos os casos elas no so perigosas para seus donos o grupo que canta contra os adversrios, no Jawari, e o dono de karytu, neste ltimo rito assim como as comidas kanuaryt no so perigosas para os velhos. especialmente notvel a associao entre as comidas kanuaryt e a idade do consumidor, a saber, o fato de no serem daninhas para pessoas j formadas. Pois se por vezes esses alimentos so proscritos apenas aos jovens que ainda no ficaram prontos os que ainda no tiveram relaes sexuais em outros momentos disseram-me que qualquer pessoa sem filhos deveria evit-las, ou mesmo que s deveriam ser consumidas pelos realmente velhos. Vi, por exemplo, a comida do pylyukatu de uma reclusa distribuda no centro ser recusada por uma me de quatro filhos, mesmo que estivesse sem peixe em casa para comer. De modo geral, tais alimentos interferem em atividades ligadas vida de um jovem adulto: lutar, parir, andar no mato, acordar cedo para o trabalho. A comida kanuaryt ainda tem outra relao com a idade de quem a come: ela acelera o envelhecimento ou provoca a associao a um velho, como o peixe cascudo. Por ora, acredito que nos seja possvel e suficiente estabelecer apenas o seguinte: dentre as comidas
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consideradas perigosas (por um motivo que no est claro aqui, so comidas sagradas) o perigo tanto maior para os mais jovens pois, pelo fato de no estarem plenamente formados ainda e pelas atividades associadas a sua idade (produo de alimentos, reproduo sexual), so mais sujeitos a riscos que implicam a prpria impossibilidade de seguirem desempenhando suas funes. Ao comer kanuaryt, em suma os jovens tornar-se-iam improdutivos, preguiosos ou estreis, envelhecendo antes do tempo. No mnimo, creio, pode-se dizer que a categoria alimentar kanuaryt expressa uma imagem da juventude104. Ela nos apresenta tambm mais um exemplo de efeito indesejado que pode decorrer na alimentao, mesmo num sistema em que no encontramos, como em outras partes da Amaznia, instrumentos xamnicos destinados a livrar o alimento de sua agncia agressiva, transformadora. Alm do que pode ou no ser comido pelos pais, outra fonte constante de dvidas o tempo em que se deve seguir as limitaes impostas pelo nascimento. J disse para fulana parar
Uma imagem indgena da juventude o que Bastos tambm pretende construir tendo como base, entre outras coisas, os cantos kanuw que visam enfraquecer o adversrio enviando-lhe (memrias de) sexo e saudade. O autor contrasta a situao do recluso, separado da comunidade e, sobretudo, proibido de manter relaes sexuais, com a situao do inimigo atrapalhado pelo pensamento amoroso. O lutador recm sado da recluso encarnaria para os Kamayur, sustenta Bastos, um ideal de pureza evidenciado em sua fora e alegria. Em oposio, a vida adulta entre afins e cruzados seria marcada pelo medo do feitio (medo de estar entre outros, concorrentes invejosos) e a saudade (provocada pelo desejo de estar com outros, amantes). Estou de acordo com o autor quanto s mazelas da convivncia, sobretudo relacionadas vida amorosa e conjugal, na vida adulta, mas no posso concordar com sua viso do recluso e da juventude em geral, quando afirma que apenas o jovem estaria apto a uma perfeita apreenso do real: Desta forma, no planeta KM [kamayur], conhecer efetivamente ofcio somente daqueles que, isolados do mundo, para este direcionam a viso pois no h olhar de sbio atravs do fino buraco - este sim, o vero microscpio testemunhal do princpio. (Bastos 1989, 446). O autor refere-se, imagino, aos buracos da cobertura de palha da casa atravs dos quais os reclusos, enfastiados pela solido, espiam o mundo. Nunca vi, no entanto, um Aweti associar a recluso a um estado de conhecimento supremo; neste momento, a pessoa em construo do recluso obra antes de tudo do conhecimento dos mais velhos, a quem ele obedece ou escuta, como dizem os Aweti. Ademais, como venho enfatizando, o recluso est isolado do contato com a comunidade tambm porque neste momento extremamente intenso seu contato com os donos das ervas medicinais de que faz uso. De qualquer modo, no vejo que o conhecimento entre os Aweti seja entendido como resultado do isolamento, quando muito pelo contrrio. Meu esforo neste captulo mostrar que o conhecimento, assim como tudo que constitui a pessoa, resulta de uma relao benfica estabelecida por ela: o recluso no ficaria forte pelo simples fato de estar isolado, no fosse a aliana que estabelece com os donos das plantas medicinais. H muitos jovens hoje em dia, alis, que s aceitam entrar em recluso sem fazer uso dos emticos e dos remdios de arranhadeira. Eles podem at crescer um pouco e ficar com a pela branca, comentava comigo uma mulher Aweti, mas nunca sero campees de luta, tetjatu.
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de fazer polvilho, isso vai fazer mal ao filho dela, comenta sua prima. Ou: ser que posso pegar sava?, questiona-se uma me, considerando logo em seguida: melhor no, minha filha ainda no aprendeu a falar direito. Como indica esta ltima observao, a conexo dos pais com o beb tanto mais forte quanto menor for a autonomia do filho. Quando uma criana comea a andar, falar e ter conscincia/conhecimento, est finalmente virando gente, adquirindo uma existncia autnoma (ela no morreu) e os pais podem gradualmente relaxar. Para prosseguir com os procedimentos de constituio da pessoa, lembro agora uma histria dos antigos.
3.4Porqueaprenderacaminhardifcilparanossosfilhos
H uma grande ansiedade dos adultos para que as crianas comecem a andar logo, e as mes costumam utilizar mtodos variados para acelerar este processo. Uma criana que demora um pouco a andar logo apelidada de Macatiru, aleijada105. Os Aweti sempre comentam que filhotes de animais andam quase imediatamente aps o nascimento, e creditam o fato de seus filhos demorarem tanto a andar a um episdio mtico, o nascimento do demiurgo Wamutsini. O Morcego (tatia) tinha duas esposas, ambas de nome Ehezu, filhas do grande chefe das rvores Ywawytyp. A mais nova rejeitava o marido constantemente. Quando o povo de Ywawytyp convidado para uma festa intercomunitria na aldeia do Gavio, (muzak), Morcego finge ter dores nos olhos e no segue com suas esposas e sogro; disfarando-se de seu prprio irmo, ele viaja escondido aldeia de Gavio, onde participa da festa como cantor ritual, apresentando-se como
No pude compreender se este o nome de um personagem com tal caracterstica, se uma palavra em outra lngua adotada pelos Aweti, ou uma palavra aweti. Existem diversas crianas apelidadas Macatiru na aldeia.
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um homem lindo. Pensando estar com o cunhado, a esposa mais jovem dana a festa toda com Morcego, namora com ele e termina engravidando, assim como todas as moas da festa engravidam de seus respectivos pares de dana. Morcego retorna ento escondido aldeia do sogro, onde lava a pintura corporal que havia feito para a festa e aguarda o retorno das esposas como se nunca tivesse sado de l. Mais tarde, catando piolhos do marido, no entanto, Ehezu percebe atrs da orelha dele uma mancha de urucum que o homem no conseguira lavar completamente, e assim a moa descobre que estivera namorando com o prprio marido. Morcego, que havia se mostrado como um homem muito bonito, em casa disfarava-se de homem feio. Enfurecida com a trapaa, ela o expulsa de casa eis a origem do morcego-animal: fugindo da mulher que o ameaa com um enorme pau de pilo, ele sai voando pelo telhado. Quando nasce o filho de Ehezu, Ywawytyp convoca todos os convidados que haviam estado na festa de Gavio, para descobrir qual deles era o pai de seu neto. Os pssaros produzem grande quantidade de arcos e flechinhas de criana e dirigem-se aldeia de Ywawytyp, acampando uma noite em seus arredores. Na manh seguinte, enfeitados, apresentam-se no centro. Wamutsini criana est, tambm enfeitado, sentado no colo de sua me. Um a um, os pssaros apresentam seus pequenos arcos, e a cada vez uma criana nascida na aldeia de Ywawytyp depois daquela festa corre at o colo do pai, para tomar sua arma: o filho do Mutum (mytu), o filho do Jacu (takujyt), o filho do Soc (kakaj). Por ltimo apresenta-se Morcego. Wamutsini, reconhecendo seu pai, deseja correr at ele, mas a me o detm, pois tem vergonha de que todos saibam que ela namorou, ao final das contas, com seu prprio marido, quando o objetivo da festa promovida por Gavio era a circulao de amantes. porque Ehezu deteve seu filho que aprender a caminhar tornou-se um fardo para nossos filhos hoje em dia. Ser preciso que Ywawytyp reze (opythizyk) seu neto muitas vezes, no dia seguinte, estimulando-o a andar cada vz um pouco mais longe at
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ganhar confiana, para que Wamutsini finalmente d seus primeiros passos. tentador fazer uma leitura psicolgica desse episdio mtico, e concluir que as crianas de hoje demoram tanto a andar porque suas mes as retm, impedindo que se dirijam ao pai, independncia, s armas de caa etc106. O mito, no entanto, enfatiza que o problema no tem nada a ver com cime materno, mas com a vergonha da me por ter se relacionado dentro de seu prprio grupo local pois, ainda que Morcego venha de outra aldeia, vive junto ao sogro e no contexto ritual assimilado ao grupo dos afins. Engravidar do prprio marido parece to vergonhoso neste caso quanto seria engravidar de um irmo, como se a mulher houvesse falhado em fazer-se circular entre outros homens. Quanto irm mais velha de Ehezu, por engravidar de diversos homens-aves diferentes (vrios progenitores), tem um filho especialmente inteligente; o fato da mais nova ter namorado com um nico homem o motivo da sua vergonha, e da dificuldade que seu filho e toda a humanidade que o sucedeu - enfrenta para aprender a andar. Mesmo assim Wamutsini ser chefe, morekwat, determina Ywawytyp, pois filho de morekwat, o Morcego, e de kuj morekwat, Ehezu. Se primeira vista Morcego se disfara para driblar a rejeio da esposa, num dado momento ficamos sabendo que estava disfarado no de homem bonito, na festa, mas sim de homem feio, em casa - e por isso fora rejeitado. Em muitos mitos encontramos essa figura do homem belo e nobre que se disfara de velho miservel, testando o julgamento e o carter das jovens casadouras. Aqui Ehezu reprovada, pois no reconhece a verdadeira natureza do marido e prefere tra-lo com o suposto cunhado. O problema no entanto, enfatizava o narrador, que a armadilha a fez desejar o homem errado de todos os pontos de vista: por um lado, ela rejeita
Cf. interpretaes de Gregor (1985) sobre a identidade de Gnero mehinaku: a estreita ligao dos meninos com a me obrigaria os homens a um especial esforo de construo e afirmao de sua masculinidade.
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aquele que deveria amar, o seu verdadeiro marido, pois no consegue enxergar sua verdadeira natureza; por outro, rejeita tambm aqueles que deveriam ser co-pais de seu filho, seus pretendentes da aldeia das aves, pois no consegue ter olhos para outros que no seu belo cunhado107. Morcego semelhante a outros tricksters da mitologia xinguana, entre os quais os prprios gmeos Sol e Lua, justamente por sua ambgua posio de morekwat e enganador (cf. Basso 1987), pois, como disse, um morekwat idealmente no mente: depois de fazer tatuagem voc no pode mais mentir (ver cap. 1). Sua jovem esposa, tambm ela caminhando longe do ideal moral alcanado por sua irm mais velha, caracterizada no mito como gente de verdade, moat ytoto, e por isso mais desejada do que outras mulheres pelos homens da aldeia de Gavio. Alm disso, as irms Ehezu so filhas do morekwat Ywawytyp, sendo, portanto, duas kuj morekwat. Ywawytyp , alm disso, um chefe engajado na produo de gente de madeira, nunca obtendo sucesso, contudo - as pessoas que faz tm braos, pernas e rosto, seu corpo adornado com colares de caramujo, joelheira, cinto e pintura, mas o tronco continua sendo de madeira, e alm disso elas no falam. Quem ir realizar seu projeto finalmente o jovem Wamutsini, criador das mulheres de pau mandadas para desposar o jaguar Itsumaret, das quais a mais velha
Essa estrutura se repete na histria de Tanumakalu: sempre designada kuj morekwat e desejada pelos animais que encontra em seu trajeto aldeia do jaguar, ela deixa-se enganar e escolhe como marido, no o chefe das onas Itsumaret, seu noivo predestinado, mas o lobo-guar, homem pobre sem roa nem peixe. Tambm ela, como Ehezu, falha ao ser testada. Ao chegar na aldeia de Itsumaret, Tanumakalu posta-se junto ao porto onde, trepada numa rvore, aguarda que o chefe jaguar venha banhar-se para se apresentar a ele. A notcia de sua chegada corre na aldeia, mas Itsumaret decide esperar para ver se a moa o reconhecer, ou se tomar qualquer outro por esposo. De fato, a jovem v o lobo-guar banhar-se de costas e cr que seja um homem muito bonito, com porte de chefe, de modo que se apresenta ao homem errado. Itsumaret obrigado ento a recorrer a um artifcio similar ao de Morcego. Quando todo o grupo ausenta-se da aldeia (aqui no para um ritual, mas para uma caada coletiva) ele inventa uma desculpa e permanece, pois planeja entrar na casa de Lobo-Guar, irmo de sua me, e roubar-lhe a esposa. porque Tanumakalu foi tomada fora e por meio de artifcios de seu irmo que a me de Itumaret, Uperiru, despreza a nora, fato que por sua vez justifica o final infeliz da moa, assassinada pela sogra. Donde sucede o nascimento forado dos gmeos, a origem da mortalidade medida em que no podem ressucitar a me, o primeiro kwarup, a transformao de flechas em gente...a criao do mundo atual enfim.
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Tanumakalu, a me dos gmeos Sol e Lua. Estes ltimos finalmente iro criar os povos de hoje em dia. Em suma, se o duplo engano de Ehezu e a artimanha de Morcego do origem dificuldade que os homens enfrentam para comear a andar, o esprito enganador e o mau julgamento parecem indissociveis tanto da condio de humano quanto da condio de morekwat. Mais do que isso, a incapacidade de andar imediatamente ao nascer, uma marca do humano em oposio aos animais, aparece como resultado da incapacidade de agir moralmente. Todos os seres tm seus prprios morekwat, que os orientam, como entre os humanos, por serem pessoas de carter nobre, esprito pacificador e terem qualidades de mediador. Entre os peixes, segundo meu professor aweti, o peixe bicuda (tup jyt) e o peixe cachorra (tatii watu) so chefes, enquanto a piranha um peixe guerreiro, brigo. Quanto aos kaloleput no havia muita certeza, meu interlocutor suspeitava que seu chefe fosse o tapir (tapiit). Entre as aves, h o chefe maior, o urubu de duas cabeas, e outros, como o gavio. Quanto a Ywawytyp, ainda que seja morekwat das rvores (yp emorekwat), parcialmente criador da humanidade atual. Antigamente ndio (waraju; neste caso refere-se aos xinguanos) sabia fazer gente, assim como hoje os caraiwa sabem fazer as coisas, comentava o velho que narrava para mim esta histria. A gente feita por Ywawytyp, Wamutsini e finalmente por Kwat, foi feita parte por parte, assim como as crianas de hoje em dia tm que ser feitas. Falar, andar, ter um corpo belo e adornado, nada disso acontece sem a interveno e o esforo dos pais. No ser exagerado lembrar, contudo, que quando os Aweti se definem, em oposio aos animais, como herdeiros da dificuldade para aprender a caminhar, mais uma vez isso no deve ser entendido sob uma tica substancialista. Se os Aweti esto preocupados com o fato de seus filhos demorarem a andar, e se relacionam isto s confuses de personagens que situam na origem de seu modo de existncia, devemos lembrar que animais tambm so (porque vivem como) gente.
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Suspeito que no existem muitos discursos sobre a infeliz condio dessas outras gentes, provavelmente to enganadoras e sujeitas ao engano quanto a gente, simplesmente porque o assunto interessa menos. Que ns somos diferentes deles, isso no h dvida nossos filhos demoram terrivelmente para comear a andar e os deles no, por exemplo. Mas que eles enfrentam ou podem enfrentar os mesmos tipos de problemas que a gente, esse me parece ser um caminho sempre aberto no pensamento aweti. Feita a ressalva, passo agora aos procedimentos destinados a corrigir a situao imposta por Ehezu e Morcego.
3.5Montangitatza,osdonosdosremdios
Tatak ayt ekwap, mytu ayt ekwap, tawat ayt ekwap - andador de filhote de corujinha, andador de filhote de mutum, andador de filhote de jaguar so os nomes de algumas plantas que se pode usar para ajudar crianas a aprenderem a caminhar108. Os Aweti sempre comentam que os filhos de muitos animais comeam a andar logo ao nascer, e por isso se servem de substncias associadas a eles para acelerar o processo de seus prprios filhos. No se trata aqui, como no caso da comida, de desenvolver determinadas qualidades atravs da relao com partes do corpo do animal carne, penas, pele, dentes mas do uso de substncias das quais eles so donos, itat. H muitos remdios e procedimentos voltados para o mesmo fim. Usa-se, por exemplo, as folhas do algodo amassadas e amarradas numa bola, colocada sob a brasa por alguns minutos. Morna, a bolota lanada pela me contra corpo de seu filho pequeno, nas costas e nos joelhos,
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O verbo geralmente traduzido como aprender, otemoekatu (o- prefixo pronominal de terceira pessoa; -tereflexivador; -moe, fazer, produzir; katu, bom, bonito) literalmente algo como ele se faz bom, contm a idia de que a pessoa resultado de uma produo, um trabalho de si sobre si mesma. O termo para ensinar significa literalmente fazer [algum] bem: moekatu.
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pois isso o far ficar leve, e o ajudar a andar. Outro procedimento recomendado para deixar a criana sem peso pintar o seu corpo joelhos, costas e ps - com o carvo de uma madeira muito leve que cresce beira da gua. Um matinho que cresce especialmente rpido usado, da mesma forma que as folhas de algodo, para acelerar o crescimento da criana. Quanto s espcies que so propriedade dos animais a que aludi acima, nunca as vi em uso, mas suspeito que sejam aplicadas dessa mesma forma aquecidas e lanadas contra o corpo do beb. Simultaneamente, a me sussurra algumas palavras: fu, fu - ela sopra - voc vai andar rpido, voc vai andar rpido. Esse tipo de reza, pythizyku (sopro) semi-codificado, e pode ser conhecido ou improvisado por qualquer pessoa. Outras vezes, a me evoca o nome de alguns animais como o ja, o mutum ou a mariposa, em frmulas verbais precisas (kewere) que tm esses animais por donos, pois foram ensinadas por eles aos humanos. Se filhotes de onas, corujas e mutuns andam com facilidade - assim como os filhos de branco, alis, notavam sempre os Aweti - porque os pais desses filhotes se valem de procedimentos potentes. A imaginao subjacente ao uso de tais substncias, entendo, que, como tudo que existe, esses animais so gente - ainda que gente diferente da gente do Xingu -, pois vivem entre si como a gente: em aldeias, com seus chefes, fazendo rituais, mantendo os jovens em recluso pubertria etc. Eles so donos, itat, de determinadas plantas na condio de conhecedores e usurios de tais espcies, noo que discuto abaixo. Por ora importa dizer que as espcies que tm dono so extremamente perigosas, e seu consumo sem a observncia de certas regras uma causa comum de adoecimento e morte, sobretudo de jovens reclusos. Em certos casos, convm simplesmente evitar o uso de uma espcie desse tipo. Certa vez cheguei em casa do banho trazendo na mo uma fruta amarela cujo cheiro me lembrava a pitanga. Ao perguntar se era comestvel, avisaram-me que com-la ou no era deciso minha, mas que ningum ali
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arriscaria pois aquela fruta tinha dono. Neste caso o dono - uma figura no humana no identificada, kat seria um sujeito zeloso, no duplo sentido de cuidador e ciumento. Assim tambm so as plantas mais usadas ao longo da recluso pubertria, elas tm dono, mas seu uso no s permitido, como altamente recomendado. H basicamente duas maneiras de us-las: em infuso, so ingeridas em enorme quantidade at provocar o vmito (teentap, vomitrio109); ou, espremidas em gua fria, so esfregadas sobre a pele escarificada (tatitap apwan, aquilo que vai sobre a arranhadeira). sempre preciso, contudo, tomar algumas precaues relativas aos donos de tais espcies, que no suportam o cheiro de sexo, do sangue menstrual e comidas doces. O peixe assado tambm proibido, assim como o sal. A comida do recluso, usurio de tais infuses, deve resumir-se a um insosso cozido de peixe sem tempero, e mesmo a gordura deve ser retirada da gua durante o cozimento. Quanto ao sexo e ao sangue menstrual est claro que o problema o odor pylyu kat detesta esse cheiro, e isso vale tambm para os espritos auxiliares dos xams. O problema do peixe assado parece ser este tambm, enquanto o odor do peixe cozido atenuado quanto maior o processamento, como disse, menor a potncia de um alimento. O acar (mesmo das frutas) e o sal tambm incomodam ao paladar de kat. A menina entra em recluso na menarca. Ao ficar menstruada pela primeira vez, deve passar um dia inteiro deitada, segurando um fuso no umbigo pois este de outro modo pula para fora (um processo inverso ao nascimento), vomitando com o auxlio de emticos e sem comer nada. Seu corpo est neste momento hpersensvel a todos os contatos: se coar sua pele com a mo ficar manchada para sempre, se coar a cabea ficar com o cabelo arrepiado preciso
Os teentap usados na recluso e outros so infuses ingeridas em enorme quantidade, at induzir o vmito. O fato de que algumas propriedades so absorvidas atravs de tais substncias (como o formato flico de determinada flor usada para fazer um ch que deve ser tomado pela grvida que deseja ter filhos homens) deixa claro que tais procedimentos no servem somente como limpeza, ainda que muitas vezes este seja o objetivo.
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portanto usar um pedacinho de pau em lugar dos dedos. No dia seguinte ela pode recomear a alimentar-se, mas dever passar um ms sem consumir peixe, passando em seguida por uma cerimnia de pylyukatu, normalmente presidida por seu pai. Seguem-se alguns meses de recluso, idealmente um ano, em que a menina no pode sair de casa, a no ser ao final da tarde, coberta e acompanhada por outra mulher para fazer suas necessidades, e come apenas peixe cozido sem sal nem pimenta. Nesse meio tempo, estar vomitando, sendo arranhada do meio das costas s ndegas, e nas pernas, quase diariamente, usando constantemente joelheiras extremamente apertadas, para engordar e ganhar corpo. Sua pele torna-se branca, pela falta de sol, e as marcas da arranhadeira (kaakatuwo, vista) so apreciadas. A moa deixa a recluso, gorda e com a batata da perna inchada pelo uso da joelheira, danando ao lado de um rapaz110 num dia qualquer de festa, idealmente atrs das flautas tupi (isto , danando com os flautistas) num kwarup. Apenas neste momento ela apresenta-se comunidade, mostrando que seguiu risca as regras da recluso e os conselhos de seus pais. Sua me canta, desfazendo da beleza da filha, antecipando crticas que poderia receber. Duas irms aweti me contavam, por exemplo, do canto de sua tia no dia em que a prima havia sado da recluso, numa festa das flautas takwara: ela muito magrinha e baixa, ela no grande como eu!. Idealmente, mas no muito comumente, a moa casa-se logo depois, seja porque j estava prometida a algum primo, seja porque um casamento logo arranjado. Quanto aos meninos, entram em recluso em momento indeterminado, tambm idealmente por cerca de um ano111. Depois de trs dias vomitando podem recomear a comer,
Na maioria das danas rituais xinguanas, cada mulher dana ao lado/atrs de um homem (na ywazy), apoiando a mo esquerda em seu ombro direito. 111 A furao de orelhas dos meninos uma etapa fundamental de seu processo de fabricao corporal. Ela pode acontecer pouco aps o nascimento, normalmente executava por um av, ou numa cerimnia coletiva (japipyj), quando o menino estiver crescido. Ocorrendo desta ltima forma, furao sucede-se uma recluso, mas no
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mas alimentam-se apenas de peixe cozido, sem sal, pimenta ou gordura. Sua me no pode sair de casa, cuidando para que nenhuma mulher menstruada ou pessoa que acabou de fazer sexo entre, pois o cheiro incomodaria ao esprito dono dos remdios (vomitrios e infuses de passar sobre o arranhado), que faria mal ao recluso. Nesse perodo o rapaz estar arranhando-se periodicamente nas costas e pernas, alm de manter braadeiras bem apertadas, com o objetivo de engordar e modelar o corpo. Um ms depois ele vomita novamente e pode voltar a comer normalmente, porque j no usar mais os remdios perigosos ao vomitar est expelindo aquilo que foi introjetado pela pele, e que poderia lhe fazer mal caso entrasse em contato com cheiro de sangue ou sexo a partir de ento. A recluso, contudo, continua. Seu fim ser marcado tambm num dia de festa, quando o rapaz sair para lutar, de modo que toda a comunidade pode apreciar o resultado de seu esforo, e do empenho de seus pais (para anlises mais detidas sobre recluso pubertria ver tambm Viveiros de Castro 1977, Gregor 1985, Stang 2009). Enquanto para as meninas mais difcil fugir recluso, associada menarca, diz-se que os meninos de hoje no aceitam mais ficar reclusos, pois tm medo. Os jovens reclusos de ambos os sexos so ameaados por dois tipos de perigo. Por um lado, eles so alvos preferenciais de feiticeiros que lhes atacam por inveja, justamente, do belo corpo que esto constituindo. Por outro lado, as espcies teraputicas de que fazem uso lhes impe restries rgidas difceis de cumprir por tempo prolongado, de modo que muitas vezes tornam-se alvo da vingana dos donos dos remdios. Yp ap itat wekozoko okywan ypywo, o dono da raz fica junto ao recluso, diz-se, simultaneamente contribuindo para a constituio de seu corpo e ameaando-o com suas exigncias. Se uma menina passa mal em seu gabinete de recluso, talvez seja porque recebeu um
necessarimante a recluso pubertria masculina est associada furao de orelhas. No proximo captulo volto a comentar brevemente a furao de orelhas ao descrever o sistema onomstico e a relao com ancestrais. Concentro neste momento o foco na recluso pubertria, primeiro por ter mais informaes sobre este procedimento, segundo porque meu interesse imediato apresentar a relao com os donos de espcies vegetais usadas a.
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namorado na noite anterior; pelo mesmo motivo, talvez, ela no chegue a adoecer, mas simplesmente no consiga engordar e saia da recluso assim como entrou, sem formar
devidamente um belo corpo. Talvez o recluso passe mal porque no resistiu a comer algumas bananas, o dono do vomitrio ficou bravo e lhe fez mal. Isolado do convvio da comunidade humana, o recluso entretm, na verdade, um intenso relacionamento com seres no humanos cuja presena fundamental para a constituio plena da sua pessoa. Mas no apenas o recluso. Qualquer um que usa remdios com dono encontra-se na mesma condio, apenas intensificada no perodo de recluso. O esforo dos pais fundamental na medida em que provm as condies para o relacionamento do filho com os elementos exgenos necessrios para sua constituio. Pais de recluso devem abster-se de sexo para no contaminar o ambiente, sobretudo no primeiro ms da recluso, mas tambm devem faz-lo antes de ir buscar no mato uma planta teraputica que tenha dono, pois o cheiro de sexo afetaria a eficcia do remdio. O uso de espcies para fazer a criana andar, em contraste, no envolve nenhum tipo de restrio alimentar ou sexual. Isso no significa que tais remdios no tenham dono. O remdio da ona (tawat itatytu, que tem a ona como dono), por exemplo, engendra um perigo grave: a criana em que foi aplicado passa a atrair o jaguar e se passar perto de um ser mordida. Mas uma planta pode receber apenas o nome do animal que a usa (mutum, por exemplo), sem que os mutuns tenham qualquer tipo de controle sobre ela isto , sem que seja preciso seguir os tabus geralmente ligados s espcies com dono. Tudo se passa, pois, como se algumas espcies teraputicas fossem do conhecimento das onas, mutuns etc. e apropriadas pelos humanos em prol da criao, moakatu, de seus prprios filhos (lembremos que os animais tambm fazem de seus filhos gente para si mesmos). H ainda diversas outras espcies sem dono (itat eymytu), que no so referidas a usurios-conhecedores quaisquer, como o algodo
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que faz a criana ficar leve absorvendo uma qualidade daquilo com que entrou em contato, num processo similar ao que acontece com a comida. Parece-me, contudo, que estamos diante de um gradiente mais que de uma oposio entre espcies com e sem dono. Quando se usa um remdio com dono, este passa a conviver com o usurio, aproxima-se, por isso preciso evitar as coisas que lhe aborrecem. A aproximao da ona j perigosa em si mesmo. Quanto aos remdios sem dono, eles aproximam a pessoa das prprias qualidades da espcie medicinal. Em todo caso a aproximao implica uma forma de transformao parcial em outro: preciso abandonar a dieta humana comum e adotar uma dieta aprovada por kat para fazer uso dos remdios que nos foram ensinados por kat. O risco tal que, conta um mito, certa vez quando seus maridos saram para uma pescaria e nunca mais voltaram, as mulheres que haviam ficado na aldeia comearam a tomar emticos sem parar, at transformarem-se em kat: foi assim que me contaram sobre a origem das Jamurikum, as amazonas xinguanas que inventaram uma sociedade sem homens. Alm disso, em alguma medida todo remdio tem dono, no sentido de que do conhecimento de algum. H dezenas de espcies vegetais que podem ser usadas para os mesmos fins engordar, fazer crescer a batata da perna (objeto de desejo de todas as mulheres), curar determinadas dores, curar feitio flechado, conter convulses, controlar a febre espcies cujo domnio altamente controlado. Katatytu uj, isso coisa (kat) da qual se tem cime (-atytu lit. que di), explicava-me uma mulher aweti, mostrando-me no mato diversas dessas espcies. Ela e sua filha andavam nessa poca seduzindo seu irmo para que lhes mostrasse uma erva muito boa de fazer engordar, enquanto ele, apesar de ter concordado em contar-lhes mediante pagamento, acabava arrumando a toda hora uma desculpa para no faz-lo. Outro irmo dessa mulher, um homem que vive entre os Yawalapit, notrio conhecedor de remdios, de modo
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que ela, ao ter adoecido, considerava se deveria visit-lo para ser medicada. Pois ningum revela simplesmente, e de graa, coisa to valiosa, partilhada somente, talvez, entre pais e filhos. O prprio convvio humano deve ser momentaneamente abandonado. Qualquer remdio que se usa implica uma relao de apropriao, a aquisio de algo de fora seja um conhecimento proveniente de um irmo distante, seja uma espcie protegida por um cuidador no humano com gostos peculiares. Conseqentemente, um corpo belo, que no pode se constituir sem o uso de tais substncias (como vimos, at para fazer a criana andar elas sero necessrias) sinal de que as relaes certas foram estabelecidas.
3.5.1Notasobreanoodedono
A relao de itat, dono, mestre, muitas vezes parece marcar um vnculo de cuidado, responsabilidade e identificao da pessoa para com aquilo de que dona. Donos de kat so os patrocinadores dos rituais aqueles que devem alimentar kat para manter com eles relaes benficas. Tambm os donos do defunto (ne put itat), por exemplo, so os responsveis pelo pagamento dos servios funerrios. Donos do ex-cabelo (ap ut itat) so as pessoas que devem no s pagar pelo contra-feitio, mas tambm jejuar para que este tenha efeito; o dono de um caminho aquele que o abriu na mata, ou que cuida para que se mantenha limpo. O conhecedor de ervas curativas e o mdico so ambos chamados donos do remdio, montang itat. O montang itat indgena, contudo, apenas algum que conhece mais ervas medicinais que os demais; no se trata de uma funo social destacada, como o mdico ou o mopat (xam). De uma pessoa fofoqueira, para mais um exemplo, diz-se que dona da fofoca, tyj popyi itat, o que no significa que no haja outros fofoqueiros por perto. Em suma, itat
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qualifica uma relao, mas no distingue papis sociais. Em uma acepo mais genrica, portanto, a noo de itat no precisa ser associada a relaes de cuidado, domnio ou posse, mas simplesmente marcao de intensidade na relao entre um sujeito e um objeto, em comparao a outros sujeitos. Os Aweti so os donos do sal vegetal (tukyt itat) apenas na medida em que mantm com este objeto uma relao mais intensa que seus vizinhos, alm de se valerem do sal como dispositivo identitrio reconhecidamente, o sal o bem que os Aweti tm para trocar com outros xinguanos. Como notou Viveiros de Castro acerca do termo wokoti, correlato yawalapit do aweti itat, um dono basicamente o mediador entre um determinado recurso e as demais pessoas. Mas a relao entre os Aweti e o sal vegetal parece ser fortemente contingencial, dado que estes no alegam para ela nem exclusividade, nem especial antiguidade. Os Aweti so donos do sal porque vivem prximos s lagoas do sal e nunca deixaram de produzi-lo, e o fazem porque tm disposio para tanto. Os Kamayur tambm poderiam produzir sal, ou os Mehinaku, mas as lagoas de aguap ficam muito distantes de suas aldeias. provvel tambm que a tendncia criao de um sistema de trocas baseado em especializao leve os demais grupos xinguanos a no investirem na produo do sal. A produo de sal envolve uma relao dos Aweti com entes no humanos a quem chamam genericamente de donos do sal (tukyt itat tambm), entre os quais esto uma espcie de ave aqutica, o peixe eltrico e pequenos insetos que vivem entre as folhas de tukyt. Tambm aqui a relao entre os donos e o sal contingente, aqueles no so a contrapartida espiritual deste, no so seus criadores, nem seus representantes em nenhum nvel, e os Aweti no precisam pedir ou trocar com eles as folhas colhidas. Apenas, por viverem ali, essas espcies so ciumentas das folhas de aguap: wok wej tatat, eles sovinam sua casa. Ao trocarem sal vegetal com outros xinguanos, os Aweti evidenciam o xito obtido na relao com tais entidades ( preciso agentar
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alguns choques do peixe eltrico e muitas mordidas de inseto para puxar o aguap), alm de darem conta do xito de suas relaes com seus antepassados, de quem aprenderam a tcnica de produo do sal. Nesse sentido, podemos falar do dono como sujeito cuja potncia tornada aparente pela relao que estabelece com outros sujeitos atravs de um objeto, na esteira das anlises de Strathern (1988) a respeito da troca na Melansia como um meio de evidenciao de capacidades internas. Mais do que detentor de uma potncia extraordinria, a prpria condio de sujeito (ou gente) seria um efeito da posio de dono: insetos aparecem como sujeitos, para os Aweti, apenas na condio de donos ciumentos de suas casas, agentes de atitudes ciumentas; os Aweti por sua vez so sujeitos para seus parceiros de troca xinguanos na condio de donos do sal. Ou seja, o domnio ou maestria constitui um sujeito atravs do olhar do outro. Notando que entre muitos povos amaznicos a maestria pensada sob a forma da filiao adotiva, Fausto (2008) sugere que esta relao seria modelar das relaes de autoridade na Amaznia. Por combinar uma face benfica de cuidado, tipo filiao, manifesta nas relaes entre dono e filho/xerimbabo, e uma face predadora manifesta nas relaes para fora, a maestria comportaria uma duplicidade que faz dela uma boa imagem para a autoridade. Como uma relao de identidade assimtrica (a assimetria derivando da diferena geracional), a paternidade/maestria seria mais adequada para descrever a chefia indgena do que a relao de alteridade assimtrica entre sogros e genros, demasiado carregada de contedo predatrio, e do que as relaes de alteridade simtrica entre cunhados, modelar entre os povos amaznicos no da autoridade, mas da inimizade. A relao de chefia em diversas partes da Amaznia, nota o autor, seria espelhada na relao de dono, e esta espelhada na relao de paternidade adotiva (pai adotivo na medida em que a relao instituda pelo cuidado, e no pela transmisso de substncia, explica Fausto). Uma dificuldade da aplicao deste modelo ao caso xinguano, a meu ver, que ali a
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maestria tem um rendimento menor no mbito da relao entre o mestre e aquilo que domina ou cuida do que no seus efeitos para as relaes entre sujeitos que se afirmam como tais na condio de mestres - um deslocamento de foco da identidade assimtrica para a alteridade simtrica, nos termos de Fausto. Muitas vezes quando afirmam que uma dada espcie vegetal tem dono, os Aweti parecem referir-se ao fato de que essa espcie conhecida e usada por um ente no humano - muitas vezes no especificado - para sua prpria fabricao corporal, ou para usos medicinais outros. Aquilo de que dono aparece como um objeto de conhecimento. Este seria o caso tambm da relao entre o inseto e as folhas de aguap onde vive. Seria difcil detectar qualquer tipo de assimetria ou englobamento na relao entre folhas e inseto; as folhas so para ele objetos dos quais no quer se desfazer, e no pessoas ou relaes que ele subsume. A relao importante aqui a do inseto como pessoa, atravs das folhas, com os Aweti uma relao de alteridade simtrica, portanto, entre doador (involuntrio) e receptor (predador). O objeto da maestria (uma planta, por exemplo) no especificado com um sujeito, e a natureza da relao do mestre com seu domnio no enfatizada. O que importa o fato de que o dono aparece como um sujeito (logo, potencialmente ativo sobre os Aweti, perigoso) pelo fato de que tm algo de que os Aweti se apropriam. Ou seja, o fato do objeto ter dono significa que ele evoca um sujeito, entenda-se, projeta um contra-sujeito diante daqueles que no so os donos do objeto - e um contra-sujeito perigoso, vale dizer, um afim potencial. Fausto enfoca a relao entre o dono e aquilo de que dono algo que aparece, nos casos estudados, sempre na condio de filho adotivo ou xerimbabo. Apenas chamo ateno para o fato de que os Aweti em muitos casos parecem prestar menos ateno a esse aspecto da maestria e mais ao fato de que ser dono de algo a condio para ser sujeito num mundo povoado de outros donos. Idealmente, um chefe de aldeia xinguano, a pessoa ou uma das pessoas reconhecidas
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como representantes da coletividade, um tam itat, dono da aldeia, posio em geral reconhecida quele que primeiro limpou o terreno ocupado pelo grupo. O chefe identificado iniciativa de reunir uma coletividade antes inexistente caso comum a diversos grupos amaznicos e nesse sentido o grupo se objetifica na sua figura, frente a outras coletividades similares. Pois o chefe s efetivamente representa (engloba, subsume) o grupo para fora, em relaes simtricas com outros chefes xinguanos. Dentro, ele pode ou no ser um dono de aldeia. preciso ainda dizer que os Aweti no enfatizam a associao do chefe condio de itat. Nisso talvez se distingam de outros grupos xinguanos nos quais a depopulao tenha sido menos avassaladora sobre a transmisso dos conhecimentos que so objeto de domnio ritual lembremos que a principal atribuio de um tam itat o discurso cerimonial, uma fala altamente codificada que precisa ser ensinada por um professor a um aprendiz (cf. Franchetto, 1993). Basso (1969) descreve o acmulo de posies de maestria (domnio dos espaos pblico, domnio de conhecimentos rituais, domnio de rituais) como um aspecto determinante para a conquista da posio de chefe representativo entre os Kalapalo. Ainda aqui, o que ressalta a possibilidade de um sujeito mostrar-se valoroso ou ser magnificado (cf. Sztutman 2005) a partir de objetos de que dispe na relao com outros sujeitos em posio simtrica, os chefes concorrentes. Basicamente, um dono de ritual algum que est na condio de oferecer mais, e com isso afirmar-se como mais potente (mais sujeito) que outros. As descries de Basso sobre as disputas pelo poder entre os Kalapalo deixam bem claro que a chefia xinguana um caso de identidade assimtrica entre chefe e aldeos atravessada pela alteridade simtrica entre sujeitos, a populao de outros donos de que constituda a aldeia. A duplicidade da maestria que, na argumentao de Fausto, faria dela uma boa imagem da autoridade cuidado paternal dentro, predao fora - ainda complicada pelo fato de que os chefes so objetos de contnua
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desconfiana dentro de seus grupos locais, enquanto todo o sentido da chefia representativa a assero do pacifismo fora. Ademais, se o chefe idealmente aconselha os aldeos como um pai faz com seus filhos, ao mesmo tempo filho dos aldeos, na medida em que feito (moakatu) por eles. Note-se ainda que o chefe no pensado como um pai real, mas um pai adotivo, isto um capturador, tanto quanto o dono de uma ave de estimao pai para seu xerimbabo, um ex-inimigo, mas sempre inimigo em potencial. Em suma, o chefe tanto um capturador quando um capturado, um inimigo familiarizado ele mesmo. Veja-se por fim a relao entre donos de rituais e kat o caso mais significativo de maestria xinguana em que inegavelmente h nfase sobre a relao entre dois sujeitos, um humano e um no humano. Os Aweti dizem que os kat so como filhos de seus donos. Uma vez alimentados, tornar-se-iam mesmo protetores dos humanos, segundo os Wauja (Barcelos Neto, 2009). No alimentados, contudo, voltam a ser perigosos, ainda que o perigo no derive de uma intencionalidade maldosa. Ora, filhos humanos tambm exigem cuidados e, na falta destes, tambm podem se tornar inimigos no futuro, a sim, mal intencionados. Lembro de um pai aweti certa vez contando-me ter sido roubado pelo prprio filho, que se apropriara de um dinheiro depositado para o pai em sua conta bancria. Vrias pessoas comentavam, por outro lado, que o filho no suportava o pai pois este fora extremamente violento com a famlia no passado. Filhos podem no ser gente em dois sentidos: podem morrer se no forem cuidados, e podem agir como inimigos se no forem cuidados tambm. Donde a filiao real parece ser tambm uma espcie de adoo, oferecendo os riscos que toda captura engendra. sobre este tema, me parece, que gira a feitiaria.
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3.6Adornos,sonhoserezas:outrasassociaes
Desde o nascimento, a criana submetida a procedimentos que visam moldar seu corpo e sua personalidade. Espcies vegetais, usadas em banhos de rcem-nascidos, so destinadas a fazer a criana parar de chorar. Com cerca de um ano ou menos meninas ganham cintos de palha (ypatsam; o termo alternativo tsosowit refere-se corda de palha de buriti de que feito), joelheiras de algodo, colares de caramujo: os cintos modelam suas ndegas, as joelheiras suas batatas da perna. O menino igualmente adornado com joelheiras, tornozeleiras, cintos e colares para modelar seu corpo. No se tratam de simples objetos decorativos, mas de instrumentos teraputicos. Estes procedimentos do evidncia das associaes positivas e negativas a que uma pessoa submetida, s vezes contra a sua pessoa, desde o ato da concepo (quando j podem ser feitas intervenes para modelar o sexo da criana, por exemplo, como se viu). O corpo dos bebs deve ser sempre pintado, pois a pintura os faz crescer. H trs substncias usadas regularmente por qualquer xinguano, mas especialmente nas crianas com este objetivo (-mowap112, fazer crescer): o genipapo (tentypap), o urucum (junkwangyt) e o tipatyk, uma resina perfumada aplicada no corpo das crianas em pinturas decorativas, mas usada tambm como remdio para alguns males, como diarria. Todas as trs substncias tm dono; caso a pintura de genipapo fique mal feita, por exemplo, o dono se vinga e faz adoecer a pessoa que foi mal pintada leva sua ang consigo. O uso do tipatyk nas pinturas corporais infantis, por exemplo, j me foi explicado de duas maneiras distintas: pelo fato do tipatyk ter um dono que faz a criana crescer; e porque o tipatyk cheiroso, ityjk, e protege a criana dos kat que dela se aproximam. comum que a resina seja usada, misturada ao urucum, para se fazer um desenho
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de awaz na barriga da criana. Awaz um kat bufo, com cara de gente, dentes pontiagudos e orelhas muito compridas, conhecido por gostar de crianas. Quando perguntei o porqu da reproduo de sua imagem numa pintura corporal, explicaram-me: kaminuaza epuz ytoto, awaza, awaz um verdadeiro xerimbabo para as crianas. Eis que um desenho corporal realiza tambm aquilo para que grande parte da mquina ritual xinguana est voltada: a captura de um kat que, de potencial agressor, torna-se xerimbabo, uma fonte de potncia que permite criana crescer saudvel e forte. O mesmo parece ser verdadeiro para as pinturas dorsais masculinas, ape tan, desenho das costas, nas quais se emprega a seiva da copaba (matsapezan ytyk) como base para o urucum em composies de imagem de jibia, mj ting watu aang ou imagem de jaguar, tawat aang. A pintura de ona com seiva de jatob (mti ytyk), um material perfumado como a resina typatyk, usada tambm na iniciao xamnica como preparao do corpo do aprendiz de rezas curativas kewere (ver abaixo). A combinao de tais imagens e materiais teria mais, portanto, do que uma funo decorativa. Lembremos ainda que a palavra imagem, ang, designa em determinados contextos a agncia de um determinado ser. Ao que parece, certos materiais os perfumados so melhores condutores para a associao entre uma imagem-potncia-ang alheia e o corpo sobre o qual esta inscrita. Os caramujos verdadeiros, mioa, tem como dono a sucuri, que atemoriza quem os cata no campo para confeccionar colares113. Assim, aparentemente, ter um dono apenas negativo
Os Aweti no costumam coletar esses caramujos, que dizem serem abundantes nas terras ocupadas pelos povos karib, de modo que nunca pude observar se o procedimento envolve tabus de qualquer tipo, cantos rituais etc., o que seria de se esperar. Comparar, por exemplo, com o pagamento feito pelos Mamaind, grupo Nambiquara de Rondnia, aos donos espirituais das conchas a partir das quais produzem brincos (Miller, 2008). Miller demonstra que os adornos Nambiquara so veculos de uma potncia estrangeira - proveniente dos mortos que deve ser incorporada via xamanismo para constituir a pessoa como parte de um grupo de parentes ou congneres. A no ser pelo fato de que o papel dos mortos aqui ocupado por outros tipos de alteridade, diria que os Aweti entretm idias
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aquilo que tem dono perigoso. No entanto, esse fator certamente determinante do valor mais alto conferido aos colares de mioa hoje bastante raros - em relao aos de caramujo tatytap (o valor dado pelo perigo envolvido na produo, ver cap. 1). Note-se porm que os caramujos tatytap, por sua vez, tambm tm dono: os Xavante com quem os xinguanos os trocam por colares de mianga nas casas de sade, ou os caraiwa que os vendem aos sacos nas lojas em Braslia. No primeiro captulo j relatei a importncia dos ornamentos, dentre os quais os colares de caramujo so os mais valorizados, para a constituio de uma pessoa plenamente xinguana, moat. Agora vemos que os xinguanos dependem de kat bem como de outros outros, sejam caraiwa ou Xavante - no apenas para mostrarem-se xinguanos, no ritual, mas tambm para constiturem corpos de gente, moat, diariamente. Mas o que constitui doando potncia pode tambm ser daninho, como se nota pela reao de uma me irritada porque sua filha pr-pbere se recusava a nos ajudar a descascar mandioca: vou tirar seu vestido, pode vestir seu cinto, voc vai ficar sem roupa agora!. Um corpo de xinguana mais que um corpo saudvel e belo, tambm um corpo apto a desempenhar as atividades que fazem com que uma mulher xinguana no seja outra coisa, uma mulher branca incapaz de descascar mandioca, por exemplo. Entendo que ao dizer - caraiwa epitywo wapwoko imenbyza, caraiwazan azojwageju, meus filhos esto crescendo em roupas de branco, ns estamos nos transformando em brancos. Sonhos so outro meio de constituio da pessoa atravs da agncia alheia, sobretudo em perodos de recluso, seja pubertria, no luto, na iniciao xamnica ou aps o nascimento de um filho. Um rapaz recluso deseja sonhar que est empurrando uma pedra, por exemplo, pois com isso se tornar um campeo de luta (o sonho reproduz um episdio do mito do primeiro kwarup,
bastantes similares sobre os processos de constituio da pessoa como apreenso de coisas, qualidades, nomes (ver abaixo).
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em que um jovem lutador logra afastar uma grande pedra que barra a passagem dos peixes, convidados da festa promovida por Kwat e Taty em homenagem sua me). Os xams em perodo de iniciao e os contra-feiticeiros tambm devem estar especialmente atentos a seus sonhos. Etejtu jokwawap, saiba o que sonhou avisa o xam iniciador ao iniciante em sua primeira noite de sono durante o processo. desejvel sonhar com uma enchente (y atu114). Se o novio se v beira de um rio cuja gua vai subindo at a altura de suas canelas, significa que vai engordar durante o processo de iniciao. Quanto ao contra-feiticeiro, deve sonhar com um jatob, pois isso fortalecer seu brao, tornando mais eficaz o contra-feitio. A viso do jatob promove a uma identificao com sua fora, uma apreenso de potncia, enquanto no caso do xam a gua que some parece ser uma imagem de seu prprio corpo, crescendo. Voltarei a estes dois casos adiante. Mas vimos que um sonho, como uma atividade da pessoa sob a forma de ang, sempre pode ter efeitos sobre o sonhador. Um sonho uma relao que a pessoa estabelece num outro estado, da a viso alterada que tem das coisas (ver um parente em sonho encontrar um parente; ver um jaguar ser enfeitiado). Certa vez uma amiga comentava comigo sobre como era guloso o filho de sua cunhada (HZ). Contou-me ento que havia perguntado isso prpria me do menino, a qual explicou ter sonhado, durante a gravidez, com um filho de cachorro o que teve conseqncias sobre o feto que estava gerando. Se a mulher tem problemas para engravidar, pode valer-se de algumas ervas, geralmente conhecidas apenas por algum especialista (montang itat, qualquer um que tenha se empenhado em saber sobre ervas) a quem ela ir pagar pela ajuda.
A cheia das guas uma imagem poderosa no pensamento aweti, mobilizada metaforicamente em algumas circunstncias, ora como imagem positiva, ora como imagem negativa. Alm de anunciar a formao corporal bem sucedida do xam iniciante, a enchente tambm remete incontinncia urinria das crianas. Para ajudar sua filha pequena a deixar de urinar na rede ou no seu colo, por exemplo, uma me aweti repetia, ao mesmo tempo em que esfregava farelo de polvilho que ressecara sobre o tacho de beiju no ventre da criana: fu...fu... (soprando) y atu opap, y atu opap, y atu opap, acabou a cheia, acabou a cheia, acabou a cheia.
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Depois de ingerida a infuso, a paciente dever prestar ateno a seus sonhos para saber se o tratamento teve sucesso e conhecer o sexo da criana em gestao: se sonhar que recebe uma ave de estimao, ela est grvida; se for uma arara, ter uma menina, pois o rabo da ave o rabo de cavalo da criana (kuj kyt ap twajang, a imagem/reflexo do cabelo da menina [que ir nascer]); se sonhar que lhe do uma flecha ter um menino. Neste ltimo caso o sonho parece mais um aviso que um determinante do sexo. Alm de prestar ateno a seus sonhos, um recluso que deseja se tornar campeo de luta (tetjtu, forte) deve matar uma sucuri (tuwaj watu) e esfregar no corpo a gordura da cobra. Um velho explicou-me que a sucuri na verdade no morre - assim como os brancos no morrem quando fazem operao, ele notava - pois retorna sua casa onde ressucitada pela reza de sua esposa. A sucuri seria assim uma fonte poderosa, pelo porte gigante, da imortalidade comum a todas as cobras. Ser esta tambm uma qualidade que o campeo quer tomar para si? Tambm pelo tamanho excepcional, a sucuri reconhecida como morekwat das cobras, assim como a jibia. O campeo apropria-se, introjetando em seu corpo a gordura ou reproduzindo sobre sua pele a imagem dessas grandes cobras, da superioridade ou condio de chefia dos animais frente a seus iguais, as cobras comuns. A histria de um jovem Kamayur preparado pelo pai para roubar uma galinha sobrenatural (okakyt watu) que pretende domesticar ilustra bem como a apreenso de poderes exgenos situa-se no cerne do processo de constituio da pessoa. A galinha desejada, assim como outros kat - entre os quais fogo sobrenatural (taza watu), piranha gigante, (pankj watu) etc. vivia (e ainda pode ser encontrada) num lago que fica a noroeste da aldeia Aweti, um lugar denominado Makawaja. O jovem precisava tornar-se muito rpido e leve para adentrar a ilhota onde vivia a tal galinha sem ser percebido, agarr-la e sair correndo antes de alcanarem-no os
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muitos kat da ilha. Ele criado, assim, para ser um corredor, tantat. Este termo aplicado tambm aos campees de towa-apitu (huka-huka), que correm vista de seu grupo e do grupo adversrio para apresentar-se no ptio da praa central da aldeia onde a luta ter lugar: o campeo o primeiro a correr, ytang tantat115. A preparao do rapaz Kamayur consiste em cinco etapas. Primeiro ele se arranha e esfrega o corpo com a poo de uma raiz chamada sem peso, potyj eym. Em seguida, flecha um veado (tywapat), animal extremamente veloz, e esfrega sua gordura sobre a pele novamente escarificada. Na prxima etapa preciso agarrar com as mos o veado, demonstrando que j est adquirindo leveza e velocidade. A gordura do animal novamente esfregada sobre a pele. Agora ele agarra uma ema (tangtu), animal ainda mais veloz que o veado, escarificado e tem a pele esfregada com a gordura da ave. Por fim pisa sobre um cupinzeiro (ywya) e, constatando que no o destri com seu peso, atesta que o tratamento foi bem sucedido. A histria revela que o recurso gordura da sucuri no exclusivo, e que qualidades outras podem ser buscadas nos mais variados seres, como a velocidade e a leveza do veado, de acordo com a mesma lgica de identificao com o elemento teraputico, que na verdade um sujeito possuidor da potncia desejada, capturado. Existem ainda muitas rezas curativas (kewere), conhecidas por quem se interessa e paga para aprend-las, como as usadas pela me para fazer o filho comear a caminhar, s quais aludi acima. O cupim (kurupii) um famoso kewere itat, dono de uma reza regenerativa dos ossos e da pele pois ele mesmo dito imortal, usando sempre essa reza para reconstituir sua casa se ela for destruda. H tambm uma reza da pedra (kyta ekewere) usada para o mesmo fim
Breve esclarecimento sobre a luta towa-apitu. Duas aldeias enfrentam-se, somando perdas e vitrias para saber qual foi a ganhadora. Apenas os campes (tentjatuza, fortes) de cada grupo se enfrentam inicialmente por isso deles se diz que vo primeiro. Os resultados so contabilizados. Ao final da disputa dos representantes mais fortes de cada grupo, dos campees, todos os homens jovens se enfrentam, ao mesmo tempo, no ptio central. Neste momento no h mais contagem de perdas e ganhos. Esses lutadores quaisquer so os que vem depois, em relao a eles que os campees so os que correm na frente.
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provavelmente, para fortalecer uma matria. Muitas so destinadas a promover um bom parto: como a reza do peixe pitazynyp (desconheo a espcie), e tambm a do mingau de beiju, y wap. Neste ltimo caso, explicaram-me que, assim como o mingau se derrama de uma vez, quando o atiramos de seu recipiente, o beb deve ser derramado com agilidade no parto a qualidade a ser transmitida aqui a agilidade ao cair. Uma reza do cabelo (ap ut) faz o beb rolar da me como um chumao de cabelo amassado rola pelo cho. A reza da r cuzuzu, animal que rezou para soltar o brao da Tanumakalu de um buraco na rvore onde estava preso, num episdio da saga das origens, tambm boa para partos difceis: a vagina da me vai se alargar como foi alargado o buraco deixando sair o brao de Tanumakalu. Uma reza que foi proferida por Kwat para ressucitar uma criana-peixe no tempo do primeiro kwarup usada para curar qualquer doena de criana. A todo momento identificamos uma lgica similar que rege a relao com a comida. Mas aqui, como no caso dos remdios da ona ou do mutum, alm de um efeito de identificao subentende-se a personitude dos donos sobrenaturais: o peixe, que conhece uma reza para fazer seu filho nascer rpido, ensina esta reza aos humanos, que a transmitem uns aos outros. Deste modo, fazer uso de um desses objetos, ou desses conhecimentos, implica entrar numa relao. E mais, as relaes entre humanos e no humanos se do em continuidade. Pitazynyp ekewere, Ir ekewere, a reza do pitazynyp de Ir, ou seja, foi Ir quem ensinou esta reza, que provm de pitazynyp, um peixe. At aqui procurei demonstrar de que modo a comida, os remdios de origem vegetal, as rezas, os sonhos e os adornos corporais, so elementos que continuamente constituem a pessoa xinguana, constituio esta sempre pensada como resultado de uma relao com sujeitos e objetos detentores de qualidades que se deseja para si, e que a um s tempo garantem a condio
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comum de gente, xinguano, e uma potncia distintiva de chefe, mulher chefa, campeo, conhecedor de remdios. Os perodos de recluso apenas enfatizam a condio de vulnerabilidade da pessoa quilo com que entra em contato, porque so perodos em que os contatos com no humanos so intensificados, seja porque decidiu-se que preciso investir na formao do rapaz, caso da recluso masculina, que independe de eventos histricos ou biolgicos para ter lugar, seja porque circunstncias impuseram processos transformativos, como se d com a jovem na menarca116, ou aps a morte de um parente prximo. Passo agora descrio de um conjunto de relaes especficas que levam constituio do xam. Assim como o jovem pbere, os pais de recm-nascido e os enlutados, o que se espera que ele engorde, pois o tabaco, que ir ingerir em doses monumentais, um fazedor de corpo, kaje moegat.
3.7Tabaco,fazedordegente
H basicamente trs razes que podem levar um homem a tornar-se xam. Apesar de em quase todas as casas de ambas as aldeias aweti haver um xam, e apesar de todo chefe de famlia tender a tornar-se xam na meia idade, o processo nunca descrito como parte obrigatria do ciclo de vida de um homem. Xams podem ser rezadores (kewere itat) ou cantores de t junku, podem ver bem ou apenas obscuramente o mundo de kat onde as pessoas circulam na condio de ang, mas o que definine um xam, um mopat, a prtica de fumar tabaco e a capacidade de extrair kat uwyp do corpo de um doente. O tabaco uma espcie vegetal com dono, itatytu, e seu consumo requer
Os Aweti dizem que as meninas ficam mestruadas sozinhas, isto , a menstruao no provocada, como entre outros povos das terras baixas sul-americanas.
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a rgida observncia dos mesmos tabus seguidos pelo jovem recluso: abstinncia sexual e de doces. Ao contrrio do recluso, contudo, o mopat pode comer peixe assado normalmente donde conclumos que o jovem era impedido de com-lo provavelmente pelo fato de estar sendo arranhado diariamente, sangrando como uma mulher menstruada (cf. Bastos 1989)117, e no por causa dos donos de razes com que estava em contato. Independentemente dos perigos envolvidos na infrao de regras voltadas para um bom relacionamento com o dono do tabaco, fato notrio que seu uso dolorido, tatytu, para o mopat, o que justifica o alto preo dos tratamentos xamnicos. O consumo do tabaco provoca fraqueza, falta de apetite, queimaduras nos lbios e na lngua, presso alta118, nusea. H pessoas que fumam cigarro de branco hoje no Alto Xingu, geralmente sem respeitar as regras impostas ao consumo do tabaco nativo. Mais de uma vez ouvi histrias sobre esses fumantes terem sido recriminados pelos xams ou, quando doentes, terem sido informados de que o dono do tabaco estava lhes fazendo mal. Mesmo os mopat mais responsveis, contudo, sofrem terrivelmente com os males causados pelo fumo e no necessariamente pelo dono do tabaco, motivo pelo qual muitos homens rejeitam a idia de tornarem-se mopat. De modo de que preciso ter um bom motivo para ser iniciado. O mais frequentemente descrito na literatura xinguana o fato de ter sido escolhido por um kat. Kat owyat nanete, kat desejou-o, diz-se em aweti. Um homem comea a sonhar, por exemplo, que um kat lhe traz tabaco. Adoece e curado por algum mopat da aldeia. Se ele deseja se tornar mopat, no deve ter as flechinhas kat uwyp extradas de seu corpo. Tornar-se mopat implica necessariamente
De fato o eclipse solar (kwat wytapu) ou lunar (taty wytapu) descrito alternativamente como menstruao e como o sangue que escorre quando um desses astros escarificado. Essa incongruncia tematizada no filme realizado pelos kuikuro, O dia em que a lua menstruou. 118 O termo, em portugus, foi-me apresentado como razo por um mopat aweti que pretendia abandonar a prtica xamnica.
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introjetar e manter continuamente kat uwyp dentro de si, mas elas provocam dores, que muitos falham em suportar. Eventualmente, kat visita-o em sonhos, mas o homem no adoece e, como se passou com um jovem aweti, apenas mantm (em sonho) o cigarro recebido, aguardando o momento certo da iniciao. Quando um homem completamente iniciado por kat diz-se que ele kat emopat, mopat de [feito por] kat. A mesma expresso designa os kat que, dentro outros, so mopat, pois nem todos o so e, assim como os peixes, as aves e os animais de plo possuem seus morekwat, todos os kat distinguem-se entre si conforme a organizao social que rege a vida dos xinguanos uns so xams, outros chefes, outros guerreiros, outros nada em especial (karika tene). Em muitos casos, porm, a deciso parte do aspirante a xam, e no de kat. Um importante mopat aweti me contou que foi iniciado na aldeia Kamayur por um parente (too) que lhe sugeriu: se voc ficar mopat, como eu, as pessoas vo lhe pagar coisas para cur-las. Pensando no pagamento que receberia, decidiu tornar-se mopat. Todos comentam que os elevados pagamentos feitos pelos servios xamnicos so imediatamente redistribudos pelo recebedor sua famlia colares de caramujo, miangas e panelas logo estaro nas ms de suas esposas e filhas. O interesse no pagamento no poderia ser descrito, portanto, como um objetivo materialista ou egosta, sendo antes movido pelo desejo de investir em pessoas nas relaes com elas visando alm de tudo a possibilidade de pagar tratamentos xamnicos quando os parentes do xam ou ele mesmo adoecerem gravemente (ver cap. 5). A terceira razo que j me foi alegada para a iniciao de um xam semelhante a esta ltima: por ocasio do adoecimento de algum familiar prximo, um homem percebe que preciso substituir seu velho pai ou tio, raciocinando que no futuro ser preciso que algum assuma a funo de proteger os seus de ataques de kat e de feiticeiros. O xam de uma famlia de certa
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maneira seu escudo protetor contra os diversos outros potencialmente perigosos que a circundam. Por esse motivo, creio, mantm-se a tendncia de que cada casa, ou cada grupo de parentes prximos, tenha o seu xam. Um dos homens aweti em idade de tornar-se xam, por exemplo, afirmava regularmente, quando eu lhe perguntava, que preferia evitar o assunto, a no ser que kat viesse cham-lo. Sua despreocupao, no entanto, me parecia estar ligada ao fato de que seu pai, residente de um casa ao lado, um xam ainda bastante ativo a quem este homem recorre para resolver as mais diversas mazelas cotidianas que afligem sua famlia: um filho com conjuntivite, uma neta resfriada, um colar de caramujo desaparecido. Como disse, o xam de casa sempre o primeiro a quem se pede ajuda no estgio inicial de um tratamento, enquanto xams de fora so mobilizados apenas quando a doena se mostra grave. desejvel ter um xam prximo no apenas porque a ele normalmente no se paga, mas tambm porque xams de outras famlias (da mesma ou outra aldeia) ocupam frequentemente uma posio ambgua na percepo dos parentes de um doente, passando no raras vezes de curadores a suspeitos de feitiaria. Salvo no caso em que um xam completamente iniciado em sonhos ou transes alucinatrios, em todos os demais, mesmo quando ele escolhido por um kat que se tornar seu auxiliar e o fez adoecer (caso em que se diz que kat emiu put, ex-comida de kat), preciso passar por uma iniciao na qual um xam humano experiente introduz o aspirante na arte de fumar tabaco, e transmite a ele as kat uwyp que carrega em seu corpo. Normalmente o aspirante comea a fumar na roda de xams que se rene todo fim de tarde no centro da aldeia entre os Aweti, sob o abrigo sem paredes que constitui sua casa dos homens (ototap ou simplesmente tapyj, abrigo) - antes de receber as flechas de kat de seu iniciador. Como ainda no possui sua prpria plantao de tabaco e tampouco sabe enrolar seus prprios cigarros, cuja produo exige treinamento, ele os recebeprontos de vrios mopat da aldeia. Apenas aqueles que no tiveram
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relaes sexuais podem lhe dar cigarros, contudo. Aparentemente, o problema o volume de fumaa a ser ingerida pelo iniciante, pois os xams fumam diariamente, em pequenas quantidades, e no se abstm continuamente de sexo. Para o iniciante, contudo, a abstinncia imprescindvel. A iniciao propriamente dita comea com a ingesto de um vomitrio trazido ao iniciante bem cedo pela manh por seu iniciador (mopat junkat, aquele que faz mopat). O emtico preparado com uma raiz da minhoca (tewoi itatytu). O iniciando deve passar o dia em completo jejum. No fim da tarde, antes de dirigir-se roda dos xams no centro, o iniciador vem com um mopat ajudante casa do iniciando, a quem avisa: atyjkotukazoko en, vou fazer voc ficar cheiroso (tyjk). Sentado dentro de casa junto porta, o iniciando recebe um banho de gua de kukuje, a semente de palmeira do xam. A soluo pingada em seus ouvidos e sua boca, enquanto um xam auxiliar segura sua cabea. O iniciador sopra (opythizyk) a cabea do iniciando, dizendo-lhe: epeuzoko, epeuzoko, voc vai comer tabaco, voc vai comer tabaco. O iniciador pigarreia, puxando do fundo de sua barriga seu mopat, as flechas de kat que carrega dentro de si e que agora transfere ao iniciando, atravs da respirao, na ajywan. Ele remove tambm, esfregando com a mo como quem faz uma cura, flechinhas de seus joelhos, das palmas de suas mos, de seus cotovelos, engole-as e mais uma vez pigarreia para traz-las do fundo da barriga, atravs do sopro. Se for aprender tambm algumas rezas, kewere, o iniciante tem seu corpo pintado com a resina de jatob (mti ytyk) em pintas por todo o corpo, como as do jaguar. O jatob (mti jemyt yp) uma manifestao do grande mopat entre os kat, Aturuw, de modo que o uso de sua seiva parece intensificar a potncia xamnica. O iniciante recebe ento muitos cigarros enrolados, novamente apenas dos xams que no tiveram relaes sexuais recentemente, e deixado sozinho para comear a fum-los. Os xams
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dirigem-se casa dos homens, onde formam sua roda rotineira. No meio da noite os xams vm visit-lo para ver como est. preciso fumar todos os cigarros recebidos, que lhe provocaro uma fortssima intoxicao, por isso os xams aparecem para ajud-lo a dar cabo do tabaco recebido, retornando ao centro em seguida. Perto do amanhecer, o grupo de iniciados vem buscar o iniciando para lev-lo ao banho. Impregnado da fumaa, seu corpo fica leve, an ipotyjka, e por isso tem dificuldade para andar, mal sente seus ps no cho (como ang ut, o consumo excessivo do tabaco lhe transforma em kat). Com a mesma raiz usada para lavar os recm nascidos, kajap kyzap, lavador de cabelo, o iniciante se banha e ento retorna para casa, onde dormir um pouco. Neste momento, como j mencionei, ele deve prestar ateno aos seus sonhos, que indicaro se a recluso que est por comear ser bem sucedida. comum sonhar, dizem, que esfrega sal em seus prprios lbios, de fato j queimados e ardidos pela fumaa aspirada na noite anterior. Mais tarde seu iniciador lhe traz um pouco de peixe com pimenta. Com os lbios queimados, mal possvel comer. Em seguida o iniciando fuma mais um cigarro, dessa vez engolindo (wejmokure) pela primeira vez a fumaa (tazanting). A partir de ento inicia sua recluso, fazendo jejum de sexo e alimentos doces. Note-se a coincidncia entre as coisas que despotencializam uma ao agressiva no contra-feitio, porque suavizam a vida humana, e as coisas que irritam kat: kat e ns somos diversos tambm pelo que gostamos, uma distino de afetos que atualiza a distino entre tipos de gente (cf. Viveiros de Castro 2002 d). O humano, contudo, precisa muitas vezes em sua vida abrir mo de seu paladar especfico em prol da aquisio de potncia sem a qual no pode constituir seu corpo humano, como no caso da recluso pubertria. Ao engolir as kat uwyp extradas do corpo do iniciador, o prprio kat auxiliar deste que
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o iniciante est introjetando. Agora ele tem kat dentro de si ele tem deus na garganta, traduziam por vezes algumas pessoas. Se o iniciando irritar o kat que traz dentro de si ir na certa morrer, no exatamente por vingana de seu esprito auxiliar, mas porque aquilo que foi introjetado abandonar seu corpo. Se as flechinhas que agora tem nas mos forem embora, no poder mais curar extraindo flechinhas do corpo dos doentes, por isso no deve mais aquecer-se mostrando as palmas das mos para o fogo. Se as flechinhas que traz na garganta forem embora ele morre, por isso no pode de maneira nenhuma entrar em contato com a comida feita por uma mulher menstruada, com cheiro de sangue ou sexo. Para que no ocorra uma contaminao inadvertidamente, os xams costumam beber mingau especialmente preparado para eles. Se uma mulher fica menstruada no apenas joga-se fora as comidas que ela havia preparado, mas tambm o xam deve se desfazer dos cigarros que j tinha enrolados dentro de casa, pois estaro contaminados. Tudo se passa como se, uma vez iniciado, o xam fosse movido a kat, pois sem a presena de kat dentro de si, na forma de sua flechinhas xamnicas, ele deixa de existir. A relao parece, no entanto, estar tambm condicionada ao uso frequente do tabaco, pois possvel que um homem deixe gradualmente de ser xam, se decide parar de fumar, e mesmo que perca sua potncia xamnica com a idade, quando comea a relaxar no cumprimento dos tabus. O iniciando entra ento num perodo de recluso em que deve engordar, tornar-se forte. Quem o faz engordar o tabaco - kaje moegat, moat moegat, ele [tabaco] faz nosso corpo, fazedor de gente, o mesmo que se diz das razes com as quais so preparados vomitrios durante a recluso pubertria. O aumento corporal dos reclusos - o jovem e o xam decorre, assim, da ingesto de dois tipos de anti-alimento: a fumaa quente do tabaco, que provoca a perda de apetite; e as razes emticas, que provocam a expulso dos restos de comida do interior da pessoa. Em ambos os casos, o dono da espcie que aparece como agente da transformao do recluso
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atestando que crescer no funo de um acmulo de substncia, mas de um acmulo de relaes. Tais relaes so a tal ponto constitutivas da sua nova pessoa que sem elas o recluso no pode continuar vivo. A alternativa ao aumento morrer virar kat, ang ut. Outras vezes a quebra de um tabu na recluso pode no levar morte, mas provoca paralisia dos membros, perda de mobilidade, e da capacidade de ao no mundo. De toda maneira, a pessoa deixa de ser gente, como o beb antes de aprender a andar e a falar. Ao sair da recluso, o novo xam (mopat ytatu) recebe do iniciador uma esteira de palha de buriti com trama fechada de fios de algodo, um artefato confeccionado pela esposa do xam experiente para ser o lugar onde o iniciado vai guardar seus apetrechos de cura (ne kat upap, sua bolsa) - folhas secas de tabaco, colares de kukuje etc. O iniciador recebe ento seu pagamento, sempre alto: normalmente mais de um colar de caramujo, panelas, dinheiro. Dizem que um ndio Tapirap, tendo sido iniciado por um famoso xam kamayur (o nico do Alto Xingu, segundo muitos aweti, realmente feito por kat), pagou-lhe com um fogo. Nesse meio tempo, o xam iniciante ainda no tem seu prprio arbusto de tabaco plantado, mas j aprendeu a confeccionar cigarros. Ele recebe ento folhas de tabaco secas dos outros xams da aldeia e lhes d cigarros prontos em pagamento pelos cigarros que recebeu durante a iniciao. O recm-iniciado oferece tambm uma comida no centro da aldeia a ser consumida apenas pelos xams - kat emiu, mopaza weju, comida de kat, quem come so os mopat. O prximo passo do iniciante aprender a tirar flechas de kat de um paciente, praticando ao lado do iniciador.
3.8Opagamentodosmopat
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Quando um xam feito por kat no h necessidade de introjetar kat em seu corpo atravs da gua de kukuje e do sopro do iniciador, naajywan. Kat introduz objetos no corpo de um homem, introduzindo-se tambm deste modo, e ser doravante seu mopat. Nas iniciaes feitas por gente, portanto, iniciador e iniciando parecem compartilhar momentaneamente o mesmo mopat, mesmo esprito auxiliar. Mas cada mopat tem sempre seu prprio mopat. Mesmo quando um homem toma a iniciativa de ser iniciado no xamanismo, ele passa pelo processo de ser escolhido por um kat que ser seu mopat, algum com quem manter relaes estreitas, lhe informar o que v a respeito da ang dos doentes, carregar sua ang at onde esto os feitios, e com quem compartilhar o pagamento de cada cura. Aquele homem aweti iniciado por um parente kamayur, por exemplo, esperou ainda um tempo para desenvolver uma relao particular com seus prrios mopat. Quando j havia sido iniciado (muju apeu, eu j fumava [nessa poca]), esse mopat foi certa vez ajudar na remoo do corpo de um jovem kamayur que havia morrido na aldeia do Moren e l sido enterrado. Alegando que o Moren no aldeia - por ser um aldeamento relativamente novo, formado por dissidentes kamayur e aweti -, o pai do rapaz falecido organizara uma expedio para desenterrar o corpo do filho e traz-lo de volta sua prpria aldeia, Ipavu. Ao participar dessa expedio, o mopat aweti, ento residindo entre os Kamayur, comeou a sentir-se mal. Durante aquela noite, no Moren, viu em sonho um menino feio, de cara desconhecida. Chamando-o de atu, meu neto, o menino indagou se o homem no o reconhecia: tratava-se de Kwat, o gmeo demiurgo, a quem o mopat no havia reconhecido de sada porque o outro apresentara-se sob a aparncia de uma criana (Sol e Lua possuem a capacidade de crescer e diminuir quando desejam). J de volta aldeia Kamayur, em Ipavu, o mopat teve uma srie de desmaios, durante os
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quais tornou a ver Kwat, que vinha lhe trazer tabaco. A esta altura o mopat convalescia gravemente, sua irm j chorando ao antever sua morte. Quando veio um xam kamayur para cur-lo, tirou de cada olho seu uma semente de kukuje, que havia sido colocada por Kwat. O curador perguntou ao doente se devia devolver as sementes, para que ele se tornasse um grande mopat, mas o convalescente recusou, pois no suportava a dor. Sementes de kukuje tambm foram retiradas de seus ouvidos. Mesmo assim, ficaram algumas em suas mos, ouvidos e olhos. Kwat passou a ser desde ento seu kat auxiliar, seu mopat. Quando ele dorme logo v o demiurgo em seus sonhos por isso que falo muito durante a noite, explicou-me. Kwat, me contava o mopat (que, quando conheci, vivia j entre os Aweti), deseja lev-lo definitivamente para o Moren, onde reside numa grande casa, enquanto do outro lado da aldeia est seu irmo Taty. Numa outra casa ainda est Wamutsini, o av dos gmeos. Kwat lhe diz que no Moren bom, e tem muitas araras vermelhas que poder ter como animais de estimao, mas o mopat aweti resiste a ir de vez. Pyringyt, o beija-flor, tambm mopat deste homem, pois foi quem o fez adoecer primeiro, antes que ele tivesse comeado a fumar. Mas no se trata de um mopat que valha a pena tomar em considerao: karika tene pyringyt, o beija-flor no nada, uma coisa qualquer, ikyjtat put, aquele que me matou [apenas], dizia-me o xam. Quando ele fuma, Kwat quem vem contar-lhe o que est acontecendo. comum um mopat obter auxlio de mais de um kat, dentre os quais alguns so considerados mais poderosos, outros mais voluntariosos etc. H, por exemplo, um mopat aweti que recebe regularmente dois kat como seus mopat, akyky, o guariba, e awaz. Mas ele tambm eventualmente visitado pela ang de seu irmo mais moo, morto ainda criana quando um feiticeiro amarrou a pele da ona que o pai deles havia matado no mato. A ona veio buscar o menino, que desde ento reside com ela na floresta, mas s vezes aparece
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junto ao irmo mopat para contar-lhe alguma coisa. A descrio da relao com kat como uma de fornecimento de informaes obscurece o fato de que o xam tambm um continente, que vive apenas graas presena de kat dentro de si. H um xam kamayur muito conhecido, o nico que os aweti com quem conversei reconheciam como verdadeiro kat emopat, feito por kat. Quem o fez foi o peixe bicuda, tupjyt. Por ter sido feito xam por um peixe, no momento de sua iniciao ele comeou a defecar peixes vivos. De seu ouvido escorria gua, e quando ele tossia expelia um cigarro j pronto dos pulmes. Ao tornar-se xam, um processo que se passou em seus sonhos de convalescente ao longo de um adoecimento, aquele homem transformou-se em um receptculo de kat, mais do quem em um kat propriamente dito. Ele contm em si as muitas coisas de kat assim como o xam aweti passou a conter sementes de kukuje nos olhos. Dizem que awaz e akyky tentaram tambm fazer este xam kamayur, mas tupyjt (o peixe bicuda) no deixou, pois no gosta desses kat, que deixam a pessoa brava. Esse xam tem uma filha que tambm mopat, um caso raro de xam feminino no Alto Xingu. Ela tambm foi feita por kat, awaz, que lhe deu um pau. Ento um irmo dela tirou a arma de suas mos, de modo que agora o mopat daquela mulher continua sendo awaz, mas sem o pau, e com isso ela no fica violenta. O mopat no simplesmente tem o seu mopat como assistente, pois, ele constitudo por kat. Alm disso, o mopat humano no apenas contm em si o esprito auxiliar, mas tambm adquire caractersticas dele. Os dois, contudo, no se confundem, e o mopat humano mantm alguma autonomia, podendo ser muito ou pouco influenciado pelas qualidades de um kat auxiliar especfico. Tudo se passa como se, uma vez iniciado, o mopat ficasse oco por dentro, habitado por um ser, ou um mundo (os peixes-fezes, o rio dos ouvidos), com o qual mantm uma respeitosa distncia. Essa combinao entre mtua constituio e distncia faz com que a relao entre
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mopat e kat seja comparvel s relaes de parentesco, sobretudo no que diz respeito s expectativas de circulao de bens. Por vezes um mopat cura um parente prximo e no cobra nada; possvel ento que seu mopat fique enfurecido, e comece a aparecer exigindo-lhe pagamento. Ao receber qualquer objeto em troca de uma cura, imeadiatamente o mopat sopra fumaa de tabaco sobre o pagamento, e o dedica (wejmiing, lit. conta) a seu mopat. O mopat compartilha aquilo que recebe - os aweti deixam claro que o pagamento de ambos, xam e kat, e no uma troca entre o xam e seu mopat. Nesse sentido, a relao que estabelece com no humanos similar quela que mantm com suas filhas e esposas, distribuindo os caramujos e miangas que recebe por uma cura. Pois esse compartilhamento familiar entre humanos no mera expresso de generosidade, parcialmente obrigatrio, na medida em que esperado no contexto de determinadas relaes, e os parentes humanos, como os kat, tambm se enfurecem quando o mopat falha em compartilhar aquilo que recebeu. Deste modo o aparentamento com um no humano em parte permite ao xam reafirmar suas relaes humanas, ao gerar um afluxo de bens a serem distribuidos a, em parte nega tais relaes, obrigando o mopat a cobrar at de seus parentes prximos. Mas gostaria de refletir um pouco mais sobre o fato de o kat ser designado, como o xam, e em relao a este, como mopat. Certa vez um mopat aweti foi flechado por tupiat de gente. Ele sentiu uma pontada nas costas, e em seguida desmaiou em sua canoa, enquanto pescava na lagoa Ipavu. Foi seu mopat espiritual quem o curou, tirando os feitios dele. Vemos assim que o auxiliar no apenas um esprito que matou o xam no passado, mas tambm seu curador. Conta-se tambm de uma xam kamayur feito por kat que tirou ele mesmo feitios que tinham sido colocados para si no perodo em que esteve doente quando ocorreu sua iniciao xamnica pelo mopat espiritual. Ao acordar de um desmaio prolongado, teria dito que fora feito xam por kat, mas no o deram crdito.
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Ainda enfermo, ele ento levantou-se e foi sozinho tirar os feitios que o matavam. Neste caso no foi kat quem o curou, mas ele que, contendo kat dentro de si, foi seu prprio mopat. Se o termo mopat designasse procedimentos de cura em geral, porm, seria possvel que um mdico ocidental fosse referido deste modo, quando vimos que o mdico equiparado a um conhecedor de ervas, um montang itat. Enquanto o poder deste deriva das relaes que estabelece seja com os donos das ervas medicinais, seja com outras fontes de conhecimento, a relao do xam com seu auxiliar de outra natureza. Basta dizer que o montang itat no corre risco de vida em suas relaes com as espcies vegetais e seus donos, enquanto o xam em sua relao com o seu xam perde parcialmente a autonomia. Se a relao de itat como outras relaes de aquisio de conhecimento - promove apenas aumento de potncia, o xamanismo requer tambm uma perda, que est ligada ao processo de preenchimento do corpo por matria estranha, que o que permite ao xam efetuar curas. Os habitantes da aldeia chamam seus curadores de mopat. Um curador, por sua vez, chama o kat com quem mantm relaes de meu mopat, itemopat. Um xam referido pelos habitantes de sua aldeia como x emopat, o mopat de x, sendo x um kat qualquer. Se um homem tem o trovo como mopat, por exemplo, ser reconhecido por todos como top emopat, o mopat do trovo. Reciprocamente, kat chama ao humano a quem auxilia nas curas de meu mopat, e tambm me informaram que o xam se refere a seu paciente humano como itemopat, apesar de nunca ter visto em uso essa forma de designao. Isso indica que a relao de mopat sempre recproca - se a mopat de b, b mopat de a - e que portanto no pode ser resumida como uma relao entre continente-contedo. Ou, ao menos, que essa relao considerada pelos Aweti desde um duplo ponto de vista: se o xam contm kat e suas coisas dentro de si, tornando-se parcialmente kat com isso, talvez kat tambm
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contenha algo do xam humano dentro de si. Quanto relao entre curador e paciente, no entendo que implique uma percepo de mtua constituio. Se um paciente s pode ser mopat para um determinado curador, isso no verdadeiro para este ltimo pois ele determinado como mopat, antes de tudo, por sua relao com kat. Os vnculos que estabelece com humanos (como mopat) so consequncia disso. A relao de mopat designaria antes, talvez, o estado liminar em que tanto xam quanto paciente se encontram, divididos entre ser humano e ser kat; os kat que se tornam auxiliares de xams viveriam, pois, a mesma duplicidade, ao manterem uma relao de compartilhamento de bens com um humano. Em geral um doente dito maozokwat, aquele que est morrendo; o fato de que, do ponto de vista de um xam, ele seja considerado um igual aponta tambm para o fato de que um xam tambm sempre um ex-doente. Sigo agora com processos de fabricao da pessoa, enfocando especificamente a formao do chefe e do feiticeiro, o modo pelo qual so tambm constitudos por relaes que nem sempre simples distinguir.
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Captulo4 Nkywaaty:osbraosfortesdofeiticeiro
Sempre que viajam cidade, os Aweti retornam para a aldeia com alguma histria de um parente distante redescoberto em conversas com outros xinguanos com quem cruzaram no caminho. Numa dessas ocasies, um rapaz chegou contando a seguinte histria: ao conversar com um homem Matipu, este lhe mostrara uma foto de seu finado pai, um aweti que havia se casado com uma mulher daquele grupo karib. Os ouvintes da aldeia logo reconheceram de quem se tratava, e comentavam alegremente que o filho Matipu carregava um nome tipicamente aweti que lhe fora dado por seu falecido pai. O que mais havia impressionado o protagonista do encontro, no entanto, fora a foto, e o que agora lhe parecia digno de nota ao contar a histria era a enorme fora do falecido aweti, os gigantes msculos de seu brao. Os mais velhos, que se recordavam da figura, comentaram ento que aquele homem havia queimado o centro da palma das duas mos com seiva de copaba (matsapeza ytyk) e por isso era to forte. Quando pedi que algum me explicasse o que significava isso, responderam-me logo: Tupiat itat, Marina! Neste captulo, comento os procedimentos seguidos por um homem para tornar-se feiticeiro, contrastando-os aos processos que levam constituio de um chefe, morekwat. Como j deve estar claro, a comparao no gratuita: enquanto os Aweti referem-se ao processo de criao de um chefe como moakatu, tornar gente, falam sempre que o feiticeiro no gente, moat eym. Em ambos os casos ser ou no gente um problema de ordem moral, mas o corpo aparece sempre como um sinal, ao lado das atitudes, dessa moralidade, na medida em que
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resultado de aes conscientes e intencionais de fabricao. A literatura apresenta-nos duas imagens razoavelmente contraditrias da relao entre chefes e feiticeiros no Alto Xingu. Por um lado, chama-se ateno para uma oposio entre as duas figuras enquanto tipos. Ao representar seu grupo nas interaes interlocais, o chefe uma metfora do grupo que representa. Nos contextos intralocais, o chefe identifica-se ao espao pblico do ptio central, lugar de onde aconselha diariamente os aldees como um pai aconselha seus filhos (cf. Heckenberger 2005). O feiticeiro, por sua vez, descrito na etnografia como o homem do quintal (backyard man) (cf. Gregor 1977), aquele que age s escondidas, adentrando as casas pela porta dos fundos, segundo interesses mesquinhos e egostas119. Se, como notam alguns etngrafos a noo de chefe parece aplicar-se menos a um ofcio que a um tipo ideal de pessoa, cuja beleza e fora so atributos fundamentais (cf. Viveiros de Castro 1977), o feiticeiro descrito como um desviante, um homem fraco, antissocial, no adequado aos ideais estticos por ser careca, magro demais, solteiro; ou antes, homens com tal perfil seriam mais vulnerveis s acusaes de feitiaria, alvos mais provveis de acusao por ocasio de um evento disruptivo qualquer na aldeia (Gregor idem). Por outro lado, dispomos de muitos relatos sobre homens reconhecidos como chefes e acusados de feitiaria (cf. por exemplo Dole 1964, 1976). Durante minha estadia entre os Aweti tambm ouvi histrias similares, no apenas a respeito de seus prprios chefes, mas tambm de chefes de seus vizinhos xinguanos. Isso facilmente explicado pelo fato de que pessoas diferentes tm vises diferentes sobre uma terceira pessoa: alguns podem reconhecer num homem um grande lder, enquanto outros no s recusam reconh-lo como tambm o acusam de
O feiticeiro foi frequentemente descrito como um tipo socialmente invertido. Ver por exemplo os diversos casos africanos relatados na coletnea de artigos organizada por Middleton (1963), e sua prpria descrio do feiticeiro Lugbara (idem, 271). O que exploro neste captulo justamente a paradoxal superposio de tal imagem, tambm presente no Alto Xingu, com a do chefe-lutador xinguano.
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feitiaria. Basso (1969) descreve a poltica xinguana como um jogo entre faces formadas por grupos de germanos e suas famlias em torno de figuras de chefes, isto , indivduos disputando posies de liderana numa aldeia. A noo de faco me parece problemtica por dar a impresso de uma estabilidade na configurao desses grupos no condizente com minhas observaes ao longo do tempo em que estive entre os Aweti. Longe de garantir apoio mtuo, a germanidade pode ser um elemento eventualmente disruptivo (ver captulo 5), e grupos polticos se organizam mais ou menos temporariamente em torno de questes pontuais120. Por ora desejo apenas enfatizar o seguinte: por mais que feitiaria e chefia no sejam atributos que se combinem idealmente, e por mais que um homem seja considerado feiticeiro, em geral, apenas por pessoas que no o reconhecem como chefe, no h nada que possa garantir de um ponto de vista neutro a verdadeira identidade de um homem. Vimos no captulo anterior que toda pessoa produto de diversas e ininterruptas aes intencionais voltadas para a constituio de seu intelecto e seu corpo, sendo o corpo em larga medida uma imagem das intencionalidades mobilizadas para sua fabricao. Ocorre que o corpo uma imagem demasiado ambgua. No que tange s figuras do chefe e do feiticeiro, no h um fato objetivamente observvel, como a aparncia fsica, que garanta que tipo de pessoa aquela. Se verdade que um estrangeiro, um homem antissocial ou um homem que perde regularmente o
Noto por exemplo como as alianas polticas em torno de um chefe variaram ao longo dos cinco anos em que desenvolvi a pesquisa de campo. Quando estive na aldeia em 2005 as relaes deste homem com o outro chefe pareciam estar extremamente desgastadas, em funo, dizia-se, de um caso extraconjugal envolvendo uma de suas esposas e um filho de seu rival. Em 2006, outro homem tambm considerado morekwat entre os Aweti era a pessoa de quem suas esposas mais demonstravam temer ataques de feitiaria, um termmetro das relaes polticas na aldeia. Em 2007 este antigo rival convertera-se em principal aliado do chefe, tendo defendido sua permanncia na aldeia quando um grupo de oponentes tentou expuls-lo. Dizia-se ainda que a defesa tinha a ver com o fato de que agora se desenrolava uma relao extraconjugal entre este homem e a outra esposa do chefe. No ano seguinte diziase que a esposa tinha agora um novo amante, o irmo mais novo de seu antigo amante, que neste momento, em 2008, voltara a ser rival do chefe. Os dois irmos, que segundo as ms lnguas competiam pela ateno da mesma mulher, davam-se bastante mal, a ponto de o mais novo cogitar mudar-se da aldeia por que o mais velho um dia lhe negara gasolina para levar seu filho cidade para um tratamento de sade.
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auto-controle em manifestaes de ira sero alvos quase certos de acusaes, homens fortes, campees de luta e lderes representativos no esto de modo algum livre delas. Um feiticeiro e um chefe so produtos ou objetificaes de alianas diferentes pela aplicao de remdios diversos, aquisio de saberes diversos, uso de objetos diversos. Mas de que alianas uma pessoa feita e, logo, que pessoa aquela, s possvel inferir atravs de suas aes para com outras pessoas. A pessoa no s constituda por relaes continuamente, como as relaes que a constituem so continuamente reconhecidas em relaes.
4.1Seretornarsemorekwat
Consideremos o problema da definio dos termos nativos geralmente traduzidos por chefe. Alguns etngrafos ressaltam que eles parecem designar mais uma categoria de pessoas com status hereditrio do que uma posio ou cargo poltico. Viveiros de Castro nota que os Yawalapit referem-se ao processo de ficar chefe - no sentido de pertencimento a este grupo especial e no de representao poltica, ocupao de um ofcio como se fosse acessvel a qualquer pessoa. Pelas etnografias de Becker (1969) e Barcelos Neto (2004) entendemos que no Alto Xingu nascer chefe, isto , ser filho de um homem reconhecido como chefe, condio necessria, mas no suficiente, para tornar-se chefe representativo, uma posio que requer o acmulo de posies socialmente destacadas, e a confirmao ritual da distintividade. Contudo no me parece fcil precisar o que significa exatamente ser, tornar-se ou confirmar-se como chefe. Seria somente ser reconhecido pelo grupo como uma pessoa especial, um humano ideal? Lembro que quando explicavam-me o termo termo moak (ver cap. 3), os Aweti claramente falavam de uma posio poltica referindo-se a um homem formalmente colocado na condio
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de lder e representante do grupo. Diria portanto que uma pessoa chefe na medida em que faz o que um chefe deve fazer, e demonstra ter os atributos que um chefe deve ter. Os Aweti falam que uma pessoa morekwat quando ela atua como morekwat, assumindo, ainda que temporariamente, uma posio de chefe em relao ao grupo. Isso no significa, em absoluto, que tal posio seja exclusiva a uma s pessoa. Antigamente, dizem os Aweti, cada aldeia tinha quatro morekwat, todos falavam no centro da aldeia para seu povo, alm de quatro kuj morekwat, chefas, que tambm aconselhavam a mulherada da aldeia falando pela manh no ptio central. A diviso da chefia alde entre um chefe da tradio e um chefe de branco j foi notada h muito no Alto Xingu (veja-se por exemplo Galvo, 1949, 1953), e assim tambm me foi apresentada a chefia entre os Aweti quando cheguei aldeia. Note-se que apenas o segundo tipo designado por um termo especfico, caraiwa emorekwat (na literatura registra-se capito) o primeiro sendo referido em geral somente como morekwat. Mas preciso ressaltar que, no caso aweti pelo menos, o reconhecimento externo e a performance interna eram aspectos fundamentais para ambos os chefes. O chefe da tradio j me foi descrito por um homem de outra aldeia como o presidente da aldeia, enquanto o chefe de branco seria o governador. Nas festas interaldes, geralmente quem representava os Aweti era seu chefe de branco, mas isso parecia-me estar ligado sobretudo sua atitude expansiva, sua facilidade para angariar combustvel de locomoo para as aldeias anfitris, e s relaes polticas que cultivava com os demais chefes xinguanos. Na prtica, portanto, este homem no era apenas o chefe de branco, mas o chefe para fora num sentido mais amplo. O outro chefe, no entanto, era igualmente reconhecido como tal em outras aldeias - ou melhor, sempre diferentemente reconhecido, ou reconhecido por outras pessoas - pois quem reconhece quem como chefe varia de acordo com alianas que atravessam as fronteiras dos grupos locais (cf. Bastos 1987/88/89). Ao mesmo tempo, os Aweti esperavam que esse chefe de
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fora atuasse dentro como todo chefe deve fazer: que falasse ao centro, e que fosse generoso com seus bens. H um sentido mais geral do ser morekwat que supera as especificidades dos tipos de chefe; este tem a ver com um ideal de personalidade e com o alinhamento a uma histria de morekwat que deve ser reconhecida por um contingente de pessoas dentro e fora da aldeia. Quando os Aweti decidiram que seu chefe de branco no estava atuando a contento, por exemplo, sua primeira iniciativa foi voltada para fora: organizou-se uma comitiva que apareceu numa reunio do sistema de sade com demais chefes locais para comunicar ali em pblico, e para surpresa do ento deposto, tambm presente, que no mais o reconheciam como seu representante. Quando cheguei aldeia, estes dois homens compartilhavam havia cerca de dez anos a chefia alde: um havia seu pai recm-falecido, o outro fora oficialmente convidado pelos Aweti quando residia em outro grupo local. O primeiro, s vezes referido como moaza emorekwat, chefe das pessoas/ns/xinguanos, ou morekwat ytoto, chefe de verdade, seria o responsvel por cuidar das tradies - estimular a realizao de rituais, falar no centro, aconselhar os jovens, estimular o cuidado com os espaos pblicos -, enquanto o outro era chamado simplesmente de morekwat ou ento de karaiwa emorekwat , o chefe dos brancos, sendo responsvel pela representao da aldeia nas reunies sobre o atendimento de sade local e por receber pessoas como eu, negociando o que poderamos dar ao grupo em troca do que fosse aprendido ali. Desde que comecei a conviver com os Aweti, as relaes entre esses dois homens passaram de cordiais a extremamente speras, voltando depois cordialidade, por vezes chegando ao desprezo. Oscilavam entre reconhecer-se mutuamente como o outro chefe e acusar-se mutuamente: ele no morekwat de nada, ou ele no morekwat, s cuida do branco. Acusaes desse gnero remetiam sempre s geraes passadas: o pai dele nunca foi
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chefe, ele roubou esse nome [de chefe] do meu pai. Assumindo, pelo que sabia atravs da literatura, que a categoria no se restringia aos dois homens que me foram de sada indicados como chefes, uma das primeiras coisa que fiz na aldeia Aweti foi perguntar quem ali era morekwat. Todas as pessoas com quem falei apontavam de casa em casa, afirmando l tem morekwat. O homem apontado por todos como filho de um grande morekwat, j falecido, uma das pessoas mais discretas da aldeia, para no dizer um ermito, que raramente opina nas discusses polticas na praa central. Quando perguntei a algum porque aquele homem no tornara-se efetivamente um lder, responderam-me que era por ser muito baixinho, pois seu pai morrera durante sua infncia e no cuidara da sua formao. Voltarei a isso adiante. Idealmente um morekwat que assume uma posio de liderana o filho primognito de um morekwat morto ou aposentado. Trata-se de uma condio herdada, em suma. Um homem pode tambm ser morekwat por parte do av materno e ser bastante significativo se ele tiver herdado o nome deste av (ver abaixo). Uma dificuldade, contudo, consiste em determinar no apenas quem , mas sobretudo quem foi morekwat, pois o estatuto dos mortos tambm est em discusso. Aquele grande morekwat que morreu cedo deixando o filho sem cuidados era um chefe representativo dos Aweti, um dono de aldeia, tam itat. Essa posio normalmente deveria ser ocupada pelo homem que iniciou uma aldeia, aquele que tomou a iniciativa de limpar o terreno, que reuniu familiares ao seu redor. Ao tam itat caberia tambm a prerrogativa genericamente associada aos morekwat: aconselhar o grupo desde o centro. Raramente no entanto observei os Aweti usando a expresso tam itat, a no ser para criticar um homem pelo que deixou de fazer: no sei porque ele age assim, ele deveria ser tam itat.... Se morekwat designa um tipo de gente, uma nobreza, isso no pode ser desvinculado das
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atividades e atitudes que se espera de um morekwat na condio de representante de uma unidade grupal. Para tornar-se morekwat preciso j ser um pouco morekwat, estar conectado histria de outros morekwat, mas ser morekwat no significa tanto sem a perspectiva do tornar-se morekwat, atuar como lder. Ao menos num grupo local to pequeno como a aldeia Aweti, com apenas oito homens adultos ativos politicamente, no faz grande diferena o estatuto dos chefes de famlia no que diz respeito ao peso de suas opinies nas decises grupais. Cada um representa uma parcela igualmente significativa da populao total da aldeia. Se raramente mobilizam, atualmente ao menos, a noo de tam itat, os Aweti tambm dificilmente utilizam o termo morekwat para se referir a uma pessoa a no ser que se esteja falando de uma atividade que ela desempenha, ou que se espera dela. Ou seja, pouco importa na vida diria se um sujeito morekwat, no sentido de um descendente de morekwat, ou no . Fora do contexto politico, uma pessoa pode ser dita morekwat quando se deseja elogiar sua conduta. O que por sua vez torna a pessoa mais apta a angariar apoio e liderar atividades coletivas, como uma pescaria ou um ritual. Apesar da nfase nativa na hereditariedade da chefia, no necessrio assumir que o status de morekwat, uma condio dada pela histria de um sujeito, esteja relacionado a questes de substncia. Quando se fala em ser ou no ser morekwat, no h discursos sobre sangue, ou ossos, mas sim sobre comportamento, histria e, muito comumente, nomes - que no entanto so objeto de comrcio, roubo e questionamentos, como veremos adiante. O que talvez faa um filho de morekwat estar mais prximo de ser morekwat - lder, exemplo de moralidade, sbio do que os demais seja o fato de ter sido criado como tal, educado, feito: moaktu. Da que o filho daquele grande morekwat do passado no pde ser ele mesmo morekwat de verdade: como seu pai morreu cedo, no teve tempo de educ-lo, aconselh-lo, investir na formao de seu corpo e seu intelecto. No creio que a melhor formulao deste processo, pois, seja dizer que o estatuto
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de morekwat confirmado ao longo da vida de um sujeito, como afirma Barcelos Neto (2004), em consonncia com a tese de Heckenberger (2005) sobre a existncia de uma economia simblica em prol da manuteno e estabilizao de linhagens agnticas no poder. O homem irrascvel que investido como morekwat para tornar-se um homem moral parece ser o caso limite de todo morekwat: a posio de liderana assumida no reflexo de uma realidade que a antecede, mas cria ela mesma uma nova realidade obrigando o sujeito a agir moralmente. Lembremos que um homem feito chefe segundo a explicao que recebi quando a comunidade faz para ele uma casa de chefe. Um menino que passou pela cerimnia de furao de orelhas (japipyj) e foi mais tarde tatuado o objeto de um investimento de sua famlia e de toda a comunidade designado morekwat mimoege put121, feito morekwat. H tambm um ritual, em que o (futuro) morekwat conduzido ao centro por um homem da comunidade e deve sentarse, idealmente, num banco de chefe banco zoomorfo geralmente representando o urubu de duas cabeas, dono do cu, outro objeto distintivo importante da liderana xinguana (hoje raro entre os Aweti)122. Casas de chefe so maiores do que as comuns e possuem frisos decorados com motivos grficos ao longo de todo seu dimetro interno; elas condensam assim o investimento do grupo na constituio da pessoa do chefe e espelham, idealmente, o prprio corpo do chefe, que deve ser mais belo e forte que o dos demais, pois idealmente seguiu mais rigidamente o regime de recluso pubertria (cf. Viveiros de Castro 1977). Quanto a este ltimo aspecto, porm, notava o morekwat aweti: eu no sou como fulano ou sicrano [chefes de outras aldeias xinguanas], eu
Mimoege put: mi- nominalizador de objeto; moege, fazer; put, indica completude da ao, feito. Ver relato recolhido por Coelho de Souza: Nessa poca morreu nosso av Awajatu. Trouxeram o substituto para ser chefe. O chefe ficou naquele lugar Awarari Pyyta. L ficou Maits (2000, 366) note-se que na h nenhuma meno sobre a relao de parentesco entre o grande chefe Awajatu e seu substituto, uma mulher. O relato continua: Acabaram os chefes antigos e no lugar deles entraram os avs de vocs. Ento indicaram aquele que era o pai do Mowewe (). Indicaram [tambm] meu pai. (idem, 367, grifos meus) note-se que virar chefe uma questo de ser indicado. A autora trabalhou com um tradutor Aweti sobre uma gravao; suspeito que o verbo aqui traduzido como indicar seria-jung, colocar ou apontar (tambm se diz de uma acuso de feitiaria, por exemplo).
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no fiquei recluso, no fui aconselhado pelo meu pai, no fui campeo de luta, eu sou baixinho, fraquinho. No entanto, este homem fora escolhido para ser o principal chefe representativo do grupo. Seu discurso poderia ser interpretado como um dos tpicos discursos auto-derrogatrios xinguanos, mas o homem em questo realmente fora criado longe da famlia, entre os brancos, e no possui o porte imponente de outros lderes da regio. Em alguma medida, a magnitude da casa espelhava e tornava visvel uma potncia outra, seu conhecimento sobre o mundo branco. Ainda assim, esse homem o caso prototpico de um homem que foi feito pela comunidade, antes que pelo prprio pai. A condio de morekwat est mais relacionada a conhecimento e potncia adquiridos do que com propriedades internas transmitidas. Antes de dispensar esta ltima idia, porm, preciso considerar um elemento importante do discurso nativo e etnolgico - sobre a chefia. Um ponto sempre enfatizado na literatura que o status de chefe transmitido apenas ou principalmente ao filho mais velho, cujos irmos mais novos seriam menos ou pouco chefes, segundo um esquema gradativo (cf. Becker 1969; Heckenberger 2005). preciso notar que consideraes sobre o gradiente maior ou menor de chefia parecem ser relevantes somente no contexto de transmisso de uma posio de representatividade: ou seja, se estamos falando de um morekwat que de fato um lder atuante, o primognito quem naturalmente deveria suced-lo. Isso nem sempre se passa, como observou Viveiros de Castro entre os Yawalapit (comunicao pessoal), a respeito de um segundo filho que sucedeu seu pai na liderana, assumindo, por questes de personalidade, o lugar que esperaramos ser de seu irmo mais velho. Como se viu, apenas por ocasio do nascimento do primeiro filho o pai observa um regime alimentar bastante rgido, enquanto a me deve obedecer s mesmas restries a cada novo perodo ps-parto. No entanto esse regime especfico tem mais a ver com a preservao da sade do prprio genitor;
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medidas profilticas em prol da sade da criana deveriam ser observadas para qualquer filho, o que mostra que a conexo com o genitor no enfraquece no que diz respeito ao compartilhamento de substncia ou possibilidade de influncia de pai para a filho. Por que ento o primognito teria prerrogativa na sucesso, ainda que esta no seja obrigatria? Minha hiptese que essa transmisso est ligada ao investimento no processo de fazer, moak, uma criana. Minha me aweti sempre comentava que apenas sua filha mais velha tinha passado pela recluso pubertria de maneira adequada, por um perodo longo o suficiente e realizando os procedimentos necessrios para ganhar corpo; com as demais meninas ela e seu marido haviam relaxado demais. Deve-se considerar a possibilidade de que os pais invistam mais no primeiro filho porque este predestinado a suced-los. Mas, insisto, a possibilidade de que um sobrinho ou filho mais novo de um chefe se destaque pelo comportamento e tome o lugar do primognito fato abundantamente registrado na literatura (ver tambm Mello para casos recentes entre os Wauja) e a ausncia de discursos referentes qualquer substncia nobre, indicam que talvez a transmisso de matria no seja o principal. Consideremos tambm o caso de um mopat aweti, atualmente o mais respeitado da aldeia. Ele e todos os atuais xams de seu grupo local foram iniciados pelo mesmo homem, seu pai. Este mopat foi o nico entre seus contemporneos de iniciao a aprender os cantos de chamar a alma (t junku), bem como diversas rezas curativas (kewere) e histrias (tomowkap). Se todos puderam aprender os procedimentos xamnicos bsicos, portanto, o fato de ser filho do iniciador lhe facilitou o acesso a certos conhecimentos especializados. No porque o pai negasse este saber aos demais, pois um homem deve manifestar desejo de aprender antes de tudo, e se os outros no aprenderam mais porque no o quiseram. Mas talvez a prpria curiosidade manifestada naquele momento, seu desejo de saber mais do que os outros, fosse resultado da convivncia com um pai
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exemplar. Esse tipo de curiosidade em relao ao aprendizado tambm o que se espera de um filho de morekwat: Ningum est aprendendo essas histrias, elas vo se perder. Meu filho no veio me pedir para ensin-lo, comentava comigo um dos morekwat representantes da aldeia. Parece-me, enfim, que a hereditariedade da condio de morekwat remete a um processo de transmisso de conhecimentos, que so a base da formao moral e fsica da pessoa. Na medida em que os pais so responsveis pela criao dos filhos, um filho de morekwat ser objeto de investimentos mais profundos, pois os pais foram eles mesmos objetos de tais investimentos. Se de fato linhagens tendem a se formar, portanto, a inexistncia de teorias explcitas quanto transmisso linear de substncia, potncia ou propriedades intrnsecas faz com que o fator hereditrio tenha uma influncia limitada. O que muito importante, ainda, que no existe consenso quanto ao saber: o problema de reconhecer quem e quem no morekwat, ou quem tem o direito de s-lo, correlato ao problema de determinar a verdadeira verso de uma histria (ver cap. 6), e portanto a extenso do conhecimento que fundamenta a posio de um homem na liderana. No avano com isso muito em relao ao que j foi dito a respeito da chefia no Alto Xingu, um tema importante das etnografias de Becker (1969, 1973), Heckenberger (2000, 2005) e Barcelos Neto (2004, 2009), autores que chamam ateno para o fato da liderana indgena ali estar fundada na associao entre direito herdado e potncia ou prestgio conquistado por outros meios123. Se h alguma novidade na presente descrio, esta parece-me estar contida na idia de que chefes so (ou podem ser) feitos a partir de anti-chefes, e na associao entre fazer um chefe e criar um filho ou animal de estimao. Enquanto algumas pessoas tornam-se chefes por serem
Tais como o acmulo de saberes e funes rituais, em Becker; a transformao da potncia patognica dos espritos em potncia socialmente produtiva, em Barcelos Neto; e o acmulo de insgnias distintivas, em Heckenberger.
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j um pouco chefes tendo sido criadas para tal, ou por se comportarem como tal, exemplarmente vemos que outras podem tornar-se chefes representativos pelo motivo oposto, por no serem nem um pouco chefes no que concerne sua personalidade. Em outras palavras: ao desempenhar as funes de um chefe a pessoa torna-se chefe. Outro ponto que me parece fundamental na descrio que os aweti me deram deste processo, sua percepo sobre a dependncia do lder em relao comunidade. Nos tempos dos avs dos aweti atuais, dizem estes, as tatuagens eram poderosas insgnias de chefia, possudas apenas por algumas poucas pessoas que, por estarem deste modo marcadas, ocupavam funes de representao do grupo. Apenas a filha mais velha de um chefe ocupava, ento, a posio de kuj morekwat, chefa, sendo por isso obrigada a receber os visitantes de outras aldeias. A tatuagem teria ento o peso que a construo de uma casa tem hoje, fazendo de algum morekwat ao design-lo a uma posio de representatividade. Hoje em dia, reclamam os Aweti, todo mundo quer se tatuar, e a tatuagem com isso perdeu sua efetividade sociolgica. No primeiro captulo comentei um episdio da saga de Tanumakalu, a me dos gmeos Sol e Lua, em que esta reconhece uma humanidade originria atravs de tatuagens invisveis aos jaguares, que tomam homens por porcos. No tempo do mito, portanto, a condio do humano era equivalente condio de morekwat hoje, donde se poderia inferir a existncia de uma continuidade genealgica entre tais ancestrais e os chefes atuais. Que as linhagens nobres tenham uma conexo especial com ancestrais mticos , note-se, o argumento de Oberg (1953), mais tarde adotado por Heckenberger (2005), para descrever o Alto Xingu como uma chefatura teocrtica, diferenciando-o de outras sociedades tribais amaznicas onde a diferenciao
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hierrquica estaria ausente124. O fato que no existe, at onde tenho notcia, um discurso sobre a conexo genealgica entre a humanidade original e os morekwat de hoje. Note-se que h questes diversas em jogo nessa discusso: primeiro a existncia de distines hierrquicas na sociedade xinguana; segundo, a associao entre tais distines e linhagens; e, por fim, o significado de tais distines. A existncia de casas, bancos e tatuagens de morekwat evidencia que algum tipo de distino existe, mas no implica em si mesma sua associao com linhagens, cuja existncia, ademais, altamente questionvel (veja-se as descries de Galvo, 1953, e Becker, 1969 sobre o carter aberto, flexvel, das conexes de parentesco entre os Kamayur e os Kalapalo, respectivamente). Parece-me que a discusso passa um pouco ao largo, acima de tudo, para o que faz um chefe xinguano - a natureza e a extenso de seu poder. Abaixo retorno descrio de como sua atividade representativa, e seu papel de cuidador/provedor, contra-produzem uma diferenciao entre um chefe e o grupo que ele representa, limitando drasticamente sua agentividade. Falei j sobre o homem reconhecido por todos como o filho de um grande chefe. O filho deste homem, neto que recebeu o nome de seu av morekwat, tampouco se um chefe representativo dos Aweti, nem reconhecido ou reclama para si o status de morekwat, sendo contudo um chefe de famlia bastante participativo na vida poltica alde. Foi ele um dos principais responsveis pela indicao de um novo morekwat posio de chefe dos brancos, caraiwa emorekwat, na dcada de 90 poca em que os Aweti contavam apenas com um morekwat que mal falava portugus, e desejavam algum que os ajudasse na mediao com o mundo branco. Foi este homem tambm quem liderou a construo da casa do chefe novo, e
Cf. Sahlins (1968) para uma descrio sinttica dessas categorias, dentro de um quadro evolucionista. Em minha dissertao (Figueiredo 2006) descrevo em maior detalhe os termos da discusso sobre a poltica xinguana, e desenvolvo um argumento muito similar ao apresentado aqui.
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quem o conduziu pela mo at o centro da aldeia, onde se oficializou sua nova posio. Quando crticas ao novo morekwat comearam a se acumular, aquele mesmo homem que o havia conduzido ao centro passou a se sentir especialmente obrigado a remov-lo da liderana, apesar de muitas vezes os Aweti terem enfatizado para mim que os ndios no so como os brancos, que ficam trocando de chefe a toda hora. Waraju emorekwat an opoogyka, o chefe do ndio no abandona sua posio, diziam-me, e deve ser sucedido por seu filho. Fui eu que o coloquei morekwat, sou eu que tenho que tir-lo, dizia-me aquele homem, no entanto. Dele homem nunca ouvi falar, efetivamente, morekwat, mas apenas, neto de um morekwat de verdade. Neto de um grande chefe, sem nunca ter sido chefe ele mesmo, um fazedor e desfazedor de chefes.
4.2Umhomemforte
Retorno agora histria do falecido aweti, tupiat itat, que queimara a palma da mo nkywa atyzaman, para fortalecer seus braos. Com o mesmo objetivo, os feiticeiros tambm costumam colocar formigas tocandira (tapia) sob as unhas das mos, sob as axilas e atrs das orelhas. Fortalecer a traduo para o portugus nativa - tem uma conotao puramente relacional neste caso, pois o brao do feiticeiro no forte em si, e sim forte para provocar dor nos outros: a raiz empregada no angta, duro, forte, mas aty, dor, de modo que atyzaman poderia tambm ser traduzido por para tornar doloroso. Estamos diante do mesmo princpio que orienta o feitio de vingana, no qual todas as restries de atitude e alimentares so destinadas a fortalecer o malefcio, seja acrescentando a ele dor pelo uso da lenha espinhenta, por exemplo, seja evitando promover alvio ao feiticeiro. Ora, o contra-feitio apenas uma modalidade de feitio, e o que vale para um vlido tambm para o outro. Os braos
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e as mos que amarram ou lanam um feitio tambm transmitem maior ou menor potncia agressiva vtima. A dor que o feiticeiro sofre ao ser picado pela tocandira, uma formiga altamente venenosa, ou ao ter a palma de sua mo queimada, ser posteriormente transmitida sua vtima, pois ficar contida em seu brao. Mais do que isso, dizem os Aweti, preciso ter braos fortes, dolorosos, para conseguir projetar o feitio eficazmente contra a vtima. Tais procedimentos remetem ao que passa ao mopat: ambos feiticero e xam devem suportar a dor da introjeo de elementos exgenos para constituir corpos potentes lembremos que no caso do mopat no apenas so introduzidas flechas de kat respomsveis por provocar terrveis dores, mas tambm a atualizao da relao entre o mopat e seu mopat est condicionada ingesto de doses macias de fumaa de tabaco, outra fonte de grande sofrimento. Assim como o xam, tambm, o feiticeiro tambm no pode comer doces ou ter relaes sexuais. No pude precisar se o problema neste caso so as possveis conseqncias para o feiticeiro caso algum dos seres que lhe atribuem potncia seja ofendido e resolva vingar-se ou o fato dessas substncias amenizarem a dor provocada pelo feitio, como ocorre na feitiaria de vingana o que me parece mais provvel. O fato da seiva da copaba ser usada tanto na pintura corporal masculina quanto no contra-feitio (com ela se encera os fios de palha que amarram o cabelo do defunto) e na fabricao do corpo do feiticeiro parece-me relevante. Os homens pintam-se em ocasies rituais, para lutar e danar. Preparando-se para um kwarup, antes de sair de sua aldeia, eles se renem em pequenos grupos, pintando-se uns aos outros com jenipapo, em padres geomtricos, dentro de um permetro delimitado que desce pelo pescoo, ocupa parete das costas, do peito e as pernas. Essa pintura, em seguida, coberta por uma segunda camada de cinza branca ou fuligem preta, sobre a qual se pintam por fim em tinta vermelha de urucum misturado ao leo de pequi e seiva
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de copaiba - como se a delicada pintura em jenipapo marcasse um corpo em seguida coberto por uma nova ornamentao, muito mais brilhante, colorida e chamativa. Os grupos de convidados do kwarup dormem uma noite acampados junto aldeia anfitri da festa. s quatro da manh os homens comeam a se pintar especialmente para a luta towaapitu que ter lugar na praa central ao amanhacer. Neste momento, geralmente so feitas ou refeitas as pinturas com muito leo de pequi, que far a mo do adversrio escorregar, e fuligem, para enegrecer o corpo e assustar o adversrio, ou com cinza. Podemos aqui lembrar da anlise de Gell (1998) a partir das observaes de Malinowski sobre as canoas dos participantes do kula nas ilhas Trobriand: quanto mais elaboradamente ornamentadas mais elas atestam as capacidades daqueles que se aproximam, mais os anfitries so influenciados a trocar seus objetos; a habilidade artstica que evidenciam so ndices da agncia dos participantes do kula, nos termos de Gell, e tornam-se efetivas medida em que a percepo dessa potncia pelos outros suscita neles reaes determinadas. O mesmo pode ser dito, me parece, acerca das pinturas corporais nos encontros intergrupais no Alto Xingu. Os campes sempre se apresentam magnificamente ornamentados, com os motivos mais criativos, mais elaborados e o corpo mais brilhante de leo que os demais. Essa beleza atesta sua fora, o investimento que foi feito da constituio de seu corpo, as capacidades artsticas daqueles que o prepararam, a continua ligao que o grupo mantm com as tradies por continuar produzindo as tintas de urucum e genipapo, por plantar pequi e produzir leo em abundncia, por continuar estimulando os jovens serem firmes na recluso. Tudo isso est inscrito no corpo do lutador e , no s uma imagem de sua potncia, como tambm um elemento constituinte dela, um dado a seu favor na relao com o adversrio. Sabemos tambm que ao menos algumas das substncia empregadas tem propriedades
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aumentativas em si, como o urucum. possvel que a seiva de copaba tenha propriedades similares. No caso da ornamentao corporal, seu uso envolve a produo de padres geomtricos que reproduzem a pele de alguns animais, sobretudo, como j disse, a jibia125 (moj ting watu) e a ona (tawat) alm de uma padro denomidado kwarup, usado na decorao das efgies dos mortos na festa. Ambos, jibia e jaguar, so morekwat em seus respectivos reinos, donde o interesse de sua associao ao corpo do campeo de luta, posio ocupada pelos jovens chefes, idealmente. O uso da seiva de copaiba, indispensvel nas pinturas masculinas, parece ser um importante veculo de tal associao. Isso me conduz de volta quela conversa sobre o falecido aweti cuja foto fora mostrada por seu filho Matipu, e nos enderea a uma questo central das descries etnogrficas sobre a feitiaria no Alto Xingu. Quando perguntei porque o aweti havia queimado a prpria mo com seiva de copaba e responderam-me que, obviamente, era por ser feiticeiro, e uma velha fez uma segunda observao, a respeito da sua fora descomunal. Tetjatu zanu oup, ipontang junkuwo, ele tambm se tornou um campeo de luta [lit. um homem forte], por ter usado remdios [razes para se tornar forte]. Ora, esse feiticeiro no se parece em nada a um marginal, fraco, desviante homem do quintal, nem tampouco se ope ao chefe-campeo de luta, homem da praa imagem que nos do por exemplo Gregor (1977) e Viveiros de Castro (1977). Se possvel pensar em um chefe que, longe de corresponder ao ideal fsico e moral de pessoa tornado chefe graas deciso de investimento do grupo sobre si, vemos agora que um feiticeiro pode corresponder parcialmente ao ideal de pessoa que situa um homem em posio de liderana num
Respeitada por suas dimenses, a jibia talvez condense qualidades estticas, como indica uma verso Wauja do mito de Warakuni (ver abaixo) recolhido por Barcelos Neto (2004), no qual o heri veste uma pele de jibia que contm todos os padres grficos existentes e usados nas pinturas corpoais e objetos inclusive mscaras - pelos xinguanos.
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grupo. H um episdio do mito de origens xinguano que diz respeito a um irmo mais novo de Tanumakalu, a mulher feita de pau pelo demirgo Wamutsini. Este irmo, chamado Warakuni, seduz a prpria irm, a caula dentre as irms de Tanumakalu, e por isso acaba sendo expulso da aldeia do av. Envergonhado pelo incesto, Warakuni veste-se com um roupa de jibia e sai pelo mundo em busca de uma esposa. A primeira mulher que encontra um kat que vive num lago cheio de outros kat prontos a devor-lo e, para no terminar morrendo, Warakuni obrigado deix-la. A segunda a filha do tapir, que ele abandona por considerar ignbil sua dieta: eles consomem fezes e gua como se fosse mingau de pequi. Warakuni chega ento aldeia do jaguar, onde encontra uma nova noiva. Para despos-la, contudo, ele precisa enfrentar os sogros o pai da jovem e todos os demais homens da aldeia lutando towaapitu. A filha do jaguar lhe orienta ento a no demonstrar nenhuma fraqueza, nem medo nem frio ao lutar pela madrugada, sob chuva, pois a nica maneira de no ser devorado pelos jaguares. Apesar de sobreviver prova, ele acaba deixando tambm a esposa jaguar, pois sabe que, como entre o povo da mulher kat, ser comido pelos afins mais cedo ou mais tarde Warakuni retorna por fim aldeia dos tapires, aceitando a sua estranha dieta para viver ao menos entre um povo pacfico. O heri quase cumpre, note-se, o mesmo destino de sua irm mais velha, Tanumakalu, a morte pelo afim jaguar. A histria d conta, sem apresentar uma soluo satisfatria, do problema da distncia ideal dos afins entre gente prxima demais como a irm, e distante demais como os jaguares canibais ou os monstros aquticos, Warakuni opta pelo menos pior, os bizarros tapires. Mas se a retomo aqui porque a histria apresenta a luta xinguana como um enfrentamento no qual a derrota pode significar a perda da vida. Essa luta se desenrola, ademais, no jogo das impresses mtuas dos adversrios demonstrar medo ser devorado, mostrar-se jaguar provoca medo. O que nos
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ajuda a entender a posio que os xinguanos desejam assumir frente a seus adversrios de luta, e a importncia das pinturas corporais na constituio das pessoas antes e durante o embate. No , pois, simplesmente um aumento corporal que o recluso almeja para se tornar campeo de luta, mas a apropriao de qualidades associadas predao lembremo-nos que ele recorre tambm gordura da sucuri, um temido predador da floresta. Do mesmo modo que uma menina criada com roupas de branco corre o risco de virar branca (ver cap. 3), o lutador tambm parece correr o risco de passar do ponto e virar, de adversrio esportista, inimigo predador. muito comum, de fato, que as lutas entre campees degenerem em acusaes de violncia e desonestidade de uma das partes. Vale lembrar tambm que o uso de rezas com o intuito de prejudicar o inimigo, tornando-o pesado ou frgil ao ataque recorrente (veja-se os cantos kanuw do Jawari registrados por Bastos 1989) ao mesmo tempo em que visto com maus olhos. Ora, a luta, como elemento imprescindvel de fechamento de todos os rituais intercomunitrios, um dos principais smbolos do pacifismo xinguano - a moral anti-guerreira que, para os xinguanos, os define como xinguanos, em oposio aos ndios, waraju e at aos brancos. Branco mata mulher por cime - sempre comentavam comigo - ndio no mata, s bate. Acusaes de extrema violncia conjugal, contudo, so comuns (ver cap. 5). Relevante aqui o fato de de, a despeito do que se pensa ser o ideal, e da diferena que eventualmente os Aweti apontam entre si e outros a quem vem s vezes como brbaros, a violncia sempre pensvel e mesmo esperada, inclusive ou sobretudo nos pontos mais centrais da moralidade xinguana. A chefia, por exemplo. Um corpo de campeo e luta no apenas resultado do trabalho rduo de seus pais que se sacrificaram trazendo-lhe ervas especiais, produzindo adornos corporais para ele etc. mas tambm resultado da deciso de um jovem em tornar-se campeo. Comentei acima sobre os
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rapazes que temem fazer uso de certas ervas medicinais durante a recluso. Alm de coragem, preciso tambm ter uma grande fora de vontade para agentar a abstinncia sexual pois, mesmo sem fazer uso das ervas, quanto mais tarde a iniciao amorosa mais a pessoa pode crescer. Alm disso, um recluso que, mesmo sem usar remdios com dono, tem muitas experincias sexuais durante o perodo de recluso, simplesmente no consegue engordar, ficar eternamente magro. Tornar-se campeo e, mais tarde, chefe, no apenas uma questo de corpo, mas tambm uma questo de pensamento. Melhor dizendo, no existe um corpo sem um pensamento sobre o corpo. A noo aplicvel neste caso, kaakwawapu (a que chamei de conscincia, acima), diz respeito ao domnio da maneira certa de agir em relao a outros sujeitos. Sem kaakwawapu uma pessoa age no necessariamente errnea ou desonestamente, mas sobretudo ilogicamente, sem ponderao, sem ateno ao perigo o que faz um beb, por exemplo. O termo possui a mesma raiz de conhecer, -kwawap, o que nos leva a pensar que agir corretamente implica possuir certos conhecimentos. Voltarei a isso no captulo 6.
4.3Peledejaguar
Ao comentar brevemente as funes de alguns ornamentos corporais, como a pintura de urucum, os cintos, e o uluri, no disse que os chefes podem possuir alguns adereos distintivos, alm de usar pinturas faciais distintivas. Ao lado dos olhos, os morekwat, e seus descendentes, podem utilizar um padro denominado muzak etakwaraw, o desenho facial da harpia, pois este um dos morekwat dos pssaros. Quanto aos adornos, h o cinto de pele de jaguar (tawat piput, lit. pele de jaguar) e o colar de unhas de jaguar. Compare-se o chefe assim ornamentado ao
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feiticeiro, que possui uma roupa de jaguar (tawat epit) domesticada (nepuzazan, como seu animal de estimao). Ao contrrio dos adereos de jaguar, ex-partes de um jaguar morto que atestam a coragem e astcia de seu matador, a roupa de jaguar um ente vivo, kat, que, como todo ente domesticado, pode fugir ao controle. Alm disso, os adereos do chefe existem somente para serem usados publicamente nas ocasies rituais e tm o efeito, similar ao suscitado pelas pinturas corporais dos lutadores, de provocar o reconhecimento alheio quanto potncia extraordinria de quem o veste. Os adornos distintivos do chefe, com isso, so entendidos como insgnias de um poder previamente constitudo, ainda que, como todos os adornos, eles sejam imprescindveis para a constituio contnua de um corpo/potncia de morekwat. A roupa de jaguar, por sua vez, s pode ser vestida na floresta, de noite, longe da vista dos demais. Sua funo fazer a noite virar dia, o longe virar perto, o alheio virar prprio (ver cap. 3). Enquanto a roupa de jaguar inverte a ordem das coisas, em suma, os adornos de jaguar s podem ser usados sem ridculo como confirmao de uma posio j reconhecida. J ouvi, por exemplo, alguns aweti conversando com amigos mehinaku, no posto Leonardo, sobre algum que estava tentando vender um colar de unha de jaguar. Todos riam lembrando que fulano, que no era ningum, gostava de usar tais adornos em sua aldeia126. Tupiat itat e morekwat se constituem a partir de apreenses bastante diferentes da jaguaridade. Podemos imaginar que o chefe metaforicamente jaguar em sua condio anloga de super potncia em relao a seus congneres, enquanto o feiticeiro, ainda que temporariamente, jaguar, na medida em que a roupa produz nele um afeto de jaguar, que o far ter desejo de consumir carne humana, por exemplo. O feiticeiro ainda se identifica ao jaguar pelo
Muito provavelmente fulano no era ningum do ponto de vista deste conjunto especfico Aweti-Mehinaku, e se usava adornos de jaguar algum devia reconhecer a legitimidade de tal ato.
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que este tem de diferente em relao ao humano agressivo em lugar de moral, predador em lugar de parente. Mas os Aweti nem sempre dissociam a condio de morekwat de expresses de agressividade. O chefe, alm de ser um aconselhador, um sbio, pode ser tambm um homem que fala duro (tangta otiing). Nas reunies intercomunitrias sobre o atendimento de sade no Alto Xingu, a maioria dos chefes de aldeias mantm um tom moderado, seno tmido, para referir-se aos problemas que seus grupos enfrentam, ou para solicitar equipamentos s autoridades. Alguns lderes, contudo, entre eles uma mulher, irm do chefe de branco Kamayur, so reconhecidos por falar duro, muitas vezes exaltados, distinguindo-se dos demais e seus discursos diplomticos. Apesar da diplomacia e da mediao constiturem o cerne da chefia xinguana, discursos inflamados tambm so bastante apreciados, a ponto do chefe aweti ter sido escolhido para ser vice-presidente da organizao indgena que controla o atendimento de sade local por sua agressividade como orador este foi, ao menos, o modo como interpretou sua eleio para o posto. Falar duro tambm o antdoto de um homem de bem contra um feiticeiro, e nesse sentido um atributo importante do homem moral. Ele deve ficar bravo e discursar, no centro, ameaando aqueles que esto fazendo mal sua famlia. Assim como o campeo de luta, o chefe representativo (comparvel ao pai representando seu grupo familiar, no contexto intra-aldeo) incorpora uma dubiedade: na condio de meio e smbolo das relaes pacficas que cada grupo local estabelece fora, ele necessita de certa agressividade. Sua associao, metonmica e metafrica, a certos morekwat no humanos reconhecidos como grandes predadores o jaguar, a sucuri, a harpia no seria, assim, aleatrio.
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4.4Acomunidadecontraodono
Durante quase todo o perodo de minha pesquisa, os Aweti manifestavam uma insatisfao bastante acentuada com relao a um de seus chefes, e muito do que ouvi sobre a chefia de foi dito num contexto de reclamaes contra este homem. Muitos aldees, por exemplo, reclamavam que o chefe deveria oferecer periodicamente comida para a comunidade no centro (pezu, compartilhamento de uma pescaria farta com o grupo), o que de seu ponto de vista no ocorria. O chefe, em cuja casa vivi boa parte do meu tempo em campo, comentava por sua vez que os moradores de uma aldeia deveriam oferecer sempre peixe ao morekwat quando voltassem de uma pescaria farta, e ressentia que isso nunca acontecia consigo. A generosidade esperada de um chefe requer dele uma grande produo de polvilho, donde um chefe deve ser um homem com [muita] roa, ikotu. A famlia do chefe aweti tinha de fato uma produo agrcola maior do que as demais, mas muitos comentavam que todo aquele polvilho seria vendido depois a vizinhos xinguanos que esgotassem suas provises ao longo da estao chuvosa, poca em que as roas de mandioca antigas j foram colhidas, e as novas ainda no esto prontas. A produo do chefe tinha fins acumulativos, e no distributivos, criticavam alguns. Contudo, o problema mais grave, do ponto de vista de muitas pessoas, era a tendncia do chefe de acumulao e centralizao dos bens de branco, aos quais ele tinha sempre acesso mais fcil, dada sua condio de representante do grupo. Pela posio que ocupava, o chefe era o responsvel pelos dons vindos de fora destinados comunidade - uma palavra que os Aweti usam em portugus. Enquanto o chefe esperava receber dos aldeos demonstraes de reconhecimento sua posio, estes sentiam-se quase sempre lesados em relao redistribuio de bens de branco, o que os levava a no se
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mostrarem, por seu lado, generosos. Dentre os bens cujo controle era ressentido pelos demais, posso citar: uma caminhonete oferecida em troca de uma pesquisa acadmica, uma caminhonete da sade (conseguidas junto ONG que organiza o atendimento na rea), dois barcos com motor de popa da sade, um gerador usado no atendimento de sade e tambm para ligar televises e aparelhos de som, gasolina para o motor de popa usado no atendimento de sade. Havia ainda muitas reclamaes quanto ao fato dos dois filhos do chefe terem sido indicados para os dois nicos cargos assalariados na aldeia, o de agente indgena de sade e o de tcnico da caixa dgua, alm de serem os nicos motoristas de barco e das caminhonetes. O termo comunidade127 mobilizado sobretudo para designar as coisas da comunidade, bens conseguidos em nome da comunidade (comunidade eapepe, lit. nas costas da comunidade), que provm do mundo branco em determinadas condies, portanto128. A noo de bem pblico, contudo, no aplicvel em nenhum outro contexto, nem mesmo em relao aos espaos pblicos, como os caminhos e a praa central. Tudo tem o seu dono, itat, a pessoa que por causas histricas ou por vontade prpria zela por uma coisa, sendo em geral tambm um pouco ciumenta desta. Na beira do rio Tsuepelu, onde os Aweti se banham, por exemplo, h sempre duas ou trs canoas de tronco escavado estacionadas, que so usadas em rodzio por todos os moradores quando se vai pescar daqueles lados. Cada canoa tem seu dono, e para usar uma delas de bom tom consult-lo antes. Eventualmente, por causa de uma briga o dono pode impedir que determinadas pessoas usem sua canoa, ou pode tambm emprest-la para mais tarde reclamar do abuso de seus favores. Quanto aos pequizais tambm, no existe uma nica rvore
Um substituto possvel momatsaza: momati, todo mundo; sufixo coletivizador za. Uma coisa que propriedade da comunidade, comunidade eyp, tambm pode ser dita propriedade de todos, momatsaza eyp. tam, aldeia, designa apenas o lugar fsico que compreende o crculo de casas e a praa central. Nunca vi o termo temtampaza, os moradores da aldeia ser usado para designar o grupo nos contextos acima referidos; o termo mais usado para desiganr os moradores de outras aldeias. 128 Note-se que a sade o principal meio de afluxo de coisas do branco na aldeia Aweti.
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sem dono, nem que seja considerada dona, temporariamente, a pessoa que resolveu limpar determinado caminho que conduz ao pequizeiro naquela estao. Qualquer pessoa poder coletar frutos ali, mas espera-se que ela antes consulte ao dono, ou que inicie sua coleta apenas de tarde, pois os donos tm a prerrogativa da coleta matinal. Deveramos esperar que o sistema fosse mantido com relao aos bens de branco. Resultado de uma fala um pedido do chefe s autoridades frente s quais representa o grupo elas so uma realizao sua tanto quanto a canoa o daquele que a produz. Mas os Aweti nunca falavam de seu chefe como o itat da caminhonete ou dos motores de popa, e quando o termo itat aparecia era para indicar que houvera uma usurpao, o termo itat sendo aplicado com ironia. Essa percepo parece resultar da introduo de simultnea de uma nova espcie de bens e de uma nova viso de propriedade, onde o privado se ope ao comumitrio, enquanto no sistema indgena a razo de ser de um bem pessoal sua distribuio em de redes trocas e prestao mtua. Mas a concentrao de bens nas mos do chefe, ou a percepo geral de tal concentrao, no parece restringir-se aos Aweti, os quais comentam sempre que diversos, seno todos, os demais chefes xinguanos so criticados - cada um por seu pessoal - por serem ruins, ms pessoas, pois no distribuem devidamente aquilo que chega at eles em nome do grupo. Veja-se o que se passou nas eleies de 2008. Naquele ano, trs homens do Alto Xingu concorreram ao cargo de verador do municpio de Gacha do Norte, ao qual pertencem todas as aldeias localizadas ao longo do rio Curisevo e aquelas em torno do Posto Indgena Leonardo Villas-Boas. O ento chefe aweti era um deles, o filho de um chefe mehinaku, outro, e um rapaz yawalapit, sobrinho do chefe daquela aldeia, o terceiro. Os ndios representavam cerca de um tero dos eleitores do municpio, o que lhes garantia uma participao considervel no pleito. Apesar de muito ter sido falado sobre o peso
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que teriam os xinguanos na poltica municipal caso elegessem trs indgenas para a cmara de vereadores, apenas um dos candidatos do Alto Xingu foi eleito, o candidato mehinaku. Dois aspectos eram especialmente notveis nesse contexto: primeiro, no poucos eleitores indgenas votaram em candidatos no indgenas, entre os quais o mais popular foi um homem que alm de ser j vereador no municpio de Gacha do Norte, trabalhava como mecnico das aldeias no Posto Leonardo; segundo, os Aweti em momento algum cogitaram votar em seu ento chefe representante, e ainda afirmavam que, assim como eles, os Mehinaku no estavam votando no candidato mehinaku, enquanto os yawalapit e o pessoal do Posto Leonardo e Kamayur (locais muito prximos da aldeia Yawalapit) no votavam no candidato daquela aldeia. Tanto a votao em candidatos brancos quanto a rejeio dos candidatos locais eram-me explicadas da mesma maneira: o povo dele [qualquer um dos candidatos em questo] sabe que ele ruim. A impresso que tive a partir desta e outras histrias que escutei sobre chefes xinguanos que so via de regra percebidos como usurpadores de bens alheios, no apenas falhando em mostrar-se generosos como se apropriando- do que no lhes pertence. Resta notar que tais crticas so sempre parciais em dois sentidos: por serem s vezes compartilhadas apenas por uma parcela da populao, e sobretudo porque no eliminam a constatao, pelas mesmas pessoas que num momento criticam seu chefe, de que ele um homem bom, que no fica bravo, que ajuda o seu povo etc. Ainda que a profunda insatisfao dos Aweti em relao a um chefe que terminaram por expulsar da aldeia seja certamente um caso limite ndio no que nem branco, que fica trocando de chefe- ela coloca em relevo um fato aparentemente mais geral da vida poltica xinguana atual. Ao mesmo tempo em que idealmente sua pessoa condensa o grupo, representando a unidade Aweti, por efeito dessa prpria fuso o chefe levado a se opor comunidade, que
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tende a ressentir um desfalque entre coisas que um homem mobiliza atravs do grupo e aquilo que redistribui129. O aspecto mais patente dessa insatisfao est ligado ao fato de que o relacionamento com o mundo branco tende a ser monopolizado porque os brancos s querem tratar e reconhecer um chefe. Tal exclusividade concedida ao chefe contra-projeta uma comunidade qual ele se ope. Essa tendncia no exclui a possibilidade de haver melhores ou piores chefes, chefes mais ou menos bem sucedidos em fazer-se reconhecidos por sua bondade dentro da comunidade. O fato de que os Aweti esperavam no apenas gasolina, mas tambm peixe e beiju oferecidos no centro, mostra que os bens do branco certamente intensificam, mas no criam uma expetativa de generosidade que tende a opor um chefe (ou chefes) e seu grupo. A idia de uma comunidade detentora de bens comuns talvez seja o efeito dessa intensificao, que corresponde intensificao do poder do chefe enquanto monopolizador de relaes extremamente importantes para a vida da comunidade, as relaes com os brancos. De quanto mais coisas um homem seja dono, ou se comporte como dono, maior ser a expectativa sobre como ir compartilh-las, de modo que, a um aumento do poder, corresponde imediatamente um aumento do controle alheio. Diante desse contexto, podemos compreender porque os Aweti me diziam que antigamente e idealmente uma aldeia tinha quatro chefes, alm das kuj morekwat que aconselhavam as mulheres. Cada um desses chefes enfatizava um relato nativo - aconselhava a comunidade no centro a aldeia: falar a atividade que define um morekwat. Pelo que podemos inferir a partir da situao atual, todos esse chefes deveriam tambm ser convocados a representar
Gordon (2006: 266-7, 273) descreve com muito maior mincia do que fao aqui de que modo os chefes XikrinMebngrke, na condio de mediadores dos bens de branco, esto simultaneamente na posio de mostrar maior generosidade e sob alvo cosntante das crticas de falat de generosidade por parte da comunidade.
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o grupo local nos rituais interaldees. Se uma unidade representada em mltiplas imagens, a prpria noo de unidade fragmentada, e a potncia representativa de cada imagem reduzida. Aqui importante notar que qualquer figura de dono pode projetar por anttese um grupo cujas expectativas de acesso a um determinado bem so frustradas. Ao possuir uma canoa, um homem tm condioes de demonstrar sua generosidade, emprestando-a a quem necessite; mas s por possuir uma canoa que ele poder ser considerado sovina, ao no emprest-la, eventualmente. O mesmo se passa com os donos de rituais: muitas vezes j vi pessoas sendo criticadas por falharem em alimentar seus kat, por sovinice. E se os kat no so alimentados, ningum se alegra, no h festa. O chefe apenas um caso extremo de dono, mesmo que seja um dono ilegtimo do ponto de vista da comunidade. Associando a liderana ao acmulo de posies cerimoniais (como j apontara Basso 1969), Barcelos Neto (2004) inclui as relaes com os espritos, seja na condio de dono/patrocinador de ritual, seja na condio de cantor cerimonial, entre as relaes que definem a chefia como mediao entre o grupo e o exterior. Os donos de cantos e donos de rituais, como o chefe de branco, so captadores de potncia exterior em prol do grupo. Se no enfatizo este aspecto porque no observei tal relao em minha pesquisa, apesar de consider-la completamente plausvel para outros casos130. O chefe de branco dos Aweti era dono, poderamos dizer, da lngua do branco (falante fluente do portugus), motivo pelo qual fora escolhido para exercer a funo. Mesmo assim, como vimos, no se esperava dele nada de diferente do que se
Em quase todas as casas da pequena aldeia Aweti h um dono de ritual. H por exemplo uma jovem dona do Nop-Nop, porque este kat a fizera adoecer h muito tempo, que vive na aldeia de seu marido Trumai, e o ritual anualmente patrocinado por seu pai. Um jovem dono de tupi, as flautas que saem no kwarup, porque as recebera de sua me. Esta garantiu-me, contudo, que dono de tupi quem quer, pois este no um kat que ataca as pessoas (kajkyjtat eym, no do tipo que nos mata). Uma mulher e um dos chefes da aldeias so donos cada um de um conjunto de flautas takwara. Duas mulheres so donas de Jamurikum, sendo uma delas tambm dona de Akyky, Kwalowyt, Miu ty e alguns outros kat que h muito tempo no desistem dela.
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espera de qualquer chefe. Quando, pois, um nico chefe assume o papel de representante de um povo, a fora que sua imagem adquire para fora tende a voltar-se contra ele dentro. A experincia que tive entre os Aweti indica que, quanto mais centralizador um chefe, mais ser visto fora de seu grupo de parentes mais prximos como um possvel inimigo, avarento, ganancioso, fofoqueiro. Um chefe grande demais, em suma, se parece demasiado com um feiticeiro, o homem que deseja tudo para si, o super ladro, homem que usa uma fora extraordinria em benefcio prprio e contra aqueles com quem convive diariamente, homem que age, sobretudo, da forma contrria ao que se espera dele.
4.5Essenomenodareiameufilho
Disse que no de sangue, ossos ou carne que os Aweti falam quando tematizam a transmisso familiar do status de morekwat, mas de nomes, sempre transmitidos entre geraes alternadas pelas linhas materna e paterna. Um garoto receber portanto um nome de MF e outro de FF, enquanto a menina recebe os nomes de MM e FM. A pessoa que carrega o nome de um morekwat do passado, de qualquer um dos lados, carrega consigo uma evidncia de sua conexo genealgica com tal figura. Mais do que isso, o nome de alguma maneira carregado das qualidades daqueles que o portam, as quais podem ser transmitidas ao novo portador. Contandome os nomes que havia dado a seus filhos, um homem aweti certa vez explicou: No dei este nome a meu filho pois foi de um mokut etsat, a saber, um homem que morreu de contra-feitio, um feiticeiro (ver cap. 3). No se tratava, note-se de, um parente feiticeiro, mas de um parente
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cujo nome era o mesmo de um famoso feiticeiro aweti, protagonista de uma histria antiga. No estava em questo, pois, a conexo genealgica atestada pelo nome, mas as qualidades que ele poderia associar ao nomeado. Tais qualidades, sugiro, no so pensadas como transmisso de substncia ou de propriedades anmicas. Vejamos como isso se passa. Recebendo um nome de cada lado de sua famlia, toda pessoa xinguana deveria ter um par de nomes. Dada a proibio de pronunciar o nome dos afins, cada um dos pais de uma criana s pode chamar seu filho ou filha pelo nome do prprio pai ou me. Coerentemente, os parentes de cada lado costumam referir-se pessoa pelo nome de sua linha, enquanto irmos podem chamar uns aos outros por qualquer um de seus nomes. Pessoas menos prximas costumam conhecer apenas um dos nomes de algum, ou mesmo no conhecer nenhum de seus nomes verdadeiros (-et ytoto, os nomes herdados de ascendentes da segunda gerao), reconhecendo seus vizinhos apenas por um apelido (tejojtat, modo de chamar). Por vezes, mesmo parentes prximos, como irmos, no conhecem os nomes verdadeiros um do outro, apenas o apelido. Mas no seria o caso de dizer que os nomes verdadeiros se distingam dos apelidos por serem secretos ou apropriados para ocasies rituais, como se passa por exemplo entre os Tukano do Rio Negro (cf. Hugh-Jones 2006): a proibio de nomear os afins de estende a qualquer nome associado a uma pessoa, inclusive seus apelidos, e h por outro lado gente que no aceita ser chamado por um apelido, preferindo que pronunciem sempre seu nome familiar. Apelidos podem ter as origens mais variadas, e nesse grupo creio podermos incluir os nomes de branco, opondo-se aos nomes familiares herdados, reconhecidos como nomes reais, mais do que apenas modos de chamar. Nem todos tm apelidos ou nomes de brancos. Por vezes a ausncia de um nome familiar compensada pela presena de um apelido que pode ser ou no um nome de branco, ao passo que muitas pessoas tm apenas o nome indgena e nenhum
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apelido, enquanto outras tm apenas apelidos mas no nomes de branco. Mas se a ausncia de apelido no vista como um problema, o fato de uma pessoa no ter um nome herdado de cada lado da famlia sempre notado. Tet eymytu, sem nome, diz-se dessas pessoas, com um misto de humor e pena, mesmo quando falta-lhes apenas o nome de um dos lados, materno ou paterno. J vi tambm duas meninas xingando-se atravs do rdio amador - voc no tem nome - porque uma delas era conhecida apenas por seu nome de branco, apesar de ter um nome familiar. Apelidos podem ser dados por qualquer pessoa, sendo necessariamente recebidos, enquanto os nomes de branco so ora dados pelos pais ao tempo do nascimento do filho, muitas vezes compensando a falta de um nome familiar, ora escolhidos pela prpria pessoa em sua vida adulta. A transmisso familiar de nomes de branco parece ser uma possibilidade, mas no muito levada a srio, e seria impensvel a respeito dos apelidos. Disse que uma pessoa tem um par de nomes, mas isso s verdadeiro num dado instante de sua vida, ao longo da qual ela ter na verdade diversos pares de nomes familiares, advindos dos lados paterno e materno. Idealmente, a pessoa recebe um nome de seus avs ou avs em seus primeiros meses de vida, ou mesmo quando nasce, no havendo nem uma data determinada, nem um cerimnia especfica de nomeao. Estes nomes so designados tekyt eput, termo para o qual minha aposta de traduo seria seus nomes verdes131. A menina dever trocar seus nomes quando ficar menstruada. Logo aps a menarca, como vimos, ela entra numa dieta de restrio de peixe, morezowatu, submetendo-se durante este perodo ingesto regular de emticos. Passado um ms, na cerimnia de pylyukatu, em que novamente temperada com o cheiro do peixe a volta a consumir este alimento, ela recebe um novo nome de cada um de seus pais deste modo que agora devero lhe chamar, bem como todos da comunidade. Os nomes antigos so
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Tekyt eput: te, prefixo pronominal possessivo de terceira pessoa, -kyt, verde, -e(t), nome, put, -ex.
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abandonados (ti zyk, ns os jogamos fora) e se a pessoa for chamada por eles algo de ruim poder lhe acontecer ser picada por uma cobra ou sofrer outro tipo acidente no mato. Os meninos abandonam seus nomes infantis por ocasio da cerimnia da furao de orelhas (japipyj), tambm ao retomar o consumo de peixe aps o jejum que se segue furao propriamente dita. Como no entanto o patrocnio deste ritual bastante dispendioso para os pais tanto pelos altos pagamentos em bens de valor feitos quele que executa a furao, quando pela proviso de alimentos para a festa - muitas vezes os meninos tm suas orelhas furadas logo ao nascer, geralmente pelo prprio av, e neste caso no tero nomes infantis (verdes), podendo manter o nome recebido no nascimento at a idade adulta. O que nos diz algo no apenas sobre o sentido da mudana de nomes como sobre a correlao entre menstruao feminina e furao de orelhas masculina: o novo nome marca um novo estado corporal, que no , no caso dos meninos, atingido na recluso, mas apenas quando tm as orelhas furadas a relao foi explicitada pelos Mehinaku a Gregor (1985, 188). O morezowatu usado como controle sobre a tal transformao, o que se passa posteriormente na recluso masculina sendo apenas entendido como um processo e aumento, mas no de alterao j que neste momento os rapazes na trocam de nome. Chamar algum por um nome j abandonado seria o mesmo que no reconhecer sua nova condio corporal, negar-lhe uma transformao constituinte do ciclo de vida de todo humano. E no reconhecer o novo corpo de algum equivale a negar-lhe uma existncia humana, pois sofrer um acidente fora de casa uma verso amenizada da morte, um passo em direo transformao em kat. Quando uma criana vem ao mundo, seus pais ou seus avs a nomeiam. O av d seu nome ao menino, e logo fica sem nome para si, e precisar lembrar-se de um nome de av que esteja vago. Mesmo antes de nascer seu primeiro neto, um adulto pode decidir trocar seu nome,
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nemiamuju ytang, antecipando a chegada de seu neto. preciso portanto conhecer nomes para nomear seus descendentes: conhecer os nomes tidos por seus pais para nomear seus filhos, e os nomes tidos por seus avs, para tom-los para si quando os nomes prprios forem sendo dados a netos que nascem e crescem. frequente que uma criana nasa sem que haja nenhum nome familiar disponvel para si todos j foram dados a seus irmos e primos. Os velhos, por sua vez, tambm ficam sem nome, quando j usaram e transmitiram todos os de que puderam se lembrar. Velhos e crianas por isso freqentemente tm nomes inventados, nomes que no foram transmitidos ainda que por vezes tenham sido recebidos de parentes ou amigos que podem ser descritos como tejojtat, modos de chamar. Uma dupla de velhos aweti, por exemplo, ambos j desprovidos de nomes familiares, nomearam-se mutuamente: um deu ao outro o nome de Kaxinaw, um nome de ndio (waraju et) descoberto em alguma viagem cidade, explicou-me, enquanto recebeu do outro um nome da mitologia xinguana, Wyrakaty. Mas nunca vi um homem maduro sem nome familiar; se quando criana no pde ser nomeado segundo os avs, ao menos na juventude certamente algum nome j ter vagado para si, quando um de seus primos distantes tiver trocado o prprio nome por um motivo ou outro. Toda pessoa possui, assim, quanto aos nomes familiares, aqueles que lhe foram dados no nascimento, trocados ou no por nomes recebidos na adolescncia, e mais tarde os nomes normalmente no recebidos mas lembrados pela prpria pessoa dentre os que foram de seus avs. A relao entre nomes novos e trocados de substituio e no de acmulo, mas os nomes j tidos por uma pessoa nunca deixam de ser referidos como seus nomes ou seus ex-nomes, e todos so seus medida em que esto sua disposio para transmisso. Deste aglomerado de nomes paternos e maternos, possvel escolher indiscriminadamente qual ser transmitido a qual neto.
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Ou seja, do ponto de vista de ego, no importa em princpio quais nomes lhe foram dados por sua me e quais lhe foram dados por seu pai, pois todos sero euquivalentes no momento da nomeao de seus descendentes, grupos de germanos e primos cruzados. Na prtica, existem alguns clculos e algumas lgicas que podem influenciar esta distribuio. Os primeiros filhos costumam receber os nomes infantis (tekyt eput) de seus avs, mas evidentemente medida em que mais crianas vo nascendo nomes de adulto tm que ser dados a elas. Eventualmente, tenta-se manter completo o conjunto de nomes que foram de um ascendente: aquele que recebeu seu nome infantil receber depois os nomes sucessivos que j teve. Mas, considerando que uma pessoa tm sempre que dividir os nomes de seus pais que deseja dar a seus filhos com seus irmos, este nomeando tambm seus prprios filhos, manter tal coerncia bastante difcil. Nomes so um assunto sempre interessante para os Aweti: que nome fulano deu a seu filho, que nome darei minha filha quando ela crescer, o nome que me foi oferecido por minha tia para minha velhice. Nomes familiares so bens escassos e disputados. Evita-se que primos vivendo numa mesma aldeia tenham o mesmo nome, mas comum que isso ocorra mesmo entre familiares que mantm um relacionamento intenso, quando habitam em aldeias distintas. Este nome existe nesta aldeia, na outra aldeia, na outra aldeia, na outra..., notava um homem ao contar-me os nomes de seus filhos. Os nomes se repetem em todas as aldeias xinguanas, o que parece agradar aos Aweti como evidncia da unidade da qual se vem como parte. Devemos no entanto contrapor essa percepo de compartilhamento alegria dos Aweti escutando a histria do Matipu com a qual iniciei este captulo: se o nome daquele homem no era exclusivamente aweti, era ao menos reconhecivelmente aweti, tpico e logo distintivo deste grupo, dando evidncia das origens paternas do rapaz karib.
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praticamente impossvel que uma pessoa se limite ao conjunto de nomes de seus genitores, e mesmo de seus pais classificatrios imediatos (MZ e FB) para nomear os filhos. Nomes de tios e tias cruzados (MB e FZ) tambm so quase sempre mobilizados, assim como nomes de cognatos distantes, gente de outras aldeias a quem em geral se viu poucas vezes na vida. Em certo sentido, saber um nome de famlia equivale a ter um nome de famlia, mas mesmo em relao aos nomes de parentes prximos e ainda mais quanto aos nomes dos distantes, corre-se o risco de que algum interprete um ato de nomeao como um roubo. Como os nomes familiares esto sempre em falta, oferecer um nome prprio ou nome de germano a algum parente de outra aldeia um ato altamente significativo, a assero de uma relao nada evidente, dada a distncia, de cuidado e compartilhamento, comportamento esperado, mas nem sempre realizado, entre gente que se reconhece como parente. Muitas vezes nomes conseguidos longe so pagos com objetos de valor, colares de caramujo, panelas, mas ainda assim o fornecedor deve estar na posio de cognato de segunda gerao em relao ao receptor. portanto num sentido muito vago que a transmisso de nomes aos descendentes reflete ou permite a existncia de linhagens entre os xinguanos. Os nomes de avs circulam entre netos sem uma lgica bem definida, e muitas vezes os avs em questo no so sequer conhecidos. Dada a preferncia pelo casamento entre primos cruzados reais ou prximos (ver cap. 5), comum que esposos tenham os mesmo avs, e que cunhados tenham sua diposio o mesmo conjunto de nomes para transmitir a seus filhos. O sistema de nomeao no permite a distino de grupos matrimoniais e tampouco est associado, como no noroeste amaznico e entre povos G, posse de bens materiais e imateriais de propriedade exclusiva de um grupo. Nomes no so associados a posies sociais, como entre os Tukano, e no h relaes compulsrias entre herdeiros de determinados nomes, como entre os G. No estamos tampouco diante de um
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sistema em que nomes podem ser incorporados de fora animais, espritos ou brancos para tornarem-se bens de valor e objetos distintivos de grupos de transmisso dentro, como alguns sistemas G (cf. Lea 1986, Gordon 2006), pois os Aweti distinguem muito claramente os nomes que foram de seus avs dos inmeros possveis modos de chamar uma pessoa. O que parece importar, ao final das contas, o critrio geracional, a percepo de que uma pessoa a continuidade de um universo de ascendentes, nossos avs. A imagem que resulta desse sistema no aquela de um mundo de diferenas, mas a de um mundo em continuidade no tempo. Mundo habitado, ademais, apenas por cognatos, j que ao chamar seus filhos pelo nome de seus pais, uma pessoa vive como se aqueles fossem produto apenas de sua prpria famlia. A evitao dos nomes de sogros e cunhados cria um sistema em que apenas as continuidades so ditas, e no de distines. Como costuma-se notar em outros sistemas onde a nomeao dos afins tambm proibida, contudo, o silncio no deixa de marcar a presena inescapvel da diferena para a produo do mesmo, o filho que carrega o nome de um ascendente cognato: se o afim no fosse outro, seu nome seria perfeitamente pronuncivel, e a estreita observncia da evitao um assunto que requer constante ateno e cuidado. Um dos efeitos dessa regra que um homem cuja irm casou-se com o primo cruzado real (MBS ou FZS), estar obrigado a deixar de pronunciar o nome de um av real, virtualmente um nome prprio para si, ou mesmo o nome real de um germano. Assim, enquanto o sistema onomstico produz um corpo social contnuo no espao e no tempo - dado que os nomes se repetem em todas as aldeias - a proibio de nomear os afins corta o grupo segunda as linhas de aliana matrimonial atualizadas. Voltarei a isso no prximo captulo. Mas se um nome familiar fosse apenas o ndice de uma continuidade histrica genrica com as geraes passadas, e de uma continuidade geogrfica constitutiva da unidade xinguana
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j que o efeito da transmisso bilateral que permite aos nomes circularem indiscriminadamente projetar a imagem do Alto Xingu como um corpo de cognatos por que ocorreria a um pai evitar dar o nome de um reconhecido feiticeiro a seu filho, ou escolher dar a ele o nome de um famoso chefe? Tais estratgias tornam evidente que os nomes no so todos equivalentes, pois so marcados pela histria de algumas pessoas que os carregam. Pois se sabemos que importante ter um nome familiar (muitos nomes, a bem dizer), ainda no est claro o que um nome nesse sistema, o que representa ter um nome para uma pessoa xinguana.
4.5.1Nopir,opobre
Na medida em que possvel, ainda que indesejvel, que algum viva sem nome, devemos admitir que este no um aspecto da pessoa imprescindvel. Na famlia que me recebeu, havia um menino a quem todos chamavam de Nopir, exceto seu pai, que o chamava por um nome familiar, e sua me, que o chamava por um nome de branco que escolhera para ele ao nascer. Pedi que me explicassem um dia o sentido daquele apelido: como no havia nomes disponveis do lado materno quando ele nascera, ficara sem nome. Quando cresceu um pouco, sua irms mais velhas comearam a fazer troa de sua situao, chamando-o, em portugus, de pobre. Como os Aweti so loucos por jogos com a sonoridade das palavras, a famlia logo transformou aquele adjetivo num novo nome, Nopir. A designao me parece resumir muito bem a condio de um pessoa sem nome familiar: ela tem algo a menos que os outros, mas no algo essencial. Justamente porque a funo primeira do nome no designar indivduos, como entre ns, mas acrescentar o valor contido num determinado nome - o valor das relaes que permitem uma nomeao - possvel viver sem nome. Para efeito de designao dos indivduos, na vida
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prtica, obvio que cada pessoa precisa ter uma maneira pela qual seja chamada: seu apelido, tejojtat. Comentando a distino notada por Viveiros de Castro (1986) entre sistemas endonmicos e sistemas exonmicos, S. Hugh-Jones (2006) descreve de que modo entre os Tukano do noroeste amaznico a transmisso de nomes espirituais de propriedade exclusiva dos cls patrilineares contrabalanada pela aquisio de apelidos pessoais, nomes que, ao invs de conectar a pessoa a um grupo de descendncia, a individualizam no seio deste grupo, sendo criados a partir de sinais corporais ou eventos da histria pessoal marcantes. Entre os Aweti e demais xinguanos, os nomes familiares tambm operam basicamente conexes. Ainda que a cristalizao de linhas com propriedade exclusiva sobre bens seja praticamente impossvel dada a bilateralidade do sistema de transmisso onomstica, o valor e o sentido dos nomes pessoais parecem residir na sua possibilidade de agregar relaes especficas, incluindo aquelas que antecedem o nascimento de uma pessoa, e que so por sua vez sua condio de criar pessoas plenas no futuro: os nomes que recebe, os nomes que conhece, os nomes que transmitir a seus descendentes para que no sejam pobres, sem nome. Quanto aos apelidos, como entre os Tukano, tambm se referem geralmente a caractersticas corporais e fatos histricos, e nesse sentido operam um corte na continuidade temporal constantemente recriada pelo sistema onomstico. No entanto, a criao de apelidos muitas vezes segue a mesma lgica que rege as escolhas na transmisso de nomes familiares. O que torna mais clara a prpria natureza do nome xinguano. No raras vezes uma pessoa apelidada segundo o nome familiar, ou apelido, de outra pessoa. H uma menina aweti a quem todos chamam pelo nome de uma mulher muito mais velha, que atualmente reside em outra aldeia. Quando perguntei o motivo disso, explicaram-me que a menina tem uma maneira peculiar de apoiar o p no cho quando pra sobre a bicicleta, um
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trejeito corporal que lembra muito aquele de sua nomeadora - esta totalmente ignorante do fato, diga-se de passagem. Outro garoto chamado pela palavra aweti que designa sapato, explicaram-me, por recordar um homem Kuikuro cujo nome significa sapato em sua lngua karib. Na escola indgena, o professor chama uma aluna, sua prima cruzada, e com quem portanto mantm relaes bastante relaxadas, pelo nome de uma menina Kamayur, muito linda segundo ele, com quem ela se parece. Um jovem da aldeia chamado por todos de Foguinho, pois o consideram extremamente semelhante ao personagem interpretado por um ator negro numa novela que todos seguiam, em suas TVs ligadas a gerador, em 2007. Uma mulher passou a ser chamada pelos filhos de Nazar tambm por causa de um personagem de novela: ambas so muito bravas, dizem os jovens. Uma menina foi apelidada de Xavante quando sua me cortou por engano sua franja sobre as orelhas ao modo daqueles ndios, diferentemente do estilo xinguano. Um rapaz ficou nervoso com a jovem esposa que no sabia armar um moqum para os peixes que ele havia trazido e foi instantaneamente recebeu como apelido o nome de um antigo chefe aweti, reconhecido por ficar sempre nervoso com suas esposas. Tambm por ficar facilmente nervoso um homem apelidado de Chapolim, segundo o personagem do programa de televiso. Um outro que, quando adolescente, no conseguiu esperar para ter sua primeira relao sexual tendo por isso ficado muito baixinho, foi apelidado pelo prprio pai, entre enfurecido e bem-humorado, com o nome de um homem Suy reconhecido pela baixa estatura. Ao lado desses, h muitos apelidos que remetem a caractersticas fsicas e de personalidade da pessoa: como Desenho, por tratar-se de um rapaz magro, sem peso; Ameri, por ter o branco do olho to branco quanto de um americano e/ou por falar de um modo enrolado; Gordo, por motivos bvios; Amigo, por ser amigo de todos, Gasta-Hora, por fazer tudo lentamente; Macatiru, por ter demorado a andar (ver cap 4); Oro, porque sua me a resguardava
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de namorados com tamanho rigor que parecia ser to valiosa quanto ouro. Tambm preciso considerar os apelidos criados a partir da transformao de nomes de branco, nomes familiares ou outros apelidos: como Ol, contrao de Oloti, transformao por sua vez de Toroti, um nome Bakairi herdado por uma jovem de seu lado materno; ou Wirisi, derivado de Wiriri, j este um apelido; Soc, contrao de Scrates, um nome de branco; Arako, apelido criado a partir da transformao de Yahak, nome indgena familiar; Chapola, Champu, Japona, transformaes do apelido Chapolim; Coelhinho, transformao de Carlinhos. Alm disso, se nomes de branco podem ser usados como substitutos para nomes familiares, como no caso de Nopir e o nome que lhe foi dado por sua me, Luis Carlos, eles tambm podem ser adquiridos a qualquer momento da vida de uma pessoa, sejam dados por outro, sejam tomados por ela mesma, o que mais comum, em detrimento de outros apelidos que sero ento jogados fora: no se deve mais us-los, como no se deve usar o nome verde de um adolescente que j foi renomeado. Foi o caso de um jovem conhecido pelo apelido Lenha, que um dia avisou a todos para chamarem-no de Lindomar, sendo logo apelidado Lindo. Em contraste com a escassez dos nomes familiares, h uma proliferao constante de modos de chamar uma pessoa. Nomes distinguem-se de apelidos e nomes de branco como bens durveis, escassos e de valor, mas podemos identificar tambm uma lgica comum a ambos os regimes de nomeao. Do mesmo modo que os nomes revelam conexes histricas entre pessoas, assim como o pertencimento espao-temporal da pessoa unidade xinguana, os apelidos muitas vezes so usados como marcas de conexes no histricas, mas lgicas, estticas, modos de ser. Essas conexes tambm so consideradas na distribuio de nomes familiares, que no so indiscriminadamente transmitidos aos descendentes. A nomeao envolve clculos simultaneamente de reconhecimento de qualidades que j
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esto l e qualidades que se pode produzir atravs do ato de nomear, bem como consideraes sobre a beleza da sonoridade e do significado dos nomes (no caso de no serem nomes apenas, mas nomes de coisas). Certa vez explicaram-me como um menino, por exemplo, que desde cedo revelou-se especialmente inteligente e hbil em tudo o que fazia, recebeu por este motivo o nome de um antigo morekwat, especialmente escolhido entre os nomes de que seu av dispunha. Em contrapartida, contando-me como em seu nascimento lhe fora prometido pelo pai de sua me o nome de um grande morekwat, um velho aweti notava que por este motivo nunca pde mentir ou perder o controle o mesmo dito, recordemos, a respeito das pessoas tatuadas. Ao contrrio dos nomes familiares, os apelidos no parecem ter essa capacidade de conferir qualidades, mas como os primeiros eles podem operar dentro de uma lgica que permite aos nomes funcionarem como ndices de continuidade. A diferena maior reside na profundidade temporal que se pode produzir a partir dessas conexes j que, no sendo transmissveis, os apelidos apontam para relaes entre no mximo duas geraes, donde sua pobreza. Assim como os apelidos, contudo, os nomes familiares xinguanos no me parecem corresponder a uma poro constituinte da pessoa, como ocorre com os nomes clnicos do noroeste amaznico, que correspondem parcela espiritual de seu portador, associada linha paterna atravs da qual fluem (cf. S. Hugh-Jones 2006). Sugiro, ao contrrio, que nomes familiares, nomes de branco e demais tipos de apelidos participam de um contnuo, os primeiros sendo a modalidade mais potente, e portanto valorizada (kat atytu, objetos do qual se tm cime), de algo que os demais no deixam de efetuar em nveis muito sutis. Todos esses tipos de nome condensam relaes feixes de relaes temporalmente profundos, no caso dos nomes familiares - que podem transmitir potncia a seu portador. O simples fato de ser nomeado pelos outros, ou de se conhecer um dado nome de branco por t-lo ouvido na cidade, podem ser significativos aqui.
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Imagino, pois, que a importncia de ter um nome de chefe para ser chefe no evidenciar a presena de substncia fsica ou anmica de chefe pois, repito, nunca escutei nada nesse sentido - seno evidenciar o fato de que se investido, visto, reconhecido por outros como chefe, e como um dado chefe cujas qualidades de chefe tem-se a possibilidade de replicar, manifestar, desenvolver. A transmisso de um nome familiar depende de redes de reconhecimento mantidas ao longo do tempo: preciso ter um pai para nomear um filho, e depois ter muitos tios maternos e paternos para nomear os prximos filhos, e ter tambm avs para que os nomes prprios sejam dispensados aos netos. Essas relaes ativam a possibilidade da repetio e da continuidade de qualidades ao longo das geraes. Ter um nome de feiticeiro, em contrapartida, arriscar-se a ser visto como um feiticeiro. O que j significa, em certo sentido, ser um feiticeiro ou ver-se obrigado a agir como um, exilando-se para fugir de acusaes. Quando em 2006 presenciei o enterro de uma menina aweti explicaram-me que deveria ser enterrada sentada, como so enterrados os morekwat, porque assim o fora a av de quem ela recebera o nome. Os Aweti falam tambm por vezes de um neto como o substituto (-opet) de av, assim como falam de filhos como substitutos dos pais. Emenbyt jomoege ne Marina! Eopezan!, Voc tem que fazer um filho, Marina! Para ser seu substituto!, aconselhavam-me sem cessar. Quando algum fala em ter filhos, fala sobre como este ir ajud-lo no futuro, a me imaginando como sua filha ir acompanh-la na roa e o filho buscar peixe para ela, o pai imaginando ao revs. Pensa tambm nos nomes que deseja transmitir a seus filhos. Se um casal s tem filhos homens, por exemplo, pode-se ouvir um dos pais dizer que gostaria de ter uma menina, para darlhe o nome de sua me. O mesmo se passa com os avs, sempre orgulhosos dos nomes que transmitem a cada neto, quanto no preocupados com a escassez de nomes, ou mesmo lamentando que um tal nome tenha sido rejeitado porque todos os seus descendentes o
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consideravam feio. Contudo, apesar da importncia atribuda reproduo como um processo de substituio, no temos elementos para assumir a existncia de uma teoria nativa da reencarnao de avs em netos (como sustentam Villas-Boas 1970). Em primeiro lugar, porque a maioria dos nomes transmitida ainda durante a vida do ascendente; s quando envelhece uma pessoa passa a contar apenas com a prpria memria e a de seus germanos e outros contemporneos para ser nomeado. Segundo, porque nomes podem ser recebidos de parentes muito mais distantes que os avs reais. Terceiro, porque simplesmente inexiste qualquer discurso sobre migrao de almas. Ao enterrar um menina com as honras de um morekwat, os Aweti reconheciam sua existncia talvez como repetio, mas no como retorno de sua nomeadora. Disse no comeo deste captulo que as disputas em torno do status de morekwat concernem no apenas os vivos, mas remetem quase sempre a seus ascendentes o pai dele nunca foi chefe!. Ora, as honras conferidas criana no deixavam de ter o efeito de confirmar o status de sua av, trazendo memria da aldeia o modo como fora h muito enterrada, no ptio daquela mesma aldeia. Homenagem indireta, refluxo de qualidades de neta para av132.
4.5.2Osoutrosquenoschamam
Nunca vi um xinguano perguntar a outro xinguano qual seu nome?. Ou bem a pessoa j sabe o nome alheio e todos sabem uma quantidade impressionante de nomes/apelidos de
Talvez aqui seja preciso citar tambm uma informao que no pude explorar a fundo: quando falvamos sobre as ocasies que levam realizao de um kwarup, um homem explicou-me que no apenas quando morre um chefe como costuma-se dizer - mas tambm quando morre uma criana ou um jovem recluso deve-se promover este ritual funerrio. Se, como vimos, um chefe sempre produto de uma dada fabricao para a qual certo tempo de vida imprescindvel, a obrigatoriedade do ritual para as crianas parece conferir a todas elas indiscriminadamente um potencial de vir a ser morekwat, virtualidade tornada inatualizvel pela morte abrupta.
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gente de outras aldeias ou bem pergunta-se a um terceiro, um dos pais da pessoa cujo nome se deseja saber, por exemplo. Quanto a mim, logo percebi que perguntar o nome de uma pessoa no seria muito produtivo se meu interesse fosse mais do que descobrir uma maneira de me dirigir ou referir a ela. Quando uma pessoa se dispe a falar sobre nomes de famlia, no exatamente a seus nomes que se refere, mas ao modo pelo qual mame me chama, e ao modo pelo qual papai me chama, ite amamaj eporet itepe, ite apapaj eporet itepe133. Duas coisas ressaltam dessa formulao. Primeiro, o fato de que um nome no apenas de algum, sua caracterstica principal sendo o fato de ter sido dado por algum. Isso implica que um nico nome pro si s no pode espelhar, fixar, uma identidade; o nome no subsume a pessoa do nomeado. Existe sempre a possibilidade de um sujeito ser identificado por outros nomes, por outros sujeitos. Todo sujeito que chama algo ou algum de alguma coisa j plenamente um nomeador, j que todo nome parcial, produto de relaes especficas. Mais do que isso, se a nomeao no tem como projeto a coincidncia total entre o nome pessoal e o nomeado, e este meu segundo ponto, porque talvez no se imagine que a pessoa seja algo em si mesma, uma natureza auto-determinada, sendo pelo contrrio determinvel pelo que se diz sobre ela, pelo modo como chamada134. Chamar de chefe e chamar de feiticeiro so
Et a raiz de nome. A construo e+por+et refere-se ao nome de algo para algum. Por exemplo: o karaiwa eporet para uma coisa o termo pelo qual os brancos se referem a uma coisa, sua traduo para o portugus. 134 Keane (2002) nota um interessante efeito da converso religiosa no sistema onomstico dos sumbaneses (Indonsia). Tradicionalmente, nomes so dados pelos ancestrais atravs de prticas divinatrias; ao longo de sua vida, contudo, uma pessoa chamada de maneiras diferentes em contextos relacionais diferentes, onde vai recebendo novos apelidos. Essa constante alterao reflete, sugere o autor, o quanto uma pessoa determinada pelas relaes que estabelece ao longo de sua vida, e a prpria instabilidade de sua imagem, sua pessoa, na medida em que depende dos olhares alheios para saber quem . Nomes cristos so usados primariamente em documentos de identidade criados pelo Estado. Muitos sumbaneses, contudo, passaram a desejar nomes de batismo pelos quais sero chamados por toda a vida, tenham sido escolhidos pelos pais de uma criana ao nascer, ou pela prpria pessoa ao ser batizada depois de adulta. Os nomes de batismo seriam, em contraste com os apelidos, em constante mutao, evidncia da estabilidade do ser interior (inner self) de um indivduo, reconhecido perante Deus, no ato do batismo, como o destinatrio daquele nome. Eles negam o poder de determinao que as relaes cotidianas tm sobre uma pessoa, afirmando sua auto-determinao e independncia frente a tais relaes um desejo que seria produto, na viso de Keane, da incorporao de uma imagem moderna da pessoa introduzida atravs da converso religiosa. Noto que j
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atos criativos tanto quanto o reconhecimento de potncias que j esto l. Com isso conseguimos pensar e que modo qualidades de carter podem ser transmissveis atravs de nomes herdados sem implicar a noo de substncia interna: pois parece-nos que uma pessoa , mais do que alterada, constituda, pelo que os outros dizem dela. Talvez a proliferao de modos de chamar algum, entre nomes familiares e apelidos, esteja relacionada a isso. Idealmente, como disse, os nomes no se acumulam, mas so trocados e jogados fora. Na prtica, a maioria das pessoas continua sendo chamada por nomes infantis, os quais por vezes so os nicos conhecidos por seus co-aldeos e at germanos. E se alguns apelidos se mantm a vida toda, a aldeia freqentemente tomada pela moda de chamar tal fulano de uma dada maneira, todos divertindo-se bastante com a novidade compartilhada, corrigindo-se uns aos outros quando o nome antigo, menos engraado, usado. Essa possibilidade, caracterstica dos apelidos, de que uma pessoa seja chamada sempre de um modo distinto, em momentos distintos, por pessoas distintas, aplica-se tambm, ainda que com maior reserva, aos nomes familiares. muito comum uma pessoa de certa idade, j com netos, ter dvidas quanto a seu nome familiar atual. Todos se referem a ela de um jeito, mas na verdade seu nome j no mais aquele, e nem ela mesma sabe bem que nome ter em seguida. Nomear no um ato definitivo, mas certo que seja um ato importante, donde as discusses a respeito dos nomes roubados. primeira vista elas parecem indicar que o nomes so bens distintivos de linhagens, mas a liberdade com que os nomes circulam nos leva a pensar que o aspecto mais importante no a distino de um grupo atravs de certos bens imateriais, mas a atribuio de qualidades a certas pessoas, sendo tais qualidades distribudas segundo direitos
escutei entre os Aweti, a respeito dos documentos de identidade, recentemente introduzidos na aldeia, comentrios do tipo: Esse nome agora meu, est no meu documento (itaang, lit. minha imagem), no posso d-la minha neta. Mas a maioria das pessoas possui documentos h menos de cinco anos, e ainda cedo para saber as dimenses e consequncias dessa alterao.
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adquiridos em relaes pregressas. Como veremos no prximo captulo, o compartilhamento de bens de valor, kat, que nada tm de distintivos (no sentido em que os bens so distintivos de um cl no noroeste amaznico, por exemplo), mas so ainda assim constitutivos da pessoa, um aspecto crucial da definio de parente, semelhante. Parece-me que os nomes devem ser includos neste regime, em que no a exclusividade, mas o fluxo de coisas que se quer preservar. Em suma, algumas pessoas tm direito a certos nomes em decorrncia de relaes especficas de parentesco, que so por sua vez atualizadas pela transmisso de nomes. O fato de que pessoas disputam e compram nomes, ou questionam os nomes alheios, deve ser visto como um indcio do que um nome pode fazer por algum.
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Captulo5 Desfazendoparentes
Os Aweti parecem supor que apenas um xinguano pensaria em fazer um feitio contra outro xinguano, no porque brancos (caraiwa) ou ndios (waraju) no sejam feiticeiros ou no tenham feitio, mas porque o feitio coisa que se passa entre pessoas que esto em relao. No faria muito sentido que um xinguano fizesse feitio contra um branco, ainda que nada o impea por princpio; mas seria preciso que a vtima e o feiticeiro estivessem numa relao tal que justificasse a atitude, coisa que nunca vi acontecer. interessante que a recproca no seja verdadeira: enquanto um aweti tende a acusar de feitiaria outro aweti, ou ao menos um xinguano dentro do seu crculo de relaes, os povos que com quem os xinguanos convivem, mas que no consideram xinguanos (waraju, portanto) aparentemente tendem a acusar os xinguanos de enfeiti-los. Deste modo, quando um chefe trumai mudou-se para a terra Kayap por conta de desentendimentos dentro do Parque do Xingu, dizia-se que seu maior medo era ser executado pelos novos vizinhos, que certamente iriam acus-lo de feitiaria assim que o primeiro deles adoecesse. Dentro da mesma lgica, um xam kamayur foi acusado pelos familiares de um jovem kayap a quem tratara de t-lo enfeitiado (o jovem morrera durante o tratamento). Alm disso, se reconhecem que feitio no uma exclusividade xinguana, os Aweti parecem admitir que o modo xinguano de fazer feitio especfico e pode ser ensinado a outro povos, caso por exemplo dos Ikpeng e seus aliados de casamento xinguanos. Assim, quando uma mulher ikpeng morreu repentinamente em julho de 2009, os Aweti que me contavam a histria logo arriscavam
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uma anlise do caso: Foi pessoal de l (Ikpeng) que amarrou ela, eles aprenderam com Wauja. O que proponho neste captulo uma investigao do que poderamos chamar de sociologia do feitio a partir das anlises nativas de casos de enfeitiamento. Quando dizem que um feiticeiro agiu por tal ou tal motivo, as consideraes envolvidas acabam por nos revelar quem so esses feiticeiros, ou de onde se espera um ataque de feitiaria. Pois parece-me justamente que o feiticeiro xinguano muito mais do que um tipo seja um chefe, seja um marginal ele um outro qualquer que ocupa determinadas posies diante de ego. As relaes em questo envolvem potencialmente cime/inveja, sentimentos que veremos surgir, tanto no mito quanto na vida cotidiana, entre vizinhos - consangneos, e aliados por casamento. Isso tambm contrasta com outra afirmao nativa reproduzida sem maiores indagaes nas etnografias, a de que o feiticeiro um outro, seja este outro um xinguano de outro grupo lingustico casado com a mulher da casa ao lado, ou mesmo um rival poltico da mesma aldeia. O feiticeiro um outro, por certo, mas que tipo de outro esse? preciso levar em conta dois pontos: primeiro, percepes de quem outro e quem mesmo so contextualmente variveis, como no poderia deixar de ser, de modo que quando algum aponta fulano como feiticeiro talvez tambm o considere perfeitamente parente, semelhante; segundo, e mais importante, que na maioria das vezes a proximidade de uma relao pensada como relao de semelhana (caso da germanidade) ou assemelhamento (caso da conjugalidade) o que detona um processo de (suspeita de) enfeitiamento. Estou sugerindo, em suma, que a feitiaria um processo de diferenciao pelo qual algum imaginado como semelhante, o que tradutvel, em termos da sociologia indgena, por um parente, passa a ser percebido como distinto, no parente, uma diferenciao tornada visvel pela acusao de uma divergncia radical de interesses.
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No estou sugerindo que as acusaes de feitiaria coloquem um sujeito repentinamente em oposio a algum de quem pensava estar ao lado. H que se considerar, a este respeito, a antiguidade de algumas rivalidades entre famlias revelada em afirmaes como esta evocada anteriormente: H muito tempo eles esto nos matando, primeiro acabaram com nossos avs e agora esto matando a gente. Mas, ainda nestes casos, preciso avaliar de que modo tais rivalidades so atualizadas em determinados contextos relacionais nos quais procurava-se obliterar a diferena. Pois, quando no esto sentido-se alvo de um ataque de feitiaria, e quando um determinado conjunto de pessoas dentro uma mesma ou mais aldeias se v momentaneamente livre de motivos para desconfianas, os Aweti e seus vizinhos xinguanos procuram relacionar-se como se compartilhassem o desejo de conviver e alegrar-se juntos, como se fossem todos parentes. Um dos objetivos do que vem a seguir precisar melhor o que entendo - do que os Aweti me parecem querer dizer - ao usar noes que traduzo aqui como parente, ou semelhante, e no parente, ou outro. Muitas vezes os Aweti expressam disposies relacionais atravs de uma tica da circulao bens. O desejo, mas tambm o dever, de compartilhar e dar sem expectativa de retorno imediato marcam as relaes entre pais e filhos, avs e netos, e tambm esperado entre germanos e esposos. Em todos esses casos, o sentimento de que o que meu seu um importante ndice da natureza da relao, e est baseado em uma percepo de similitude que faz com que um conjunto de pessoas se afirme enquanto parte de um mesmo corpo coletivo. Em contraste, diversas relaes, s vezes entre as mesmas pessoas, podem se dar em termos de troca compulsria e pagamento de servios. Nestas ocasies, no importa quais sejam os laos de parentesco entre as pessoas envolvidas, o que ser marcado entre elas sua distino. Creio ser pertinente, pois, distinguir relaes de compartilhamento, que seriam as relaes de
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consanguinidade ou regidas por um ideal de consanguinizao, e relaes de troca, entre as quais incluo no apenas a aliana matrimonial mas tambm as diversas relaes que envolvem pagamento por servios e troca cerimonial. A meu ver, o feitio diz respeito s relaes do primeiro tipo, relaes de compartilhamento, ainda que ocorra muitas vezes entre pessoas que mantm tambm entre si relaes tensas de troca ou seja, aliados matrimoniais.
5.1Aflechadocime
A origem do feitio xinguano remonta a uma sequncia de eventos em que os gmeos demiurgos Sol e Lua recebem de diferentes gentes-animais atributos da vida humana atual relacionados aos ciclos biolgicos: o flatulncia, o sono, a ereo masculina135. Por ltimo conseguem tomar Coruja (uzyt), o cime (temyzotu). Como o levam para casa em quantidade excessiva, Sol, o irmo mais velho, fica convencido de que o gmeo mais novo Lua est namorando sua esposa. O cime to grande que Sol adoece. Wamutsini fica muito bravo com seus netos, pois tambm comeou a sofrer de cime, desconfiando que a prpria esposa tem outro. No Myren, aldeia de Wamutsini, todos passam o dia batendo em suas mulheres, enlouquecidos, sem conseguir fazer mais nada136. Revoltado, o demiurgo faz um feitio contra
Antigamente a gente no defecava nem peidava, apenas exalava um bafo fedorendo. Cupinzeiro, ywya, o dono do peido, kajpyjtxojtu. Av, viemos buscar o seu bem (ekat), dizem os irmos chegando casa de Cupinzeiro. Em seguida, os gmeos vo caa do sono. Antigamente a gente no dormia, ficava de olho aberto o tempo todo. Wamutsini orienta os netos a buscarem o sono na casa de seu av Bacurau (tatak), que dorme o dia todo, e acorda de noite. No episdio seguinte, os gmeos partem em busca da ereo, uwyt akaampu, cujo dono o Lagarto (taui). A conexo desta sequncia com a instaurao da periodicidade o ciclo da comida no corpo, o alternncia entre atividades diurnas e atividades noturnas, a alternncia de geraes - confirmada pelo fato de que ela se inicia no momento em que os gmeos estabelecem a unidirecionalidade do desenvolvimento humano: antes, eles podiam crescer at ficar adultos e depois voltar a ser crianas quando bem entendessem. 136 O mesmo se passa com o peido, a ereo e o sono: quando de sua chegada aldeia um uso abusivo impede o trabalho e o povo de Myren emagrece por falta de comida, at que Wamutsini determina as boas medidas para cada um desses atributos.
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Sol, amarrando uma guimba de cigarro do neto (que sempre foi xam, isto , fumante). Lua ento cura o irmo (wej apook, tira o feitio), mas o enfeitiamento refeito vrias vezes at que o curador perde a pacincia com o ciumento e comea ele mesmo a fazer feitios contra Sol. Agora o av Wamutsini quem tem de cur-lo, repetidas vezesat que o av se chateia e passa mais uma vez a ser ele o feiticeiro. por causa de Wamutsini que hoje existe feitio entre os povos do Alto Xingu, e tambm na mo dos espritos kat que fazem os xinguanos adoecerem, pois tambm receberam o feitio do demiurgo. H uma ambigidade no mito, relativa ao fato de Sol adoecer ao mesmo tempo de cime e de feitio. O feitio, ademais, a vingana de Wamutsini por seu neto t-lo feito sentir cime, como se fosse a vingana de Wamutsini contra um concorrente traidor. O malefcio do av redobrado no feitio de Lua contra Sol e vice-versa, irmos que de fato disputam mulheres entre si. Alm disso o cime, como o feitio, consiste em flechas mnimas que, introduzidas na pele da pessoa, provocam intensas dores. Outra passagem da histria tambm intrigante: quando seu irmo vai cur-lo, isto , ver onde est sua alma e se h um feitio por perto (oteapytajung; cf. cap. 1), Sol orienta Lua a no retirar o verdadeiro feitio colocado por Wamutsini, mas um outro, pois caso no tomasse tal precauo o feiticeiro ficaria bravo e faria um feitio para matar rpido sua vtima. Quando a vez de Wamutsini curar Sol do feitio feito por Lua, no necessria a advertncia, pois o av demiurgo sabe de tudo, sabendo portanto que no deve tirar o feitio verdadeiro, mas um outro do qual no conhecemos a origem. H, pois, sempre um feitio verdadeiro que tem de ficar l, cuja persistncia enfatizada pelo fato do feiticeiro nunca desistir do malefcio, e estar sempre refazendo seu feitio; antes que ele desista, o curador, enjoado da sua posio, torna-se ele mesmo feiticeiro e o feiticeiro tem que virar xam. Depois do advento
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do cime, nos ensina a mitologia, nunca mais foi possvel livrar-se do feitio137. Na lngua aweti um mesmo termo, temyzotu, pode designar tanto o cime quanto a inveja. Como bem nota Ordep Serra num estudo da mitologia Kamayur, costumamos opor esses dois sentimentos, j que em geral distinguimos o cime como relativo quilo que se tem e teme perder, enquanto a inveja diz respeito quilo que no se tem e deseja tomar de outro (Serra 2006). Nas conversas cotidianas, as suspeitas de feitiaria so via de regra associadas inveja, ou pelo menos assim imagino que devemos a traduzir a mais comum e suscinta observao a respeito de um enfeitiamento: otemyz, ele [o feititiceiro] sentiu inveja. Isto se costuma dizer, por exemplo, a propsito do adoecimento de um jovem recluso, quando se supe que o xito que est alcanando em seu processo de fabricao corporal suscitou a inveja de um feiticeiro. Mulheres grvidas tambm so alvos preferenciais de feitio, o que nos leva a pensar que o motivo tambm seja a inveja que provoca pelo ente que est fabricando. O mesmo se passa com uma famlia cuja produo anual de polvilho foi muito superior que a de seus vizinhos, ou com uma pessoa
Os episdios de enfeitiamento no apresentam nenhuma variao entre si, parecendo ganhar sentido na repetio mesma do evento, ao longo do tempo, em diversas direes (feitio de Sol contra Lua, de Lua cotra Sol, de Wamutsini contra Sol). Mais do que a origem do feitio, o mito parece tematizar sua persistncia e indiferena quanto direo em que ocorre os mesmos personagens alternam-se por tempo indeterminado nas posies de enfeitiador e curador, at que os heris so levados a livrar-se do excedente de cime. Vimos que a conquista do cime o episdio final de uma sequncia toda relacionada origem dos ciclos temporais que vo de um ciclo extremamente curto (a comida ingerida e excretada) ao ciclo da vida humana instaurado pela alternncia de geraes que a conquista da ereo possibilita, e que o feitio (origem da morte) institui. O mito enfatiza, contudo, em relao ao sexo, a definio dos horrios adequados ( preciso trabalhar de dia, namorar de noite), de modo que poderamos sustentar que os episdios tratam da instaurao da periodicidade de ciclos curtos. Lembremos que Lvi-Strauss (2006 [1968]:116-118) contrasta esta forma de temporalidade periodicidade sazonal tematizada em outros mitos: comparada alternncia das estaes do ano, a alternncia dia/noite redunda em monotonia, sendo uma variao invariante ao longo do tempo. Sem dvida o episdio da conquista do cime contm em sua prpria forma a serialidade que aparece apenas como mensagem nos episdios anteriores da mesma sequncia mtica. Vale notar que o mito Tukuna (M60) que nos apresentado como exemplar de degerao da estrutura mtica em serialidade trata da origem do paric (idem: 107-109), substncia alucingena utilizada no xamanismo daquela regio, enquanto o mito xinguano que trata da origem do feitio tambm o mito de origem do procedimento xamnico de ver a ang das pessoas (teapytajunku) por meio do transe provocado pela ingesto macia de fumaa de tabaco. A mitologia associa, assim, a periodocidade curta, o feitio e as substncias alucingenas que permitem a mediao entre os mundos humano e no humano. Donde o feitio parece estar relacionado s diferenas que tendem indeferenciao; se o xamanismo a apropriao produtiva dessa possibilidade de tornar-se parcialmente outro, o feitio seria sua face negativa.
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assalariada que pode adquirir mais bens industrializados que os demais. Diagnsticos da doena que associam a feitiaria inveja supem uma determinada distncia entre o malfeitor e sua vtima, pois o sentimento de inveja implica um tipo de relao que no passa nem pelo compartilhamento que caracteriza relaes entre parentes prximos, nem pelo alheamento total da indiferena. O invejoso sempre como sabemos ser comum em diversas partes do mundo - um vizinho de aldeia, ou de uma aldeia vizinha. O cime presume relaes ainda mais prximas. Por um lado, preciso haver uma relao amorosa; e por outro a presena de um terceiro suficientemente semelhante para que atue como concorrente (que seja uma opo alternativa para o ente amado). Mas uma proximidade pressuposta apenas para revelar a distncia: o cime do irmo, que o mito situa na origem deste sentimento, tem sua condio de possibilidade na semelhana entre os germanos, que podem compartilhar muitas coisas mas no gostariam, apesar de muitas vezes no poder evit-lo, de compartilhar esposas. O cime entre amantes ou esposos, de modo similar, funda-se no descompasso entre a proximidade gerada pela unio amorosa ou conjugal e a diferena sem a qual a relao seria impossvel. porque so irremediavelmente distintos homem e mulher, no-germanos - e logo movidos por necessidades e interesses distintos, que amantes e esposos chegam a sentir cime um do outro. Sentir cime, assim como ser alvo de inveja, envolve a percepo de que um outro a quem estou ligado deseja para si mesmo algo que vai contra meus interesses. Nesta medida temyzotu seja o medo de perder o que se tem, seja o desejo de ter o que no seu sempre um signo do conflito de perspectivas, sempre o resultado de um desejo indevido, porque distintivo. E como aparece sempre em contexto acusatrio, este desejo mal situado s existe enquanto desejo alheio: ele denuncia os outros invejosos, ou os outros que provocam cimes. Quanto ao cime, no entanto, assim como se passa com a inveja, os Aweti muitas vezes
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identificam-se mais com a posio de vtima do ciumento que com aquela do ciumento, vtima do traidor. Como veremos ocorrer com as acusaes de feitiaria, o prprio excesso de cime sentimento freqente, dada a proliferao de casos extraconjugais entre os casais - tende a ser visto como problemtico, como se o ato de desconfiar, mais ainda que o ato de trair, fosse o grande gerador de discrdia. Acusaes entre famlias a respeito de violncia conjugal do conta dos perigos desse excesso: ele lhe deu um chute na barriga e a fez perder o beb; ele queimou seu brao com madeira em brasa; ele pensava que o pai de seu filho fosse outro e a fez perder o beb; viu seu pai batendo em sua me tantas vezes quando era criana que quando esta morreu o filho nunca pde perdoar o velho. Este grau de violncia domstica tem para mim uma materialidade similar do prprio feitio: algo de que apenas ouvi falar. Contudo, sua existncia ou inexistncia no parece ser a melhor questo que podemos formular, sobretudo se percebemos que o discurso o que mais interessa tambm aos prprios Aweti. O que ressalta das acusaes de violncia extremada entre casais o fato de a desconfiana ser vista como to ou mais problemtica que a traio, pois os Aweti me parecem admitir que as oposies so criadas no ato e lugar em que so feitas aparecer, atravs das acusaes. O cime, que se atualiza em acusaes de infidelidade, ele prprio um discurso gerador de diferena. A moral que rege a vida conjugal xinguana revela-se por fim bastante complexa. Quase todos os adultos tm ou j tiveram amantes extraconjugais, casos que deveriam ser secretos mas que via de regra so muito bem conhecidos por todos. As pessoas discutem sobre os amantes de seus coresidentes ou vizinhos ora cheias de humor, reconhecendo a aceitabilidade e frequncia de tais relaes, ora em tom recriminatrio comentando, por exemplo, que tal esposa est sempre sacaneando seu marido com fulano, ou que fulano no respeita sua esposa, pois namora com
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ciclana. O vocabulrio nos remete outra vez aos discursos sobre feitiaria: uma esposa que trai o marido, um irmo que trai o outro com a esposa deste, esto sacaneando (ontentatentazoko) o trado, assim como o feiticeiro sacaneia o enfeitiado. O que coloca a traio ao lado do feitio. Por outro lado, como venho ressaltando, um marido excessivamente ciumento que vive acusando sua esposa ou seus irmos de traio desconfia (wejwaup) exageradamente assim como um homem que fica doente desconfia de um vizinho. Este, pelo ato de ser objeto de uma desconfiana (que percebe como) descabida, passa de possvel algoz a vtima. Voltarei a este ltimo ponto no prximo captulo. Sol e Lua so irmos e portanto, em relao a qualquer mulher, so igualmente possveis amantes e cnjuges. Mas eles no querem compartilhar esposas, e sentem cimes um do outro. Este cime aponta o limite da semelhana, fronteira inescapvel at para os gmeos. Entre os Aweti, cerca de um quarto dos homens casados so polgamos (uma proporo compatvel com o registrado para outros povos xinguanos), sendo que normalmente o casamento com duas irms prefervel quele entre mulheres de famlias diferentes. Alm do fato de que mais fcil para um homem negociar com um s casal de sogros para conseguir suas esposas (casamentos polgamos quase sempre so arranjados, ou funcionam melhor quando so arranjados) muito mais possvel que uma mulher aceite o segundo casamento do marido se este se der com sua irm. No obstante, brigas por cime entre as irms so constantes, ainda que as mulheres por outro lado desfrutem da mtua companhia para executar tarefas domsticas. Mesmo na poligamia sororal, as histrias de segundo matrimnio sempre comeam com ameaas de separao por parte das primeiras esposas. Tanto quando os homens, as mulheres sofrem de um cime que mistura problemas conjugais e problemas entre germanos do mesmo sexo; elas disputam no apenas pela ateno do marido como pelos bens que este distribui na forma de presentes a elas e a seus filhos.
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Como muitos homens possuem ainda amantes, geralmente uma das esposas ocupa o lugar da ciumenta, enquanto a outra talvez esteja mais ocupada com seus prprios namorados, e os presentes que espera ganhar deles. O episdio em que Sol e Lua enfeitiam-se um ao outro foi-me tambm descrito como parte de outro ciclo mtico, que se inicia com o episdio do mtuo enfeitiamento dos gmeos e contm ainda dois movimentos que vejo como verses atenuadas do mesmo tema. Tendo desistido de provocar a morte um do outro, Sol e Lua passam a tentar provocar a morte de seus respectivos filhos, no que ambos obtm sucesso. No fosse por isso, os gmeos teriam tido muitos filhos, pois eles se reproduziram bastante (otsoperizyk ytoto, realmente lanaram seus descendentes no mundo, lit. seus substitutos), mas no foram capazes de mant-los vivos. O feitio aqui empregado foi de um tipo diferente daquele que haviam usado anteriormente. Sol vale-se da estreita conexo corporal que atrela a vida de um beb de colo de seu pai e fabrica uma cobra no venenosa que coloca no caminho de Lua, quando este sai de casa para caar. A cobra fabricada com inteno de provocar um susto no passante (ver cap. 3). Quando isto ocorre e Lua chega em casa, encontra j seu filho muito doente. Sai ento em busca do irmo para que venha tratar o sobrinho: itayt jotupjyt ikyty, d uma olhada no meu filho para mim. Sol fuma mas obviamente no d o diagnstico correto, tendo sido ele mesmo o causador do adoecimento, e finalmente morre o filho de Lua. A situao se repete agora com o beb de Sol, depois com o novo filho de Lua e o novo filho de Sol. Por fim cada um desiste de sua descendncia. Tambm neste caso, o enfeitiamento comea quando Sol desconfia que Lua mantm um caso extraconjugal com sua esposa donde podemos suspeitar que o filho fosse na verdade do outro. O que era, na verso contada acima, um feitio do av por vingana pelo fato de ter sentido cime converte-se aqui em feitio do ciumento, vingana pela traio.
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No episdio seguinte, Sol e Lua enfeitiam seus respectivos pssaros de estimao. Ainda estamos falando de temyzontu, mas o que era puro cime conjugal no primeiro caso, tornando-se uma mistura de cime da esposa e inveja do filho no segundo transforma-se agora em pura inveja: o xerimbabo alheio mais bonito. Lua comea amarrando num feitio uma pena do periquito (apuryt) de Sol. Ajuayt itayt! , coitado do meu filho!, lamenta-se Sol ao ver seu xerimbabo morrendo. Depois as posies se invertem, e Sol amarra as penas de uma pomba (pykak) que Lua criava. Cada um chamado pelo outro para tratar xamanicamente o pssaro/filho alheio dessa vez os feitios so tirados e os xerimbabos sobrevivem. Em outro contexto, este ltimo mito me foi contado como histria da origem do xamanismo de ver a ang, teapytajunku. Ainda outra vez em que escutei partes da saga do gmeos, o episdio da aquisio do cime seguia por outro caminho, que tambm revela a origem do xamanismo. Tomado pelo cime, Kwat adoece a tal ponto que preciso reunir todos os xams da regio para trat-lo. Nessa poca muitos animais eram xams, mas nenhum conseguiu realmente curar Sol. Finalmente o Bem-te-vi (mitsuku) e seu irmo mais novo so chamados e conseguem extrair as flechas de cime de seu corpo pela tcnica da suco (apozypu). Quase todas foram retiradas, tendo permanecido apenas algumas em seus ps e mos, peito e garganta motivo pelo qual hoje em dia uma pessoa enciumada tem vontade de chutar e bater em seu amante, seu peito lhe di e sua garganta fecha. Sol curado, e Lua resolve sair pelo mundo para tentar recuperar os bens que havia perdido aps seguidos tratamentos xamnicos, pois tivera que us-los para pagar a cura do irmo. Em seu trajeto, Lua encontra diversos povos xinguanos, at chegar aos Aweti (a histria terminava abruptamente, ou por um motivo qualquer no pude saber seu final). O que me interessa ressaltar a respeito desta ltima verso que, se num momento os gmeos opem-se como inimigos competindo pelo amor da mesma mulher, em seguida Lua v-se obrigado a dar
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em favor de Sol tudo o que possui: os bens de um so convertidos no corpo sadio do outro. J aludi tambm ao mito de origem de um tipo de feitio que consiste em produzir efgies que atraem seres no humanos para atacar os bens alheios como a roa, uma plantao de bananas, a produo de polvilho. Sol e Lua, ainda crianas, no cessam de importunar o av Wamutsini pedindo-lhe comida. O av por sua vez revela-se um grande avarento, pois possui uma roa de mandioca e uma produo considervel de polvilho (miak), mas s alimenta os netos com massa (miee), um subproduto muito insosso da mandioca. Ao descobrirem a avareza, os netos resolvem se vingar e produzem caititus, tatus e veados para comerem a roa do av. Outra vez um problema de compartilhamento espera-se que avs alimentem seus netos quando crianas, e que netos alimentem avs quando forem adultos conduz ao feitio. Se verdade que ningum espera de dois homens que compartilhem mulheres (apesar de mulheres terem de faz-lo quando so co-esposas), e portanto negar a esposa ao germano no pode ser entendido como uma falta similar avareza do av, uma ambiguidade nesta ltima histria nos remete ao problema do cime entre irmos. Que Wamutsini foi sovina (tekat atytu) ningum questiona, mas o mito enfatiza tambm a chateao constante dos netos, sua insaciabilidade: Atu, jumem! Atu, pirayt! , Vov, queremos beiju! Vov, queremos peixe!, repetem insistentemente os gmeos. O av um ciumento no de pessoas, mas de bens, e portanto culpado como o marido ciumento; mas os netos so demasiado vidos pelos bens alheios, e portanto culpveis como o irmo traidor, usurpadores e um pouco feiticeiros neste sentido. Ficamos por fim sem saber quem est certo e quem est errado, e o que resta a sensao de que no fcil viver a contento relaes de compartilhamento. Um dos objetivos deste captulo descrever este deve ser da consanginidade, em contraste com o que se espera de uma relao entre afins, e em contraste, tambm, com o que muitas vezes so ambos os tipos
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de relaes.
5.2Somostodosparentes138
Os Aweti contam de uma reza (kewere) extremamente perigosa que permite a um homem destruir toda a populao de uma aldeia. Este kewere teve sua origem nos tempos de Sol e Lua. Ao descobrir que sua me havia morrido definitivamente, os gmeos iniciam um longo lamento funerrio (tezotako), no qual choram, cantando ao estilo xinguano, em todas as lnguas atuais do Alto Xingu. Quando morre algum, as pessoas que vm chorar o morto devem lamentar-se enunciando a relao que o ligava ao falecido, segundo a frmula meu pobre pai, pobre pai dos meus filhos (marido), meu pobre neto, pobre resto de mim (lit. minhas pobres fezes, isto , irmo mais novo, aquele que veio depois de mim) etc. Lamentos fnebres evocam sempre termos de consanguinidade e nunca de afinidade, donde conclumos que todos aqueles que choram um morto apresentam-se, pelo prprio ato do lamento, como seus (ex-)consanguneos, ainda que durante a vida do falecido pudessem traar com ele as conexes mais diversas. Kwaza Kwat e Taty, Sol e Lua - inventaram o choro fnebre naquele momento, enunciando todas as posies relacionais existentes; neste mesmo movimento, deram origem s diferentes lnguas xinguanas e outras, diz-se por vezes - que constituem ao menos idealmente a fronteira de distino entre os povos atuais. Kwaza takaut, o ex-lamento de kwaza, portanto um carpido universal, que d conta de todas as relaes de cognao (consanguinidade e afinidade) possveis, para todas os tipos de
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pessoas (povos) existentes. Esta frmula verbal conhecida por alguns homens at hoje, mas deve-se ter enorme cuidado ao pronunci-la pois, ao ser proferida em determinada aldeia, todas os seus habitantes comearo a morrer gradualmente. Ao invs de ser evocado aps uma morte, como um lamento fnebre comum, o lamento de Kwaza antecede uma morte generalizada, sendo usado como forma poderosa de maldio139. Se um feiticeiro mata o filho de um homem, depois outro filho, depois outro, e este homem decide mudar-se para outra aldeia, ele canta (weytepy) kwaza takaut. Em seguida ele se muda, para no morrer tambm. O lamento atua como uma praga sobre a aldeia onde foi proferido, otywyza omao w, todo o povo [daquele que o evocou] morrer. Tamanha sua fora, este kewere s pode ser ensinado no meio do mato, pois no lugar onde se realizou o ensinamento todas as rvores morrero. Quem quiser aprend-lo deve pedir, muito discretamente, a quem conhece. O aprendiz dever amarrar um cordo de tempopit (cip cheiroso) na altura das tmporas um mtodo sempre empregado por quem vai aprender um kewere, pois isso retm as palavras enunciadas em sua cabea. Ao voltar para casa, ele no deve comer nada sem antes lavar a boca com folhas de tejang yp (outra espcie perfumada com usos variados), seno engolir as palavras que acabou de enunciar, e morrer dentro de poucos dias. Evoco este kewere para ilustrar a idia de que o grupo local se pensa como um grupo de parentes. Recordo o comentrio de uma velha com seu marido, a respeito de uma filha bastarda dele, j idosa tambm. Como a filha viesse quase todos os dias casa do pai conversar, aproveitando sempre para comer o que houvesse pela cozinha, mas nunca trazia nada de sua casa
Dizem que quando o dono da flauta karytu morre, no a comunidade que o lamenta, mas o prprio kat, karytu: os homens da comunidade, karytuzan, na condio de karytu, danam e tocam para o morto. As flautas so em seguida enterradas com seu dono. necessrio em seguida que os homens que participaram do ritual pinguem em seus olhos um colrio preparado com as folhas cheirosa de tejang yp (espcie no identificada, usada para diversos fins rituais e medicinais) espremidas em gua. Se isso no for feito, as pessoas da comunidade comearo a morrer, karytu kajzotakuwo, medida em que karytu lamentou nossa morte. O lamento de karytu, pois, potente como o de kwaza, provocando a morte daqueles que o presenciaram, tendo sido por isso como que lamentados em antecipao.
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em troca, a esposa certa vez reclamou, a propsito da sovinice da outra: ela no sua filha, no vou deix-la chorar no seu enterro quando voc morrer. No mesmo esprito, perante um ato que considerava generoso de minha parte, algum objeto dado de presente, disse-me um dia um jovem aweti: quando voc morrer, Marina, eu vou chorar no seu enterro. O sentido desta afirmao, que inicialmente me pareceu estranhamente mrbida, s tornou-se mais claro para mim quando ouvi aquela que evoquei primeiro, e aps a descoberta do contedo formal dos lamentos fnebres. Chorar no enterro implica o reconhecimento de uma relao de cuidado caracterstica das relaes entre cognatos. Kwaza takaut age sobre a aldeia como se, definidos a partir de sua relao com aquele que profere a maldio, todos fossem consanguneos ou afins reais, estes tambm designveis em termos de relaes de consanguinidade. O kewere tambm permite uma definio de parentesco em termos de influncia, capacidade de agir sobre outrem pelo fato da proximidade relacional. Apenas evocar a relao de parentesco j potencializa a ao do enunciador sobre as pessoas que amaldioa. Paradoxalmente, a relao evocada para fazer mal, e por reconhecer um mal feito: se na vida diria chorar pelo morte de algum sinal de reconhecimento da conexo de afeto que se teve com o morto em vida, aqui o choro reconhece uma relao para simultaneamente denunciar e utilizar seu potencial destrutivo. Mas a efetividade da maldio no est associada s conexes genealgicas e sim co-existncia no espao. O kewere, em suma, aponta para a proximidade como um elemento constituinte do parentesco: ambos tm um raio de ao espacialmente limitado, a ponto da noo de parente poder ser traduzida, com a vantagem de com isso mantermos a indeterminao do raio de abrangncia, por prximo. Que nos discursos aweti sobre quem deve ou no chorar no enterro de outrem o direito ao lamento seja to claramente associado ao dom espontneo e desinteressado de bens um dado importante que irei retomar em
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breve. Se moaza define, em certos contextos, o universo da gente xinguana, tywyza, irmozada o termo que designa o que os Aweti em portugus traduzem por etnia. Os brancos em geral, por exemplo, so itywyza, lit. meus irmos, meu povo, enquanto os Aweti em geral so tywyza de uma pessoa aweti em particular. Essa maneira de falar coerente com a relao entre co-aldees estabelecida via morekwat: agindo como um pai de todos, este os objetifica como irmos entre si. Em portugus tambm j me disseram algumas vezes, referindo-se ao grupo local: todo mundo aqui parente. O termo indgena mais parecido com esta ltima noo seria tooza, cuja aplicao estrita refere-se s relaes entre consanguneos de mesma gerao, too - germanos prximos (reais) ou distantes (filhos de germanos de mesmo sexo140, genealogicamente prximos ou distantes, dos pais). Enquanto tooza costuma indicar uma conexo histrica entre pessoas que se reconhecem como parentes, mesmo que distantes, tywyza est mais atrelado a uma identificao lingustica e cultural. Os caraiwa (brasileiros) so itywyza porque somos parecidos, falamos a mesma lngua, fazemos as mesmas coisas. A rede de tooza de uma pessoa, em consequncia de uma certa taxa de unies exogmicas em todas as aldeias, sempre se expande para alm dos limites do grupo local e lingustico, enquanto aqueles a quem se refere como itywyza em diversos contextos no sero reconhecidos como tooza, caso em que sero classificados izetu, diferentes. Too um termo simtrico de germanidade, quase sempre aplicado a parentes distantes, mas pessoas que se reconhecem como semelhantes, sem especificar posies relativas (mais novo ou mais velho), ou mesmo a natureza da relao: eventualmente um primo cruzado prximo, -
Filhos de germanos de mesmo sexo equivalem a irmos, e no so casveis, filhos de germanos de sexo oposto so designados por um termo alternativo, e so a opo preferencial de casamento. Parentes paralelos, enfim, so imediatamente como consanguneos, enquanto so cruzados so afins em potencial.
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pwyt, ser referido como too. Nesse sentido o termo o mais prximo de nossa noo genrica de parente, servindo quase sempre para apontar a existncia de uma relao - em contraste com a ausncia de relao - a meio caminho entre o prximo e o distante. Too parece ser um modo, mais do que tudo, de falar em identidade, justamente por obliterar diferenas de sexo e idade141. Mesmo entre os gmeos demiurgos, nos revela a mitologia de origens xinguana, a diferena constantemente marcada pelo fato de que um mais velho e o outro mais novo142, um belo e o outro feio, um bom e outro mau (Lvi-Strauss, 1991, j apontava que a gemelaridade era objeto bom para pensar a irredutibilidade da diferena nas cosmologias amerndias); essa diferena o motivo do fato de no poderem compartilhar suas esposas. Igualmente, dentro da famlia nuclear, no possvel se referir a um parente sem especificar posies hierrquicas, como as posies de originrio e secundrio entre irmos como disse, um irmo mais velho se refere ao mais novo que faleceu como meu pobre pequeno dejeto!. Na famlia nuclear, onde a distncia entre parentes tende a zero, portanto, ela evidenciada, enquanto a identidade s pode ser expressa a respeito de relaes cuja natureza no muito bem especificada: distantes
Existem ainda duas categorias de relao linguisticamente derivadas da noo de too: -too tat, companheiro, aquele com quem se tomar banho no rio ou pescar, por exemplo; e -too tatyp, amigo formal, algum normalmente distante geogrfica e genealogicamente, a quem se d e de quem se recebe objetos de alto valor, como uma rede, ou miangas, em ciclos de troca de longa durao. As duas categorias designam sempre pessoas do mesmo sexo do falante. O dom ao amigo formal visto como demonstrao de afeto, e a relao esperada uma de companheirismo e intimidade relaxada, como entre irmos. Aquele que tem um amigo numa aldeia vizinha pode dormir em sua casa, ou ao menos passar ali o dia, quando estiver em viagem. Por outro lado, a amizade formal no est livre de tenses: o pedido de um amigo soa como uma ordem, assemelhando-se ao pedido de um cunhado, a quem no se quer decepcionar. Isso resulta do fato de que amigos so sempre recrutrados em outros grupos lingsticos, sendo aproximados, justamente, pela instaurao da amizade (voc gostaria de me ter como amigo? diz-se, em geral, para iniciar estas relaes). Na condio de estrangeiros, amigos podem ser feiticeiros, e por garantia melhor que tenham seus desejos satisfeitos. Entre mulheres, contudo, nunca observei este tipo de tenso. Entre os Aweti, alis, apenas poucos homens possuem amigos formais, enquanto muitas mulheres cultivam esse tipo de relao. Que o amigo seja ora semelhante a um cunhado, ora semelhante a um irmo, percebe-se pelo seguinte fato: enquanto muitas pessoas dizem que um dos papis de um amigo facilitar o encontro do outros com suas irms, como um cunhado (o que registra Basso, 1973, entre os Kalapalo), outros afirmam que com a mulher do amigo se namora, como se faz com a mulher do irmo (ver tambm anlise de Viveiros de Castro, 1993, sobre os dados de Basso). 142 Seu [irmo] mais velho, tytiyt, e seu [irmo] mais novo, tywyt, so modos alternativos de se referir a cada um dos gmeos. Assim, para falar de Sol preciso aceder ao ponto de vista de Lua: Sol, tytiyt, o irmo mais velho de Lua, e vive-versa.
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germanos, too. Tywyza abrange um universo similar ao de tooza, nem prximo como a famlia nuclear dentro da qual as micro diferenas so obrigatoriamente evidenciadas, nem distante como outros xinguanos - um Kalapalo desconhecido, por exemplo - com os quais macro diferenas so marcadas pela mtua ininteligibilidade. Mais do que uma rede de relaes, este termo define um grupo, atravs de um referente, como povo de algum. Tywyt designa o irmo mais jovem de um homem, de modo que a posio do referente assimilada de um irmo mais velho. Contudo, no penso que devemos entender este termo como um marcador de distncia entre o sujeito e o grupo que em relao a ele se define. Este modo de falar aponta, antes, para o fato de que as noes de irmo mais velho e irmo mais novo podem servir para expressar uma relao lgica entre referente e referido, sendo que normalmente o mais velho de um grupo qualquer tomado como referente. Se trs pessoas saem a passeio, por exemplo, o grupo ser designado pelos demais por uma expresso que poderamos traduzir por o pessoal de fulano, fulano-za, onde fulano costuma ser o mais velho. Pela mesmo lgica, o par de gmeos Kwat e Taty, Sol e Lua, usualmente referido como Kwaza, os Kwat ou, melhor traduzindo, o pessoal de Kwat, porque Kwat o irmo mais velho. Tooza e tywyza so termos frequentemente mobilizados nas acusaes de feitiaria e outras contendas menos graves. Kariaw pejkyju ejatiyt?, Por que vocs esto matando a filha de vocs? teria dito um chefe no centro da aldeia, acusando os vizinhos de feitiaria contra sua filha. Itoo utepe eipe, kariaw akyj tsu ei poat-poatezoko itepe?, Vocs so meus too, porque esto me sacaneando dessa maneira? uma mulher diz que pensou consigo mesma, a respeito de seus coaldeos, quando lhe roubaram um colar de caramujo. Ei too eym atit, Eu no sou irmo de vocs teria gritado um rapaz s filhas da irm de sua me (MZD) aps uma
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briga em torno do uso do rdio comunicador da aldeia. Itywyza utepe ts, Eles so meu povo lamentou-se comigo um senhor, extremamente ofendido, aps uma discusso na praa central em que fora expulso da aldeia por alguns vizinhos, que o acusavam de acus-los indiscriminadamente de feiticeiros. It azo ti, itooza eym en, Deixe-nos, voc no meu too dizia um dos que lhe expulsaram nesta ocasio. Moaza, tooza e tywyza so diferentes maneiras de falar sobre identidade, na medida em que oferecem alguns critrios para traar uma distino entre dentro e fora, ns e outros. Este dentro o campo de incidncia da feitiaria, donde a mobilizao de tais termos nos atos de acusao. Ao mesmo tempo em que explicam a feitiaria como um ato de maldade pura e inexplicvel do feiticeiro, os Aweti sempre buscam as motivaes que teriam levado certo feiticeiro especfico e agir contra uma vtima especfica. Essas motivaes via de regra envolvem vingana por um feitio anterior, vingana por abandono de cnjuge, por fofoca, por comida negada, ou inveja do sucesso alheio. Em todos os casos de que tive notcia, o acusado ou um dos acusados (feiticeiros costumam agir em conluio) residiam no mesmo grupo local da vtima ou eram de seu grupo lingustico, muitas vezes eram ex-cnjuges ou parentes de ex-cnjuges, num caso um ex-amante, mais de uma situao envolvia feitio de consanguneos prximos como FB (isto , pai) contra BD (filha) ou mesmo MZS (irmo) contra MZD (irm). Em suma, o feiticeiro algum prximo, e as acusaes de feitiaria apoiam-se quase sempre no reconhecimento de falhas nessas relaes. O feiticeiro um parente ou, mais precisamente, um ex-parente, algum com quem o processo de aparentamento, que entendo aqui como um processo de identificao, falhou.
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Izetu, diferente143, o que se diz para marcar no parentesco, ausncia de identidade, e se ope a too, que como vimos designa especificamente as pessoas da sua gerao a que ego se v assemelhado, isto , germanos. Apesar de poder ser usado para irmos a qualquer distncia, itoo (meus parentes/germanos) muito mais comumente acionado para apontar os germanos no reais de ego, e por extenso a qualquer parente. O termo ytoto, que significa muito ou verdadeiro, acionado para especificar a proximidade genealgica: ikywyt ytoto, meu irmo de verdade, diz uma mulher, ou itywyt ytoto, meu irmo mais novo de verdade, diz um homem, por exemplo, sobre seu germano biolgico. Um homem reconhecido como itupizu, termo cuja posio mais prxima possvel em relao a ego a de FB, ser, por exemplo, frequentemente descrito como apaj too: um irmo (de conexo no especificada) de papai. Mas o desconhecimento da ligao genealgica no implica distncia social: apaj too frequentemente um sujeito prximo com quem ego mantm relaes afetuosas, e de quem tomar um nome para dar a seu filho. Izetu eym kaj, Eu e voc no somos diferentes, o que se diz para argumentar que no se deve acusar o outro de feitiaria, ou que absurdo algum ter feito feitio contra um parente, ou que se est disposto a ajudar a pagar o paj que vai curar um parente de feitio.
5.3Otokwawap:reconhecerseparente
Toda e qualquer relao com estranhos ou pessoas distantes pode ser (ainda que no o seja necessariamente) qualificada como relao de parentesco isto , uma relao qual se aplica um termo seja de afinidade, seja de consanguinidade. Um exemplo bastante marcante disso
Ize (+ tu, nominalizador), diferente, outra coisa, tem o sentido claro de distinguir-se de um objeto qualquer em relao ao qual considerado; momo, designa um outro do mesmo, mais um, o prximo, o que vem a seguir.
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enquanto estive no campo foi o tratamento conferido ao candidato prefeitura de Gacha do Norte, municpio ao qual pertence boa parte das aldeias do Alto Xingu. Numa reunio no centro da aldeia em que tentava explicar seu programa de governo, este senhor foi alvo de um tenso dilogo com um lder aweti, que o chamava inicialmente de irmo mais novo (itywyt) para em seguida mudar sua forma de tratamento, aconselhado por outros homens que participavam da reunio, passando ento a cham-lo de sogro (itaty up, lit. pai da minha esposa). Estava bastante claro ali que os Aweti esperavam descrever e ao mesmo tempo impor com essa forma de tratamento um tipo de relao no qual eram determinantes clculos de idade relativa, status, respeito devido e expectativas de troca144. Nesse sentido parentesco apenas um quadro de tipos de relao possveis em qualquer interao (inclusive com seres no humanos), uma ordem especfica sobre a noo mais geral de relacionalidade. Sobretudo nos contextos de encontro com gente de outros grupos xinguanos - encontros que se do hoje em dia muitas vezes nos hospitais e casas de apoio ligadas ao sistema de sade moaza, no sentido de xinguano, delimita um universo de interesse e reconhecimento: basicamente de moaza que se fala em casa e com os parentes prximos da aldeia - quem casou com quem, quem adoeceu de qu, quem est sendo acusado, que nome fulano deu a seu filho, que compras fez na cidade, o que comeu no restaurante, o que falou do cunhado etc. Sempre me impressionou o fato dos Aweti serem capazes de reconhecer praticamente todo e qualquer xinguano com quem cruzam pela frente, ou de quem ouvem falar. Falo de cerca de trs mil pessoas. Seno conhece todos pelo nome, qualquer aweti adulto ao menos capaz de identificar a
O texto de Overing (1985) sobre o uso de termos de parentesco na mitologia Piaroa minha maior influncia aqui. As descries de Gow (1991, 1997) tambm foram importantes para me ajudar a pensar uma descrio simples e prxima experincia aweti do que ser parente.
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parentela do sujeito em questo145, e muito provavelmente pode sacar da memria algumas histrias trgicas da vida daquela pessoa ou de seus parentes. Assim, quando emprega um termo de parentesco nas conversas com esses indivduos distantes e conhecidos seno por poucos encontros na vida ou apenas por ter ouvido falar, um aweti est se valendo no apenas do princpio de que toda e qualquer interao entre pessoas envolve o emprego de um termo de parentesco cujo sentido justamente tornar clara a natureza da relao em jogo (hierrquica, igualitria, jocosa, envolvendo ou no intenes sexuais), mas se vale tambm, sobretudo, de um critrio histrico que reconhece ligaes prvias e continuadas que remontam primeira ou segunda gerao de ascendentes dos interlocutores. No exatamente o mesmo que se passa, portanto, quando um aweti trata o candidado prefeitura de Gacha do Norte de pai da minha esposa e quando trata um Kuikuro de primo. No primeiro caso, trata-se apenas de projetar o tipo de relao esperada de um homem que claramente outro, estrangeiro, no parente, a quem se reconhece uma posio elevada e a quem se gostaria de forar a ter para com o falante considerao e respeito, compromisso. No segundo caso, quase sempre, ainda que no necessariamente, o falante vale-se de um critrio do tipo minha me e o pai dele se reconheciam como irmos, logo ele meu primo. Note-se que o que chamo de critrio histrico no tem nada a ver com biolgico ou genealgico: dificilmente a pessoa poder afirmar porque seus respectivos genitores se reconheciam como irmos, pois o fato importante apenas o do (re) conhecer-se mutuamente. Da que falar sobre, comentar a vida, conhecer os nomes de virtualmente todos os xinguanos coloca-os numa situao de reconhecimento diferente daquela que possuem com os brancos ou outros ndios, de cuja histria pouco sabem. Ainda que todo e
claro que uns so mais famosos que os outros, e atravs deles toda uma rede de parentes pode ser identificada. O termo terytu, com nome, famoso, aplicado a esses indivduos cujo nome conhecido por toda parte.
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qualquer interlocutor seja implicita ou explicitamente tratado segundo uma categorizao que podemos por comodidade chamar de parentesco - mas que no limite poderia ser apenas uma lista bastante precisa de posies relacionais possveis patente que h maneiras diferentes de ser relacionado ali. Mais precisamente, diria que chamar por um termo de parentesco no significa reconhecer como parente, enquanto conhecer como parente tudo que se precisa para ser parente. O parentesco tem tudo a ver, me parece, com o re-conhecimento - conhecimento que requer constante atualizao - que se tem das pessoas. Se verdade que o parentesco tem a ver com histria146, claro que as pessoas que vivem no mesmo grupo local so muito mais parentes, tm muito mais canais de reconhecimento, que as demais. O grupo local aweti bastante estvel: quase todos os habitantes das duas aldeias atuais sempre viveram juntos, sempre ocupando reas prximas do mesmo territrio, salvo curto perodo de disperso por conta de inmeras epidemias de sarampo e catapora, nos anos 50 e 60. A fisso mais recente deste grupo, que havia se reconstitudo na dcada de 70, ocorreu na dcada de 90, em consequncia do agravamento de acusaes mtuas de feitiaria. A endogamia de grupo local desejada ainda que nem sempre possvel; h diversos jovens aweti sem primos para casar na aldeia atualmente, e no entanto a maioria rejeita a opo de casar fora. Mas o ponto que desejo enfatizar por ora que a preferncia por casar dentro da aldeia, ou eventualmente a endogamia de grupo lingustico, produz evidentemente uma situao em que o parentesco dentro de tal grupo no pode ser apenas remetido a um saber vago da histria de tratamento mtuo entre ascendentes. A maioria dos habitantes das duas aldeias aweti atuais possui de fato conexes
O que no novidade no americanismo tropical: ver Gow 1991, 1997, sobre o parentesco como memria. Mas notar que no estou falando aqui da histria do cuidado recebido por uma criana, e sim histria de um recohecimento mtuo que precisa pouco mais do que o tratar-se corretamente, ao longo das geraes, para ser mantido.
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genealgicas suficientemente prximas para serem perfeitamente conhecidas por todos. Alm disso o conhecer como parente no exclui nem substitui uma noo de consubstancialidade entre parentes prximos, pais, filhos e irmos reais, entre os quais diversos tabus alimentares e restries de trabalho vigoram em momentos de fragilidade corporal da pessoa (ver cap. 3). Mas importante notar que, enquanto filhos e germanos de ambos os sexos devem se abster de comer pimenta quando um homem operado (no se deve comer pimenta sobre aquele147 que foi operado ou possui um corte profundo na pele, seno arde), a esposa no segue qualquer restrio: ela sempre diferente, izetu, no importa quo prxima genealogicamente, nem quo antigo for o matrimnio. Todos os xinguanos so parentes no sentido de que so capazes de recuperar relaes pregressas de mtuo reconhecimento como parentes. Nesse sentido tambm todos os aweti so parentes, e o so ainda mais porque as relaes entre eles no so apenas de reconhecimento como parente, mas tambm de compartilhamento de substncia e de nomes. Ainda no universo restrito do grupo local, no entanto, a questo do saber fundamental: certa vez entrou na casa em que eu vivia com minha me aweti uma senhora que reside do outro lado da aldeia. Nossa me est morrendo, anunciou para minha me, empregando o pronome de primeira pessoa plural inclusivo kaj-. Em seguida virou-se para mim explicando: Voc sabe que ela (referia-se minha me) minha irm mais nova. Sim, a me dela era irm mais nova da sua me, no?, perguntei. An, izetu. Otokwawap tene tai No, elas eram diferentes. Elas se conheciam apenas [como irms]148. Para entender as conexes de parentesco entre pessoas altamente improvvel que se use
An tsampit tiuka nanete, onde: an-, negativa; tsampit, pimenta; ti, primeira pessoa plural; u, comer; -ka, negativa; n, pronome pessoal terceira pessoa singular; ete, referente a, sobre (n+ete, nanete). 148 O- prefixo pronominal de terceira pessoa; to- indica mutualidade; -kwawap, saber ou conhecer; tene, apenas; tai, pluralizador do pronome de terceira pessoa, para falante feminino
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na lngua aweti uma formulao do tipo o que fulano de fulano. A questo torna-se compreensvel sob a formulao o que fulano diz para fulano?, kapatsu ei n pe, isto , que termo relacional emprega para invoc-lo ou se referir a ele?149. As conversas com os jovens aweti sobre suas opes de casamento sempre remetiam tambm a consideraes do tipo chamo o pai dele de awaj (MB etc.), ento ele est para mim como meu pwyt (MBS, FZS etc: casvel), mas chamo sua me de atiti (FM, MM etc.), ento digo para ele awaj (possvel sogro e no possvel marido), por isso no posso me casar com ele150. Os velhos se casaram de qualquer jeito, comentam alguns a respeito dessa multiplicidade de laos contraditrios entre as pessoas, por isso agora tal confuso. Mais do que reiterar para o caso aweti o que j foi exaustivamente repetido acerca do carter flexvel dos sistemas de parentesco amerndios, desejo enfatizar de que modo a enunciao eu chamo o pai dele de define o parentesco no como algo que mas como algo que se conhece como. Alm disso, esse conhecimento diz respeito s relaes precedentes pois para justificar porque eu chamo o pai dele de alega-se normalmente que mame chamava o pai do pai dele de e assim por diante. Ora, os Aweti referem-se a quase todas as coisas do mundo como sujeitos que falam de uma maneira especfica - tirar gua da torneira faz-la falar tsyryryge, por exemplo. Como o canto dos pssaros, cujas espcies so quase sempre nomeadas por onomatopias que remetem a sua lngua (tiinku), a fala das coisas define sua natureza diferencial, sua especificidade151. Eu falar de tal maneira de e
Comparar com sistema onomstico: ao invs de dizer meu nome X, costuma-se dizer minh me me chama de X. 150 Como disse acima, no me parece que seria o caso de reduzir a terminologia de parentesco a uma funo do sistema matrimonial, uma vez que os termos podem ser empregados para imprimir qualidades variadas a relaes determinadas. Dentro desta lgica, uma das qualidades que podem imprimir diz respeito categorizao de pessoas como possves amantes ou cnjuges, casveis (todos do sexo oposto que posso designar como ipawyt) e no casveis (todos os demais). 151 A idia de que a fala define a natureza das coisas parece estar relacionada ao privilgio do discurso direto sobre o indireto na lngua aweti. Para dizer por exemplo diga a fulano que vou visit-lo amanh usa-se a construo vou visitar voc amanh, voc dir a fulano. No caso do parentesco, alis, a frmula precisa no seria chamo o pai
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para152 tal pessoa, logo, define meu ser: as relaes que me antecedem, as que estabeleo e as que projeto para meus descendentes. Em suma, podemos falar de uma gradao entre os mais parentes que convivem em grupos locais e/ou partilham o mesmo cdigo lingustico grupos preferencialmente endogmicos, e que mantm contatos rituais e cotidianos intensos - e aqueles que apenas se conhecem por ver ou ouvir falar, ou com os quais as relaes so de baixa intensidade, sendo portanto relaes de menor expectativa quanto performance de atitudes formal ou informalmente prescritas. Enquanto se espera de um irmo real que jejue por ocasio do adoecimento do outro, que partilhe seus bens quando necessrio, que o respeite abstendo-se de namorar com sua esposa etc., de algum que apenas se conhece como irmo porque seus ascendentes de mesmo sexo assim tambm se conheciam, espera-se somente que trate ego por meu irmo mais novo ou meu irmo mais velho. A questo do uso adequado das formas de tratamento talvez permita-nos pensar que a circulao de palavras est em continuidade com a circulao de coisas. Isso por que todas as relaes no Alto Xingu parecem-me distinguir-se em
dele de awaj mas sim awaj eu digo para o pai dele. A fala assim preservada como um ndice da sua pessoa, de modo que sua existncia objetificada, ganha corpo, na fala. E portanto os modos de falar definem modos de ser. Gostaria de dedicar uma investigao mais aprofundada ao assunto em breve. 152 Tanto falar de quanto falar para so expressos atravs da partcula pe: otiing itepe pode significar tanto que ele falou para outrem (o- , terceira pessoa + - tiing, falar) a meu respeito (ite, meu + pe, para, sobre) quanto que falou dirigindo-se a mim. De alguma maneira falar sobre algum sempre falar para algum, idia que pressupe tanto certa onipresena do referente quanto uma capacidade das palavras de atravessar o espao. Assim uma mulher falava para/sobre a chuva: chova! Ikyt ne aman! : i- imperativo; kyt- chover (verbo); ne-reiterao; aman, chuva (substantivo). Certa vez em Canarana recebi a seguinte incumbncia de uma mulher Aweti, que reside entre os Kamayur e que desejava que seu filho, que mora entre os Aweti, fosse encontr-la no caminho que liga as duas aldeias: Ito eamamaj atakaw eetu tut imenbyt pe - Vai encontrar sua me, voc dir para meu filho (Ito, forma imperativa do verbo ir; eamamaj, me + pronome posssessivo segunda pessoa singular; atakaw, encontrar; e, pronome pessoal segunda pessoa singular; etu, dizer, forma presente ou pretrita; imenbyt, filho + pronome possessivo primeira pessoa singular; pe, para) . Quando cheguei na aldeia passei ao garoto o recado da seguinte maneira: Ito iatakaw, ei epe eamamaj, Vai me encontrar, sua me disse para/sobre voc (iatakaw, encontrar + pronome pessoal primeira pessoa singular; ei, dizer, segunda pessoa singular, pretrito; epe, para/sobre + pronome pessoal segunda pessoa singular). Mais uma vez aqui s possvel falar sobre outrem preservando o discurso direto: note-se como essa forma de construir o discurso remete o filho ocasio em que estive com sua me, aproximando as duas cenas temporalmente.
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termos do regime de bens envolvido ora pagamento, ora compartilhamento, ora troca obrigatria. Deste modo, enquanto entre consanguneos prximo e afins preciso que as coisas certas circulem do jeito certo, entre parentes distantes basta que as palavras certas circulem, ou que as palavras circulem do jeito certo.
5.4Izetueymkaj:doquesepassaentreparentes
Assim como kwaza takaut revela o grupo local como um corpo de parentes, ou pessoas com acesso mtuo aos corpos umas das outras, alguns modos de interpretao de sonhos e fatos extraordinrios baseiam-se na fuso da pessoa com aqueles de quem est prxima. Remeto a apenas dois destes casos, a ttulo de exemplo. Se uma pessoa tem uma experincia visual enganosa, enxergando uma coisa que no est l ou vendo uma coisa no lugar de outra, isso talvez signifique que algo de ruim poder passar-se num futuro prximo com ela, ou com um parente seu. O engano visual uma apario de kat para esta pessoa, como um aviso do que ir lhe passar. Tal experincia designada pelo termo temotinapyjtu, cuja etimologia me escapa, e me foi explicada da seguinte maneira: kat otemiinkukat kajkyty, kajmaotu ytang, kat se mostra para ns, antecedendo a nossa morte. Em outra conversa explicaram-me algo um pouco diverso: kat se revela kajtoo maotu ytang, anunciando a morte de um too, um parente, em suma. Que estas duas alternativas no sejam contraditrias tornou-se para mim ainda mais evidente ao perceber a maneira como os Aweti se referem ao adoecimento grave de um membro do grupo. Kajmaoju Marina, an kajkatujuka, estamos (ns incl.) morrendo, Marina, no estamos bem, avisou-me certa vez um rapaz a respeito da piora do estado de sade de uma irm de sua me, irm de minha me aweti tambm. O ns inclusivo, suspeito, se referia em parte ao fato de nossa
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ligao comum com a doente, mas sobretudo remetia minha incluso, por efeito da longa estadia, no coletivo Aweti que se pensa como um ns que morre, coletivamente, com a morte de um de seus membros. Meses depois, recebi no Rio de Janeiro a ligao de outro rapaz que me contava sobre uma criana da casa vizinha sua que se machucara com a espingarda do pai. Azomaoju Marina, an ikatujuka awytyza, ns (exclus.) estamos morrendo, Marina, os Aweti no esto bem. Neste momento, to longe eu estava, j no era parte daqueles que estavam morrendo junto com o menino atingido. O que importa ressaltar, no entanto, o fato da morte ser um evento que atinge o coletivo como um corpo uno. Entendo, assim, que uma experincia extraoridinria com kat anuncia seja a morte daquele que a viveu seja a de um parente seu, porque ambas so a mesma coisa. No mesmo sentido, se uma pessoa sonha que est com diarria, significa que algum too ir adoecer gravemente. Neste caso, a perda incontinente de algo que fazia parte de si indica a perda do parente. Aquele que morre como uma parte do corpo do outro se esvaindo sem controle. No vou me extender, contudo, na questo da interpretaes dos sonhos, pois seramos obrigados a analisar uma quantidade muito maior de dados para avaliar se devemos entender seu contedo como metafrico ou metonmico. Os modos de interpretao de eventos que acabo de evocar dizem mais respeito a um reconhecimento da fuso que qualifica a relao entre certos parentes basicamente, cognatos prximos que aos processos constitutivos de tais relaes assim como entendidos pelos Aweti. Para entender tais processos sugiro que devemos olhar para as circunstncias em que discursos de parentesco so mobilizados, circunstncias em que o aparentamento colocado em jogo, confirmado ou descartado. Diria que podemos distinguir quatro contextos em que este tema se coloca para os Aweti: quando falam sobre os perigos da influncia mtua entre pais, filhos e germanos reais, sobretudo por ocasio do nascimento de uma criana, do adoecimento de um
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parente que impe a necessidade de jejum e quando se est realizando um contra-feitio; quando falam da necessidade de compartilhamento de comida entre pessoas que mantm uma relao de cuidado mtuo, e do reconhecimento de tal cuidado como efeito esperado; quando falam sobre a necessidade do compartilhamento de bens de valor (kat) para o pagamento de tratamentos xamnicos, servios funerrios e contra-feitio; e quando discutem temas polmicos da vida comunitria, como casos de enfeitiamento ou contendas conjugais, momentos em que se define quem est do lado de quem, quem acredita em quem. Este ltimo aspecto ser o tema do prximo captulo. A concepo produz uma conexo entre ambos os pais e os filhos que independe das relaes estabelecidas ao longo da vida da pessoa uma idia razoavelmente prxima concepo da gentica ocidental. Ainda que os Aweti possam eventualmente comentar sobre as semelhanas de traos faciais ou de tom de pele entre pais e filhos, contudo, o que mais importa quanto conexo dada na concepo no so as semelhanas fsicas, mas o fato de que aquilo ocorrido a uns tem conseqncias sobre os outros donde as inmeras proibies seguidas pelos genitores aps o parto descritas no terceiro captulo. De resto, a semelhana fsica entre pais e filhos via de regra evocada nos casos de filhos ilegtimos, para criticar implicitamente a atitude de um dos genitores, em afirmaes do tipo: olha como a pele dela escura, porque filha daquele ndio de outra aldeia, ou quando viram a cara do Matipu tiveram a certeza de que a menina era filha dele, e no do rapaz que a me dizia ser o pai. A necessidade de se recorrer a este tipo de comprovao est, claro, associada ao fato de que um filho ilegtimo no costuma ser nem amplamente reconhecido nem completamente ignorado, de modo que as possibilidades de relaes entre genitores, pais sociais, filhos e afins destes so bastante amplas, deixando margem para grande confuso.
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H por exemplo entre os Aweti um grupo de irmos dos quais apenas um, diz-se, filho do marido de sua me a quem no obstante todos tratam como pai. A irm mais velha seria filha de um homem Kuikuro com quem a me, hoje muito velhinha, teria vivido antes de casar-se com o homem aweti que seu marido at hoje. Apesar da prpria filha ter me contado esta verso de seu nascimento, ela e outros no deixam de sustentar certa dvida sobre sua paternidade. Um velho que hoje reside na casa ao lado poderia tambm ser seu pai, sendo ele, aparentemente sem maiores dvidas, o genitor da quase todos os seus irmos mais novos, salvo o caula, nico filho legtimo do marido de sua me. Ainda que as histrias sobre filhos ilegtimos circulem amplamente, no seria o caso de discut-las com os maridos trados que agem sempre, para todos os efeitos, como pais verdadeiros das crianas. Mas o fato de que todo mundo sabe sobre fulano ser na verdade filho de sicrano com quem sua me teve um caso durante anos suficiente para que se espere uma relao tipo pai-filho: esse velho (o pai) ruim, ele acusa (de feitiaria) o prprio filho153 (ilegtimo), e o marido da filha (tambm ilegtima), comentavam alguns. Num outro caso, um homem reconhecido como pai biolgico de uma jovem faz piada sobre agora ter de respeitar o namorado dela. A garota tambm faz parte de um grupo de germanos cuja paternidade reputada aos mais diversos genitores, que teriam sido ex-amantes de sua me. Tais histrias so difceis de confirmar, mas em diversas ocasies eram os prprios genitores que me apontavam um filho nascido na casa ao lado, e criado pelo vizinho como se fosse filho dele. Espera-se que os pais verdadeiros de uma pessoa, sejam ou no reconhecidos por todos, comportem-se como pais em relao a ela e seus cnjuges, isto , que mostrem cuidado e compaixo para com os consanguneos, e respeitem os afins. Mas se a conexo dada na concepo no esquecida, ela no tampouco sobrevalorizada, de modo que possvel, como
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Que o chama de pai, upizu, termo empregado a todos os too (B) do pai de ego.
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se viu, a um homem acusar o suposto filho de feitiaria, o que seria muito mais dramtico entre pais e filhos criados como tal, enquanto o outro no chega de fato a respeitar o possvel futuro marido da filha. Essa conexo no mais nem menos importante que aquela estabelecida no processo de criao que se d entre pais e filhos biolgicos ou adotivos. To absurdo quanto um pai acusando o filho biolgico uma pessoa falando mal dos pais adotivos pelas costas, como me explicava uma mulher sobre a filha de uma irm falecida que havia sido criada at adolescncia em sua casa: foi com o peixe do meu marido que ela cresceu, e agora fica falando mal de mim e de minhas filhas (por causa de um namorado em comum com uma destas). Ela no me chama de me, e nem olha mais para ns. Como um aparte, noto que fato relativamente comum, alis, uma pessoa reclamar que um vizinho nem sequer olha mais em sua em direo. Foi o que me disseram por exemplo a respeito das mulheres de uma famlia que terminou por abandonar a aldeia, quando alguns aweti perguntavam-me, acreditando que eu saberia mais do que eles sobre o assunto, sobre a iminente partida. Elas no falam mais conosco, nem olham na nossa direo, An kajmotiingyka, an omaemaeka kaykyty. Eis o auge da ausncia de reconhecimento, o passo seguinte ao no reconhecimento verbal - no me chama de me e no me olha precedem fala mal de mim. A interconexo resultante da concepo parece ser a base da classificao de parentes que devem abster-se de determinados alimentos quando uma pessoa adoece recomendao aplicada apenas aos pais, germanos e filhos reais do doente. O cnjuge no precisa abster-se, donde vemos que no existe, neste caso, a idia de que comensalidade produz consubstancialidade, ou identidade corporal. Mas consubstancialidade est longe de ser o nico ou mesmo o mais importante critrio para os Aweti quando discutem o que se espera de uma relao social. Como chamou a ateno Gow (1991) a respeito dos Piro da Amaznia peruana, a memria do cuidado
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um elemento extremamente importante na constituio de relaes de parentesco, donde a indignao da me adotiva com a sobrinha ingrata. Ainda assim, relevante que os afins sejam para sempre outros corporalmente - o que os torna mais prximos de serem outros politicamente. A comida compartilhada e deve circular livremente dentro de casa - quase tudo que trazido deve ser dividido igualmente, sobretudo se h escassez. Casais jovens com poucos ou nenhum filho costumam residir com os pais de um dos cnjuges, havendo preferncia pela residncia matrilocal154, ainda que ambos os jovens casados devam prestar servios aos sogros, ajudando-os nas tarefas domsticas, independentemente do local de residncia. Casais com muitos filhos costumam residir sozinhos com sua famlia nuclear, agregando, medida em que ficam mais velhos, cnjuges dos filhos, pais idosos, germanos ainda solteiros etc. O necessrio para que uma pessoa sobreviva na aldeia viver em uma casa com ao menos uma mulher que produza polvilho e prepare o beiju, e um homem em idade produtiva que abra uma roa e pesque. Entre os Aweti h por exemplo uma mulher de meia idade separada que vive com sua filha pequena e seu pai tambm separado, j em seus 60. Quanto mais pessoas vivem numa casa, o que implica provavelmente que ali convivem de diversas famlias nucleares, mais a repartio de comida ser um tema de discusso. Pois se verdade que a comida deve ser compartilhada, toda comida tem dono, e sua circulao no automtica, mas um sinal de ateno s expectativas de reciprocidade. Muitos jovens comeam a abrir suas roas antes de casar, onde sua me e irms iro colher mandioca para produzir polvilho, mas possvel tambm que o rapaz s comece a levar a srio esta tarefa aps o casamento, quando vai abrir uma roa para sua jovem esposa, que
Sendo que entre os Aweti, como j foi reportado para outros grupos xinguanos, verifica-se a tendncia a que filhos de famlias de chefes permaneam na casa paterna apos o casamento ao invs de irem viver com os sogros, o que por sua vez contribui para o maior fortalecimento dessas casas na poltica alde.
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trabalhar com a ajuda das cunhadas e da sogra. Uma mulher com filhos colhe sua mandioca nas roas do marido e talvez dos filhos solteiros, sempre ajudada pelas filhas e noras. Apesar de trabalharem em grupo, as mulheres sempre sabem o polvilho de quem esto produzindo: se da dona da casa, sua cunhada ou de sua nora, por exemplo. As demais esto ali trabalhando para a dona do polvilho, uma distino inoperante, obviamente, em casas onde vive apenas uma famlia nuclear e as filhas trabalham para a me para produzir o nico polvilho de que iro dispor. A principal conseqncia da distino da dona da produo diz respeito ao momento do consumo. Todas as manhs as mulheres acordam e preparam uma certa quantidade de beijus (jumem) para comer com peixe, se houver, e para diluir em gua produzindo o mingau que ser consumido ao longo de todo o dia, ywap. Espera-se, no caso de um certo nmero de mulheres em idade produtiva vivendo juntas, que alternem-se neste trabalho cotidiano, cada uma fabricando jumem com seu prprio polvilho. A alternncia no trabalho inclui dona da casa, filhas e afins. O mesmo se passa quanto ao consumo de peixe, cuja proviso espera-se que seja responsabilidade compartilhada entre os homens da casa em idade produtiva. A pesca das crianas, jovens solteiros e pais de famlia preparada pela esposa, me, irms ou filhas. Mas uma jovem esposa deve encarregar-se da preparao do peixe trazido por seu marido e cuidar da distribuio equnime do cozido ou assado a todos os membros da casa. Se a pesca for muito abundante ela dever oferecer alguns peixes crus seus afins e consanguneos, quer residam na mesma casa que ela, quer em outra. Os momentos em que ncleos familiares menos produtivos dentro de uma casa podem distribuir sua proviso de peixe ou beiju so bastante significativos, pois atestam sua disposio em compartilhar o pouco que tm, em reconhecimento pelo que recebem cotidianamente da parcela mais produtiva de seus coresidentes. Cada ncleo familiar tem seu polvilho, cada esposa tem seu peixe cozido, cada um deve
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contribuir com seu quinho alternadamente. O mesmo se passa, num volume menor, entre parentes de casas distintas. Para alguns se manda comida sempre que h, para outros apenas quando h em abundncia, para outros raramente, e a entram consideraes de ordem subjetiva. Entre duas filhas de irm, cada uma residindo em casa prpria, talvez uma seja mais frequentemente destinatria do excedente alimentar simplesmente porque as relaes de ajuda mtua com ela sempre foram mais intensas e ela, mais do que a outra, preocupa-se em enviar irm da me o que h de comida em sua casa. Alm disso, tudo que sai da famlia nuclear, mesmo dentro de casa, obedece a um clculo de retorno: queles que costumam compartilhar com a famlia necessrio dar em troca, generosamente; queles que no o fazem, mas com quem a famlia sente-se obrigada por laos de parentesco, preciso dar tambm, talvez com menor generosidade, ou projetando expectativas de retorno futuro. Dentro e fora de casa o compartilhamento no automtico, pois, exigindo das mulheres e homens constantes clculos sobre a melhor diviso a ser feita, e crticas quanto parcela oferecida por outros so comuns. Contudo, se um pai ou uma me podem criticar os filhos que furtarem-se a ajudar de boa vontade, seria impensvel criticar abertamente um afim coresidente. De todo modo, mesmo dos filhos e irmos espera-se retorno pelo produto compartilhado de um trabalho. Lembro-me de uma jovem comentando comigo estar com vergonha de sua irm que havia sado para pescar (mulheres costumam faz-lo, esporadicamente, se por acaso os homens da casa esto viajando, ou por diverso) e, tendo logo em seguida ficado menstruada, no podia comer o peixe que havia trazido, ora consumido por ns em sua casa. Ve-se que o fato de uma irm alimentar a outra com o produto de seu trabalho, digno de nota, e no evidente. A expectativa de retorno especialmente tensa em relao ao casal. Idealmente homens e mulheres trocam peixes por beiju, escondidos da famlia, desde o namoro. Os Aweti gostam de traduzir o
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termo que designa tais ddivas, teporumaj, por segredo (mesma traduo aplicada aos correlatos do termo em outras lnguas xinguanas), mas usam a palavra para indicar tambm que algo dado de presente, isto , sem que haja a obrigao de retorno. Hoje em dia, diziam-me os Aweti, raramente as mulheres do presentes a seus namorados, enquanto esperam receber deles no apenas peixe, mas tambm artigos industrializados comprados na cidade, sobretudo vestidos. Depois do casamento, contudo, homens e mulheres podem ter problemas com a falta de reciprocidade do cnjuge na proviso da comida familiar, ainda que seja mais comum mulheres reclamarem disso. Voc tem que casar com homem feio (moat loleput) Marina, homem que no gosta de festa, pois esses no reclamam quando a gente manda eles trabalharem, aconselhou-me uma irm certa vez, como j aludi acima. comum que as mulheres precisem mandar o marido pescar, ou plantar roa. Mas j ouvi falar tambm de um homem que teria enfeitiado sua mulher porque ela, por cime, se recusava a fazer beiju para ele. Por outro lado, a pessoa pode marcar que tem problemas na relao recusando-se a comer o que lhe oferecido pelo cnjuge. Assim como a futura sogra deve comer o peixe trazido pelo pretendente da filha para selar o casamento (ver abaixo), uma mulher deve comer o peixe trazido pelo marido, e um homem o beiju preparado pela esposa, para manter o casamento. Com todas as nuances relativas relao entre germanos e quela por vezes tensa entre os cnjuges, podemos ainda assim dizer que uma famlia nuclear formada por um casal e seus filhos solteiros a unidade mais prxima de um compartilhamento no problemtico de alimentos. Este vai se tornando mais controverso, ou seja, torna-se um tema de clculo, medida em que os filhos casam-se e passam a ter seus prprios filhos e afins com quem devem compartilhar alimentos tambm. Mgoas entre pais e filhos casados a este respeito no so incomuns: Minh me nem chega a ver o dinheiro da sua aposentadoria, pois o marido dela gasta tudo comprando
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coisas para a prpria irm. Mame no podia deixar isso acontecer comentava uma amiga cuja me reside entre os Kamayur, povo de sue marido, reclamando por no ter recebido algo que havia pedido. Ou ento algum dizia a respeito de um senhor cujo filho caula, com quem ele residia, estava viajando h vrios meses: Coitado daquele velho, o filho (primognito, no coresidente) no d peixe ao prprio pai, que est passando fome. De irmos residindo em casas separadas exige-se menos, mas ainda assim a diviso de uma colheita especialmente farta de determinada fruta, ou o envio de uma panelinha de mingau cozido de mandioca (manioky), so gestos sempre esperados e apreciados. Avs e netos podem estabelecer relaes bastante variadas, ainda que o esperado seja a generosidade dos primeiros para com os segundos, na infncia dos netos, e vive-versa, quando os avs passam a necessitar de cuidados. Caso em que novamente a expectativa justifica reclamaes: Eles nunca do nada a seus netos, nunca cuidam deles, por isso as crianas nem os chamam de avs, comentava comigo uma mulher sobre os sogros de sua filha. Passamos ento de uma responsabilidade sobre o corpo alheio, que diz respeito excessiva influncia que germanos, pais e filhos mantm entre si a partir do nascimento influncia amenizada mas no anulada ao longo da vida da pessoa s expectativas de compartilhamento de comida com aqueles com quem se vive e com quem se mantm relaes de cuidado mtuo. H ainda que diferenciar um cuidado que se espera dos adultos em geral em relao s crianas ningum deveria deixar os filhos dos outros passando fome nem vontade de comer do cuidado mtuo que determinados adultos mantm entre si. Os afins, com quem em geral uma pessoa convive cotidianamente, esto numa posio ambgua. muito comum que pessoas em tais relaes cuideam-se mutuamente e desenvolvam conexes de afeto e respeito sincero, podendo ser parceiros constantes em tarefas dirias como lavar a roupa no banho ou a
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pescaria, por exemplo. Por outro lado, quase sempre o compartilhamento de comida com os afins ser sentido como uma obrigao e um peso, enquanto o retorno daquilo que foi dado muitas vezes percebido como insuficiente. Os afins tendem a ser percebidos, em suma, como excessivamente demandantes e excessivamente sovinas, mesmo quando as relaes so bastante amigveis. O que no significa que sentimentos da mesma natureza no sejam comuns entre consanguneos prximos. No primeiro captulo comentei o fato da doena fornecer um contexto de atualizao da humanidade de um grupo pacifista, coeso, belo, possuidor de conhecimentos rituais etc. atravs da realizao de cerimnias de cura. A doena tambm um importante contexto de atualizao das relaes de parentesco. Primeiro, porque um adoecimento grave proporciona ocasio para a confirmao da conexo fsica entre genitores e seus filhos e entre germanos reais, alm de confirmar a disposio que tais parentes devem te de sacrificar-se uns pelos outros abstendo-se de realizar determinadas atividades e ingerir determinados alimentos. Ora, uma disposio muito similiar, num dimetro de relaes bem mais amplo, requerida e mobilizada para o pagamento do tratamento xamnico de um doente. Tais tratamentos, muitas vezes longos e envolvendo diversos xams, devem ser pagos com bens de valor, kat, como panelas de cermica ou alumnio, colares de mianga e colares de caramujo. Nestes momentos, no s o doente mas toda sua famlia, inclusive os cnjuges, tm que dispensar seus bens de valor coisa que conseguiram acumular ao longo de sucessivas trocas com gente de dentro e fora da aldeia. Como j disse, cada pessoa desde muito jovem costuma ter uma mala fechada a cadeado onde mantm seus objetos preciosos, adornos usados nas ocasies rituais sempre depois cuidadosamente lavados e guardados, alguns sacos de mianga ainda fechados, panelinhas de cermica trocadas com os Wauja. Quando no esto sendo usados como adornos corporais, esses kat s saem da
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mala do dono para serem trocados nas cerimnias de jorojyt por objetos de valor similiar ou para serem dados em pagamento por servios especiais: cura xamnica, contra-feitio ou servios funerrios. Quando um parente adoece gravemente, os mais distantes podem se oferecer espontaneamente para ajudar no pagamento dos xams: tenho um colar de caramujo aqui que darei a voc dizia por rdio uma moa aweti sua irm (MZD) residente em outra aldeia no se preocupe, ns no somos estranhos, izetu eym kaj. Dizer que no somos diferentes, que somos iguais porque somos parentes, too, um modo de confirmar o acesso de um aos bens valiosos do outro; algo cimilar ao acesso/influncia que pais tm sobre os corpos dos filhos e vice-versa. Ao contrrio da influncia inescapvel que decorre da concepo, contudo, parentes que compartilham objetos de valor alegando uma semelhana precedente esto neste ato constituindo-se como semelhantes, como partes de um s corpo definido em termos do acesso momentaneamente coletivo a certos bens. Assim como se passa com a comida, quanto mais distante o parente maior a expectativa de que um bem dispensado em favor do tratamento de outro seja futuramente reposto com algo de valor similar. Dos mais prximos, a famlia nuclear, esse tipo de ajuda sempre esperado, ainda que mesmos nestes casos o compartilhamento de bens seja digno de nota. Uma mulher doente pode, quase que certamente, contar com os colares e panelas de suas filhas para pagar seu tratamento, mas ir se preocupar em repor o que foi gasto mais tarde. Mesmo dentro de casa, pais, filhos e germanos esto sempre circulando seus objetos, em ocasies onde no mais o corpo coletivo, mas os corpos distintos de cada dono de determinados bens que so marcados: jorojytzan kaj, vamos fazer/ser como jorojyt?, combinam numa tarde qualquer duas irms, ou uma jovem e sua me. Isso significa que uma coisa dada em troca
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de outra de valor similar, e no simplesmente dada, sem expectativa de retorno imediato. Somente porque objetos (como a comida) tm donos distintos seu oferecimento espontneo a algum tem valor, j que a demonstrao de intenes generosas de compartilhamento o meio pelo qual pessoas podem produzir relaes continuamente, evocando a histria dessas mesmas relaes. Um objeto sempre oferecido como reconhecimento de um lao que j estava l. O compartilhamento de bens sucitado por uma demanda extraordinria de objetos de valor para o pagamento servios especficos: quando no se trata de tratamentos xamnicos, so os servios funerrios de pintura do cadver, enterro, lavagem dos parentes e lamento fnebre de estrangeiros que geralmente produzem esta demanda. Na morte, pois, mais uma vez os parentes devem reunir-se solidariamente dispondo seus bens como se fizessem parte de um s corpo coletivo. Os enterradores devem ser escolhidos entre no parentes dos donos do cadver (izetuza), isto , gente distante. Na hora de chorar o morto, contudo, a aldeia comporta-se como um grupo coeso de cognatos, como j aludi acima. Tal coeso torna-se ainda mais evidente pelo fato de que qualquer pessoa de outra etnia (momo tywyza) que venha de longe lamentar a morte de algum dever ser paga pelos familiares do falecido pelo servio155. Quanto aos bens do morto, aqueles de uso mais pessoal, que trariam mais fortemente sua memria aos viventes, devem ser queimados. Sendo a pessoa enterrada com o corpo enfeitado, pois assim dever chegar ao cu, alguns de seus adornos corporais permanecero com ela. Os demais bens de maior valor, colares de caramujo, miangas e panelas, so divididos entre os consangneos mais prximos. O
Diferentemente dos Korowai da Nova Guin (Stasch 2009), que pagam os parentes que vm de longe como indenizao pelo fato de no terem desfrutado a companhia do falecido ao longo de sua vida. Entre, portanto, os Korowai o pagamento substitui a pessoa morta, aqueles que conviveram com ela pagam queles privados de sua companhia. Tudo se passa como se uma pessoa s pudesse ser parente de uns em detrimento de outros, dado que no pode estar em distintos lugares, mantendo distintas relaes, ao mesmo tempo: o morto tinha mais parentes do que podia dar conta. Entre os xinguanos, paga-se pelo choro, que uma homenagem ao morto, como se o servio prestado pelos que vm chorar fosse comportar-se como parentes, sem s-lo. Tudo se passa como se por no poder viver em muitos lugares ao mesmo tempo e no manter relaes com parentes longnquos a pessoa no pudesse ter tantos parentes quanto seria desejvel.
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pagamento pelo choro funerrio queles que vm de longe, kojypiaza, feito com os bens dos mesmo familiares que eventualmente herdam bens do falecido, mas nunca os bens do morto so destinados a este fim. O crculo daqueles que compartilham bens na doena assim expandido para abranger os parentes que choram espontaneamente, e por fim os parentes que choram em troca de pagamento que viajam aldeia de um falecido em busca de pagamento, diz-se algumas vezes. Mas no importa tanto a espontaneidade do choro, e sim o fato de a expresso de sentimento entre co-aldeos ser considerada obrigatria; lembremos que num contexto contguo, o enterramento do defunto, estas mesmas pessoas se percebem umas s outras como izetu, gente com quem o compromisso de comunho inexistente. O sentimento, ainda que simplesmente atuado, assim oposto ao pagamento - o compartilhamento posto como o extremo da compaixo, o acesso aos bens alheios a confirmao do que poderamos chamar de parentesco.
5.5Consanguinizaodosafins,afinizaodosconsanguneos
Ao contrrio do que afirma Ellen Basso (1973, 1975) a respeito dos Kalapalo, os Aweti no s no encontram problemas em casar-se com primos cruzados de primeiro grau (FZC, MBC), como frequentemente preferem faz-lo. At onde pude saber, esta preferncia no envolve consideraes sobre substncia, mas sobre distncia relacional: o importante casar perto, com gente com quem j se mantm alguns vnculos. A estratgia matrimonial aweti pareceria com isso divergir daquela de seus vizinhos Kalapalo que, segundo Basso, buscam com a aliana matrimonial extender as redes de ajuda mtua que caracterizam as relaes entre consanguneos. A autora sustenta que a atitude prescrita aos afins, o respeito extremado, ifutisu
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ekugu, uma verso forte da atitude bsica entre consanguneos, e deste modo para os Kalapalo fazer um afim, efetivar uma aliana matrimonial, seria um modo de fazer parentes, ampliar o crculo de relaes de colaborao e compartilhamento. No necessariamente, contudo, os dados kalapalo e aweti precisam ser vistos como evidncias de estratgias matrimoniais distintas, a divergncia podendo ser explicada, em parte, pelos objetivos distintos de cada pesquisadora.156 Basso se pergunta o que leva os Kalapalo a se unirem matrimonialmente, que interesses os movem, que critrios usam para fazer suas escolhas, que problemas encontram. Minha pergunta inicial diametralmente oposta o foco na feitiaria me leva a questionar por que e como os Aweti divergem e se separam, que idias mobilizam, que sentimentos so envolvidos. Em suma, Basso investiga de que modo, para os Kalapalo, o casamento pode ser uma soluo para determinados problemas, enquanto minha pesquisa me conduziu a perguntar-me em que medida o casamento pode tornar-se um problema para os Aweti, encontrando-se muitas vezes na origem da feitiaria. fundamental considerarmos tambm a possibilidade de que estratgias matrimoniais distintas correspondam a momentos histricos distintos. Basso, pesquisando entre os Kalapalo em meados de 1960, testemunhou um perodo de retomada do crescimento populacional no qual provavelmente a opo de casar longe era no s a nica vivel (pela falta de cnjuges possveis prximos genealgica e/ou geogrficamente) como a mais interessante em favor da constituio de um grupo Kalapalo que, podemos imaginar, almejava a expanso. A situao hoje bastante distinta, sobretudo para os grupos karib situados beira do rio Culuene, como comentei na Introduo. Processos de fisso so sempre motivados por acusaes de feitiaria, os
No pretendo, pois, que os Aweti representem no conjunto xinguano uma variao Tupi qual deveramos opor, por exemplo, polticas matrimoniais tipicamente karib. At porque a preferncia por casar perto est entre os traos que Rivire (1984) aponta como caractersticos dos povos karib das Guianas.
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grupos locais pequenos oferecendo um ambiente mais cmodo, mais familiar, em comparao aos grupos maiores em que h gente estranha demais compartilhando o mesmo espao. Os Aweti, que no passam muito de 200 indivduos, vivem uma situao ambgua. Por um lado, manifestam o desejo de viver em aldeias maiores, mais animadas, donde por exemplo a recusa de alguns pais de enviarem seus filhos para casar fora do grupo local, a no ser que consigam atrair o afim para seu prprio grupo. Por outro lado, passaram por dois processos de fisso mais ou menos recentes, nos quais se originaram as aldeias Saido e Mirassol. Nos dois casos os discursos so sempre os mesmos: prefervel viver entre si, entre famlia, do que conviver com gente estranha de quem se teme sofrer ataques de feitiaria, gente que alm disso provavelmente ir acusar o afim etangeiro de feitiaria, criando um clima insustentvel de desconfiana. Mas se a tendncia diminuo dos grupos locais resulta de problemas de convivncia com no-parentes, seu efeito induzir procura de cnjuges fora, j que no grupo restaro poucas opes (ver abaixo). Ainda que possa ser por vezes explicitada a idia de que uma aliana matrimonial deve ser conduzida por estratgias polticas, os Aweti falam de suas escolhas muito mais em termos do desejo de estar com algum, por parte dos namorados, e do desejo de que os jovens tenham uma famlia produtiva que ajude na subsistncia da casa, por parte de seus pais. Fala-se muito tambm do medo dos jovens de que o cnjuge escolhido no seja considerado adequado por seus pais, e do medo dos pais de que os filhos recusem um cnjuge arranjado. E todos tm medo de que os cnjuges venham a comportar-se mal. Os jovens recm casados muitas vezes esto s voltas com a suspeita de que o parceiro mantm seus antigos namorados como amantes, ou so vtimas de violncia por parte de tais concorrentes como o rapaz que teve sua roa queimada pelos exnamorados de sua esposa. Acusaes de que o cnjuge tm amantes quase sempre envolvem as famlias a me do acusado o defende, contra-acusando o cnjuge do filho de fofoqueiro.
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Quando pessoas tm demasiados motivos de mgoas entre si, ou imaginam que outros tm motivos de mgoas contra si, pequenos ou grandes infortnios sero interepretados como casos de vingana via feitiaria. Como os grupos locais aweti so pequenos se comparados a outros grupos xinguanos, dentro da suas aldeias muitas vezes os Aweti simplesmente s podem escolher entre parentes de primeiro grau, mas mais geralmente os jovens atuais simplesmente no encontram uma opo de casamento, pois quase todos as pessoas classificveis como primos de um indivduo por uma via (por exemplo atravs das ligaes maternas) so tambm tios, irmos, pais ou avs, por outra157. Nas situaes em que pude observar, os Aweti escolheram em tais casos casar com parentes prximos de outros grupos locais. ainda comum que a escolha pelo genealogicamente prximo e geograficamente distante ocorra em detrimento de parentes no to prximos do grupo local de ego. Foi o que ocorreu com dois irmos recentemente. Um deles, aps um casamento desfeito com uma prima distante (isto , com quem as conexes genealgicas no so conhecidas ou no so evocadas) da aldeia Aweti, terminou casando-se com uma prima de primeiro grau (FZD) da aldeia Kamayur. Sua irm, que tambm se casara e logo separara entre os Aweti, permaneceu solteira desde ento. O outro irmo casou-se tambm entre os Kamayur, com uma prima prxima (MBD), mas a unio acabou dando errado um ou dois anos depois, dizem, por causa da sua me, que teria reclamado demais da nora, apesar de esta ser sua sobrinha verdadeira. O outro lado da moeda da poltica de expanso de alianas de que fala Basso a poltica de reduo de danos que me parece guiar muitas vezes as escolhas matrimoniais entre os
Notando justamente este fato, Basso (1969, 1975) ressalta o carter eletivo, e logo poltico, das alianas: uma vez que ningum completamente casvel e ningum puramente consangneo, sempre possvel escolher entre tratar como casvel e tratar como consangneo uma pessoa qualquer, definindo a natureza da relao a partir das atitudes e no o contrrio um fato outras vezes ressaltado na etnologia americanista, em contraste com sistemas de cls e linhagens baseados na unifiliao como princpio de recrutamento de grupos corporados (Overing Kaplan 1977).
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Aweti158. Casar perto basicamente um modo de casar em segurana, e prevenir o surgimento de contendas mais graves que muitas vezes sero detonadoras de casos de enfeitiamento. Ele nunca deveria ter deixado sua filha casar com um karib (janahukwaryza), eles so todos feiticeiros, comentava uma mulher a respeito de uma jovem que estava sendo vtima de enfeitiamento, suspeitava-se, por parte de um ex-marido kalapalo. Por mim tudo bem minha filha casar com Trumai, eu no sou como certas pessoas que ficam sovinando suas filhas, dizia um pai, bastante ciente de estar com isso contrariando o senso comum. No quero que meu filho se case com essa moa de Jaramy, muito longe. No quero que ele fique l em meio essa gente estranha, comentava outra me sobre o filho solteiro, que no entanto no encontrava por perto nenhuma jovem casvel. Se h muitos problemas envolvidos em casar longe no estar prximo dos pais, por exemplo, ou ser vtima da hostilidade dos ex-namorados do cnjuge o medo que paira no fundo sempre relativo ao fato de que fora de casa a pessoa est mais vulnervel ao feitio. No caso de um homem, h ainda outro problema a considerar: fora de casa ele mais facilmente alvo de acusaes de feitiaria pois, sendo estrangeiro, ser sempre o primeiro a ser acusado quando houver um caso de enfeitiamento na aldeia de seus afins. Feiticeiros so os outros que esto perto. E se os Aweti dizem isso acima de tudo dos povos karib, no deixam de afirmar que entre os Wauja h terrveis feiticeiros, e entre os Kamayur nem se fala. Enquanto eles prprios, Aweti, esto cientes de serem considerados grandes feiticeiros por seus vizinhos xinguanos. Ipatem
A possibilidade de opo entre expandir influncia casando fora do grupo local ou poltico e manter a segurana e certa liberdade, diminuindo o peso das obrigaes para com afins - casando dentro relatada para diversos casos amaznicos. Os Aweti no seriam a exceo aderindo inconcionalmente a uma dessas duas estratgias. Veja-se tambm, entre os Tupinamb quinhentistas, o contraste entre a preferncia pelo avunculato (casamento com ZD, extremo da proximidade) e a prtica de captura de inimigos transformados em cunhados (extremo da distncia) antes de sua execuo em ritual canibal. Como notam os comentadores, na medida em que a guerra porporciona a aquisio de capacidades reprodutivas, casar longe com o inimigo torna-se condio de possibilidade para casar perto entre parentes (cf. Sztutman 2005).
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moaza awytyza ete, as pessoas [os xinguanos] tm medo dos Aweti, dizem. Casar fora, em suma, agrava a situao j e sempre problemtica de viver entre afins a quem se deve extremo respeito, observado em diversas proibies de contato e na prestao contnua de servios. Alm disso, sem entender o que dizem sua volta, um estrangeiro supe continuamente que esto falando mal de si (otewup) o que na maioria das vezes verdade. Crticas veladas por parte dos afins, e a suposio ou antecipao de tais crticas so um dos principais complicadores das relaes conjugais. Casar fora do Alto Xingu tambm possvel: com os Suy h alguns casos de matrimnio registrados, antigos e atuais; os Wauja parecem ter se casado regularmente entre os Ikpeng, e agora os Trumai aprofundam suas alianas matrimoniais com Kayap. No existe portanto um limite rgido separando o campo dos afins possveis do campo dos outros com quem qualquer relao impensvel. Ocorre que entre prximos e distantes, possvel sempre optar por mais prximos ou mais distantes. Considere-se um grupo de jovens germanos aweti, hoje sem pretendentes possveis em sua aldeia. A famlia mantm uma relao antiga com os Mehinaku, tanto por linha materna, dado que uma tia dos jovens (MZ) casou-se com um homem daquela aldeia, tanto por parte de pai, filho da irm de um dos chefes daquele gupo. Enquanto um casamento com os Mehinaku parece bastante atraente para a famlia aweti, casamentos em outras aldeias no so sequer considerados. Um matrimnio futuro pensado como troca, pagamento: wejomoto tuju watiyt iapakawan, ele quer dar sua filha como retorno por meu casamento, explicou-me uma das mulheres aweti casada com um homem mehinaku, comentando a predisposio do sogro em dar a filha a seu irmo (MZS), uma rapaz aweti. Os Aweti parecem, assim, oscilar entre uma poltica de troca que ope os afins como grupos distintos e distinguidos pela necessidade de pagamento
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por um bem concedido - irms e filhas -, e uma poltica de reafirmao da unidade poltica formada pelos afins a partir da repetio da aliana matrimonial em qualquer direo possvel (neste ltimo caso seguindo uma lgica que descreve Overing, 1984, para os karib guianenses Piaroa). A primeira coisa que me disse sobre si mesmo um homem aweti quando nos conhecemos em 2004 foi: Ele meu cunhado. Casei com sua irm e lhe dei minha irm em casamento. Mas se a troca de irms desejvel, como me explicava aquele homem, ela no de modo algum obrigatria. Em face da impossibidade de cumprir-se o ideal, a troca simtrica, qualquer repetio da aliana entre duas famlias j considerada favorvel. Tendo duas de suas filhas casadas com o atual chefe da aldeia, por exemplo, um pai acaba de dar a terceira ao irmo mais novo daquele (primos cruzados de primeiro grau, MBS, das esposas). Quanto quarta menina, a caula, no deve casar-se to cedo; por um lado, os pais no querem d-la a mais um irmo do chefe, mas tampouco querem que se case fora do grupo local, pois necessitam de sua ajuda em casa. Ainda assim, o casamento de trs irms com dois dos filhos do irmo real de sua me tem o efeito de reunir essas duas famlias num grupo de apoio poltico bastante forte, o grupo de sustentao do atual chefe da aldeia. Neste caso particular, parece quase impossvel que as desavenas decorrentes da vida conjugal ou das expectativas insatisfeitas quanto aos afins cheguem a eclodir em acusaes de feitiaria, o que no significa que desentendimentos e crticas no surjam constantemente. que a proximidade antecedente dos que vm a ser aliados previne a escalada da desconfiana mtua, ao menos no que diz respeito ao que pode ocorrer de mais grave, o feitio. No obstante, se a repetio da aliana tambm por vezes pensada como troca ou retorno, vemos que a fuso de um grupo de aliados em unidade polticamente homognea (politicamente, digo, no sentido de formar uma comunidade de ponto de vista sobre um tema
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qualquer) no nem automtica nem, quis, jamais completa. Mesmo entre pessoas prximas, contudo, contendas inevitavelmente surgiro, pois o casamento por um lado une, mas por outro ope dois grupos familiares enquanto entidades com perspectivas distintas. Se Basso, que descreve um possvel entendimento nativo sobre o casamento, sustenta que casar transformar afins em consanguneos, de uma outra perspectiva possvel - para a qual estou chamando ateno aqui - casar transforma consanguneos em afins, isto , transforma pessoas de quem se imaginava estar prximo, e com quem a similaridade de interesses justifica o prprio desejo de matrimnio, em pessoas distantes, com interesses opostos. Essa oposio de interesses, no que diz respeito aos cnjuges, est relacionada ao cime e ao medo da traio. Quanto aos demais parentes aliados por casamento, as divergncias via de regra dizem respeito s regras e expectativas de atitude para com os afins as mesmas regras que, da perspectiva adotada por Basso, fazem com que o afim seja uma verso culturalmente fabricada de consanguneo. A falha em cumprir a contento as obrigaes para com os parentes do cnjuge o grande tema de fofocas que, quando tornam-se demasiado frequentes ou difundidas, podem resultar em separao. Do ponto de vista do alvo da fofoca e seus familiares, a prpria reclamao dos afins vista como falta de respeito, quebra do decoro esperado entre pessoas que deveriam se tratar com carinho, como explicou-me certa vez um rapaz kuikuro: como minha sogra no tem filhos homens, minha me me disse para viver na casa dela como se fosse seu filho, ajudando em tudo o que precisar. Para afirmar que o casamento produz afins a partir de consanguneos medida em que cria contextos de oposio e divergncia de interesses ou perspectivas, precisamos imaginar um fundo de identidade sobre o qual a aliana instaura diferena a ponto do termo aliana tornar-se pouco apropriado, se o que uma aliana pressupe justamente um estado primeiro de separao.
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Tal identidade existe, antes de tudo, nos motivos alegados para a realizao de uma determinada unio. Como vimos, parte da preocupao em casar-se perto a busca de uma diminuio das possibilidades de conflitos graves, a reduo dos riscos inerentes a todo casamento preocupao indicativa de que o casamento pensado como algo que se passa entre estranhos. Quando escolhem casar-se com gente com quem j mantinham relaes anteriores, os Aweti esto pressupondo a existncia de uma identidade que justifique sua escolha por estes e no outros demasiado estranhos. No preciso qualificar esta prtica de endogamia ideolgica159, sensu Overing (1984), j que o importante no a fico de uma endogamia real e sim a imaginao de uma convergncia de interesses. neste sentido sobretudo que uma pessoa ser considerada igual ou diferente, segura ou perigosa na condio de afim. A preferncia pelos parentes prximos uma das formas possveis de tentar garantir, ainda que muitas vezes sem sucesso, tal convergncia. O mesmo verdadeiro quando a pessoa, abrindo seu leque de possibilidades, ainda escolhe preferencialmente seus cnjuges entre tywyza, mesmo povo, mesmo grupo lingustico, ou entre apaj/amaj tooza, grupo dos consanguneos de seus pais. Os parentes cruzados (FZ, MB e seus filhos) dentre os quais os cnjuges poderiam ter sido escolhidos, mas com os quais a aliana matrimonial no se efetivou so gradualmente classificados como consanguneos. A jocosidade, quase sempre envolvendo piadas de cunho
Ideolgica porque no de fato, isto , o grupo local Piaroa se pensa como grupo de consangneos, ao mesmo tempo em que idealmente seus membros devem se casar dentro, isto , reconhecendo-se como afins possveis, noconsanguneos. Aps o casamento, no entanto, o uso de tecnonmias mobilizando apenas relaes de consanginidade permite que as relaes de afinidade sejam novamente obliteradas (Overing 1984). Pollock (2004) nota para os Kulina a mesma tenso, ou paradoxo, nas palavras do outor: para casarem-se dentro, preciso que pessoas que se vm como irmo reconheam-se como afins possveis. Dada a alta taxa de endogamia local, a maioria dos aldeos so simultaneamente afins e consanguneos. O autor relaciona o fato existncia de feitiaria dentro do grupo local. como se a incidncia do feitio, que em teoria s acontece etre afins, nunca entre consanguneos, ali revelasse a inconsistnciada imagem de germanidade generalizada, o mesmo se passando com o estabelecimento de alianas matrimoniais endogmicas. Pollock observa a coincidncia dessa situao com o que fora descrito para o Alto Xingu por Basso (1970, 1975), e para os Piaroa por Overing-Kaplan.
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sexual, no s permitida como tambm esperada entre primos cruzados de mesmo sexo e sexo oposto (-pwyt), enquanto o modo de dar a entender a um primo de sexo oposto que no se tem inteno nenhuma de manter com ele nenhum tipo de proximidade sexual cham-lo de germano. Coerentemente com este processo de assimilao dos cruzados que no se tornaram afins ao grupo dos consanguneos, os filhos dos primos cruzados de mesmo sexo so classificados como filhos por ego, filhos de cruzados de sexo oposto que no se tornaram cnjuges so sobrinhos, exatamente como os filhos de germanos, casveis para os filhos de ego160. Os cruzados da primeira gerao ascendente tendem tambm a ser reclassificados como consanguneos de ego por seus afins: o tio do cnjuge (WMB/HMB) obrigatoriamente respeitado como sogro (WF/HF), a tia (WFZFZ) respeitada como sogra (WM/HM); note-se que todo MB ou FZ so potenciais sogros de ego, mas quando essa potencialidade no se realiza tornam-se consanguneos (F, M) frente a seus afins. Observa-se entre os Aweti, portanto, uma tendncia, j reportada por outros etngrafos do Alto Xingu e alhures, consanguinizao do socialmente prximo, sendo a convivncia no grupo local um fator importante161. Nos termos da descrio que venho fazendo, essa tendncia revela-se como consequncia do fato de que a proximidade facilita o compartilhamento de conhecimento, comidas e objetos, e logo previne a proliferao de suspeitas mtuas. Enquanto primos que podem e consideram ter relao sexuais mantm entre si relaes jocosas, e primos que j no se vm mais como parceiros possveis se tratam como irmos, os pais de jovens noivos falam de seus genros e noras como se fossem irmos de seus filhos: ekywyt/einjyt, seu irmo/sua irm, o modo pelo qual os pais devem dizer seu futuro
Para uma anlise comparativa dos sistemas terminolgicos xinguanos, especificamente sobre a tendncia de consanguinio dos cruzados prximos ver Coelho de Souza, 1995. 161 Cf. Viveiros de Castro,1993 , para uma generalizao pan-amaznica desta discusso.
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marido/sua futura esposa. No necessariamente, pois, irmos so o oposto de casveis, j que o prprio arranjo de casamento promove, projetando para o passado, uma germanizao, que devemos entender como identificao. porque so irmos sem serem irmos de verdade que duas pessoas podem casar-se. O casamento gera uma conexo tomando-a por anterior a si mesmo. Com o tempo, um genro j no mais referido como um irmo da filha, sendo designado por referncia quilo que ele realiza em sua vida: o pai de seus filhos. J vi tambm um homem conversando com a filha referir-se ao genro como epyyta, sua base, sua sustentao, mas nunca como emen, seu marido pois desrespeitoso sequer aludir ao matrimnio, origem da relao de afinidade sogro-genro, mesmo fora das vistas do afim. O ponto que desejo ressaltar aqui que o casamento projetado como conexo entre pessoas que j estavam em conexo, como transformao de uma relao que j existia e cuja natureza era mais de identidade que de diferena. Casar seria menos um caso de unir entidades que estavam separadas que de alterar uma conexo prvia. Sem tal conexo o casamento impensvel. Mesmo no caso de um aweti casar-se com uma branca, ainda que ningum se d ao trabalho de qualific-la como prima (-pwyt) do noivo, os pais dele tero de referir-se a ela como sua irm por algum tempo, j que no dispem de outro termo apropriado para designar uma nora sem filhos.
5.6Quaseparentes
Vale fazer um breve comentrio sobre as interpretaes de Ellen Basso e Viveiros de Castro quanto s atitudes prescritas s relaes de afinidade no Alto Xingu. Basso sustenta que o respeito devido aos afins deve ser visto como verso forte do respeito que se espera de qualquer
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parente. Viveiros de Castro (1993, 2002a), invertendo o raciocnio da autora, cujos dados utiliza em uma anlise comparativa, sugere que o comportamento para com os afins que serve de modelo s atitudes direcionadas aos consanguneos. No so os afins que passam a ser tratados como consanguneos, mas estes que nunca deixam de ser tratados com quase tanto cuidado e respeito quanto os afins, pois a diferena que marca as relaes de afinidade nunca est completamente ausente na consanguinidade Observe-se que ambos Basso e Viveiros de Castro esto falando da mesma coisa, a produo de identidade. Mas enquanto Basso tende a naturalizar a atitude para com os consanguneos reais, e consequentemente a prpria consanguinidade, isolando a diferena para fora de um crculo de mesmos que seria automaticamente constitudo (ainda que com contornos flexveis), situando o trabalho e os problemas relacionais todos do lado dos afins, Viveiros de Castro reconhece a existncia deste mesmo crculo como produto de um esforo constante de identificao, constitutivo de um interior que no est dado (Cf. Viveiros de Castro 2002g). A necessidade de confirmao da comunho que os Aweti demonstram em afirmaes do tipo ns no somos diferentes, vou te ajudar neste caso d conta de uma iminncia constante de irrupo da diferena. E notvel que a identidade, como figura do parentesco (lembremos que izetu o contrrio de too, consanguneo de mesmo gerao), deva ser afirmada pela negativa, como na expresso izetu eym kaj, ns no somos estranhos [uns aos outros]. Certa vez chegou aldeia onde eu vivia a notcia de que uma mulher da aldeia Saido havia falado mal dos filhos de seu cunhado (HB), tendo dito, supostamente, que estes eram excessivamente gulosos e acabavam com toda a comida da casa. No mesmo dia em que chegou a notcia entre ns, o irmo da suposta fofoqueira, rapaz que vivia com o pai na aldeia Aweti, chamou sua irm pelo rdio para saber se isto de fato havia ocorrido. Chorando, a irm lhe contou que nunca havia dito tais
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coisas, e alegava indignada sobre os filhos de seu cunhado: izetu eym utepe tai, eles no so, por acaso, gente estranha... como quem diz que nunca falaria assim de seus prprios filhos. Este modo de falar indica que, mais que por qualquer relao substantiva, o parentesco definvel em termos da no-diferena, de modo que esta pareceria constituir o modo relacional bsico contra o qual a identidade pode surgir como sugere Viveiros de Castro interpretando os dados kalapalo. A percepo de uma diferena de fundo que precisa ser negada parece ser o fundamento de um certo pessimismo que entrevemos nas sentenas evocadas em contextos em que a natureza das relaes est em definio como nos casos de adoecimento ou de compartilhamento de comida. s vezes as coisas se passam como se a sovinice e o egosmo fossem o esperado de todas as relaes em geral, de modo que as pessoas devem assegurar-se das melhores intenes que mantm umas em relao s outras. Ora, afirmar que a diferena logicamente anterior identidade no me parece de maneira nenhuma invalidar meu argumento acerca do papel disruptivo, ao lado do carter obviamente associativo, do casamento. Pois justamente baseados nesse pessimisto de fundo, sugiro, os Aweti preocupam-se com a reduo de distncia entre os cnjuges que far com os noivos sejam escolhidos em funo da identidade percebida e simultaneamente projetada entre eles. Quanto aos consanguneos, por sua vez, se o compartilhamento de substncia e o histrico de contnuo cuidado entre pais e filhos, irmos mais velhos e mais novos, avs e netos e esposos so vistos como vetores de identificao, no se pode dizer que sejam garantias. Por outro lado, confirmando a perspectiva de Basso, com exceo da evitao (de que tratarei frente), a relao entre afins muitas vezes pensada pelos Aweti sob o molde da relao entre consanguneos: trate sua sogra como se fosse filho dela, aconselhou a me ao rapaz
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kuikuiro, como se viu. Um casamento selado quando ambos os pais aceitam a comida oferecida pelo pretendente de sua filha. Se a me aceita o peixe, mas o pai se recusa a com-lo, ou viceversa, significa que o casamento no poder ser realizado. Uma vez concretizada a unio, o homem ter de alimentar os sogros continuamente, resida ou no em sua casa, uma obrigao amenizada mas no extinta com o passar dos anos e o estabelecimento do casal em casa prpria. A meu ver este oferecimento no caracterizado sem ambiguidade como um pagamento da noiva pois, sendo obrigatrio, tambm tomado como uma atitude de generosidade e cuidado que se espera de um genro ao longa de toda a vida, assim como de um filho. A moa tambm deve demonstrar uma disposio extraordinria para ajudar a sogra na produo de polvilho. Esta atividade realizada por todas as jovens ao lado de suas mes, mas a nora precisa trabalhar com muito mais afinco, correndo o risco de ser criticada pelas cunhadas e pela sogra caso no o faa. Se uma moa solteira no trabalha, criticada pelas tias, irms mais velhas, ou por sua me; mas uma crtica de afins tem outro peso gera mgoas que podem ser intransponveis. Uma grande diferena reside, portanto, no no que se faz por afins e consanguneos, mas no peso que as palavras de cada um pode ter, ou no modo como sero interpretadas. Quanto aos cunhados, um dos aspectos marcantes desse relao o direito que um doador de irm tem de requisitar para si qualquer bem do tomador de esposa. Nem adianta ele ter comprado um som to bom, porque o cunhado dele vai vir aqui e pedir este som para ele, comentava comigo um rapaz sobre seu irmo mais novo, casado com uma moa kamayur. Mas a atitude com os consanguneos no essencialmente distinta. Quando a me expressa o desejo por um bem qualquer de seu filho, este tambm se v impelido a dar. Muitas pessoas ficaram chocadas, por exemplo, quando comentei que queria levar uma esteira de presente para minha me, que havia gostado muito de uma que eu ganhara no ano anterior: Voc no deu a sua para
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ela?!. A obrigatoriedade do dom apenas agravada no caso de uma sogra: bastou um comentrio elogioso por parte da me de seu marido para que minha amiga formal lhe desse um vestido que comprara havia poucos dias na cidade. Quando uma pessoa adoece, igualmente, seus irmos, sobretudo quando mantm relaes prximas, sentem-se obrigados a compartilhar seus bens de valor. preciso, pois, reconhecer que o modelo nativo para o cuidado esperado entre afins baseado nas relaes entre consanguneos. Apesar da clara diferena entre tomadores e receptores de mulheres que faz dos primeiros eternos devedores dos segundos, num plano ideal os afins so destinatrios no de pagamentos, mas de afeto. No entanto, se em diversos momentos e contextos o desejo de compartilhar de fato espontneo, e corresponde memria do cuidado recebido e da generosidade espontnea de outrem no passado, o afeto entre consanguneos no necessariamente mais natural que o afeto dirigido aos afins162: ambos so objeto de escolhas conscientes e por vezes resultado de esforo, como o caso do lamento fnebre obrigatrio aos co-aldeos, demonstrao/afirmao de identidade pela compaixo. Por sua vez, amizades espontneas podem brotar entre um par de cunhados enquanto outros dois mantm relaes muito tensas entre si. No caso de um casamento entre parentes prximos, ademais, os cunhados so primos que muitas vezes j mantinham entre si estreitas relaes de amizade. Cunhados, tanto quanto irmos, so frequentemente too tat, companheiro de atividades cotidianas, um do outro.
5.7Palavrasquenodeveriamcircular
Ver a definio de Allard (2003) do carter emocional da relaes de parentesco como uma disposio relacional que precisa ser suscitada. O autor se inspira na anlise de Taylor (2000) sobre os cantos de seduo amorosa Jvaro, anent, que so proferidos mentalmente por uma pessoa a fim de suscitar o sentimento recproco do amado.
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As sogras, como disse, so quase sempre citadas em situaes de separao, seja porque falam mal do cnjuge de um filho chamando uma nora de preguiosa, magricela ou estril, um genro de fofoqueiro ou vagabundo seja porque, inversamente, so alvo das crticas do afim como no caso de um homem que pensava em se separar porque a esposa reclama sem parar de seus pais. Quando comentavam comigo as relaes de afinidade entre os caraiwa, os Aweti algumas vezes notavam como so boas as sogras do brancos, que no ficam arrumando confuso no casamento de seus filhos. Esta diferena relevante para a economia de meu argumento: apesar de toda a brutalidade que caracteriza as relaes estabelecidas pelos caraiwa veja-se, por exemplo, o espanto de muitos aweti comentando que branco mata mulher de cime existem alguns problemas do convvio social que so vistos como marcas de uma forma prpria a eles de relacionar-se. A fofoca da sogra e de noras e genros - um desses problemas; o feitio outro. A sogra desempenha tambm um papel central na saga dos gmeos Sol e Lua. Uperiru, a me do jaguar com quem se casa Tanumakalu, a me dos gmeos, mata a nora num ataque de ira por acreditar, injustamente, ter sido desrespeitada. O evento se passa quando Itsumaret, o jaguar, sai para uma caada, deixando a esposa e a me em casa sozinhas. Enquanto Uperiru varre o cho ela deu origem mania do branco de varrer a casa sem parar Tanumakalu fia algodo, cuspindo periodicamente os fiapos que grudam em sua lngua medida em que usa os dentes para cortar os cordes que est fiando. Uperiru solta um pum no mesmo momento em que Tanumakalu est cuspindo fiapos de algodo. A sogra jaguar supe que a nora cuspiu por nojo pelo odor de seu pum, um ato perfeitamente comum entre pessoas com grande intimidade pais e filhos, cnjuges, irmos, primos mas estritamente proibido entre pessoas que se devem respeito, os afins. com uma sequncia de peidos letais que Uperiru mata ento sua nora, como vingana
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pelo suposto desrespeito - Tanamakalu atingida no pescoo como por uma flecha invisvel. Itsumaret logo avisado do ocorrido, e retornando casa termina por expulsar sua me da aldeia. Tanumakalu enterrada, os gmeos mais tarde extrados de sua barriga pelo av Wamutsini e, como demoram muito at conhecer o destino de sua me, no podem desenterr-la a tempo de que volte vida. A morte de Tanumakalu a origem da mortalidade humana. A presena de uma flatulncia associada a um acontecimento que resulta na instaurao da periodicidade da vida humana nos remete de volta sequncia de mitos que explicam a origem da feitiaria. Ali o cime e o peido so ambos atributos almejados estranhamente, devemos notar, j que so ambos negativamente avaliados163 cuja aquisio desemboca na inveno da feitiaria entre irmos, e destes com o av. Aqui o peido mata como um feitio, tendo sido descrito pelo narrador como uma flechinha que atinge Tanamakalu na garganta. Um malefcio de sogra contra nora. Como emanao malfica do corpo da me do jaguar, o peido de Uperiru remete s palavras maldosas que costumam sair da boca das sogras xinguanas, as constantes reclamaes, sempre na forma de fofocas, sobre o comportamento dos afins. O peido-feitio da sogra jaguar uma resposta ao desrespeito presumido, mas inexistente, de Tanumakalu, assim como as fofocas que saem da boca dos afins so injustas do ponto de vistas de noras e genros e seus familiares. Vale tambm notar que os Aweti dizem que o peido coisa de mulher: homens tm o nus firme e deveriam poder conter-se. A fofoca, como o peido, uma forma de incontinncia tipicamente
Esta observao foi feita por Serra (2006, 133) numa anlise sobre o mito de origem do cime como contado pelos Kamayur. Na verso comentada por Serra, est ausente o episdio da conquista do peido, enquanto a sequncia termina com a conquista das guas lmpidas. Serra discorre sobre como a mitologia revela que o cime um componente to destrtutivo quando necessrio da vida social, organizando a vida conugak. Isso nos remete ainda ao que sustenta Bastos quanto aos afins, a partir da anlise do Jawari: simultaneamente condio de possibilidade da reproduo social (e logo, da alternncia de geraes, lembro) e agentes da disrupo social (e, logo, da alternncia temporal), feiticeiros.
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feminina. A fofoca deve ainda ser contrastada extrema continncia verbal requerida dos afins; fofocas, como flatulncias, so assuntos internos que escapam para o exterior, do corpo no segundo caso, do grupo de parentes que compartilham crticas aos no-parentes, no primeiro. Incontinncia tambm o cuspe de Tanumakalu, outro elemento interior que aparece indevidamente, enquanto espera-se uma distino bem marcada entre afins pela ausncia de contato corporal. Estes no podem de modo nenhum tocar-se, um homem no pode nem sequer tomar mingau y wap da panela comunal na casa de seus sogros. preciso cuspir quando algum solta um pum porque um mau cheiro aspirado uma verso atenuada, mas no indistinta, da ingesto de algo incomestvel. Se no permitido cuspir aquilo que foi introjetado dos afins, porque a prpria incontinncia deveria ser ignorada, a transgresso negada, e uma nora educada age como se nada houvesse acontecido. O cuspe dirigido ao afim to incmodo quanto o excesso de cime, na medida em que denuncia a existncia de algo que no deveria estar l: no caso do cuspe, a contaminao fsica entre pessoas que deveriam se manter afastadas, no caso do cime, ao inverso, a divergncia de interesses entre esposos que deveriam zelar pelo bem estar um do outro. O primeiro, um problema de distino no respeitada, o segundo, um de semelhana ameaada. O termo aweti que designa o comportamento relativo aos afins potikatu. Ao contrrio da noo correspondente kalapalo (ifutisu), potikatu no se aplica relao entre consanguneos. A frmula verbal, apotika, eu respeito, designa a proibio de pronunciar o nome de genros/noras/sogros e cunhados do mesmo sexo, bem como de dirigir-se diretamente a eles, seno sob frmulas tecnonmicas que obliteram a relao de afinidade. Uma mulher no se dirige sogra como me de meu marido e nem mesmo como me de fulano sendo este seu marido, mas normalmente como me de sicrano sendo este um irmo do marido. O termo para meu
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cunhado (WB para ego masculino, HZ para ego feminino), que significa literalmente aquele que me d vergonha, ikytsitsap164, raramente usado, e somente na ausncia do referente. Cunhados do mesmo sexo dirigem-se uns aos outros utilizando um vocativo que significa literalmente aqueles l: uma mulher se dirige a sua cunhada por akyjaza, e um homem a seu cunhado por jatsaza. Em ambos os casos o cunhado de mesmo sexo deve ser tratado no plural, e nunca ser designado como uma pessoa especfica. Nunca se diz j vai? a um cunhado, e sim j vo?. Nunca se deve dirigir a palavra diretamente aos sogros, a no ser depois de muitos anos de casamento. Outra maneira de se referir ao respeito devido aos afins dizer que o vemos como perigosos/merecedores de respeito, ti tezak tup165. O fato de que so vistos como perigosos que uma maneira de dizer que so perigosos ou merecedores de respeito para ego e no em si mesmos o que explica porque no se deve pronunciar o nome dos afins: an ti tejojka, ti tezak tup, no os chamamos pelo nome pois so tezak para ns166. Sendo designados aqueles l, gente do outro lado, como o so os cunhados, ou simplesmente sendo indesignveis, como os sogros, os afins so assim marcados em sua distino - eles so izetuza. Ambas as expresses potika e tezak tup - no so pertinentes para descrever as relaes entre consanguneos, nem aquelas entre cnjuges, salvo uma nica exceo, que diz respeito fidelidade conjugal e ao fato de que no se deve namorar os cnjuges dos germanos. Diz-se ento de um casal, quando os esposos no possuem amantes, otopotika167, eles se respeitam. E de um irmo que namora com a esposa do outro, por exemplo: an itezak wejtupwyka oytiyt, ele no v seu irmo mais velho (oytiyt) como merecedor de respeito, ou simplesmente no respeita seu irmo mais velho. Como j aludi acima, a expresso que designa um ato desrespeitoso entre
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-kytsits, vergonha; -ap, instrumentalizador de objeto. Ti pron. seg. pes. pl. agentivo; -tezak raiz de perigoso ou temerrio; e tup, ver. 166 -tejoj raiz de chamar, nomear; o prefixo an- sempre associado ao sufixo ka compe a forma negativa do verbo. 167 o- terceira pessoa; -to- ao mtua.
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cnjuges ou entre irmos a mesma constantemente usada para designar a feitiaria: ele o est sacaneando, otentatentazoko nanete. Ora, normalmente homens e mulheres possuem ao longo da vida alguns amantes extraconjugais entre os quais os germanos do esposo figuram como opes preferenciais, mesmo porque quando cunhados de sexo oposto convivem numa mesma casa, ou em casas contguas, o que comum acontecer, as chances de haver um romance aumentam bastante. Longe de serem aceitas como formas de poligamia sororal ou leviral, essas relaes constituem constante fonte de problemas e motivo, entre outros, de divrcio. O cime conjugal, via de regra, envolve um irmo de mesmo sexo. evitao dos afins corresponde, portanto, a conteno quanto aos cnjuges dos germanos. Em outras palavras, poderamos dizer que namorar a esposa do irmo uma falta comparvel a falar o nome da sogra, ainda que o primeiro ato seja corriqueiro enquanto o ltimo exemplarmente evitado pelos Aweti168. O efeito da interdio interromper fluxos de palavras que antes ocorriam sem restries, e significativo que os problemas matrimoniais muitas vezes tenham que ver com a incontinncia verbal entre afins. Tios cruzados (MB, FZ) com quem se podia antes falar livremente e com os quais, ao mesmo tempo, as expectativas de compartilhamento de comida e bens eram vivenciadas de maneira relaxada, so radicalmente afastados pela evitao da fala e do contato fsico ao mesmo tempo em que bruscamente aproximados pela obrigatoriedade de compartilhamento. Problemas entre afins que levam crises conjugais e, no caso de casais jovens, podem levar separao, envolvem sempre a insuficincia seja do respeito, seja da disposio ao trabalho. Ora o afim no se mantm distncia necessria,
Lembro a este respeito a observao de Stasch (2009) quanto evitao entre sogra e genro nos Korowai da Nova Guin: um simples olhar dirigido sogra pareceria um convite sexual como se passa quando h troca de olhares entre homens e mulheres em geral. Qualquer contato com a me da esposa significa assim uma confuso entre esta e sua filha, e falta de respeito ltima no muito distinto da confuso entre irmos que leva uma mulher a tomar como amante o germano de seu marido.
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ora se mantm distante demais, recusando-se a participar suficientemente do regime de vida dos sogros e cunhados. Mas interdio do namoro com os cnjuges dos germanos tambm tem por efeito distingu-los: o cnjuge aparece como um bem no compartilhvel, ao passo que a traio com o cnjuge do germano implica uma confuso comparvel ao incesto onde uma identificao excessiva entre germanos de mesmo sexo corresponde unio com o excessivamente prximo, entre germanos e sexo oposto. Em contraste com a conteno verbal requerida entre afins, entre germanos que as palavras circulam mais livremente. Basta dizer que apenas de seu germanos, e em geral apenas de seus germanos reais, pessoas podem pronunicar todos os nomes sem nenhum constrangimento imposto pela afinidade. Nomes de germanos, afinal, so nomes de ego em potencial, nomes que poderia ter tido como seus e de que de fato dispe para transmitir a seus descendentes.
5.8Dosoponentes:desvirarparente
Idealmente, e frequentemente, os casamento entre jovens so arranjados pelos pais, e j que muitas vezes se deseja estabelecer o matrimnio entre primos cruzados prximos comum que as combinaes se dem entre um casal de irmos. Logo que a unio estabelecida, irmo e irm cujos filhos se casaram passam a ser towatsat um do outro. O termo, aqui designando cosogros, significa literalmente opositor, algo que se coloca face a face a uma coisa ou pessoa: towa, rosto, -tsat, referente a. O termo pode ou no indicar oposio em sentido poltico, e em seu sentido mais lato no faz mais que distinguir lados. Por exemplo, quando esto enfiando contas de vidro em linhas de algodo para produzir grandes colares monocromticos de mianga,
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as mulheres amarram os fios de dois em dois, cada um com seu towatsat. Ao mesmo tempo que ope, portanto, towatsat pode indicar uma relao de complementaridade, um estar junto, ao lado. No h restries de comportamento entre aqueles que so towatsat um do outro; tratamse muitas vezes, ademais, de germanos que, atravs do arranjo matrimonial de seus filhos, atualizam e fotalecem relaes de ajuda mtua. comum que pessoas mantendo essa conexo entre si visitem-se mais frequentemente que germanos sem descendentes casados, e at mesmo que busquem viver em casas contguas. O prprio fato de terem escolhido-se como co-sogros, no caso de germanos prximos, evidncia de uma identificao prvia. Aqueles que se opem como towatsat, pois, so opostos pelo fato de estarem amarrados juntos, como dois colares de mianga, complementares um ao outro. As coisas se passam diferentemente, claro, quando so os filhos que escolhem seus cnjuges e os pais so mais ou menos forados a aceitar, o que no incomum. Nestes casos o afim de meu consangneo muitas vezes j era de antemo izetu, um outro. Do ponto de vista da relao entre pessoas do mesmo sexo, o casamento entre cruzados prximos uma repetio da aliana: um homem casa seu filho(a) com a filha(o) de seu cunhado (ZH). Dois homens na posio de towatsat so dois cunhados donde sua designao como opostos, aqueles que esto do outro lado, soa bastante coerente. No obstante, os Aweti usam o termo co-sogro quase sempre para descrever a relao entre pessoas de sexo oposto (necessariamente definidas como B e Z, ainda que o sejam apenas por conhecerem-se como tais). Por ocasio de um casamento entre primos cruzados prximos, os co-sogros de mesmo sexo continuaro a ser referidos pelo termo de afinidade especfico, o cunhado dele, lit. aquele que lhe d vergonha. Assim, enquanto diz-se de uma mulher que foi visitar o sogro de seu filho(a),
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oto towatsat ypywo, ela foi para junto de seu co-sogro, mesmo quando este home seu irmo real, do marido dela diz-se, oto okytsitsap ypywo, ele foi para junto de seu cunhado. Isso talvez esteja relacionado ao fato do casamento ser comumente acertado pelo par de irmos, j que a proximidade entre eles e o desejo de manuteno desta atravs do casamento dos filho favorece o arranjo. Por outro lado, o fato de que cunhados dificilmente sero referidos como co-sogros aponta a prevalncia dessa oposio sobre a relao relaxada entre os pais de jovens casados. Mas a nfase na relao entre germanos de sexo oposto tambm revela uma tendncia a que o casamento seja pensado fortemente a partir da manuteno do lao de consanguinidade, ainda que a idia de repetio da aliana seja tambm valorizada, por exemplo, na preferncia manifesta por casar entre si dois grupos de germanos. O efeito, em todo caso, que o consanguneo de mesma gerao transformado indiretamente em afim atravs de um consanguneo de gerao descendente: um irmo vira um co-sogro, afim de meu filho. Towatsat significa tambm, em outros contextos, inimigo. O termo cognato do tovajara tupinamb, designativo para ambos cunhado e inimigo, figuras que de resto se confundiam na transformao do inimigo capturado na guerra em cunhado, no perodo que antecedia sua devorao (cf. Viveiros de Castro 1986). No caso Aweti, cunhados se tornam towatsat, oponentes, atravs da relao entre seus filhos. Mas a tranformao de germanos de sexo oposto em oponentes o fato mais notvel, pois de fato o casamento dos filhos pode suscitar uma srie de divergncias antes inexistentes entre eles. Se o ritual antropofgico tupinamb, ao transformar um inimigo em cunhado para mat-lo, atualizava a inimizade virtual de todo cunhado, mesmo aqueles escolhidos entre os parentes mais prximos (cf. Stutman 2005), o casamento aweti atualiza uma inimizade latente entre germanos, que tornam-se oponentes quando o assunto so seus descendentes, sua famlia nuclear constituda, seus interesses distintos. As unidades de troca
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matrimonial, assim, mais do que antecedentes unio, so objetificadas a partir de eventos polmicos que dividem as pessoas em grupos de opinio. Opinies compartilhadas, por sua vez, seguem o caminho da comida e dos bens: as pessoas concordam com e defendem aqueles que j so seus parentes, e o ato de concordar refirma a ligao. Nestes casos a conexo entre germanos de sexo oposto se enfraquece pela reiterao da consanguinidade entre pais e filhos; agora com estes que se compartilha bens, por extenso ao compartilhamento de substncia corporal produzido na concepo, ao compartilhamento de comida e tcnicas de fabricao corporal na infncia etc. Deste modo, a converso de alguns em oponentes no ocorre sem a produo de outros como iguais, e viceversa. As unidades matrimoniais, em suma, so produzidas elas mesmas pelo matrimnio, em funo de uma que oposio tambm enfatizada terminologicamente. Podemos ainda dizer que a oposio entre germanos do mesmo sexo, quando convertidos em afins, correlata competio entre germanos do mesmo sexo, atravs de afins, os cnjuges matrimoniais. Quando comecei a pesquisar entre os Aweti, um aldeia vizinha havia se dividido h alguns anos, com a sada de mais da metade dos moradores do grupo originrio para formar um aldeamento novo. Alguns aweti me explicaram o que sabiam sobre aquele processo. A filha de um dos chefes da outra aldeia ficara doente, e sua famlia havia acusado de feitiaria um homem que acabou mudando-se com seus irmos para o lugar onde j vivia um filho seu (BS). O principal acusado e lder da dissidncia tornou-se chefe deste novo aldeamento. Este homem pai da esposa do irmo mais velho da jovem que havia adoecido; o acusado e o cabea da acusao eram co-sogros, portanto. Acusaes de feitiaria nunca so feitas por um homem s eventualmente nunca chegam a ser feitas abertamente por qualquer homem (cf. cap 6) mas por parentelas inteiras.
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Quando a famlia do chefe cuja filha havia adoecido comeou a acusar o homem que terminou por encabear a ciso, a filha do acusado vivia uma situao complicada, tendo de manter-se impassvel s ameaas de morte que o marido fazia a seu pai. Na condio de primognito e irmo da enfeitiada, o marido desta mulher teria sido, contavam-me, um dos ferozes acusadores do prprio sogro. Uma parcela considervel dos Aweti da aldeia Tazujyt mantm uma conexo familiar bastante prxima com aquele que fora acusado, atravs de sua esposa. Enquanto me contavam a histria, portanto, percebi que no poderiam concordar com tal verso dos acontecimentos. O que havia se passado de fato, explicaram-me, que o outro chefe da aldeia havia enfeitiado a filha do primeiro chefe. Estes dois homens so irmos, de modo que expressei certa surpresa diante da acusao. Sim, Marina, o irmo do pai dela [tupizu] foi quem a amarrou! Os mopat viram e tiraram feitio atrs da casa dela. Mas os pais e irmos da doente no sabiam, e acusaram aquele outro homem e seus irmos. Ficaram muito bravos, a braveza no acabava. O pessoal que estava sendo acusado ficou com medo, e por isso eles se mudaram. recorrente esta imagem de uma pessoa obrigada a escutar, sem dizer nada, o cnjuge acusar e ameaar seus familiares mais prximos. Em sua recorrncia, ela nos diz algo sobre a dinmica dos enfeitiamentos. Assim como aquela moa cujo pai foi obrigado a fugir por medo de ser assassinado pelos afins de sua filha, j vi entre os Aweti um homem cujo pai e irmo eram acusados pelo pai e irmos de sua esposa por ocasio da morte de uma criana da aldeia. Seus familiares que estavam sendo acusados j no viviam mais naquela aldeia, por conta de casos de feitiaria precedentes o que d conta da persistncia temporal das inimizades de modo que era ele quem, como representante de sua linha paterna, estava ali escutando as acusaes sozinho. Isso normal, explicou-me, eu no fico triste pois sei que assim mesmo. preciso agentar e escutar. Cerca de um ano depois, contudo, este homem havia se mudado para junto de seus
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irmos, j no suportando mais as acusaes contra os seus, que nunca haviam cessado. O mesmo tipo de situao tambm comentado a partir de outro ponto de vista: Fulana sabe que o marido est amarrando sua prria me, e tem de continuar ao lado dele sem dizer nada. O que voc vai dizer a seu marido numa situao dessas?. Comentrios assim no precisam ser tomados como exemplos do fato de que pessoas so mais vitimas do feitio de afins que de pessoas com as quais tm outros tipos de relao, mas sim do fato de que a feitiaria entre afins gera constransgimentos adicionais. Cnjuges ficam muitas vezes na linha de fogo da guerra de acusaes entre suas famlias, uma posio na qual recomendado manter a imobilidade e o silncio. Brigas entre famlias eventualmente antecedem os casamentos, mas se um matrimnio chega a ser realizado porque as partes consideram que os desentendimentos foram resolvidos, o que raras vezes se confirma j que quando algo de mal acontece a tendncia que as pessoas simplesmente continuem desconfiando de quem sempre desconfiaram. A despeito disso, h um entendimento geral de que as inimizades no devem ser alimentadas ao longo do tempo, e de que podem mesmo ser esquecidas (ver cap 2). Mas j tive notcia de uma jovem impedida de casar-se com certo rapaz que era neto do homem que executara o av dela, h muitos anos atrs, sob acusao de feitiaria. Casamentos entre pessoas de famlias que j viveram situaes de hostilidade so apostas na superao da diferena169, mas claro que esto especialmente ameaados pelo ressurgimento da hostilidade, ameaa claramente agravada pelo tipo de circunstncia engendrada pela prpria situao do casamento. Como venho dizendo, insatisfaes com relao ao cumprimento das obrigaes de afeto e de respeito devido aos afins so uma constante. Se neste casos no seria
Que podem dar certo, como parece ter ocorrido entre a famlia do chefe yawalapit executado na dcada de 30 e seus aliados kamayur, que teriam estado envolvidos na execuo (Viveiros de Castro 1977, 66/68, apud Coelho de Souza 2000, 375).
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verdadeiro dizer que o casamento cria desentendimentos, no mnimo podemos dizer que ele propicia um contexto para sua atualizao. H casos, no entanto, em que a relao amorosa realmente corta um fluxo relaxado de relacionalidade, como a histria contada no segundo captulo, que relembro aqui. Os filhos de duas irms so amantes, e chegam a ter um filho, dado para uma famlia que vive bastante longe. O amor entre primos paralelos impossvel, pois filhos de germanos de mesmo sexo so irmos. Ao mesmo tempo em que condenam a atitude de ambos os jovens, muitas pessoas acusam o rapaz de ter feito um feitio amoroso (kuriti) para seduzir a moa, que teria com isso perdido a cabea e aceitado a relao proibida. Dizem tambm que ele namora ao mesmo tempo com a irm dela, o que seria causa de uma certa rivalidade entre as jovens pelo amor do rapaz. Ao apresentar esta histria, comentei que ela tratava antes de um feitio de afinizao que de um feitio contra afins. Como era de se esperar, o adoecimento da menina (ver cap 2) levou a uma troca de acusaes e insultos entre as irms, e chegou-se a falar que a famlia do rapaz iria abandonar a aldeia. Aqui congnatos so tornados inimigos no ato em que se tornam parceiros matrimoniais possveis. Na histria da aldeia cindida a partir do adoecimento da filha do chefe, novamente encontramos um caso de inimizade entre irmos. Vimos que alguns Aweti ligados ao acusado dissidente devolveram a acusao a seu parente (por afinidade) acusando o tio paterno da moa doente. Ainda que os irmos no tenham chegado eles mesmos troca de acusaes, o simples fato de que de ponto de vista de algumas pessoas longinquamente envolvidas no caso esse tipo de problema entre germanos pensvel e possvel merece ateno. Devo ressaltar que a contraacusao dos Aweti no estava ligada a uma hostilidade em relao ao acusador, o pai da jovem enfeitiada. No se tratava de dizer implicitamente esses dois irmos no so gente, e fazem
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feitio um contra o outro, pois por outros motivos e outras conexes familiares estes mesmos Aweti nutriam bastante simpatia e compaixo pela famlia da vtima do feitio. Aparentemente o que justificaria a atitude do outro chefe acusado era apenas sua inexplicvel maldade (como o caso de todos os feiticeiros) e talvez inveja do irmo, mais atuante e reconhecido que ele como chefe. Essas trs histrias reunidas mostram que nem a poltica nem as relaes de parentesco isoladamente permitem-nos delinear uma sociologia do feitio xinguano. Antes, a combinao de fatores que tende a culminar em casos de enfeitiamento. A literatura tendeu a sobrevalorizar as motivaes polticas, o que levou muitos autores a caracterizarem a feitiaria como um instrumento da disputa por posies de liderana. Os personagens centrais de tais disputas so assim descritos como lderes de faces oponentes, e as faces como grupos de germanos habitando casas em geral dispostas num mesmo trecho do permetro da aldeia. Mas os casos descritos acima me permitem enfatizar dois pontos: primeiro, germanos no so necessarimente alinhados faccionalmente contra os memos oponentes polticos. Pelo contrrio, a diputa entre germanos por posies polticas comum; segundo, a inimizade entre germanos nem sempre motivada pela disputa por posies de liderana, estando muitas vezes atrelada a divergncias que costumamos classificar como apolticas. No estou sugerindo que as disputas matrimoniais expliquem tudo a respeito da feitiaria, apenas noto que o matrimnio gera uma srie de expectativas a respeito das relaes que ele reconfigura, operando assim como uma mquica de criar insatisfaes que fazem vir tona a diferena, antes que a semelhana, entre pessoas. Para matizar minha prpria afirmativa, lembro que a interpretao aweti sobre a fisso da aldeia vizinha demonstra de que modo por vezes as relaes de afinidade atingem um grau de identificao considervel: os Aweti defendiam seu afim acusando um par de germanos de
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5.9Oparentescopervertido
Ao longo deste trabalho venho apontando para uma relao entre feitio e parentesco enquanto formas de influncia atravs da comunho ou unidade entre pessoas, de modo que elas podem ter acesso umas ao corpo das outras. Uma descrio similar foi h muito avanada por Leach (1961), ao distinguir a influncia que consanguneos tm uns sobre os outros via substncia compartilhada e a influncia mstica que ocorreria entre afins. A mesma oposio formulada pelo autor em termos de influncia dentro de uma unidade formada por integrao (ou identidade, na leitura de Viveiros de Castro 2009) e influncia numa unidade formada por aliana (ou relaes de diferena, ibidem), sendo que ataques sobrenaturais (algo mais similar bruxaria, na descrio de Evans-Pritchard, que feitiaria intencionalmente perpetrada) incidiriam sempre sobre este ltimo grupo. O autor descreveras unidades formadas por aliana como produto da troca de bens e servios. A influncia mstica se daria, portanto, entre pessoas que esto conectadas atravs de bens, mas no de substncia. Podemos pensar, por outro lado, que a troca de bens e servios no constitui unidades de aliana, sendo justamente aquilo que distingue termos antes de outro modo conectados. Isso o que apreendo da etnografia de Wagner (1967) sobre os Daribi da Nova Guin, entre os quais a circulao de bens valiosos na forma de pagamento o que interrompe e no o que permite a influncia mstica de feiticeiros. Pagamentos so tambm dados ao tio materno para evitar que este exera uma influncia maligna sobre o sobrinho, influncia cujo canal de ao o sangue compartilhado (uma pessoa Daribi formada pelo sangue materno e esperma paterno). O
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pagamento ao tio materno permite ao sobrinho distinguir-se deste, estabelecendo-o como um afim, e assim assegurar uma relao unvoca com a linha paterna qual ir se identificar como consanguneo. Em outras palavras, entre os Daribi, se sobrinho e tio possuem influncia uns sobre os outros, a unidade que integram no composta pela circulao de bens de valor mas, pelo contrrio, interrompida por tal circulao. O ponto me parece importante, pois ao descrever o caso aweti enfatizei de que forma eit170. Lembro da maneira com que um grupo de mulheres falava da filha de uma irm de sua me, pessoa bastante prxima que sempre as visitava em sua casa, com quem constantemente compartilhavam comida e a quem tinham como companheira constante de passeios e banhos. O marido desta mulher intencionava mudar-se da aldeia e j havia me avisado, mas no comunicara formalmente seus parentes aweti. Inconformadas com este plano, de que tinham conhecimento apenas atravs de fofocas, suas irms lastimavam: A gente no tem idia do que se passa na cabea dela. Ao mesmo tempo em que resulta da impossibilidade de um compartilhamento total que permita a uma pessoa fazer sempre mais e melhores parentes, o feitio diz respeito incapacidade de controlar os canais de influncia que tornam algum vulnervel s relaes sua volta. Este mesmo acesso que o feiticeiro tm queles que deseja fazer mal faz dele um parente, mas um que age como anti-parente. Retomando proposio de Leach podemos dizer que, se todo afim uma espcie de feiticeiro, todo feiticeiro uma espcie de afim, mesmo quando um consanguneo. Quando os Aweti se referem ao desejo de cuidar que deve caracterizar relaes
Comparar com Kapferer (1997): o autor demonstra como o Suniyama, ritual de desenfeitiamento no Sri Lanka, promove a distribuio espontnea de bens e alimentos que teriam motivado a inveja dos vizinhos e com isso levado ao feitio. Aquilo que fora motivo de inveja torna-se meio de reestabelecimento dos laos sociais do enfeitiado. Neste caso tambm, a causa do feitio uma falha no compartilhamento.
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como filiao e germanidade, dizem que uma pessoa poupa ou sovina aquela a quem por demais ligada. Lembro da histria da menina apelidada Oro porque era exageradamente protegida pela me de namorados indesejados: a me cuida/protege (wejtatat, aqui no sentido de sovinar) tanto sua filha que chamam a menina de Oro. Quanto ao feiticeiro, ao contrrio, no nos poupa/protege, an kajatatyka. Assim como a expresso no gente algo que s aplica a algum que seja gente, dizer que algum no cuida de ns s faz sentido em contraste com a expectativa de cuidado. Poderamos simplesmente dizer que o feitio diz respeito inconsistncia entre a imagem do grupo local/tnico como grupo de parentes - ou grupo de pessoas associadas pelo ideal de compartilhamento - e as diferenas internas que a todo momento aparecem impedindo a estabilizao dessa unidade. Este ideal de coincidncia entre o parentesco e o local tem sido amplamente descrito para as sociedades amaznicas. Por que ento insistir na oposio entre consanguinidade e afinidade, e na aliana matrimonial como criao de oposies sobre uma unidade precedente? No sugiro que a aliana matrimonial seja o nico fator que cria oposies dentro deste universo, mas que ela torna evidentes e atualiza fissuras ao distinguir grupos de oponentes, pessoas que doravante passaro a ter expectativas muito mais elevadas e difceis de cumprir umas em relao s outras, na condio de afins matrimoniais. Mas os afins seriam apenas o caso limite e mais evidente do fato de que quase ningum to parente quanto se desejaria. Esta uma outra maneira de formular o problema que apresentei no primeiro captulo, a respeito do feiticeiro ser um tipo de gente (moat) que no gente.
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A doena e a morte, como se viu, so contextos de re-constituio da humanidade e dos laos de parentesco dentro dos universos de tywyza e tooza. Mais do que atualizar o compartilhamento de substncias-bens, tais ocasies permitem a demonstrao da inteno de compartilhar ou no, de manter ou no vnculos de parentesco: a comunidade dos corpos atravs de substncias e coisas - assim indissocivel de uma comunho de desejos que
necessita ser periodicamente reafirmada. Em certa medida, tais demonstraes so sempre atos de linguagem: o ato de chamar de parente, enquanto sinal do reconhecimento de um nexo precedente, constituindo o nexo presente e projetando nexos futuros; ao lado disso, declaraes de compaixo, declaraes de disponibilidade de compartilhamento de bens, declaraes de nodiferena, discursos de indignao em torno do adoecimento de um ente querido, so componentes essenciais de tais nexos; e tambm o prprio lamento fnebre. Confirmar intenes atravs da linguagem tambm confirmar que as relaes certas foram estabelecidas relaes, confirmar que a pessoa foi constituda a partir dos fluxos de potncia com parentes e determinados entes no humanos, confirmar que se est diante de um grande homem, um igual, e no de um feiticeiro (ver cap. 4). Nesta medida, uma das funes da linguagem seria visibilizar disposies internas que no podem ser tomadas como dado a partir
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da imagem externa de algum. As relaes cotidianas padecem da mesma opacidade, isto do fato de que no possvel inferir diretamente do visvel para o invisvel - um vizinho com quem converso diariamente no banho pode ser o feiticeiro que est matando meu filho. Ao mesmo tempo, tais interaes so sempre reveladoras, pois preciso que pequenos atos indicando hostilidade j tenham sido notados para que a suspeita do mau-querer seja sequer aventada. No compartilhar comida, no trocar palavras, no sequer olhar um vizinhos de aldeia, so sinais de disjuno. Mas devido ao fato de que disposies internas no so dados estticos, mas resultantes de relaes contingenciais e mutantes relativas ao que se come, com quem se come, os remdios que se usa, de quem se escuta histrias, que sua confirmao sempre necessria. As palavras no apenas confirmam algo que j estava l, pois so elas mesmas que instauram relaes constituintes da pessoa. Chamar de parente suficiente para ser parente, ainda que seja o ato mais incipiente neste sentido, pois para ser parente de verdade, ytoto, preciso falar coisas mais precisas171. Minha proposta neste captulo descrever a fala como um objeto de circulao que constitui relaes de identidade e diferena. Para estender a oposio entre troca e compartilhamento que vimos ocorrer com os bens de valor para o nvel dos discursos, sugiro, seguindo uma observao de Ellen Basso (1987) sobre a dinmica de narrao de mitos entre os Kalapalo, que uma verdade pode ser entendida como uma fala compartilhada, e que portanto pensar a fala nesse sentido nos leva a pensar os mecanismos de produo de verdade entre os
Nesse sentido a linguagem no teria a funo, notada por Keane (2002) entre os sumbaneses convertidos, e simplesmente tornar visvel um interior (inner self) de outro modo opaco queles com quem uma pessoa se relaciona. Tento descrever justamente como, entre os Aweti, a linguagem no o meio de expresso de uma interioridade prconstituda e inacessvel esta seria a viso protestante/ocidental que os sumbaneses teriam incorporado, segundo Keane mas o meio de constituio de pessoas em relaes.
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Aweti. A meu ver, a distino entre verdade e falsidade ali concomitante constituio de corpos de parentes, pois medida em que compartilham verdades esses corpos se constituem e reconstituem enquanto tais. Isso fica mais claro em relao aos discursos sobre feitiaria. Como comentei no captulo 2, estamos diante de um sistema que no provm meios de verificao e sano pblicos. A execuo de um feiticeiro sempre uma vingana particular, assunto de famlias, ainda que para ser levada a cabo requeira o agrupamento de um certo nmero de pessoas, entre mandantes pagadores e executores. Sustento tambm que a relao entre essa atividade de controle e a chefia tnue, pois a chefia indgena no envolve a delegao de autoridade jurdica. Um homem chega a se chefe porque possui um grupo de apoio considervel, o que lhe fornece condies favorveis pra acusar feiticeiros quando a ocasio surgir. Essa condenao no entanto no deixa de ser assunto de famlia e um chefe neste caso no ser reconhecido como um agente pelo bem estar coletivo. a prpria idia de bem estar coletivo que parece estar ausente do seu horizonte, pois o bem coletivo s poderia ser definido de acordo com uma verdade coletiva, enquanto a experincia denuncia a impossibilidade de se manter um tal consenso. Analisando a figura do trickster na mitologia kalapalo, Basso (1987) chama ateno para o carter dialgico do todo evento de narrao de mitos, e para o fato de que o ouvinte ao qual uma histria dirigida sempre uma pessoa em particular, no importa quantos estejam na audincia tem uma participao fundamental ne validao do que contado, atravs de comentrios que so parte constitutiva da narrativa. Como nota Basso, as intervenes do ouvinte confirmam o compartilhamento de pontos de vista deste com o narrador. A veracidade de uma histria teria, assim, menos a ver com a correspondncia entre uma proposio e um fato, do que com a posio relacional entre os interlocutores. Nas palavras de Basso: ...among the Kalapalo, the truthof
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the interpersonal relationship takes precedence over the propositional truth of the parties statements (1987, pg. 238). Basso nota ainda que a fala constitui-se como o veculo da ao enganadora do trickster, de modo que os mitos so tambm comentrios nativos sobre o carter enganador da prpria linguagem. Mas o engano aqui pode tambm ser definido em termos do no compartilhamento de pontos de vista: o discurso do trickster engana na medida em que cria uma falsa identidade entre si e seus interlocutores, j que o trickster no aquilo que diz ser, um amigo. A questo que me coloco, e que j vimos colocada por Basso, concerne s condies nas quais um discurso pode ser considerado verdadeiro, e estas me parecem envolver no apenas uma relao de identidade percebida entre o que dito e seu referente, mas tambm a afirmao de concordncia/identificao entre interlocutores. Se os Aweti no demonstram ter expectativa de que haja consenso dentro de um grupo local, no porque esto dispostos a aceitar diferentes verses dos fatos como equivalentes, sobretudo em questes de sade e morte, a respeito das quais verses distintas so evidentemente incompatveis. Mas tampouco habitam um universo individualista que condena cada um ao isolamento de verdades incomunicveis. Muito pelo contrrio, a idia de que preciso viver em coletividade sempre lembrada por eles, o isolamento comparado vida no humana daqueles que esto constantemente bravos, pessoas que no so gente. vergonhoso viver encerrado entre si, ao mesmo tempo em que por vezes nica maneira possvel de se viver. Agora somos todos irmos vivendo juntos, no tem ningum de fora contava-me um morador do Saido, explicando que assim a vida era muito mais fcil do que antes. Tudo depende do escopo de relaes que algum pode incorporar. O termo aweti para mentira moem, que designa um discurso deliberadamente enganador, pode designar tambm um engano no intencional ou uma representao mal
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executada, como um padro de pintura corporal reproduzido sem excelncia ou um mito contado pela metade. Em contraste, no h um termo preciso que poderamos traduzir por verdade ou verdadeiro. Na ytoto, ele mesmo, o prprio, o que se diz para indicar a veracidade de algo. Se lembrarmos que ytoto tambm significa muito, vemos que o prprio/verdadeiro apenas uma verso mais completa do falso, e que sua distino um caso de gradao (tal lgica de categorizao por gradao foi descrita em Viveiros de Castro 1977 acerca dos Yawalapit, e tambm registrada a respeito da noo kuikuro de aurne, mentira, em Franchetto 1986). Esse sentido de moem aponta mais uma vez para o carter constitutivo dos discursos, para alm do que tm a revelar sobre a intencionalidade do falante. Quanto s verdades compartilhadas, este escopo no est nunca dado, e talvez seja justamente sua abertura o que permite s histrias circularem, pois em geral as pessoas se comportam como se compratilhassem os mesmo pontos de vista, comunicando-se como se fossem iguais. Conversar em encontros casuais beira do rio banhando-se, no centro da aldeia passando o tempo, a caminho de um pescaria - um gesto obrigatrio de educao entre coaldeos, e no faz-lo extremamente significativo, algo que ocorre apenas entre pessoas com hostilidade declarada entre si. Se no h, como penso, expectativa de consenso, porque as pessoas sempre sabem, baseadas na percepo que tm umas das outras no dia-a-dia, que no vivem num universo de perfeito compartilhamento. Por ocasio de um acontecimento trgico, como a separao de um casal, um roubo, um adoecimento ou morte, as distines tornam-se significativas, preciso optar por uma ou outra verdade ele a deixou porque ela engravidou de outro, ou ela o deixou porque a sogra a xingava constantemente? Disse que a morte e a doena so ocasies de reafirmao de um grupo enquanto coletividade humana. Ao mesmo tempo, como no poderia deixar de ser, estes so os momentos de clivagem em que diferenas latentes se
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atualizam e o fato de que as verdades de um no sejam as verdades de outro orienta suas condutas de maneira mais efetiva pessoas deixam de falar-se, olhar-se e mesmo de compartilhar o espao nestas ocasies. A lgica que leva uma pessoa a defender uma ou outra verso dos fatos muito simples: cada um se pe ao lado de seus parentes, no necessariamente os genealogicamente mais prximos, mas aqueles que fortaleceram sua conexo atravs de atos continuados de cuidado. Mas se a verdade um efeito do parentesco, ela tambm produtora dele: um grupo de pessoas que compartilham um ponto de vista constitui-se como um sujeito, um corpo coeso contra outros dos quais se distingue. preciso no entanto lembrar que esta coeso ser, sempre, momentnea e circunstancial, pois as parentelas so corpos impermanentes veja-se abaixo o caso de um homem que manteve-se sempre extremamente prximo de seu FB at que este passa a acus-lo de haver espalhado mentiras a seu respeito. Como disse no captulo anterior, a proximidade o que fornece motivos para o dissenso, ao mesmo tempo em que este pode se proliferar na relativa distncia que separa uma casa da outra, ou um setor familiar de outro numa mesma casa. De modo que ao chamarmos estes corpos de parentelas preciso ter claro que formam-se sem que um ou outro princpio de recrutamento tenham valor absoluto. O tema dos discursos verdadeiros diz respeito tambm minha posio como antroploga entre os Aweti. Sempre vivi na casa de uma ou outra famlia, mas sempre circulei com certa liberdade por quase todas as casas da aldeia, suficientemente pequena para que agir deste modo me parecesse mais do que vivel, inevitvel. Visitas conduziam a convites para uma jornada de trabalho ou para comer, e nessa circulao eu tomava conhecimento da existncia de verses completamente diversas sobre os mesmos eventos, algo que, medida em que fui envolvendo-me com as pessoas, tornou-se difcil de lidar, sobretudo em relao s acusaes de feitiaria. Menos
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do que questionar se esta foi uma boa ou m estratgia de pesquisa, creio que vale a pena investigar que conseqncias teve e o que me permitiu perceber no apenas sobre a relao dos aweti com o conhecimento mas tambm sobre o contraste de sua relao com o conhecimento como a minha prpria. A sensao que tinha por vezes de estar no meio de um campo de batalha me remeteu a duas reflexes: por um lado, era uma angstia que podia ser compartilhada com pessoas que encontram-se no meio de uma briga entre afins como por exemplo a mulher cuja me teria sido enfeitiada pelo marido, e a filha deste casal, informada por terceiros de que seu pai estava enfeitiando sua av; por outro lado, essa angstia s podia ser efeito do fato de que, por mais que estivesse mantendo relaes de parentesco na aldeia, a falta de profundidade temporal dessas relaes implicava que eu talvez no fosse parente o suficiente para saber como me posicionar. Pois o fato de que certas pessoas esto no meio de uma acusao no justifica, do ponto de vista de cada um dos lados em contenda, que se adote uma posio neutra. Do ponto de vista daquele pai acusado, sua filha estava sendo submetida a escutar acusaes falsas, e era bvio que estaria do seu lado; do ponto de vista das irms de sua mulher, esta estava sendo obrigada a conviver com um marido que enfeitiava sua me, e era bvio que defenderia os seus consangneos. claro que minha posio no podia ser tambm perfeitamente neutra, nem do ponto de vista das pessoas com quem eu convivia, que muitas vezes me cobraram partido, e nem do meu, que inevitavelmente tinha maior ou menor identificao com uns ou outros. Muitas vezes o fato de que eu circulava em vrias casas foi visto com desconfiana, ao mesmo tempo em que freqentemente cobravam-me faz-lo exatamente porque, sendo branca, eu no devia escolher nenhum lado e sobretudo, dar ouvidos a fofoca. O ponto que o meu o desconforto foi o que me levou a notar a presena ou ausncia de desconforto das pessoas indiretamente envolvidas nas
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6.1Tomowkap
Ao descrever a produo de um ritual de cura entre os Wauja, Barcelos Neto (2004) comenta que os diversos tipos de apapaatai (kat) existentes no possuem uma imagem codificada fixa, de modo que a aparncia o tipo de mscara, o grafismo aplicado, a roupa com a qual um determinado esprito ser representado no ritual pode variar consideravelmente. A orientao para a fabricao do aparato ornamental dada pelo xam, que deve contar aos especialistas rituais como estavam vestidos os apapaatai especficos que atacaram aquele doente especfico. Os apapaatai presentificados no ritual so exatamente aqueles que o xam viu em sonhos e transes provocados pelo tabaco ao longo do processo de diagnstico e cura; o modo como so representados assim determinado contingencialmente, e no segue uma gramtica de representao de apapaatai genricos. Entre os xinguanos, a atividade xamnica est associada basicamente comunicao com entes no humanos cuja ao sobre o mundo humano deve ser convertida atravs do ritual. Os xams fazem relaes com kat atravs das quais podem transformar relaes de outros (doentes) com kat. Seu desempenho no est baseado em nenhum tipo de conhecimento esotrico e nem entendido como uma fonte de conhecimentos nesse sentido. Os xams no so necessariamente considerados pessoas mais sbias do que outras como, veremos espera-se que sejam os chefes, e alm disso os Aweti referem-se com freqncia a casos de xams que se confundem, xams que mentem deliberadamente (mopat emoem, mentira do xam, sempre comenta algum), xams que no tm coragem de dizer a verdade (an okytiryka otomiinkaw ts, eles no conseguem se
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acusar uns aos outros). A situao pode ser comparada ao que descreve Crocker a respeito da curas operadas pelos xams de espritos patognicos bope entre os Bororo: num transe provocado pelo tabaco, o xam bororo informado por seu auxiliar sobre quem so os bope que atacam um doente. Como os bope so entes enganadores, contudo, as informaes xamnicas nunca so de todo confiveis (Crocker 1985, pg 29-230). Compare-se tambm com o que descreve Viveiros de Castro a respeito da produo de conhecimento entre os Arawet, onde a funo xamnica inclui a produo de conhecimento cosmolgico atravs de cantos sonhados. Os deuses arawet cantam atravs dos xams, e esta a fonte do que se pode saber sobre os mundo invisveis aos olhos humanos. Deste modo um saber sobre qualquer aspecto da cosmologia nunca ser remetido ao discurso mitolgico ancestral, sendo antes creditado a um sujeito atual e suas experincias pessoais. Cantos xamnicos sero, ainda, submetidos a mltiplas interpretaes pelos ouvintes, o que garante uma considervel democratizao do saber - mulheres e crianas falam tanto quanto ou mais do que os xams do mundo sobrenatural por eles descrito. Acima de tudo, uma aldeia conta com xams diversos, descries diversas do cosmos que convivem ainda com a memria dos discursos do xams falecidos, donde as vises de cada um terminam sendo relativizadas pelas vises do outro. O prprio canto xamnico reproduz as experincias do deus que canta atravs dele, de modo que o conhecimento tambm a pessoal e relativo, sempre conhecimento de algum (Viveiros de Castro 1986). O xam xinguano que v quais e como esto paramentados os kat que atacam uma pessoa cria as condies de possibilidade para esta pessoa torne-se dona, isto , patrocinadora, de um ritual, o que por sua vez lhe permite expandir sua influncia baseada na posio moralmente superior de distribuidor de alimentos. O xam imbudo com isso de um poder poltico para o qual a etnografia xinguana j chamou a ateno repetidamente (Becker 1969, Barcelos Neto
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2004). Parece-me importante, nesse sentido, ressaltar os limites dessa atuao, impostos pelo fato de que a atuao simultnea de diversos xams num mesmo caso sempre joga uma sombra de desconfiana sobre a palavra de qualquer um deles. Mas aqui gostaria de chamar ateno a outro ponto: os xams xinguanos possuem uma agentividade cosmolgica fundada na relao que estabalecem com os kat, mas sua posio no associada apropriao de conhecimentos cosmolgicos tidos como importantes para liderana alde. Com isso uma influncia poltica direta no ser nunca exercida por estes homens na condio de xams. Vimos a principal atividade que define a condio de morekwat, e especificamente do tam itat, dono da aldeia, aconselhar os aldeos. O termo mowka, que designa esta ao, nos remete diretamente ao conhecimento de histrias, tomowkap. Mas tambm aqui, como veremos, a possibilidade de questionamento ou relativizao do discurso constante. Os Aweti traduzem a palavra tomowkap por histria, e usam-na para designar tanto histrias contadas pelos antepassados e transmitidas atravs das geraes quanto algo que aconteceu dez minutos atrs. Literalmente, a palavra designaria instrumento de orientao, pois a raiz -mowka compe tambm o verbo aconselhar, orientar ou dar conhecimento, e a terminao p um instrumentalizador de objeto. Wejmowka, ele orienta, pode referir-se ao discurso do chefe, ao pai aconselhando seu filho, ou a uma pessoa contando outra o que aconteceu na pescaria. Um homem que tem informaes sobre um evento, assim como um exmio narrador de mitos, dono da histria, tomowkap itat. O que chama aqui de mitos so histrias dos antigos, mote moaza etomowkap. Mas, como indica o termo tomowkap, uma histria no apenas um relato do que j passou, mas tambm um guia para aes futuras. Ao explicar-me as restries alimentares que os jovens deveriam seguir antes de iniciarem sua vida sexual, por exemplo, um homem enfatizava: temoem eym, tomowkap, traduzindo depois ele mesmo ao
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portugus, no mentira, histria. Est claro que essa histria no pode ser reduzida nem histria como fico, em oposio ao real, nem histria no sentido de passado, em oposio ao futuro. Tomowkap orienta pois relembra os eventos na origem da ordem atual do mundo, e explic porque as coisas devem ser feitas de determinadas maneiras. Tomowkapwan ekozoko, voc vai virar histria a frase tpica de um personagem a outro no encerramento das narrativas: um portagonista que se torna um modelo para o povo do futuro, amyeza. Mesmo entre as histrias dos antigos, contudo, nem todas tm um sentido cosmognico, e o prprio termo mote moaza etomowkap no designa uma classe de histrias especialmente importante. Tratam-se antes de histrias sobre pessoas do passado,, desconhecidas dos viventes de hoje. Podem-se distiguir dentre estas aquelas recentes, minwamut, coisas que acontecerem ontem, e outras realmente antigas, motsat, sendo este tempo passado ainda dividido por geraes a gerao de Ywawytyp e Tatia, av e pai de Wamutsini, respectivamente; a gerao de Itsumaret e Tanumakalu, pais dos gmeos; e a gerao de Sol e Lua. Comentei acima (cap. 1) o que me dissera um velho aweti oferecendo-se para contar um mito, enquanto apontava os mais variados objetos nossa volta: isso gente, tem histria, moat, tomowkap oupeju. Um objeto que tem histria um objeto que foi personagem de uma histria, na qual aparece sob a forma humana; a histria explica uma transformao como a mosca assumiu seu aspecto mosca, por exemplo como resultado de determinada atitude do protagonista ou daqueles com quem se relaciona. Dizer que algo tem histria, portanto, implica um reconhecimento de agncia (sob a forma da personitude) do ente que a protagoniza. As histrias no apenas nos dizem que muitas coisas j foram pessoa, como avisam que essas mesmas coisas so pessoas ainda, e que portanto podem seguir atuando e produzindo efeitos sobre ns (Cf. Viveiros de Castro 2007a). A diferena entre histrias cosmognicas e outras histrias quaisquer pode dizer respeito variao de grau
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da potncia agentiva dos personagens. Evidentemente, nem tudo que se passa a algum, e que pode ser contado como histria, implica na instaurao de uma nova ordem do mundo - quanto mais distante temporalmente chegamos maior parece ser tal potncia. Mas se uma histria do tempo dos avs, uma histria recente, no determina modos de ser da mesma forma que o faz uma histria de kwaza, ela ainda guarda uma mensagem, um aviso: isso pode se passar outra vez. Um exemplo so as inmeras histrias de homens atacados por jaguar nos caminhos em torno da aldeia. Poderamos dizer o mesmo de uma histria atual sobre, para dar um exemplo qualquer, o fato de um chefe xinguano ter ido a um rgo do governo reclamar sobre a falta de apoio ao sistema de sade? A questo sempre o sentido e a ocasio em que um fato qualquer narrado. Alm dos motivos j citados, impreciso traduzir o termo tomowkap por histria, uma vez que se define no por uma qualidade imanente qualquer, mas pela relao dialgica entre o narrador e o ouvinte uma histria um discurso dirigido a algum, como enfatizou Basso (1987,1995). Nesse sentido, se as histrias dos antigos apresentam uma forma bastante especfica, sendo narradas com maior ou menor execlncia por distintos narradores172, tomowkap em seu sentido mais amplo no pode ser definido como um gnero discursivo, o que se torna claro quando consideramos que qualquer relato de pescaria contado por uma criana pode ser assim denominado. E mesmo as noes de narrativa ou relato que presumem uma circunstncia relacional - no do conta de um aspecto crucial de tomowkap, o fato que se trata de uma histria contada com fins especficos. Tomowkap sempre uma explicao e um aviso, uma informao que ser tomada em considerao como base para aes futuras. Tomowkap, em
As caractersticas formais de algumas categorias discursivas altamente codificadas no alto xingu, como as histrias dos antigos e os discursos de chefe, j foi bastante explorado na literatura - ver Basso textos citados, Franchetto, 1986 e 1993, Ball 2006. De modo que seria repetitivo empreender aqui uma anlise.
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suma, uma fonte de conhecimento, no apenas um relato. E isso na medida em que permite conhecer agncias alheias atravs dos eventos nos quais tais agncias foram testemunhadas, e a partir dos quais novas aes podem ser previstas: o chefe foi ao governo federal e disse tal coisa, o que dever provocar tais efeitos; um caador ouviu gritos estranhos no mato, preciso ter cuidado; enfeitiaram a filha de um homem de tal aldeia. Dado que toda histria a histria de um agente, suas aes e as conseqncias destas, podemos dizer que o conhecimento de histrias tem neste sistema um papel correlato ao xamanismo, se o definimos como capacidade ampliada (geralmente, pelo uso de algum condutor, p.ex. prteses psicofarmacolgicas) de reconhecer sujeitos onde pessoas comuns enxergam apenas coisas, ou simplesmente no vem nada (Viveiros de Castro 2002e). Essa definio perfeitamente aplicvel ao xam xinguano em seu transe de tabaco, mas tambm ao velho que podia afirmar a personitude de tudo sua volta, no porque havia visto a mosca sob forma humana, mas porque sabia sua histria. Dado que uma histria por definio uma fonte de conhecimento, ser um dono da histria sempre uma posio de poder, mesmo que temporria, como a do visitante que traz a notcia do que tal chefe xinguano disse ao governo. A associao entre chefia e conhecimento mitolgico que Basso (1995) nota para os Kalapalo tambm se verifica entre os Aweti: os dois homens que se proclamavam conhecedores de histrias (tomowkap itat) na aldeia eram os dois homens (mais) reconhecidos como chefes, ambos pais de homens jovens que tambm atuavam como chefes. Tambm como nota Basso, saber histrias dos antigos um atributo dos velhos e, mesmo os jovens e as mulheres que terminavam contando-me um ou outro mito afirmavam que no sabiam faz-lo bem. O domnio do corpo mitolgico implica o domnio do estilo discursivo, o que por sua vez
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implica o domnio da maior quantidade possvel de detalhes. Personagens devem ser descritos em toda a sua ornamentao corporal, seus nomes devem ser lembrados, os termos onomatopicos que descrevem movimentos de caminhar, correr, chegar a um lugar, banhar-se alegremente, comer, beber, soltar um bafo, entrar numa casa, devem ser reproduzidos, os tons de voz de cada personagem imitados, os cantos xamnicos entoados pelos personagens, cantados, a ordem dos eventos precisamente respeitada, histrias diversas contadas segundo uma ordem especfica. Comentando essa difcil mestria, um dos narradores aweti me explicou que as histrias no ficam guardadas na cabea (a imagem clich que eu lhe havia proposto, quando comentara que o ndio no guarda histrias em papel), mas na boca e nos olhos de quem conta. Contar uma histria ver os acontecimentos que ela descreve, me dizia o velho narrador de mitos o que corrobora a comparao desta forma de conhecimento com o conhecimento xamnico. No captulo 3 afirmei que os conhecimentos sobre tcnicas de alterao corporal so essenciais para a constituio das pessoas. Agora parece-nos que toda aquisio de conhecimento em si mesma uma forma de alterao corporal. Ocorre que quem decide se uma narrativa ou no uma fonte de conhecimento, se ou no uma informao que deve ser levada em considerao, se ou no verdadeira, em suma, o ouvinte. Isso coloca em jogo no apenas a autoridade do narrador, mas tambm a autoridade de suas fontes. Retornando comparao com os Arawet, vimos que ali o conhecimento esotrico produto da relao entre o xam e os deuses, mas tambm da relao entre o xam e seus intrpretes e da relao entre xams, na medida em que os discursos de um relativizam os discursos do outro; os cantos por sua vez so j produto de relaes estabelecidas pelos deuses entre si, pois o que um deus canta atravs do xam no conhecimento de primeira mo, mas o discurso citado de outro deus. O conhecimento portanto sempre adquirido, e sempre pessoal,
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dado que sua origem remetida a um (outro) sujeito. Algo parecido se passa com as histrias xinguanas, ainda que elas no provenham de fontes no humanas. Histrias, como nomes, so coisas de famlia. Pessoas comuns ou grandes narradores, quem me contasse alguma histria dos antigos geralmente gostava de especificar iteatutu etomowkap, essa uma histria do meu av, apaj etmowkap, histria do meu pai, itaty up etomwkap, essa histria era do meu sogro (cf. Gow 1991, pg. 60-1 para uma observao similar quanto transmisso de conhecimento entre os Piro). Assim como ocorre com os cantos xamnicos arawet bem como com os diagnsticos xamnicos entre os xinguanos os Aweti me apresentavam uma proliferao de histrias e verses de histrias dos antigos provindas de fontes distintas. Se a abertura do conhecimento sua relativizao, a possibilidade de que novas vises sejam consideradas, ou velhas vises reinterpretadas um dos efeitos desse regime de saber, a disputa em torno do conhecimento verdadeiro era para mim especialmente notvel. Isso seguramente se deve idia que os Aweti tinham do que eu estava fazendo ali.
6.2Histriasparadormir,histriasnamodosovina
Se pude afirmar que o domnio do estilo narrativa sobretudo na aguda descrio dos detalhes - o elemento que determina se algum sabe ou no sabe (contar) histrias, no porque algum me tenha explicado isso, ou que o tenha notado espontaneamente - ao longo de meu trabalho de campo, no parei de escutar crticas s narrativas que escutava, crticas que por vezes pareciam dirigidas mim e minha disposio de escutar mentiras, histrias mau contadas. Quando iniciei a pesquisa, muito rpido entendi que os Aweti sabiam o que eu estava fazendo ali (eu no tinha a mesma clareza): queria gravar histrias. Sua impresso devia-se obviamente
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experincia que haviam tido com pesquisadores at ento. Muitos antroplogos haviam passado pela aldeia, apenas um, George Zarur, havia ficado um tempo prolongado, e todos tinham feito horas e horas de gravaes de mitos e cantos. Alguns anos antes do incio de meu trabalho entre eles, haviam conhecido o lingista Sebastian Drude, que desde ento visitava a aldeia regularmente, e que pelos objetivos de sua pesquisa tambm havia feito muitas horas de gravao de mitos. Eu no podia desejar outra coisa, parecia-lhes, de modo que logo me indicaram quem eram os narradores capacitados para ajudar-me. Como escutar mitos no chegava a estar fora de meus planos de pesquisa, apesar de eu jamais ter imaginado que iria comear assim, aceitei o caminho que me apresentavam e com certa formalidade passei a tratar, em separado, com cada um dos narradores que me haviam sido indicados, condies para nossa relao: comentei que estava interessada em histrias, eles comentaram quantas pessoas haviam passado por ali e nunca haviam dado nada em troca, acertamos que eu deveria pagar pelo que fosse escutar. Um deles se recusou a gravar, pois dizia que eu precisava aprender a falar a lngua aweti antes, entender as histrias contadas, e s ento grav-las. Nossas sesses comearam com traduo simultnea, o que no me incomodava, pois o que me interessava mais, ento, era a desculpa para aproximarme das pessoas. Apenas no percebi, nesse momento, que estava fazendo arranjos paralelos e incompatveis, pois eu deveria ter escolhido, desde o incio, quais histrias queria ouvir, isto , as histrias de quem. Minha situao complicou-se bastante assim que os narradores deram-se conta que estavam ambos contando histrias para mim, em sesses dirias, e que cada um havia comeado a contar-me a mitologia de origens a partir de um ponto distinto. As crticas que faziam s histrias um do outro eram constantes, sobretudo no que dizia respeito a verses incompletas e ordem dos fatos. Nesse meio tempo, eu estava gravando a saga de Wamutsini contada por um
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deles, e como ao mesmo tempo comecei a transcrever essas gravaes com um rapaz, muitas vezes em que aparecia de visita na casa das pessoas, saindo de uma sesso de gravao ou de transcrio, levava o gravador comigo. Logo escutar as gravaes nas casas que eu visitava tornou-se um programa quase obrigatrio, o que me constrangia bastante pois a audincia passava a maior parte do tempo criticando a narrao que eu acabara de gravar: no esse o rudo de um homem caminhando, ele [o narrador] est te contando em kamayur!; no foi isso que fulano disse a ciclana, ele na verdade falou...; veja como ele sempre repete essa frase, muito engraado!; ele inventa as histrias, fica mudando tudo!. Quatro anos depois eu no deixara de ouvir crticas desse tipo. Quando, muito depois, gravei alguns cantos rituais, o mesmo se passou. Prevendo esse tipo de reao do pessoal da aldeia, certa feita uma mulher me pediu que no mostrasse a outros os cantos que seu irmo havia gravado para mim, para que no ficassem criticando-o por a: no importava se os cantos estavam certos ou errados, de que haveria crtica ela no tinha dvida173. Em minha segunda estadia longa na aldeia, um dos dois narradores decidiu que no seria mais possvel manter aquela situao, mas nas viagens seguintes, como eu fosse com certa frequncia sua casa sua esposa era minha amiga formal retomamos as sesses de narrao. Como comentei na Introduo, h uma longa
Note-se que eles no se mostravam preocupados com a proteo da propriedade intelectual sobre os cantos, o que seria razoavelmente esperado, j que preciso pagar para aprender cantos rituais no Alto Xingu. Como gravei muito pouco, tambm no aprofundei a reflexo sobre este tema que ganhou importncia, sabemos, em tempos de proliferao de registros escritos e sonoros da cultura imaterial. Uma diferena crucial hoje, em relao ao que faziam os antroplogos com seus gravadores no passado, que tais investimentos de registro tm partido da iniciativa dos povos donos de tais conhecimentos. Com isso a questo dos modos tradicionais de aquisio de saberes tornou-se um tema de debate. No Alto Xingu, por exemplo, onde os cantos rituais so conhecidos por poucos indivduos e sempre ensinados mediante pagamento, iniciativas como uma escola de cantos criada na aldeia yawalapit para ensinar os jovens alteram radicalmente essa lgica, tanto porque democratizam um conhecimento que era especializado, quanto porque correm o risco de desconsiderar uma distino que as vias tradicionais sempre mantm, entre os cantos de fulano e os cantos de beltrano. Para no falar do problema de definio dos direitos autorais: uma vez que todo conhecimento conhecimento de algum, e ao mesmo tempo de um povo, como definir os crditos? Entenda-se que minhas consideraes so muito genricas, pois no decorrem de observao direta (da escola de cantos mencionada, por exemplo). Os Aweti, justamente, mais observam entre seus vizinhos que vivem tal processo, ou comeam a faz-lo agora, lentamente.
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sequncia mtica que me foi contada por um deles cuja existncia simplesmente negada pelo outro o episdio que narra o nascimento de Wamutsini. Como se encontravam todos os fins de tarde no centro da aldeia, pois so ambos xams, aparentemente mantinham-se mais ou menos a par do que cada um vinha me contando, e foi assim que a divergncia em torno desse mito veio tona. Tal disputa me parece dizer respeito menos ao modo pelo qual histrias dos antigos circulam entre ndios e brancos num regime de troca e mais ao modo como circulam entre os Aweti, num regime muito distinto. Em contraste com a tenso que marcava a narrao de mitos para mim, histrias so contadas entre os Aweti num tom quase sempre cmico, despreocupado. Nas casas onde vivem estes dois reconhecidos narradores, eles se encarregam de divertir os filhos e netos pequenos todas as noites com histrias bastantes variadas, mas nas demais casas muitos adultos, e s vezes mulheres, tambm contam histrias aos pequenos. A histria de cada noite escolhida at onde pude perceber - ao sabor do momento e de acordo com eventos cotidianos. Um homem mordido por uma cobra numa aldeia vizinha, por exemplo, suscita a memria da histria sobre a origem das cobras. As crianas tm seus personagens preferidos tambm, como o kat bufo awaz, ou Kwalamiri, outro tipo trapalho. Muitas vezes, essas narraes noturnas pram pela metade: todos os ouvintes dormiram, ou narrador tem sono. Esse relaxamento contrasta no s com o que se passava comigo, como tambm com a definio, que acabo de propor, das histrias como fontes de conhecimento cujo domnio implica poder. Mas porque quase todos j escutaram histrias contadas dessa forma, sem no entanto se interessar em memoriz-las e aprender a reproduz-las em todos os detalhes, que muitos podem conhecer histrias enquanto poucos so donos de histrias termo que, como vimos, no distingue uma funo social, mas uma condio de potncia. Assim como se passa em relao aos
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cantos rituais, rezas kewere, e, quase sempre, o xamanismo, preciso demonstrar interesse, aplicar-se, eventualmente pedir. A diferena que, se os cantos rituais e keweres devem ser pagos mesmo se ensinados pelo pai as histrias at onde sei nunca o so. Para aprender uma histria preciso mais do que tudo desejar ret-la. Meus conhecimentos sobre o processo de aprendizado so escassos, mas sei que existem tcnicas de memorizao, como a ingesto do ps de osso de cabea de peixe, que sua fonte de inteligncia, kaakwawapu. Para aprender cantos, diz-se deve-se comer corao de peixe, pois os cantos ficam guardados neste rgo. A liberdade com que circulam distingue assim as histrias dos demais conhecimentos especializados. Estes sempre operam uma distino entre professor e aprendiz, na medida em que devem ser pagos, de modo que um conhecedor de cantos (tjunkat) ou um conhecedor de rezas (kewere itat) se afirmam como figuras destacadas, como funes precisas (isso se passa menos no caso do dono de rezas, j que seu conhecimento muito mais difundido). Essa alta especializao do conhecedor de cantos talvez responda pelo carter intertnico de sua funo - os t itat, donos dos cantos/msicas, so figuras de alta circulao regional, na medida em que so convidados a participar de rituais intercomunitrios em aldeias vizinhas. Ali atuam a um tempo como representantes de seu grupo lingustico ou local (o cantor dos Kalapalo, o cantor dos Kamayur etc.), e como participantes de uma comunidade supralocal de especialistas rituais. Ainda que os Aweti fossem bastante atentos s variaes locais desses cantos, pareciam entreter a idia de que uma linguagem comum os unifica e permite tradues174. Cantos rituais, deste modo,
Assim, as mulheres aweti escutavam frequemente uma fita gravada do ritual Jamurikum que havia sido realizado h alguns anos na aldeia Mehinaku. Uma aweti, filha de me yawalapit e portanto com um certo grau de compreenso das lnguas aruak, esforava-se para traduzir algumas palavras para sua companheiras, e assim surgiam naquele momento cantos aweti de Jamurikum. O trfico entre aldeias de gravaes de festas e cantos rituais em audio e video bastante intenso. Da mesmo modo que as mulheres aweti copiavam a transformavam as canes mehinaku, inclusive notando que estas cantavam sem compreender as palavras de uma cano de origem aweti, um rapaz aweti adquiriu mediante pagamento uma fita com msicas da flauta takwara gravada por alguns kuikuro. Com
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so fatores de distino entre os grupos cada um supostamente tem os seus - ao mesmo tempo em que constituem o idioma universal que permite sua relao enquanto participantes de uma mesma unidade. Voltarei a este ponto. As histrias, por sua vez, fluem como a comida, de acordo com a convivncia cotidiana, e condicionam a formao de corpos de identificao com contornos muito pouco definidos. Se os conhecimentos comprados negam o parentesco para afirmar a identidade grupal (ou pelo menos reduzem a efetividade das relaes de parentesco, j que ao menos em teoria basta pagar para obt-los), as histrias dos antigos so uma face do prprio parentesco. Elas remetem aos nomes na medida em que so quase sempre remetidas aos avs, mesmo quando so os pais ou mes que as contam pois contam a seus filhos as histrias que aprenderam de seus pais. Muitos homens me falavam tambm de histrias aprendidas com os sogros, uma transmisso possibilitada pela residncia matrilocal nos primeiros anos do casamento (o contrrio, mulheres que dizem ter aprendido histrias com os sogros, tambm se d, mas mulheres que se digam donas de histrias so raras). Isso mostra que a transmisso de histrias no tem nada a ver com descendncia, mas com o compartilhamento imposto pela convivncia, e que o conjunto das pessoas que aprenderam uma histria de um certo modo bastante circunstancial. Em determinados contextos, contudo, essas pessoas podem efetivamente apresentar-se como um conjunto quando a histrias que elas compartilham posta em confronto com histrias alheias. claro que as pessoas esto bastante cientes de que as histrias que elas conhecem so contadas de outras maneiras por alguns de seus vizinhos. Muitas vezes essas variaes so remetidas, como os cantos rituais, a diferenas de origem lingustica: fulano conta a histria de tal
essa fita ele e seus companheiros ensaiavam msicas de takwara, que distinguem entre msicas de gente (takwara ytoto, takwara de verdade, tocadas por humanos originalmente), mas tambm msicas de takwara de diversos animais, como sapo, lagarto, caititu etc, pois estes tambm tocam takwara em suas respectivas aldeias. Donde se v que o fluxo de conhecimentos entre humanos est em continuidade com aquele entre humanos e no humanos.
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modo porque a aprendeu de seu av, que era kamayur, ou de sua me mehinaku. Essa diferena no ser tomada como uma prova de que a histria aprendida em casa menos verdadeira, ou que deve ser revista de modo que no isso, a adequao do conhecimento ao real, o que parece estar em jogo. Eventualmente, um esprito cumulativo pode guiar a audio de histrias alheias, como se representassem um conhecimento a mais: ento assim que eles contam essa histria. Era sempre esse desejo de aprender, e no o desejo de desfazer de verses alheias, o que os Aweti demonstravam ao pedir para escutar minhas gravaes de mitos, em sesses que no obstante terminavam sempre em duras crticas ao narrador. difcil precisar at que ponto estas diferenas entre as verses tornavam-se incmodas pelo fato de que estaria em disputa, mais do que a verso correta, a posio de maior conhecedor frente a pessoas como eu e demais pesquisadores que passaram por l. De todo modo, era patente o quanto elas podiam ser mobilizadas para sublinhar no distines complementares, como ocorre com as msicas de cada povo reunidas num s ritual, mas oposies e incompatibilidades. As histrias so em geral aprendidas em casa, mas elas circulam fora dali independentemente dos gravadores que antroplogos sem rumo carregam consigo, ou dos livros de mitos produzidos pelas ONGs. Assim como um caso de picada de cobra suscita a narrao noturna, aos netos, de uma histria sobre cobras, essa mesma histria poder ser contada a um vizinho que aparece de visita durante a tarde, ou aos xams que se reunem no centro da aldeia ao cair da noite. Os contadores de histrias contam-nas a outros homens e mulheres, em suma, quase sempre motivados por um ou outro acontecimento do dia. Talvez seja a que as histrias adquiram o seu potencial maior de orientao ao tornarem-se comentrios sobre a vida que podem servir como explicaes sobre a atual ordem das coisas (no mentira, histria). O prprio fato de que mitos eram rememorados para serem contados a mim era tambm um motivo
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para que fossem recontados entre si, no centro. Em momentos como esses, os narradores apresentam suas histrias como se fossem as histrias que dizem respeito a certo fato, uma posio comparvel quela de apresentar-se como porta voz da mitologia ao visitante estrangeiro. O prprio ato de contar presume uma hierarquia que expem os narradores rebeldia de sua audincia, sobretudo quando se trata de uma audincia qualificada, como a dos ancios no centro da aldeia. Nessa atividade aparentemente banal e executada com grande animao os narradores se prestam, assim, a serem escutados com a mesma ironia com que o eram as verses gravadas que eu carregava. Em pblico, essa ironia momentaneamente reprimida, para tornar-se um comentrio em casa: fulano estava contando tal histria, eu nunca vi essa histria ser contada assim! ele no sabe essa histria, meu pai sabia cont-la bem!. Histrias fazem parentes como a comida o faz o que significa dizer que elas no circulam efetivamente de graa, mas fazem parte de uma rede de coisas deliberadamente, e no automaticamente, compartilhadas. No se trata de dizer que um homem espere algo em troca das histrias, mas o ato de contar co-extensivo a outros atos de doao de coisas e conhecimentos que marcam relaes entre parentes. E se o conhecimento flui sempre do mais velho ao mais novo, isso no quer dizer que este no esteja dando nada em troca no mnimo, o reconhecimento do parentesco (nem todo av chamado de av, preciso merecer, cf. cap 5). Isso explica porque na relao com o branco as histrias se converteram em objeto de troca. Os brancos eram demasiado distantes para receberem histrias como se fossem parentes, e tinham de receb-las na condio de outros, parceiros de troca. Em contrapartida, os vizinhos que escutam uma histria no centro da aldeia so imaginados pelo narrador como parentes seus, apesar de o estranhamento que demonstram na recepo denunciar o quo outros so; alteridade apreendida como defeito - ele no sabe contar. O fato de que brancos se interessam por histrias que nem
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sequer entendem torna sua incorporao numa rede de parentesco ainda mais invivel; se nem mesmo o cdigo lingustico compartilhado, que dir o conhecimento que ele transmite. Disse que um dos narradores recusava-se a gravar histrias comigo antes que eu tivesse competncia lingstica para compreend-las; na prtica, ele me obrigava a permanecer e participar da convivialidade cotidiana o suficiente para que as histrias que me contasse no fossem o elemento nico de ligao entre ns, mas apenas mais um deles. O que no me eximia de pagar por algumas delas j que com o tempo delineavam-se sem meu controle distines entre histrias que eu estava ouvindo a trabalho, outras que ouvia por acaso, quando eram contadas a outros, e algumas a que era praticamente obrigada a escutar (enquanto tinha ao contrrio feito planos de lavar roupa com uma amiga ou ir roa). Certa temporada, ao chegar da cidade, trouxe um presente bastante singelo a um desses narradores algo que nunca havia sido combinado como pagamento. O contentamento que manifestou diante de meu ato espontneo contrastava com o desprezo que havia demonstrado quando lhe dei uma bicicleta, segundo fora combinado, em troca das histrias contadas ao longo de certo perodo. Eu ensinei tudo a fulano e ele nunca me deu nada. Todas aquelas histrias agora esto na mo de um sovina, comentou ao receber o pequeno presente. No importa quanto eu lhe pagasse pelas histrias, nunca seria suficiente; o que valia era o fato de ter manifestado uma ateno que ultrapassava o pagamento, e situava nossa relao no mbito do reconhecimento e do cuidado - como se o estivesse chamando de av, pai ou tio quero crer. claro que seria preciso repetir infinitamente pequenos gestos similares para reafirmar, a cada vez, esse reconhecimento. De todo modo, o episdio me ajudava a perceber que escutar histrias tinha uma implicao muito maior do que eu poderia ter previsto de sada implicava situar-me em uma ou outra rede de parentesco com gestos de generosidade e manifestaes de simpatia pelo ponto de vista daquele que me orientava.
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Mais precisamente, o simples ato de parar e escutar a algum j como a preparao do cenrio para um tipo de relao, a criao de uma expectativa que pode ou no ser frustrada idia que j encontramos em Basso (1985, pg285), quando a autora insiste sobre a importncia da participao do ouvinte no ato da narrao como assero de um ponto de vista compartilhado com o narrador, criando assim um monlogo coletivo175. preciso apenas lembrar que esse coletivo no se constitui sem projetar para fora aqueles que no sabem. Aquilo que se sabe parece to constitutivo daquilo que se (too, izetu) quanto o que se come, como se come, onde se dorme. Mais do que um debate em torno de contedos cosmolgicos sobre a verdadeira origem das coisas as disputas acerca das histrias verdadeiras so efeito de um reconhecimento do poder constitutivo do saber sobre o ser, da determinao do sujeito que v o mundo pelo mundo visto. O conhecimento, em suma, seria parte daquele feixe de afeces que constitui uma perspectiva, e logo um sujeito, na definio de Viveiros de Castro (2002e; ver tambm a comparao de Strathern com o perspectivismo melansio, 1999, 246-253).
6.3Azojkatikajutene:acusarsemtercerteza
Compare-se o ato (supostamente) voluntrio de contar e ouvir histrias s ocasies em que se obrigado a ouvir fofocas maldosas sobre parentes prximos, eventos que suscitam no
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Ver tambm T. Turner sobre o termo Kayap para amor, oamak (onde amak significa ouvido):
A literal translations of oamak might be to listen for but the expression is metaphorical an plays on activizing the normally passive connotations of hearing/understanding through the ear, impluing the subjects active desire for the social relationship os solidarity and close understanding with the other person (Turner 1995, pg.153).
A relao feita pelo autor entre a orelha furada pelos parentes e a disposio de ouvir como um signo do parentesco pertinente tambm para o Alto Xingu, onde os mesmos avs que contam as histrias so geralmente quem fura a orelha dos meninos.
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ouvinte o sentimento de no suportar escutar (ver abaixo). Reconhecendo - no que sigo os Aweti, quero crer - o carter constitutivo das trocas lingsticas sobre as pessoas, seria talvez possvel tratar essas dintintas formas de discurso como formas de influncia distintas, assim como parentesco e feitiaria. A narrao de histrias tm por efeito a construo de identidade e como contra-efeito a projeo da diferena para fora; uma fofoca (ou acusao) lanada seria uma influncia forada, invasiva como o feitio, cujo sentido principal a evidenciao da diferena entre dois interlocutores que poderiam se imaginar, inicialmente, parte de um mesmo corpo coletivo. A projeo da identidade entre acusadores contra os acusados e vice-versa seria o contra-efeito da diferenciao primeira176. Boa parte da literatura antropolgica sobre feitiaria trata antes de acusaes de feitiaria que do feitio enquanto tcnica ou ato de enfeitiamento, confuso analtica que podemos creditar a duas razes. A primeira diz respeito a uma dificuldade imposta pelo prprio material etnogrfico em contextos onde a feitiaria nunca pode ser observada, onde no existem feiticeiros confessos e tudo o que o etngrafo tem sua disposio so discursos sobre o feitio, em grande parte acusaes como o caso xinguanos. A segunda razo diz respeito aos preconceitos do etngrafo ao descrever mundos alheios: partindo do pressuposto de que a feitiaria no existe e de que s pode ser entendida enquanto falsa explicao a uma realidade social subjacente, o antroplogo levado a tomar apenas os discursos e seus efeitos sociais como objeto. O texto
Pode-se dizer que as anlises sobre a fofoca em contexto urbanos na frica de meados do sculo XX realizadas pelos pesquisadores ligados Escola de Manchester se detiveram sobre este ltimo aspecto. Gluckman (1963), num texto que referncia sobre o tema, enfatiza assim o modo pelo qual as fronteiras de um grupo social so redefinidas a partir da excluso de um indivduo tornado objeto da fofoca. A afirmao da unidade interna do grupo seria efeito da afirmao dos valores morais do grupo atravs da condenao pblica de indivduos desviantes mesma perspectiva mais tarde adotada por autores como T. Gregor (1977), G. Dole (1964) e G. Zarur (1975) para analisar a feitiaria, e as acusaes de feitiaria, no Alto Xingu (ver Steward & Strathern 2004 para um resumo e comentrio dessa teoria).
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introdutrio de Middleton coletnea de artigos que edita sobre feitiaria na frica exemplar desse tipo de foco. Lembro as palavras do autor no trecho j citado acima (ver Introduo): It should be noted at the outset that the accusations of wizardry against specific individuals are always made by people against others with whom they are mutually involved in a network of social relationships () (grifos meus). Na viso desses autores, so as acusaes que incidem sobre pessoas prximas, e no a feitiaria ela mesma. Feitiaria e acusaes de feitiaria por vezes tambm parecem confundir-se no presente trabalho. Por um lado, porque de fato no tenho outra matria para descrever seno o que se diz sobre a feitiaria, basicamente na forma de acusaes. Isso explica o fato de s vezes eu me referir a supostos feiticeiros ao invs de dizer simplesmente feiticeiros. Como disse, em quase todas as situaes de troca se acusaes entre os Aweti eu estava demasiadamente prxima de acusadores e acusados, simultaneamente, para que adotar um ou outro ponto de vista fosse uma opo simples. Um efeito dessa convivncia pouco discriminada era que eu obviamente tendia a optar pela inocncia generalizada o que significa dizer, no limite, que para mim ningum era feiticeiro. Truques de linguagem como alguns adotados aqui a opo por referir-me a um suposto feiticeiro antes que a um feiticeiro, por exemplo - cujo efeito manter a dvida quanto ocorrncia do feitio, no so, no entanto, estranhos s manobras usadas pelos prprios Aweti em seus discursos. A questo para eles menos manter a dvida sobre quem o feiticeiro, e menos ainda lanar dvidas quanto realidade iminente da feitiaria, que manter a dubiedade da prpria acusao, de modo que seja possvel depois voltar atrs e negar o que havia sido especulado. recorrente, assim, que se enfatize o carter tentativo dos diagnsticos, mesmo aqueles proferidos pelos xams: azoj katikaju tene, estamos s buscando uma resposta, estamos s
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especulando, me explicava um homem enquanto discutia com sua esposa as possveis causas do adoecimento dela. Mas se falo de acusaes tambm porque os discursos nativos sobre feitiaria apontamnas como uma potncia em si mesmas (Stewart & Strathern 2004 compilam uma srie de menes etnogrficas ao mesmo fenmeno na frica e Oceania). Se verdade que para os Aweti as acusaes no so mais reais que o feitio como talvez o sejam para um antroplogo social elas tampouco so menos reais ou menos efetivas que a feitiaria, constituindo-se para eles como um objeto de reflexo por sua eficcia prpria e independente. Mais do que isso, sugiro, uma acusao pode ser vista como verso atenuada de feitio. Isso consistente com o fato de que eventualmente um homem acusado de ser feiticeiro tambm acusado de suspeitar demasiadamente de feitiaria alheia. Em ambos os casos, a pessoa d provas de um comportamento anti-social, gerando disjuno onde o ideal seria o compartilhamento de pontos de vista. preciso considerar a a agressividade envolvida nas acusaes, freqentemente feitas sob a forma de ameaas, ainda que o sejam somente dentro do ambiente familiar dos acusadores e que cheguem ao ouvido do acusado atravs de um mediador qualquer. Ainda que as acusaes sejam por vezes consideradas uma medida pacificadora com a qual se espera induzir o feiticeiro a desistir do malefcio, acusaes costumam ser vistas como to daninhas quanto o feitio. Lembremos que o contra-feitio, ou feitio de vingana, uma acusao perpetrada pela prpria vtima falecida, levando idealmente morte do feiticeiro, e que no passado execues de feiticeiros por um grupo de pessoas pagas pelos familiares da vtima no eram incomuns. Considera-se normal, assim, que as pessoas acusem seus vizinhos em situaes trgicas, como a morte de um parente, ou um adoecimento grave, mas preciso que as acusaes no estendam-se indefinitamente. Quem foi acusado tambm deve, dentro de certo
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tempo, relevar, contanto que os acusadores tenham mantido-se dentro de certos limites. Contudo, freqentemente os acusadores no apenas no se esquecem de um feitio como se vingam de quem pensam t-los atacado. Ou essa ser a interpretao dos acusados quando algum adoecer em sua famlia: eles esto se vingando, injustamente, por um assassinato que no cometemos. Os acusados, de fato, muitas vezes resolvem manifestar-se ameaando de volta os acusadores. A lgica que rege essas contra-ameaas parece ser j que esto dizendo que ns somos feiticeiros, vamos mat-los de uma vez!. Ou ento os acusados rememoram os
acusadores: se ns fssemos feiticeiros mesmo, vocs j estariam mortos h muito tempo!. O que vemos ocorrer, assim, so trocas de acusaes, os acusados passando a acusar seus antigos acusadores, como se fossem enfeitiados que se vingam enfeitiando os malfeitores, ou inimigos de guerra. Mas essa troca envolve um jogo intrincado de suposies sobre suposies alheias pois, como aleguei a respeito do excesso de cime, o problema sempre o que o outro imagina sobre o que imaginamos a seu respeito. Acontecimentos podem ser objeto de uma multiplicidade de interpretaes no apenas por pessoas distintas, mas freqentemente pelas mesmas pessoas, que discutem constantemente entre si, especulando, a medida em recebem informaes distintas, sobre as motivaes alheias para um ato qualquer. notvel que isso se passe mesmo quando se trata de interpretar a ao de pessoas muito prximas. No o ato de especular em si, mas o reconhecimento de que qualquer coisa que se diga sobre as motivaes do outro no passa de especulao, me parece fundar-se numa percepo da alteridade dessas pessoas. A propsito da mudana de um homem da aldeia, por exemplo, sua me me contou que havia sido motivada por uma discusso entre ele e um vizinha que havia criticado uma atitude sua. Em outra ocasio, vi essa mesma mulher discutir com seu irmo que seu filho se mudara por medo de feitio de um homem da aldeia. O tio, por
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sua vez, havia comentado outro dia que seu sobrinho se mudara por medo de feitio de um homem da aldeia onde agora fora viver teria sido uma estratgia para fazer crer ao feiticeiro que viviam bem e no havia motivo para praticar nenhum malefcio. Na casa do homem que, segundo me contara a me do rapaz, o havia criticado e com isso provocado a mudana, contaram-me que se mudara por no conseguir esquecer um parente que morrera na aldeia h cerca de um ano. Afora esta ltima verso, todas as demais vinham de familiares bastante prximos do sujeito cuja atitude procurava-se explicar. muito provvel que ele mesmo tenha dado mltiplas razes para sua mudana, mas havia tambm um carter especulativo nas histrias que os parentes se recontavam, evidenciando uma dvida que compartilhavam, ao mesmo tempo em que cada nova verso era contada com tal segurana que poderamos tom-la por definitiva. Ao presenciar uma conversa inflamada sobre um tema polmico, meu conhecimento da lngua Aweti era insuficiente para que pudesse compreender mais do que uma ou outra frase solta, de modo que sempre me via perguntando em seguida o que fulano ou beltrano queriam dizer com isso ou aquilo. Mais grave do que minha incompetncia lingstica, talvez, era o fato de que muitas vezes falava-se de gente que eu no conhecia, ou falava-se de gente que conhecia atravs de aluses que me eram incompreensveis, como aquele que est em tal lugar. Custei um pouco a perceber o constrangimento a que submetia meus amigos pedindo que me dissessem os nomes de quem estava sendo citado em casos de acusaes de feitiaria. O fato de que pessoas eram mencionadas apenas por meio de aluses era significativo. Mobilizando um fundo de conhecimento compartilhado, no havia necessidade de dizer mais. E quanto menos se diz, mas fcil depois voltar ao estado do nunca dito, porque as interpretaes sobre um fato sempre podem mudar, a depender, tambm, do curso dos acontecimentos e relaes.
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6.4Conversademulher
Mulheres no so feiticeiras, mas podem ser mandantes de feitio, o que significa que no o desejo de fazer mal - seja por vingana, inveja, cime ou pura maldade - o que lhes falta. Nunca pude saber dos Aweti porque mulheres no so elas mesmas as executantes do malefcio, mas suspeito que isso esteja relacionado s habilidades morais e fsicas requeridas ao feiticeiro, fora e coragem (ver Gregor 1985, pg. 44-46, sobre mesma afirmao pelos Mehinaku). J mencionei no captulo anterior que mulheres no tm fora, por exemplo, para conter uma flatulncia: an ipyjkwat antaka, no tm o nus forte. Coragem tambm no tm, por sua vez, para falar como homens, enfrentando-se: se eu no fosse mulher diria a ele para no fazer essas coisas conosco, dizia-me minha me sobre o problema dos Aweti com o sistema de sade regional. Essas duas faltas por sua vez apontam para algo que em parte define a condio feminina: as mulheres fazem fofoca (tui popyi, lit. queixo disposto, isto , coisa de quem tem exagerada disposio para falar)177. Tal disposio por um lado deriva da incapacidade das mulheres de conter sua fala e por outro se explica pelo medo que tm de falar abertamente. Dizer que a fofoca um ato feminino no significa, contudo, que os homens no sejam fofoqueiros. Mas deles algum poder falar, como comentou certa vez uma amiga sobre um rapaz que havia espalhado notcias sobre dois amantes: no sei porque ele faz fofoca, ele no mulher!. Falar demais um defeito, mas o problema maior talvez seja para quem se fala. Fofoca
Compare-se com o tema da avidez oral e reteno anal nos mitos analisados por Lvi-Strauss em A Oleira Ciumenta. O autor justamente estabelece uma analogia entre o ciumento e o incontido: um querendo tudo para si (vido oralmente), outro cheio a ponto de explodir (incontido analmente) (1985, pg 93-6). A sogra jaguar e as mulheres em geral incontidas anal e oralmente, seriam talvez tambm a imagem do execesso de avidez, o que parece congruente com o fato de que elas so fofoqueiras no s porque falam demais, maa tambm porque escutam demais (avidez auditiva).
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um efeito da incontinncia no apenas no sentido de que seria melhor no dizer nada, mas tambm porque uma fofoca nada mais do que uma conversa domstica que vazou. Ela s ser qualificada como fofoca por aqueles que no compartilham o ponto de vista que veicula, enquanto outros diro apenas tratar-se de uma histria, tomowkap. O que caracteriza uma fofoca sua dubiedade, o fato de ser um discurso inverificvel ou falso, moem - termo que designa igualmente uma mentira deliberada e um engano. Diz-se que algo tui popyi para dizer no d ateno a isso; histria, em oposio, algo verdadeiro que se pode e deve tomar como base para uma ao. A forma pela qual as histrias da vida cotidiana e fofocas so contadas ou o tema de que tratam no as diferencia. O que as distingue no sua estrutura interna, mas o ponto de vista do ouvinte: fofoca a histria dos outros mais do que da vida dos outros, do ponto de vista dos outros - algo impossvel de definir desde um ponto de vista neutro. Dizer que mulheres so fofoqueiras mais do que dizer que mulheres falam demais, ainda que a expresso ele (a) fala demais, otiing ytoto, seja uma maneira alternativa de dizer que algum fofoqueiro, o que por sua vez equivale a uma acusao de que seja mentiroso. Um fofoqueiro antes algum cuja fala circula demais, e que isso seja associado s mulheres parece estar relacionado no s incontinncia que as caracteriza como sua forma particular de sociabilidade cotidiana, ou forma como essa sociabilidade geralmente percebida ali. Ainda que homens se visitem tanto quanto mulheres, os Aweti sempre lembram do que se passa entre as mulheres quando vo ao banho e encontram-se com vizinhas com quem mantm relaes de maior ou menor proximidade, e com as quais sempre preciso trocar algumas palavras por educao, contar algo, comentar algum acontecimento. No prprio caminho at o banho, mulheres no s falam como escutam demais, ao passar ao lado das casas alheias e ouvir conversas dos moradores fazer fofoca tambm ouvir demais. Se o feitio lanado ou o
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amarrado escondido sob o fogo de cozinha apontavam a impossibilidade de conter o que entra numa casa e no corpo de seus moradores (ver cap. 2), a fofoca diz respeito impossibilidade de controlar o que sai dali. Mesmo quando a histria no deliberadamente contada fora, ela escapa pela cobertura de palhas das casas, atravs da qual toda conversa, choro de criana ou briga de casal podem ser entreouvidos178. Todos os fins de tarde, os homens maduros que j passaram pela iniciao xamnica, sendo portanto fumantes de tabaco, renem-se no centro da aldeia volta de uma pequena fogueira. Com o cair da noite, cada um retorna sua casa, onde em geral ir contar esposa o que andaram dizendo os demais, e eventualmente debater sobre o assunto. Adolescentes e crianas, porque visitam mais que adultos casas de vizinhos, tambm so fontes de histrias alheias incorporadas aos temas de discusso no ambiente familiar. O mesmo se passa com as histrias trazidas por parentes que vivem em outras aldeias e aparecem para uma visita, histrias trazidas da cidade por algum que acaba de chegar, ou histrias ouvidas atravs do rdio comunicador. Esses temas tornam-se tanto assunto em conversa domstica quanto nos encontros fortuitos de mulheres que vo em pequenos grupos tomar banho ou quando se visitam. As histrias que circulam entre esposos, pais e filhos, entre afins coresidentes, chegam assim a uma irm que veio da casa ao lado trazer algo, depois a uma vizinha com quem esta cruzou por acaso na beira do rio, que conta ao tio que chegou de outra aldeia. Em seu caminho de difuso as histrias circulam como se cada par ou grupo de interlocutores compartilhasse a opinio sobre o que est sendo dito, pois uma discordncia aberta seria o mesmo que uma briga algo altamente evitado. Mas passando de parente a parente as
Gregor (1977) enfatiza diversas vezes em sua etnografia que o controle da informao visual e sonora que sai das casas um tema importante da vida social Mehinaku. Mas a anlise do autor tende a reificar um individualismo nativo sem colocar em questo o que seria este indivduo, do ponto de vista mehinaku.
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histrias sempre atingem pessoas que no mais compartilham pontos de vista, por quem sero vistas como fofocas, inverdades, verses duvidosas das coisas ou fala maldosa. Esses outros podem ser coresidentes, coaldeas ou gente mais distante. Quando o ouvinte no compartilha o ponto de vista de falante, o prprio ato de escutar lhe ser insuportvel: an antentup tutyka, no quero escutar, no agento mais escutar, comenta algum posteriormente sobre, por exemplo, uma vizinha que lhe contava histrias maldosas sobre um parente querido. Usando a mesma expresso, pessoas tambm reclamam sempre de como esto cansadas de escutar acusaes de feitiaria. Como disse, a fofoca pode ser vista como uma espcie de feitio ambos colocam em jogo um problema de super-dimensionamento da rede de pessoas com as quais algum pode se identificar, que por fim se revela sempre mais curta do que o esperado em princpio. E como uma flecha invisvel, uma histria provinda de terceiros a respeito de uma pessoa amada pode tanto ser usada como agresso por aquele que conta, quanto sentido como invaso por aquele que escuta (o gesto de tapar os ouvidos, ao referir-se a uma situao incmoda como essa, recorrente).
6.5Fofocassobrefofocas
Um dos temas preferidos de conversas entre coresidentes e com gente de outras casas so as prprias falas alheias. Fala-se muito sobre o que as pessoas andaram falando, denuncia-se este ou aquele como fofoqueiro. Em minha segunda viagem aldeia, por exemplo, as mulheres da casa onde eu vivera durante a primeira estadia e para a qual retornava questionaram-me um dia sobre algo que teria dito a respeito delas a um pessoal de outra casa: uma senhora que sempre vinha visit-las contara que eu teria reclamado para sua filha que minhas anfitris andavam
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roubando minha comida. Como eu obviamente neguei ter dito isso, ela comentaram que tanto a senhora que lhes contara a histria quanto sua filha eram grandes mentirosas. Em outra ocasio foi a sogra da minha anfitri quem veio lhe questionar, pois uma pessoa teria dito que a nora andara falando mal dela e de seu filho (cunhado da suposta fofoqueira). Depois de negar sogra que aquilo tivesse ocorrido, vi minha amiga averiguando o caso, num encontro fortuito na beira do rio com a suposta informante da velha. A outra, obviamente, negou que havia dito qualquer coisa sobre fofocas da nora sogra. A dinmica das acusaes de feitiaria idntica. Muito raramente uma acusao feita abertamente, e muito comumente pessoas negam que tenham feito acusaes umas contras as outras. Se acusaes chegam aos ouvidos dos acusados, porque foram passadas adiante entre pessoas que aparentemente concordam entre si, at alcanarem distncias impressionantes. Freqentemente as acusaes entre pessoas de uma mesma aldeia passam por pessoas de fora. A seguinte histria deve fornecer um exemplo. Um homem que vivia entre os kamayur veio um dia visitar seu pai que estava doente na aldeia Aweti. No caminho de volta, ao passar pela aldeia Saido, ele teria comentado que seu pai fora enfeitiado por um vizinho aweti. Um velho de Tazujyt cujas filhas residem no Saido chegou daquela aldeia trazendo a notcia, o acusado sendo seu primo de primeiro grau com o qual foi criado como irmo. Ao tomar conhecimento da acusao, o acusado decidiu defender-se formalmente, discursando cedo pela manh no centro da aldeia contra o acusador. Sua auto-defesa inclua uma contra-acusao: dizia que o acusador havia matado por cime, a chutes, sua irm, como quem aquele fora casado e que falecera h muito. Do ponto de vista do acusado de feitiaria, o outro, sendo culpado pela morte de sua irm, pensara que estava sendo agora vtima da vingana do ex-cunhado, e por isso o acusava. Mais sutilmente, o mesmo tipo de agressividade requerida para matar uma mulher a chutes era tida
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como similar quela mobilizada numa acusao de feitiaria contra um vizinho, algo que poderia redundar em sua morte por execuo. O homem que o teria acusado saiu ao centro para defenderse, negando que jamais havia dito nada do gnero de uma acusao179. Especulando mais tarde sobre o que haveria ocorrido, o velho recm acusado de acusador concluiu que s poderia ter sido um homem aweti a quem tambm chama de filho, filho de um irmo seu h muito falecido, que estava em sua casa quando da visita do filho verdadeiro, quem espalhara a notcia. Foi kat quem me atingiu, kat iapi (lembro a ambivalncia dessa sentena, cf. cap. 1) - afirmava, era isso que eu estava dizendo ao meu filho. Tomando esta hiptese como nica explicao para o caso da falsa acusao, deixou de falar com seu BS. Suas noras, donas da casa onde vive, tomaram suas dores e deixaram de mandar comida casa do homem que tomavam por fofoqueiro, com quem at ento mantinham uma intensa relao de compartilhamento de comida. O velho que, segundo a outra verso dos fatos, teria trazido a notcia da outra aldeia, tambm era criticado na casa do acusado de acusador de feitiaria. Diziam dele com escrnio que no tinha aldeia, e que transitava sem rumo entre sua prpria casa e a de suas filhas. Assim, se as crticas mais duras recaram sobre um parente bastante prximo o mais prximo desta famlia naquele momento uma mgoa difusa no deixava de ser dirigida a outros, considerados fofoqueiros em geral. Quanto ao contedo das acusaes, no fato de que dois antigos oponentes desconfiavam um do outro no apenas de feitiaria, mas tambm de acusaes mtuas, no havia nenhuma surpresa. Era mais relevante, por exemplo, que um sobrinho prximo como um filho (genealogicamente e pela relao corrente) tivesse trado seu tio falando algo que se disse em
De um modo recorrentemente empregado em casos de acusao de feitiaria, em sua defesa alegava inocncia com uma espcie de ameaa: Se eu matei sua irm, por que ento no matei voc h muito tempo atrs? E por que voc no me mata de uma vez, se eu matei sua irm?.
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casa deste, ou inventando algo que no se disse, fora. E tambm que os dois ex-cunhados trouxessem tona sua desavena acusando-se abertamente e aos gritos no centro da aldeia. Essa dificuldade de saber de onde vieram as acusaes, e se chegaram mesmo a ocorrer, no fruto de um defeito de comunicao. Se as acusaes no so feitas sempre a plenos pulmes em parte porque as pessoas no esto completamente seguras do que afirmam, seja sobre fulano ser o feiticeiro que est matando um parente, seja sobre fulano ser um fofoqueiro que falou mal de um parente. As fofocas, antes de serem consideradas fofocas, so conversas com carter investigativo, lanamento de hipteses que podem ser confirmadas ou rejeitadas, a depender da recepo e das consideraes feitas pelo ouvinte. A transformao desse aglomerado de hipteses em fofoca quando algum se sente atingido, ofendido ou simplesmente discorda implica a cristalizao de um ponto de vista at ento tentativo, mvel. A partir da um grupo de pessoas identificado como grupo em torno daquele conhecimento partilhado: tais pessoas dizem que fulano o feticeiro que est matando sicrano. Ainda assim, essas conversas de parente a parente podem ser sempre revistas, negadas, corrigidas. Isso o que faz das conversas de mulher o veculo mais cmodo para as acusaes de feitiaria, como se no tivessem peso. So as mulheres que mais acusam feiticeiros, e no sem eficcia. Veja-se a conversa de duas irms que vivem em aldeias vizinhas pelo rdio comunicador, a respeito do enfeitiamento de uma parenta comum: j disse aos nossos irmos que falem com esse pessoal [os feiticeiros], porque no adianta nada a gente falar, isso s conversa de mulher. Ora, tudo que se fala pelo rdio pode ser ouvido por qualquer pessoa da regio, contando que esteja sintonizada na mesma freqncia; considerando que se escutam assim conversas em todas as lnguas presentes no Alto Xingu, o que se fala pelo rdio ao mesmo tempo pblico e limitado a uma audincia especfica. Como era de se esperar, essa conversa em aweti no deixou de ser ouvida por seus destinatrios
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ocultos, os feiticeiros acusados, homens aweti que viviam distante de ambas as acusadoras. No dia seguinte veio tambm pelo rdio a resposta indireta - para uma acusao igualmente indireta numa conversa entre um dos acusados e seu irmo. Nenhum nome havia sido pronunciado pelas irms, assim como nenhum nome foi pronunciado pelo acusado em sua resposta. Ele mandava um recado, atravs desse irmo que residia na cidade, ao irmo das suas acusadoras, que residia tambm ali. Note-se que este irmo a quem o recado se destinava era justamente aquele que nunca chegou a fazer acusao nenhuma, e de quem as mulheres diziam j falei com nosso irmo para fazer alguma coisa. Ao mandar o recado, o acusado explicava a seu irmo o que havia se passado no dia anterior a acusao velada que havia sido dirigida a ele. Contava ainda o quanto ele e seus familiares estavam j cansados de ser acusados por aqueles outros, e que ento haviam decidido preparar-se para o pior, comprando munio suficiente para todas as espingardas da aldeia: diga-lhe que no temos medo deles, e que temos tantas espingardas quanto homens na aldeia. A conversa no podia ter deixado de ser ouvida pelas mulheres que tinham protagonizado a conversa do dia anterior, cada uma de sua aldeia. Agora aqueles que elas diziam ser feiticeiros estavam chamando sua famlia de assassinos (executores de feiticeiros), e ameaando-os ao mesmo tempo com a compra de munio. Do ponto de vista dos acusadores, aquela resposta agressiva confirmava sua suspeita os outros demonstravam ter as qualidades requeridas a um feiticeiro: eles no disfaram sua braveza. Por outro lado, na iminncia da ecloso de um embate, o prprio ato de acusao foi negado. Ns nunca dissemos nada, asseguravam-se, apenas falamos que tinha gente matando nossa famlia, que havia feiticeiros nos matando h muito tempo. Ns no estvamos bravos. E por fim mostravam-se revoltados com a agressividade da resposta a uma simples suspeita: se um dia algum de vocs ficar doente, no
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comecem a suspeitar de ningum!, comentavam, como dizendo normal que as pessoas desconfiem umas das outras, vocs no deveriam ter ficado to bravos com uma acusao meramente aludida. A rapidez e aspereza da resposta tiveram por efeito baixar o tom das mulheres, no apenas em sua exploso pblica, naquelas conversas entre si via rdio, mas tambm nas conversas entre si dentro de casa: otewaupeju tene tai, eles mesmos esto se acusando, esto imaginando apenas que foram acusados, comentava-se. Num outro caso de que tive notcia a interveno feminina teria sido ainda mais direta: a irm de um homem enfeitiado, falando de uma cidade prxima, disse via rdio comunicador ao feiticeiro que, se ele no desfizesse imediatamente o amarrado que estava matando seu irmo, iria ao banco sacar todo o dinheiro do malfeitor era uma metfora, explicaram-me, para dizer que iria mat-lo de contra-feitio caso o irmo morresse180. Mulheres falam, e muito, sobre feitiaria, como se seu discurso fosse ineficaz, mas vemos que a eficcia do que dizem est ancorada no fato de que idealmente suscitam respostas moderadas, expondo hostilidades sem levar a um confronto direto. As palavras das mulheres parecem ser verses atenuadas das falas masculinas. Devido forma como so proferidas - de boca a boca, nunca como discurso oficial - so menos potentes e possveis antecedentes destas ltimas. Ao mesmo tempo, as palavras femininas possuem um potencial agentivo prprio, e podem caracterizar uma forma de agressividade feminina comparvel ao feitio masculino.
Muitas vezes os xinguanos comentam sobre algum que sacou o dinheiro de um amigo que lhe havia deixado carto do banco, ou de algum compelido pelo cnjuge a gastar todo seu dinheiro (ganho pela venda de artesanato ou algum programa social do governo) em presentes para os afins. Contas no banco, hoje em dia, so mais uma espcie de bem cujo acesso a uns e a limitao a outros tema de debates e decepes.
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6.6Morezowagetu
Em geral, os cantos de rituais de cura (festas de kat) e dos rituais funerrios so elementos da tradio cujo aprendizado objeto de empenho e s ocorre mediante pagamentos de alto valor. Os Aweti so incapazes de entender o sentido de boa parte desses cantos (como j foi reportado para outros grupos xinguanos), pelo fato de que muitos so em lnguas xinguanas estrangeiras. No mais das vezes, as pessoas apreendem um sentido geral do que cantado, ao menos no que diz respeito ao tema. H no entanto um tipo de performance cantada, morezowagetu, que pode aparecer em alguns rituais de cura ao lado de outras modalidades performticas, e se destaca pelo fato de que os cantos a so sempre comentrios sobre a vida cotidiana, de contedo perfeitamente compreensvel a todos os aldees, ainda que alusivo. No preciso ser dono dos cantos, isto , saber os cantos tradicionais associados a um dado ritual, para participar de um morezowagetu: qualquer um, homem ou mulher, pode compor seu prprio canto, basta ter coragem ykuat angta, ter flego forte. tambm possvel, mas no obrigatrio, participar de um morezowagetu evocando os cantos compostos por algum ancestral, ou cantos ainda mais antigos que os ancestrais cantaram em rituais de outras pocas, porque ento lhes convinham como comentrio de sua vida. O termo morezowagetu181, poderia ser traduzido toscamente por debate (a raiz wage significa virar ou transformar, aqui aparentemente no sentido de passar ao outro lado, mudar de posio182). Morezowagetu um estilo performtico adotado por alguns kat, e reproduzido pelos
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O mesmo ritual foi descrito por Franchetto (1986, pg. 266) acerca dos kuikuro, onde denominado kwamby ou kwamp. 182 A expresso oporezowage-zowage me foi traduzida como eles ficaram debatendo, discutindo, batendo-boca, onde a repetio do verbo (zowage) confere sentido de continuidade ao.
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humanos medida em que aqueles os fazem adoecer. A dona da mandioca, miu ty, faz/canta morezowagetu (oporezowage). Kwalowyt e munuti, que no so tipos de kat, mas roupas/mscaras (epit) que diversos, usadas por peixes diversos, tambm fazem morezowagetu. A piranha gigante (pakj watu) e a piranha vermelha (pakj angyt), por exemplo, usando a roupa de kwalowyt, podem atacar pessoas fazendo-as adoecer, caso em que ser necessrio fazer um ritual de morezowagetu. Deste modo, quem quer que decida participar do ritual, seja como compositor, seja evocando algum canto dos antigos (mote moaza t), oporezowagezoko kwalowyzan, ir cantar morezowagetu na condio de/sendo kwalowyt. Tudo se passa, pois, como se quem estivesse debatendo fossem os kat eles mesmos, ainda que o contedo das canes, sejam recm compostas sejam rememoradas, sempre uma referncia a um tema da vida ordinria atual da aldeia. Por vezes so lembrados tambm cantos de morezowagetu aprendidos de seres no humanos, aprendidos pelos humanos quando, doentes, visitam a aldeia de kat e aprendem seus cantos rituais (na condio de ang). Assim os Aweti comentavam de pessoas que haviam trazido cantos de morezowagetu dos tatus, dos peixes e das onas. Diversos desses cantos que aprendi entre os Aweti haviam sido aprendidos pelos homens hoje adultos atravs das gravaes feitas George Zarur em meados dos anos 60 com um homem que mais tarde foi executado sob acusao de feitiaria. Alguns cantos esto transcritos na monografia daquele autor (Zarur 1975, pg 47-57), qual remeto o leitor. Nestes e em todos os demais que pude escutar, repetem-se as mesmas duas temticas: relaes amorosas e acusaes de feitiaria. Nunca cheguei a escutar cantos femininos de morezowagetu, porque as mulheres Aweti diziam no ter coragem de reproduz-los para mim, ou no se lembrar. Quanto aos cantos masculinos, havia uma pequena minoria com temtica amorosa, como este que traduzo livremente:
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coma, voc vai comer coma, voc vai comer, ela disse voc sovina com seus bens [i.e. com sua vagina] misturada com seu xixi misturada com a lama da sua bunda
Note-se que nos primeiros dois versos o cantor repete uma fala da amante coma, voc vai comer, enquanto na segunda ele quem diz mulher voc sovina com sua vagina. Esse tipo de inverso perspectiva ou dilogo interno aos cantos altamente recorrente, tambm nos cantos sobre acusaes de feitiaria, que constituem a grande maioria do repertrio de morezowagetu. Nestes ltimos tambm a oposio entre os gneros praticamente onipresente. Mulheres aparecem via de regra no papel de acusadoras , mas eventualmente surgem no lugar de uma filha que foi ou ser vtima de feitiaria ou de uma amante que sentir saudade do cantor quando este for embora por causa de acusaes. Em geral, as mulheres so endereadas pelo coletivo kujj, e muitas vezes como coletivo de irms, injyza (ou injyza zokupa, que os Aweti traduziam simplesmente por minhas irms). Abaixo apresento alguns trechos de cantos sem transcrev-los literalmente, e com uma traduo tentativa feita informalmente ao lado de ouvintes nativos diversos.
eu me vou, eu me vou eu me vou, me vou daqui, mulherada vai embora daqui, voc disse para mim, eu ouvi vai embora daqui, voc disse para mim
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verso, repete em discurso direto (usando linguagem feminina183) o que as mulheres da aldeia teriam dito expulsando-o; no quarto, a mesma frase repetida em discurso indireto (linguagem masculina).
venham me ver venham para me contar, mulherada venham fazer fofoca acho que ele que acabou com a gente venham dizer sobre mim, mulherada
O cantor se dirige s mulheres que o esto acusando de feitiaria, convidando-as a irem fofocar em sua casa. No quarto e quinto versos reproduz o que elas dizem sobre si: foi ele quem acabou conosco, isto , quem matou nossos parentes com feitio.
o que eu vou dar para voc? a minha bituca de cigarro o meu uluri eu vim buscar da sua mo voc me diz
O segundo e terceiro versos reproduzem a fala de um homem e a fala de uma mulher, pessoas que teriam ido reclamar objetos pessoais roubados para fazer feitio. O cantor afirmar que no tem nenhum desses objetos consigo, por isso diz no primeiro verso o que posso te dar?.
A lngua aweti genderizada de acordo com o falante, e no os com objetos, que no possuem gmero. ntre outras coisas, os deticos demonstrativos so distintos para falante feminine e masculine. Quando um homem quer reproduzir o que disse uma mulher, deve usar a languagem feminina, e vice-versa. Ver Drude s/d.
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ai! ai! ai! ai! eu vou dizer, meu filho quando seus pais [eupizuja: seus FB] me matarem quando eu for flechado
Um homem se dirige a seu filho, ou consangneo menor, citando seu prprio discurso (ai! ai!) no momento de sua execuo iminente por parte dos homens da aldeia, coletivamente referidos como tios paralelos de seu filho/irmo menor. Ele ser executado por uma coletividade de consangneos, portanto.
sou eu mesmo, sou eu mesmo dono do feitio minhas irms sou eu mesmo, sou eu mesmo dono do lao minhas irms
Aqui o coletivo de mulheres que acusam um homem de feitiaria referido como minhas irms. Como em muitos dos cantos, um homem se defende da acusao assumindo-a, sou eu mesmo o feiticeiro. Veja-se ainda o trecho de um canto de morezowagetu aprendido entre os peixes:
foi Jarumy [Jaramy?] quem me flechou me do meu sobrinho [minha irm?] foi Tsuy quem me flechou me do meu sobrinho
Neste canto h uma dubiedade sobre a ocasio descrita: o que parece ser uma guerra entre
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povos indgenas, envolvendo os karib xinguanos Jaramy (Nahukw), e os Suy, povo G vizinho do ponto de vista dos peixes, pode ser tambm uma pescaria em que os peixes so flechados. E lembro por fim uma cano dos antigos, que um velho aweti teria reproduzido certa ocasio, ao ser acusado de feitiaria. O cantor avisa que vai sair para pescar e caar, e no para matar gente com feitio:
pacu meu inimigo, mutum meu inimigo, pacu meu inimigo mutum meu inimigo, pacu meu inimigo, mutum meu inimigo no de gente que vou fazer-me inimigo
Com um arco e flecha na mo, batendo-os no cho no ritmo da cano, um cantor circula a aldeia entrando de casa em casa, repetindo em cada uma sua performance. Um homem que se refere a uma acusao de feitiaria nos cantos de morezowagetu refere-se, sem nome-los, a acusadores especficos. Estes podem ento responder ao cantor, circulando a aldeia com um canto diverso em sentido oposto. Oataka ts eles se encontram, vo de encontro um ao outro. At onde pude saber, quem responde a um homem sempre um homem, mesmo que os cantos se refiram a acusaes de mulheres. Os cantos, pois, so formas de contra-acusao que suscitam resposta: assim como um homem acusado de feitiaria canta para se defender da acusao, um homem acusado de acusar (ou o parenet de mulheres acusadas) canta, em resposta ao primeiro. O estilo comporta um debate, assim, em diversos nveis: uma resposta do homem a seus acusadores, ou a seus opositores internos; uma resposta dos acusados de acusadores ao primeiro; e uma alternncia entre as vozes do acusador e do acusado interna a cada canto. Mas preciso lembrar que morezowagetu, como outros rituais, uma festa, uma coisa de alegrar (teaykap) e nesse sentido um meio de afirmao da coeso grupal de fato so os kat, e no as pessoas, que
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cantam. Acusaes (de acusaes) neste contexto, portanto, no deveriam ter o mesmo efeito de uma acusao fora do ritual, precisamente o contrrio. No caso de mulheres cantoras, devem usar os paus que sustentam a esteira na qual se filtra a massa de mandioca (mopyyta) como bengala e instrumento percussivo. Homens participam do ritual providos de seu instrumento de ao por excelncia, sua flecha/pnis (uwyp, o termo tem duplo significado), opondo-se s mulheres, que designam sempre como coletividade distinta. As mulheres, igualmente, participam munidas de seu instrumento de ao mundana por excelncia, paus de madeira de macia com cerca de um metro de comprimento, objetos que tambm lembram armas - sabemos pelas narrativas dos antigos que a borduna (kapem) era a principal arma de guerra aweti, o que confirmado pelas observaes de Steinen (1940) mencionadas na Introduo. Homems e mulheres assim armados sugerem que a oposio entre acusadores e acusados tematizadas em quase todos os cantos podem ser anlogas a uma oposio entre os sexos. Cantos femininos, aparentemente, tratariam sempre de questes amorosas, o que consistente com a idia de que mulheres no acusam feiticeiros publicamente. Note-se, porm, que os cantos de amor so sempre cantos de oposio entre mulheres e homens, nos quais a pessoa do sexo oposto apresentada como sovina, ridicularizada ou simplesmente aparece como um objeto de desejo distanciado (j vou meu xerimbabo/o chefe dos gaviezinhos/ abandonoume meu antigo xerimbabo- cantou certa vez um pai, na voz do filho, a respeito da esposa deste que o havia abandonado). Lembremos do kuriti (cf. cap 2) que, mais bem do que feitio amoroso, deveramos caracterizar como feitio entre os sexos. por medo de kuriti que mulheres no gostam de ser tocadas por homens que no sejam muito prximos. A oposio inter-gnero atravessa, com esta
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modalidade de malefcio, outros modos de distino entre parentes e no parentes, situando as mulheres na posio de vtima preferencial, igualando a condio maculina do agressor. O morezowagetu no deixa de operar uma restituio de seu potencial agentivo, atribuindo-lhes a palavra como arma. O que estou sugerindo que o morezowagetu apresenta a feitiaria como parte de uma guerra dos gneros - cito a expresso de Gregor (1986, pg. 119) acerca do ciclo de festas do pequi. Acredito que uma investigao sobre os termos dessa guerra pode nos ajudar a pensar as associaes que sustento aqui entre feitiaria e parentesco, por um lado, e entre feitiaria masculina e fofoca feminina, por outro. Encontramos o ponto culminante e origem da distino entre os gneros nos rituais de flautas karytu, instrumentos cuja viso proibida s mulheres. Sem pretender esgot-lo o tema, apresento aqui apena uma reflexo tentativa sobre o tema, tomando como base a etnografia de Gregor (1986) sobre a vida sexual dos Mehinaku. A mulher que vir uma flauta karytu em uso ou guardada na casa dos homens ser vitima de um estupro coletivo. Por isso quando as flautas saem tocando todas as mulheres encerram-se em casa sem poder sair sequer para fazer suas necessidades. Por isso tambm antes de haver o rdio comunicador as mulheres deveriam ter cuidado ao viajar para ouras aldeias: sempre corriase o risco de cruzar um grupo de karytu na pescaria, ou de encontrar as flautas danando na aldeia visitada. Mulheres se vingam (otepyk) da proibio de ver karytu como o ritual de jamurikum (um ritual de cura, como karytu, cujo dono/patrocinador aquele que adoeceu pelo contato com kat). Neste apenas elas participam, cantando e danando com o corpo pintado com sua pinturas e adornos femininos, sobre os quais usam tambm cintos e cocares tomados dos esposos. As jamurikum, isto , as mulheres na condio deste kat, podem voltar-se contra os homens que estejam por perto, e destruir seus objetos, roupas, espanc-los, lambuzar seu corpo com tipatyk
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(uma seiva colante). Mas o tabu envolvendo as flautas karytu incomparavelmente mais ameaador, e mais efetivo. Gregor (1986) conta como a primeira coisa que lhe foi explicada por seus anfitries acerca de seu modo de vida foi a existncia da casa do homens, um lugar proibido s mulheres dado que ali ficam guardadas as flautas kauka (karytu). O gmeo demiurgo Sol, contam os Mehinaku, instituiu a planta circular de sua aldeia, determinando que deveria ser atravessada por uma estrada que leva do rio Curisevu ao Tuatuari no eixo leste-oeste, tendo a casa dos homens ao centro, o lugar dos espritos, voltada para o leste (idem: 92). A distribuio espacial entre homens do centro e mulheres da periferia , como veremos, um efeito da existncia das flautas. Strathern (1988, 70 e subs.) nota, a respeito dos rituais de flautas sagradas nas terras altas da Nova Guin, que sua mitologia de origem conta na verdade como as flautas foram tomadas fora pelos homens s mulheres. Na mitologia xinguana resgistrada por Gregor passa-se exatamente o mesmo, assim como na mitologia do Alto Rio Negro, onde observa-se a presena dos mesmos rituais (cf. S. Hugh-Jones, 1979). Antigamente, diz o mito xinguano, os homens viviam sozinhos, pois haviam sido abandonados pelas mulheres. Eles usavam as mos para fazer sexo, no tinham arco nem flecha, nem braadeiras, cintos ou rede para dormir; pegavam peixes com os dentes e os assavam debaixo do brao. Os homens viram que as mulheres estavam tocando flautas no centro da aldeia: esto roubando nossas vidas, disseram. Eles ento invadiram a praa da aldeia com seus zunidores, produzindo um som assustador. Agarraram todas as mulheres, tiraram seus adornos e lavaram sua pele para tirar-lhes a pintura, avisando-lhes: Vocs no usam cinto yamaquimpi [cinto masculino de caramujo] e sim cinto de palha. Ns nos pintamos, vocs no. Nos fazemos discurso de p, vocs no, vocs no tocam flautas sagradas. Ns somos homens. As mulheres correram ento para dentro das casas (idem,110-113).
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A ameaa do estupro a garantia masculina de manuteno do controle sobre as flautas, que se desdobra em controle do espao pblico do centro e da vida ritual: If Kauka did not rape the woman, then all the men would die, it must happen, explicam os Mehinaku (idem, 104). Por outro lado, aquilo que as mulheres detinham antes tampouco era seu por natureza; os homens haviam sido abandonados pelas mulheres e todos os artigos culturais que elas detinham era j fruto de um roubo: elas esto roubando nossas vidas. Vocs fiam algodo e fazem redes, dizem os homens s mulheres. Se eles viviam em um estado pr-cultural no momento em que elas detinham o controle sobre as flautas sem fogo de cozinha, sem armas de caa, sem rede de dormir, sem parceiros sexuais - no a tal estado que as condenam aps o roubo. As mulheres so expulsas para a periferia, o que no significa que estejam do lado da natureza. Aquilo que elas detinham s para si, como as redes de dormir, ser agora compartilhado. Apenas, o poder feminino ser restringido. curioso que no ritual do jamurikum as mulheres tambm se mostrem como detentora de todos os bens culturais, masculinos e femininos: elas no esto exatamente no lugar dos homens como se fossem homens; so mulheres, pintadas e ornamentadas como uma mulher xinguana deve ser, utilizando alguns smbolos de status tipicamente masculinos tomados a seus maridos. Ao tornarem-se mulheres e homens ao mesmo tempo, elas relegam os homens a uma vida pr- (ou melhor, ps-) cultural. No mito de origem do jamurikum, os homens transformam-se em porcos, enquanto as mulheres transformam-se numa sociedade, passando a desempenhar todas as funes masculinas e femininas sozinhas, e considerarando os homens como um povo inimigo. Na histria de karytu, ao tomarem para si as flautas, os homens instituem a prpria distino corporal entre os gneros: vocs usaro cintos de palha (embremos que os cintos, como as pinturas, so mais do ornamentos, so instrumentos de fabricao corporal).
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Gregor registra ainda outro mito mehinaku sobre o tempo em que as mulheres ocupavam a praa central e a casa dos homens, enquanto estes permaneciam em casa fiando algodo e cuidando das crianas. As mulheres tinham o clitris to grande quanto um pnis mas, ao contrrio do que se passou com os homens depois, elas faziam sexo entre si (idem, 196). Mulheres so vidas demais e, quando a vida por elas ordenada, todo a vida social recai sob seu commando. Homens instituem a difena entre os sexos e no mesmo movimento criam a diviso do espao e da vida social, dominando apenas uma parte dessa nova ordem, a vida pblica. A reversibilidade do controle poltico, como se v, no simtrica. Um homem chefe e uma mulher chefa no so imagens em espelho. Como aponta Strathern, a mitologia de origem das flautas sagradas no trata de diferenas intrnsecas aos sexos, mas do fato de que o poder exclusivo e excludente, no podendo pertencer a dois ao mesmo tempo e constituindo-se portanto como um objeto de disputa (1988, 98 e subs.). A prpria distino entre homens e mulheres criada nessa disputa, e no anterior a ele. Contudo, a distino entre os gneros aponta tambm para diferentes formas de distino atravs do poder. As diferenas entre homens e mulheres so diferentes quando homens ou mulheres esto no poder. Ou poderamos pensar em masculino e feminino como formas distintas da diferena? Vimos que os xinguanos s podem ser plenamente gente, danando, sendo kat (podemos dizer ainda que como donos de espritos os humanos podem ser sujeitos mais efetivos entre si). Mas, atravs dessa fuso, a vida ritual tem tambm o efeito de criar macro distines entre humanos e no humanos (quem no dana vira kat), homens e mulheres (sempre opostos ritualmente, o que no posso demonstrar aqui), xinguanos e no xinguanos (aqueles que realizam e aqueles que no realizam certas cerimnias) e entre os grupos xinguanos (cada um com seu cantor ritual). Em
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contraste com tais distines, estaria a diferena entre parentes e no parentes, mais difusa e mvel, criada no universo secular e domstico, o domnio feminino. Quando so expulsas do centro para a periferia da aldeia, onde iro alimentar as crianas, fiar e fazer redes, as mulheres passam a ocupar-se do mundo do parentesco, no porque este lhes fosse naturalmente associado, mas porque foi aquilo que os homens distinguiram como domnio feminino, em oposio ao domnio das relaes rituais com no humanos (a praa central o lugar dos espritos) do qual acabavam de apropriar-se. preciso ressaltar, primeiro, que estes domnios no se opem como natural e cultural, j que o parentesco um feito cotidiano e constante, como vimos no captulo anterior (cf. Viveiros de Castro, 2002: 454). So ambos domnios culturais, onde se desenvolvem trabalhos distintos. Estou sugerindo que a extrema avidez revelada pelas mulheres no mito e no ritual a mesma que caracteriza o feiticeiro (o ciumento, o invejoso) pois tanto no mundo por elas ordenado, quanto no feitio, o que se promove um fuso indesejada, uma indistino que deve ser corrigida. Quando os homens expulsam as mulheres da vida pblica, como se estivessem limitando ao universo do parentesco essa impossibilidade de distino que as caracteriza. Enquanto a identificao atravs do compartilhamento de substncias, bens e palavras a prpria essncia do parentesco, diria que o feitio, incidindo neste mesmo campo, e manipulando os mesmo materiais, revela a face obscura da proximidade, o lado negativo do processo de fuso que tem sua face positiva no aparentamento. Note-se que se a influncia entre gente prxima o problema do feitio ( o feitio), ela tambm a soluo para ele, quando parentes renem-se para pagar o tratamento xamnico ou a contra-feitiaria de algum184. A guerra entre os sexos em
A identidade como um problema seria tambm um modo de ver a conexo entre tio materno e sobrinho entre os Daribi. E ali tambm, o parentesco a soluo: a patrilinhagem quem paga para cortar a conexo potencialmente maligna do sobrinho com o tio materno (Wagner, 1967). Com a diferena de que, no sistema cogntico amaznico, o
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torno do feitio expressa nos cantos rituais de morezowagetu poderia ser pensada tambm como uma oposio (ou debate) entre o modo relacional do parentesco e da feitiaria, e o modo relacional do ritual e da vida pblica. Mas as mulheres no so feiticeiras, so fofoqueiras185. significativo que no morezowagetu elas apaream quase sempre na posio de agressoras, acusadoras, contra os homens, que so suas vtimas (invertendo a relao estabelecida atravs do feitio amoroso). J aleguei que fofocas, como o feitio, incidem no universo das relaes duvidosas uma histria que contada a uma parente atinge um no parente, pois a recepo revela que no havia compartilhamento de opinies. Aqui tambm nos deparamos com uma indiferenciao primeira que, como o feitio, acaba produzindo diferena: quando torna-se claro, no congelamento da fofoca em acusao, que certas pessoas realmente so izetu, diferentes. Ao tomarem para si as flautas kauka, os homens garantiram sua exclusividade sobre a fala pblica, relegando s mulheres o falar entre si dentro de casa, na roa ou no banho. O feitio, assim como a fala feminina, uma atividade das margens (segundo Gregor, 1977, os feiticeiros
problema e a soluo no competem a distintas linhagens. 185 Apesar de poderem ser agentes do malefcio no s com palavras, como revela o caso a seguir. Comentando o poder patognico do sangue menstrual sobre os homens, Gregor nota que algumas mulheres podem usar deliberadamente seu sangue para contaminar algum homem especfico, escondendo o fato de estarem menstruadas. O sangue menstrual assim introjetado no corpo masculino designado kauki, mesmo termo aplicado s flechinhas patognicas lanadas pelos espritos (em aweti, kat uwyp), e deve ser sugado pelo xam atravs da pele da vtima (idem, 143). Ora, para que uma mulher atinja um homem desta maneira, preciso que ele se alimente de uma comida preparada por ela, o que significa que entretm com ela algum tipo de relao de parentesco. Essa forma de agresso feminina lembra o feitio por envenenamento, ou feitio posto na comida oferecida a algum (ver cap. 2, seo 2.6). Recordo-me de duas irms aweti que se recusaram a comer o peixe cozido que havia sido mandado atravs de mim por um homem que vivia do outro lado da aldeia. As relaes entre as duas casas j havia sido to pacfica quanto blica, mas o fato de que a comida fosse naquele momento enviada deveria ter sido tomado como sinal de amizade: o homem tinha comida em casa, e havia se preocupado em enviar um pocuo s esposas de seu irmo. Ora, nenhuma das duas teve coragem de comer, com medo de enfeitiamento. Recorro a esta histria apenas para sublinhar que quase sempre um homem come comida preparada por uma mulher como se fossem parentes, para que sejam parentes, e que este , ao mesmo tempo, o meio pelo qual uma mulher pode introduzir suas flechas no corpo alheio. O sangue pode ser usado como uma forma de feitio pelas mulheres e sua influncia se exerce, como o feitio, entre pessoas prximas.
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so referidos pelos Mehinaku como homens dos fundos, trashyard men), e justamente nos caminhos em torno da aldeia, ou entrando numa casa pela porta dos fundos (voltada para a roa e, mais adiante, a floresta) que atacam. Os feiticeiros, em suma, habitam os mesmos espaos que as mulheres, e no deixam de produzir, como elas, identidade, amarrando-se a suas vtimas. A feitiaria pareceria assim ser uma atividade eminentemente feminina, mas no o . Contudo palavras tambm so formas de influncia, formas de constituir pessoas, como se viu com as histrias, e palavras femininas so equiparadas a fofocas ou acusaes: coisas que circulam demais, abusos do princpio da identidade.
6.7Eplogo:formasdadiferena
Talvez um dos principais temas que atravessam esta tese diga respeito contituio de corpos individuais e coletivos a partir dos objetos que circulam entre eles, ora sob a forma de troca, diferenciando-os, ora sob a forma de compartilhamento, identificando-os. Tentei colocar num mesmo plano, tratando a todos como objetos, as substncias corporais compartilhadas entre parentes conectados pelo ato da concepo, bens de valor e conhecimentos; quanto as estes ltimos, talvez tenha ficado perdida ao longo da tese a associao que procurei estabelecer entre os conhecimentos sobre tcnicas de fabricao corporal e as histrias dos antigos, principal fonte de conhecimentos cosmolgicos dos xinguanos sendo ambos elementos cujo compartilhamento um importante componente do parentesco, ou das relaes de identidade. Sustentei, por fim, que o feitio pode ser visto como uma perverso da identidade, e logo do parentesco, em dois sentidos: por ser geralmente motivado pelas carncias de compartilhamento (por mgoas entre pessoas prximas, para dizer muito simplesmente) e por estabelecer ele mesmo uma espcie de
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conexo fsica. Poderamos tambm formular a oposio entre parentesco e feitiaria como uma entre o processo de virar mesmo atravs do outro e aquele de virar outro atravs do mesmo. Vimos que a fabricao corporal do xinguano implica a apropriao de qualidades de fora, seja na absoro de potncia dos donos espirituais de remdios, seja na aquisio de conhecimentos de conhecedores de remdios, seja atravs do que se come, da ornamentao ou dos nomes. Se o parentesco compartilhamento, pois, o material que ele veicula, atravs do qual ele se constitui, no transmitido de gerao a gerao, mas sempre captado fora (mesmo quando transmitido entre geraes, como os nomes, pode ser visto como uma captura de qualidades externas). A fabricao do corpo de um parente , assim, espelhada pela vida ritual, em que o virar kat permite comunidade afirmar-se como comunidade humana e coesa, corpo de parentes, portanto. A feitiaria, por sua vez, revelando que o aparentamento no se efetivou pelas vias esperadas, atravs do compartilhamento, e que uma unidade foi perversamente criada atravs do roubo, faz um igual ser visto como outro no parente, no humano. Para encerrar, porque necessrio encerrar em algum ponto, gostaria de retomar a reflexo com que iniciei esta tese, a respeito da unidade xinguana e de suas partes, os grupos tnicos que a compem. Reconhecendo a natureza histrica e processual tanto do que chamamos de Alto Xingu quanto de subunidades como Kamayur ou Aweti, aleguei que, se os prprios xinguanos se referem repetidamente a tais unidades, devemos consider-las com certo cuidado: no reificando-as, como se correspondessem a um dado fixo, mas tambm no reduzindo sua existncia a um produto da interveno branca ou a uma fico antropolgica. Quero sugerir aqui que os mecanismos que permitem aos grupos xinguanos a um s tempo distinguirem-se uns dos outros e identificarem-se como parte de um mesmo corpo coletivo
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podem ser constrastados aos processos de identificao e diferenciao engendrados pela feitiaria e pela fofoca. Diversos autores descrevem que o bilingualismo seria mal visto na regio. Para os Aweti, poder comunicar-se em lnguas estrangeiras, e sobretudo entend-las, parece ser um valor, um meio de expandir o horizonte de relaes e de conhecimento sobre pessoas. Por exemplo, um homem sai de sua casa na aldeia Aweti para participar de um ritual na aldeia Mehinaku, onde nasceu sua me, j falecida h muito anos. Esse homem se considera aweti mas, estando entre os Aweti, pode dizer que mehinaku, enquanto do ponto de vista destes certamente um aweti, porque viveu toda a sua vida entre o povo do pai e tem competncia apenas passiva do idioma de sua me. Sem pelo menos entender o mnimo do que se diz l, no entanto, no estaria indo participar do ritual, a convite do tio. Entender uma lngua estrangeira tambm interessante para saber notcias de fora pelo rdio, sejam notcias de gente desconhecida sobre as quais se tem uma curiosidade genrica, sejam notcias de parentes falantes de outras lnguas, como este tio Mehinaku, ou uma prima Trumai etc. Por outro lado, uma situao como a atualmente vivida pelos Yawalapit extremamente penalizadora para os Aweti. Na aldeia da Boca186, onde vivem aqueles, fala-se basicamente em kuikuro e kamayur, povos com quem os Yawalapit firmaram alianas de casamento no perodo em que seu grupo local teve de se reconstituir apos longa disperso (ver Introduo e tambm Viveiros de Castro 1977, Bastos 1987/88/89). Os Aweti s vezes dizem que os Yawalapit verdadeiros acabaram, enquanto em outras situaes se referem aos habitantes daquela aldeia como Yawalapit, jawarawyzyza, sem grandes problemas. O que importa mais, me parece, aos Aweti, no manterem-se puros quanto identidade lingstica, mas poderem manter sua autonomia lingstica, e manter a lngua como um objeto de
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Assim chamada por localizar-se na boca do rio Tuatuari, isto , no ponto em que este desemboca no Curisevo.
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distino em relao a outros povos. Se em muitos momentos proveitoso falar a lngua dos outros, a lngua manipulada como um meio de criar corpos sociais internamente homogneos, ao menos temporariamente, sobretudo nos rituais interaldeos. Um homem filho de me mehinaku pode dizer que mehinaku apesar de ter sempre vivido entre os Aweti, mas em ocasies rituais ele inequivocamente aweti. A mtua incompreenso torna-se um elemento chave desses encontros, pois marca justamente a diferena entre sujeitos a partir dos objetos distintos que colocam em circulao, sendo a a prpria lngua o objeto trocado. Assim, nos dilogos altamente formalizados entre representantes de aldeias, o que se est comunicando no so os contedos, mas posies diferenciais. Ou melhor dizendo, a combinao de uma esttica comum (expressa nos estilos discursivos, modalidades musicais musicais e coreogrficas e na ornamentao corporal) com um discurso cujo contedo incompreensvel, o que permite aos grupos constiturem-se como iguais, participantes de uma comunidade definida em termos do compartilhamento de um cdigo esttico-moral, e distintos, unidades lingisticamente diferenciadas. A incompreenso entre xinguanos reproduz ainda o efeito, na medida em que limita as trocas lingusticas, da evitao entre afins, e portanto no devemos pensar a primeira como mais natural que a segunda: ambas so produzidas com o mesmo fim, como j foi bastante enfatizado na literatura sobre a rea (cf. Basso, 1969, 1985, Gregor 1977, Franchetto, 1986, Ball, 2006). A fofoca, como descrevo a seguir, pensada pelos xinguanos como um objeto de troca. Mas nesse caso, sustento, as diferenas evidenciadas so de outro nvel, no mais aquelas entre grupos lingusticos e sim diferenas entre parentelas. Segundo Franchetto (1986, pg. 266-77), os Kuikuro referem-se ao ato de fofocar pelo termo que designa a troca cerimonial (uluki, em kuikuro; jorojyt, em aweti; moitar, em kamayur). A fofoca, para os Kuikuro, objeto de troca no apenas porque palavras circulam
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entre pessoas, mas tambm porque fofocas podem ser trocadas por outros objetos - quem deseja uma informao pode compr-la, inclusive com servios. Franchetto conta como foi aconselhada por seus parentes na aldeia a no fazer moitar, isto , a no dar ouvidos a fofocas - naquele caso especfico, sobre quem seriam os feiticeiros da aldeia. Apesar de nunca ter ouvido semelhante analogia entre os Aweti, nem tampouco ter sabido de casos de compra de informao, ela me parece descrever bastante bem a noo de fofoca, justamente porque chama ateno para o fato de que a troca lingstica se d a entre diferentes, izetuza. Quando as pessoas trocam objetos no jorojyt, no importa se so duas irms que vivem na mesma casa ou se so desconhecidos de aldeias distantes, na condio de possuidoras de atributos distintos, mas equivalentes, que podem trocar. Como disse, uma hiistria vira fofoca quando ultrapassa o crculo de parentes e atinge os no parentes sejam moradores de casas distintas que se encontram fortuitamente, ou mesmo coresidentes que divergem sobre um dado tema. Os kuikuro deixam bastante claro que, se preciso pagar por uma informao, porque ela vem de outros, gente com quem o compartilhamento de histrias poderia no ocorrer. Podemos ainda imaginar que o parente de Franchetto que lhe aconselhava a no dar ouvidos a acusaes de feitiaria aconselhava-a a no receber informaes dos outros, fora ele mesmo. Nos encontros rituais o estilo discursivo compartilhado pelos xinguanos expressa o pertencimento comum, enquanto a identidade diferencial de cada grupo evidenciada pelo fato de que os discursos so mutuamente ininteligveis. A fofoca, por sua vez, no um estilo discursivo especfico, uma fofoca apenas uma histria. A forma a no importa, apenas o contedo da fala. Mas se o cdigo compartilhado, os pontos de vista que no o so. A fofoca seria ento o correspondente interno da variedade lingstica no nvel interaldeo? Dado que muitas pessoas possuem parentes prximos vivendo em outros grupos locais,
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comum que certas informaes circulem mais facilmente para fora que para dentro, isto , que uma histria (como um colar de caramujo) seja compartilhada com algum que vive longe e nunca chegue a um coaldeo, ou tenha que ser comprada por este. A distino entre nvel local e nvel supra local no descreve perfeitamente, pois, a relao entre fofoca e diversidade lingstica. Me parece mais bem que esta diz respeito a distintos modos da vida social, um pblico e ritual, outro das relaes privadas e cotidianas. tanto a variao do cdigo lingustico quanto a variao de opinies que se evidencia medida em que as histrias circulam do forma a corpos coletivos definidos em termos daquilo que compartilhado internamente. Mas h uma diferena relevante entre as diferenas criadas por cada uma dessas trocas lingusticas. A distino criada pela variao lingstica desejada, fundamental para a constituio do cosmos xinguano enquanto tal. Sabemos j que, na mitologia de origens, os gmeos Sol e Lua do origem s lnguas xinguanas em seu lamento funerrio me falecida. No ritual do kwarup, preciso que duplas de cantores rituais dos grupos convidados sucedam, uma por vez, s duplas de cantores do grupo anfitrio cada uma cantando os seus prprios cantos, em suas prprias lnguas. Uma festa celebrando mortos kalapalo, por exemplo, deve contar com cantores kuikuro, yawalapit, kamayur - quantos se possa arregimentar, j que os especialistas rituais so cada vez mais raros em toda a regio. Disso depende o bom destino dos mortos, que seguem ento para sua aldeia no cu (ver Introduo e cap. 1). Este apenas um exemplo, enfim, da forte interdependncia que rene os povos xinguanos em sua diferena, isto , tendo a diferena, lingsticamente marcada, como um fator de coeso. Quanto fofoca, podemos dizer que opera um tipo de distino a um s tempo inevitvel e incmoda. Se ela circula entre pessoas de um mesmo grupo local, ou mesmo se ocorre em relaes inter-locais, sempre entre e a respeito de gente conhecida, via de regra, xinguanos. Ora,
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se nenhum aweti jamais dir que moaza um universo composto apenas de parentes, ao mesmo tempo espera poder estabelecer com cada outro xinguano em particular uma relao de parentesco chamando-o de tio, primo ou av. Por maior a distncia que se projete nesses modos de endereamento (chamar de tio no equivale a chamar de pai), uma distncia que aproxima medida em que reconhece conexes e prev sua continuao (cf. cap 5). O falar da vida alheia, assim, como o feitio, pressupe a proximidade ao mesmo tempo em que denuncia a distncia. Note-se que a mesma circulao de histrias que torna as pessoas conhecidas umas das outras, e logo parentes, por vezes o que impe sua distncia, na medida em que so recebidas como histrias dos outros, fofocas. As histrias da vida cotidiana que circulam so o correlato discursivo dos objetos que se constituem, por um lado, como meios de fazer parentes e, por outro, meios de desfaz-los. Essas mnimas diferenas que surgem no nvel do parentesco no podem ser, pois, o correspondente em menor escala das diferenas inter-aldes cuja recriao efeito da vida ritual. Podemos v-las antes como formas antitticas de diferenciao: uma moralmente controlada e deliberadamente produzida, gerando unidades idealmente auto-idnticas; a outra residual e incontrolvel, atravessando as unidades que a outra forma cria. Mais do que anttese da diferenciao lingstica, a outra forma de diferenciao, pelo feitio e a fofoca, pode ser o fundo contra o qual ela opera (cf. Viveiros de Castro 2002e). Temos assim, de um lado, um mecanismo de diferenciao cujo produto parece ser a identidade tanto a auto-identidade dos grupos tnicos quanto a identidade xinguana de uma moral compartilhada. Essa diferenciao tem a prpria diferena como ponto de partida: o pacifismo s se faz necessrio se a guerra estiver no horizonte de possibilidades. E, por outro lado, uma diferenciao que tem a identidade como ponto de partida, a possibilidade de comunicao e compreenso mtua, mas que diferencia sem
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direo ou limite, mesmo que produza tambm, a contrapelo, algum tipo de identidade, as parentelas identificadas por suas verdades particulares. Ocorre que essa identificao , como venho enfatizando, instvel.
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Anexo1 Terminologiadeparentesco
Egomasculino Termo referencial itamuj itak itup ity, iteamamaj itupizu itywatiyt itutyt itait itytiyt itywyt injyt ipwyt itayt itatiyt tiyt vocativo atu ati apaj ama, mamaj apaj ama mamaj awaj ajeje tataj pia tataj (eZ) tti (yZ) pia tti pia (ZS), tti (ZD) Posio relacional MF/FF e geraes acima MM/FM e geraes acima F M FB, FFBS, FMZS etc. MZ, MFBD, MMZD etc. MB, MFBS, MMZS etc. FZ, FFBD, FMZD etc. eB, FBS, MZS etc. yB, FBS, MZS etc. Z, FBD, MZD etc. MBCh, FZCh S, BS, FBSS, MZSS etc. MBSS, FZSS D, BD, FBSD, MZSD etc. MBSD, FZSD ZCh, FBDCh, MZDCh etc. MBDCh, FZDCh SS/DS/DS/DD W WF, WMB etc. WM, WFZ etc. ZH, WB etc. SWF, SWM, DHF, DHM SW, BSW, ZSW DH, BDH, ZDH
itemiamuju itaty Itaty up Itatitoza ikytsitsap itowatsat itayt aty itatiyt men
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Egofeminino
Termo referencial itamuj itak itup ity, iteamamaj itupizu itywatiyt itutyt itait ikywyt itytet ikypyyt ipwyt imenbyt
vocativo atu ati apaj ama, mamaj apaj ama mamaj awaj ajeje tataj (eB) pia (yB) tataj tti pia (S) tti (D) pia (BS), tti (BD) tti (fem), pia (masc) (potikatu) (potikatu) (potikatu) (potikatu) (potikatu)
Posio relacional MF/FF e geraes ascendentes MM/FM e geraes ascendentes F M FB, FFBS, FMZS etc. MZ, MFBD, MMZD etc. MB, MFBS, MMZS etc. FZ, FFBD, FMZD etc. B, FBS, MZS etc. eZ, FBD, MZD etc. yZ, FBD, MZD etc. MBCh, FZCh, MBCh, FZCh Ch, ZCh, FBDCh, MZDCh etc. MBDCh, FZDCh etc. BCh, FBSCh, MZSCh etc. MBSCh, FZSCh etc. SS/DS/DS/DD H HF, HMB etc HM, HFZ, WM, WFZ etc. BW, HZ etc. SWF, SWM, DHF, DHM SW, ZSW, BSW DH, ZDH, BDH
ipeng imenpenbyt imen imen up Imen ty ikytsitsap itowatsat imenbyt aty imenbyt men
* potikatu a atitude de respeito entre afins de mesma gerao e gerao alternada, e aparece indicada ao lado das categorias relacionais a que se aplica o termo.