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Trajetoria Escrita Memória

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O PAPEL DA ESCRITA DE MEMÓRIAS SOBRE A TRAJETÓRIA

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ESCOLAR NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

Paloma Rezende de Oliveira*


mmortissa@yahoo.com

*Cursando doutorado em Ciências Humanas - Educação, na área de concentração:


Educação Brasileira, pela Pontifícia Universidade católica do rio de Janeiro, Mestre
em Educação, área de concentração: gestão, políticas públicas e avaliação
educacional, pela Universidade Federal de Juiz de Fora, Licenciatura e Bacharelado
em Pedagogia, pela UFJF/MG.

Apresentação

Este trabalho trata da experiência de escrita de memórias sobre a


trajetória escolar por alunos de graduação, durante as disciplinas lecionadas para
os cursos de Licenciatura em História e Pedagogia, nos anos de 2010 e 2011, na
Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora. Esta proposta
teve como objetivo inicial levar os graduandos a refletirem sobre a concepção
que tinham de educação, ensino e professor, bem como sobre os possíveis
motivos que os levaram à escolha da profissão.
Considerou-se, durante essas reflexões, as noções de Ricoeur (2007)
acerca de “lembrança e imagem”, “memória artificial e natural”, “memória
pessoal e coletiva”, “testemunhos e esquecimento”. Também foram propostos,
durante o desenvolvimento da disciplina, textos que abordavam as temáticas que
apareceram com maior frequência nas trajetórias dos alunos, tais como:
influência de pais e professores na escolha profissional, qualidade do ensino
público e privado, relação professor/aluno, avaliação da aprendizagem e
valorização do professor, formação profissional e (des)continuidade do ensino. A
experiência possibilitou que alunos e professora estabelecessem uma relação
entre passado e presente, no movimento da compreensão de um para o outro,
como sugere Ricoeur (2007).
Para fins de realização deste relato, foram selecionados e analisados 16
memoriais de alunos do 3º período de graduação em História, matriculados na
disciplina Seminário em Ciências Sociais Aplicadas à Educação, sendo que o
mesmo trabalho reflexivo foi realizado em uma turma do 1º período de
Pedagogia, durante a disciplina: Sociologia da Educação, no semestre seguinte,
em 2011. Ambas as disciplinas lecionadas na Faculdade de Educação da
Universidade Federal de Juiz de Fora.
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Procurou-se, no semestre, realizar a produção de um texto escrito, logo no


primeiro dia de aula, sobre a trajetória escolar e possíveis motivos que levaram
os graduandos à escolha do curso de História, sendo este o primeiro contato do
professor com os alunos que acabavam de ingressar no ensino superior.
A proposta inicial foi construir o planejamento da disciplina Seminário em
Ciências Sociais Aplicadas à Educação, a partir das recordações das experiências
individuais/coletivas trazidas pelos estudantes para a construção de suas
narrativas, que acreditamos encarnar as tonalidades sociais, históricas, culturais
e afetivas.
Na tentativa de valorizar a subjetividade, os sentimentos e a experiência
humana, o uso das narrativas apresentaram outras possibilidades, na medida em
que apontam as mais sutis e camufladas relações de dominação, estabelecidas,
muitas vezes, a partir do próprio processo social de construção de memória(s)
em torno da carreira docente e do papel do professor, da escola e da educação,
desvelando memórias, experiências e vivências ocultadas e silenciadas, como
constatado por Thompson (apud ARAÚJO E SANTOS, 2007).
Buscou-se, então, uma reflexão em torno desses relatos, utilizando não
apenas seu conteúdo, mas também textos, artigos e livros de autores diversos,
que auxiliassem nesse percurso, dentre eles, podemos citar, além das obras de
Anísio Teixeira, “Educação é um direito” e “Educação não é Privilégio”, as obras
de autores como Durkheim, “Sociologia e Educação”; Dewey, “Democracia e
Educação”; Foucault, “Vigiar e Punir”; Bourdieu, “Escritos de educação”; Canclini,
“Consumidores e cidadãos”; Zygmunt Bauman, “Modernidade Líquida” e Vahl, “A
privatização do ensino superior no Brasil”. Foram utilizados ainda, documentos
como: “Manifesto dos Pioneiros”, de 1932 e a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação, Lei 9394 de 20 de dezembro de 1996, atualizada em 2002.
Durante o planejamento da disciplina e das discussões em sala, buscou-se
dar atenção às relações de partilha cultural, no seio do grupo em questão, e
considerar os três níveis em que opera a ideologia1 nas memórias, nas reflexões
sobre os temas que apareceram com maior recorrência nas narrativas, quais

1
Segundo Ricoeur (2007, p.195), são: “a distorção da realidade, a legitimação do
sistema de poder e a integração do mundo comum por meio de sistemas simbólicos
imanentes à ação”.
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sejam: influência de pais e professores na escolha profissional, qualidade do


ensino público e privado, relação professor/aluno, avaliação da aprendizagem e
valorização do professor, formação profissional e (des)continuidade do ensino.
Ao final do curso, foi solicitado aos alunos, então já familiarizados com o
professor e com os referenciais teóricos discutidos, que trouxessem novas
reflexões sobre suas memórias escritas no início do curso, tanto em relação aos
aspectos pessoais, quanto aos profissionais.

Revisão da literatura

O foco das reflexões acerca dos relatos escritos pelos alunos centrou-se no
processo de significação, criado nas interações propiciadas nas aulas e com os
próprios escritos. Neste processo, afirma Montiner:

O significado antigo não é substituído pelo novo, mas cria-se um


processo de negociação de significados num espaço de interação
comunicativa, no qual há o encontro entre diferentes perspectivas
culturais num processo de crescimento mútuo. As interações discursivas
são, portanto, consideradas como constituintes do processo de
construção de significados. (apud QUADROS ET AL, 2008)

Essas interações, por sua vez, apontam a importância dos papeis das
lembranças que temos enquanto membros de um grupo, exigindo de nós um
deslocamento de ponto de vista do qual somos eminentemente capazes.
Como destaca Ricoeur (2007):

Temos, assim, acesso a acontecimentos reconstruídos para nós por


outros que não nós. Portanto, é por seu lugar num conjunto que os
outros se definem. A sala de aula é, nesse aspecto, um lugar
privilegiado de deslocamento de pontos de vista da memória. De modo
geral, todo grupo atribui lugares. É desses que se guarda ou se forma
memória. (RICOEUR, 2007, p.131)

A (re)escrita dessas memórias propicia um contexto de produção que


instiga cada futuro professor em formação a re(vi)ver seu percurso. Re(vi)ver a
trajetória escolar e refletir sobre a escolha de sua profissão consolidam-se numa
experiência importante para (re)significar algumas experiências escolares e
(re)pensar as aprendizagens e suas condições de produção (QUADROS ET AL,
2008).
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Sem desconsiderar as semelhanças em relação às crenças, oportunidades


e (des)incentivos recebidos pelos alunos, buscou-se ficar atento às
manipulações, que segundo Ricouer (2007, p.95) devem-se a um fator
“multiforme e inquietante que se intercala entre a reivindicação de identidade e
as expressões públicas de memória”. As discussões em sala de aula se deram
sempre no sentido de descortinar as possíveis formas, em que a ideologia opera,
presentes nas experiências individuais/sociais demonstradas nos escritos.
Silva (2010) estabelece três traços do funcionamento discursivo do gênero
memorial, a saber: a finalidade comunicativa, o conteúdo temático e a
postura/perspectiva que o aluno assume no curso da escrita de suas memórias,
em relação aos objetos narrados. Foi a esse último aspecto que buscamos dar
ênfase durante a leitura dos textos produzidos, importando também focar a
figura do narrador no processo narrativo:

No fio de sua narração e, portanto, na configuração da narrativa,


dá-se a emergência de um narrador, o qual narra, sob um dado
ponto de vista, as suas experiências acadêmicas e profissionais.
Instala-se aí um jogo enunciativo e estético, como diz Bakhtin, em
que eu me torno um outro da minha própria história. (Apud SILVA,
2010, p.602)

Sobre a memória individual, Ricoeur (2007) afirma que esta é um ponto


de vista sobre a memória coletiva e que esse ponto de vista muda segundo o
lugar que nele o sujeito ocupa e que, por sua vez, esse lugar muda segundo as
relações que ele estabelece com outros meios.
Para ele, as narrativas são tidas como espaço em que uma identidade se
afigura não apenas como uma identidade pessoal,2 mas, principalmente, como
identidade narrativa. Essas podem dar ao sujeito não apenas a oportunidade de
pensar sobre si, mas também de contar sobre si. Na experiência da narração
lembra-se, logo, declara-se que se viu, fez ou adquiriu algo, esse fazer memória
“inscreve-se numa rede de exploração prática do mundo, de iniciativa corporal e
mental que faz de nós sujeitos atuantes”. (RICOEUR, 2007, p.134)

2
Um trabalho que discute a identidade pessoal é o de NASCIMENTO, Cláudio Reichert do.
(2009). Em sua dissertação, intitulada: “Identidade pessoal em Paul Ricoeur”, a
discussão dá-se sob os modos de permanência no tempo da pessoa e como eles são
configurados pela narrativa, que conta a história de uma vida.

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E é nesse momento que a mediação do professor/pesquisador é


importante, no sentido de mostrar: “que por trás do trabalho de cada professor,
em qualquer sala de aula do mundo, estão séculos de reflexões sobre o ofício de
educar.” (SILVA, 2010, p.620)

Análise

Durante a leitura dos dezesseis relatos escritos pelos alunos do 3º período


do curso de Licenciatura em História, na disciplina Seminário em Ciências Sociais
Aplicadas à Educação, no ano de 2010, sobre suas trajetórias escolares, as
reflexões nos remeteram às noções de Paul Ricoeur(2007) expressas em sua
obra: “A memória, a história, o esquecimento”, acerca das noções de lembrança
e imagem, memória artificial e natural, memória pessoal e coletiva, testemunhos
e esquecimento, surgindo a necessidade de explorar um pouco mais essas
noções.
A primeira noção a que demos ênfase foi a da relação entre lembrança e
imagem. Segundo o autor, deve-se considerar que existe uma diferença
essencial entre essas duas teses, uma vez que ao se recordar da vida passada,
não se está imaginando. Não se pode ignorar, contudo, as ciladas que o
imaginário pode armar para a memória, constituindo a perda de confiabilidade
para a memória.
Além disso, Santos e Araújo (2007) reiteram, em uma abordagem ainda
que psicológica, que a memória não obedece apenas à razão, porque também
está relacionada, por um lado, às tradições herdadas, que fazem parte de nossas
identidades e que não respondem a nosso controle, e, por outro, aos
sentimentos profundos, como amor, ódio, humilhação, dor e ressentimento, que
surgem independentemente de nossas vontades. A seguinte citação, retirada de
um dos relatos reescritos ao final do curso por uma aluna, expressa bem estas
questões:

(...) No meio do ano, ocorreu um fato desagradável do curso,


citado mais detalhadamente no outro memorial, que destruiu as
perspectivas da verdadeira função de professores que é formar e
corrigir os alunos. Não cita novamente tudo isso, pois ela enterrou
os cinco alunos da sala, fazendo de um modo que eles nunca

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existiram, para poder caminhar em paz e por estar cansada de


chorar, sofrer, por causa de pessoas desumanas. Ela só não
desistiu, pois desfrutou de opiniões de pessoas humanas e pela
ajuda de seus familiares, principalmente de sua mãe e irmã, e de
seus amigos e professores. Aceitando a sua situação de ser a
diferente e a diferenciada, e aprendeu os motivos de ser excluída
por todos na sala de aula. (J3, 3º período de História, UFJF, 2010)

Este trecho nos chama a atenção por dois motivos: apesar de a narradora
afirmar ter citado no primeiro memorial o fato que a deixa perplexa, isto não
ocorre, e ainda, a forma como a escrita se deu. Ao narrar em terceira pessoa,
ainda que a aluna tenha argumentado em seus escritos que o fez “para facilitar
as suas lembranças”, tal postura nos indica a busca de afastamento de si, ou
seja, a negação de sua identidade, que nos dá indícios de outras questões acerca
da responsabilidade de pensar sobre si. Essa suposição deve-se ao fato de que o
fato desagradável, não explicitado no relato, se referia ao preconceito de alguns
colegas em relação a ela, por ter entrado na Faculdade por meio das cotas para
negros.
A identidade, num nível formal, permanece uma relação de comparação
que tem como contraponto a diversidade, a diferença. Como se percebeu nos
trechos apresentados, ao escrever, os alunos buscaram encontrar um sentido em
sua trajetória. A necessidade de sua síntese acarretou omissões, seleção de
acontecimentos a serem relatados e desequilíbrio, na medida em que alguns
relatos foram narrados de forma mais extensa do que outros.
Essas operações, “o autor só é capaz de fazer, na medida em que se
orienta pela busca de uma significação: busca esta que lhe dirá quais
acontecimentos ou reflexões devem ser omitidos e quais (e como) devem ser
narrados.” (ALBERTI, 1991, p.78),
A memória artificial e natural é outra noção que se precisa ter, a fim de se
evitarem os riscos de uma memória exercitada, artificial, que, segundo Ricoeur
(2007), “explora metodicamente os recursos da operação de memorização que
queremos distinguir cuidadosamente, a partir do plano da memória natural, da
rememoração, no sentido limitado da evocação de fatos singulares, de
acontecimentos.” (RICOEUR, 2007, p.72)

3
A fim de garantir o anonimato dos alunos, pois expõem aspectos particulares em seus
memoriais, optei por ocultar seus nomes.
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De acordo com Ricoeur, a memorização “(...) como uma forma de


memória-hábito, em que as ideias estão vinculadas a imagens e os tempos
sejam armazenados em lugares (...)” (RICOEUR, 2007, p.75-76)
A proposta da disciplina foi priorizar a rememoração no ato de (re)escrita
das próprias memórias, em detrimento da memorização, que muitas vezes
permeia as práticas de ensino. Tal intencionalidade foi expressa nas narrativas
dos alunos, como expressa a seguinte citação:

No começo desse período, quando foi sugerida a ideia de fazer um


outro memorial no fim do período, pensei: ‘para que fazer outro
memorial’? As experiências que vivi ainda são as mesmas, nada
vai mudar’. Realmente as coisas que vivi são as mesmas. Mas a
maneira que olho para elas mudou. (...) agora irei reescrevê-lo
vendo as experiências que passei com uma visão um pouco mais
madura. (D, 3º período de História, UFJF, 2010)

Essa mudança de postura em relação à reflexão sobre seus escritos pode


ser propiciada pelas discussões levantadas em aula em torno das obras de Anísio
Teixeira, Durkheim, Dewey, Foucault, Bourdieu, Canclini, Bauman e Vahl,
apresentadas sob a forma de seminário. Esses autores permitiram uma
percepção ampliada e diversa sobre as questões educacionais que apareceram
com maior recorrência nas narrativas, que foram: qualidade da educação e do
ensino, relação professor/aluno, avaliação da aprendizagem, formação
profissional e (des)continuidade do ensino:

Bom, antes de iniciar meu segundo memorial é preciso afirmar que


minha concepção e o modo de ver o verdadeiro sentido da escola
mudou. Antes pensava que não só o meu aprendizado, mas as
escolas em geral eram voltadas somente para os vestibulares (...)
(W, 3º período de História, UFJF, 2010)

Todas as narrativas expressaram a ideia de dever em relação aos


professores e pais que influenciaram suas escolhas profissionais. As narrativas
apresentaram também as enunciações sobre a memória pessoal e coletiva, na
medida em que aparece com frequência a influência de pais e professores na
escolha profissional:

Porém, esses problemas não me desestimularam a estudar e pude


aprender ali elementos essenciais de minha formação. A grande

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responsável por isso foi a professora..., que lecionava Português.


Ela tinha uma abordagem em suas aulas que eu considero
fundamental: instigava-nos a ler jornais, livros e revistas ligando
os temas com o ensino de Português e com nosso cotidiano, com
aquilo que vivíamos e víamos na televisão, além de dialogar com
outras disciplinas como História e Geografia.(K, 3º período de
História, UFJF, 2010)

Outros exemplos também demonstram essa influência na escolha


profissional, a partir da relação que o aluno estabeleceu com a escola e com o
processo de ensino/aprendizagem:
A partir da quinta série, já tinha escolhido a minha profissão, que é
de ser professora de História. Tive influência de minha irmã um
ano e meio mais velha que adorava e amava a disciplina História.
Ela não é professora, (mas)pelos vários professores que aplicavam
esta matéria demonstrando o amor da arte de ensinar. (J, 3º
período de História, UFJF, 2010)

A relação com o professor e com a escola anunciou ainda outras questões,


como a dicotomia entre ensino público e ensino privado, tratada nos textos dos
alunos que durante a trajetória escolar estudaram nesses dois tipos de
instituições:
Na minha oitava série tinha duas certezas: que queria passar no ...e que
iria me formar em História. Não passei no ..., que era o meu sonho, por
saber que lá iria conseguir uma base melhor para meu futuro e um bom
vestibular. Acabei conseguindo no ..., que também era um bom colégio,
muito bem conceituado. Acredito que haja diferenças entre escolas
particulares e públicas e dentro, entre pública e pública, e particular e
outra também particular. A concepção de educação de qualidade vem da
grande diferença visível entre as oportunidades oferecidas aos alunos de
escolas particulares. Hoje é tão importante fazer uma boa escola e
prestar vestibular, porque nossa sociedade cada vez mais exige ensino
superior e avançado para mercado de trabalho. Já decidida minha
carreira profissional, esforcei-me para tirar boas notas e não só isso,
entendendo realmente o conteúdo ensinado para me classificar no
vestibular. Tive bons professores que conseguiram passar o conteúdo da
melhor maneira que podiam dentro dos limites da escola pública. (D, 3º
período de História, 2010)

Também deu margem às questões relativas à avaliação da aprendizagem


e descontinuidade do ensino, que muito tem a nos dizer sobre o processo de
ensino/aprendizagem:

No ensino superior eu pude vivenciar outra realidade, que é a


descontinuidade que há em relação ao ensino médio. Senti este hiato
logo nas primeiras aulas que me apresentavam um conteúdo muito mais
vasto, acompanhado de uma menor exposição do mesmo pelo professor
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e por uma carga de leitura consideralvelmente superior; não obstante,


no que se refere à questão das avaliações, as quais, para mim,
carregavam a maior discrepância, pois, exigem de nós alunos uma
capacidade argumentativa e dissertativa muito maior do que fomos
condicionados por nosso ensino médio e ‘cursinho’, com a finalidade de
aprovação.(...) (A, 3º período de História, 2010)

Interpretação

Como os sujeitos não pertencem a apenas um grupo específico, mas estão


inseridos em múltiplas relações sociais, as diferenças individuais de cada
memória expressaram o resultado da trajetória de cada um ao longo de sua vida.
A memória individual revela, portanto, a complexidade das interações sociais
vivenciadas por cada um.
Esse pressuposto, segundo Araújo e Santos (2007), foi anunciado por
Maurice Halbwachs4, sociólogo, que resgatou o tema da memória para o campo
das interações sociais, rejeitando a ideia corrente em sua época de que a
memória seria o resultado da impressão de eventos reais na mente humana. Sua
tese era de que os sujeitos tecem suas memórias a partir das diversas interações
que estabelecem com outros sujeitos. Conforme explicam Araújo e Santos
(2007):

O grande mérito do trabalho de Halbwachs, portanto, é mostrar que a


memória individual não pode ser distanciada das memórias coletivas.
Não é o indivíduo isoladamente que tem o controle do resgate sobre o
passado. A memória é constituída por indivíduos em interação, por
grupos sociais, sendo as lembranças individuais resultado desse
processo. Ainda que o indivíduo pense que sua memória é estritamente
pessoal, uma vez que ela pode resgatar acontecimentos nos quais só ele
esteve envolvido ou fatos e objetos que só ele presenciou e viu, ela é
coletiva, pois o indivíduo ainda que esteja só é o resultado das
interações sociais. Ele vê o mundo através de construções coletivas
como a linguagem. (p.97-98)

4
Cujas ideias também foram abordadas em Ricoeur (2007, p.132): “Halbwachs observa
que somentenotamos as influências rivais quando elas se enfrentam em nós. Contudo,
mesmo então, a originalidade das impressões ou dos pensamentos que sentimos não se
explica por nossa espontaneidade natural, mas pelos encontros em nós de correntes tem
uma realidade objetiva fora de nós.”

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Considerando essas memórias, notamos que as lembranças exigem do


narrador um deslocamento de ponto de vista. Sobre esse aspecto, encontra-se o
desafio de se querer dar uma identidade ao professor (neste caso específico ao
professor de História), como pretendem Silva (2010), Menezes e Reis (2011),
Quadros ET AL (2008, p.2-3). Estes últimos sugerem a ideia de descontinuidade
em educação, proposta por Larrosa (2001 e 2002), a qual seria representada por
uma perturbação ao modelo de figura do professor pré-estabelecida por um
imaginário social já construído, abrindo espaço para o "porvir", ou seja, “para um
professor propenso a construir sua identidade, a partir de seus medos, dúvidas,
insegurança e coragem de mostrar-se único, capaz e cheio de esperanças de
constituir-se a partir de si mesmo.” Essa perspectiva sugere uma emancipação
através da auto-reflexão.
Consideramos, como dissemos anteriormente, que é a partir de uma
análise da experiência individual de pertencer a um grupo, e na base do ensino
recebido dos outros, que a memória individual pode tomar posse de si mesma.
Esse “fazer memória” permite uma exploração prática do mundo, de iniciativa
“corporal” e “mental” que faz de nós, “sujeitos atuantes”, e, portanto, “atores
sociais”. Nessa perspectiva, não nos lembramos sozinhos, como fica
demonstrado em alguns apontamentos feitos pelos alunos:

Aqui, como pedido pela professora no Memorial anterior, falarei sobre o


que me levou a prestar vestibular para medicina. Uma incógnita, muito
embaçada para mim, ainda hoje. Acredito que esta minha escolha tenha
sido, talvez, uma influência de um romantismo adolescente ou até
mesmo uma tendência ideológica, de acreditar que eu poderia ser mais
útil para o mundo o qual eu vivia, amenizando o sofrimento das
pessoas. Nunca me voltei para o status que isso poderia me trazer ou
seus benefícios materiais. Na universidade, minha dúvida se esvaiu, até
o momento. É claro que há preferências sobre algumas disciplinas e
áreas de estudo, mas não me vejo estudando outra coisa, senão
História, mesmo havendo uma incerteza se sigo área de pesquisa ou
magistério. (A, 3º período de História, 2010)

A identidade, num nível formal, permanece em uma relação de


comparação que tem como contraponto a diversidade, a diferença, que, nas
palavras de Ricoeur, - ao se referir aos estudos de Locke -, “não cessa de
assombrar a referência a si mesmo", enquanto no nível material, essa

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diversidade diz respeito a um aspecto da vida subjacente à memória, que nada


mais é que a própria passagem do tempo. (RICOEUR, 2007, p.116)

Considerações

A (re) escrita de memórias na formação inicial de futuros professores de


História, permitiu que esses sujeitos, ao (re)escreverem, fizessem uma
interpretação crítica de suas possibilidades, limites, implicações e compromissos,
mas levando-se em consideração as ideologias que pudessem constituir um risco
para a compreensão do mundo humano da ação.
Como se percebeu nos trechos apresentados, ao escrever, os alunos
buscaram encontrar um sentido em sua trajetória. A necessidade de sua síntese,
acarretou omissões, seleção de acontecimentos a serem relatados e
desequilíbrio, na medida em que alguns relatos foram narrados de forma mais
extensa do que outros.
Essas operações, segundo Alberti (1991, p.78), “o autor só é capaz de
fazer, na medida em que se orienta pela busca de uma significação: busca essa
que lhe dirá quais acontecimentos ou reflexões devem ser omitidos e quais (e
como) devem ser narrados.”
É essa busca também que prevaleceu na estrutura do texto; os escritos
ganharam sentido à medida em que foram sendo narrados, de modo que a
significação se construiu no momento mesmo da escrita.
E se considerarmos que o desenvolvimento pessoal e profissional são
processos inter-relacionados, a escrita de memórias nos processos formativos
representa uma atividade privilegiada, porque potencializadora do conhecimento
de si, em/na interação com o outro. Nesse momento, esses sujeitos já não
poderão se recusar a tomar posição diante da realidade.
Essa experiência em sala de aula, assim como a construção deste artigo,
ao mesmo tempo que representou um desafio, possibilitou que alunos e
professor estabelecessem uma relação entre passado e presente, no movimento
da compreensão de um para o outro.
Acreditamos que as narrativas produzidas pelos futuros professores
proporcionaram ao grupo uma compreensão dos movimentos do processo de

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formação da identidade da profissão de professor de história e de historiador,


quando apresentadas a partir de diferentes pontos de vista.

Referências

ARAÚJO, Maria Paula Nascimento e SANTOS, Myryan Sepúlveda. História,


memória e esquecimento: Implicações políticas. In: Revista Crítica de Ciências
Sociais. n.79, dez.2007.p.95-111

ALBERTI, Verena. Literatura e autobiografia: a questão do sujeito na narrativa.


In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro. v. 4, n. 7.1991.p. 66-81

LARROSA, Jorge. Dar a palavra: Notas para uma dialógica da transmissão. In:
LARROSA, Jorge. Habitantes de Babel. (trad. de Semíramis Gorini da Veiga) Belo
Horizonte: Autêntica, 2001.

MENEZES, Danielle de Almeida e REIS, Cláudia Maria Bokel. A construção de


identidades pessoais e profissionais em memoriais de formação: escolhas e
dilemas de licenciandos em letras português-inglês. IN: Anais do SILEL. Volume
2, Número 2. Uberlândia: EDUFU, 2011

QUADROS ET AL. Os professores que tivemos e a formação da nossa identidade


como docentes: um encontro com nossa memória. 2008. Disponível em:
http://www.portal.fae.ufmg.br/seer/index.php/ensaio/article/viewFile/86/134 .
Acesso em: 30/05/12

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. (trad.) FRANÇOIS, Alan


et al. Campinas: Ed. Unicamp. 2007

SILVA, Jane Quintiliano Guimarães. O memorial no espaço da formação


acadêmica: (re)construção do vivido e da identidade. In: Perspectiva, v.28, n.2,
601-624, jul./dez. 2010. Disponível em: http://www.perspectiva.ufsc.br. Acesso
em: 31/05/12

Enviado em 06 de novembro de 2012


Aprovado em 29 de abril de 2013

Revista Práticas de Linguagem. v. 3, n. 1, jan./jun. 2013

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