Texto 1 - Aprender Antropologia (François Laplantine) PDF
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Prefácio
A ANTROPOLOGIA: uma chave para a compreensão do homem
Uma das maneiras mais proveitosas de se dar a conhecer uma área do conhe-
cimento é traçar-lhe a história, mostrando como foi variando o seu colorido
através dos tempos, como deitou ramificações novas que alteraram seu tema
de base ampliando-o. Para tanto é requerida uma erudição dificilmente en-
contrada entre os especialistas, pois erudição e especialização constituem-se
em opostos: a erudição abrindo- se na ânsia de dominar a maior quantidade
possı́vel de saber, a especialização se fechando no pequeno espaço de um co-
nhecimento minucioso.
No Brasil o presente tem muita força; nele se vive intensamente, é ele que se
busca compreender profundamente, na convicção de que nele estão as raı́zes
do futuro. Paı́s em construção, seus habitantes em geral, seus estudiosos em
particular, tem consciência nı́tida de que estão criando algo, de que sua ação
é de importância capital como fator por excelência do provir. E, para chegar
6 CONTEÚDO
No entanto, com esta maneira de ser tão mercante, perdem-se de vista com-
ponentes fundamentais desse mesmo provir: o passado, por um lado, e por
outro lado a multipli-cidade de caminhos que têm sido traçados para cons-
truı́-lo. A necessidade real, no preparo dos estudiosos brasileiros em Ciências
Sociais, é o reforço do conhecimento do passado de sua própria disciplina e
da variedade de ramos que foi originando até a atualidade. Este livro, em
muito boa ora traduzido, oferece a eles um primeiro panorama geral da An-
tropologia e seu lugar no âmbito do saber.
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Maria Isaura Pereira de Queiroz
1
Maria Isaura Pereira de Queiroz é professora do Departamento de Sociologia e pes-
quisadora do Centro de Estudos Rurais e Urbanos da I I FLCH-USP.
CONTEÚDO 7
Introdução
O Campo e a Abordagem Antropológicos
Para que esse projeto alcance suas primeiras realizações, para que o novo
saber comece a adquirir um inı́cio de legitimidade entre outras disciplinas
cientı́ficas, será preciso esperar a segunda metade do século XIX, durante o
qual a antropologia se atribui objetos empı́ricos autônomos: as sociedades
então ditas ”primitivas”, ou seja, exteriores às áreas de civilização européias
ou norte-americanas. A ciência, ao menos tal como é concebida na época,
supõe uma dualidade radical entre o observador e seu objeto. Enquanto que
a separação (sem a qual não há experimentação possı́vel) entre o sujeito ob-
servante e o objeto observado é obtida na fı́sica (como na biologia, botânica,
ou zoologia) pela natureza suficientemente diversa dos dois termos presentes,
na história, pela distância no tempo que separa o historiador da sociedade
8 CONTEÚDO
***
1) O antropólogo aceita, por assim dizer, sua morte, e volta para o âmbito das
outras ciências humanas. Ele resolve a questão da autonomia problemática
de sua disciplina reencontrando, especialmente a sociologia, e notadamente
o que é chamado de ”sociologia comparada”.
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A pesquisa etnográfica cujo objeto pertence à mesma sociedade que i) observador foi,
de inı́cio, qualificada pelo nome de folklore. Foi Van üenncp que elaborou os métodos
próprios desse campo de estudo, empenhando-se em explorar exclusivamente (mas de uma
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Só pode ser considerada como antropológica uma abordagem integrativa que
objetive levar em consideração as múltiplas dimensões do ser humano em so-
ciedade. Certa-mente, o acúmulo dos dados colhidos a partir de observações
diretas, bem como o aperfeiçoamento das técnicas de investigação, conduzem
necessariamente a uma especialização do saber. Porém, uma das vocações
maiores de nossa abordagem consiste em não parcelar o homem mas, ao
contrário, em tentar relacionar campos de investigação freqüentemente se-
parados. Ora, existem cinco áreas principais da antropologia, que nenhum
pesquisador pode, evidentemente, dominar hoje em dia, mas às quais ele deve
estar sensibilizado quando trabalha de forma profissional em algumas delas,
dado que essas cinco áreas mantém relações estreitas entre si.
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Foi notadamente graças a pesquisadores como Paul Rivet e André Leroi-Gourhan
(1964) que a articulação entre as áreas da antropologia fı́sica, biológica e sócio-cultural
nunca foi rompida na França. Mas continua sempre ameaçada de ruptura devido a um
movimento de especialização facilmente compreensı́vel. Assim, colocando-se do ponto de
vista da antropologia social, Edmund Leach (1980) fala d,a ”desagradável obrigação de
fazer ménage à trois com os representantes da arqueologia pré-histórica e da antropologia
fı́sica”, comparando-a à coabitação dos psicólogos e dos especialistas da observação de
ratos em laboratório
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de várias outras, 4 não diz respeito apenas, e de longe, ao estudo dos dialetos
(dialetologia). Ela se interessa também pelas imensas áreas abertas pelas no-
vas técnicas modernas de comunicação (mass media e cultura do audiovisual).
A antropologia social e cultural (ou etnologia) nos deterá por muito mais
tempo. Apenas nessa área temos alguma competência, e este livro tra-
tará essencialmente dela. Assim sendo, toda vez que utilizarmos a partir
de agora o termo antropologia mais genericamente, estaremos nos referindo
à antropologia social e cultural (ou etnologia), mas procuraremos nunca es-
quecer que ela é apenas um dos aspectos da antropologia. Um dos aspectos
cuja abrangência é considerável, já que diz respeito a tudo que constitui
uma sociedade: seus modos de produção econômica, suas técnicas, sua or-
ganização polı́tica e jurı́dica, seus sistemas de parentesco, seus sistemas de
conhecimento, suas crenças religiosas, sua lı́ngua, sua psicologia, suas criações
artı́sticas.
Isso posto, esclareçamos desde já que a antropologia consiste menos no levan-
tamento sistemático desses aspectos do que em mostrar a maneira particular
com a qual estão relacionados entre si e através da qual aparece a especifi-
cidade de uma sociedade. É precisamente esse ponto de vista da totalidade,
e o fato de que o antropólogo procura compreender, como diz Lévi-Strauss,
aquilo que os homens ”não pensam habitualmente em fixar ria pedra ou no
papel”(nossos gestos, nossas trocas simbólicas, os menores detalhes dos nos-
4
Foi o antropólogo Edward Sapir (1967) quem, além de introduzir o estudo da lin-
guagem entre os materiais antropológicos, começou também a mostrar que um estudo
antropológico da lı́ngua (a lı́ngua como objeto de pesquisa inscrevendo-se na cultura)
conduzia a um estudo lingüı́stico da cultura (a lı́ngua como modelo de conhecimento da
cultura).
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Veremos que a antropologia supõe não apenas esse desmembramento (éclatement)
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Evidentemente, o europeu não foi o único a interessar-se pelos hábitos e pelas ins-
tituições do não-europeu. A recı́proca também é verdadeira, como atestam notadamente
os relatos de viagens realizadas na Europa desde a Idade Média, por viajantes vindos
da Ásia. E os ı́ndios Flathead de quem nos fala Lévi-Strauss eram tão curiosos do que
ouviam dizer dos brancos que tomaram um dia a iniciativa de organizar expedições a fim
de encontrá-los. Poderı́amos multiplicar os exemplos. Isso não impede que a constituição
de um saber de vocação cientı́fica sobre a alteridade sempre tenha se desenvolvido
a partir da cultura européia. Esta elaborou um orientalismo, um americanismo, um
africanismo, um oceanismo, enquanto que nunca ouvimos falar de um ”europeı́smo”, que
teria se constituı́do como campo de saber teórico a partir da Ásia, da África ou da Oceania.
Lembremos que a antropologia só começou a ser ensinada nas universidades há al-
gumas décadas. Na Grã-Bretanha a partir de 1908 (Frazer em Liverpool), e na França a
partir de 1943 (Griaule na Sorbonne, seguido por Leroi-Gourhan).
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O pensamento antropológico, por sua vez, considera que, assim como uma
civilização adulta deve aceitar que seus membros se tornem adultos, ela deve
igualmente aceitar a diversidade das culturas, também adultas. Estamos,
evidentemente, no direito de nos perguntar como a humanidade pôde per-
manecer por tanto tempo cega para consigo mesma, amputando parte de si
própria e fazendo, de tudo que não eram suas ideologias dominantes sucessi-
vas, um objeto de exclusão. Desconfiemos porém do pensamento - que seria
o cúmulo em se tratando de antropologia - de que estamos finalmente mais
”lúcidos”, mais ”conscientes”, mais ”livres”, mais ”adultos”, como acaba-
mos de escrever, do que em uma época da qual seria errôneo pensar que está
definitivamente encerrada. Pois essa transgressão de uma das tendências do-
minantes de nossa sociedade - o expansionismo ocidental sob todas as suas
formas econômicas, polı́ticas, intelectuais - deve ser sempre retomada. O que
significa de forma alguma que o antropólogo esteja destinado, seja levado por
alguma crise de identidade, ao adotar ipso facto a lógica das outras socie-
dades e a censurar a sua. Procuraremos, pelo contrário, mostrar nesse livro
que a dúvida e a crı́tica de si mesmo só são cientificamente fundamentadas
se forem acompanhadas da interpelação crı́tica dos de outrem.
Dificuldades
4) Uma quarta dificuldade provém do fato de que nossa prática oscila sem
parar, e isso desde seu nascimento, entre a pesquisa que se pode qualificar de
fundamental e aquilo que é designado sob o termo de ”antropologia aplicada”.
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Sobre a antropologia aplicada, cf. R. Bastide, 1971
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A maioria dos antropólogos ingleses, especialmente, realizou suas pesquisas a pe-
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Foi com ela, inclusive, que se deu o inı́cio da Antropologia, durante a co-
lonização. No extremo oposto das atitudes ”engajadas”das quais acabamos
de falar, encontramos a posição determinada de um Claude Lévi-Strauss que,
após ter lembrado que o saber cientı́fico sobre o homem ainda se encontrava
num estágio extremamente primitivo em relação ao saber sobre a natureza,
escreve:
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As mutações de comportamentos geradas por essa forma de civilização mundialista
podem também evidentemente ser encontradas nas nossa; próprias culturas rurais e ur-
banas. Em compensação, parecem-me bastante fracas aqui no Nordeste do Brasil, onde
começou a redigir este livro
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5) Uma quinta dificuldade diz respeito, finalmente, à natureza desta obra que
deve apresentar, em um número de páginas reduzido, um campo de pesquisa
imenso, cujo desenvolvimento recente é extremamente especializado. No fi-
nal do século XIX, um único pesquisador podia, no limite, dominar o campo
global da antropologia (Boas fez pesquisas em antropologia social, cultural,
lingüı́stica, pré-histórica, e também mais recentemente o caso de Ktoeber,
provavemente o último antropólogo que explorou: com sucesso uma área tão
extensa). Não é, evidentemente, o caso hoje em dia. O antropólogo considera
agora – com razão – que é competente apenas dentro de uma área restrita 13
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A antropologia das técnicas, a antropologia econômica, polı́tica, a antropologia do
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