A Era Da Pós-Verdade: As Fake News Como Desafio Ao Jornalismo Contemporâneo
A Era Da Pós-Verdade: As Fake News Como Desafio Ao Jornalismo Contemporâneo
A Era Da Pós-Verdade: As Fake News Como Desafio Ao Jornalismo Contemporâneo
Rui Paiva
Resumo:
Pós-verdade foi eleita a palavra do ano de 2016 para os dicionários de Oxford.
Apesar de não ser um termo novo, foram os acontecimentos ocorridos em 2016 – a eleição
de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos e o referendo britânico que
resultou na saída do Reino Unido da União Europeia – que a vulgarizaram. Durante a
campanha destes atos políticos, foram difundidas propositadamente milhares de falsas
notícias, que foram decisivas na formação da opinião pública, influenciando o resultado
final dos atos eleitorais. Estas falsas notícias, comumente designadas pelo anglicismo fake
news, foram alimentadas pelas redes sociais que se assumem, cada vez mais, como fonte
de informação na sociedade moderna. Só que as redes sociais, além de fornecerem
informação sem filtro, permitindo a qualquer usuário que crie o seu próprio conteúdo,
são, também, um espaço que fomenta as emoções em detrimento da racionalidade. Assim,
entramos numa das características mais visíveis da era da pós-verdade: os factos objetivos
têm menos influência do que o apelo às emoções na formação da opinião pública. É neste
contexto que o jornalismo deve realçar os seus valores originais, sendo a garantia da
informação rigorosa e plural, confirmando a veracidade dos assuntos da agenda mediática
e afirmando-se como o meio mais credível e confiável na era da pós-verdade. Este ensaio
procura refletir sobre as práticas jornalísticas que avalizam a reafirmação da sua
legitimidade, assegurando a supremacia da verdade noticiosa sobre as fake news.
Janeiro de 2018
A ERA DA PÓS-VERDADE: AS FAKE NEWS COMO DESAFIO AO JORNALISMO CONTEMPORÂNEO
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Estes números espelham a projeção das fake news e constituem-nas como uma
ameaça à democracia. Tal como refere Mark Thompson, diretor do New York Times, num
artigo no The Guardian, a luta nas democracias já não se trava entre o povo e a elite ou
entre a direita e a esquerda, a batalha que agora se impõe é entre os factos e a mentira
(Thompson, 2017). Batalha esta que deve ser liderada por três agentes: pelos
proprietários das redes sociais, para que afetem o sistema da sua plataforma de modo a
evitar a fácil propagação de fake news; pela classe política, que deve atuar através da
criação de legislação que condene os criadores de notícias falsas e através do lançamento
de políticas que combatem a iliteracia tecnológica e informativa; e pela classe jornalística,
que deve reafirmar os seus valores primitivos. Será na classe jornalística que nos
debruçaremos, pois se as fake news se apresentam como uma ameaça ao rigor informativo
e a uma sociedade esclarecida, o jornalismo deve aproveitar a situação a seu favor,
tornando-a numa oportunidade de recuperar a sua credibilidade e de afirmar os seus
valores originais.
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Numa época onde a fronteira entre verdade e mentira nunca foi tão ténue, o
jornalismo, pretendendo ser o garante da informação verdadeira e credível, não pode
dispensar o fact-checking. O fact-checking é uma modalidade jornalística assente na
verificação da veracidade dos assuntos expressos enquanto factos, que a partir do início
do século XX começou a se constituir como género jornalístico autónomo, que procura,
à posteriori, confirmar ou desmentir factos enunciados por uma determinada figura de
poder. Este uso do fact-checking, limitado a confirmar ou a desmentir um determinando
discurso, é datado de uma época em que o jornalismo era o principal construtor da
realidade. Atualmente, além de confirmar o que foi dito, o fact-checking deve estender a
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este fact-checking levado ao extremo, afigura-se, ainda, como uma via precipitada pela
limitação a que condena a atividade dos media. Uma mudança na função crucial do
jornalismo seria remeter a profissão a uma posição secundária na construção do debate
público, o que é o contrário do defendido até aqui: pretende-se que o jornalismo se afirme
como meio que forneça a verdade e que não adote, apenas, uma atitude passiva de
polígrafo das histórias propagadas por outrem. Como comprovam as fake news, o
jornalismo já não é o único construtor da realidade, mas, note-se que ainda é investido de
um papel determinante na formação da opinião pública. Imiscuir-se da função primitiva
de informar seria, não só, reduzir a sua importância, como deixaria o público à mercê das
fake news e de toda a confusão mediática. O ruído e a mentira não seriam domados e esta
alteração implicaria um retrocesso no sistema informativo.
Ainda assim, é crucial que o jornalismo se foque no essencial, isto é, que publique
apenas as notícias revestidas de interesse público. Como já foi referido, as fake news
vivem na confusão mediática que é gerada pela enorme quantidade de informação
partilhada no espaço público. Atualmente, praticamente todos os órgãos de comunicação
social compõem o seu esquema noticioso, não só através de notícias de interesse público,
mas também, - e em certos casos, sobretudo - recorrendo a fait divers e a diversas histórias
desprovidas de qualquer função informativa e que só obstroem a fomentação de espírito
crítico. Esta tendência tem vindo a intensificar-se ao longo dos anos e o resultado são
várias notícias sobre o novo carro de um jogador de futebol ou o novo penteado da atriz
da novela – só para mencionar alguns casos recorrentes. Este tipo de notícias aparece em
maior escala nas edições online dos jornais (principalmente porque as grandes
reportagens ou as análises mais extensas ainda são destinadas ao formato em papel), o
que facilita a virilização dos factos alternativos. Através da frenética publicação de todo
o tipo de conteúdo, descredibiliza-se o filtro de seleção do jornalista, e contribui-se para
a balbúrdia de factos e opiniões em que vivemos. Não quer isto dizer que as editorias se
devam constituir somente de hard news, mas que se deve retomar aos critérios de seleção
do jornalismo tradicional, onde há espaço para soft news, condenando o excessivo
destaque dado a temas que outrora eram apenas destinados aos tabloides. Se o jornalismo
pretende uma afirmação através do rigor e assumir-se enquanto detentor dos factos e
organizador do conteúdo noticioso, não deve ser confuso e marcado por histórias que
descredibilizam a seriedade do meio.
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Todavia, importa ainda salientar que uma das principais causas para a força das
fake news é a iliteracia digital do público. Para combatê-las, os cidadãos devem ser
sensibilizados para o novo tipo de consumo noticioso. Para William Bladke (2017), da
Universidade de Western, este é mesmo o cerne da questão: as fake news são uma
consequência da iliteracia de informação da população e só deixarão de ser uma ameaça
quando a diferença entre as publicações noticiosas que aparecem nos feeds das redes
sociais estiver nítida. Sendo a formação para a informação no digital uma competência
dos governos, certo é que o jornalismo também deve ter uma palavra a dizer no combate
à iliteracia informativa. Esta ideia pode afigurar-se como romântica, fazendo evocar os
primórdios do jornalismo onde se defendia a atuação do jornalismo enquanto educador
da sociedade. Mas, a verdade é que os jornalistas devem praticar esta função pedagógica,
seja na exposição noticiosa, seja na fomentação da reflexão coletiva – tal como fizeram
no passado quando ensinavam a educação para os media nas escolas. É preciso formar
uma tomada de consciência de que nem tudo o que se vê nas redes, por mais credível que
possa parecer, é verdade, e os jornais devem contribuir para isso.
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jornalismo local, pela sua facilidade em estabelecer laços de confiança com a população,
torna-se capaz de dotar a sua história de forte credibilidade devido à proximidade entre o
jornalista e o acontecimento. Na teoria do jornalismo, aprende-se que um dos critérios da
seleção da notícia, o valor-notícia, é o grau de proximidade das pessoas com o
acontecimento (Wolf, 1999). A massificação do jornalismo ajudou a quebrar o grau de
afetividade que o público tinha com os seus jornais muito devido ao alienamento face às
realidades locais. A credibilidade que o jornalismo procura só é possível se o trabalho
jornalístico se aproximar das pessoas, motivando-as para o consumo rigoroso da
informação. Numa época onde as notícias são escoadas pelo virtual sem qualquer
conhecimento do terreno, a aposta no jornalismo local enquanto jornalismo de confiança
pode ser uma via de sucesso.
Por último, o jornalismo de especialidade também deve ser reforçado. Tal como
o jornalismo local, o jornalismo especializado tem vindo a perder espaço nas redações,
devido a razões económicas. Contudo, a especialidade é um fator chave para a
credibilização do conteúdo. A organização de jornalistas por temas, tornando-os figuras
legítimas e credíveis aos olhos do público, permite a construção de uma narrativa
confiável. Através de jornalistas vocacionados para determinadas áreas, aprofunda-se o
grau de rigor da notícia, o que protegerá o jornalismo e o público da ameaça das falsas
notícias: o jornalismo, porque tendo especialistas em determinadas áreas terá uma
propensão menor para ser atraído pela confusão da veracidade das histórias; o público,
porque reconhecerá no conteúdo informativo de especialidade a seriedade para a ele
recorrer quando precisar de confirmar a veracidade dos assuntos. Indo ao encontro da
segmentação da sociedade, o jornalismo de especialidade exige uma forte proximidade
com a temática abordada, pelo que capacita o jornalista para a verificação da veracidade,
tornando-o mais idóneo para o desmascaramento de uma fake news.
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