Artigo Psicofarmacologia o Sintoma Sem Sujeito
Artigo Psicofarmacologia o Sintoma Sem Sujeito
Artigo Psicofarmacologia o Sintoma Sem Sujeito
Segundo a autora, trata-se de uma doença que “por muitos anos pode passar
despercebida. Alguns nem sabem que têm o problema”. Somos informados de que esta “é
uma condição rara, que parece ocorrer em menos de 5% das pessoas. No entanto, ela é mais
comum entre mulheres”(BASSETTE, 2005, p.C1). O “motivo” por trás do comportamento
apresentado pelos pacientes, sempre segundo a autora, “ainda é uma incógnita para a
medicina. Não existem estudos específicos sobre esse distúrbio, apenas relatos clínicos”. O
que não impede o psiquiatra Joel Renno Junior, da USP, de comunicar a “principal hipótese”:
segundo esta, os portadores desse distúrbio teriam “uma diminuição da quantidade de
serotonina e dopamina – neurotransmissores responsáveis pelo controle do impulso – na fenda
sináptica (espaço entre um neurônio e outro)”.
Se o leitor ainda não descobriu de qual “distúrbio” se trata, ou pretende conferir o seu
palpite, eis a resposta: cleptomania. Ao apresentar o presente artigo em jornadas de
psicanálise, para um público de profissionais “psi” e estudantes, essa revelação
invariavelmente provocou uma surpresa inicial, seguida pelo riso. Não à toa, pois é
impossível ignorar o efeito cômico involuntário suscitado por essa descrição reducionista de
um quadro clínico complexo, que se caracteriza pela compulsão a furtar objetos e que muitas
vezes coloca o paciente em situações de risco.
Se uma enorme variedade de quadros pode ser reduzida a uma causa comum –
diminuição da quantidade de neurotransmissores – e a um tratamento com praticamente as
mesmas substâncias – em sua maioria, antidepressivos –, a classificação perde o seu sentido.
Assistimos, então, a uma modificação radical e sem precedentes da própria nosologia
psiquiátrica. Tal modificação desconsidera, antes de tudo, a história da psiquiatria, a qual,
sabemos, possui vários pontos em comum com a psicanálise. Ambas, psicanálise e psiquiatria,
sempre sustentaram um diálogo profícuo, sobretudo – mas não somente – na Europa. Se
Freud reconhecia a importância do ensino de Charcot no desvendamento do sintoma histérico,
Lacan (1998, p. 69-70), por sua vez, menciona com destaque o nome de Clérambault entre
aqueles que mais contribuíram para a sua formação. A publicação da tradução brasileira dos
textos e prontuários desse mestre da psiquiatria francesa, que definiu o automatismo mental
(CLÉRAMBAULT, 2009) é uma excelente oportunidade para conhecermos o seu
procedimento teórico e clínico. O que podemos constatar, ao ler esses textos com cerca de um
século, é a precisão do trabalho teórico de um mestre, que elabora uma nosologia atento ao
detalhe que distingue cada quadro, sempre com base na observação clínica.
No âmbito da clínica psiquiátrica, uma explicação genérica que serve tanto para a
cleptomania quanto para a bulimia, quiçá para a depressão, pode ser o caminho mais fácil,
mas, certamente, não aquele que vai auxiliar a desvendar o fenômeno estudado em sua
complexidade. Ora, por que a psiquiatria contemporânea abriria mão da sua clínica, da sua
história, para aderir a uma classificação empobrecida, que dispensa a clínica e prefere
enfatizar supostas semelhanças em detrimento da singularidade de cada quadro?
Para fornecermos uma resposta precisa a essa questão é necessário considerar o papel
da biologia na contemporaneidade, não somente no campo da ciência, mas na própria cultura.
Segundo Charles Melman (2004, p.31), momentos históricos diferentes apresentam diferentes
“ciências diretoras” ou “ciências mestras” – aquelas disciplinas que funcionam como
direcionadoras do pensamento em determinada época, atuando como uma espécie de visão de
mundo. Assim se passou com a geometria na Antiguidade clássica; com a linguística nos anos
60/70 e com a biologia nos dias de hoje. É inegável a hegemonia da biologia na cultura
ocidental contemporânea, devido em grande parte (mas não somente, como veremos) às suas
descobertas e realizações materiais. Sua influência pode ser constatada mesmo na cultura de
massas, determinando a maneira como percebemos os fenômenos relativos ao que se costuma
chamar de “conduta humana”. A grande mídia, voltada para o público leigo, acolhe com
entusiasmo as hipóteses mais extravagantes, tomando-as como fatos comprovados. Estamos
prontos a aceitar que existe um gene para a crença em Deus, assim como para o alcoolismo e
a esquizofrenia, ou ainda para a preferência por animais “fofinhos”; que a atração sexual entre
os seres humanos é determinada pelas leis da evolução e da seleção natural, que definem as
nossas escolhas e preferências mais íntimas nesse campo.
Essa concepção positivista do que seria uma metodologia científica gera um método
inusitado para a construção de um manual de classificação das doenças. Nas classificações
anteriores, os quadros clínicos eram ordenados a partir da sua etiologia, estabelecida, por sua
vez, com base na experiência clínica e na teoria. No DSM, em contrapartida, a causa é
determinada ao inverso: é a resposta ao medicamento que vai determinar a posição do quadro
na classificação. Desse modo, para espanto dos profissionais formados em um meio que
valorizava a experiência clínica, quadros extremamente diferentes são reunidos na mesma
classificação, com a justificativa de que respondem aos mesmos medicamentos – logo, devem
ter uma causa comum. Como a variedade de medicamentos é limitada, a classificação,
necessariamente, deve ser limitada.
Tal noção reduz o quadro clínico a uma manifestação observável, delimitando aquilo
que vai ser objeto do tratamento, ainda que esse quadro tenha de ser fracionado em dois ou
mais “transtornos”. O mesmo paciente, nesse caso, poderá ser medicado para cada transtorno,
mesmo que tal procedimento resulte muitas vezes num coquetel de medicamentos.
Tal metodologia de classificação segue uma lógica semelhante àquela de um troglodita
que, na pré-história, saísse para caçar e pescar, armado com uma lança de ponta de pedra. À
margem de um córrego, ele alvejaria alguns peixes. No meio da mata, acertaria um ancestral
do javali. Voltando para sua tribo com o fruto de sua expedição, seria surpreendido por um
tigre, que conseguiria, todavia, matar, graças à sua destreza. Mais tarde, diante da fogueira,
nosso ancestral refletiria sobre os acontecimentos do seu dia atribulado e esboçaria uma
classificação dos animais por ele encontrados. Segundo tal classificação, peixes, javalis e
tigres pertenceriam à mesma categoria: animais que podem ser mortos por uma lança.
Outro fator que não podemos deixar de considerar na aceitação e difusão da nova
classificação é o fato de ela delimitar o tratamento à medicação – abrindo exceção apenas para
a terapia comportamental como coadjuvante, como vimos no artigo citado no início. O poder
econômico da indústria farmacêutica é tão evidente que chega a ser um lugar-comum
mencioná-lo. Os médicos convivem no seu cotidiano com o poderoso lobby dessa indústria,
que patrocina seus congressos e inclui ofertas generosas, como brindes e viagens com
hospedagem em hotéis cinco estrelas. A prática do controle de receitas para medir a fidelidade
dos médicos aos seus produtos (COLLUCCI, 2005), já é conhecida há muito. Mais
impressionante é a denúncia, feita pela revista PLoS Medicine, da cooptação de pesquisadores
para assinarem artigos preparados por indústrias farmacêuticas, contendo conclusões
favoráveis a seus produtos (MIRANDA; RIGHETTI, 2010). Quando se sabe que mais da
metade dos responsáveis pela nova edição do DSM recebem oficialmente financiamento da
indústria farmacêutica, a neutralidade desse instrumento é, no mínimo, questionável.
Os psicofármacos constituem um ramo da indústria farmacêutica em plena ascensão,
assim como aquele dos medicamentos para a disfunção erétil (nova terminologia
politicamente correta para a impotência). Nas últimas décadas, a psicofarmacologia ampliou o
seu campo, antes restrito às psicoses e doenças neurológicas, para o tratamento dos sintomas
neuróticos. Essa ampliação foi facilitada com a adoção da noção de “distúrbio” ou
“transtorno”, que, como vimos, dilui a distinção entre neurose e psicose, dando aval para o
tratamento do sintoma isolado de uma etiologia. Trata-se aqui de uma conhecida estratégia
empresarial, que visa expandir o mercado, atingindo novos setores. No caso, a expansão se dá
a partir da psicose para a neurose, para chegar, na atualidade, ao “comportamento humano”,
configurando o que é chamado de medicalização da vida, ou seja, a inclusão de traços ou
condições próprios da vida psíquica cotidiana, como o luto, na categoria do patológico, sendo,
portanto, passíveis de serem medicados.
Nos últimos anos, assistimos também a uma expansão na escala da faixa etária dos
consumidores: pesquisas recentes constatam o aumento exponencial do número de crianças e
adolescentes medicados com psicofármacos, sobretudo nos EUA, mas também no Brasil.
Contribuem para isso, sem dúvida, a generalização do diagnóstico de “síndromes” ou
“transtornos”, como o TDAH, para uma série de condutas infantis, relativas a dificuldades no
ambiente familiar ou na escola, e a ampla difusão de artigos sobre novos diagnósticos,
contendo listas de comportamentos “estranhos”, que convidam os pais a classificarem seus
filhos, em revistas sobre crianças voltadas para o público leigo. Esse furor diagnóstico não é
sem consequências sobre as crianças:
Essa ousadia só foi possível, como vimos, devido a um dado cultural relevante – a
hegemonia da biologia na cultura hodierna como ciência com o poder de explicar os
fenômenos, não apenas relativos ao funcionamento do organismo, mas da psique (da Seele,
como dizia Freud). Essa aposta no poder explicativo da biologia faz com que se aceite como
já realizadas promessas lançadas para o futuro. Um fator que deve ser levado em conta nessa
aceitação da explicação biológica dos sintomas psicopatológicos, é o alívio psicológico que
advém da exclusão do sujeito e da sua responsabilidade sobre o seu sintoma. Se a difusão do
discurso psicanalítico na cultura popularizou essa noção de responsabilidade ante o seu
desejo, seus críticos – antigos e atuais – souberam manipulá-la para valer-se da boa-fé do
público leigo. Sob a pena desses críticos, responsabilidade é distorcida como culpa. Essa
campanha de difamação é tão ampla e acirrada que muitos pais evitam levar seus filhos ao
psicanalista porque foram convencidos de que este os acusará, como num tribunal, de
provocar o sintoma destes.
Nada mais tranquilizador para um leigo, que, além do sofrimento do seu sintoma, sofre
por temer ser considerado culpado por este ou pelo sintoma dos seus filhos, do que esta noção
de um determinismo biológico que exclui a sua responsabilidade: sua impotência nada tem a
ver com o seu desejo; a inquietação do seu filho se deve a uma síndrome neurológica, etc. A
explicação organicista eterniza o estágio do sintoma percebido como corpo estranho e
cronifica o desconhecimento do paciente em relação ao seu desejo.
Referências: