Teoria Da Mágoa Residual
Teoria Da Mágoa Residual
Teoria Da Mágoa Residual
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Fragmento do texto (livro) de Heitor Chagas de Oliveira, “O Jogo da Malha: recursos humanos e
conectividade”, Rio de Janeiro, Ed. Qualitymark, 2003, p. 23-32.
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Ainda hoje, entretanto, no início dos anos 2000, o que muitas vezes vemos por aí é, na
melhor das hipóteses, algo oriundo da década de 1930, ligado às chamadas escolas de
relações humanas.
Por sua vez, o mecanicismo como suporte mental para o autoritarismo das culturas
gerenciais resistiu, também, à onda aparentemente (apenas aparentemente) passageira
da Qualidade e não logrou grandes alterações. Ainda há muito a percorrer no caminho da
qualidade das relações de trabalho.
Na prática, o máximo que se avançou em alguns lugares foi descobrir as virtudes
profiláticas do tapinha nas costas e outras manipulações, no fundo, ingênuas. As
empresas que mais honestamente se preocuparam com o assunto foram buscar o auxílio
das universidades. Muitas, nos Estados Unidos, na Europa e no Japão, cresceram e se
expandiram a partir de estudos sérios sobre o comportamento. Outras tentaram apenas
imitar.
As pessoas continuam humanas. Com sentimentos, aspirações, necessidades e
solidariedade. Já se estudou muito, em cursos, livros e seminários, que o comportamento
das pessoas é o resultado de como elas percebem os fatos. Sabe-se que os fatos são
percebidos a partir do reator individual de cada personalidade. Sabe-se que, entre os
componentes deste reator, estão os valores, as habilidades, as tendências natas e inatas
e, até mesmo, os possíveis componentes inconscientes.
Na hora de enfrentar as novas realidades, na sociedade e nas empresas, parece que
tudo isso foi esquecido. Se é que foi aprendido. Ainda não está claro o poder das pessoas
associadas.
Karl Gustav Jung falou do inconsciente coletivo. Douglas McGregor apresentou a “
profecia do suscetível”, que, em tradução livre e super-resumida, diz que, se tratar
sistematicamente alguém como idiota, este acabará reagindo como idiota. E eu pergunto: e
se tratar alguém como inimigo? E se se tratar alguém sistematicamente com fria
indiferença e impessoalidade? As mágoas residuais a que me refiro tem a ver com tudo
isto. E com muito mais.
A preservação, a sobrevivência, a continuidade, a expansão e o sucesso das
organizações passam, necessariamente pela educação. A mais urgente é a educação
gerencial, simplesmente porque, no âmbito das empresas, os gerentes tem um papel
(ainda que não o exerçam em plenitude) de líderes, de formadores de opinião e de
tomadores de decisão. E, se possível, de educadores. Educadores conectados com a
cidadania dos empregados.
A educação gerencial, não pode deixar de incluir como básica e fundamental a
sensibilidade social. Sendo taxativo: isto não tem nada a ver com filantropia ou caridade. É
cidadania. Elementar no convívio democrático.
Marshall McLuhan disse que ”o veículo é a mensagem”. O chefe, o gerente, o
supervisor são veículos vivos. São mensagens vivas da direção da empresa. Muitas vezes,
alguns, ou pelo papel que desempenham ou pelas circunstâncias em que atuam, quase se
confundem com a própria empresa. Alguns há que tomam horrível a imagem da empresa.
As mágoas e a mágoa residual, compostas dos pequenos ressentimentos do dia-a-dia,
formam um ótimo conjunto para os adversários e competidores. Quantas vezes, em
briefings de candidatos a funções executivas, lêem-se referências à insatisfação com a
empresa? Ou mesmo, em entrevistas de seleção, quanto partido já se tirou da insatisfação
com a empresa onde trabalha o candidato insinuando-se que, na nova oportunidade,
encontrará clima melhor e relações mais sadias?
Quando a pessoa não aguenta mais, vai procurar outra empresa. Quando a encontra,
muda-se de malas e bagagem. E quando não encontra outra empresa? E quando o
mercado está recessivo? Vai ficando. Ainda que insatisfeita e desmotivada.
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As mágoas e a mágoa residual a que me refiro não podem ser ignoradas. Também
não se corrige este mal de repente, com passes de mágica. Há que investir tempo,
atenção, estudos, pesquisa social, comunicação e dinheiro. Resta saber se vale a pena, ou
não, o investimento. Cada organização dará sua resposta. Muitas já deram.
É preciso que se descubra que as organizações são sistemas sociotécnicos, em
que há os seguintes componentes: o sócio, o técnico, as relações entre ambos e as
relações de cada conjunto sociotécnico com o ambiente que o envolve. O único dos quatro
componentes que não tem vida própria é o técnico. O único fator que confere vitalidade
a todo o sistema e a cada um dos seus componentes é a pessoa humana e seu
potencial de relacionamento, isto é, a porção “sócio” (social) do conjunto sociotécnico.
A porção “sócio” e a porção “técnico” devem estar integradas. O social interagindo
com o técnico, e o técnico interagindo com o social.
As mágoas residuais nascem do fato basilar de ainda se ter das pessoas a
concepção de peças das engrenagens. Peças são de forma e tamanho especificados:
devem ser usadas como imutáveis até que sejam descartadas. São produzidas em
série ou em fornos e forjas. Devem ser resistentes a deformações, corrosões etc.
“Habitam” um só lugar e se relacionam exclusivamente com o mecanismo de que fazem
parte.
Para quem sabe “ler” os fatos e “viver” as organizações, a mágoa residual, antes de
ser objeto de teoria, é algo que tem de se constatar e, se for o caso, tratar. Tratar
terapeuticamente. Vale a redundância. O tratamento começa pela percepção dos sinais
e dos sintomas.
Esta “teoria” é apenas a denominação que estou atribuindo à percepção do conjunto
mais visível dos sinais. Quem está nas organizações perceberá se há, ou não, em cada
um deles, os sintomas que poderão levar à confirmação de um diagnóstico.
Não sei bem por que, mas ouvi, certa vez, de viva voz, John Naisbit referir-se a: “Como
fazer planejamento e administração estratégica, sem ter visão estratégica?”.
Será que a doença da especialização não nos permite fazer analogias e acrescentar
este parágrafo justamente aqui, onde se fala sobre administração de recursos humanos?
Concluindo e tornando óbvio o raciocínio que desenvolvi até este ponto:
As mágoas residuais resultam das pequenas insatisfações não percebidas, decorrentes
do descuido com as condições de trabalho e da insensibilidade no trato interpessoal, além
do evidente desrespeito a que se tem chegado em decorrência da excessiva rigidez ou
mesmo de posturas preconceituosas com qualquer empregado. Pior ainda: quando se
trata mal e se demite, sem maiores cuidados, exatamente um empregado que era tido
como exemplar. Ou alguém que já havia alcançado um alto nível de importância para a
organização. Os que ficam sentem os riscos de o fato vir a repetir-se com eles.
As mágoas residuais funcionam, afinal, como uma acumulação de poeira, que vai se
tornando uma espécie de fator de isolamento de energia entre o corpo de empregados e
um determinado gerente ou dirigente, com forte tendência a se alastrar e generalizar,
isolando de fato a empresa de seus empregados. A energia não consegue mais passar.
Torna-se muito difícil, ou mesmo impossível, a conectividade.
Esforços, campanhas internas de mobilização para o incremento da produtividade podem
oferecer resultados aquém dos desejados ou, ainda, uma certa lentidão sistemática na
resposta das pessoas ao ritmo novo que se pretenda. São consequências da isolante
“camada de poeira acumulada” (semelhante àqueles flocos que se escondem atrás de
grandes armários ou móveis difíceis de arrastar) das mágoas residuais.
No setor público, as mágoas residuais, entre outros fatores, têm provocado, ao longo
dos anos, especialmente após 1989, um fenômeno que eu interpreto como responsável
pelo “descolamento” das corporações das instituições a que devem servir. As pesquisas de
clima organizacional talvez não detectem as mágoas residuais. Podem indicar alguns
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sinais. Somente o diálogo aberto entre pessoas que se respeitam abrirá o caminho para
um novo nível de qualidade nas relações. Este não será um diálogo entre chefe e
subordinado, e sim entre pessoas que, no mínimo se respeitam. Respondam a si mesmos
os leitores se não seria o caso de acrescentar-se ao título deste capítulo a pergunta: com
quem é mesmo que você conta?