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Vasquez Filosofia Da Praxis

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COLEÇÃO PENSAMENTO SOCIAL LATINO-AMERICANO

FILOSOFIA DA PRÁXIS

ADOLFO SÁNCHEZ VÁZQUEZ


res sao
AÑOS

POPULAR
CLACS
O

Sánchez Vázquez, Adolfo


Filosofia da práxis - 1a ed. - Buenos Aires : Consejo
Latinoamericano de Ciencias Sociales - CLACSO ; São Paulo
Expressão Popular, Brasil,
2007.
488 p. ; cm. (Pensamento social latino-americano dirigida por Emir
Sader)

Traducido por: Maria Encarnación Moya


ISBN 978-987-1183-71-5

1. Filosofias Políticas. 2. Marxismo. 3. Epistemologia. l. Moya,


Marfa Encarnación, trad. II. Título
CDD 320.531

Outras palavras chave selecionadas pela Biblioteca Virtual de


CLACSO:
Fitosofia Política / Marxismo / Práxis I Epistemologia / Ludwig
Wilhelm Friedrich Hegel / Karl Marx / Vladimir ilich Ulianov
Lênin I Alienação / Classes Sociais

A CONCEPÇÃO DA PRÁXIS EM lvfARx

COM MARX, o problema da práxis como atividade humana


transformadora da natureza e da sociedade passa para o primeiro
plano. A filosofia se torna consciência, fundamento teórico e seu
instrumento.
A relação entre teoria e práxis é para Marx teórica e prática;
prática, na medida em que a teoria, como guia da ação, molda a
atividade do homem, particularmente a atividade revolucionária;
teórica, na medida em que esta relação é consciente.

NECESSIDADE TEÓRICA E PRÁTICA DE UMA FILOSOFIA DA PRÁXIS

A filosofia anterior teve, em maior ou menor grau, conseqüências


práticas, independentemente das intenções dos filósofos; nesse
sentido, a relação entre teoria e prática, mesmo possuindo um caráter
prático, não é teórica, já que sua plasmação efetiva e suas
conseqüências na vida real não só não são desejadas e reconhecidas,
como são, inclusive, repelidas. Dessa perspectiva, a prática é vista
com receio, pois só viria a empanar a pureza da teoria (atitude dos
gregos e, de modo geral, da filosofia idealista pré-hegeliana). Só uma
teoria que veja seu próprio âmbito como um limite que deve ser
transcendido mediante sua vinculação consciente com a prática pode
estabelecer suas relações com esta atendendo a uma dupla — e
indissolúvel — exigência teórica e prática.

109
FILOSOFIA DA PRÁXIS
O mais alto grau de consciência da práxis — antes de Marx — é
encontrado, como vimos, na filosofia idealista alemã e, particularmente, em
Hegel. Como já assinalamos, l o idealismo alemão é contemporâneo do
movimento revolucionário francês que dá à burguesia sua plena hegemonia
no terreno político e social. próprio Hegel reconheceña a existên cia de uma
vinculação entre a filosofia e a realidade revolucionária de seu tempo, mas
foi Marx quem mostrou claramente a relação entre a filosofia
idealista e a prática revolucionária de sua épocàv Com a
particularidade de que via essa relação à luz das condições peculiares de um
país como a Alemanha, que, por seu anacronismo histórico, não estava em
condições reais de dar um passo semelhante ao que já se dera na França. Mas,
observa Marx, o que os alemães não podem fazer, eles o pensam; isto é, o
fazem no terreno do pensamento. 2 Hegel também dissera, é certo, que a
revolução desencadeada na realidade efetiva pelos franceses estava presente
entre os alemães sob a forrna de pensamento. Mas uma revolução que não
ultrapassa esse marco deixa intacta, necessariamente, a realidade efetiva e,
com isso, não faz mais do que sancioná-la. Assim, portanto, ainda que Hegel
formule o problema das relações entre filosofia e realidade, seu idealismo
absoluto aspira a deixar o mundo como ele é, pois, a seu ver, a missão da
filosofia é dar razão do existente, e não traçar caminhos para a transformação
do real. Ou, nas próprias palavras de Hegel em suas Lições sobre a história
da filosofia: "O fim último e o interesse da filosofia é conciliar o
pensamento, o conceito, com a realidade".
Pode ocorrer também que a relação entre teoria e práxis seja
consciente, sem que por isso tenha conseqüências práticas revolucionárias.
E o que vemos no caso dos filósofos críticos neo-hegelianos, que pretendem
transforrnar a realidade efetiva por meio do mero exercício da crítica, da
pura atividade do pensamento. A atividade prática real dissolve-se, assim,
em uma simples atividade teórica. Mas esse teoricismo absoluto é
inseparável de um idealismo tão ou mais absoluto que o do próprio Hegel.
É certo que, como já assinalamos, Hegel concebe a práxis com um
conteúdo rico e profundo (como trabalho humano na Fenomenologia do
espírito, ou como Idéia prática na Ciência da lógica). É tão rico esse
conteúdo que, uma vez desmistificado, permitirá que tanto Marx (nos
Manuscritos econôlffico-filosóficos de 1844) como Lênin (em seus
Cadernos filosóficos), descubram nele novas riquezas. Mas, sem dúvida,
em Hegel o prático não se sustenta por si mesmo, mas sim, como um
momento do autoconhecimento do Espírito e integrado, portanto, como
degrau teórico para o fim na teoria do Absoluto.

1 Ver o cap. 1 desta primeira parte,


2 "Em política, os alemães pensaram o que oufros povos realizaram. A Alemanha era sua
consciência teórica" (C Marx, En torno a Ia crítica de Ia filosofia det derecho, de Hegel,
Introducción, em C. Marx e F. Engels, La Sagrada Familia y otros escñtos filosóficos tradução
de W. Roces, México, Grijalbo, 1958, p. 9).

110
A CONCEPÇÃO DA PRÁXIS EM
IVI-A-RX

Mas essa teorização absoluta — e, portanto, fechada — acaba


por imobilizar a própria realidade. O sis temia afoga o rnétodo. Tal é
a contradição que os jovens hegelianos não deixarão de apontar e que
mais tarde Engels enfatizará — entre Espírito que se Inove e se
desdobra, mas que ao mesmo tempo se fecha sobre si ITIes1T10 e
acaba por aceitar a realidade COITIO ela é. 1 É claro que para Hegel
não havia tal contradiçãop pois a verdade apenas se dá como
totalidade; e essa totalidade, se o é vercladeiramente, tem de ser
fechada. O espírito é o que Cleve ser. O ser está dado com todas as
suas deterz-ninações. Os caminhos já estão perconidos. As
inadequações só se manifestam no conhecimento que o Espírito tem
de si mesmo, de sua realidade que é a realidade inteira. Quer se trate
da filosofia, da história ou das relações econôlnicas e sociais, as cartas
já estão lançadas. A missão do filósofo — portador do Espírito — é
compreender — e justificar — o que é. Ou, corno diz Hegel sem
rodeios: "A coruja de Minerva só alça seu vôo ao crepúsculo". 2
A filosofia de Hegel, em substância, é incompatível com uma
verdadeira filosofia da práxis, da ação, da transformação
revolucionária do real.
Daí resulta que, sendo o idealismo alenlão uma filosofia da
atividade, entendida esta última como atividade da consciência, a
filosofia de Hegel, por levar essa ativiclade — como saber — ao plano
do absoluto, é a filosofia da ação absoluta no terreno clo pensamento
e, por isso, da conciliação absoluta com a realidade.
A esquerda hegeliana quis romper com este princípio conciliador.
Pretendeu que a filosofia fosse prática no sentido de contribuir para a
transfonnação do mundo, da realidade e, particulannen•te, da realidade de
seu país naquela época. Os dois pilares em que se assenta a sociedade alemã
— a Igreja e o Estado — longe de serem aceitos, inspira1T1 0 desejo de
transformá-los. Não é casual, por isso, que os problemas da religião, com
David Strauss e Bruno Bauer, e os políticos, sobretudo com Arnold Ruge,
ocupem o cenário filosófico dos anos que sucedem a morte de Hegel. 3

1
F. Engels, Lucltvig Feuerbach y el fili de Ia filosofia clásica alenmna, em C. Marx e F. Engels,
Obras escogidas, dois tomos, edição espanhola, Moscou, 1952, II, pp. 338 e 340.
2
Nesse aforismo do prólogo de sua Filosofia do direito, Hegel resume lapidarmente toda
sua filosofia como mera compreensão do mundo.
3
Sobre o rnovimento da esquerda hegeliana, suas tendências e principais representantes,
assim como sobre o ambiente ideo.lógico e histórico em que se desenvolve, ver sobretudo
o tomo I da excelente obra de Augusto Cornu, Karl Marx et Friedrich Engels, tomos I, II,
III, Paris, PUF, 1955,1958, 1962: versão espanhola, em um volume, Buenos Aires, ed.
Platina e ed. Stilcograf, 1965. Pode-se consultar, também, de forma proveitosa, o livro I "A

111
FILOSOFIA DA PRÁXIS
As reflexões sobre a religião e a política na Alemanha daquela época
tê1T1 um interesse prático. São a expressão do anseio de
transformação da realidade que Hegel desejava deixar intacta. Essa
função prática da filosofia assume a forma de uma crítica dos
elementos irracionais da realidade, crítica incessante e
profunda das instituições petrificadas, irracionais seja a religião
cristã ou o Estado prussiano que detêm o desenvolvimento infinito
do Espírito, quando este só transitofiamente podia plasmar-se ou
encarnar-se em uma realidade histórica, concreta.
Ao enfrentar o real e o racional, e ao desvendar os elementos
irracionais da realidade, por meio da crítica, os jovens hegelianos
pensam que o movimento do Espírito está salvo.
A exigência, portanto, de que a filosofia seja prática, é entendida
por essa capacidade atribuída à filosofia crítica de transformar por si
mesma, pelo poder das idéias, o próprio mundo. Se se fala aqui de
atividade transformadora, trata-se, sem dúvida, de uma atividade
teórica, que por si mesma poderia mudar a realidade.
E a própria realidade política — o Estado prussiano — que com
seus atos reais, efetivos, explicita a inoperância e a inatividade desta
prática teórica.
Justamente essa limitação e essa impotência da atividade teórica
— tanto mais evidente quanto mais se confia em sua onipotência — é
que apresentam como um problema a resolver a necessidade de passar
de unia atividade teórica, que na verdade nunca deixa de ser teoria e
jamais é práxis verdadeira, a uma atividade prática.
É nesse horizonte problemático da esquerda hegeliana que se
deve situar a evolução clo pensamento de Marx, que culminará na
criação de unna filosofia da práxis, entendida esta não como práxis
teórica, mas sim, como atividade real, -transforlnadora do mundo. 4 Já
não se trata da teoria que se vê a si mesma como práxis, enquanto
crítica do real que por si só transforma o real, nem como filosofia da
ação, entendida como LIIT1a teoria que traça os fins que a prática
deve aplicar (filosofia da ação de Cieszkowski e Hess, que não
passava, na realidade, de uma nova forma de utopismo).
Assim, portanto, a passagenn dessas falsas concepções da
transformação do mundo para uma verdadeira filosofia da práxis
correspondia a uma necessidade prática: transformar a realidade, Por

crise do primeiro hegelianismo alemão" (1818-1844) do primeiro tomo da obra de Mario


Rossi„ Adarx et Ia dialetiica hegeliana, em dois volumes, Roma, Editori Riuniti, 1963.
4
Sobre as relações de Marx com a esquerdar consultar a obra citada de A. Cornu. É também
importante a esse respeito todo o cap. 1 do livro II, da obra antes citada de M. Rossi, Marx
et a dialettica hegeliana. Ver também o estudo de Ernile Bottigelli, "Karl Marx et a gaucha
hegelienne", Annali 1963, Instituto G. FeltrinelliJ Milão, 1964, pp. 9-32.

112
A CONCEPÇÃO DA PRÁXIS EM
outro lado, a concepção de que o mundo real só podia ser
transformado praticamente só poderia surgir quando a atividade
teórica, elevada ao plano do absoluto pelos jovens hegelianos,
mostrava sua limitação e impotência. Assim, pois, a elaboração de
uma verdadeira filosofia da práxis era um
MARX

problema que correspondia a necessidades práticas, mas que só podia


ser resolvido em uma íntima conjugação de fatofes teóricos e práticos.
Os fatores teóricos era1T1: a filosofia da práxis, ainda que marcasse
uma ruptura radical com a filosofia especulativa, só podia surgir sobre
uma base teórica determinada, como herdeira da filosofia que dera ao
homem consciência de seu poder criador, transformador, ainda que sob
forma idealista; isto é, sobre a base do idealismo alemão. Os fatores
práticos eram representados pela atividade humana produtiva e
político-social que punha à prova o valor e o alcance da própria teoria.
A elaboração, por parte de Marx, da categoria de práxis, como
categoria central de sua filosofia, desde as "Teses sobre Feuerbach"
é, por sua vez, um processo teórico e prático.
Como hegeliano que era, Marx partiu de uma concepção
especulativa do mundo, e depois movimentou-se pelo horizonte
problemático da esquerda hegeliana, para desembocar finalmente em
uma filosofia da práxis. Trata-se de urn processo no qual se altamam
os fatores teóricos: crítica e assimilação de outras teorias (filosofia de
Hegel — vista por meio dos jovens hegelianos e de Feuerbach; teorias
dos economistas ingleses e doutrinas socialistas e comunistas
utópicas) e os fatores práticos (realidade econômica capitalista,
situação dos operários ingleses e experiência viva da luta política e
revolucionária) assimilados teoricamente em grande parte através dos
estudos de Engels. 7
Quando podemos considerar que o marxismo já começa a
afirmar-se propriamente como tal, isto é, como uma teoria que
esclarece a práxis e fundamenta e orienta a transformacão prática,
revolucionária? Para alguns, esse momento capital se encontra na
Crítica da filosofia do direito, de Hegel, de 1843, na qual Marx ressalta
a mistificação não só da filosofia política hegeliana, como de seu
idealismo em geral, ou então na Introdução a essa crítica, escrita
pouco depois, na qual se formula a aliança entre a filosofia e o
proletariado e traça-se, pela primeira vez, a missão histórico-universal
deste; para outros esse momento capital se dá nos Manuscritos
econôntico-filosóficos de 18441* nos quais Marx descobre o trabalho
humano como dimensão essencial do homem, ainda que na sociedade
burguesa só exista sob a forma de trabalho alienado; outros, ainda,

113
FILOSOFIA DA PRÁXIS
assinalam que a certidão de nascimento do marxismo coincide, por
assim dizer, com A ideologia alanã, de 1845, onde Marx já descobre
a lei de correspondência entre as forças produtivas e as relações de
produção — que será formulada com toda precisão em seu famoso
prólogo de 1859 à Contlibuição à crítica da economia política; lei

7 0 primeiro trabalho de Engels sobre questões económicas, "Esboço de crítica da


economia política", publicado em 1844 em Os Anaís Franco-alenües, exerceu uma profunda
influência na formação do pensamento de Marx, já que contribuiu em grande parte para que
se interessasse pelos problemas da economia.
com a qual a práxis produtiva material revela sua plena dimensão
histórico-social e se torna possível uma concepção materialista da
história; outros pesquisadores ressaltam, sobretudo, que o marxismo
inicia seu caminho próprio com as "Teses sobre Feuerbach" ,
formuladas quase ao mesmo tempo que A ideologia alanã, e nas quais
se lança o princípio da transformação do mundo como tarefa
fundamental para a filosofia. Não faltam, enfim, os que descobrem a
virada radical na formação do marxismo no Manifesto do Partido
Conqunista, onde se traça clara e expressamente a teoria da ação
revolucionária dos proletários que devem levar a cabo essa
transformação. 8
Em nossa opinião, não se poderia descartar um trabalho em relação
a outro, realizando-se um corte radical entre eles, mas sim considerá-los
como fases de um processo, simultaneamente contínuo e descontínuo, do
qual fazem parte, e que, a nosso ver, já amadurece no Manifesto do Partido
Contanista, obra em que se fundamenta o encontro do pensamento e da
ação. Só depois de ter chegado ao Manifesto é que se pode dizer que existe
o marxismo como filosofia da práxis; de modo algum como filosofia
acabada, pois sendo a práxis, por essência, infinita e incessante, jamais
poderá fechar-se o processo de seu esclare-

8 0 problema de determinar em que obra ou período de seu pensamento Marx rompe com
a filosofia anterior pressupõe, antes de tudo, uma tomada de posição com respeito ao ponto
ou terreno em que se opera essa ruptura. Se se considera que rompe, fundamen.talmente, com
a filosofia idealista hegeliana enquanto filosofia mistificadora que, com sua mistificação,
escamoteia a realidade que há de ser transfonnada, o lugar da n-lptura será a filosofia d.o
direito e do Estado, e, nesse sentido, a crítica a que Marx submete o idealismo hegeliano em
1843 em sua Crítica da filosofia do direito, de Hegel, ganha o relevo que Galvano Della Volpe
lhe deu (cf. seu Rousseau y Marx, Buenos Aires, Platina, 1963). Marx retira aí os véus
idealistas que ocultam a verdadeira realidade: as condições materiais de existência. Sua crítica
coloca diante de nós a realidade, mas trata-se — como ele dirá mais tarde — é de transformar
não uma idéia fal.sa, mistificadora sobre a realidade, mas sim a realidade que engendra essa
idéia. A ruptura de Marx com a filosofia anterior, portanto, não é ainda radical. Ainda não
dobra o cabo que lhe permitirá avistar a terra firme da filosofia como teoria e guia da ação.
Sendo assim, se se pensa que Marx rompe com a ideologia para elaborar a teoria científica
do socialismo, sua ruptura significará a substituição de um pensamento ideológico — isto é,

114
A CONCEPÇÃO DA PRÁXIS EM
irreal, falso, ilusório, em virtude de seu condicionamento de classe — por outro científico, e,
então, se considerará não sem razão que as obras anteriores a A ideologia alemã (1845) estão
impregnadas de elementos ideológicos e que uma verdadeira concepção científica da
sociedade, baseada na descoberta da contradição entre forças produtivas e relações de
produção, só se dará a partir dessa obra na qual já se assentam os princípios fundamentais da
concepção materialista da história. Tudo isso é certo e, no entanto, o decisivo na formação
do marxismo não é uma mudança de conceitos, sem que isso exclua, de modo algum, sua
necessidade: essa mudança é necessária para que a teoria cumpra a função de instrumento da
transformação do real. A ruptura não se opera, portanto, exclusivamente no n_ível da teoria,
mas sim em relação com uma prática estreitamente vinculada a ela enquanto a gera e, ao
mesmo tempo, encarna-a. A redução do marxismo a uma mudança de conceitos, de teoria,
embora esta mudança se veja na passagem da,ideologia (ou da utopia) à ciência, significa
recair em uma concepção científica ou neopositivista, já que se esquece que o marxismo
surgiu como teoria — científica, por certo — da práxis revolucionária do proletariado.
TvIAR,x

cimento teórico. Por isso, seria mais exato dizer que, com o Manifesto, o
marxismo se constitui como filosofia da práxis e se inicia um processo que
não pode ter fim. No Manifesto se unem os fios dos elementos que foram
dando um perfil definido a essa filosofia da práxis. E a eles nos
dedicaremos em nossa exposição.
Vejamos, portanto, como Marx formula, em suas primeiras obras, o
problema das relações entre teoria e prática, e quando começa a esboçar-
se como categoria filosófica a categoria de práxis.

FILOSOFIA E AÇÃo
Marx formula esse problema, antes de tudo, como problema das relações
entre a filosofia e a ação, isto é, justamente no marco problemático traçado
pelos jovens hegelianos. Se a realidade deve ser mudada, a filosofia não
pode ser um instrumento teórico de conservação ou justificação da
realidade, mas sim, de sua transformação. Tal é a conclusão a que havia1T1
chegado os jovens hegelianos: a filosofia deveria ser, por isso, sobretudo
crítica da realidade para garantir essa transformação. Dessa maneira, se sua
crítica não conseguia transformar a realidade, era preciso estabelecer outro
tipo de vinculação entre a filosofia e a realidade, ou melhor, entre o
pensamento e a ação, que obrigaria, por sua vez, a mudar a missão e o
próprio conteúdo da filosofia, A filosofia por si mesma, como crítica do
real, não muda a realidade. Para mudá-la, a filosofia tem de realizar-se.
Sendo assim, essa realização da filosofia é sua supressão. Tal é o ponto de
vista de Marx nos anos 40, e sua formulação mais precisa é encontrada no
trabalho que escreveu para os Anais Franco-alemães como introdução à sua
Crítica da filosofia do direito, de Hegel.
Mas como se cumpre essa realização da filosofia? Quem a
realiza? Em que sentido ela representa a unidade da teoria e da prática?
O que é propriamente essa práxis tão intimamente vinculada à
filosofia?

115
FILOSOFIA DA PRÁXIS
Marx fixa sua concepção das relações entre filosofia e realidade
marcando, em primeiro lugar, sua oposição a duas falsas concepções
dessa relação, vigentes em seu tempo, e que ele chama de partido
político prático e o partido político teórico? Trata-se de duas
expressões teóricas do liberalismo alemão da época; o primeiro
corresponde ao movimento romântico-liberal que procede da "Jovem
Alemanha" 10 e o segundo é precisamente a esquerda hegeliana, Os
representantes do partido político prático, impelidos pelo desejo de
transformar de um modo direto e imediato a realidade presente, negam
a filosofia, com o

9 C. Marx, En tonto a Ia crítica de Ia filosofía del derecho, de Hegel, Introducción, em


C. Marx e F. Engels, La Sagrada Fantilia, op. cit., pp 8-9.
10 0 movimento da "Jovem Alemanha" representou entre 1831 e 1835 um protesto,
sobretudo no plano literário, contra o romantismo reacionário e o Estado prussiano. Sua
figura mais destacada foi o grande poeta Heine.

116
FILOSOFIA DA PRÁXIS
que Marx está de acordo; mas esquecem que a filosofia não pode ser negada,
como mera filosofia, como filosofia especulativa, sem realizar-se. Isto é, dão tudo
à prática, e nada à teoria. Entendem a negação da filosofia como uma subtração
absoluta da teoria em benefício da práxis.
A outra corrente, o partido político teórico (ou seja, os jovens hegelianos)
nega a prática em nome da filosofia, ou mais exatamente, pensam que a teoria é
práxis per se e desse modo, dão tudo à teoria, e nada à prática. Acreditam que a
teoria pode realizar-se, ser prática, sem negar-se como mera filosofia, sem
eliminá-la. Enquanto a filosofia é mera especulação e não é negada como tala a
filosofia não sai de si mesma e, portanto, não se realiza.
Em ambos os casos, falta a relação entre filosofia e mundo; no
primeiro, o mundo muda sem filosofia; no segundo, a filosofia pretende
mudá-lo, mas o mundo permanece como está, pois a filosofia não se
comunica com ele; falta esse laço entre a filosofia e a realidade que é a práxis.
Por meio da práxis, a filosofia se realiza, se torna prática, e se nega, portanto,
como filosofia pura, ao mesmo tempo em que a realidade se torna teórica no
sentido de que se deixa impregnar pela filosofia.
Portanto, a passagem da filosofia à realidade requer a mediação da
práxis. Nas condições peculiares da Alemanha dos anos 40 do século XIX,
a filosofia é particularmente política, ou crítica política, crítica da filosofia
especulativa do direito e do Estado, que alcança, por sua vez, a realidade
política da Alemanha daquele tempo.
Sendo assim, se, ao contrário do que pensam os jovens hegelianos, a
crítica per se, sem a mediação da prática, deixa intacta a realidade, quando a
crítica abandona esse plano puramente teórico e a teoria se torna prática, isto
é, se converte em uma força que abala a realidade? Esse problema é
formulado por Marx pela primeira vez em 1843, e eis aqui sua resposta: "A
arma da crítica não pode substituir a crítica das armas ... a teoria se converte
em poder material tão logo se apodera das massas ... quando se torna
radical". ll Isto é, a teoria que por si só não transforma o mundo real torna-
se prática quando penetra na consciência dos homens. Desse modo, são
apontados seus limites e a condição necessária para que se torne prática:
por si só é inoperante e não pode substituir a ação, mas se torna uma força
efetiva — um "poder material" quando é aceita pelos homens.

A REVOLUÇÃO E A MISSÃO HISTÓRICA DO PROLETARIADO

A passagem da filosofia à realidade requer a mediação dos homens, mas até


agora Marx só falou de suas consciências. A aceitação pelos homens

11 C. Marx, En torno a Ia crítica de Ia filosofía del derecho, de Hegel, Introducciónr em C,


Marx e F. Engels, La Sagrada familia, op. cit., pp. 9-10.
MAR*

117
FILOSOFIA DA PRÁXIS
de uma teoria é condição essencial de uma práxis verdadeira, mas não é
ainda a própria atividade transformadora. E preciso determinar, em primeiro
lugar, o tipo de teoria que há de ser aceita e que há de passar para a própria
realidade; é preciso, também, deterrninar o tipo de homens concretos que,
uma vez que fazem sua a crítica, a convertem em ação, em práxis
revolucionária. Primeira determinação: a crítica há de ser radical. Segunda:
os homens chamados a realizar a filosofia, como mediadores entre ela e a
realidade, são, ern virtude de uma situação particular, os proletários.
Para que a crítica vingue, tem de ser radical. "Ser radical — diz Marx
— é atacar o problema pela raiz. E a raiz para o homem é o próprio homem".
12
Crítica radical é crítica que tem como centro, como raiz, o homem; crítica
que responde a uma necessidade radical. "Em um povo, a teoria só se realiza
na medida em que é a realização de suas necessidades".
E o que é essa crítica radical que tem o homem como eixo? A crítica
radical começou com Feuerbach; graças a ela, o homem ganhou uma
verdadeira consciência de si mesmo. Mas a crítica da religião premissa de
toda crítica" , como reconhece Marx —14 é crítica radical no plano teórico.
A passagem da crítica radical do plano teórico ao prático é justamente a
revolução. Como crítica radical, é "prática à altura dos princípios a uma
altura humana.
A práxis é, portanto, a revolução, ou crítica radical que,
correspondendo a necessidades radicais, humanas, passa do plano
teórico ao prático.
Ao chegar a esse ponto, e antes de passar à determinação do tipo de
homens que servem de mediadores entre a crítica teórica e prática, devemos
resumir o que Marx disse até agora sobre as relações entre a teoria e a práxis:
a) por si própria, a teoria é inoperante, ou seja, não se realiza; b) sua eficácia
é condicionada pela existência de uma necessidade radical que se expressa
como crítica radical e que, por sua vez, torna possível sua aceitação.
Assim, portanto, a necessidade radical fundamenta tanto a teoria que
é sua expressão teórica, quanto a necessidade da passagem da teoria à
prática, entendida esta como práxis à altura dos princípios, isto é, como
Revolução, ou emancipação total do homem.
Sendo assim, a passagem da teoria à prática, ou da crítica radical à
práxis radical, é condicionada por uma situação histórica determi-

12 C. Marx, En torno a Ia clítica de Ia filosofia del derecho, de Hegel, op. cit., p. 10.
13 Ibid. , p, I I.

14 Ibid. , p. 3

15 Ibid., p. 9.

nada: a que vive a Alemanha de seu tempo, isto é, um país que por seu
anacronismo político — por não ter percorrido a fase de emancipação
118
A CONCEPÇÃO DA PRÁXIS EM
política já percorrida por outros povos — encontra-se diante da necessidade
histórica de superar não apenas seus próprios limites, como os de outros
povos, mediante uma revolução radical. 5 Dada essa situação anacrônica —
diz-nos Marx — o utópico não é essa revolução radical, mas sim, a
meramente política. 67 Ou, em outros termos mais adequados ao Marx
posterior: a única revolução possível na Alemanha não é a revolução
burguesa, mas a revolução proletária, socialista.
A passagem da teoria à práxis revolucionária é determinada,
por sua vez, pela existência de uma classe social — o proletariado —
que só pode libertar a si mesmo libertando a humanidade inteira.
Trata-se de uma missão histórico-universal, mas não fundada "a
priori" ou providencialmente ("os proletários não são deuses",
esclarecem Marx e Engels na Sagrada Família e sim em função da
situação concreta que ocupa dentro da produção na sociedade
burguesa. O proletariado está destinado historicamente a libertar-se
por meio de uma revolução
radical que implique a negação e supressão de si mesmo como classe
particular e a afirmação do universal humano.
Situado o problema no marco específico que agora nos interessa, o que
Marx nos diz é que o proletariado não pode emancipar-se sem passar da
teoria à práxis. Nem a teoria por si mesma pode emancipá-lo, nem sua
existência social garante por si só sua liberação. É preciso que o proletariado
adquira consciência de sua situação, de sutas necessidades radicais e da
necessidade e condições de sua libertação. Essa consciência é justamente a
filosofia; mais exatamente, sua filosofia. Filosofia e proletariado se
encontram em unidade indissolúvel. "Assim como a filosofia encontra no
proletariado suas armas ;nateriais, o proletariado tem na filosofia suas armas
espirituais " 8 Sem o proletariado, a filosofia não sai de si mesma e graças a
ele, realiza-se; ele é seu instrumento, o meio, a arma material que lhe permite
vingar na realidade. O proletariado, por sua vez, não poderia emancipar-se
sem a filosofia; ela é o instrumento, a arma espiritual e teórica de sua
libertação. Mas, nessa relação, os dois termos se condicionam mutuamente;
a realização de um é a abolição do outro. "A filosofia — diz Marx — não
pode chegar a realizar-se sem a abolição do proletariado, e o proletariado
não pode chegar a realizar-se sem a abolição da filosofia" . 20

5
C. Marx, En torno a Ia crítica de Ia filosofía del derecho, de Hegel, Introducción, op. cit.,
P. 1 1 .

6
Ibid., p. 12
7
C. Marx e F. Engel$ La Sagrada Fantilia, op. cit., pp. 101-102.
8
C. Marx, En tomo a Ia critica de Ia filosofía del derecho, de Hegel, op. cit., p. 15. 20 Ibid.

119
FILOSOFIA DA PRÁXIS
MARX

Marx aincla não está condições (elil 1843) de ir mais além na


fundamen.tação da missão do proletariado, pois para isso será preciso que
penetre mais a fundo na estrutura econômica e social da sociedade burguesa
e que evidencie quais são as verdadeiras condições e forças motrizes do
desenvolvimento histórico. Sob a forma da unidade da filosofia e do
proletariado, considerados el-n sua vinculação e realização mútuas, Marx
formulou pela pri1T1eira vez a unidade da teoria (como filosofia) e da
prática (como ativiclade revolucionári.a do proletariado). Mas são evidentes
as limitações dessa concepção da práxis. Seus conceitos-chave —
emancipação ou "recuperação total clo homerri necessidade radical e
revolução radical — não se libertaram por connpleto de certo
antropologismo feuerbachiano. O proletário aparece sobretudo como a
negação do humano, e não el-n relação com celto desenvolvimento ou nível
da sociedade. Falta elaborar LUTI verdadeiro conceito científico do
proletariado, que só poderá ser construído a partir da análise das relações de
produção capitalistas. Para Marx, nesse período, a missão histórico-universal
do proletariado não deriva tanto de sua posição econômica e social no seio
da sociedade burguesa, mas de 1.11T1a concepção filosófica (proletário =
negação e encarnação do universalismo humano) e da situação específica —
anacrônica — da Alemanha de sua época. Fazendo da necessidade virtude,
sustenta que é precisamente o atraso alemão que cria as condições favoráveis
para que ele cumpra a missão que não cumpre nos países altamente
desenvolvidos do ponto de vista econômico e social. Em suma, Marx
justifica a missão do proletariado filosoficamente, assirn como de um ponto
de vista histórico estreito, e não de uma posição histórico-científica, objetiva,
já que ainda desconhece a lei que rege a produção material capitalista, as
relações de classe na sociedade burguesa, a natureza e função verdadeiras do
Estado burguês. Falta-lhe, particularmente, uma concepção da história que
lhe permita fundamentar a necessidade da revolução do proletariado.
Contudo, ainda que com uma fundamentação insuficiente e com a
imprecisão conceitual e terminológica dela proveniente, Marx já concebe a
práxis como 1.11T1a atividade humana real, efetiva e transformadora que,
em sua forma radical, é justamente a revolução. Vê essa práxis na relação
indissolúvel con-l a teoria, entendida esta mais como filosofia ou expressão
teórica de uma necessidade radical do que como con.hecimento de unia
realidade, e vê também o papel da força social que com sua consciência e
sua ação estabelece a unidade da teoria e da prática. Desse modo, para que
o conteúdo da práxis social revolucionária se enriqueça e, com isso, o
conceito do proletariado como seu sujeito, será preciso que Marx chegue à
descoberta de uma práxis original e ainda mais radical, uma práxis que
enriqueça o conceito do proletário. Essa
120
A CONCEPÇÃO DA PRÁXIS EM

21 Ibid., 14.

121
FILOSOFIA DA PRÁXIS
práxis original é justamente a produção material, o trabalho humano. Essa
descoberta é capital para uma filosofia da práxis porque à luz dele se
esclarece não só a práxis social, assim como outras formas de produção não
material, mas também o que é ainda mais importante, a história como
produção do homem por si mesmo.
A práxis revolucionária, como transformação consciente e radical da
sociedade burguesa pelo proletariado, há de passar necessariamente pela
consciência dessa práxis material produtiva.
O LUGAR DA PRÁXIS NOS MANUSCRITOS DE 1844
Marx não teria conseguido avançar ITIL1ito em sua concepção da práxis se
não lhe tivesse dado o novo e rico conteúdo com que aparece nos Manuscritos
econôrnico-filosóficos de 1844. E, como veremos, não só lhe imprime um
novo conteúdo — considerada como práxis produtiva ou trabalho humano —
como também à luz desse novo enfoque se enriquece igualmente o conteúdo
da práxis social.
A práxis revolucionária, na análise imediatamente anterior aos Manuscritos
de 1844, mostra-se em estreita aliança com a filosofia e tendo por sujeito o
proletariado como a classe destinada a revolucionar a sociedade existente.
Vemos aí o proletariado como a expressão concentrada dos sofrimentos que
são infligidos ao homem, e impelido a libertar-se, em uma libertação que
implica, enquanto tal, sua abolição e a libertação da humanidade inteira. Mas
Marx não consegue, ainda, fundamentar as condições e possibilidades para
essa libertação. E não o consegue porque o proletário não é visto ainda em
sua existência propriamente proletária, isto é, como produtor que participa
de relações econ•ômicas e sociais determinadas. O proletálio nos é
apresentado, até agora, como ser que sofre, destinado a libertar-se e,
portanto, como sujeito de uma práxis revolucionária. Trata-se do conceito
um tanto especulativo e antropológico do proletário como ser que encarna o
sofrimento humano e não do conceito científico a que chegará Marx
posteriormente, sobretudo en•-l O capital, como membro de uma classe
social que carece de todo meio de produção e que, forçado a vender como
mercadoria sua força de trabalho, produz mais-valia.
Marx vê até agora o proletário como um revolucionário que luta em virtude
do caráter universal humano de seu sofrimento. Mas o proletário, objetiva e
originariamente, e antes de desenvolver uma atividade revolucionária, é* como
Marx verá os Manz,tscritos de 1844, um ser ativo que produz objetos e que, como
tal, contrai certas relações com outros homens, no âmbito das quais seu trabalho
não deixa de ter conseqüências vitais para sua existência.
Até agora o proletálño se apresentara a Marx como a n.egação da essência
humana, e não como agente da produção. Marx via nessa nega-
MAR.x

122
A CONCEPÇÃO DA PRÁXIS EM
ção a necessidade e a possibilidade de sua emancipação, Mas é justamente a
necessidade de fundamentar mais finnemente essa emancipação, assim como as
condições da práxis revolucionária correspondente, que o leva a analisar as
condições do proletário enquanto operário, pois a existência do proletariado se
define, acima de tudo, como existência no trababo, na produção, que é, colT10
poderia ter dito o jovem Marx em 1843 o lugar do seu sofrimento humano. Essa
é a razão pela qual, depois de mostrar o proletário colT10 sujeito da práxis
revolucionária, Marx passa a analisar sua situação como sujeito da práxis
produtiva. Nas condições peculiares e concretas em que situa sua análise, há uma
profunda e íntima conexão entre uma práxis e outra. São as condições específicas
em que se dá a opressão do trabalhador em uma Alemanha atrasada, com um
baixo desenvolvimento da produção, as que determinam que Marx veja o operário
antes como revolucionário do que como produtor. No entanto, é justamente a
necessidade de esclarecer e fundamentar a práxis revolucionária que leva Marx a
examinar a atividade prática, material, do operário no processo de produção como
trabalho alienado.

A PRÁXIS PRODUTIVA COMO TRABALHO ALIENADO


Dos economistas ingleses do século XVIII, Marx aprendeu que o trabalho humano
é a fonte de todo valor, de toda riqueza, Essa fonte é, portanto, subjetiva e, por
isso, Engels, que é propriamente quem o introduz no terreno da economia política,
tem razão — e Marx o reconhece — quando afirma que Adam Smith é o Lutero
da economia, 9 já que passou da consideração da riqueza em sua forma objetiva,
exterior ao homem, à riqueza subjetiva, colT10 produto do trabalho humano.
Cabe, então, perguntar (e é essa a pergunta radical que Marx se faz, nos
Manuscritos de 1844) por que, se o trabalho é a fonte de toda riqueza, o sujeito
dessa atividade — o operário — se encontra em uma situação tão desigual e
desvantajosa com respeito ao capitalista. A pergunta carece de sentido para a
economia burguesa, pois o operário apenas lhe interessa enquanto trabalhador,
enquanto meio ou instrumento produtivo, ou fonte de riqueza, e não propriamente
como ser humano. Sendo assim, a pergunta de Marx aponta justamente para a
essência humana do operário, negada ou mutilada na produção, Desse modo, o
princípio de que o trabalho humano é fonte de todo valor e riqueza, que,
aparentemente, implica um reconhecimento do homem, deixa-o, ao operário como
ser humano, fora do processo de produção. Por isso, Marx pode dizer: . . Sob a
aparência de um reconhecimento do homem, a Econ01T1ia política que tem como
princípio o trabalho, é precisamente apenas a aplicação conseqüente da negação
do homem... " .23 A economia política reconhece, com uma franqueza que raia o
cinismo como sublinha Marx —, que essa desumanidade existe, mas o trabalho
humano só lhe interessa como produção de bens com vistas ao lucro. As
conseqüências negativas que o trabalho tem para o homem lhe aparecem como

9
Engels, Esbozo de crítica de Ia econolltía política, em C. Marx e F. Engels, Escritos econónaicos
F.
varios. op. cii. p. 7; C Marx, Manuscritos econónrico-filosóficos de 1844, ibid., pp, 77-78 (A seguir
r

citaremos da seguinte forma: Adant¿scñtos de 1844.)

123
FILOSOFIA DA PRÁXIS
algo natural que não requer explicação e, portanto, as condições de existência
humana — ou mais exatamente desumana — do operário na produção, justificam-
se como condições insuperáveis. O trabalho, para a economia política burguesa, é
uma categoria meramente econômica: trabalhar é produzir mercadorias, riquezas.
Porém, se o trabalho afeta negativamente o homem — e se, por outro lado, o afeta
vitalmente — isso quer dizer que tem uma dimensão mais profunda que a
meramente econômica (a produção de riquezas). Posto que afeta radicalmente o
operário em sua condição humana, não é uma categoria econômica pura e simples.
Marx examina, por isso, essa atividade humana que se baseia na produção de um
tipo peculiar de objetos dos quais se apropria o não-operário, isto é, o capitalista.
O trabalho humano, ou seja, a atividade prática material pela qual o
operário transforma a natureza e faz emergir una mundo de produtos, mostra-
se para Marx como uma atividade alienada, com os traços que já vimos ao
caracterizar a alienação em Feuerbach: criação de um objeto no qual o sujeito
não se reconhece, e que se lhe apresenta como algo alheio e independente e,
ao mesmo tempo, como algo dotado de certo poder — de um poder que não
tem por si próprio — que se volta contra ele. 24 É claro que aqui não se trata,
diferentemente de Feuerbach, da alienação como processo que se opera
apenas na esfera da consciência, entre ela e seus produtos, mas sim de uma
alienação real, efetiva, que tem lugar no processo real? efetivo, da produção
material. A alienação do trabalhador em seu produto, por sua vez, é
considerada por Marx em outras formas (no ato da produção e com respeito
à natureza, a sua vida genérica e a outros homens) . 25 Finalmente, Marx fala
também de uma forma peculiar de alienação que tem como sujeito não mais
o operário, mas sim o não-operário, isto é, o homem que sem participar
diretamente no processo de produção se apropria do produto do operário. Na
medida em que o não-operário vê o operário, sua atividade ou trabalho e seu
produto à margem do processo de objetivação de forças essenciais humanas,
sua relação com cada um desses el.ementos da produção é puramente
exterior. Desse modo, tanto a relação ativa como a passiva com os objetos,
tanto a relação teórica como a prática com a produção, determinam uma
alienação do homem,
23 Manuscritos de 1844, p. 78.
24 Cf. em os Manuscritos de 1844 0 manuscrito que leva como título "El trabajo enajenado" , pp.
62-72 da edição espanhola citada.
25 Manuscritos de 1844, pp. 65-66.

124
A CONCEPCÃO DA PRÁXIS EM MARX

A análise da situação do trabalhador conno sujeito da práxis produtiva,


material, que Marx realiza nos Manuscrilos de 1844, leva-o à conclusão de
que o trabalho é a negação do humano. O ponto de partida é aqui a essência
humana, à qual se opõe e nega a existência real, efetiva do trabalhador.
Assim, pois, a atividade produtiva é uma práxis que, por um lado, cria um
mundo de objetos humanos ou humanizados, mas, ao mesmo tempo, produz
mundo de objetos nos quais o home1T1 não se reconhece e que, inclusive,
se voltam contra ele. Nesse sentido é alienante. Dessa maneira, para Marx,
essa práxis não só implica uma relação peculiar entre o operário e os produtos
de seu trabalho e uma relação do operário consigo mesmo (alienação com
respeito a sua atividade, na medi.da em que não se reconhece nela), mas
também uma peculiar relação entre os homens (alienação em relação a outros
homens), em virtude da qual o operário e o não-operário (o capitalista) se
encontram em uma relação oposta, mas inseparável, no processo de
produção. 10 Isto é, a alienação não só se dá como relação entre sujeito e
objeto, mas também como relação entre o operário e os outros homens. Ou
seja, só há alienação entre seres humanos. O trabalho não só produz objetos
nos quais o homem não se reconhece, como também um tipo peculiar de
relações entre os homens, em que estes se situam hostilmente em virtude de
sua oposição no processo de produção. "Mediante o trabalho alienado — diz
Marx — o homem não só engendra sua relação com respeito ao objeto e ao
ato de produção como potências alheias e hostis a ele, como engendra, além
disso, a relação em que outros homens se mantêm com respeito a sua
produção e a seu produto, e a que ele mesmo mantém com respeito a outros
homens" 11 Esse tipo de relações, entendidas como relações sociais — não
intersubjetivas — são as que Marx denominará mais tarde relações de
produção. A produção não só cria objetos como cria relações humanas,
sociais. A produção material de objetos se revela, assim, con10 produção
social.
A análise da práxis como atividade humana produtiva deixa um saldo
negativo, já que implica uma alienação do homem em relação aos produtos
de seu trabalho, à sua atividade produtiva e em relação aos outros homens.
Em suma, trata-se de uma relação alienada entre sujeito e objeto, assim como
entre os homens. O conceito de alienação, sendo de origem feuerbachiano,
mostra aqui sua fecundidade no processo de formação do pensamento de
Marx, já que abre caminho a uma concepção posteriu- mais importante sobre
o papel da produção e das relações contraídas entre os homens no processo
de produção (relações de produção).

10
Ibid., p. 68.
11
Ibid., p. 70,

125
FILOSOFIA DA PRÁXIS

Em grande parte dos Manuscritos de 1844* Marx insiste nessa


oposição entre trabalho alienado e o homem, entre o trabalhador e sua
essência humana. O trabalho humano — afirma — é a negação do homem;
faz essa afirmação sobretudo com relação à produção material capitalista,
mas não acreditamos ser infiéis ao espírito do pensamento de Marx se
dissermos que ele estende esse caráter da práxis material, enquanto atividade
alienada, a toda a história. Nesse sentido, poderíamos afirmar — por nossa
conta, mas com a pretensão de interpretar Marx fielmente — que, até o
comunismo, a história humana não passa da história da alienação do ser
humano no trabalho. Essa alienação não só é o fato fundamental da existência
humana na sociedade capitalista, como também historicamente. O homem
vive e viveu constantemente alienado, o que equivale a dizer: em constante
negação de si mesmo, de sua essência. E, como essa negação surge
originariamente como trabalho alienado, isso significaria considerar o
trabalho por seu lado negativo, mas com uma negatividade universal,
considerada historicamente, e, portanto, absoluta.

A TRANSFORMAÇÃO DO MUNDO E DO HOMEM

Mas como isso se compatibiliza com a afirmação de Hegel, destacada e


aprovada por Marx, de que o homem é o produto de seu próprio trabalho? 12
0 trabalho não só produz objetos e relações sociais, com um caráter alienante
em ambos os casos, como também produz o próprio homem. Portanto, o
trabalho que, por um lado, nega o homem, por outro o afirma, na medida em
que o produz como tal.
Se o trabalho humano fosse marcado por uma negatividade
absoluta — perda total do humano, degradação em um sentido total
ao nível de animal ou de coisa —, não poderíamos conceber o
modo como pode produzir o homem enquanto homem. Poder-se-á
objetar que Marx fala justamente da perda do humano, entendida
como animalização da existência — transformação do humano em
animal — mas essas expressões devem ser tomadas no sentido de
um descenso ao nível mais ínfimo do humano, não no sentido de
que o homem tenha literalmente o estatuto ontológico do animal
ou da coisa. Mesmo estando alienado, o homem continua sendo um
ser consciente, ativo; se bem que consciente não no sentido
humano — propriamente criador — de sua atividade. Ainda que
em um plano impróprio, alienado, ainda que em um nível íntimo,
está do lado do humano. Só o homem se aliena, e apenas ele,

12
"O mais importante da Fenonzenologia de Hegel [é] ... que capte, portanto, a essência do trabalho
e conceba o homem objetivado e verdadeiro, por ser o homem real, como resultado de seu próprio
trabalho". (Manuscritos de 1844, op. cit., p. 113).

126
A CONCEPCÃO DA PRÁXIS EM MARX

porque é o produto de seu próprio fazer, de seu trabalho; justamente porque


ele faz o seu ser — em poucas palavras; por ser um ente histórico —, o
homem se encontra em um processo de produção de si mesmo, isto é, de
humanização, dentro do qual pode encontrar-se em níveis humanos tão
ínfimos como o do homem alienado ou coisificado.
Mas voltemos a Marx. O trabalho nega o homem e, ao mesmo tempo,
afirma-o. Não se deve entender isso — a nosso ver Marx não o entendia assim —
no sentido de que o trabalho seja pura negação, ou melhor, pura afirmação.
Marx reprova o fato de Hegel não ter percebido o aspecto negativo do
trabalho — sua alienação mas essa reprovação pressupõe a concepção
hegeliana do trabalho, exposta na Fenolnenologia do espírito e sublinhada
por Marx ao aprovar a tese de Hegel de que o homem é o produto de seu
próprio trabalho.
Para resolver essa contradição, deve-se ter presente a distinção
fundamental que Marx faz entre objetivação e alienação, ao mesmo tempo
em que estabelece uma relação entre elas, em virtude de que a primeira torna
possível a segunda.
O comportamento real, ativo, do homem diante de si como ser genérico, ou
a manifestação de si mesmo como um ser genérico, ou a manifestação de
si mesmo como um ser genérico real, isto é, como ser humano, só é possível
pelo fato de que ele cria e exterioriza realmente todas as suas forças
genéricas — o que, por sua vez, só é possível mediante a atuação conjunta
dos homens, somente como resultado da história — e se comporta diante
delas como diante de objetos, o que, por sua vez, torna possível, somente e
acilT1?t de tudo, a forma da alienação. 29
Dessa passagem, podemos extrair o seguinte: o homem só se manifesta como
ser humano na medida em que objetiva suas forças essenciais, genéricas, mas
essa objetivação — práxis material, trabalho humano — só é possível quando
o homem entra elT1 relação com os outros — (mediante a atuação conjunta
dos homens". Desse modo, o comportamento dos homens diante dessas
forças objetivadas coino objetos, como se fossem algo alheio ou estranho,
toma possível a alienação.
O homem, para ser homem, não pode se manter em sua subjetividade;
tem de objetivar-se. Mas, nessa objetivação, ele se faz presente como ser
social.
A objetivação aparece como uma necessidade da qual o homem não
pode esquivar-se, ao fazer-se ou produzir-se como homem, e manter-se em
seu estatuto hulT1ano. O homem leva a cabo essa objetivação mediante
o trabalho e acalTeta, em princípio, uma objetivação de seu
29 Manuscñtos de 1844, pp. 113-1 14.
FILOSOFIA DA PRÁXIS

próprio ser, de suas forças essenciais. Como já assinalava Hegel, na


Fenonzenologia, o homem, pelo trabalho, humaniza a natureza e humaniza-se
a si mesmo, na medida em que se eleva como ser consciente sobre sua própria
natureza. 13 Nesse sentido a objetivação material — isto é, a produção — é
essencial para o homem.
A partir dos Manuscritos de 1844, a produção começa a ganhar urna
dimensão essencial para Marx. Mas essa dimensão é determinada não só por
seu conteúdo meramente econômico produção de objetos úteis que satisfazem
necessidades humanas — mas fundamentalmente por seu conteúdo filosófico,
na medida em que a produção é, para Marx, autoprodução do homem. O papel
da produção, que nos Manuscritos começa a esboçar-se sob o conceito
econômico-filosófico de trabalho alienado, se revelará já claramente como
premissa fundamental de toda a história humana e, desse modo, os
Manuscritos constituem uma contribuição decisiva à formação do pensamento
de Marx. Essa contribuição só pode ser observada se o processo formativo
desse pensamento é visto como um processo no qual a descontinuidade entre
o Marx dos Manuscritos e o Marx posterior não é concebida como uma
descontinuidade radical, absoluta, e sim como uma descontinuidade que
implica necessariamente certa continuidade ou unidade. A descontinuidade
radical só pode ocorrer se eliminarmos do Marx dos Manuscritos os elementos
que podem assegurar essa unidade e se reduzirmos sua problemática a unna
problemática antropológica feüerbachiana, vendo-se nessa obra juvenil uma
sinnp.les extensão da teoria da "natureza humana" de Feuerbach à economia
política, problemática com que Marx somente romperia definitiva e
conscientemente em A ideologia alemã. 31 Destroem-se, assim, as pontes entre
as duas obras, sem que, por outro lado, se diga como foi possível passar (ou,
mais exatamente, saltar) da problemática feuerbachiana, especulativa ou
icleológica dos Manuscritos à problemática nova, científica do texto de 1845.
A descontinuidade raclical entre o Marx de 1844 e o de 1845 só pode ser
estabelecida se subestimarmos ou ignorarmos a contribuição dos Manuscritos
para o conceito capital de produção. No entanto, já nessa obra de juventude,
Marx se aproxima de sua posterior fundamentação materialista da história, que
pressupõe necessariamente sua concepção imediatamente anterior do homem
como ser prático que, inclusive enl sua alienação, se faz a si mesmo com seu
próprio trabalho, isto é, se autocria ena e pela produção. Cornu afirmou
claramente a continuidade do pensamento de Marx ao explicitar o papel da
teoria da alienação na formação do conceito de práxis e ulteriormente de uma
nova concepção da história. 14 A tese fundamental dos Manuscritos — a

13
Cf.. Fenornenología del espírita, op. cit., pp. 113-121. 31 L.
Althusserr Pour Marx, op. cit., pp. 38-43.
14
Ver, também, a apreciação de Cornu dos resultados gerais dos Manuscritos de acordo com a gênese
do rnaterialismo histórico em A ideologia alenzã: nos Manuscritos — diz 'Marx superava o pensamento
128
A CONCEPCÃO DA PRÁXIS EM MARX

transformação do homem e do mundo pelo trabalho — mostra-se fundamental


para o desenvolvimento ulterior do pensamento de Marx a partir de A
ideologia alentã-, isto é, para a formação de sua concepção da história humana
como obra do desenvolvimento dialético das forças produtivas e das relações
sociais que os homens contraem na produção.
A produção relaciona-se, em primeiro lugar, com as necessida- des- O
homem tem necessidacles e, justamente por isso, produz para satisfazê-las.
Também o animal tem necessidades e, de certo modo, também produz. Mas o
modo de se relacionar a necessidade e a producão modifica os terrnos dessa
relação. No animal — como enfatiza Marx — é direta, imediata e unilateral; além
disso, o primeiro termo determina o segundo, pois o animal só produz sob o
império da necessidade. No homem, essa relação é mediata, já que só satisfaz a
necessidade na medida em que esta perdeu seu caráter físico, imediato. Para que
o homem satisfaça propriamente suas necessidades, tem de libertar-se delas
superando-as, isto é, fazendo com que percam seu caráter meramente natural,
instintivo, e se tornem especificamente humanas. 15 Isso quer dizer que a
necessidade propriamente humana tem de ser inventada ou criada. O homem,
portanto, não tem apenas necessidades, mas é o ser que inventa ou cria suas
próprias necessidades.
A produção é criação de um mundo objetivo, mas só o homem pode dar
a si mesmo o estímulo da produção, na fornia de necessidades que se vão
criando elT1 um processo sem fim. E na medida em que o ho-

burguês mais avançado representado pela filosofia de Feuerbach e estabelecia os princípios do


materialismo histórico, fundamento do pensamento revolucionário proletário" (A* Cornu, "Le
materialisrne historique dans 'L'idéologie allemande'", Annali 1963, Milán, Feltrinelli, 1964, p. 58).
Diante da tendência a abrir um abismo insondável entre o Marx dos Manuscritos e o Marx posterior,
sobre a base da adscrição dos primeiros a um período ideológico, reage também Mario Rossi, que, sem
deixar de reconhecer neles elementos tradicionais de ideologia, vê também a superação dos limites
desta, "Apenas uma leitura não atenta e superficial pode interpretar os Manuscritos como o
documento de um perdurável ideologismo do jovem Marx" (M. Rossi, Marx e Ia dialetiica hegeliana, t.
2, Roma, Riuniti, 1963, p. 587). Rejeitando também a descontinuidade radical entre os Manuscritos
de 1844 e suas obras imediatamente posteriores, T. L Oizerman aprecia, assim, esta obra juvenil
dentro da evolução do pensamento de Manr •.
'Os h/lanuscritos econônlico-filosóficos, apesar da influência do antropologismo de Feuerbach,
característica deles, e apesar dos velhos elementos de concepções que superará posteriorrnente,
assim como a uma terminologia que nã.o corresponde a seu conteúdo, constituem, no fundamental,
à formulação de teses básicas do materialisrno dialéti.co e histórico. (T. I. Oizerman, Fonni-rovarzie
filosofii 771avIcsis7•rza [A formação da filosofia do marxismo], Moscú, 1962, p. 304.)
15
Manuscritos econónzico-filosóficos de 1844, op. cit., pp. 67-68.
129
FILOSOFIA DA PRÁXIS

mem cria suas próprias necessidades se cria ou produz a si mesmo. Mas essa
produção do homem passou pelo tipo particular de produção que é a produção
alienada; isto é, a objetivação revestiu-se historicamente da forma de uma
objetivação alienada, sem que por isso o homem, como ser social, tenha deixado de
afirmar-se, de produzir-se a si mesmo. 34
O trabalho — a produção — é o que eleva o homem sobre a natureza
exterior e sobre sua própria natureza, e é nessa superação de seu ser natural
que consiste propriamente sua autoprodução. Mas, historicamente — e isso é
o que faz com que a objetivação acarrete, por sua vez, a negatividade própria
do trabalho alienado — o homem só pode objetivar-se, dominar a natureza,
caindo em uma dependência com respeito aos outros. Nesse sentido, podemos
dizer que, para Marx, a alienação aparece como uma fase necessária do
processo de objetivação, mas uma fase que o homem há de superar, quando se
derem as condições necessárias, a fim de que possa desdobrar sua verdadeira
essência. h
Assim, pois, a práxis material produtiva exige que se ponham em relação e,
por sua vez, que se distingam, objetivação e alienação.
O homem só existe como tal e se autoproduz como ser que se objetiva e
produz um mundo humano. Mas essa objetivação reveste-se necessária, mas não
essencialmente, de um caráter alienado. Precisamente por isso, a alienação pode ser
superada; o mesmo não ocorre com a objetivação que é, podemos dizer,
constitutiva, essencial para o homem. Por isso, dizíamos anteriormente, a produção
é essencial e fundamental na vida social. A práxis material, entendida sobretudo
como atividade produtiva, já desde os Manuscritos, passa a ocupar o lugar central
no pensamento de Marx. O problema das relações entre sujeito e objeto, não só em
um sentido ontológico como também gnoseológico, tem de ser examinada à luz
dela.

O HOMEM E A NATUREZA.
CARÁTER ANTROPOLÓGICO DAS CIÊNCIAS NATURAIS

O problema sujeito-objeto é formulado nos Manuscritos ao serem estudadas


as relações entre o homem e a natureza. Nas "Teses sobre Feuerbach", é
130
A CONCEPCÃO DA PRÁXIS EM MARX

abordado propriamente como problema das relações sujeito-objeto. Tanto em


um como noutro plano, Marx chega à mesma conclusão: o segundo termo da
relação — natureza, nos Manuscritos; objeto, nas "Teses sobre Feuerbach" —
não lhe interessa à margem de sua atividade prática e, portanto, tem para ele
um caráter antropológico. Esse caráter antropológico da natureza e do objeto
— caráter que recebem ent e pela prática — determina, por sua vez, o caráter
antropoló-

34 Ibid., p. 88.
35 Ibid., pp. 82-83.

131
A CONCEPÇÃO DA PRÁXIS EM MAR*
gico do conhecimento. Vejamos, portanto, qual é o estatuto da natureza
exterior e do objeto, respectivamente, de acorclo com o lugar central da
práxis nos textos anterioriT1ente citados de Marx, que conaplementaremos,
també1T1, com algumas referências a A ideologia alenqã.
Dissemos anteriornnente que o homem, de acordo com o pensamento de
Marx, é por essência um ser que necessita objetivar-se de modo prático,
material, produzindo, assim, mundo humano. Produzir é, por um lado, objetivar-
se no mundo dos objetos produzidos por seu trabalho; produzir é, do modo,
integrar a natureza no mundo do homenu fazer com que a natureza perca seu
estado de pura natureza, si, para converter-se em natureza humanizada, ou
natureza para o homem. Como a natureza per se não tem um caráter
antropológico, o homem tem de ajustá-la a seu mundo humano, mediante a
transfonnação a que a submete com seu trabalho. "A indústria é a relação histórica
real entre a natureza e, portanto, as ciências naturais e o homem" . 36 Através da
indústria, a produção ou o trabalho, a natureza se adapta ao homem, pois "nem a
natureza — objetivamente — nem a natureza subjetivamente, existem de um
modo imecliatamente adequado ao ser hunaano" . 37 A natureza em si, exterior ao
homem, se converte en-l natureza humanizada e, nesse sentido, Marx diz também
que "a indústria é o livro aberto das forças essenciais do Livro escrito,
poderíamos dizer, Com caracteres humanos. E o desenvolvimento da produção,
da práxis produtiva, não passa de uma crescente humanização da natureza.
O que é, então, a natureza à Inargern do homem, fora de sua relação
com ele?
"A natureza, considerada abstratamente, em si, separada do homem, é
nada. para este" . 38 Como interpretar essa passagem de Marx? Trata-se de
urna nova versão idealista do "não há objeto sem sujeito"? Estaremos diante
de uma nova forma de idealismo: o "idealismo da

O homem só existe na relação prática com a natureza. Na medida em que


está — e não pode deixar de estar — nessa relação ativa, produtiva, com ela, a
natureza lhe é oferecida colT10 objeto ou matéria de sua atividade, ou como
resultado desta, isto é, coino natureza humanizada.
Dado que a natureza apenas se apresenta em unidade indissolúvel com
sua atividade, considerá-la por si mesma, à margem do homem, é considerá-
la abstratamente. A natureza é, então, a natureza senz sua Inarca; ou seja, é
o vazio do humano, ou a presença de mundo não humanizado. Só se dá essa
natureza em si porque falta o humano.
36 Mailuscri[os de 1844, p. 88.
MasIbid.,
issop. 117.
só pode se dar
enl uma relação exterior, abstrata, já que o homem,
como
Ibid.,ser ativo,
p. 123.prático, só existe para ele no momento em que cleixa de ser
pura natureza, na medida en-u que a transforma e humaniza com seu
trabalho. Fora dessa relação, a natureza é nada para ele. Nada, posto que,
para o homem enquanto tal, só existe como objeto de sua ação ou como

132
A CONCEPÇÃO DA PRÁXIS EM
produto de sua atividade. A margem de toda relação com o homem, a
natureza é o imediato, o mediado pelo homem, a realiclade não integrada em
seu mundo mediante sua atividade. Com esse caráter de imediaticiclade,
Marx admite sua existência, e inclusive sua prioridade. 16 Mas, para ele, a
natureza real é a que é objeto ou produto de sua atividade, de seu trabalho.
"A natureza tal como se forma na história humana — certidão de nascimento
da sociedade humana — é a natureza real do homem; daí que a natureza, ao
ser formada pela indústria, ainda que seja na forma alienada, é a verdadeira
natureza antropológica . 17A natureza não formada, não tocada pelo homem,
é para ele nada. Mas esse nada que é a natureza pura original só é tal
enquanto o homem não a in.tegrar em seu mundo. O que ontem era nada para
ele (nada para o homem) acaba por adquirir um sentido humano, A partir
desse sentido humano, revela-se sua prioridade ontológica, mas a natureza
que o homem conhece não é mais uma natureza em si, pura, original, mas
sim, integrada elT1 seu mundo através da prática, como natureza já
humanizada, isto é, corno produto de seu trabalho ou em vias de
humanização, como objeto de sua ação. O conhecimento que o homem tem
dessa natureza é, portanto, um conhecimento antropológico. 18
Para Marx, as ciências da natureza não passam, definitivamente, de
ciências humanas. Como entender essa tese de Marx nos Manuscritos de 1844?
É preciso partir, primeiro, clo fundamento antropológico da indústria,
da práxis produtiva. Enfatiza, por isso, que a história da indústria e a
existência objetiva da indústria, já feita realidade, é o livro aberto das forças
essenciais hunaanas " 19 Acrescenta que a indústria só foi considerada por
sua utilidade exterior e não pelo que há nela de realidade dessas forças
essenciais. Buscou-se essa realidade fora da indústria: na política, na
literatura ou na arte. Mas, inclusive sob a forma da alienação, o homem se
desenvolve nesse mundo de objetos
lvI-AR-x

úteis, A indústria J portanto, tem de ser posta relação com o homem. Sendo
assirn, em que relação com ele está o conhecimento científico da natureza?
Em 1.-11T1a relação também histórica, real, na medida em que estão a seu

16
A prioridade ontológica da natureza, do objeto cla atividade prática do homem com respeito à sua
atividade criadora, é enfatizada em mais de uma ocasião por Marx. Cf. a esse respeito: "O
trabalhador não pode criar nada sem a natureza, sem o vnt1T1do exterior sensível. Esta é a matéria
sobre a qual se realiza seu trabalho, sobre a qual este atua, na base e por meio da qual o trabalhador
produz". (Manuscritos de 1844, p. 64.)
17
Ibid., p. 88.
18
Ibid., pp. 88-89.
19
Ibid., p. 87.

133
FILOSOFIA DA PRÁXIS
serviço justamente por meio da indústria. Não há um fundamento para a
indústria — diz Marx — e outro para a ciência. Não se trata de dois mundos:
um prático e outro meramente contemplativo. As ciências naturais influem
praticaiT1ente na vida hl-unana por meio da indústria e, como no caso da
práxis material produtiva, apresentam ulna dupla face: humanizam-no
(ennancipam-no) e desumanizam-no (vêm complennentar sua alienação).
Tal é o sentido da seguinte passa de Marx: "Tanto mais praticantente as
ciências naturais, por meio da indústria, influíram na vida humana e a
transformaram, preparando assim a emancipação do homem, ainda que isso,
diretamente, viesse forçosamente completar a desumanização'
Portanto, as ciências da natureza, por estarem a serviço do homem, por
sua influência prática na vida humana e sua contribuição à emancipação
humana, passam a ter um caráter antropológico. O homem conhece para
transformar a natureza de acordo com necessidades humanas. Mas Marx não
se limita a assinalar o caráter antropológico das ciências naturais pela função
prática que cumprem, mas também por seu objeto 44 A natureza é,
certamente, o objeto das ciências naturais, mas não a natureza em si que
existe com urna prioridade ontológica com respeito ao homem, e sim a
natureza integrada ou em vias de integrar-se no mundo humano. Há unidade
do homem e da natureza: a) na medida em que a natureza é homem (natureza
humanizada) e b) na medida em que, como ser natural humano, é também
natureza. Nesse sentido, Marx diz que o homem é o objeto imediato das
ciências naturais enquanto que a natureza é o objeto imediato do homem. Se
a ciência da natureza é ciência do homem, esta, por sua vez, é ciência natural.
Nem a natureza é separável do homem, e por isso, Marx fala da "realidade
social da natureza", nem as ciências naturais podem ser separadas da ciência
do homern. Arribas tenderão a fundir-se, por seu caráter antropológico
comum, mas isso só ocorrerá no futuro. "As ciências naturais se converterão
com o tempo na ciência do homem, do mesmo modo que a ciência do homem
englobará as ciências naturais e somente haverá, então, urna ciência
O que se quer dizer com isso é que o processo pelo qual o homem
adquire sua natureza real, elevando-se sobre a natureza exterior e inte-
43 Ibid., p. 88
44 Esta tese do caráter antropológico das ciências naturais por seu objeto será abandonada
posteriormente por Marx quando elaborar, a partir de A ideologia aleanã, sua doutrina da
superestrutura ideológica, dentro da qual não inclui as ciências da natureza.
45 Manuscritos de 1844, p. 89.

134
FILOSOFIA DA PRÁXIS

rior e, ao mesmo tempo, o processo pelo qual a natureza original adquire um


caráter antropológico, é um processo histórico que se realiza graças à práxis
material, produtiva; do mesmo modo, o processo pelo qual as ciências naturais
se convertem em ciências humanas também se realiza no tempo, justarnente na
medida em que o homem adquire consciência de que a natureza, que era objeto
das ciências, não é senão uma natureza humanizada. Enquanto a indústria não
fizesse da natureza em si uma natureza antropológica, não se poderia pôr em
evidência, tanto por sua função como por seu objeto, o caráter antropológico
das ciências naturais. Com o tempo, a crescente humanização da natureza fará
com que se apague a linha divisória entre as ciências naturais e a ciência do
homem.
No entanto, caberia acrescentar que, inclusive nos tempos modernos,
quando já o progresso da indústria e da técnica humanizou em alto grau a
natureza, a divisão entre ciências naturais e antropológicas se mantém, apesar
de seu caráter antropológico comum. Marx assinaIa essa divisão que contradiz
esse caráter comum, mas não esclarece explicitamente suas raízes. No entanto,
podemos encontrar implicitamente a explicação em Marx, levando em conta
que o trabalho alienado também se apresenta para ele sob a forma de uma
relação alienada do ser humano com respeito à natureza, em virtude da qual,
longe de ser ela um meio de afirmação e objetivação de suas forças essenciais,
é para o homem — como para o animal — um simples meio de subsistência,
algo estranho ou alheio. Quando a natureza não tem para ele um caráter
antropológico, seu conhecimento necessariamente também não o tem. O
homem, ausente na natureza, deixa de estar presente na ciência natural. A
divisão ou cisão entre o homem e a natureza, na relação alienada do primeiro
com respeito à segunda, determina a divisão ou cisão entre as ciências naturais
e humanas. Só quando a relação prática entre o homem e a natureza assumir
um caráter verdadeiramente humano como práxis produtiva criadora, não
alienada — surgirão as condições para unir as ciências naturais e a ciência do
homem sobre uma base comum antropológica.
A práxis aparece nos Manuscritos de 1844 como atividade produtiva,
concretamente como trabalho alienado, ou como transformação humana da
natureza inclusive na relação alienada do homem e da natureza. Mas,
antecipando uma concepção mais profunda da práxis que começará a se
esboçar tanto em suas "Teses sobre Feuerbach" como em A ideologia alemã,
já nos Manuscritos encontramos referências à atividade prática revolucionária
como atividade necessária para transformar não mais uma idéia, mas sim a
realidade. "Para superar a idéia da propriedade privada, é plenamente
suficiente a idéia do comunismo. Mas, para superar a propriedade privada real,
falta a ação real do comunismo. "46 Marx também se refere ao papel decisivo
da prática na solução dos problemas teóricos: "Vemos como a mesina solução

135
FILOSOFIA DA PRÁXIS

das contradições teóricas só é possível de um modo prático, através da energia


prática do homem, razão pela qual sua solução não pode ser apenas, de modo
algum, problema de conhecimento, ITIas uma tarefa real, de vida, que a
filosofia não poderia resolver, precisamente porque somente a enfocava como
urna tarefa teórica.
A ELABORAÇÃO DO CONCEITO DE PRÁXIS EM A SAGRADA FAMÍLIA
Em A Sagrada Fanqília, obra escrita por Marx em colaboração com Engels em
setembro e novembro de 1844, e publicada em fevereiro de 1845, temos uma
contribuição importante para a elaboração do conceito de práxis. Com essa
obra, propunham-se a responder a alguns artigos da revista de Bruno Bauer, a
Gazeta Geral Literária, órgão dos jovens hegelianos, no quais se atacava o
comunismo e se traçava o programa da "Crítica crítica'
As exigências da luta ideológico-política na Alemanha da época
convertiam em uma tarefa política importante a crítica dessa filosofia
especulativa que concedia tudo à crítica, isto é* à ação do pensamento, e nada
à ação política real. Para desenvolver uma atividade revolucionária efetiva era
preciso ajustar contas coin as ilusões especulativas tecidas pelos jovens
hegelianos e reivindicar a atividade prática política, o que obrigava, por sua
vez, a desenvolver o conceito de práxis. Ao se ocupar agora da ação real e da
força histórica fundamental, das massas, do proletariado, Marx e Engels
descobrem na ação histórica dos homens 1.11T1a peculiar relação do subjetivo
e do objetivo, já observada nos Manuscritos de 1844 com respeito ao trabalho,
à prática produtiva.
Ao enfrentar criticamente o idealismo e o elitismo dos jovens hegelianos,
Marx e Engels abordam em A Sagrada Fanrzília três questões fundamentais que
afetam vitalmente a elaboração do conceito de práxis. Printeira: qual é o
elemento ativo da história que permite transformar a realidade? Para os
filósofos "críticos" é a crítica, a atividade teórica, e não ação real dos homens.
Segunda: quem são os sujeitos dessa transformação, ou seja, da mudança
histórica? Para os neohegelianos é o filósofo "crítico" que, à margem da massa
"acrítica" desenvolve sua atividade intelectual. Telceira: como se exerce essa
atividade "crítica"? Pensam Bauer e consortes: como uma "crítica absoluta",
prescindindo de todo interesse e fora de toda relação com a ação real, com a
prática.
46 Manuscritos de 1844* p. 96
47 p. 87.

Ibid.,

136
A CONCEPÇÃO DA PRÁXIS EM MAR*

Nos três casos a práxis é negada: 1) ao se reduzir a prática à


teoria, à "crítica"; 2) ao se desconhecer o papel do sujeito
verdadeiramente ativo: a niassa, o povo; e 3) ao separar a "crítica" da
atividade real das massas, ou seja, ao cindir a teoria da prática e,
portanto, ao negar esta.
Em sua luta contra o idealismo especulativo ("críticas da
crítica crítica"), Feuerbach oferece ainda uma ajuda que Marx e
Engels aproveitam fecundamente. Com efeito, ao denunciar a
mistificação neohegeliana, aplicam o método de Feuerbach em A
essência do cristianisrno (restabelecimento das verdadeiras
relações entre sujeito e predicado) e, COiT1 esse motivo,
sublinham que a "crítica" é convertida por seus filósofos de
predicado do homem em sujeito autônomo 20 Embora a filosofia
feuerbachiana combata a abstração hegeliana (o Espírito) em nome do
Homem (outra abstração), ela é proveitosa para Marx e Engels na
tarefa à qual se propuseram: dissipar a ilusão especulativa de que o
homem e sua atividade são predicados do Espírito. O alvo em que
mira, sobre tudo A Sagrada Fainília, é a filosofia baueriana da
"Autoconsciência' Na querela de Bruno com Strauss que,
definitivamente, era uma querela de família entre duas variantes do
idealismo especulativo, Bauer acabou sobrepondo-se a seu
oponente. Ao enfatizar frente a Strauss o ponto de vista da
Autoconsciência e fazer dela o único sujeito, a única realidade,
Bauer mostra-se como um hegeliano mais conseqüente, mas, ao
converter a substância em Autoconsciência, faz cle uma propriedade humana
— a Crítica — o sujeito absoluto. 49
Dessa ITIaneira, não escapa a Marx o fato de que Hegel oferece de forma
especulativa, abstrata, uma descrição de relações humanas, reais, enquanto que
em Bauer perde-se essa riqueza humana efetiva e, desse modo, em sua filosofia
da Autoconsciência se transforma em uma caricatura sem conteúdo.
Se a Fenonwnologia de Hegel, apesar de seu pecado original especulativo,
oferece em muitos pontos os elementos de uma característica real clas
relações humanas, o senhor Bruno e consortes apenas nos entregam,
inversamente, uma caricatura que se contenta em arrancar de um produto
espiritual ou, inclusive, das relações e dos movimentos reais unna
cleterminabilidade, convertendo logo depois essa cleterminabilidade em uma
determinabilidade do pensamento, em uma categoria, e fazendo esta

20
Marx e E Engels, La Sagrada Fan?ília, tradução De W. Roces, México, Grijalbo, 1958, p. 86. [Há
C.
uma tradução posterior, de Pedro Scaron, em OME 6: La Sagrada FarnÜia. La situación de Ia clase obl•era
en Inglaterra, Barcelona Crítica, 1978.] 49 p. 257.
Ibid. ,

137
FILOSOFIA DA PRÁXIS

categoria passar pelo ponto de vista do produto, da relação e do movimento


e, a seguir, com a velha e sisuda sabedoria do ponto de vista da abstração, da
categoria geral, da au-

Ibid.,

138
A CONCEPCÃO DA PRÁXIS EM MARX

toconsciência geral, poder olhar triunfalmente por


cima do ombro essa deterrninabilidade. 50
Ao absolutizar assim a Autoconsciência, esta, isto
é, "o espírito", é o todo. Fora dele "não há nada";
o mundo exterior é só aparência. Marx e Engels
explicitam a inconsistência desse idealismo
subjetivo ao afirmar que sequer passa pela cabeça do
"crítico crítico" que exista "um mundo que continua
em pé do m.esmo modo que antes ainda que eu suprima
simplesmente sua existência intelectiva..." Mas não
se limitam a criticar essa redução do mundo exterior
"à minha própria consciência subjetiva" como também
assinalam o lado consemador dessa operação
especulativa que leva a declarar nulas tanto as
instituições, COTIO o Estado e a propriedade privada.
Quando Bauer faz da autoconsciência o sujeito
absoluto, o objetivo — como se sublinha em A Sagrada
Fanq.ília — torna-se pura aparência. Sendo assim, com
esta relação do subjetivo e do objetivo se
correlacionam, por sua vez, necessariamente, o modo
de entender da relação teoria-prática. Ali, onde
desaparece a distinção de consciência e ser, também
não há lugar para distinção de teoria e prática.
Por isso, a especulativa identidade Titística de ser
e pensantento se repete, na Crítica, corno a mesma
identidade mística da prática e da teoria. Daí seu
enfurecimento contra a prática que pretende ser algo
distinto da teoria e contra a teoria que aspira a
ser algo distinto da dissolução de uma determinada
categoria na "ilimitada generalidade da
Autoconsciência'
Na verdade, Marx e Engels estão, aqui, enfatizando a
distinção de teoria e prática e não sua unidade real,
que apenas será destacada mais tarde. Mas a distinção
se torna necessária para escapar do idealismo
subjetivo baueriano que, ao reduzir o ser ao
pensamento, reduz com isso a prática à teoria. Quanto
à função social, conservadora, desse idealismo ao
explicar a nulidade do existente por sua oposição à
Autoconsciência, Marx e Engels propõem que "O que é
preciso demonstrar, pelo contrário, é como o Estado,
Ibid.

139
FILOSOFIA DA PRÁXIS

a propriedade privada, etc., convertem os homens em


abstrações ou os tomam produtos do homem abstrato,
em vez de ser a realidade do homem individual e
concreto" . 53 Assim, pois, a teoria na qual se
dissolve a prática corno uma aparência limita-se a
explicar o existente, ou seja, o que é preciso
transformar efetivamente, como uma nulidade.
50 Ibid., p. 258, 51 Ibid.
52 La Sagrada. Fanzilia, op. cit., p. 258.

53

Eliminado, portanto, o mundo objetivo (Estado, propriedade privada,


etc.) em favor da subjetividade, e reduzida a prática à teoria, apenas fica para
a Crítica o plano do pensamento, como aquele no qual hão de se operar as
verdadeiras transformações. Marx e Engels enfrentam abertamente as
conseqüências dessa dupla redução, em virtude da qual a Crítica "se apoderou
de toda realidade sob a forma de categorias e dissolveu toda a atividade
humana na dialética especulativa'
No que diz respeito aos trabalhadores, trata-se de suprimir e superar
objetos reais não só no pensamento como na vida real. A distinção anterior se
torna vital.
Sabem [os trabalhadores] que a propriedadet o capital, o dinheiro, o trabalho
assalariado, etc. não são precisamente quimeras ideais de seus cérebros, mas
criações muito práticas e muito materiais de sua auto-alienação, que apenas
poderão ser superadas de um modo prático e material, para que o homem se
converta em homem não só no pensavnento, na consciência, mas no ser real,
na vida. 55
Ao eliminar a prática, ressalta o conservadorismo desse idealismo especulativo,
já que deixa intacta a existência real ao modificá-la apenas no pensamento.
A Crítica crítica tenta fazê-los crer que podem chegar a eliminar o capital real
com tão-somente dominar a categoria de capital no pensamentop que se
transfon-narão realmente, para se converter em homens reais, ao transformar
na consciência seu 'eu abstrato" e afastar como uma operação isenta de crítica
toda transformação real de sua existência real, das condições reais de sua
existência e também, portanto, de seu eu real. 56
Em estreita relação com tudo isso está o problema do elemento ativo da história. Os
filósofos "críticos" contrapõem Espírito e massa; o Espírito, a Crítica, é o elemento
ativo; a massa, carente de espírito, é o elemento passivo. A história, por
conseguinte, é feita pelos indivíduos eleitos, portadores do Espírito, enquanto que
a massa, afanada com seus interesses materiais, encontra-se condenada à
Ibid.,

140
A CONCEPÇÃO DA PRÁXIS EM MARx

passividade. Novas contraposições: Espírito-massa, idéia-interesse, criação-


passividade são acrescentadas, assim, às já assinaladas.
O exame da contraposição neohegeliana de idéia e interesse permite a Marx
e Engels adiantar uma tese fundamental do materialismo histórico: o
condicionamento material das idéias e seu verdadeiro pa-

54 Ibid., p. 119. 55 Ibid., p.


118.
56
pel no desenvolvimento histórico. Os jovens hegelianos acreditam que as
idéias são a força motriz da história e que cumprem esse papel na medida
em que se desprendem dos interesses materiais da massa. Ao abordar essa
questão, tanto os filósofos "críticos" quanto Marx e Engels em sua réplica
referem-se à Revolução francesa: os primeiros criticam suas idéias porque
"não levaram além do estado de coisas que essa revolução queria destruir
pela violência' os segundos, em sua resposta, antecipam uma tese
fundamental do materialismo histórico: que as idéias apenas podem levar
para além das idéias de um velho estado universal de coisas.
Quanto ao papel das idéias na história, conseqüentes colT1 sua
distinção de pensamento e ser, ou de teoria e prática, acrescentam: "As
idéias não podem nunca executar nada. Para a execução das idéias, faltam
os homens que ponham em ação uma força prática" . 58 Isto é, por si sós,
as idéias não mudam a realidade; requer-se para isso a prática. As idéias,
por sua vez, expressam necessidades e interesses reais; justamente os
filósofos "críticos" negam essa relação, já que identificam tais
necessidades e interesses com o egoísmo. 59
Os filósofos "críticos" pensam que os limites e o fracasso da
Revolução francesa deveram-se a que suas idéias refletiam o interesse
material da burguesia, já que a massa estava "interessada" por elas. Sendo
assim, Marx e Engels sustentam, pelo contrário, que não se pode divorciar
idéias e interesses. "A tidéia' ficou sempre em situação ridícula quando
parecia divorciada do 'interesse" . 60 Não há, portanto, "idéia pura". E as
limitações da Revolução francesa, como as de todas as grandes ações
históricas, não se deveram a que "a massa havia se interessado e entusiaslnado"
por suas idéias. Marx esclarece tudo isso estabelecendo uma justa relação entre
idéia e interesse tanto para a burguesia como para a massa. Em primeiro lugar,
o fato de que a Revolução francesa não realizasse as idéias "puras" de
igualdade, liberdade e fraternidade não significa que fosse um fracasso como
revolução burguesa. Se cabe falar de fracasso não é para a burguesia que

Ibid.

141
FILOSOFIA DA PRÁXIS

"ganhou" tudo, mas apenas para as massas ao não coincidir o interesse da


burguesia com o interesse real da massa popular.
Não é, portanto, a idéia divorciada do interesse a que promove uma
grande ação histórica, mas sim, o interesse real. Por isso, também se diz em A
Sagrada Fantília com respeito à massa cujo interesse não se expressava na
idéia burguesa:
p. 185.

P. 186.

P. 147.

Ibid.,

142
FILOSOFIA DA PRÁXIS

Não porque a massa se "entusiasmasse" e se "interessasse" pela revolução,


mas porque a parte mais numerosa dela, aquela distinta da burguesia, não
possuía no princípio da revolução seu interesse real, seu próprio e peculiar
princípio revolucionário, mas apenas uma 'idéia", isto é, apenas um objeto
de momentâneo entusiaspno e uma exaltação meramente aparente. 21
Enquanto os jovens hegelianos vêem na participação da massa a causa do fracasso
das grandes ações históricas, Marx e Engels consideram que o volume da ação da
massa aumenta .com a profundidade da ação histórica" . 62 0 que quer dizer, por sua
vez, que a aceleração e profundidade do desenvolvimento histórico estão
vinculadas ao papel crescente das massas populares, já que constituem a principal
força motriz da história.
Ao assinalar o papel ativo das massas populares, Marx e Engels também
apontam — ainda que de forma muito embrionária — a influência dos fatores
objetivos na ação histórica. Já sua tese da idéia como expressão de um interesse
real situa este no terreno objetivo, visto que tal interesse é inseparável de
determinado nível de desenvolvimento histórico-social. A emancipação da
burguesia ou da massa popular requer condições reais distintas. "As condições reais
de emancipação [da massal se diferenciam essencialmente das condições nas quais
a burguesia podia emancipar-se e emancipar a sociedade" . 2223 Um fator objetivo é
também a produção material, a indústria, o trabalho, sem os quais não se poderia
explicar a ação histórica, como dizem, aos filósofos "críticos", Marx e Engels:
Ou por acaso a Crítica crítica acredita ter chegado ao começo da realidade
histórica nem sequer ao começo, enquanto elimina do movimento histórico
o comportamento teórico e prático do homem diante da natureza, da ciência
e da indústria? Ou acredita já ter conhecido, na realidade, qualquer período
sem conhecer, por exemplo, a indústria desse período, o modo de produção
da própria vida?"
Temos, portanto, aqui in nuce a tese fundamental do materialismo histórico, a
saber: que a produção material em um período determinado permite explicar
a ação histórica na qual as massas populares desempenham o papel principaL
O papel desses fatores objetivos se acentua quando se fala do proletariado.
Marx e Engels se referem a ele, em primeiro lugar, escapando da apreciação
negativa que os filósofos críticos fazem de sua situação e missão. Haja vista
que, para eles, a criação apenas é espiritual, compreende-se que afirmem,
diante do que já haviam reconhecido inclusive os econ01T1istas burgueses,

21
Ibid., p. 148. 62 Ibid.
22
Ibid., p. 147

23
p. 216
Ibid.,

143
FILOSOFIA DA PRÁXIS

que "o trabalhador não cria nada" e "não cria nada comentam ironicamente os
autores de A Sagrada Fanzília — porque cria silnplesmente objetos
'concretos', isto é, objetos materiais tangíveis, isentos de espírito e de
crítica, verdadeiro horror aos olhos da Crítica pura
Marx e Engels apresentam o proletariado dentro de unia série cle
antíteses objetivas: com a riqueza, COITA a propriedade privada e,
final.mente, com a burguesia. E ainda que nessas antíteses não se deixe cle
filtrar o antropologismo já observado em os Mal•zuscritos de 1844, não se
alude claramente a seu fundamento objetivo: a propriedade privada. E, não
obstante, seus acentos antropológicos (no proletariado chega "à sua máxima
perfeição prática ... à abstração de toda humanidade"; perdeu-se também "o
homem no proletário"), a missão histórica que lhe é reconhecida está
objetivan-jente em seu ser de classe, como moclalidacle e antítese da
propriedade privada.
Não se trata do que este ou aquele proletário, ou inclusive o proletariado
em seu conjunto, possa representar-se de vez ern quando corno meta. Trata-
se do que o proletariaclo é e do que é obrigado historicamente a fazer,
conforme esse ser seu. Sua meta e sua ação históñca são clara e
irrevogavelmente predeterminadas por sua própria situação de vida e por
toda a organização da sociedade burguesa atual. 66
E essa missão histórica não só se fundarnenta objetivamente senão que,
tendo presente a experiência do proletariado elT1 países capitalistas
desenvolvidos, aponta-se a tese de que a consciência de sua missão (isto é,
sua consciência de classe) se dá nele, e ele mesmo luta por elevá-la.
O fator objetivo fica claramente configurado em A Sagrada FaInília na
medida elT1 que proletariado e riqueza formam com seu antagonismo um
todo como "modalidades da propriedade privada"; na medida em que a
propriedade privada encontra-se forçada a manter sua própria existência e,
conn essa, a do proletariado; e, finalmente e pelo contrário, na medida em
que o proletariado é obrigado a destruirse a si mesmo e, corn isso, a
propriedade privada. Nesse mútuo condicionamento objetivo dos terrnos
antagônicos, Marx e Engels buscam o fundamento histórico do proletariado
como classe e do acesso à sua consciência. E necessário partir dessa
necessidade objetiva, portanto, para explicar a luta do proletariado.
Temos, portanto, que a história humana é feita pelos homens e que a
força principal da ação histórica é a rnassa, o povo; e que nos tempos
modernos essa força é — elT1 virtude da necessidade histórica ob-

Ibid.,

144
A CONCEPÇÃO DA PRÁXIS EM MARx

65 Ibid., p. 84. 66 Ibid.,


102.

1,39

jetiva que o engendra como classe e provoca sua luta — o proletariado. Mas
isso não quer dizer que as massas, os proletários, façam a história de um modo
automático, mas sim, tomando consciência de sua própria situação como
antítese da propriedade privada.
E certo que a propriedade privada promove por si mesma, em seu movimento
econômico, a sua própria dissolução, mas apenas por meio de um
desenvolvimento independente dela, inconsciente, contrário à sua vontade,
condicionado pela própria natureza da coisa; apenas enquanto engendra o
proletariado covno proletariado consciente de sua miséria espiritual e física,
consciente de sua desumanização e, portanto, como desumanização que se
supera a si mesma. 24
Do ponto de vista da elaboração do conceito de práxis, em A Sagrada FaInília se
dá um passo importante ao assinalar-se o papel do fator objetivo que determina a
natureza do sujeito da ação real: o proletariado. Mas, ao mesmo tempo, enfatiza-
se o papel do fator subjetivo, já que essa natureza e missão e, portanto, sua ação
real* têm de tornar-se conscientes para eles; na verdade, em A Sagrada Fanzília
se diz que "grande parte do proletariado inglês e francês é já consciente de sua
missão histórica e trabalha constantemente para elevar essa consciência à
completa claridade" 25
Assim, já há no conceito de práxis uma correlação bastante acusada do
objetivo e do subjetivo na em que o que é o proletariado tem um fundamento
objetivo e requer ser consciente de sua situação e missão histórica para poder
atuar "conforme esse ser seu". Desse modo, para que se enriqueça o conceito
marxista de práxis, será preciso, ainda, que o objetivo e o subjetivo se
correlacionem não só nessa forma ou seja, corno unidade da necessidade
histórica objetiva e da ação real consciente dos homens —, mas também como
unidade no interior mesmo da ação real, da própria práxis; isto é, como
atividade objetiva e subjetiva ao mesmo tempo. Mas Marx apenas chegará a
isso posteriormente, a partir de suas "Teses sobre Feuerbach".

O PAPEL DECISIVO DA PRÁXIS NAS TESES SOBRE FEUERBACH


O problema das relações entre o homem e a natureza permite a Marx avançar,
a despeito de certo antropologismo, em direção a uma concepção que situe a

24
Ibid. r p. 1 OI.
25
p. 102.
FILOSOFIA DA PRÁXIS

at.ividade prática humana no centro de sua concepção, e que faça de sua


filosofia uma verdadeira "filosofia da práxis". Os traços essenciais dessa
filosofia já aparecem com grande nitidez em suas Teses soble Feuerbach, obra
imediatamente posterior aos Adanuscl"itos e quase contemporânea de A
icleologia alevnã. Desenvolvendo um conteúdo já

Ibid.,

146
A CONCEPÇÃO DA PRÁXIS EM MARx

implícito nos Manuscritos (a prática como fundamento da unidade entre


o homem e a natureza, e da unidade sujeito-objeto), Marx formula em suas
Teses sobre Feuerbach uma concepção da objetividade, fundada na práxis,
e define sua filosofia como a filosofia da transformação do mundo. Ambos
os momentos, como veremos, aparecem estreitan-lente vinculados entre
si, pois se a práxis é elevada à condição de to de toda relação
humana, isto é, se a relação prática sujeito-objeto é básica e original, a
relação sujeito-objeto no plano do conhecimento tem de inscrever-se no
próprio horizonte da prática. O problema da objetividade, da existência
ou tipo de existência dos objetos, só pode ser formulado no próprio marco
da práxis. Isto é, ao colocar no centro de toda relação humana a atividade
prática, transformadora do mundo, isso não pode deixar de ter
conseqüências profundas no terreno do conhecimento. A práxis aparecerá
como fundamento (tese I), critério de verdade (tese II) e fim do
conhecimento. A oposição entre idealismo e materialismo metafísico, ou
entre idealismo e realismo, adquire um novo viés. A intervenção da práxis
no processo de conhecimento leva à superação da antítese entre idealismo
e materialismo, entre a concepção do conhecimento como conhecimento
de objetos produzidos ou criados pela consciência, e a concepção que vê
nele uma mera reprodução ideal de objetos em si. Isto é, ao converter-se
a prática no fundamento, critério de sua verdade e fim do conhecimento,
as duas posições têm de ser transcendidas; e da mesma maneira que não é
possível permanecer, uma vez admitido o papel decisivo da práxis, em
uma teoria idealista do conhecimento, tampouco é possível continuar se
atendo a uma teoria realista como a do materialismo tradicional, que não
é nada mais do que um desenvolvimento do ponto de vista do realismo
ingênuo.
Devemos observar, no entanto, que o exame das conseqüências
acarretadas pela introdução da práxis na relação de conhecimento não
leva, nos intél-pretes de Marx, às mesmas conclusões. Para uns, o fato
de a práxis ser um fator em nosso conhecimento não significa que não
conheçamos coisas em si; para outros, a aceitação desse papel
decisivo da práxis significa que não conhecemos que as coisas são em
si mesmas, à margem de sua relação com o homem, e sim coisas
humanizadas pela práxis e integradas, graças a ela, em um mundo
humano (ponto de vista de Gramsci); por último, se sustenta
corretamente que sem a práxis COITAO criação da realidade humana-
social não é possível o conhecimento da própria realidade (posição de
K. Kosik).

147
FILOSOFIA DA PRÁXIS

Todas essas posições pretendem apoiar-se nas Teses sobre Feuerbach.


Daí a necessidade de voltar ao próprio texto de Marx e tentar estabelecer seu
verdadeiro sentido, que, a julgar pelas interpretações diversas e inclusive
opostas a que dá lugar, apresenta-se, a princípio, com um caráter
problemático. Passemos, pois, ao exame de algumas das Teses sobre
Feuerbach.
A PRÁXIS COMO FUNDAMENTO DO CONHECIMENTO (TESE 1)

Tese 1.
A falha fundamental de todo o materialismo precedente (incluindo o de
Feuerbach) reside em que somente capta o objeto (Gegenstand), a
realidade, o sensível, sob a forma de objeto (Objelct) ou de
conte.lnplação (Anschaung), não como atividade huynana sensorial,
como prática; não de um modo subjetivo. Daí que o lado ativo fosse
desenvolvido de um modo abstrato, em contraposição ao materialismo,
pelo idealismo, o qual, naturalmente, não conhece a atividade real,
sensorial, como tal. Feuerbach aspira a objetos sensíveis, realmente
diferentes dos objetos conceituais, mas não concebe a própria atividade
humana como uma atividade objetiva (gegenstãndliche). Por isso, em A
essência do cristianismo, só se considera como autenticamente humano
o comportamento teórico, e, inversamente, a prática só é captada e
plasmada sob a sua suja forma judia de manifestação. Daí que Feuerbach
não compreenda a importância da atividade "revolucionária" , da
atividade "crítico-prática. 69
Toda essa primeira tese tende a contrapor o materialismo tradicional e o
idealismo no que se refere ao modo de conceber o objeto e, portanto, a relação
cognoscitiva do sujeito com ele. Tanto uma como outra posição são negadas,
mas com sua negação indicam-se, por sua vez, a necessidade de sua superação
e o plano em que essa superação pode ocorrer (a concepção da atividade
humana como atividade sensorial, real, objetiva, isto é, como prática). A crítica
do materialismo tradicional é feita com referência a seu modo de captar o
objeto. É preciso observar que Marx utiliza em alemão dois termos para
designar objeto: a primeira vez diz Gegenstand; a segunda, Objekt. Com essa
diversa designação, Marx quer distinguir o objeto como objetivação não só
teórica como prática, e o objeto em si que é o que entra na relação cognoscitiva
de acordo com o materialismo. Objekt é o objeto em si, exterior ao homem e à
sua atññdade; o objeto é aqui o que se opõe ao sujeito; algo dado, existente em
si e por si, não um produto humano. A relação que corresponde diante desse
objeto exterior e subsistente por si é uma atitude passiva por parte do sujeito,
uma visão ou contemplação. O sujeito se limita a receber ou refletir uma
realidade; o conhecimento não passa de um resultado da ação dos objetos do
mundo exterior sobre os órgãos dos sentidos. O objeto é captado

148
A CONCEPÇÃO DA PRÁXIS EM MARx

objetivanaente, isto é, não como produto da atividade prática, não de um modo


subjetivo. A subjetividade entendida aqui como atividade humana sensível,
como prática — é

69 C Marx, Tesis sobre Feuerbach, em C. Marx e F. Engels, La ideología alenmna, tradução


de W. Roces, Montevideo, EPU, 1969, p. 633.

contraposta à objetividade, à existência do objeto como objeto em si, na


contemplação.
A teoria que Marx atribui — e critica — ao materialismo
tradicional é a teoria do conhecimento como visão ou
contemplação segundo a imagem sensível do objeto que se
imprime em nossa consciência traduz, selT1 a alteração do sujeito
cognoscente, o que é o objeto em si. Esse papel passivo, inativo,
do sujeito, característico do materialismo tradicional, é o que Marx
tem presente ao mostrar a necessidade de substituir seu objetivismo
por uma concepção da realidade, do objeto, como atividade
humana, como prática, isto é, subjetivamente. O objeto do
conhecimento é produto da atividade humana, e como tal — não
como Inero objeto da contemplação — é conhecido pelo homem.
A crítica de Marx ao materialismo tradicional, incluindo o de
Feuerbach, baseia-se, portanto, em que, a seu juízo, vê no real, no objeto,
o "outro" do sujeito, algo oposto a ele, em vez de considerá-lo
subjetivamente, como o produto de sua atividade. 70
O conhecimento é o conhecimento de um mundo criado pelo
homem, isto é, inexistente fora da história, da sociedade e da indústria.
Isso é justamente o que — segundo Marx — o materialismo tradicional
ignora, incluindo Feuerbach.
Em contraposição a isso, o idealismo viu e desenvolveu o "lado
ativo", a atividade subjetiva no processo de conhecimento. O sujeito não
capta objetos dados, em si, mas produtos de sua atividade. Marx tem
presente a concepção idealista do conhecimento que Kant inaugura, e de
acordo com a qual o sujeito conhece um objeto que ele mesmo produz.
Marx reconhece o mérito do idealismo por ter assinalado esse papel ativo
do sujeito na relação sujeito-objeto. Mas essa atividade é — na filosofia
idealista — a do sujeito enquanto sujeito consciente, pensante; daí ser
considerada abstratamente, já que não inclui a atividade prática, sensível,
real.
Essa homenagem que Marx rende ao idealismo, ao mesmo tempo
em que aponta suas limitações, prova que a solução para ele está na
superação da posição idealista e, de modo algum, em uma volta à atitude
de A
149
FILOSOFIA DA PRÁXIS

contemplativa, realista, ingênua, que justamente o idealismo viera


demolir. Como este, Marx formula uma concepção do objeto como pro-

70 0 que Marx nos diz tão explicitamente em suas Teses, expressa sem rodeios nesta
pasideologia alevnã que data da mesma época: "Não vê [Feuerbach] que o mundo sensível que o
rodeia não é algo diretamente dado desde toda uma eternidade e constantemente igual a si mesmo,
mas sim o produto da indústria e o estado social, no sentido de que é um produto histórico, o
resultado da atividade de toda uma série de gerações, cada uma das quais se ergue sobre os homens
da anterior, continua desenvolvendo sua indústria e seu intercâmbio e modifica sua organização
social com relação a novas necessidades. Até os objetos da 'certeza sensorial' mais simples lhe
são dados somente pelo desenvolvimento social, a indústria e a troca comercial". (C. Marx e F.
Engels, La ideología alentana, op. cit., p, 45.)

150
FILOSOFIA DA PRÁXIS

duto da ativüade subjetiva, mas entendida não mais abstratamente, e sim como

151
FILOSOFIA DA PRÁXIS

atividade real, objetiva, material. Também como o idealismo, Marx concebe o


conhecimento em relação a essa atividade, como conhecimento de objetos
produzidos por uma atividade prática, da qual a atividade pensante, da consciência
— única que o idealismo tinha presente — não podia ser separada.
A superação do idealismo e do materialismo tradicional havia de
consistir, portanto, na negação da atitude contemplativa do segundo, assim
como na negação da atividade em sentido idealista, especulativo. A
verdadeira atividade é revolucionária, crítico-prática; isto é, transformadora
e, portanto, revolucionária, mas crítica e prática ao mesmo tempo, ou seja,
teórico-prática: teórica, sem ser mera contemplação, já que é a teoria que
guia a ação, e prática, ou ação guiada pela teoria. A crítica — a teoria, ou a
verdade que contém — não existe à margem da práxis.
Resumamos a contribuição da tese I. Marx colocou a prática como
fundamento do conhecimento ao rejeitar a possibilidade de conhecer à margem da
atividade prática do homem (posição do materialismo tradicional) e ao negar
também a possibilidade de um verdadeiro conhecimento se o objeto é considerado
como mero produto da consciência (posição do idealismo). Conhecer é conhecer
objetos que se integram na relação entre o homem e o mundo, ou entre o homem e
a natureza, que se estabelece graças à atividade prática humana.
A prática é fundamento e limite do conhecer e do objeto humanizado
que, como produto da ação, é objeto do conhecimento. Fora desse fundamento
ou para além desse limite está a natureza exterior que ainda não é objeto da
atividade prática e que, enquanto permanecer em sua existência imediata, vem
a ser uma coisa em si exterior ao homem, destinada a converter-se em objeto
da práxis humana e, portanto, em objeto de conhecimento.
Marx não nega a existência de uma natureza à margem da práxis ou
anterior à história, mas a natureza que existe efetivamente para ele se dá
apenas ena e pela prática. Desse modo, Marx aceita a prioridade ontológica
de uma natureza à margem da práxis que reduz cada vez mais seu âmbito para
se transformar em natureza humanizada. Em A ideologia alenzã, Marx é
bastante explícito ao sustentar que a práxis é o fundamento do mundo em que
hoje nos desenvolvemos, sem que isso implique a negação de uma natureza
anterior à práxis 26 E justamente por ser fundamento do mundo real que hoje
existe, a práxis proporcio„ na à ciência, ao conhecimento, não só seu fim
como seu objeto. Tudo isso reafirma o que Marx dissera antes nos
Manuscritos de 1844, ao falar das relações entre o homem e a natureza.

26
que seria da ciência natural, a não ser pela indústria e pelo comércio? Inclusive esta ciência natural
'pura' apenas adquire tanto seu fim como seu material somente graças ao comércio e à indústria, graças
à atividade sensível dos homens E acrescenta-se: . . é esta atividade, este contínuo laborar e criar
sensíveis, esta produção, a base de todo o mundo sensível...". Enquanto à natureza exterior, em si, à
margem da atividade prática do homem, se diz um pouco mais adiante: "É certo que perrnanece de pé, nisso, a prioridade
da natureza exterior ... De resto, esta natureza anterior à história humana não é a natureza em que vive
Feuerbach, mas sim uma natureza quer fora talvez de umas tantas ilhas de coral australianas
152
A CONCEPÇÃO DA PRÁXIS EM MARx

Assim, portanto, ao conceber o objeto COITIO atividade subjetiva,


como produto de sua ação, não nega por princípio a existência de uma
realidade absolutamente independente do homem, exterior a ele, isto é, uma
realidade em si. O que nega é que o conhecimento seja mera contemplação, à
margem da prática. O conhecimento só existe na prática, e é o conhecimento
de objetos nela integrados, de uma realidade que já perdeu, ou está em vias
de perder, sua existência imediata, para ser uma realidade mediada pelo
honnem.
Tal é, a nosso juízo, o verdadeiro sentido da tese I ao conceber o objeto
como produto da atividade humana, e entender esta atividade real, objetiva,
sensível, isto é, como prática.

A PRÁXIS corvro CRITÉRIO DE VERDADE (TESE 11)


Vejamos agora a tese IT, cuja importância é capital, já que nos faz ver o papel
da prática no conhecimento em uma nova dimensão: não só proporciona o
objeto do conhecimento como também o critério de sua verdade.
O problema da possibilidade de atribuir-se ao pensamento humano uma
verdade objetiva não é um problema teórico, mas sim um problema prático.
E na prática onde o homem deve demonstrar a verdade, isto é, a realidade e
o poder, a terrenalidade de seu pensamento. A disputa em torno da realidade
ou irrealidade do pensamento — isolado da prática — é um problema
puramente escolástico . 7'
Infere-se essa tese da anterior. Se a práxis é fundamento do conhecimento,
isto é, se o homem apenas conhece um mundo na medida em que é objeto ou
produto de sua atividade, e se, além disso, apenas o conhece porque atua,
praticamente, e graças a sua atividade real, transformadora, isso significa que
o problema da verdade objetiva, ou seja, se nosso pensamento concorda com
as coisas que preexistem a ele, não é um problema que possa ser resolvido
teoricamente, em um mero confronto teórico de nosso conceito com o objeto,
ou de meu pensamento com outros pensamentos. Isto é, não se pode fundar
a verdade de um pensamento se não se sai da própria esfera do pensamento.
Para mostrar sua verdade há que sair de si mesmo, plasmar-se, ganhar corpo
na
de recente formação, já não existe hoje em parte alguma, nem existe tampouco, portanto, para
Feuerbach". (C. Marx e E. Engels, La ideología aleanana, op. cit., pp. 46-47.)

72 C. Marx, Teses sobre Feuerbach, op. cit., p. 634.

153
FILOSOFIA DA PRÁXIS

própria realidade, sob a forma de atividade prática. Só então, pondo-o em


relação com a práxis, na medida em que esta se encontra impregnada por ele,
e o pensamento, por sua vez, na práxis, um pensamento plasmado, realizado,
podemos falar de sua verdade ou falsidade. É na prática que se prova e se
demonstra a verdade, "o caráter terreno", do pensamento. Fora dela, não é
verdadeiro nem falso, pois a verdade não existe em si, no puro reino do
pensamento, mas sim, na prática. Neste sentido, Marx diz que a disputa em
torri0 da verdade ou falsidade (realidade ou irrealidade) do pensamento, à
margem da prática, é uma questão puramente escolástica. Isto é, ao julgar a
verdade ou a falsidade de uma teoria não podemos isolá-la da prática.
Mas como posso afirmar que a prática prova uma verdade, enquanto que
outra demonstra a falsidade de uma teoria? Marx não dá aí uma resposta a essa
questão. Mas podemos encontrar a resposta a partir de sua concepção da práxis
como atividade real, material, adequada a fins. A ação transformadora da
realidade tem um caráter teleológico, mas os fins que se pretende materializar
estão, por sua vez, condicionados, e têm por base o conhecimento da realidade
que se quer transformar. Se ao atuar se atingem os fins que se perseguiam, isso
significa que o conhecimento de que se partiu para traçar esses fins é
verdadeiro. E na ação prática sobre as coisas que se demonstra se nossas
conclusões teóricas a seu respeito são verdadeiras ou não. Se, partindo de
determinados juízos sobre a realidade, nos propomos a alcançar certo
resultado e este não se produz, isso significa que o juízo em questão era falso.
Mas é preciso ter cuidado ao interpretar essa relação entre verdade e
aplicação venturosa, ou entre falsidade e fracasso, em um sentido pragmático,
como se a verdade ou a falsidade fossem determinadas pelo êxito ou o
fracasso. Se uma teoria pode ser aplicada com êxito é porque era verdadeira,
e não ao contrário (verdadeira porque foi aplicada eficazmente). O êxito não
constitui a verdade; simplesmente a torna transparente, ou seja, torna visível
que o pensamento reproduz adequadamente uma realidade.
Esse papel da prática como critério de verdade não deve ser entendido,
por outro lado, no sentido de que proporcione de forma direta e imediata esse
critério de validade de tal modo que bastaria abrir os olhos a ela, ou proceder
a uma simples leitura da prática para que encontrássemos inscrito nesta —
como uma evidência — o critério da verdade. Desse modo, a prática não fala
por si mesma e os fatos práticos — como todo fato — têm de ser analisados,
interpretados, já que não revelam seu sentido à obsemação direta e imediata,
ou a uma apreensão intuitiva. O critério de verdade está na prática, mas só é
descoberto em uma relação propriamente teórica com a própria prática. Essa
intervenção da teoria para que a verdade inscrita na práxis se torne
transparente é apontada por Marx, a nosso ver, na tese VII, nestes termos:
"Todos os mistérios
154
A CONCEPÇÃO DA PRÁXIS EM
IVIARX

que induzem a teoria ao misticismo encontram sua solução racional na


prática humana e na contpreensão dessa prática" Desse modo, as teses 11 e
III estabelecem a unidade en.tre a teoria e a prática em um duplo movimento:
da teoria para a prática, na tese II, e desta última para a teoria (na tese VIII).
Assim, pois, a concepção da prática como critério de verdade opõe-sb tanto
a uma concepção idealista do critério de validade do conhecimento, segundo
a qual a teoria teria em si Iliesma o critério de sua verdade, como a uma
concepção empírica segundo a qual a prática proporcionaria na forma direta
e imediata o critério de verdade da teoria,
Tal é o papel da prática como critério de verdade, independentemente das
formas específicas que possa adotar nas diferentes ciências, assim como das
limitações de sua aplicabilidade que impedem que fa- camos dela um critério
absoluto de verdade.

A PRÁXIS REVOLUCIONÁRIA COMO UNIDADE DA MUDANÇA DO HOMEM E


DAS CIRCUNSTÂNCIAS (TESE 111)

Na tese III, enfatiza-se a prática revolucionária corno práxis que transforma


a sociedade e, com isso, Marx opõe-se à concepção materialista anterior da
transformação do homem, transformação que era reduzida a um trabalho de
educação de uma parte da sociedade sobre outra.
A teoria materialista da mudança das circunstâncias e da educação esquece
que as circunstâncias fazem os homens mudarem e que o educador
necessita, por sua vez, ser educado. Tem, pois, que distinguir na sociedade
duas partes, uma das quais se encontra colocada por cima dela.
A coincidência da mudança das circunstâncias com o da atividade humana
ou a mudança dos próprios homens, só pode ser concebida e entendida
racionalmente como prática revolucionária.
Mal-x tem presente, aqui, a idéia da transformação social sustentada pelos
iluministas e materialistas do século XVIII e que Feuerbach e os socialistas
utópicos, no século XIX, não fazem mais do que continuar.
De acordo com essa concepção, o homem é produto das
circunstâncias, do meio; é determinado por este (teoria de Voltaire na
França), mas não rigorosamente, já que junto com a influência do meio,
admite-se a influência ainda mais decisiva da educação. O Iluminismo — e
particularmente o alemão com Goethe, Hender — concebe a transformação
da humanidade como uma vasta empresa de educação. Essa concepção da
transformação educativa da humanidade tem

Ibid., p. 634.
155
FILOSOFIA DA PRÁXIS
73 C. Mano Tesis sobre Feuerbach, op. cit., p. 635. (grifo nosso)
como base a idéia do homem como ser racional. O progresso da
humanidade exige a dissipação dos pré-conceitos e o domínio da razão.
Basta iluminar, esclarecer a consciência com a luz da razão para que a
humanidade progrida, entre na idade da razão e viva em um mundo
construído segundo princípios racionais.
A educação permite que o homem passe do reino das "sombras" ,
da "superstição", ao reino da razão. Educar é transforrnar a humanidade.
Mas quem são os educadores que devem educar o resto da sociedade?
São os filósofos do Iluminismo e os "déspotas iluministas" que escutam
os conselhos desses filósofos. Ao resto da sociedade só cabe deixar que
a consciência seja moldada a fim de que os homens possam viver —
como seres racionais — de acordo com sua própria natureza.
Essa concepção da transformação da sociedade acarreta a idéia do
homem como uma matéria passiva que se deixa moldar pelo meio ou por
outros homens. A atividade só é reconhecida em uma parte da sociedade
— os filósofos e os déspotas iluministas — e, por outro lado, é reduzida
a uma atividade pedagógica, à influência que exercem os educadores
sobre os educandos.
A essa concepção que se encontra no fundo de toda tentativa de
transformação da sociedade pelo caminho meramente pedagógico e não
pelo caminho prático revolucionário, Marx opõe uma crítica que pode
ser entendida da seguinte forma:
a) os homens não só são produto das circunstâncias, como estas
também são produtos seus. Reivindica-se, assim, o
condicionamento do meio pelo homem, e com isso seu papel ativo
em relação ao meio. As circunstâncias condicionam, mas na
medida em que não existem circunstâncias em si, à margem do
homem, elas encontram-se, por sua vez, condicionadas;
b) os educadores também devem ser educados. Rejeita-se, assim, a
concepção característica de uma sociedade dividida em duas: em
educadores e em educandos, com a particularidade de que os
primeiros permanecem subtraídos ao processo de educação. Por
conseguinte, o sujeito da atividade educativa se encarna em uma
parte da sociedade — por sinal minoritária — e o objeto —
produto passivo da sociedade —, na maioria. Desse modo, a tarefa
de transformar a humanidade — concebida como educação do
gênero humano — fica nas mãos de educadores que, por sua vez,
não se transformam a si mesmos e cuja missão é transformar os
demais. Eles são, portanto, os verdadeiros sujeitos da história; os
demais seres humanos não são mais do que uma matéria passiva

156
A CONCEPCÃO DA PRÁXIS EM MARX
que eles devem moldar. Ao se afirmar que os educadores também
devem ser educados, rejeita-se que o princípio do desenvolvimento da
humanidade se encarne em uma parte da sociedade que não exija
também sua própria transformação. Tal era a concepção característica
da burguesia revolucionária do século XVIII que se via, a si mesma,
como o princípio do desenvolvimento e do condicionamento
histórico, ao mesmo tempo em que negava para si este
desenvolvimento.
Na tarefa da transformação social, os homens não podem se dividir em
ativos e passivos; por isso não se pode aceitar o dualismo de 'educadores e
educandos". A negação desse dualismo — assim como da concepção de um
sujeito transforrnador que permanece ele próprio subtraído à mudança —
implica a idéia de uma práxis incessante, contínua, na qual se transformam
tanto o objeto como o sujeito. Ao transformar a natureza — dirá Marx em
outro lugar o homem transforma sua própria natureza, 75 em um processo de
autotransformação que jamais pode ter fim. Por isso; jamais poderá haver
educadores que não requeiram, por sua vez, ser educados;
c) as circunstâncias que modificam o homem são, ao mesmo tempo,
modificadas por ele; o educador que educa há de ser educado por sua
vez. E o homem, definitivamente, quem muda as circunstâncias e
muda a si mesmo. Através desse fundamento humano comum,
coincidem a mudança das circunstâncias e a mudança do próprio
homem. Mas essa coincidência só pode ser entendida diz Marx —
como prática revolucionária. Na transformação prático-revolucionária
das relações sociais, o homem modifica as circunstâncias e afirma seu
domínio sobre elas, isto é, sua capacidade de responder a seu
condicionamento ao abolir as circunstâncias que o condicionavam,
Desse modo, como se trata, por um lado, de circunstâncias humanas
— relações sociais, econômicas — e, por outro, os homens são
conscientes dessa transformação e de seu resultado, a mudança das
circunstâncias não pode ser separada da mudança do homem, da
mesma maneira que as mudanças que se operam nele — ao elevar sua
consciência — não podem ser separadas da mudança das
circunstâncias. Mas essa unidade entre circunstâncias e atividade
humana, ou entre transformação das primeiras e autotransformação do
homem, somente se realiza em e pela prática revolucionária.
Ao enfatizar essa unidade, Marx se opõe tanto ao utopismo que pensa que basta
a educação — isto é, um processo de autotransformação do homem — à margem
ou com anterioridade à mudança das circunstâncias de sua vida, para produzir
uma mudança radical do homem, como a um deterrninismo rigoroso que acredita

157
FILOSOFIA DA PRÁXIS
que basta mudar as circunstâncias, as condições de vida — à margem das
mudanças na consciência através de um trabalho de
75 Cf. El Capital, op. cit., t. I, p. 130.

158
FILOSOFIA DA PRÁXIS

educação — para que o homem se transforme. A modificação das circunstâncias e


do homem, a consciência da mudança do meio e da educação, são obtidas apenas
por meio da atividade prática revolucionária,
A práxis, que nas duas teses anteriores aparecia, sobretudo, como uma
categoria gnoseológica, converte-se, assim, em uma categoria sociológica
que, diante do utopismo e do determinismo mecanicista, fixa as condições de
uma verdadeira transfonnação social: mudança das circunstâncias e do próprio
homem. A unidade entre uma e outra mudança define, por sua vez, a práxis
revolucionária.
DA INTERPRETAÇÃO DO MUNDO À SUA TRANSFORMAÇÃO (TESE XI)

Deve-se situar a tese XI justamente em relação à práxis revolucionária como ação


sobre as circunstâncias que é inseparável de uma ação sobre as consciências. Ela
define a conexão histórica entre a filosofia e a ação e, por sua vez, a relação que o
marxismo mantém com a prática, rompendo com toda a filosofia tradicional-
Os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo de distintos modos; do que
se trata é de transformá-lo. 27
Nessa tese fala-se do mundo em dois sentidos: como objeto de interpretação,
e como objeto da ação do homem, de sua atividade prática, isto é, como objeto de
sua transformação. Em que relação está ou deve estar a filosofia com o mundo?
Marx responde a essa questão em sua famosa tese XI: a filosofia deve relacionar-
se com o mundo enquanto objeto de sua ação. Essa tese é perfeitamente
congruente com tudo o que se disse antes e particularmente com as teses I e II
que já comentamos. Se o homem conhece o mundo na medida em que atua sobre
ele de tal maneira que não há conhecimento à margem dessa relação prática, a
filosofia enquanto teoria não pode se desvincular da prática para se reduzir a mera
visão, contemplação ou interpretação. Mas isso é precisamente o que a filosofia
fez até agora. Ainda que uma filosofia desse gênero possa ter conseqüências
práticas, estas se inscrevem sempre no marco de uma aceitação do mundo que
contribui, por sua vez, para justificá-lo e sustentá-lo. A expressão mais acabada
dessa filosofia é justamente a que só aspira — como em Hegel — a dar razão do
que é e rejeita a tentativa de apontar caminhos para o desenvolvimento do real.
Trata-se aí não de transformar o mundo, mas sim de reduzi-lo ao pensamento,
isto é, de interpretá-lo; uma vez terminada sua interpretação, o mundo não pode
ser modificado; admitir sua modificação equivaleria a admitir algo que escapa ao
pensamento, e esse mundo não pensado — levando em conta a tese fundamental
de Hegel da identidade do pensamento e do ser

27
C. Marx, Tesis sobre Feuerbach, op. cit., p. 635.

159
FILOSOFIA DA PRÁXIS

— somente poderia ser tu-n mundo irreal. Considerando-se que para Hegel o
mundo é como deve ser, não há lugar para uma realidade que seja objeto de
transformação.
Sendo assim, quando se trata de transformar o mundo, a primeira coisa
que é preciso rejeitar é uma filosofia que, com suas conseqüências práticas —
como pura teoria —, contribui para a aceitação do mundo e, nesse sentido,
opõe-se a sua transformação. Daí a necessidade de combater semelhante
filosofia, que é justamente a filosofia idealista alemã que culmina — como tal
filosofia da interpretação — não só em Hegel como também em Feuerbach.
Essa filosofia tem de ser combatida não só por ser mera teoria, mas
precisamente porque sendo tal uma teoria da conciliação da razão com o
mundo — tem conseqüências que ultrapassam seu marco meramente teórico.
Interpretar apenas é não transformar; por isso, diz Marx na primeira parte de
suas Teses que "os filósofos limitaram.-se a interpretar o mundo" , o que
equivale a dizer que se limitaram a aceitá-lo, a justificá-lo, a não transforrná-
lo.
Isto é, Marx nunca negou que uma filosofia, mesmo sendo idealista,
faça parte da realidade; faz parte dela pelas conseqüências práticas que tem
enquanto teoria. Mas, ao rejeitar a filosofia que por ser mera interpretação
aceita o mundo como ele é e não contribui para a sua transformação, Marx
não rejeita toda filosofia ou teoria. Se se trata de transformar o mundo, é
preciso rejeitar a teoria que é Inera interpretação e aceitar a filosofia ou teoria
que é prática, isto é, que vê o mundo como objeto da práxis. A filosofia é
filosofia da transformação do mundo; é teoria da práxis, no sentido de teoria
— e, portanto, compreensão, interpretação — que torna possível sua
transformação.
A tese XI não implica nenhuma diminuição do papel da teoria e menos
ainda sua rejeição ou exclusão. Rejeita-se a teoria que, isolada da práxis, como
mera interpretação, está a serviço da aceitação do mundo. Reconhece e eleva
até o mais alto nível aquela que, vinculada à práxis, está a serviço de sua
transformação. A teoria assim concebida se torna necessária, como crítica
teórica das teorias que justificam a não transformação do mundo e como teoria
das condições e possibilidades da ação. Assim, portanto, nem Inera teoria nem
mera práxis; unidade indissolúvel das duas. Tal é o sentido último da tese XI.
A tese XI mostra o ponto em que se verifica a ruptura do pensamento
de Marx com todo o pensamento filosófico anterior. E aí que aparece o
marxismo como uma revolução que abala a problemática, o objeto e a função
da filosofia. Não só interpretar, mas transformar. Mas — é preciso enfatizar
mais uma vez — trata-se de transformar com base em uma interpretação. Ora,
essa interpretação exigida, por sua vez, pela transformação do mundo não

160
A CONCEPCÃO DA PRÁXIS EM MARX

pode ser outra além de uma interpretação científica. Desse modo, a passagem
da interpretação à transformação, ou do pensamento à ação, implicar por sua
vez, uma re-
volução teórica que o marxismo deve levar a cabo com relação à práxis
revolucionária do proletariado: a passagem do socialismo como utopia ou
ideologia ao socialismo como ciência. 28
Reduzir o marxismo a mera interpretação, mesmo que apresentado
como uma ciência, quando do que se trata é de transformar o mundo, significa
permanecer dentro dos limites teóricos que o próprio Marx assinala e
denuncia na tese XI sobre Feuerbach.
A PRÁXIS EM A IDEOLOGIA ALEMÃ
A transformação da teoria, isto é, sua transformação de utopia (ou ideologia) em
ciência, é condição indispensável da práxis revolucionária. Por isso, Marx buscará
superar as limitações do caráter antropológico, utópico ou ideológico que suas
obras de juventude revelam. Ã ideologia alemã, escrita em 1845 em colaboração
com Friedrich Engels, constitui urna etapa decisiva nesse processo de
transformação do socialismo em ciência. Mas não se deve esquecer que a virada
que essa obra produz ao elaborar conceitos chave para interpretar a história e, em
particular, a sociedade capitalista, corresponde a exigências da práxis. Por isso, a
concepção materialista da história, cujos alicerces são lançados nessa obra, não
pode ser concebida como uma mera interpretação da história, mas sim em estreita
relação com a teoria da práxis revolucionária, na medida em que as condições
objetivas históricas, econômicas e sociais — fundam e tornam possível a ação
revolucionária do proletariado.
Trata-se não de criar a consciência de um fato existente, mas sim de derrubar
o que existe, de transformar as coisas. Levando em conta essas exigências da
práxis, explica-se a atenção que Marx (e Engels) concede novamente em A
ideologia alemã aos jovens hegelianos e, em particular, à historiografia idealista
alemã de seu tempo. Na verdade, não se pode desenvolver uma verdadeira ação
real enquanto se confia ilusoriamente no poder das idéias e estas aparecem
desvinculadas de seu verdadeiro fundamento econômico-social. Daí a necessidade
de explicar a verdadeira natureza das formações ideológicas, sua origem, sua

28
Ao longo de toda sua vida e obra, Marx e Engels mantêm.-se fiéis à concepção da necessidade de
transformar o socialismo de utopia em ciência por razões práticas, Assim, por exemplo, no folheto de
E Engels, escrito em 1877, e que ele intitulou inequivocadamente Do socialis1770 utópico ao socialismo
científico, se dá essa caracterização do socialismo científico, na qual se evidencia claramente o
conteúdo teórico-prático do marxismo: "O socialismo científico, expressão teórica do movimento
proletário, é o chamado a investigar as condições históricas e, com isso, a própria natureza desse ato
[a revolução proletária], infundindo deste modo a classe designada a fazer essa revolução, a classe
hoje oprimida, a consciência das condições e da natureza de sua própria ação" (cf. Marx e Engels,
Obras escogidas, op. cit., tomo II, p. 144.)

161
FILOSOFIA DA PRÁXIS

função e o caminho para dissipá-las. Trata-se — diz Marx — de "explicar as


formações ideológicas com base na prática material" e não de "ex-
plicar a prática partindo da idéia" 78 A crítica, isto é, a ação das idéias _não
.é a força motriz da história, como pensam os jovens hegelianos; tal força é
para ele a ação real, efetiva: a revolução. 79

A PRODUÇÃO NA HISTÓRIA E NA VIDA SOCIAL

Essa análise da verdadeira natureza e função das idéias esclarece o lugar em


que se opera a transformação real do existente. A destruição das "ilusões
ideológicas» aparece em Marx como condição necessária para elaborar uma
teoria da transformação revolucionária da sociedade existente. Dessa
maneira, a própria vinculação entre essas ilusões e as condições reais da vida
social assinala, por sua vez, a necessidade de conhecer as condições reais,
materiais que, por um lado, fazem o homem e suas idéias e que, por outro,
deverão ser transformadas com sua ação real. "As circunstâncias fazem o
horn.em — dizem Marx e Engels — na medida em que este faz as
circunstâncias
A análise dessas circunstâncias leva Marx a assinalar — enriquecendo e
desenvolvendo as idéias expostas nos Manuscritos de 1844 — o papel da
produção na história e na vida social. O homem se diferencia do animal por sua
atividade produtiva e, nesse sentido, a produção não é um traço entre outros da
existência humana, e sim um traço essencial.
Podemos distinguir o homem dos animais pela consciência, pela religião ou
pelo que se quiser- Mas o próprio homem se diferencia dos animais a partir
do momento em que começa a produzir seus meios de vida, passo este
condicionado por sua organização corpórea. Ao produzir seus meios de
vida, o homem produz indiretamente sua própria vida material. 81
Esse papel fundamental da produção explica também o modo de ser dos
indivíduos,
Tal e como os indivíduos manifestam sua vida, assim o são. O que são
coincide, por conseguinte, tanto com o que produzem quanto com o modo
conto produzem. O que os indivíduos são depende, portanto, das condições
materiais de sua produção. 82
Vemos, portanto, que o papel da produção — como "condição fundamental
de toda história" — implica não só a produção de bens materiais
78 C. Marx e E Engels, La ideología alen•zana, op. cit., p. 39.

162
A CONCEPCÃO DA PRÁXIS EM MARX

79 "A força propulsora da históriar inclusive da religião, a filosofia, e toda outra teoria, não é a
crítica, e sim a revolução". (Ibid., p. 39.)
80 Ibid.
81 Ibid., p. 19. 82 Ibid.

163
FILOSOFIA DA PRÁXIS

e meios indispensáveis para a satisfação de necessidades humanas, bem como


produz o próprio homem, sua vida social. Com isso, Marx introduz dois conceitos
fundamentais do materialismo histórico, ao mesmo tempo em que os vincula entre
si: forças produtivas e relações de produção (que Marx ainda chama de "forma de
troca"). As forças produtivas determinam as relações de produção que, por sua
vez, condicionam as formas ideológicas e o Estado. Tal é a tese fundamental da
concepção materialista da história que Marx formula pela primeira vez em A
ideologia alemã nos seguintes termos:
Essa concepção da história consiste, portanto, em expor o processo real de
produção, partindo para isso da produção material da vida imediata, e em
conceber a forma de troca correspondente a esse modo de produção e por ele
engendrada, isto é, a sociedade civil em suas diferentes fases como o fundamento
de toda a história, apresentando-a em sua ação enquanto Estado e explicando com
base neste todos os diversos produtos teóricos e formas da consciência, religião,
filosofia, moral, etc. 29

NECESSIDADE DA PRÁXIS REVOLUCIONÁRIA


Apesar da imprecisão da terminologia, Marx caracteriza as relações de produção,
ou relações que os homens contraem no processo de produção, como relações
sociais que estão em consonância com o desenvolvimento das forças
produtivas. Esse desenvolvimento dialético tanto de umas como de outras
constitui o elemento fundamental da história humana, cujo desenvolvimento
origina a passagem de determinadas forças produtivas e relações sociais a
outras. Trata-se de um processo objetivo que se realiza necessariamente, com
independência em relação à vontade e às intenções dos indivíduos, em virtude
do qual as forças produtivas que se desenvolvem sob o acicate das necessidades
da sociedade engendram um tipo de relações de produção ("formas de troca")
que, por sua vez, em uma complexa vinculação dialética, influem no
desenvolvimento das forças produtivas. Na medida em que as relações de
produção se convertem em um entrave para o incremento das forças produtivas,
produz-se uma contradição que reveste a forma de um antagonismo de classes.
O aguçamento dessa contradição torna necessária a revolução, que surge,
assim, como uma atividade prática dos homens — mais exatamente, do
proletariado — condicionada por certo nível de desenvolvimento das forças
produtivas e da contradição correspondente com as relações de produção. O
comunismo aparece, por sua vez, como uma solução não utópica, e sim
científica, isto é, a solução que corresponde a certas condições históricas e
sociais, no marco das quais a ação dos homens — como revolução proletária
— tem um fundamento histórico, real e objetivo. "O comunismo não é um
estado que deve ser implantado, um ideal ao qual a realidade tenha de sujeitar-

29
Ibid., 38.

164
A CONCEPCÃO DA PRÁXIS EM MARX

se, Nós chamamos comunismo ao movirnento real que anula e supera o estado
de coisas atuais.
A necessidade da práxis revolucionária que conduz a essa solucão não
surge de uma contradição entre a história e a verdadeira essên„ cia humana,
mas sim de uma contradição entre as forças produtivas e as relações de
produção. O proletariado não é agora o ser que encarna o sofrimento humano
universal, ou o trabalhador que nega sua essência humana no trabalho, mas
sim, antes de tudo, o membro de uma classe social que, pelo lugar que ocupa
na produção, e por estar vinculado à forma mais avançada de produção, entra
em conflito com a classe dominante e, ao adquirir a consciência da
necessidade da revolução, leva-a a cabo para abolir o domínio de todas as
classes, abolindo as próprias classes. "A classe revolucionária aparece de
antemão, apenas pelo único fato de contrapor-se a uma classe, não como
classe, mas sim como representante de toda a sociedade, como toda a massa
da sociedade, diante da única classe, a classe dominante'

A CONCEPÇÃO MATERIALISTA DA HISTÓRIA E A TEORIA DA PRÁXIS

Vemos, portanto, que a interpretação materialista da história, cujos conceitos


fundamentais se esboçam em A ideologia alentã, assim como a teoria da
práxis revolucionária, nela oferecida, encontram-se em estreita vinculação,
como dois aspectos inseparáveis de uma doutrina que Marx e Engels apenas
irão enriquecer e desenvolver no futuro. Essa unidade se manifesta
claramente nos quatro pontos em que os fundadores do marxismo resumem
sua concepção da histólña, e que, por sua clareza e precisão, transcrevemos
integralmente a seguir:
1) No desenvolvimento das forças produtivas, chega-se a uma fase em que
surgem forças produtivas e meios de troca que, sob as relações existentes,
só podem ser fonte de males, já que não são mais forças de produção, e sim
muito mais forças de destruição (maquinaria e dinheiro); e, intimamente
relacionada com isso, surge uma classe condenada a suportar todos os
inconvenientes da sociedade sem gozar de suas vantagens, que se vê
expulsa da sociedade e obrigada a colocarse na mais resoluta oposição a
todas as demais classes; uma classe que forma a maioria de todos os
membros de uma sociedade e da qual nasce a consciência de que é
necessária uma revolução radical, a consciência comunista, consciência
que, naturalmente, pode chegar a formar-se também entre as outras classes,
ao contemplar a posição em que esta se encontra colocada; 2) Que as
Ibid.,condições
p. 36. em que podem ser empregadas deterrninadas forças de produção
Ibid.,são as condições da dominação de uma determinada classe da sociedade,
p. 50.
cujo poder social, emanado de sua riqueza, encontra sua expressão
idealista-prática na forma de Estado imperante em cada caso, razão pela

165
FILOSOFIA DA PRÁXIS

qual toda luta revolucionária é necessariamente dirigida contra uma classe,


a que até então domina; 3) Que todas as revoluções anteriores deixaram
intacto o modo de atividade e só trataram de conseguir outra distribuição
dessa atividade, uma nova distribuição do trabalho entre outras pessoas, ao
passo que a revolução comunista é dirigida contra o modo anterior de
atividade, elimina o trabalho e suprirne a dominação das classes ao acabar
com as próprias classes, já que essa revolução é levada a cabo pela classe
que a sociedade não considera como tal, não reconhece como classe e que
já expressa por si a dissolução de todas as classes, nacionais, etc., dentro da
atual sociedade; e 4) Que, tanto para engendrar em massa essa consciência
comunista, como para levar adiante a coisa mesma, é necessária uma
transformação em massa dos homens, que só poderá ser obtida mediante
um movimento prático, mediante uma revolução; e que, por conseguinte, a
revolução não só é necessária porque a classe dominante não pode ser
derrubam da de outro modo, como também porque somente por meio de uma
revolução poderá a classe que denuba sair do lodo em que se afunda e
tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre novas bases. 30
Encontramos nesse texto: 1) o caráter histórico e objetivo da contradição
entre forças produtivas e relações de produção cuja solução (consonância das
relações de produção com as forças produtivas com base na abolição da
propriedade privada) só pode ocorrer por meio de uma classe social
engendrada pelo próprio desenvolvimento social e a cujos interesses de classe
está vinculada a consciência da necessidade dessa solução e da luta
revolucionária para impô-la; 2) a correspondência das relações de produção
com as forças produtivas acarreta a luta contra a classe dominante e contra o
poder social o Estado que emana de seu poder material; 3) essa revolução
proletária se distingue de todas as anteriores por não significar a abolição de
determinada propriedade sobre os meios de produção, mas sim da
propriedade privada em geral* pondo fim a toda dominação de classe; e 4) a
revolução comunista não só significa a transformação das relações
econômicas e políticas como também a transformação em massa dos homens
(a criação em massa de uma consciência comunista). A revolução não só é
necessária para derrubar a classe dominante, como também porque só assim
a classe revolucionária pode criar uma nova sociedade.

30
C, Marx e F. Engels, La ideologia alenzana, op. cit., pp. 77-78.

166
A CONCEPCÃO DA PRÁXIS EM MARX

A idéia fundamental dos Manuscritos de 1844 sobre o papel do


167
FILOSOFIA DA PRÁXIS

trabalho na formação do homem se concretiza e eleva em A ideologia alentã


ao ser mostrado o papel determinante da produção na história humana e na
vida social. E esse processo de formação do homem que constitui o conteúdo
da história não se revela mais como contradição entre o homem e sua
essência, mas sim como contradição entre as forças produtivas e as relações
sociais de produção. A alienação que nos Manuscñtos se apresenta como
negação da essência humana do trabalhador no trabalho deixa de ter o papel
central que tinha em tal obra e começa a revelar-se como coisificação das
relações sociais. O antagonismo de classes que nos Manuscritos aparece
fundado debilmente pelo modo de apropriação do produto no trabalho
alienado, em A ideologia alentã aparece como expressão necessária da
contradição entre as forças produtivas e as relações de produção.
No que diz respeito à práxis, após estabelecer o caráter originário e
fundamental da práxis produtiva, são apontadas, por sua vez, as relações entre as
diferentes formas de atividade, inclusive a atividade ideológica. Quanto à práxis
revolucionária tendente à transformação prática da sociedade, ao destruir as
ilusões que a ideologia e o utopismo plantam nesse terreno e formular sua
concepção materialista da história, Marx (e Engels) assinala na própria estrutura
da sociedade e no movimento da história, na contradição entre forças produtivas
e relações de produção, o próprio fundamento da práxis revolucionária. Essa
práxis não se dá na esfera da aventura ou da utopia; é determinada, e em A
ideologia alentã — em sua concepção materialista da história — já se põe o acento
na estrutura e nas condições reais, objetivas, que determinam a revolução.
Desse modo, essa práxis revolucionária, como explicitada nas Teses
sobre Feuerbach, não é atividade prática pura, mas sim o terreno em que se
opera a unidade do pensamento e da ação. Se em A ideologia alelflã se diz
que a história humana é, acilna de tudo, a história da produção e que essa
história condiciona uma práxis revolucionária, em as Teses sobre Feuerbach
assinala-se o caráter racional da práxis e, portanto, a unidade entre a teoria e
a prática. Não basta definir as condições da práxis revolucionária — como o
faz a concepção materialista da história — mas é necessário apontar o
caminho para que essa práxis condicionada histórica e socialmente se
converta em uma realidade. É necessário passar da consciência da revolução,
inscrita como possibilidade na própria estrutura social e no movimento
histórico, à revolução real, efetiva. E necessário elaborar uma teoria concreta
da revolução como passagem indispensável, em virtude da unidade entre
teoria e prática, para transformar as relações sociais existentes.
A teoria já não será tanto a análise de uma estrutura social que condiciona
a revolução — tarefa levada a cabo em A ideologia alernã mas sim, a teoria da
revolução que se quer desencadear, teoria que de-

168
FILOSOFIA DA PRÁXIS

termina ações ao esclarecer os objetivos, possibilidades e forças sociais


participantes. Cumpre também a função que antes havíamos assinalado de
fundamento da ação, mas, por sua vez, deve contribuir para isso eliminando
teoricamente os obstáculos que se opõem a ela, que tentam
invalidá-la ou refreá-la. Nesse sentido, a teoria cumpre a outra
função crítica que antes havíamos assinalado.

O PROBLEMA DA PASSAGEM DA TEORIA À AÇÃo EM O MANIFESTO


Ainda que a teoria seja formulada com essa dupla vertente (como
fundamento de ações reais e como crítica teórica), não deixa de ser
teoria, isto é, não é atividade prática per se. Já dizíamos
anteriormente que mesmo as teorias mais distanciadas da práxis, isto
é, aquelas que aspiram pura e simplesmente a interpretar o mundo, não
deixam de ter, por isso, conseqüências práticas, na medida em que
contribuem praticamente para impedir ou obstaculizar essa
transformação. Mas quando se trata de transformar o mundo,
quando se pretende que a teoria se plasme em uma atividade prática
como guia da ação, a teoria mais revolucionária nunca deixa de ser
mera teoria enquanto não se realiza ou se materializa em atos. Da
atividade teórica é preciso passar à prática, mas a primeira por si só não
pode dar esse passo. Isto é* quando se estabelece uma unidade
consciente entre teoria e práxis — e essa unidade não se reduz à
unidade entre a teoria e as conseqüências práticas que
espontaneamente ela pode ter — não se passa direta e
imediatamente de uma esfera a outra. Se a teoria não quer
permanecer como simples teoria — e é evidente que uma
verdadeira teoria revolucionária não pode permanecer nesse plano
meramente teórico — deve superar a si mesma, materializar-se. Mas como se
torria prática? Como se materializa? Como se converte em atos que se integram
em uma práxis total?

169
FILOSOFIA DA PRÁXIS

Para essas questões, não encontramos resposta nos trabalhos de Marx


examinados até aqui. Essas questões só são formuladas e só têm respostas
adequadas quando surge a necessidade de transformar o mundo efetivamente, isto
é, de realizar a revolução; quando esta não é apenas uma tarefa teórica, mas, acima
de tudo, prática. Marx e Engels respondem a essas questões no Manifesto do
Partido Contunista. O Manifesto foi redigido por Marx e Engels em uma época
em que estão empenhados em uma atividade revolucionária e relacionamse com
um grupo de homens que, como eles, querem transformar o mundo e com esse
fixn se organizaram na Liga dos Comunistas. O Manifesto é obra de encomenda;
com efeito, sua redação, após uma série de projetos, circulares e questionários
formulados na Liga, lhes foi encarregada pelo seu Comitê Central. É um
documento encomendado por homens que querem realizar uma revolução e é
dirigido aos proletários; ou seja, àqueles qu.e devem constituir sua força motriz.
Trata-se, portanto, de urn trabalho teórico vinculado intirnamente a necessidades
práticas, revolucionárias. Por tratar-se de um trabalho teórico destinado a guiar
uma revolução concreta, efetiva a revoluçao proletária é em pril-neiro lugar uma
teoria dos fins da revolução, baseada por sua vez ern urn conhecimento da
realidade social que se quer transformar, e é também urna fundamentação da
necessidade da mudança revolucionária e da ITIissão histórica que nela cabe ao
proletariado. O Manifesto é, nesse sentido, teoria cle uma revolução que se quer
desencadear. E teolña na medida em que fundamenta, de diversos
ângulos, a revolução proletária e na medida em que, como crítica, se opõe
às falsas concepções que contribuem para obstaculizá-la ou impedi-la. Em
certo sentido, o Manifesto nada mais é do que uma síntese e
enriquecimento das descobertas teóricas anteriores de Marx. No entanto,
não é uma teoria a mai.s da revolução. Oferece um aspecto novo que vem
determinado por algo que não tem antecedentes nos trabalhos anteriores
de Marx, a saber: ao mesmo tempo em que é uma teoria da revolução é
também — e isso marca urna virada radical na concepção marxista da práxis
ao enriquecê-la com um aspecto novo uma teoria da organização da
revolução ou, em outros termos, da passagem da teoria para a prática.
O Manifesto é, ao mesmo tempo e em estreita unidade, um documento
teórico e prático: teórico, na Inedida em que seus princípios, para além da
conjuntura precisa que os inspira — a revolução iminente na Europa
fundamentam a práxis revolucionária do proletariado; prático, na medida em
que traça uma linha de ação, estratégica e tática, e formula-se também uma
teoria da organização que permita dirigir e aglutinar os esforços dos proletários
de acordo com os fins e as condições da revolução.
Em consonância com essas exigências que, definitivamente, são as de
fundamentar a necessidade histórica da práxis revolucionária e a possibilidade

170
A CONCEPCÃO DA PRÁXIS EM MARX

objetiva do proletariado de levá-la a cabo, encontramos no Manifesto: caminhos


teóricos do desenvolvimento histórico, da revolução como revolução específica,
proletária e do agente histórico revolucionário, o proletariado, assim como urna
concepção da estratégia e da tática da revolução e, finalmente, uma crítica das
falsas concepções do socialismo e coinunis1T)0 corno objetivos da revolução. 87
Detenhamo-nos, brevemente, em alguns desses aspectos.

87 C. Marx e F. Engels, Adanifieslo del Partido Contztll.islru tradução espanhola, em C. Marx e F.


Engels, Obras Escogidas, em três tomos, Moscú, Progresso, ] 973, t. I. [Há tradução mais recente, de
León Mames, em OME 9: Martifiesto del Partido Conzt.lllista, Artícz,dos de Ia. "Nueva Gaceta Renatza
'l I (1847-jtfltio 1848), Barcelona, Crítica, 1978.]
O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO
Marx e Engels reafirmam no Manifesto o que já identificaram em A ideologia alemã,
a saber: que todos os conflitos têm sua origem na contradição entre forças produtivas
e relações de produção, contradição que se traduz necessariamente em revolução.
Essa dialética é apresentada na seção I ao expor-se o desenvolvimento histórico da
burguesia em sua luta com as relações feudais de produção, assim como o conflito
moderno entre as forças produtivas e as relações burguesas de producão. "Há
décadas, a história da indústria e do comércio não é mais do que a história das forças
produtivas modernas contra as atuais relações de propriedade, contra as relações de
propriedade que condicionam a existência da burguesia e sua
dominação
É certo que mal se abre o Manifesto também se diz: "A
história de todas as sociedades até agora tem sido a história da luta
de classes o que pode criar a impressão de que a luta de classes é
o fator determinante do desenvolvimento histórico. '(Mas faz
algumas décadas, a história da indústria e do comércio não é mais
do que a história das forças produtivas modernas contra as atuais
relações de propriedade, contra as relações de propriedade que condicionam a
existência da burguesia e de sua dominação
a idéia fundamental que penetra todo o Manifesto, a saber que: a produção
econômica e a estrutura social que dela se deriva necessariamente em cada
época histórica constituem a base sobre a qual descansa a história política e
intelectual dessa época; ... portanto, toda a história (desde a dissolução do
regime primitivo de propriedade comum da terra) foi uma história de luta de
classes exploradoras e exploradas, dominantes e dominadas, nas diferentes
fases do desenvolvimento social; e que agora essa luta chegou a uma fase em
que a classe explorada e oprimida (o proletariado) não pode mais emancipar-
se da classe que a explora e a oprime (a burguesia) sem emancipar, ao mesmo
tempo e para sempre, a sociedade inteira da exploração, da opressão e da luta
de classes . 89

171
FILOSOFIA DA PRÁXIS

Não há nada no Manifesto que permita fundar a idéia de que a luta de classes
é o fator histórico determinante como se depreenderia de uma leitura
economicista do texto. Semelhante leitura estaria elT1 contradição não só com
o sentido que impregna todo o Manifesto, ao destacar o papel ativo da
burguesia e, especialmente, do proletariado nas mudanças políticas, como
também com manifestações inequívocas de

88 Ibid., p. 116.

89 E Engels, "Prefacio a Ia edición alemana de 1883" , em C. Marx e E Engels, Obras escogidas, op.
cit., t 1, pp. 102-103. [Cf. OME 9, pp. 375-376.]

172
A CONCEPCÃO DA PRÁXIS EM MARX
Marx e Engels no mesmo texto. Com efeito, tanto não é inelutável o
processo econômico e o desenlace da luta de classes como sua expressão,
que essa luta pode levar a resultados diametralmente opostos: a
transformação revolucionária da sociedade ou a derrubada das classes em
pugna
I No Manifesto se expõern a origem, o desenvolvimento, a posição e o papel das
duas classes fundamentais da sociedade burguesa (seção I: "Burgueses e
proletários"). O enfoque da burguesia é histórico: é o produto de uma
evolução vinculada às mudanças operadas no terreno econômico. Do ponto
de vista político, foi evoluindo do estamento oprimido na sociedade feudal
até que "depois do estabelecimento da grande indústria e do mercado
universal, conquistou finalmente a hegemonia exclusiva do poder político
como o Estado representativo moderno
O enfoque histórico permite ao IVIanifesto opor-se ao ponto de vista
próprio da economia política burguesa segundo o qual as relações burguesas
são eternas e, portanto, poderiam escapar à sua transformação e
desaparição; igualmente, o leva a rejeitar a condenação do capitalismo com
um critério moral, exclusivamente pela miséria e pelos sofrimentos que
engendra. Frente a toda apologia ou negação absoluta, o Manifesto
reconhece que "a burguesia desempenhou na história LUTI papel altamente
revolucionário' ao revolucionar incessantemente a produção, ao estendê-la
à escala mundial e criar imensas forças produtivas "mais abundantes e mais
grandiosas do que as de todas as gerações passadas juntas'
Através de seu próprio desenvolvimento históñco, a burguesia cria as
condições para sua própria desaparição: as annas (as forças produtivas) e os
homens (os proletários) que hão de destruí-las'4 Com esse tratamento histórico,
o proletariado se apresenta como produto do desenvolvimento capitalista e, ao
mesmo tempo, como condição para a existência do capitalista. O
desenvolvimento capitalista (acrescentamento do capital, extensão do emprego
das máquinas, divisão crescente do trabalho, etc.) agrava as condições de vida
do trabalhador até um ponto em que se prova que a burguesia já não pode
continuar dominando e que sua existência se tornou incompatível com a da
sociedade.
Na caracterização da situação do trabalhador já não encontramos os
elementos antropológicos que ainda se faziam presentes em A Sagrada
90 Maa•lifiesto, op. cit. p. 1 1 1.
91 Ibid., p. 113.
92 Ibid.
93 Ibid., 1 15.
94 p. 117.

Ibid.,

173
FILOSOFIA DA PRÁXIS
Família, Ao final da Seção I, enfatiza-se vigorosamente a deterrninação
objetiva de sua situação e de sua missão histórica revolucionária.
O progresso da indústria, de que a burguesia — incapaz de opor-se a ele
— é agente passivo e inconsciente, substitui o isolamento dos
trabalhadores, decorrente da concorrência, pela sua união
revolucionária através da associação. Com o desenvolvimento da
grande indústria, portanto, a base sobre a qual a burguesia assentou seu
regime de produção e apropriação dos produtos é solapada. A
burguesia produz, antes de mais nada, seus próprios coveiros. Seu
declínio e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis. 31
Desse o próprio desenvolvimento do capitalismo atenta contra sua
existência, torna necessária sua transformação e produz o seu agente: o
proletariado como coveiro da burguesia. Cumpre essa função em um processo
revolucionário cujo fundamento objetivo é "a rebelião das forças produtivas
modernas contra as atuais relações de produção, contra as relações de
propriedade que condicionam a existência da burguesia e sua dominação" . 96
Mas essa rebelião no nível econômico não é ainda a revolução no plano político
como passagem do poder das mãos da burguesia às do proletariado. Uma não
leva mecanicamente à outra, como prova o fato, registrado em o Manifesto, de
que a "rebelião das forças produtivas" se vinha dando "há algumas décadas"
enquanto a mudança política, a revolução proletária, que é o passo que se aspira
dar, ainda não se deu.
A REVOLUÇÃO PROLETÁRIA
A revolução proletária é a forma mais alta, historicamente, da práxis
revolucionária. No Manifesto, é concebida como um processo no qual se
destacam três aspectos, elementos ou fases dificilmente separáveis:
a) a conquista do poder político; b) a organização do proletariado como
classe dominante (como novo poder político); e c) a utilização desse novo
poder para transformar radicalmente o modo de produção.

31
Ibid., p. 122. 96 Ibid., p.
116.

174
A CONCEPÇÃO DA PRÁXIS EM
Esse processo prático revolucionário é também um processo de
ruptura e organização; isto é, não pode ser reduzido ao "primeiro passo": a
conquista do poder político. Mas vejamos mais detidamente as
formulações do Manifesto: "A revolução comunista é a ruptura mais
radical com as relações de propriedade tradicionais; nada de estranho há em
que, no curso de seu desenvolvimento, rompa de maneira mais radical com
as idéias tradicionais" . 32 Aqui se enfatiza claramente o ele-
IvIARux

mento de ruptura como um ato global e dinâmico que abarca tanto as


relações de produção como as velhas idéias. Entendida em sua
radicalidade profunda, requer-se como "primeiro passo" a conquista do
poder político pelo proletariado, a derrubada da dominação
burguesa el conseqüentemente, a organização do proletariado como classe
dominante. "O primeiro passo da revolução trabalhadora é a elevação do
proletariado a classe dominante, a conquista da democracia
Uma vez conquistado o poder político, o proletariado usa sua dominação
política para aprofundar a ruptura ao longo de todo o processo revolucionário. "O
proletariado se valerá de sua dominação para ir subtraindo gradualmente da
burguesia todo o capital, para centralizar todos os instrumentos de produção nas
mãos do Estado, isto é, do proletariado organizado classe dominante e para
aumentar com a mai.or rapidez possível a soma das forças produtivas" Fica claro,
pois, que se trata da fase do processo revolucionário na qual, já conquistado o
poder como organização do proletariado elT1 classe dominante —, ele é usado
para incrementar as forças produtivas e transformar na raiz as relações de
produção. Por isso, acrescenta imediatamente: "Isso, naturalrnente, não se poderá
realizar a princípio a não ser por uma violação despótica do direito de propriedade
e das relações burguesas de produção ... que no curso do movimento ultrapassarão
a si mesmas e serão indispensáveis como meio para transformar radicalITIente o
modo de produção'

32
Ibicl, p. 128.
100 Ibid.

175
FILOSOFIA DA PRÁXIS
Ao longo das passagens anteriores, foi-se perfilando uma definição do poder
político, ou do Estado, que enfatiza o elemento de dominação. Certamente, ao
conquistar o poder político, o prol.etariado se organiza como classe dominante. E,
através dessa organização, o novo poder comparte o que é próprio de todo poder
político: o ser "violência organizada de uma classe para a opressão de outra". Mas
trata-se, por seu conteúdo, de uma violência especial, já que é compatível com o
que, nos poderes políticos anteriores, mantém-se excluído: a democracia. Com efeito, no
Manifesto "a elevação do proletariado a classe dominante" que é a "violência organizada",
de classe, conjuga-se claramente com "a conquista da democracia". Desse modo, ficam
claramente marcados, em sua unidade indissolúvel, os dois aspectos essenciais do
conceito clássico de ditadura do proletariado que Lênin retomará em O Estado e a
revolução.
A revolução proletária é, como vilT10s, um processo de ruptura radical
com as relações burguesas de produção e com as idéias tradicionais, mediante o
uso adequado do novo poder político. Mas essa trans-

Ibid., p. 129.

176
FILOSOFIA DA PRÁXIS
formação radical alcança também o poder conquistado, isto é, o próprio
instrumento dessa transformação. Leiarnos com atenção esta passagem: "Uma
vez que no curso do desenvolvimento tenham desaparecido as diferenças de
classe e se tenha concentrado toda a produção nas mãos dos indivíduos
associados, o poder público perderá seu caráter político'
Embora Marx e Engels não a caracterizem explicitamente assim,
poderíamos dizer, com base na passagem anterior, que a revolução proletáña
constitui um processo de transição entre a conquista do poder e a perda do
caráter político desse poder. Certamente, na passagem citada pressupõe-se que
o poder político está vinculado às diferenças de classe e, de acordo com a
definição antes dada de poder político, à necessidade — uma vez que existe tal
diferenciação de que uma classe organize e exerça sua dominação sobre outra,
Supõe-se também uma fon-na de organização no futuro que não tenha esse
caráter político: quando os indivíduos se associarem livremente e não sob
relações de dominação.
Trata-se, pois, do fim do poder político, ou da política como prática
de dominação, ao desaparecer sua necessidade com o desaparecimento da
divisão da sociedade em classes. Justamente por isso o Manifesto diz um
pouco mais adiante:
Se na luta contra a burguesia o proletariado constitui-se indefectivelmente
como classe; se mediante a revolução converte-se em classe dorninante e,
enquanto classe dominante, suprime pela força as velhas relações de
produção, suprime, ao mesmo tempo que essas relações de produção, as
condições para a existência do antagonismo de classe e das classes em geral
e, portanto, sua própria dominação de classe. 10'
Uma conclusão se impõe, então: se o poder político é a classe organizada como
classe dominante, e se a desaparição das classes torna desnecessária sua
dominação, desaparece como conseqüência a necessidade do órgão que a exerce:
o poder político ou Estado. O que se tem em troca é uma associação livre de
indivíduos. Ou, como se diz no Manifesto: "Em substituição à antiga sociedade
burguesa, com suas classes e seus antagonismos, surgirá uma associação livre na
qual o livre desenvolvimento de cada um será a condição do livre
desenvolvimento de todos" 103
Encontramo-nos, portanto, novamente diante do problema da
desaparição do poder político, o do Estado, que Marx havia formuladb de
forma muito rudimentar em seu escrito juvenil, de 1843, a Crítica da filosofia
do Estado, de Hegel.
101 Ibid., p. 129. 102 Ibid., p.
130.
103 Ibid.

177
FILOSOFIA DA PRÁXIS
MAR-x

ORGANIZAÇÃO COMO CLASSE, CONSCIÊNCIA E PARTIDO POLÍTICO

No Manifesto não só se descreve a situação objetiva da classe trabalhadora como


produto e condição do desenvolvimento capitalista, como também o processo
prático histórico pelo qual acede à consciência de seu próprio interesse e se
constitui como classe revolucionária. Esse processo, consistente em uma série de
lutas, passa por diferentes fases.
Na primeira, os trabalhadores lutam isol.ados contra os burgueses
particulares e seu objetivo não é tanto destruir as relações burguesas de
produção como as máquinas ou as mercadorias. Não há propriamente luta
de classe contra classe. Em rigor, não há classe, mas sim uma massa amorfa
e desaaregada que, inclusive em suas lutas, serve aos interesses da burguesia,
a qual se vale delas para lutar contra seus próprios inimigos. Em uma
segunda fase, prossegue a descrição histórica do Manifesto, os trabalhadores
formam coalizões ou associações permanentes para defender seus salários.
Trata-se de uma luta dispersa em muitas localidades que desemboca "em
uma luta nacional, em uma luta de classes". Mas como "toda luta de classes
é uma luta política", é dirigida contra o poder político. O resultado desse
processo prático de lutas é "a organização do proletariado como classe e,
portanto, como partido político" 104 Prestemos atenção a essa formulação,
detendo-nos no conceito de proletariado de classe.
Se como fruto das lutas dos trabalhadores, a princípio
discriminados e desagregados, se produz a "organização do proletariado
conto classe", isso quer dizer que para Marx e Engels o proletariado
como classe não é um dado imediato, pois sua organização não se dá
enquanto suas lutas locais não se centralizam em escala nacional. A
classe não existe isoladamente, mas sim, em uma relação de luta (de luta
política) contra outras classes. Finalmente, o proletariado apenas se
constitui como classe quando tem consciência de seu interesse próprio
diante da burguesia, consciência que adquire na luta e que passa
historicamente por diferentes níveis, claramente expostos no À/lanifesto
até chegar a sua expressão mais alta como consciência da necessidade da
revolução.
Enquanto o proletariado é uma massa dispersa e desagregada que não
luta propriamente contra a burguesia, não se constitui como classe e só o é
potencialmente. No entanto, diferentemente de outras classes ("estamentos
médios: pequeno industrial, pequeno comerciante, artesão, camponês") ou, à
diferença do lumpemproletariado, "apenas o proletariado é uma classe
verdadeiramente revolucionária", e isso em virtude de suas condições de
existência. Os proletários não têm propriedade; não têm nada que

178
A CONCEPÇÃO DA PRÁXIS EM
salvaguardar e apenas podem conquistar forças sociais produtivas
"abolindo seu próprio modo de apropriação
p. 119.
em vigor". Trata-se, portanto, de um processo prático cujo sujeito é o
proletariado; o meio, a luta violenta e o fim, o estabelecimento de sua
própria dominação. Ou, nas palavras do Manifesto: "A guerra civil
mais ou menos oculta que se desenvolve no seio da sociedade existente
transforrna-se em uma revolução aberta, e o proletariado, derrubando
a burguesia pela violência, implanta sua dominação". Vemos,
portanto, que a "organização do proletariado como classe" significa,
ao mesmo tempo, sua constituição como sujeito da práxis revolucionária.
Depois de compreender, nos termos do Manifesto, o que significa a
constituição do proletariado como classe e, portanto, como agente histórico
da revolução, torna-se necessário entender em que sentido se estabelece um
sinal de igualdade entre classe e partido, pois, certamente, Marx e Engels
dizem: "Essa organização como classe e, portanto, como partido político...".
Temos aqui uma primeira caracterização do partido (dizemos "primeira" ,
pois, como veremos no Manifesto, podemse distinguir outras duas).
Partido, em uma primeira formulação, é a classe que, com consciência
de seu interesse próprio, enfrenta em um processo de luta a burguesia. Nesse
processo prático, a classe atua como partido: é a classe-partido; portanto, partido
não é aqui uma parte ou um setor dela, mas sim o partido-classe. Ambos os
termos cobrem-se reciprocamente. O partido existe desde que existe a classe e
a classe existe desde que funciona como partido. Trata-se, portanto, de um
conceito de partido tão amplo que não pode ser confundido com o conceito
estrito aplicável à liga dos Comunistas, que para Marx é apenas, do mesmo
modo que em outras sociedades, "episódios na história do partido no grande
sentido histórico do termo'
No partido assim entendido, cabem tanto uma organização política
específica quanto sindical e inclusive cultural, mas essas organizações não
entram nele como frações ou setores da classe trabalhadora, mas como classe
que luta contra a burguesia em diversas formas: política, econômica, cultural,
etc. O modelo empírico que inspira em Marx e Engels esse conceito amplo
de partido é o proletariado com suas diversas organizações.
Mas o Manifesto fala também de partidos em um segundo sentido
quando se refere aos partidos operários entre os quais se encontra o dos
comunistas. Em várias ocasiões, nomeia os comunistas como um partido
entre os partidos operários, não oposto, mas sim, distinto deles. Na verdade,
no texto encontramos formulações como as seguintes: "Os comunistas não
formam um partido à parte, oposto aos partidos ope-
100 Ibid.

179
FILOSOFIA DA PRÁXIS

105 Ibid., p. 121.


106 Carta de Marx a Freiligrath, 29 de fevereiro de 1860.
IVI.nx

rários apenas se distinguem dos demais partidos operários...


"...são o setor mais resolvido dos partidos operários . o objetivo imediato dos
comunistas é o ITiesmo que o de todos os demais partidos operários " Por
último, cita entre eles "dois partidos operários já constituídos os cartistas da
Inglaterra e os partidários da reforma agrária na América do Norte*
Particlo operário significa no Manifesto, portanto, um partido (não
único, como acabamos de ver) que, longe de identificar-se com a classe
inteira, é um setor ou parte dela, com um programa pol.ítico determinado e
com objetivo comum com o de outros partidos operários. E esse objetivo é
precisamente "a derrubada da dominação burguesa, a conquista do poder
político pelo proletariado". Careceria, pois, de sentido para Marx e Engels
que um partido, monopolizando esse objetivo comum, se auto-intitulasse "o
partido da classe trabalhadora".
Finalmente, chegamos ao terceiro conceito de partido: o dos
comunistas. Ao caracterizá-lo, o Manifesto assinala o que tem de comum
com os demais partidos operários, o que o distingue e, por último, sua
superioridade ou vantagem sobre os demais partidos proletários.
Trata-se, portanto, em primeiro lugar de U771 dos partidos operários:
"os comunistas não formam um partido à parte, oposto aos outros partidos
operários; seus interesses são os mesmos que os de toda classe, ou seja, "não
têm interesses que os separem do conjunto do proletariado" e, por essa razão,
"não proclamam princípios especiais aos .que quisessem moldar o movimento
proletário". Por último, têm o mesmo objetivo imediato que os demais
partidos operários: "constituição dos proletários em classe, denocada da
dominação burguesa, conquista do poder político'
Mas no Manifesto vemos, também, que não se trata de um partido operário
a mais. Distinguem-se deles por dois traços que ficam nitidamente assinalados: 1)
fazer valer os interesses comuns a todos os proletários "independentemente da
nacionalidade" e 2) representar em cada fase do movimento "os interesses do
proletariado em seu conjunto". Como primeiro traço, sublinha-se o caráter
internacional do movimento comunista; com o segundo, seus interesses se
identificam, elT1 cada fase do desenvolvimento da luta, com os do proletariado
em seu conjunto. Assim, pois, o que os cornunistas compartilham com outros
partidos trabalhadores não exclui, ao mesmo tempo, sua distinção com respeito a
eles.

180
A CONCEPÇÃO DA PRÁXIS EM
Mas os comunistas não só se distinguem dos demais partidos
operários, como também têm vantagens enn relação a eles. Marx e
Engels assinalam claramente essas vantagens, embora, na verdade,
aquilo

107 Manifies[o, op. cit., p. ].22

100 Ibid.

181
FILOSOFIA DA PRÁXIS

pelo que se distinguem — a saber, seu internacionalismo, sua representação dos


interesses do movimento em seu conjunto — constituam já grandes vantagens-
Mas o Manifesto diz explicitamente que os comunistas têm vantagens sobre os
demais partidos operários: 1) praticantente, por ser "o setor mais resolvido" que
sempre impulsiona os demais"; 2) teoricalltente, "por sua clara visão das
condições da marcha e dos resultados gerais do movimento proletário" * 109 Essa
visão teórica enraizada no movimento real, histórico, os distancia dos utopistas
que propõem princípios inventados. "As teses teóricas dos comunistas não se
baseiam de modo algum em idéias e princípios inventados por tal ou qual
reformador do mundo Não são nada mais do que a expressão de conjunto das
condições reais de uma luta de classes existente, de um movimento histórico que
está se desenvolvendo diante de nossos olhos" . 1 10
Com o apoio no texto de Marx e de Engels, pode-se conceber o partido
comunista como a própria classe em seu mais alto nível de combatividade e
consciência, Nisso radicaria sua superioridade sobre outros partidos ou
setores da classe, situados em um nível mais baixo tanto prática como
teoricamente. No entanto, essa superioridade prática não significa — ao
menos não se depreende do texto — que esse setor organizado cumpra um
papel dirigente na luta, embora se aponte claramente que é o setor mais
resolvido "que impulsiona adiante os demais". Quanto à sua superioridade
teórica, dela não se infere que os comunistas tenham o monopólio da
consciência de classe, pois de outro modo o Manifesto não teria reconhecido
que os demais partidos operários compartilham com os comunistas um
objetivo comum, o que seria inconcebível sem certa visão ou consciência do
interesse de classe. Naturalmente, isso não exclui que a "visão clara" se dê
precisamente nos comunistas.
Mas de onde provém essa visão ou consciência? De sua própria luta, na
prática, no processo histórico, que, passando por diferentes níveis de organização
e consciência, se eleva da condição de massa amorfa e desagregada à sua
constituição propriamente como classe? Taf é o processo que em um texto quase
contemporâneo do Manifesto, Miséria da filosofia, se denornina, bem
hegelianamente, transforrnação do proletariado de "classe em si" em "classe para
si
O sujeito desse processo é o próprio proletariado e o partido é,
sobretudo, seu produto, a expressão do nível alcançado pela classe quanto à
sua consciência e sua luta, O partido não é, portanto, uma vanguarda exterior
à classe, o setor que a dirige, mas sim o que expressa o nível alcançado por
ela em seu processo de auto-emancipação e

109 Ibid.

182
A CONCEPÇÃO DA PRÁXIS EM
110 Ibid.
MARX

autodireção. Mas o partido dos comunistas, por ser o mais avantajado teórica
e praticamente, se converte em um fator vital enquanto que, na realidade e
não pelo direito adquirido, mantém a dupla vantagem assinalada pelo
Manifesto. ]

BALANÇO DO MANIFESTO
O Manifesto do Partido Contunista é a teoria e o programa revolucionário da
classe social destinada historicamente, objetivamente, a transformar
radicalmente a sociedade em um processo que é o de sua própria auto-
emancipação. Nele se apresenta essa transformação como obra sua, embora
somente realizável quando, levando-se em conta as condições objetivas, se
eleva a certo grau de consciência, organização e luta. Nesse processo, o
partido comunista — produto e expressão da classe — cumpre um papel
ilnportante por sua visão "das condições, da marcha e dos resultados gerais
do movimento" e, por sua vez, por impulsionar, como o setor mais resolvido,
a práxis revolucionária do proletariado.
Nesse sentido, o Manifesto ocupa um lugar excepcional na elaboração
do conceito de práxis por Marx. Nele se mostra claramente o marxismo como
teoria da práxis, da transformação radical do mundo. Neles se amarraram os
diferentes fios que conduzem a esse momento maduro da concepção da
práxis em Marx, a saber:
a) a concepção da missão histórica do proletariado, já objetivamente
fundada, como sujeito da práxis revolucionária, como processo de sua
emancipação;
b) a unidade da teoria e da prática na práxis revolucionária; e
c) o partido como produto e expressão da classe e, por sua vez, como
meio necessário por sua vantagem teórica e prática — para que o
proletariado alcance sua auto-emancipação.1 12

O MARXISMO COMO FILOSOFIA DA PRÁXIS


Depois de examinar a concepção marxista da práxis, chegamos à conclusão
de que essa categoria é central para Marx, na medida em que somente a partir
dela ganha sentido a atividade do homem, sua história,
111 Do que foi dito anteriorrnente se deduz que a concepção do partido exposta no Manifesto não
pode ser considerada — corno a considerávamos erroneamente na edição anterior desta obra — a
premissa da teoria leninista do partido.
112 Sobre o Ildanifesto Comunista como teoria da revolução social e sobre os conceitos de de classe
econsciência
partido nela, assim como sobre sua vinculação com a situação econômica, social e política da época
183
FILOSOFIA DA PRÁXIS
e, em particular, sobre a prova de fogo que representou a revolução de 1848 para este texto genial
de Marx e Engels, o leitor pode consultar muito proveitosamente a excelente obra de Fernando
Claudín, Marx, Engels y Za levolución de 1848, Madrid, Siglo XXI, 1975, da qual nos
aproximamos ern vários pontos.
assim como o conhecimento- O homem se define, certamente, como ser prático.
A filosofia de Marx ganha, assim, seu verdadeiro sentido como filosofia da
transformação do mundo, isto é, da práxis.
Que posteriormente esse conteúdo tenha se desvanecido tanto para o
reformismo como para o materialismo vulgar, que coincidem precisamente em
reduzir o marxismo a uma teoria que não se suprime a si mesma como tal, ou
que este conteúdo praticista tenha sido exagerado até fazer do marxismo um
voluntarismo, nos obriga a examinar várias questões que consideramos
fundamentais embora não esgotem a problemática de uma verdadeira filosofia
da práxis.
O objeto de análise desses problemas tenderá a confirmar que a justa
interpretação do marxismo exige situar a práxis — como, a nosso ver, Marx
pretendia — no centro de sua filosofia. Quando Marx instala — em suas Teses
sobre Feuerbach — a categoria de práxis como eixo de sua filosofia, já não é
possível voltar, em seu nome, a posições filosóficas que são superadas
justamente com tal categoria. Nem o objeto pode ser mais considerado à margem
da subjetividade humana, fora de sua atividade — concepção do materialismo
metafísico e, em geral, de todo materialismo vulgar —, nem a atividade da qual
o objeto é produto pode ser entendida — como faz o idealismo como mera
atividade espiritual, embora se trate da atividade da consciência humana.
Marx encontra-se em relação tanto com uma como com outra
filosofia, mas entendida esta relação como negação e superação delas. Se o
materialismo contemplativo rejeita legitimamente que o mundo real seja um
produto da consciência, e vê a natureza real, material do sujeito e do objeto,
reconhece essa materialidade ao preço de colocar tanto um como outro —
como diz Marx — em uma relação abstrai-a, exterior. A superação desse
materialismo radica-se, pois, em reconhecer uma materialidade que
pressuponha, por sua vez, a atividade subjetiva. Se o idealismo, pelo
contrário, vê o lado ativo da relação sujeitoobjeto, vê apenas a atividade da
consciência do sujeito e perde de vista o lado material, objetivo dessa
atividade. O caminho da superação dessa limitação é justamente reconhecer
a atividade subjetiva, mas, ao mesmo tempo, sua materialidade, tanto na
atividade em si como em seus produtos. Nesse sentido, cabe dizer que o
mateñalismo marxiano é a inversão do idealismo concebido como filosofia
da atividade ideal, e, em fornna mistificada, do homem. Manç por isso, não
é Hegel antropologizado nem Feurbach historizado. Tanto um como outro
não superam o marco da filosofia como interpretação do mundo; seu
âmbito, seu elemento próprio comum, é a teoria como o é ern grande parte
o do jovem Marx até as Teses sobre Feuerbach e A ideologia alemã. O
âmbito novo no qual se realiza propriamente a inversão do idealismo

184
A CONCEPÇÃO DA PRÁXIS EM
absoluto de Hegel e do antropologismo de Feuerbach é a práxis, e essa
inversão traz em si necessariamente — ao ter de fundar histórica e
MA-Rx

realmente a atividade prática humana, suas condições, limites e possibilidades


— uma mudança radical no marxismo como teoria, mudanca que se expressa
na clássica formulação da passagem do socialismo como utopia ao socialismo
como ciência. Somente assim o marxismo chegou a ser e é atuahnente, em um
processo tão infinito como seu objeto, filosofia da atividade real, objetiva; isto
é, da práxis. Tal é o sentido da expressão de Engels: o proletariado alemão é
o "herdeiro da filosofia clássica alemã". Se o idealismo é uma filosofia da
atividade, o marxismo é propriamente a filosofia da verdadeira atividade
transformadora, isto é, prática,
Como filosofia da práxis, o marxismo é a consciência filosófica da
atividade prática humana que transforma o mundo. Como teoria não só se
encontra em relação com a práxis — revela seu fundamento, condições e
objetivos — como também tem consciência dessa relação e, por isso, é um
guia da ação.
Por isso, o marxismo é também, nos termos que vimos, uma superação
da consciência filosófica anterior — materialista e idealista — e da
consciência filosófica que em nossos dias — como materialismo vulgar ou
filosofia idealista especulativa — traz em si uma volta às posições que Marx
havia superado. Essa superação da consciência filosófica anterior é obtida
mediante a absorção das posições filosóficas em uma síntese superior. Por
isso, o marxisrno constitui um enriquecimento filosófico, uma ascensão, e não
um descenso a filosofias anteriores a Marx ou a uma postura pré-filosófica
corno a representada pela consciência ou o senso comum.
O marxismo não é, de modo algum, a restituição da consciência
ordinária, destruída ou negada pelo idealismo, visto que também ele se opõe
à consciência simples, ao senso comun-l. No nosso modo de ver, a consciência
simples — como consciência pré-filosófica — não vê a materialidade nem a
atividade do sujeito. E uma consciência obscura e espontânea da práxis que,
externamente, parece superar a consciência materialista tradicional na medida
em que centra a atenção na prática, na atividade; mas, por um lado, essa
atividade se parece mais à fonna sórdida como a entendia Feuerbach, e, por
outro, já reduzida a esse baixo nível, fica separada — enn sua compreensão
— de toda atividade teórica. A consciência simples parece superar, por sua
vez, a consciência idealista, especulativa, da práxis, na medida em que esta se
isola da práxis material; mas por um lado, a consciência simples vê o mundo
como um mundo de objetos acabados, não como produtos da atividade
humana e, por outro lado, ao conceber a atividade em um sentido utilitário,
capta-a, em oposição a toda teoria.

185
FILOSOFIA DA PRÁXIS

Sendo assim, quando o conceito de práxis não ganha seu sentido


cabal, pode-se cair:

186
A CONCEPÇÃO DA PRÁXIS EM
a) No materialismo anterior a Marx, ao continuar vendo objeto e sujeito
em uma relação exterior, abstrata, e reduzir a práxis a um critério de
verificação entre o pensamento do sujeito e um objeto que existe em
si, à margem de sua relação prática com o mundo (empirisvno da
práxis).
b) No idealismo, se a atividade prática é concebida em um sentido absoluto
e subjetivista, negando a propriedade da natureza exterior (idealislno da
práxis).
c) No ponto de vista da consciência ordinária, pré-filosófica, que ignora
tanto a relação intrínseca sujeito-objeto (realismo ingênuo) como a
atividade do sujeito — no sentido teórico e prático, A relação exterior
sujeito-objeto só se torna compatível aqui com a atividade prático-
utilitária, o que prefigura bem mais a posição do pragmatismo do que a
de uma verdadeira filosofia da práxis (pragmatisnao da práxis).
O conceito de práxis e seu papel fundamental na formação e constituição
do marxismo se descaracterizam do mesmo modo quando a revolução
filosófica que o marxismo leva a cabo e a mptura que pressupõe com a
filosofia tradicional e, particularlnente, com a de Hegel e Feuerbach, são
interpretadas como um corte meramente teórico ou "epistemológico O
corte com a filosofia anterior assim entendido não só obscurece o
desenvolvimento do marxismo — ao mesmo tempo contínuo e descontínuo
— como empalidece, antes de tudo, a verdadeira natureza do corte ou
ruptura com a filosofia tradicional a que Marx alude desde a sua famosa
tese XI sobre Feuerbach. O "corte" não é meramente epistemológico, pois
embora se rompa ou corte com uma teoria — particularmente com

113 0 conceito de "corte epistemológico" foi introduzido por Gaston Bachelard e aplicado por Louis
Althusser para expressar a transformação de uma problemática pré-científica ou ideológica em uma
problemática científica. Althusser utiliza tal conceito ao estudar o pensamento de Marx e, sobretudo,
ao tentar estabelecer a linha divisória com respeito a seus trabalhos de juventude (Pour Marx, op.
cit., p. 26) . Sem entrar agora na questão que tocamos antes sobre a inexistência de uma
descontinuidade radical entre o jovem Marx, particularmente o dos Manuscritos de 1844, e o Marx
imediatamente posterior que começa a se desenhar a partir das "Teses sobre Feuerbach" e a A
ideologia alenaã, e sem insistir mais na unilateralidade e no esquematismo que supõe caracterizar a
problemática do primeiro período como simples problemática feuerbachiana, já que toda nossa
exposição neste capítulo rejeita essa tese, digamos, neste momento, que o verdadeiro objeto da
crítica de Marx não é tanto Feuerbach como Hegel; que a ruptura ou corte se efetua com a filosofia
como interpretação do mundo que Hegel levou até suas últimas conseqüências; que os
neohegelianos apenas exacerbaram essa filosofia, deixando pelo caminho o conteúdo real que de
forma mistificada aparecia em Hegel; que Feuerbach a mantém, apesar de sua antropologização de
Deus e da Idéia, e que Marx luta para libertar-se dela por meio da crítica do idealismo hegeliano,
conseguindo-o ao final a partir, sobretudo, das "Teses sobre Feuerbach" e da Ideologia alemã. Entre
essa concepção da filosofia como friterpretação e a da filosofia como transforrnação do mundo se

187
FILOSOFIA DA PRÁXIS
dá o verdadeiro corte que, por seu caráter teórico-prático, não se pode reduzir a um mero "corte
epistemológico
MAR.x

o idealismo hegeliano e com a crítica a que o submete Feuerbach —


rompe-se, acima de tudo, na teoria em que culmina o esforço filosófico
tradicional por interpretar o mundo. Corta-se corri a teoria que,
definitivamente, não é só interpretação da realidade, mas sim instrumento
de conciliação com ela, com o qual contribui para fechar a passagem para
sua transformação. O corte com essa teoria, que nada mais é do que uma
ideologia da conciliação com o mundo real; faz-se, portanto, em nome da
própria transformação desse mundo. Por outro lado, por ser uma ideologia
da justificação da realidade que se deseja transformar e, por ter essa
ideologia raízes sociais, reais, o corte do marxismo com ela exige não só
sua redução a suas raízes reais, como principalmente a transformação da
realidade que essa ideologia da conciliação engendra. Não se trata,
portanto, de um corte meramente epistemológico entre idéias ou graus ou
níveis de conhecimento nem tampouco de uma simples passagel-n do erro
à verdade, da ideologia à ciência, já que a práxis está implicada nessa
passagem, a própria transfon-nação do real. Nesse sentido, o corte ou
ruptura de Marx com a filosofia tradicional, assim como com a fase de seu
pensamento que ainda se encontra em maior ou menor grau sob sua
influência, não pode ser caracterizada em termos puramente teóricos ou
epistemológicos, mas fundamentalmente em termos práticos. O marxismo
se constitui, portanto, como tal e assim rompe com a filosofia que, como
mera interpretação do mundo, culmina em Hegel quando se afirma conmo
teoria da práxis revolucionária em particular, e da atividade prática
humana em geral. Assim entendido, o marxismo é essencialmente a
filosofia da práxis.

188

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