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Musicalidade Clinica em Musicoterapia Um Estudo TR

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Musicalidade Clínica em Musicoterapia: um


estudo transdisciplinar sobre a constituição do
musicoterapeuta como u....

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Clara Márcia Piazzetta Márcia Piazzetta


Universidade Estadual do Paraná Unespar , Faculdade de Artes do Paraná
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XII Simpósio Brasileiro de Musicoterapia Pesquisa – Artigo - Comunicação Oral
VI Encontro Nacional de Pesquisa em Musicoterapia
II Encontro Nacional de Docência em Musicoterapia
06 a 09/set/2006 - Goiânia-GO

Musicalidade Clínica em Musicoterapia:


um estudo transdisciplinar sobre a constituição do
musicoterapeuta como um ‘ser musical-clínico’
PIAZZETTA, Clara Márcia1
CRAVEIRO DE SÁ, Leomara2

Resumo: Este trabalho apresenta os resultados de uma pesquisa qualitativa sobre a


musicalidade do musicoterapeuta, a partir de concepções relacionadas ao tema
existentes na própria literatura musicoterápica. Emergente de questionamentos
oriundos da prática clínica da pesquisadora, este estudo objetiva oferecer mais uma
possibilidade de compreensão da escuta musical clínica e da produção musical
clínica do musicoterapeuta no setting musicoterápico. Fundamentada na Teoria da
Complexidade, Biologia do Conhecer e Musicoterapia Contemporânea, apresenta
mais um mecanismo de entendimento do fenômeno triádico – musicoterapeuta,
cliente e música – na dimensão do contexto clínico musicoterápico. A discussão
dos resultados desvela a Musicoterapia em sua essência transdisciplinar e o
musicoterapeuta como um ser musical-clínico que faz uso de sua musicalidade ao
atuar profissionalmente nos espaços relacionais clínicos, apresentando
características recursivas e consensuais de cooperações mútuas. Musicalidade
clínica revela-se, assim, como algo constitutivo da identidade profissional do
musicoterapeuta, este ser musical-clínico.
Palavras-chave: Musicoterapia, Música, musicalidade, musicalidade clínica.
Abstract: This work introduces the results of a qualitative research about the
musictherapist’s musicality. From conceptions, that can be found in the Music
Therapy literature, related to the theme, emerging from primitive questions about
the researcher’s clinical practice. The reported study aims to offer another
possibility of understanding the musictherapist’s clinical musical listening and to
perform it at the setting. Founded in the Complexity Theory, the Biology
Knowlodge and the Contemporary Music Therapy, shows an extra mechanism of
understanding the triadic phenomenon — musictherapist, client and music — in the
dimention of Music Therapy clinical context. The discution of the results reveals
the transdiciplinary essence of Music Therapy and the musictherapist as a clinical
musical being who makes use of their musicality when working professionaly in
the clinical related spaces that show recursive and consensual característcs of
reciproc cooperation among musictherapist, co-therapist, client and music. Clinical
musicality can be revealed on that way as something constitutive of
musictherapist’s identity, this clinical musical being.
Key-words: Music Therapy, Music, musicality, clinical musicality.

1
Clara Márcia de Freitas Piazzetta: Mestre em Música pela Universidade Federal de Goiás (Linha de Pesquisa –
Musicoterapia: convergências e aplicabilidades); Musicoterapeuta Clínica; Graduada em Musicoterapia pela Faculdade
de Artes do Paraná em 1988. clara.marcia@gmail.com
2
Leomara Craveiro de Sá: Doutora em Comunicação e Semiótica – PUC/SP; Musicoterapeuta Clínica; Especialista em
Psicologia Transpessoal; Docente no Programa de Pós-Graduação em Música da Escola de Música e Artes Cênicas da
Universidade Federal de Goiás; Coordenadora do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Atendimentos em Musicoterapia –
NEPAM/CNPq. leomara.craveiro@gmail.com

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INTRODUÇÃO

O tema aqui desenvolvido, musicalidade do musicoterapeuta, é conseqüência das


inquietações surgidas no decorrer de reflexões sobre as interações realizadas com meus
pacientes e ergue-se em meio às discussões de temas mais amplos, tais como ‘música em
Musicoterapia’. A abrangência desse elemento alcança a dimensão da delimitação de uma
forma de atuação, ou seja, a identidade profissional do musicoterapeuta.
Tanto a Biologia do Conhecer como a Teoria da Complexidade acompanharam
minha trajetória, não apenas na fundamentação da pesquisa, mas transformaram minha
forma de ver a mim mesma e a própria pesquisa. Todo ato de conhecer faz surgir um
mundo (MATURANA & VARELLA, 2001, p.31) que nunca está pronto, ou seja,
encontra-se sempre em construção. Existe, na realidade, um diálogo em devir entre nós e o
universo (MORIN, 1998, p. 223).
Desde o início ficou evidente a importância de se compreender um pouco mais a
musicalidade do musicoterapeuta, considerando-se, como ponto de partida, os escritos
sobre ‘musicalidade clínica’ existentes em nossa literatura. Construir mais uma
possibilidade de explicação para os acontecimentos musicais no setting musicoterápico
teve início com observações do trabalho clínico desta pesquisadora. Na seqüência, a
pesquisa contou com a colaboração de cinco musicoterapeutas, momento em que esta
autora desempenhou o papel de observadora/pesquisadora do trabalho clínico desses
musicoterapeutas em ação.
Nesse espaço, o propósito de acolher as musicalidades dos clientes e interagir com
elas revelou-se como um caminho repleto de sentimentos de ‘vitórias e realizações’ para
ambos. Foram esses aspectos que delinearam o objeto de estudo desta pesquisa: o que
muda no fazer musical do musicoterapeuta para acolher a musicalidade do seu cliente e,
com isso, potencializar alguns momentos inesquecíveis?
Na Musicoterapia acontecem experiências musicais compartilhadas, ou seja,
musicoterapeuta e cliente(s) estão em uma estrada de mão dupla. Tanto as ações do
musicoterapeuta alcançam o cliente, quanto as ações do cliente alcançam o
musicoterapeuta, num movimento recursivo e consensual. Estar em espaços de interações
humanas, concomitantemente com a música, é naturalmente estar num território amplo e
flexível de inter-relações que se apresenta como um exercício contínuo do ato de conhecer.

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MUSICALIDADE NA CLÍNICA: UMA IDÉIA EM PROCESSO

Partindo de algumas concepções sobre música em Musicoterapia, encontradas na


literatura de nossa própria área, é apresentado, aqui, um recorte de como a idéia de
musicalidade clínica foi surgindo de maneira processual até tomar forma nos conceitos de
Brandalise e Barcellos.
Em 1968, Gaston (1968) procurou delimitar a Musicoterapia em três momentos
distintos: no primeiro, enfatizando o poder da música sobre o homem; no segundo, o foco é
a terapia; portanto, a relação estabelecida entre musicoterapeuta e cliente; e no terceiro
momento, busca-se o equilíbrio entre o poder da Música e a qualidade da relação
terapêutica.
Também Leinig, enfatizando o poder da música, descreveu, em 1977, elementos
que compõem uma concepção de musicalidade, mesmo não utilizando este termo
especificamente. A autora apresentou a música a partir de concepções estéticas, biológicas
e psicológicas, considerando a relação muito próxima do homem com a música, sendo isto
de extrema importância para a concepção de musicalidade em Musicoterapia. Para a
autora, a Musicoterapia utiliza-se do fato de que “a música é infinitamente mais do que um
enlevo, uma reação ou gozo pelo belo, pois não só provoca acentuadas reações sobre o
organismo do homem como também joga um papel decisivo no desenvolvimento de suas
faculdades intelectuais e emocionais”(ibid, p.19). Isso, na visão da autora, faz com que a
música atinja objetivos terapêuticos.
Na década de 1970, um pensamento linear, de causa-efeito, não possibilitava uma
aproximação com “o que vai no íntimo do homem quando ele está comprometido com a
música”(ibid, p.21). Assim, falava-se que, devido à música ser gerada na mente humana,
ela tinha esse “poder magnético” sobre o homem. Isso, tanto por “despertar os mais nobres
sentimentos, modificar a conduta, [como também] por favorecer a concentração e a perda
da consciência e, ainda, induzir a estados hipnóticos” (LEINIG, 1977, p.21-22)
Nas abordagens e metodologias da Musicoterapia, surgidas na metade do século
XX, o segundo e o terceiro momentos descritos por Gaston (1968) são refernciados e uma
concepção de musicalidade na Musicoterapia faz-se presente quando se busca o equilíbrio
entre o poder da música e a relação terapêutica.
Dessa forma, até o final do século XX, a musicalidade no contexto da
Musicoterapia deu-se pela abordagem Nordoff & Robbins. Para os musicoterapeutas Paul

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Nordoff & Clive Robbins (1977) existe uma “music child 3” em cada pessoa, que é parte
do seu self ’ e ao responder “à experiência musical, encontra significado e interesse”
(NORDOFF & ROBBINS,1977, p.1). Essa musicalidade individual, “existe em toda
criança (antes de nascer), independente das dificuldades, e reflete uma sensibilidade
universal para a música e seus vários elementos” (ROBBINS & ROBBINS, In BRUSCIA,
1991, p.57). Esse termo, assim, “denota uma organização das capacidades receptivas,
cognitivas e expressivas que podem ser o ponto central da organização da personalidade”
(NORDOFF & ROBBINS, 1977, p.2).
A abordagem Nordoff & Robbins está diretamente ligada, em sua origem, às idéias
de Rudolf Steiner, fundador da Antroposofia, e às idéias de Abraham Maslow, um dos
fundadores da Psicologia Humanista. As concepções de Música, defendidas por Victor
Zuckerkandl (1973, 1976), também embasam esta abordagem (QUEIROZ, 2003; AIGEN,
2005). Assim, como no método criado por Helen Bonny, Bonny Method - Guided Imagery
and Music (GIM), a música é concebida como algo importante, significativo e constitutivo
de cada pessoa, sendo que a relação terapêutica acontece nas experiências musicais:
‘música como terapia’ (BRUSCIA apud RUUD,1998, p.69).
Assim, musicalidade, vista como inata e constitutiva de cada pessoa pela Nordoff &
Robbins, é inserida no contexto de níveis de habilidades por Bruscia (2000). A diversidade
de experiências musicais gera variações na musicalidade “de acordo com a natureza do
estímulo musical assim como a natureza da resposta do cliente” (ibid, p.115).
Essa busca pelo equilíbrio entre o poder da música e a relação terapêutica
potencializou um dos marcos do crescimento da Musicoterapia como área de
conhecimento por ocasião da realização do Second World Symposium on Music Therapy,
“Music in the Life of Man”, na New York University (1982). Como tópico central, o
questionamento: “O que é único sobre a experiência com música que a torna importante
para terapia?” Os musicoterapeutas de vários países, ali reunidos, chegaram à seguinte
conclusão: “os princípios da Musicoterapia tanto podem ser formulados pelo apoio de
outras abordagens filosóficas e científicas como por uma teoria própria da Musicoterapia”
(BRANDALISE, 2001, p. 28).
Acompanhando, de modo muito resumido, o lugar da musicalidade nessa ampla
história do desenvolvimento da Musicoterapia, através dos escritos de alguns de seus

3
Esse conceito usado pela Nordoff & Robbins “denota uma organização da capacidade receptiva, expressiva e cognitiva
da criança que pode tornar-se fundamental na organização da personalidade” (NORDOFF & ROBBNS, 1977, p.1).

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pensadores, é possível perceber que ela se estrutura tanto nas correntes positivistas da
ciência, como em outros pensamentos, numa busca por outros caminhos.
Pensar a musicalidade como um importante elemento na Musicoterapia vem, assim,
acontecendo de modo gradativo e, aos poucos, está se incorporando à construção do corpo
teórico da Musicoterapia, influenciada principalmente pela discussão sobre a “função da
música em Musicoterapia” (BARCELLOS, 2000, p. 51). Certamente, esta consideração
está vinculada a conceitos do que seja Musicoterapia para cada profissional, seus
pressupostos filosóficos e sua práxis (prática clínica e pesquisas desenvolvidas).
Hoje, musicalidade clínica está sendo considerada no Brasil como capacidades e
habilidades musicais e clínicas do musicoterapeuta no setting musicoterápico. Mas qual a
origem dessa denominação?
As concepções de música em Musicoterapia, encontradas nas publicações de Costa
(1989) em ‘O despertar para o outro, Musicoterapia’; de Barcellos (1992a,b) em
‘Cadernos de musicoterapia 1 e 2’; de Santos & Barcellos (1996) em ‘A natureza
polissêmica da Música e a Musicoterapia’, talvez tenham contribuído para a
conceitualização de ‘Musicalidade Clínica’ apresentada por Barcellos (2000 e 2004).
Outro aspecto importante, a ser considerado na compreensão desta idéia de
musicalidade clínica, é a vinda ao Brasil do musicoterapeuta Clive Robbins durante o IX
Simpósio Brasileiro de Musicoterapia, no Rio de Janeiro (1997). Os participantes deste
encontro viram o uso desta denominação ‘musicalidade clínica’ como tradução de clinical
musicianship. Este conceito da abordagem Nordoff & Robbins que apresenta aspectos
específicos da atuação clínica do musicoterapeuta são apresentados na definição de
Brandalise (2001, 2003) sobre musicalidade clínica.

Assim, surgiram as duas concepções brasileiras sobre a musicalidade do


musicoterapeuta. Para Brandalise (2003), musicalidade clínica é

...um perfil profissional singular à profissão de musicoterapeuta. Consiste na


educação da habilidade de alguém para descobrir o potencial clínico que habita a
música a partir da instalação de uma confiável e segura relação terapêutica. A
Musicalidade Clínica conecta Liberdade Criativa, Espontaneidade, Intuição,
Musicalidade, Responsabilidade clínica (compromisso) e Intenção Clínica”
(BRANDALISE, 2003, p. 13).
Em Barcellos (2004), musicalidade clínica apresenta-se como

...a capacidade de o musicoterapeuta perceber os elementos musicais contidos na


produção ou reprodução musical de um paciente (altura, intensidade, timbre,
compasso e todos aqueles que formam o tecido musical) e a habilidade em

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responder, interagir, mobilizar ou ainda intervir musicalmente na produção do


paciente, de forma adequada (BARCELLOS, 2004, p. 83).

É importante ressaltar que, para Barcellos (1992, 1996, 2000, 2004), música em
Musicoterapia, a partir do exposto sobre a produção musical do musicoterapeuta, é “um
objeto intermediário através do qual se pretende o desenvolvimento do outro”
(BARCELLOS, 2004, p.83). A música, nesse contexto, é considerada como meio e um
artefato à disposição do musicoterapeuta.
Para Brandalise (2000, 2001, 2003), a música em Musicoterapia é o terceiro
elemento no setting. É uma ação de forças que “expressam as chamadas qualidades
dinâmicas das notas4 que caracterizam-se por ser a afirmação da incompletude da nota e de
seu desejo por completar-se” (BRANDALISE, 2001, p.17). Assim, parece que essa música
forma, junto com o musicoterapeuta e o cliente, uma única peça no trabalho terapêutico:

entendo e percebo a música emergindo na dinâmica de processos, sejam quais


forem (...) entendo a música como portadora de “personalidade” própria (...) bem
como quando Paul Nordoff atribui “vida”, “vitalidade”, “interesse”, “qualidade
emocional” a cada intervalo sonoro executado (BRANDALISE, 2001, p. 21).
A partir dessas duas composições sobre musicalidade clínica, os autores Barcellos
(1992, 2000, 2004) e Brandalise (2000, 2001, 2003) apresentam-nos o aspecto do fazer
musical do musicoterapeuta no contexto clínico musicoterápico, dentro de suas reflexões e
vivências profissionais. Nesse ambiente de vivências pessoais reside a base das diferenças
entre a forma de concebê-las em sua essência. Falam de um mesmo tema, praticamente sob
os mesmos aspectos, mas o apresentam de maneiras diferentes, havendo explicações
plausíveis para esse fato.
Barcellos (2000, 2004), ao apresentar a música como um meio, e também
considerar a musicalidade como inata ao ser humano, defende-a no setting clínico como
uma ferramenta. Constrói explicações, considerando a averiguação da percepção musical e
da resposta adequada a essa percepção e, para tanto, utiliza algumas categorias musicais
apresentadas por Seashore (1938), “a intensidade, a altura, o timbre e o
andamento”(SEASHORE apud, BARCELLOS, 2004, p. 69). Esse procedimento segue
uma preocupação muito presente em todos os seus trabalhos, “no sentido [do]
musicoterapeuta saber ‘lidar’ também com a música, seu elemento de trabalho (...)”

4
Qualidades dinâmicas das notas está relacionado à forma de relação exsitente entre as notas musicais e seus contextos
escalares: “as notas relacionam-se entre si, tornam-se ativas, isto é, apresentam-se como forças dinâmicas, em que ora a
sensação de equilíbripo de uma determinada nota é perturbada, ora há uma tensão em direção adiante, ora há um
relaxamento da tensão. Todas essas qualidades são percebidas diretam,ente pela audição quando soam mais de uma nota
(ZUCKERKANDL, apud QUEIROZ, 2003, p. 54 )

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(BARCELLOS, 1992b, p. 3). As reflexões da autora baseiam-se, como mencionado acima,


em Fiorini (1976), Watzlawick (1977) e em algumas teorias voltadas à psicoterapia.
A música, considerada como ‘entidade’ por Brandalise (2001, 2003), justifica o fato
de que tudo que diz respeito à sua organização sócio-histórica torna-se elemento capaz de
levar a pessoa (cliente) a transformar-se ou atualizar-se, através da relação sonoro musical
estabelecida no momento do compartilhar da experiência musical. A música, enquanto
ferramenta (objeto intermediário), para Barcellos (1992, 2000, 2004), apresenta-se como
um recurso que o musicoterapeuta utiliza numa relação de ajuda (musicoterapeuta –
paciente).
Após esta explanação sobre os dois conceitos brasileiros apresentados na literatura
da área, é possível vislumbrar com mais clareza um musicoterapeuta atuando no setting
musicoterápico, este ‘ser musical – clínico’.

MUSICOTERAPEUTA: UM SER MUSICAL-CLÍNICO

Quem é este ser musical - clínico? Como e onde ele se constitui? Que ‘valores’
musicais podem ser importantes para ele? Em um primeiro momento, a resposta pode ser
simples: é um musicoterapeuta, um profissional graduado ou Especialista em
Musicoterapia com conhecimentos nas áreas da Música, Filosofia, Medicina, Psicologia e
do Corpo (voltados também para o autoconhecimento e sensibilização).
Saber o conteúdo das disciplinas não é o suficiente para compreender a construção
desse ser musical – clínico, pois o produto final ultrapassa a soma das partes, uma vez que
os aspectos subjetivos, envolvidos na constituição desse ser musical – clínico, não podem
ser mensurados através de conceitos pré-determinados.
O conhecimento musical, por si, não concebe autonomia para proporcionar relações
de ajuda pela / na música. Assim, o estudante de musicoterapia precisa ter domínio da
música e, na mesma intensidade, conhecer-se mais através de processos psicoterápicos
e/ou musicoterápicos e, ainda, refletir sobre sua inter-relação com a música. Sem esse
primeiro espaço de autoconhecimento, envolvendo aspectos pessoais e musicais, a
dimensão do acolhimento ao outro pode não acontecer. Portanto, o musicoterapeuta precisa
estar em constante diálogo com as especificidades musicais, ou seja, sua própria

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musicalidades e do cliente. Esse ato acontece em função da concepção de Música, ao


mesmo tempo, externa e interna ao ser humano5.
Nesse domínio de uso da Música nas relações de ajuda, a proposta da
Musicoterapia Músico-centrada, apresentada por Aigen (2005), traz alguns ‘valores
musicais’ essenciais do musicoterapeuta na construção musical no aqui e agora, “existindo
‘com’ e ‘na’ música” (Musicing)6. Assim, segundo Aigen (2005), o musicoterapeuta
precisa ter uma compreensão do silêncio; ter uma escuta centrada, intencional;
precisa admitir o individual e o social ao mesmo tempo; envolve uma rendição, um
entregar-se à música e um cultivar o respeito pela música enquanto Arte (criada por
um artesão) e, ainda, uma concepção clara de que a música cria conexões7.
A partir disso, um ser musical-clínico constitui-se, ao longo de sua formação, a
partir de sua musicalidade inata transformada em ‘musicalidade clínica’. Essa
transformação o habilita a exercer a profissão que escolheu, isto é, ser um
musicoterapeuta.

MUSICALIDADE CLÍNICA

Uma reflexão sobre a origem desta nomenclatura no Brasil nos remete aos termos
musicalidade clínica e clinical musicianship, apesar de estarem sendo concebidos no Brasil
como sinônimos, isto devido à tradução realizada em 1997 e 2001, não devem ser
considerados como tal.
Em entrevista, Kenneth Aigen (2005)8 relata:
musicianship está baseado na habilidade que você desenvolve e musicalidade é
alguma coisa que você naturalmente tem. Então, tem alguns clientes que eu
trabalho e eles parecem já estarem conectados com o seu ser musical; eles
parecem já musicais. Mas eles podem não ter nenhuma musicianship porque eles
não trabalharam naquela forma de música e com música. Então, musicalidade é
um aspecto do ser da pessoa e musicianship é uma habilidade que ele pode
adquirir.

5
Considerar a música, ao mesmo tempo, como interna e externa ao musicoterapeuta no setting clínico acontece à
medida que o profissional está comprometido com o conhecimento de sua musicalidade e da musicalidade de seu cliente
considerando, também, os exemplos musicais trazidos pelo cliente e as construções musicais realizadas por ambos nos
encontros sonoros / musicais / verbais / corporais entre ambos.
6
Musicing – musicalidades em ação - terminologia usada pela Musicoterapia Contemporânea (Aigen,2005; Stige 2002,;
Ansdell & Pavlicevic, 2004) e envolve a visão de Música em Musicoterapia e o lugar da musicalidade neste contexto.
7
Para mais esclarecimentos sobre estes valores apresentados por Aigen ver Music Centered Music Therapy (2005, p. 80)
8
Em novembro de 2005, Dr. Aigen veio à Ribeirão Preto - SP, aproveitamos para conversar pessoalmente com ele.
Conseguimos uma entrevista ao vivo e assim continuamos a conversa iniciada em junho de 2004, por e-mail. Nessa
entrevista, esclarecemos as diferenças entre musicalidade e musicianship e especificidades do conceito musicing
publicado em seu livro Music-Centered Music Therapy (2005a).

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Em acordo com essa diferença entre os termos, é possível considerar que existam,
sim, finalidades comuns entre ‘musicalidade clínica’ e ‘clinical musicianship’ para o
trabalho musicoterápico, levando-se em conta a musicalidade tanto do cliente quanto do
musicoterapeuta, mas isso não é suficiente para serem consideradas com significados
idênticos.
Na primeira parte desta pesquisa qualitativa, eu, enquanto musicoterapeuta-
pesquisadora fui observada por uma musicoterapeuta - observadora com o objetivo de
pesquisar minha musicalidade no setting. Aigen (1996), ao falar do ‘papel dos valores da
pesquisa qualitativa em musicoterapia’, traz que os pesquisadores qualitativos possuem
uma visão ampla de quais contextos relevantes podem ser incluídos e reconhecem que o
contexto pessoal é importante para permitir que “o documento de pesquisa seja revelado
em todas as suas faces” (Ibid, p.12).
Bruscia (2003), ao apresentar a pesquisa qualitativa em Musicoterapia, afirma que
existe tanto a possibilidade de o musicoterapeuta investigar seus clientes, como pode
investigar a si mesmo: “como trabalho? Como me relaciono com meus pacientes? Como
uso a música realmente? Como uso a música com meus pacientes?” Ressalta, também, que
isso é muito importante porque não só nos dá informações sobre o método que usamos
como também, “ajuda a ver aspectos contratransferenciais” (BRUSCIA, 2003, p. 78).
Estudar a mim mesma, sob o ponto de vista da utilização de minha musicalidade no
setting, convivendo com os momentos contratransferenciais, revelou, primeiramente, um
impulso para a realização de estudos e execuções musicais, uma saudade de tocar. Acredito
que, quanto mais próxima desse ambiente de produção musical, de domínios de
instrumentos e mesmo da música eu estiver, mais amplas tornam-se minhas opções
musicoterápicas no setting.
No entanto, percebi que eu não precisava apenas de um estudo visando mais
domínios dos instrumentos, tais como: reproduzir escalas, cadências, melodias já
conhecidas, estudos técnicos, etc... Na realidade, eu precisava fazer desse momento um
estudo de minha musicalidade, como me relaciono com a música, como as técnicas
instrumentais me servem para acessar a musicalidade do meu cliente. Apenas depois de
experimentar minha musicalidade, mesmo que não em profundidade, senti-me mais segura,
mais inteira, mais espontânea musicalmente com Marcos9.

9
Visando proteger a identidade do cliente, utilizamos, aqui, um nome fictício (Marcos). Ele foi atendido no Laboratório
de Musicoterapia da UFG, de setembro a dezembro de 2004, durante a primeira fase da pesquisa qualitativa,

9
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Identificar minha musicalidade como algo mais amplo que qualidade e/ou
habilidade para instrumentos musicais, reconhecendo meus limites, colocaram-me diante
da dimensão do campo musical. Esta conscientização revelou uma forma própria de
perceber Marcos e possibilitou que a expressão de consignas no setting acontecessem mais
fluentemente nesses domínios. Isso não me impediu de utilizar a linguagem verbal no
setting, porém, percebi algo como que mudando de canal de expressão, uma vez que, nas
dimensões do sonoro e do musical, eu era aceita por Marcos mais facilmente.
Percebi, assim, que as intuições clínicas, as espontaneidades clínicas, as
intervenções musicoterápicas habitam essa dimensão dos domínios sonoro-musicais
também. Os conhecimentos musicais são indispensáveis, mas não garantem um
conhecimento da própria musicalidade. No setting, entregar-se às dimensões de
musicalidades em ações é admitir a experiência musical como um espaço transdimensional
de musicalidades acessadas. Sem esse espaço do ‘entre’ as musicalidades do
musicoterapeuta e do cliente não se compartilha a experiência musical.
O acesso a esse espaço é possível a todos, tanto aos que se permitem encontrar com
suas musicalidades da forma como elas são quanto para os que desenvolvem outros
estudos no campo musical. Contudo, liberdade no domínio da música não basta, é
imprescindível para o musicoterapeuta o conhecimento da própria musicalidade e saber
contextualizá-la na prática clínica.
A segunda etapa desta pesquisa realizou-se com a colaboração de musicoterapeutas
colaboradores. Esses profissionais cederam a gravação de um atendimento clínico de livre
escolha e colocaram-se disponíveis para entrevistas10 .
Dessa maneira, Ângela11 pensa sua musicalidade associada à sua habilidade
musical –“ o que vem a ser realmente musicalidade é o que eu faço... seja em termos de
improvisação ou reprodução musical”. Ao associar musicalidade ao trabalho clínico,
complementa: “penso, principalmente, quando eu vou improvisar porque sempre fico
atenta se isso é uma improvisação para mim, ou para o paciente, ou com o paciente, acho

desenvolvida pela musicoterapeuta mestranda Clara Márcia Piazzetta, sob supervisão clínica e orientação da Profa. Dra.
Leomara Craveiro de Sá. No período da realização dos atendimentos, ele freqüentava a 1ª série de uma escola pública, em
um programa de inclusão, não fazia uso de medicamentos e contava também com atendimentos em psicopedagogia e
psicomotricidade.
10
Foram realizadas transcrições literais das entrevistas. Contudo, os recortes inseridos na seqüência não seguem o padrão
coloquial da linguagem falada. Visando uma melhor compreensão e sem acarretar perdas de conteúdos, foram feitas
algumas adaptações para a linguagem escrita.
11
Tendo em vista proteger as suas identidades, todos os nomes dos musicoterapeutas colaboradores da pesquisa, aqui
apresentados, são fictícios.

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que é normal eu me perceber improvisando para mim mesma. Então, é importante estar
sempre atenta, porque a música conduz, ela te leva”.
Ângela relata, também, que começou a refletir mais sobre sua musicalidade ao ser
convidada para participar desta pesquisa.
Para Josiane, sua musicalidade está diretamente ligada às formas de atender à
demanda do paciente: “dentro do que eu sei de música, como é que eu posso atender ao
que eu estou ouvindo de música do paciente?” Parte, então, da escuta da música que vem
do paciente para depois buscar “os conceitos e as fórmulas e tudo o que está armazenado,
músicas entendidas, decoradas ou não, tudo que aprendemos vem conosco e ajustamos
para atender o paciente. Pelo menos o que eu estou ouvindo que seria adequado para
formatar o pedido do paciente”.
Ainda sobre sua musicalidade no setting, ela ressalta a importância de sempre estar
em movimento, sempre indo atrás de mais conhecimentos musicais de modo a ampliá-la e
acredita que não existem fórmulas para se aprender isso, a não ser praticando muito: “com
o tempo vamos conseguindo acomodar melhor a musicalidade no setting; com o tempo
aprendemos a improvisar sem medos, improvisar letras, improvisar ritmos, harmonias”.
Paulo mantém a atividade como músico paralelamente ao trabalho clínico
musicoterápico e relata, ao abordar sobre sua musicalidade, o sentimento de
‘esvaziamento’ desta no setting. Esvaziamento no sentido de empobrecimento devido aos
seus questionamentos quanto à “sua maneira de intervir clínico criativamente frente à
demanda clínica dos pacientes” e complementa:

...aqui no consultório, a prioridade não é a minha musicalidade, o meu gosto


musical, o meu caminho de harmonia. Tudo que eu faço, claro que passa pelas
minhas opções, mas eu estou mirando no que eu intuo da demanda do outro e
então está faltando para mim a nutrição, o espaço criativo do músico.
Após apresentar esses breves recortes das falas dos colaboradores, faz-se necessária
uma aproximação com estas musicalidades inseridas nos contextos clínicos. Assim,
chegamos aos espaços de ‘musicalidades em ação’ entre musicoterapeutas / co-terapeutas,
música e clientes. Esses momentos de interações sonoras, musicais, corporais e verbais
foram desvelados pela análise musicoterápica12 do atendimento cedido e foram discutidas
com o musicoterapeuta responsável pelo atendimento.

12
A realização desta análise deu-se com a leitura dos protocolos de atendimento (ficha musicoterápica, e relatório do
atendimento) cedidos pelo musicoterapeuta; contou, também, com uma análise musical das peças executadas e a
contextualização destas execuções no momento do atendimento.

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Os musicoterapeutas colaboradores desta pesquisa falaram de suas musicalidades


nos trabalhos clínicos que realizaram a partir dos momentos marcantes, inesquecíveis. A
análise musicoterápica realizada deu destaque à existência desses momentos. Assim, ao
discutir sobre as escutas e execuções musicais clínicas que cada colaborador realizou foi
possível abordar este tema dos momentos marcantes e/ou inesquecíveis e sua relação com
o processo de cada cliente.

MUSICALIDADES EM AÇÃO: RECURSIVIDADES,


SERENDIPIDIDADES E MOMENTOS INESQUECÍVEIS

Um olhar e uma escuta musicoterápica sobre o trabalho clínico que realiza permite
ao musicoterapeuta a percepção da musicalidade do cliente bem como do desenvolvimento
do processo musicoterápico. Esse exercício descritivo-reflexivo potencializa intervenções
e interações sonoro / musicais / verbais / corporais comprometidas com o atendimento
clínico único de cada cliente. Potencializa também, as serendipididades. Para Morin (2004,
p 23), serendipididade é “a arte de transformar detalhes aparentemente insignificantes em
indícios que permitam reconstituir toda uma história” .
As análises musicoterápicas, realizadas no âmbito desta pesquisa juntamente com
os respectivos musicoterapeutas colaboradores, demonstraram também que as ações e
interações presentes nos encontros musicoterápicos existem na dimensão de ‘recursividade
organizacional’13. Assim, as condutas não são por mero acaso, “os produtos e os efeitos
são ao mesmo tempo causas e produtores daquilo que os produziu” (MORIN, 2001, p.108).
Como exemplo, trago um recorte do processo de Marcos, um menino de 10 anos,
portador de distúrbio de conduta com déficit de comunicação; uma pessoa muito musical.
Ele foi atendido por mim na primeira etapa da pesquisa. Este recorte é da sexta sessão e
contém elementos musicais trazidos pelo cliente (célula rítmica, célula melódica,
encadeamento harmônico modal) na primeira sessão. A denominação deste momento é
‘dormir e acordar’(fig. 01) e aqui compartilhamos uma brincadeira envolvendo as
sonoridades do violão e os movimentos sonoros / corporais de Marcos, primeiramente
desafiando-me ao lamber um instrumento musical e depois, entregando-se às sonoridades
harmônicas do vilão:

13
‘Princípio da Recursividade Organizacional’ compõe a Teoria da Complexidade, apresentada por Edgar Morin
(MORIN, 2001, p. 108).

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(...)

(...)
(fig 01) Dormir e Acordar
No momento de um atendimento musicoterápico estamos (musicoterapeuta e
cliente) experienciando interações sonoras / musicais / verbais / corporais no acontecer de
‘acoplamentos estruturais’14, em que nossas musicalidades, ao se tocarem de forma
consensual, possibilitam a construção de caminhos que levam a transformações.
14
Acoplamentos estruturais: para Maturana & Varela (2001) constitui-se nas “congruências entre a estrutura da unidade
e a estrutura do meio que atuam como fontes de perturbações mútuas (domínio das perturbações), desencadeando
mutuamente mudanças de estado (domínio de mudanças de estado)”. (MATURANA & VARELA, 2001, p. 87)

13
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Construímos uma relação dialógica15, através das interações musicais consensuais,


convivendo de forma harmônica com a ordem e a desordem, o estável e o instável, com a
certeza e a incerteza, a caminho da unidade.
Assim sendo, para melhor visualização desses momentos musicais, transcrevi os
acontecimentos em forma de partituras. Contudo, transcrever as sonoridades que
compartilhamos, usando um modelo tradicional de partitura, foi parcialmente possível.
Alguns acontecimentos musicais, se “congelados”, nada significam para a análise musical
no contexto musicoterápico (CRAVEIRO DE SÁ, 2002). Assim, fez-se necessária a
descrição de alguns movimentos corporais que acompanhavam as sonoridades, na forma de
texto sobre a pauta.
Por outro lado, essa mesma forma de transcrição, colocando-nos como partes de
uma obra, em uma mesma grade musical, possibilitou uma visualização das interações e
intervenções. Olhar para a produção sonora, agora descrita, revelou as recursividades
presentes no momento da criação sonora no setting. Na recursividade, construí com
Marcos o seu processo musicoterápico. Ao construir ‘com’ e não ‘para’ Marcos este
processo, permiti certa correspondência entre nós dois. Pela recursividade, esta
correspondência não é acidental “é o resultado necessário dessa história (...) nenhum de
nós está aqui por acidente” e estabelecemos uma ‘congruência’(MATURANA, 2002,
p.62). Para Maturana (2002), também, “isso, em si mesmo e em princípio, explica os
aspectos mais salientes da conduta adequada. A conduta adequada é a conduta que é
congruente com as circunstâncias nas quais ela se realiza” (ibid, p.62).
Este ‘adequado’, presente na concepção de musicalidade clínica de Barcellos
(2004), é acompanhado de um sentimento intenso vivenciado por todos e sinaliza os
momentos inesquecíveis. Para Ângela, “ o prazer no resultado, instiga a gente a querer
investigar, a querer mostrar mais respostas... é gratificante para o profissional. São
momentos sublimes”.
Rafaela destaca a fluência e intensidade de sua musicalidade, acompanhando esses
momentos que são de “plenitude, momentos marcantes (...) que pertencem ao momento,
não voltam mais, era a música para Taís”.
João aponta a fluência e o “estar disponível para o meu cliente”. Faz um destaque
também à fluência interligada ao que é familiar ao musicoterapeuta, “as músicas de minha

15
Princípio Dialógico: a Teoria da Complexidade considera a existência de um pensamento que congregue as diferenças,
acolha a complementaridade de conceitos aparentemente contrários, que permita a ordem e a desordem, a certeza e a
incerteza de forma dialógica “mantendo a dualidade no seio da unidade” (MORIN, 2001, p.107-109).

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história, que eram músicas de meu gosto, do meu sentimento, do meu sentimento em
relação ao cliente”.
Josiane ressalta a ‘potência da música’ no setting e os sentimentos presentes quando
se concebe este lugar para a música:

todas as vezes que eles acontecem nós nos sentimos realmente musicoterapeutas
(...) eu só vou acreditar na musicoterapia quando esses pontos acontecem,
enquanto eu não chego nesses pontos parece que não se firmou, não aconteceu,
ou não estamos em uma comunicação adequada, ou não acessou, ‘alguma coisa’
não está acontecendo.
Para Paulo, a existência de momentos de fluência, espontaneidade, e
conhecimentos musicais do musicoterapeuta na sua atuação clínica indicam que o
musicoterapeuta “empatizou com parte da musicalidade do paciente e o que nasceu ali,
naquele momento, é importante”.
A partir da análise musicoterápica, tomando por base o conceito de
‘serendipididade’, detalhes aparentemente insignificantes, que muitas vezes aparecem nos
elementos da música, em ritmos, melodias, timbres, harmonias, gestos e tempos musicais,
contribuem para favorecer a reconstrução da história pessoal do cliente. Como tais,
tornam-se pontos de certezas que constituem amarras sonoras que vão se transformando
em uma verdadeira ‘teia sonora’ (BARCELLOS, 1999). Essa teia, por sua vez, cria um
espaço de segurança, confiança e cooperação mútua. “A partir de” e “nas” experiências
musicais, é possível compor uma nova história, um prelúdio a duas vozes inspirado em
musicalidades em ação. Este, traz consigo a força da energia transformadora.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A reflexão sobre a musicalidade do musicoterapeuta no setting clínico, descrita


neste artigo, partiu da construção do termo ‘musicalidade clínica’ como uma idéia em
processo na bibliografia brasileira da área. Assim, esse tema não é novo, desvela-se como
essencial à formação da identidade profissional do musicoterapeuta, ao mesmo tempo em
que pode ser mais uma possibilidade de compreensão do fenômeno “música em
Musicoterapia”.
A partir disso, a descrição de breves momentos de interações mais intensas entre
musicoterapeuta, co-terapeuta, cliente e música, que encontramos nos trabalhos clínicos
analisados, impulsionaram-nos a construir um mecanismo para explicar essas interações

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acolhendo, também, o fenômeno música em Musicoterapia. Estávamos diante de muitas


subjetividades, encontros inter-relacionais e inter-subjetivos de musicalidades em ação.
Assim, optamos por uma explicação da dinâmica de funcionamento dessas
interações, levando em consideração a musicalidade tanto do musicoterapeuta/co-terapeuta
quanto dos clientes. A musicalidade aparece como algo inato, constitutivo e também uma
forma de cognição de cada pessoa. Musicalidade integra, assim, a forma de ser de cada um
no mundo. A ação cognitiva da musicalidade não habita apenas o campo das percepções
sonoro-musicais auditivas e táteis, mas adentra ao campo da ação humana, revelando a
“music child” (NORDOFF & ROBBIN, 1977). Campo este onde, segundo Maturana &
Varela (2001), vivemos porque conhecemos e conhecemos porque vivemos!
Através do exercício da musicalidade, com seus componentes biológicos
(capacidade neural de resposta à excitação musical) e sua ação prática nos domínios
relacionais humanos, a música concretiza-se através do canto, da performance instrumental
e corporal, de uma simples brincadeira com sons, da dança e da audição musical. Dessa
maneira, envolvemo-nos com a música de formas variadas, porque somos seres humanos
musicais. Não existe limite pré-estabelecido para o potencial criativo da musicalidade. O
conceito de conditional child, desenvolvido pela abordagem Nordoff & Robbins (1977), é
um exemplo disso. Assim, as formas de relações que as pessoas estabelecem com a música
potencializam o desenvolvimento da criatividade musical.
Apenas a partir dessa forma de pensar a musicalidade foi possível propor uma
aproximação desses pensamentos com a proposta da ‘Biologia do Conhecer’ de Maturana
& Varela (2001). Essa reflexão remeteu-nos a uma compreensão da dimensão da
musicalidade, da musicalidade clínica e da música no setting clínico.
Partimos do princípio que os seres humanos movem-se pelo equilíbrio entre os dois
domínios constitutivos, apresentados por Maturana e Varela (2001): o domínio biológico e
o domínio relacional. A estrutura neurológica humana possibilita a musicalidade e sua
ação eminentemente relacional.
Ser um excelente músico não é suficiente para que a musicalidade do
musicoterapeuta potencialize os processos musicoterápicos e mesmo as interações clínicas.
Elementos como intuição clínica e inspiração musical conectam-se na busca do acesso à
musicalidade do (s) cliente (s). As intervenções musicais clínicas tornam-se eficientes nos
domínios das ‘musicalidades em ação’ e são esses momentos de musicalidades intensas
que possibilitam as ‘experiências culminantes’e os ‘momentos inesquecíveis’.

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Portanto, o musicoterapeuta usa de inspirações musicais, acredita em sua intuição


clínica como agente que move suas intervenções musicais clínicas. Acima de tudo, ele, um
ser musical-clínico, dialoga com muitas incertezas diante da escuta musical do cliente e
busca, em cada momento sonoro, musical, corporal e verbal compartilhados, o acesso à
essência musical de seu cliente no exercício de suas musicalidades em ação.
Um ser musical-clínico não é apenas um bom músico, mas um profissional
terapeuta que coloca sua musicalidade a serviço das relações de ajuda, movido
principalmente por entregas incondicionais, ou seja, pelo amor, princípio básico da
cooperação.
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