Apostila - Bíblia - I - Introdução Ao at
Apostila - Bíblia - I - Introdução Ao at
Apostila - Bíblia - I - Introdução Ao at
ao
Antigo Testamento
03
04 Introdução ao Antigo Testamento
Introdução ao Antigo Testamento
Unidade - 01
O Antigo Testamento como Cânon
Introdução
Duas páginas do Codex Sinaiticus - o AT em grego. É um texto que os primeiros cristãos liam.
Observe: O texto é sem divisões entre as palavras e usa só maiúsculas.
05
Objetivos
Para pensar...
Que papel desempenha o AT na sua comunidade? Em
quantos domingos há uma leitura desta parte da Bíblia? Qual
porcentagem dos sermões foi baseada no AT durante os últimos
12 meses? Por que isso acontece? – qual é sua interpretação?
Coloque as suas ideias no nosso fórum!
A Bíblia tem um papel decisivo para a fé cristã. Ela é testemunha
de Deus em suas ações no mundo. A pergunta com que muitas religiões
se ocupam é: “Como conhecer a deus?” Algumas filosofias e religiões
acham que o seu deus pode ser reconhecido pelo pensamento humano,
pela nossa interpretação do mundo, ou experiências paranormais.
Outra máxima vale para a religião cristã: o Deus cristão quer ser
reconhecido como aquele que já se revelou para os homens. Isso
07
o AT (como símbolo da grande paralisação eclesiástica) no monte de
escória da história (HARNACK, 1924, p. 217).
A desvalorização do AT frequentemente andava e anda junto com
a desvalorização do povo judaico. O antijudaísmo cristão contribuiu
com o antissemitismo moderno. A igreja entendeu como um novo
Israel herdando o status do antigo povo de Deus que consequentemente
deserdou. O AT, por consequência,
era a escritura sagrada de uma religião
estranha e sem graça.
Por isso, não podemos esquecer
o seguinte: Jesus era judeu, Paulo
também. O que é chamado no
cristianismo de “Antigo Testamento”
era a Bíblia que ambos possuíam. As
escrituras judaicas determinavam
seus pensamentos e conversas. Além
disso, os textos do Novo Testamento não podem ser entendidos sem
o AT. Eles frequentemente reiteram os conceitos, imagens, metáforas,
fundamentos, histórias e teologia do AT. Só pense sobre esse nome
“Jesus Cristo” ou “Messias”!
Podemos chamar a Bíblia cristã de uma “edição ampliada” do
AT. Queremos dizer que nessa “nova edição” há novas escrituras
(biografias, livros históricos, cartas...) que foram tomando o título
de sagradas escrituras. Isso tem algumas implicações para a nossa
concepção e para o nome do AT.
Para pensar...
Que nome você usaria para o AT – se você fosse decidir?
Coloque as suas ideias no nosso fórum!
Então, podemos deduzir que as ações de Deus anteriormente
são da “velha aliança/antigo testamento”? Especialmente 2Co 3,6
(evidentemente) põe uma relação desigual entre a velha e nova aliança.
Mas isso não é correto no que tange a relação entre AT e NT. E com o
anuncio do novo testamento já no AT, em Jr 31, precisamos distinguir
bem esses conceitos de aliança. Entretanto, em 2Co 3,14 lemos: “Mas
os seus sentidos se endureceram; porque até hoje, quando fazem a
leitura da antiga aliança, o mesmo véu permanece, não lhes sendo
revelado que, em Cristo, é removido”. Aqui, onde se lê “antiga aliança,”
refere-se, obviamente, a um livro. O que nos leva a concluir, por um
lado, em um comentário sobre o AT no NT que o AT é antiquado. Por
outro lado, isso obviamente não é verdade para todo o AT. Contudo,
aqui encontramos essa tensão entre a continuidade e descontinuidade
ao descrever a relação entre os dois testamentos (livros).
Por causa disso, Erich Zenger sugere descrever o AT como
09
“Primeiro Testamento” (ZENGER, 2003). Alguns teólogos também
usam o termo “Bíblia Hebraica” ou “Tanach”, uma palavra artificial
que vem das letras iniciais das palavras hebraicas, que descrevem
o conteúdo tripartido do AT: Torá, Neviim e Ketuvim (Instrução-
Lei, Profetas e Escrituras). Essas possibilidades evitam termos que
sugerem uma depreciação do AT. Todavia, chamar essa primeira parte
da Bíblia cristã “Antigo Testamento” é uma designação tradicional que
está sempre nos lembrando de que precisamos do Novo Testamento
como continuação. Contudo, devemos estar alertas aos perigos de
uma desvalorização dos livros incluídos e também da probabilidade
de barreiras na conversação com os judeus.
Pelo menos hoje precisamos de uma forte valorização do AT.
Especialmente em nossa sociedade, na qual a fé cristã está cada vez
menos conhecida, devemos enfatizar mais a leitura do AT. Sem o AT
toda a salvação de Jesus fica “no ar”. Além disso, o AT esclarece as
perguntas fundamentais do ser humano em relação a Deus.
Uma questão: Por que as pessoas precisam da redenção por meio
de Jesus Cristo, se não sabem que Deus as criou para pertencerem
a ele, porém estão separadas Dele pelo pecado? Exatamente isso é
testemunhado pelo AT!
Os 5 Megilloth
• Festa das semanas (Schavuot) - Rute;
• Festa da páscoa (Pessach) - Cântico;
• Festa dos Tabernáculos (Sucot) - Eclesiastes;
• Festa de comemoração da destruição do templo (Tishá BeAv)
- Lamentações;
• Festa de Purim - Ester
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A teologia do cânon
A palavra grega “cânon” significa “regra” ou “instrumento de
medir”. Com o termo “cânon do AT” determina-se a coleção encerrada
de escritos inspirados pelo Espírito Santo. Abrange aqueles escritos que
têm autoridade normativa para a igreja, isto é, que servem como regra
para a nossa fé e vida como crentes.
Podemos resumir uma interpretação teológica do cânon
(seguinte Erich Zenger):
Torá como promessa e
I Gn – Dt Revelação originária no Sinai
interpelação
II Js - 2Mc História de Israel na terra Passado
III Jó – Sr Sabedoria para a vida Presente
IV Is – Ml Profetismo Futuro
13
Neste sentido podemos também ler o NT:
Referências
Introdução
Objetivos
Ao final da unidade, o aluno:
1. Conhecerá parte da história da tradição do texto do AT;
2. Terá uma noção das complicações durante o processo
de tradução.
Plano da unidade
Alguns fatos interessantes da caminhada do texto do AT
• Os rolos de Qumran (os papiros do Mar Morto)
• A Septuaginta (LXX)
• Os Massoretas
• A Bíblia Hebraica
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Alguns fatos interessantes da caminhada do
texto do AT
As palavras do Antigo Testamento (tanto como as do NT) foram
escritas por homens (Jo 1,14), mas
sob o controle do Espírito Santo
(chamamos isso de a “inspiração” da
palavra de Deus). Isso significa que
o AT tem uma origem humana que
devemos conhecer a fim de poder
perceber melhor a sua mensagem.
Os passos da formação da Bíblia que
conhecemos hoje foram os seguintes:
Tabuletas de argila - Fonte: Wikimidia Commons Homens de Deus...
A Septuaginta (LXX)
A primeira coleção completa dos livros do AT foi a tradução
dos livros do AT na língua grega chamada Septuaginta, comumente
conhecida pela sigla LXX. A palavra “Septuaginta“ é latina e
significa “Setenta”, que se escreve em letras romanas: “LXX”. O nome
“Septuaginta“ vem de uma tradição antiga que diz que esta tradução
foi feita por setenta e dois homens em setenta e dois dias. Mas na
verdade este trabalho levou muito mais tempo, mais ou menos de 300
até 100 a.C.
A razão porque esta tradução foi feita é a seguinte: Houve muitos
judeus no império Romano, que viveram fora da terra de Israel e que
não aprendera a língua hebraica dos seus antepassados. Eles precisaram
17
de uma tradução de suas
Sagradas Escrituras na
língua oficial do Império
Romano que era o Grego.
A qualidade e o estilo da
tradução são bem variados
de livro para livro – do
literal à paráfrase.
A LXX teve a
seguinte ordem: Torá -
Livros Históricos - Livros
Poéticos - Apócrifos
fragmento de um pergaminho da LXX
Fonte: Wikimidia Commons
- Livros Proféticos. A
LXX era a Bíblia que os
apóstolos e a igreja primitiva liam e citavam. Por isso, algumas citações
no NT do AT parecem um pouco livres e diferentes do nosso AT, que
foi traduzido do hebraico.
Os Massoretas
As cópias mais importantes dos textos do AT que temos são as
cópias na língua hebraica, feitos por uma escola israelita de escribas
chamados Massoretas. Os Massoretas
foram homens com uma grande
tradição na arte de escrever e copiar.
Produziram cópias dos livros do AT
e ao mesmo tempo tiveram o alvo de
manter o texto original inalterado
e ileso. Durante muitos séculos, os
Massoretas mantiveram uma tradição
irrepreensível e imaculada dos textos
do AT. Porém, as cópias mais velhas
dos Massoretas que temos hoje em dia
são originárias do ano 930 d.C. São
os códices chamados Codex Aleppo e
Página dos Targumim (traduções, paráfrases e comentários em aramaico da Bíblia hebraica
Fonte: Wikimidia Commons
A Bíblia Hebraica
Ao ver o uso da LXX na igreja cristã, i.e. como os crentes
provaram com a LXX que Jesus Cristo é o Messias, os judeus decidiram
abandonar esta tradução grega e voltaram para a sua Bíblia Hebraica,
isto é, a coleção dos livros do AT na língua hebraica. Esta coleção já
tinha existido antes de Cristo (Jesus mesmo a usou, Lc 24,27 e Mt
23,34), mas foi estabelecida como Cânon Hebraico fixo somente no
ano 90 d.C. (sínodo de Jabne ou Jâmnia) em rejeição da LXX que os
Cristãos usaram. A ordem dos livros da Bíblia Hebraica foi diferente
da ordem da LXX: Lei - profetas anteriores (Livros Históricos) -
profetas posteriores - escrituras. Enquanto os Cristãos seguindo a
LXX mantiveram a ordem antiga com os profetas posteriores no fim
(os quais apontam para Cristo!), os Judeus colocaram os 5 rolos das
festas (Rute, Cant., Ecl., Lam., Ester) e os livros do tempo do cativeiro
(Daniel, Esdras, Neemias, Crônicas) no fim do seu cânon.
Referências
Harnack, Adolf von. Marcion. Das Evangelium vom fremden Gott. Leipzig,
2a ed., 1924.
Zenger, Erich. Introdução ao Antigo Testamento. Petrópolis: Edições
Loyola, 2003.
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Anotações
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Introdução
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Outros detalhes, como cronologia ou rostos
individuais, tão importante para nossa convenção de arte
(por isso gostamos muito de emoções etc.), não recebem
nenhuma atenção. Algo que você pode confirmar apenas no
museu (ou em uma imagem completa) é que os retratos de
Laquis são do mesmo tamanho que as do acampamento do
rei, que está desenhado com detalhes com as mesas cheias
de comida e coisas preciosas. Lembre-se que a história
normalmente foi escrita (ou desenhada) pelos vencedores.
Poderíamos falar muito mais sobre essa cena – talvez sobre
os símbolos religiosos ou as inscrições no afresco. Mas
para mim é suficiente mostrar as grandes diferenças entre
o mundo antigo e nosso tempo através da arte que espelha
muito a cultura geral.
Objetivos
Plano da unidade
• O mundo do Antigo Oriente Próximo
• Por que estudamos essa cultura e história?
• Como sabemos sobre o mundo do Antigo Oriente Próximo?
• Cronologia
• Geografia
23
Como sabemos sobre o mundo do Antigo Oriente
Próximo?
Ao começarmos a estudar sobre as culturas antigas, encontraremos
o termo “Arqueologia Bíblica”, definida como o estudo arqueológico
de Israel e da Palestina. Ela é
uma disciplina independente
e trabalha estreitamente ligada
com o Próximo Oriente.
Outros estudos se relacionam
com os da Suméria, Babilônia,
Assíria ou Egito. Para definir
arqueologia, vou citar o
seguinte: “A arqueologia é a
investigação das sociedades
Hazor (norte de Israel) - Fonte: Wikimidia Commons
humanas através do estudo de
vestígios materiais por elas deixados (artefatos). Embora a imagem do
profissional em arqueologia mais difundida seja a de seu trabalho nas
escavações, seu trabalho é muito mais complexo e extenso. Ele necessita
interpretar os vestígios materiais que encontrou, contextualizá-los e
cruzar informações com uma grande variedade de áreas, utilizando
uma abordagem interdisciplinar, de modo que encontre respostas
que possa construir conhecimento a respeito das sociedades que
estuda. Sendo que a arqueologia é imprescindível para investigar os
agrupamentos humanos ágrafos (sem escrita), ou qualquer outra
sociedade extinta, sua importância para a antropologia é imensa.
Através do estudo arqueológico, a antropologia conseguiu
informações acerca dessas sociedades, uma vez que a maioria não
pode ser observada e estudada através de técnicas etnográficas
normais, pelo fato dessas sociedades não existirem mais, nem terem
deixado vestígios escritos. Sendo que, mesmo muitos vestígios escritos
de sociedades extintas que temos hoje para estudo foram descobertos
através de escavações arqueológicas, como tábuas de argila com escrita
cuneiforme da Mesopotâmia.1
Então, o que aprendemos através dessa descrição? A arqueologia
1
Da página web http://gpveritas.org/portal/index.php?option=com_
content&view=article&id=59&Itemid=68, 14/08/09
Cronologia
Cena no Obelisco Negro de Salmanasar III (Museu Britãnico), encontrado em Nimrud menciona o nome de Jeú, rei
de Israel: “O tributo de Jeú, filho de Omri: eu recebi dele prata, ouro, uma tigela de ouro, um vaso de ouro com fundo
aguçado, copos de ouro, baldes de ouro, estanho, um bastão de um rei [e] lanças”. - Fonte: Wikimidia Commons
25
26 Introdução ao Antigo Testamento
Observe que em diferentes regiões as épocas com o mesmo
nome começam em um outro tempo. Por que é isso? Vem da
história da arqueologia. Os artefatos que os arqueologistas acharam e
interpretaram foram de épocas diferentes, mas de materiais e formas
iguais. Isso significa que as diferentes culturas se desenvolveram em
velocidades diferentes. Essas épocas veem da observação de artefatos,
isto é, de cerâmicas, muros, objetos cúlticos, objetos artesanais – coisas
que são feitas por homens.
Podemos construir outros esquemas para a divisão de épocas, ou
seja, quando temos vestígios arqueológicos que incluem textos. Com
essas informações podemos reconstruir o mundo político, social,
religioso ou cultural. Podemos observar isso em nossa tabela também:
com os dados mais recentes, quando são incluídos nomes de vários
povos que dominaram essa respectiva região. Nossa compreensão
dessas épocas aumentou bastante nos dois últimos séculos. Você pode
perceber isso no estudo dessa lista cronológica na internet, conforme
já falei acima.
Uma das coisas mais interessantes para nós, como leitores da
Bíblia, referente ao assunto da cronologia, são as sincronias entre os
eventos e os personagens bíblicos e do mundo de outros povos nessa
região. E aqui entramos em um terreno muito perigoso e com muitas
brigas científicas. É bom lembrar que todas essas discussões vêm da
interpretação dos fatos arqueológicos. O fato puro não vale nada.
Apenas um fato interpretado tem valor para nós e pode ajudar na
nossa leitura da Bíblia. Achar um vestígio arqueológico é uma coisa,
mas interpretá-lo é outra coisa – e muito mais difícil.
Geografia
“Se partirmos do Golfo Pérsico e traçarmos uma meia-lua,
passando pelas nascentes dos rios Tigre e Eufrates, colocando a outra
ponta na foz do Nilo, no Egito, teremos uma região bastante fértil, onde
se desenrolaram os acontecimentos narrados na Bíblia. É a chamada
“meia-lua fértil” ou “Crescente Fértil”, dentro do qual está também a
Palestina.
Esta faixa de terra é regada por importantes rios, que
condicionavam a vida do Antigo Oriente. Foram os rios que
determinaram o estabelecimento da agricultura, da sedentarização e
27
das rotas comerciais por onde passavam as caravanas que iam desde a
Mesopotâmia até o Egito ou a Arábia”.4
“Os mesopotâmicos não se caracterizavam pela construção de
uma unidade política. Entre eles, sempre predominaram os pequenos
Estados, que tinham nas cidades seu centro político, formando as
chamadas cidades-Estados. Cada uma delas controlava seu próprio
território rural e pastoril e a própria rede de irrigação”.5
O clima deste crescente dependia muito da chuva regular. No
Egito, o Nilo inundou regularmente a planície do rio. Na Mesopotâmia
os grandes rios carregam a água que foi usada para a irrigação dos
campos para habilitar a agricultura. A falta de chuva ocasionou
consequências sérias para a população. Por isso, cresceu em todas as
partes dessa região uma preocupação com cultos da fertilidade para
assegurar o ciclo dos tempos e a chuva regular. Descobrimos muitos
textos míticos que refletem a situação geográfica e climática. Como
podemos perceber no AT, o povo de Israel sempre teve tendências
para adotar esses cultos pagãos. É sempre mais fácil para o ser humano
“fazer” alguma coisa para assegurar a sua própria vida do que confiar
em um Deus que tem tudo na sua mão.
Outro aspecto muito importante para Israel foi a sua localização.
No nordeste, ficava a Babilônia e Assíria; no sudoeste, o Egito. Esses povos
eram os grandes poderes políticos da época. Como país relativamente
fraco, Israel ficou a mercê dos caprichos dos reis da Babilônia, Assíria
e do Egito. Estes impérios também tiveram um grande interesse na
madeira que crescia na
Palestina dessa época.
Como o AT é uma
coleção profundamente
teológica faz muito
sentido olhar um pouco
o contexto religioso das
várias culturas da época
da sua formação. Assim
faremos na unidade
seguinte.
http://www.airtonjo.com/historia04.htm, 07/08/09.
4
http://pt.wikipedia.org/wiki/Mesopotamia, 07/08/09.
5
Introdução
Objetivos
Plano da unidade
• Religião no Antigo Oriente Próximo – Tendências
gerais
• Um exemplo da interação dos autores do AT com
o seu contexto – Gênesis 1
29
Religião no Antigo Oriente Próximo – Tendências
gerais1
O Antigo Oriente Próximo inclui as seguintes sub-regiões – aqui
juntos com as respectivas religiões (vale a pena descobrir um pouco
sobre cada uma região ou cultura na wikipédia):
• Mesopotâmia (Sumer, Assíria, Akkad): religião assyro-
babilônica, mitologia mesopotâmia;
• Elam;
• Antigo Egito: religião egípcia antiga;
• O Levante (Canaã, Ugarit, Ebla, Mitanni): religião Cananeia;
• Anatólia (o império hitita, Assuwa, Arzawa): mitologia hitita,
mitologia hurrita;
• Do Cáucaso e da Armênia (Urartu);
• Chipre, Creta (civilização minóica): religião minoica.
Nossas primeiras fontes (2000 a.C.) permitem-nos ver a
mitologia mesopotâmia e egípcia. A religião grega antiga foi fortemente
influenciada pela mitologia do Antigo Oriente Próximo. Os cultos de
mistério do helenismo foram novamente influenciados pela mitologia
egípcia.
Existem amplas práticas que essas religiões muitas vezes têm em
comum:
• Rituais de purificação e santificação;
• Sacrifícios (sacrifício animal, libação, raramente – mas em
muito dos textos mitológicos – sacrifício humano);
• Politeísmo;
• Estado (e cidades-estados): religiões patrocinadas (teocracia);
• Adivinhação;
• Magia (invocações, amuletos).
31
Norte) e de todas as culturas antigas. O animismo pode ser definido
como uma “visão geral do mundo” – que existe em muitas variações
e intensidades. Vou listar alguns aspetos gerais do animismo abaixo:
• A atividade está relacionada com o invisível. Animistas
supõem que o mundo visível relaciona-se com o invisível. Uma
interação existe entre o divino e o humano, o sagrado e o profano,
o sagrado e o secular. As influências de Deus, deuses, espíritos e
antepassados afetam a vida. Os seres humanos são pensados para
ser controlados por forças espirituais, sejam eles pais ou fantasmas,
deuses ou espíritos, feitiçaria ou magia, maldições ou o mau-olhado.
Os humanos, por sua vez, pediam para apaziguar os poderes através
de sacrifícios e libações, para alcançar o poder de lidar com o mal
através do ritual e para proteger-se através de encantos e amuletos. Em
contextos animistas nenhuma distinção pode ser feita entre o natural
e o sobrenatural. “Aconteça o que acontecer no mundo físico tem no
seu espiritual as coordenadas... Tudo o que o homem fez, usa e projeta
é interpenetrado com a interação com o mundo espiritual” (Steyne,
Powerful Spirits, 1989, 39).
• A vida é interligada. Animistas acreditam que tudo na vida
está interligado. Os indivíduos estão intimamente ligados às suas
famílias, algumas das quais vivem e alguns que já passaram para o
reino espiritual (i.e. morreram). Eles também estão ligados ao mundo
espiritual: Os anseios ambivalentes de deuses e espíritos impactam
a vida. Animistas sentiam uma conexão com a natureza (as estrelas,
planetas e a lua), cujos elementos afetavam os acontecimentos
terrenos. O reino natural está tão relacionado com o reino humano
que profissionais podem augurar eventos atuais e futuros, usando as
várias técnicas mencionadas acima.
• O poder é procurado para controlar a vida. Animistas
buscam o poder de controlar os assuntos da vida cotidiana. A essência
do animismo é poder – poder do ancestral de controlar os de sua
linhagem, o poder de mau-olhado para matar um recém-nascido ou
arruinar uma safra, a energia de planetas para afetar o destino da terra,
o poder do demônio para possuir um espírito, a força da magia de
controlar os acontecimentos humanos, o poder das forças impessoais
Para pensar...
O animismo, como descrito aqui, é uma forca ou filosofia em
baixo de muitas formas de religiões (incluindo o Cristianismo!).
Observe alguns pensamentos e tradições em sua história como
cristão. Tem alguns pontos de contato com estruturas do
animismo? Eu, por minha parte, posso nomear muitas formas
do cristianismo tradicional e também moderno na Alemanha,
minha cultura maternal.
Coloque as suas ideias no nosso fórum!
De forma muito generalizada, podemos resumir o animista
como uma pessoa que quer influenciar os poderes do mundo inteiro
para aumentar o seu bem em todos os aspectos. Ele tem a convicção
de pode mudar o seu destino, inclusive paga para outras pessoas que
têm um acesso melhor a esses poderes. O animista nunca se torna um
fatalista! Ele sempre busca e acha um jeito.
33
É óbvio que o AT foi escrito em um contexto animista. O animismo
da antiguidade veio em várias formas e expressões. Sua expressão
religiosa são os vários cultos que podemos estudar como as religiões
de Sumer, Babilônia, Assíria, Hitita, Ebla, Ugarit, Fenícia, Canaã, Egito,
etc. Sabendo deste contexto, podemos observar muitos textos bíblicos
que criticam certas formas de espiritualidade e pensamentos religiosos
ligados a uma estrutura mental do animismo que adentraram ao povo
de Israel. Os israelitas ofereceram nas alturas, pagaram adivinhadores,
adoraram deuses canaanitas (e.g. Baal, Astarte), fizeram um boi para
representar Deus, porque o animismo é uma forma de pensamento
sobre o mundo. Obviamente, o animismo está ligado com a nossa
mesma humanidade, ou seja, estes textos ainda são muito atuais hoje.
Só precisamos nos lembrar que não devemos ler o AT com os óculos
do iluminismo. O mundo do AT não conhece uma separação entre
espiritual e material e muitas das outras distinções que fazemos tão
facilmente com nossa mente bem imersa na filosofia do iluminismo.
Foi a minha intenção escrever mais sobre a história e cultura de
vários países – como Assíria, Babilônia ou Egito, mas falta espaço e
talvez paciência de sua parte para ler. Talvez você possa usar a Wikipédia
para descobrir alguns fatos interessantes sobre essas culturas. Também
seria bom você ler alguns textos desses tempos, só para se imergir mais
no contexto do antigo Israel.
35
um navio para a sua família, amigos
e animais para escapar. A inundação
foi realmente catastrófica, acabando
com todas as criaturas e assustando
até os deuses por sua ferocidade. Mas
Atrahasis e sua equipe sobreviveram.
O barco finalmente
desembarcou em uma montanha
e os de dentro desembarcaram.
Piedoso, Atrahasis ofereceu um
sacrifício tão logo que desembarcou.
Imediatamente os deuses
rodearam o sacrifício ansiosos por
experimentarem a oferenda. Eles estavam com muita fome! Destruir a
humanidade em uma enchente significou que os sacrifícios pararam,
logo os deuses também não tinham nada para comer.
Chegando ao sacrifício um pouco tarde, Enlil, o deus mais
poderoso, ficou chocado e com raiva ao encontrar alguns seres humanos.
Ele se acalmou quando os outros deuses explicavam que a culpa foi de
Ea. Enlil concedeu vida eterna a Atrahasis, o único homem a alcançar
este objetivo. No entanto, para impedir que a explosão demográfica
ficasse novamente fora de controle, Enlil e Nintu redesenharam
a humanidade um pouco. A partir de agora, algumas mulheres
sofreriam de infertilidade, os bebês muitas vezes seriam natimortos
ou morreriam muito jovens, e ainda outras mulheres entrariam em
ordens religiosas e nunca mais teriam filhos. Finalmente, parece que a
partir de então, a morte passou a vir a todos em idade avançada: Até
agora as pessoas morriam apenas de doenças ou se fossem mortas por
alguém.
Existe mais um texto do mesmo período da epopeia de Atrahasis,
é a história suméria da inundação. Este texto também relata sobre
a criação do homem e culmina com a história do grande dilúvio.
Infelizmente, muitas partes da história suméria estão perdidas, mas
a versão reconstruída mostra paralelos com Gênesis 1-9 bastantes
surpreendentes.
Paralelos entre a história da inundação suméria e a de Gênesis 1-9:
37
homem – a evolução biológica, a evolução sociológica e econômica.
Estes “textos” falam bastante sobre valores e visões da humanidade em
geral e bem específico quando pensamos sobre assuntos da ética ou da
moralidade.
O Deus da Bíblia quer que alinhemos nossa interpretação da
humanidade ao texto bíblico e vivamos um sonho, que ele tem sobre
nossa comunidade e sociedade. Como Gênesis 1-11 foi um texto
muito contra-cultural em seu contexto, precisamos ter uma visão da
humanidade contrária a que está propagada hoje em nossa cultura
pós-cristã.
Referências
Mitchell, T. C., and British Museum. The Bible in the British Museum.
Paulist Press, 2004.
Wenham, Gordon J. The Pentateuch. Vol. 1. Exploring the Old Testament.
SPCK, 2003.
Introdução
Objetivos
Plano da unidade
• Uma vista geral da Torá
• A Torá como Fundamento da Bíblia
• A Teologia de Gn 1-11 no contexto do Antigo
Oriente Próximo
• Formas literárias na Torá
39
A Torá: formas da literatura e teologia
Observe bem essa tabela1. Os nomes dos cinco livros nas diversas
línguas (hebraico, grego e latim) são programáticos. Qual é a ligação
entre o nome e o conteúdo para cada livro? Você está convidado a
colocar suas ideias no nosso fórum.
Como primeira parte do AT, esses livros (também chamados
de “pentateuco” – que significa “cinco livros”) são fundamentais para
entender o restante do AT e até mesmo a Bíblia inteira. Todos os outros
livros bíblicos têm o Pentateuco como base e desdobram os temas lá
mencionados. Como tal, grande parte da Bíblia pressupõe a Torá e
toma como certo que a conhecemos. Sem saber bem a literatura da
Torá, perdemos muitas das alusões sutis para os seus temas, o que nos
ajudará a entender muitas passagens do AT, bem como do NT.
41
A Torá como Fundamento da Bíblia
Para pensar...
Olhando pra as questões fundamentais da humanidade, como
você reescreveria ou usaria o Gênesis para responder aos
questionamentos de sua própria cultura e comunidade?
Coloque as suas ideias no nosso fórum!
Gordon J. Wenham, The Pentateuch. Vol. 1. Exploring the Old Testament. SPCK, 2003, 197.
3
43
A Teologia de Gn 1-11 no contexto do Antigo
Oriente Próximo
Dando continuidade à última unidade, gostaria de destacar
algumas perspectivas sobre a teologia dos primeiros capítulos da Torá,
a fim de nos deixar entusiasmados sobre esta parte fundamental da
Bíblia. Na unidade 2, conclui com um parágrafo sobre o contexto
literário de Gn 1-11.
A teologia nunca “acontece” no meio do nada. Ela é sempre, e
em qualquer tempo, incorporada a um contexto muito concreto. Toda
a nossa vida influencia a nossa teologia, nossos pensamentos sobre
Deus, sobre a humanidade e sobre o mundo maior. Cultura, tendências
sociais, filosofia, literatura, artes, economia, amigos, natureza, origem
social, educação e qualquer outro aspecto da vida molda a nossa
teologia. Isso significa que nossa teologia é feita em reação ao nosso
contexto.
O que isso tem a ver com a leitura de Gênesis a Deuteronômio?
Bem, esses livros representam a “teologia”, eles falam sobre Deus,
sobre os seres humanos em frente a Deus. Eles tentam moldar a nossa
percepção do mundo, querem que comecemos a ver por um nova
perspectiva a nossa realidade presente.
Ao pegar alguns dos temas mais fundamentais da nossa
humanidade, a Torá aborda questões como a nossa origem, nosso
destino, nossa razão de ser, porque há mal neste mundo, como lidar
com ele, e o que esperamos. Cada cultura fornece respostas para
estas perguntas. Não há surpresas quando o AT quer dar respostas a
esses assuntos. O objetivo é avaliar, remoldar e corrigir as respostas
prevalecentes entre os povos vizinhos de Israel.
Nós não precisamos propor que o autor de Gênesis literalmente
leu ou copiou de textos paralelos do Antigo Oriente Próximo. Essas
histórias circularam no mundo antigo, em diferentes versões, sejam
elas escritas ou orais. A maioria das pessoas, então conhecia a história
do dilúvio, embora não tivessem ouvido ou lido os épicos de Atrahasis
ou de Gilgamesh, assim como hoje as pessoas sabem sobre a evolução
sem ter lido Darwin (veja Gertz, 2009, que propõe uma tradição
“científica” comum a muitos povos do antigo oriente).
45
dos deuses. Em Gênesis existe apenas um Deus, que cria e controla
tudo. Considerando que os deuses da Babilônia não podem controlar a
inundação, o Deus de Gênesis pode – e ele pode muito soberanamente.
Gênesis 1 narra como Deus criou o mundo passo a passo.
Na Mesopotâmia, pensaram que o sol e a lua eram deuses muito
importantes, enquanto em Gênesis eles são meramente criados no
quarto dia – a luz podia existir sem eles.
Outra reinterpretação surpreendente do relato de Gênesis é
sobre a questão da finalidade da criação do homem. No pensamento
mesopotâmico o homem não é mais do que um escravo para fazer o
trabalho para as divindades menores. Em Gn 1-2 tudo é criado com
referência ao bem-estar da humanidade. A humanidade é a clímax, o
ponto de referência de toda a criação. Deus faz tudo para ela, criou-lhe
um ambiente ideal para viver e deu-lhe a tarefa régia de cuidar do resto
da criação. Considerando que os deuses da Babilônia deverão receber
alimentos, o próprio Deus está dando alimentos ao homem. Segundo
a visão do mundo mesopotâmico, um dos grandes problemas com a
humanidade é a fertilidade: a explosão populacional perturbou o sono
dos deuses. Apenas algumas alterações no processo de reprodução
poderiam resolver o problema (algumas mulheres são inférteis e muitos
bebês morrem cedo na vida). Gênesis tem uma perspectiva diferente.
A fertilidade é uma benção divina e Deus encoraja explicitamente a
procriação (“Sede fecundos e multiplicai-vos” Gn 1:28). O mesmo
é verdade, depois do dilúvio (lemos três vezes: “Sede fecundos e
multiplicai-vos” – 8:17; 9:1; 9:7)!
Para pensar...
Pense sobre as qualidades éticas dos deuses da Babilônia e
compare-as com a atitude de Deus, vista em suas reações sobre
o pecado humano (Gn 3 e 6-9). O que você conclui? Tente
pensar sobre as grandes histórias, líderes e ídolos da sua própria
cultura – o que os brasileiros aprendem com eles hoje? Que
histórias, como cristãos, devemos contar?
Coloque as suas ideias no nosso fórum!
47
Muitos especialistas estão tentando isto e, nos últimos 30 anos, estamos
muito mais perto de fazer justiça à Bíblia como literatura antiga. É a
palavra de Deus, e só por isso vale a pena todo esse esforço!
Aqui, nós não podemos ainda tentar resolver questões desta área
de pesquisa bíblica, mas podemos fazer um começo. O truque é estar
alerta para o gênero de um determinado texto bíblico. Um gênero
é uma forma literária, é a forma exterior para além do conteúdo do
texto. Você vai imediatamente reconhecer a seguinte forma literária:
Não quero fazer comentário sobre o
conteúdo deste “texto”. Isso é para outras
pessoas – sou teólogo, e nada mais.
Obviamente, temos a forma de um
obituário. A cor, o layout, as imagens falam-
nos de imediato. “Sabemos” este texto.
Todos nós procuramos, nos primeiros
segundos de ver isso, o nome do falecido e
talvez alguns detalhes sobre o funeral. Só
no segundo relance, percebemos que este
é um texto irônico. Este é um exemplo
extremo de como o gênero funciona para
um leitor que está habituado a certa convenção literária.
Na Bíblia encontramos o mesmo fenômeno. Como já vimos,
qualquer pessoa crescendo no segundo milênio a.C. e lesse Gn 1-11,
imediatamente compararia esse texto em sua mente com textos
semelhantes sobre a origem do mundo e da criação da humanidade.
Qualquer leitor de Êxodo 20-24 irá instantaneamente reconhecer
a semelhança na forma (e conteúdo) desta passagem com outras
coleções de lei do Antigo Oriente Próximo.
Sabendo disso, precisamos pensar sobre o lugar vivencial do texto
que estamos lendo. Assim como no nosso exemplo do obituário, o uso
“normal” de um gênero literário em que a Bíblia é bastante limitada.
No Antigo Oriente Próximo, histórias sobre a origem do mundo e da
humanidade não foram em nenhuma forma concebidas para serem
lidas como tratados científicos sobre aspectos físicos, geológicos ou
biológicos deste evento. Temos outros tratados como esses escritos
na mesma época – sobre a matemática, a engenharia civil, a magia
49
partes “legalistas” da Torá e a mensagem do evangelho do NT. Isso
representa uma leitura completamente deficiente das coleções de lei na
Torá. Podemos encontrar uma melhor compreensão e interpretação
do direito bíblico quando prestamos atenção aos vários gêneros da
Torá.
Para pensar...
O Novo Testamento afirma a validade permanente dos dez
mandamentos para a igreja primitiva (por exemplo, Mt 19,16-
19; Mc 10,17-20; Rm 13,9-10).
Mas eles são praticáveis hoje no Brasil moderno? Se você
fosse o presidente, quais mandamentos tentaria implantar e
quais deixaria de lado? Liste-os em ordem de importância – a
violação de quais você mais duramente penalizaria? Quais são
as diferenças presentes em sua lista e o que isso fala sobre os
valores da sociedade moderna e os valores bíblicos?
Coloque as suas ideias no nosso fórum!
Referências
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Anotações
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Introdução
53
1. Interpretando textos normativos da Torá
Os antigos judeus chamavam os seus textos normativos de
torá. Esta palavra hebraica significa, em primeiro lugar, instrução,
ensinamento. Quando a torá vem de Deus, ela é um ensinamento
com autoridade, cumpre uma função normativa. Uma norma não é a
mesma coisa que uma lei, embora ambas sejam muito parecidas. Todas
as leis são normas, mas nem todas as normas são leis. Lei é um tipo
de norma que, estabelecida pelo Estado, deve ser obedecida por todos
os cidadãos desse Estado, sob pena de punição. Lei é, em sentido mais
amplo, o conjunto de leis que definem a identidade político-jurídica
de um país, e que encontra na Constituição a sua expressão máxima.
As normas são guias para a conduta e os relacionamentos humanos,
e a maioria delas não está escrita, nem faz parte de um conjunto de
leis de uma nação ou Estado. Normas, nesse sentido mais genérico,
são um componente da cultura de um povo, enquanto leis são um
componente da estrutura política de um país.
A torá (no plural hebraico: torôth) no Pentateuco é da natureza
das normas e não das leis! Ou seja, as toroth que encontramos no
Pentateuco não foram estabelecidas pelo Estado para servir de base
para o julgamento das pessoas e instituições sociais. Quando ocorriam
crimes, por exemplo, não havia um sistema de tribunais, semelhante
ao nosso, nos quais os criminosos eram julgados. Os crimes eram
julgados por “leigos”, por pessoas importantes de uma vila ou cidade,
que se reuniam apenas quando necessário e tomavam suas decisões
com base nos hábitos culturais – ou, nas normas daquela vila ou cidade.
Casos que não conseguiam ser resolvidos no ambiente local eram
enviados para o Templo ou para o Palácio, a fim de que os sacerdotes
ou o rei tomassem a decisão de acordo com a instrução (torá) de Deus.
O relato de I Rs 3:16-28 (quando Salomão ameaça dividir uma criança
ao meio) é um exemplo da sabedoria superior do rei para lidar com
situações difíceis – note que o rei não usa nenhum “código legal” para
basear a sua decisão.
As coleções de normas no Pentateuco, embora muito parecidas
com códigos legais cumpriam, de fato, outras funções:
(a) serviam como coleções de ensinamento para os líderes
55
YHWH nosso Deus, todas as vezes que o invocamos? E qual a grande
nação que tenha estatutos e normas tão justas como toda esta Torá que
eu vos proponho hoje?” (Dt 4:5-8).
Repare no primeiro verbo do texto: ensinei! Os estatutos e normas
da Torá são o ensinamento de Moisés ao povo de Israel. A finalidade
do ensino é que o povo de Deus, após entrar na terra prometida – (a)
mantenha a posse dela, (b) seja reconhecido como um povo sábio e
inteligente, (c) cujo Deus é um Deus próximo, amigo do povo, o Deus
da aliança. Mais uma vez temos a sequência: graça libertadora de Deus
– promessa – ensino – prática do que foi ensinado.
Para resumir e encerrar esta seção: os textos normativos do
Pentateuco devem ser estudados e compreendidos como ensino de
Deus para nós, não podem ser separados de seu contexto narrativo,
não devem ser lidos como Lei em contraste com a Graça. As normas
vétero-testamentárias são normas da graça, são expressão da fidelidade
de Deus em relação ao seu povo e da fidelidade que Deus deseja que
seu povo tenha para com Ele.
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Anotações
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Introdução
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santidade significa a peculiaridade de YHWH – Ele é um deus diferente
de todos os demais deuses – por isso, Israel é convocado a não ter
nenhum outro deus diante de YHWH. Como conseqüência de Sua
peculiaridade, YHWH é um deus exaltado acima dos demais deuses,
Ele está acima de todos os poderes, humanos ou sobre-humanos que
tenham existido ou que possam existir. Em terceiro lugar, por ser santo,
YHWH é um Deus exigente – não aceita ser profanado por nada nem
por ninguém – a sua santidade é inviolável. Em quarto lugar, YHWH,
o santo, santifica o seu povo – oferece a seu povo uma participação
na Sua santidade. Enfim, sendo peculiar e exaltado acima de todos os
poderes, YHWH é um deus transcendente – Ele não sofre as limitações
das coisas criadas -, mas, na Sua transcendência, Ele se aproxima do
Seu povo e vive em seu meio.
O Deus Santo de Israel se aproxima do seu povo mediante o ato
de libertação. Como vimos no texto anterior, na Torá a graça de Deus
é anterior à exigência divina. Note a seqüência do pensamento em
Lv 11:44-45: no verso 44, primeiro vem a afirmação de que YHWH
é o Deus de Israel; a seguir, a afirmação de que Ele santificou Israel e,
enfim, a exigência de que Israel não se torne impuro. A sequência é
repetida no verso 45: YHWH libertou Israel do Egito, por isso, exige
de seu povo que seja santo como Ele mesmo é santo. Mediante a ação
libertadora, YHWH realiza uma aliança com o povo liberto, fazendo-
se Seu Deus e tornando aquele povo o Seu povo. O agir de Deus torna
mais concreta a nossa compreensão da peculiaridade de YHWH: Ele
é diferente de todos os demais deuses, porque somente Ele é um deus
libertador, um deus que socorre o necessitado e oprimido.
Por fim, podemos descrever a exigência de santidade a partir
do caráter e do agir de YHWH. O povo de YHWH deve manifestar,
em sua vida cotidiana, a santidade de Deus. Sendo o Santo um deus
libertador, o seu povo precisa ser um povo que vive em liberdade. Povo
livre é aquele que não se deixa escravizar pelas seduções do egoísmo,
do dinheiro e do poder. Povo livre é povo que pratica a solidariedade,
socorrendo o necessitado e o oprimido. Povo santo e livre é povo
que, recusando-se a ser igual aos demais povos e pessoas, não se
afasta deles, mas se aproxima para oferecer a palavra da santidade
libertadora do seu Deus. Quando o povo de Deus se comporta de
61
da fé judaica: YHWH, nosso Deus, YHWH um. Propositadamente
mantive a forma gramatical do texto hebraico “YHWH um” (sem verbo
entre o sujeito e o predicativo do sujeito), que tem recebido diversas
interpretações e traduções. A afirmação YHWH um destaca diferentes
dimensões da fé deuteronômica: (a) YHWH é o único Deus de Israel,
no sentido da exclusividade, ou seja, independentemente de quantos
deuses tenham existido ou possam existir, para Israel há somente um
Deus – YHWH – somente a Ele Israel adora, somente a Ele Israel é fiel,
somente YHWH é a fonte de vida para Israel; (b) YHWH é um Deus
pluralmente singular, no sentido de que Ele não precisa de outros deuses
para repartir as tarefas (no pensamento vétero-oriental, os deuses
tinham funções especializadas, por isso era necessário crer em vários
deuses que cumpriam essas diferentes tarefas, tais como guerrear, fazer
chover, curar doenças, etc.). Como Deus pluralmente singular, YHWH
é suficiente, Israel não necessita de nenhum outro Deus para atender
as suas necessidades – ou seja, YHWH não é um deus especialista,
parcial; e (c) YHWH é o único Deus não feito por mãos humanas,
os demais deuses são ídolos, fabricação de mãos humanas e não são
capazes de agir. O aniconismo da fé israelita não se restringia apenas
à ausência do uso de imagens da divindade, mas era expressão da sua
crença na exclusividade e singularidade de YHWH. Por outro lado, a
expressão “YHWH nosso Deus” destaca a aliança entre o Senhor e o
povo israelita – aliança de amor, amizade, companheirismo, fidelidade
e soberania de YHWH sobre Israel e a favor de Israel.
Conclusão
63
Anotações
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Introdução
65
Objetivos
Ao final da unidade, o aluno:
1. Refletirá sobre a diferença entre história e
historiografia;
2. Descobrirá os vários níveis de leitura das histórias.
Plano da unidade
• O Gênero das Histórias
• Visão panorâmica das histórias
“Omri foi rei de Judá”, Mesha Stele (ca. 852-841 aC) - Fonte: Wikimidia Commons
67
Visão panorâmica das histórias2
Como estão na Bíblia hoje, as histórias formam a continuação
da narrativa iniciada no Pentateuco. O Pentateuco descreve a criação
do mundo e os primórdios da história humana e, em seguida, em
sua maior parte, enfoca as relações do criador com o povo de Israel.
Deus compromete-se com Israel por aliança e lhes dá um chamado,
de trazer a bênção para as nações do mundo. Deuteronômio, o último
livro do Pentateuco, termina com Israel prestes a entrar em Canaã,
a terra que Deus prometeu dar-lhes como território nacional. Neste
ponto, as histórias começam.
Josué descreve a conquista de Israel sobre Canaã sob a liderança
de Josué, e a divisão de Canaã e partes da Cisjordânia (a terra ao leste
do rio Jordão) entre as 12 tribos de Israel. Os próximos capítulos de
Josué demonstram que até o final da vida de Josué os israelitas ainda
não tomaram posse completa de Canaã.
Em Juízes, a geração posterior a de Josué não completou a
conquista de Canaã. Segue-se um longo período de infidelidade
religiosa e de instabilidade política. Líderes (juízes) surgem, mas
apenas trazem alívio temporário. O livro termina com Israel ainda
sem a plena posse das terras.
Rute é situada no período dos juízes. Rute, uma mulher moabita,
adentrou a uma família israelita, trazendo bênção para si mesma e aos
outros. Ela é uma ancestral de Davi, futuro rei de Israel.
Samuel é o último dos juízes de Israel, mas os livros de Samuel, em
homenagem a ele, descrevem os primórdios da monarquia em Israel.
O reinado de Saul, primeiro rei de Israel, termina em desastre. Mas
Davi emerge como o sucessor de Saul e conclui a conquista de Canaã
ao tomar Jerusalém. Ele derrota ou faz alianças com nações vizinhas,
trazendo estabilidade. Durante os últimos anos do seu reinado, ele
tem de superar uma rebelião liderada por seu filho Absalão.
Os livros dos Reis descrevem o reinado de Salomão, filho de Davi,
que constrói um templo para YHWH, em Jerusalém. Após sua morte,
seu único reino se divide nos reinos do norte, Israel e o do sul, Judá. O
2
Este sumário foi traduzido de Philip E. Satterthwaite and J. Gordon McConville, A Guide to the
Historical Books, vol. 2, Exploring the Old Testament (InterVarsity Press, 2007), 1-3.
69
Referências
Introdução
Para pensar...
O que significa o termo “sabedoria” hoje? Como é que o
relacionamos a conhecimento, compreensão, inteligência,
experiência?
1
Anthony R. Ceresko, A Sabedoria no Antigo Testamento. Espiritualidade Libertadora (São Paulo:
Paulus, 2004), 11-12.
71
Dentro da Bíblia hebraica há três livros (Jó, Provérbios
e Eclesiastes) que, apesar das suas diferenças, têm muito em
comum. Portanto, os acadêmicos passaram a considerá-los
como representantes de um tipo distinto de literatura. O que
estes três livros têm em comum é que eles estão preocupados
com a sabedoria. Se você usar uma concordância e pesquisar
a palavra, você encontrará que a “sabedoria” (ou os seus
cognatos) aparecem com relativa frequência. Abaixo quero
escrever um pouco sobre o fenômeno “sabedoria” e depois
vou introduzir o livro de Provérbios. Os outros dois livros
sapienciais têm uma perspectiva diferente e muito mais
pessimista. Vou comparar essas duas perspectivas no final
dessa unidade.2
Objetivos
Plano da unidade
• Sabedoria – a experiência humana
• Provérbios – “O mundo funciona assim...”
2
Talvez você esteja à espera de algumas anotações sobre Cantares. Este livro é ainda mais ligado com
poesia – então vou tratá-lo na unidade sobre Salmos.
Sidelight..
Em outras partes do Antigo Testamento, a palavra hebraica
para sabedoria “hokmah” significa algo como “habilidade”: o
conhecimento prático em qualquer esfera, desde o artesão até
o político. Mas em P hokmah é sempre habilidade de viver: a
capacidade do indivíduo conduzir sua vida da melhor forma
possível (Cf. Whybray, Proverbs, NCB, London: 1994, 4).
3
Usei muito o livro de Ernest C. Lucas, A Guide to the Psalms & Wisdom Literature, Exploring the
Old Testament, Volume 3 (InterVarsity Press, 2003), 79-115.
73
Sugestão...
Use uma concordância para estudar os temas abaixo no livro de
Provérbios. “Desenhe” um retrato dessas diferenças de caráter:
1. o mentiroso
2. o homem perverso
3. o mexeriqueiro
4. o bajulador
5. o escarnecedor
6. o justo e o mal
7. o sábio e o tolo
8. o uso sábio das palavras
Por que não preparar um estudo bíblico sobre estes temas para
sua comunidade?
Para pensar...
Leia o “prólogo” do livro de Provérbios (Pv 1:2-6) com a
declaração sobre a finalidade do livro. Você pode pensar em
qualquer forma moderna comparável a essa “literatura de
sabedoria”?
75
Nos livros sapienciais da Bíblia, o conceito “sabedoria” não
significa inteligência ou sabedoria intelectual, mas a capacidade de
gerenciar a vida cotidiana. Essa habilidade é baseada na observação
dos processos sempre repetidos da vida e das relações de reflexão e
transferência dessas experiências.
77
Muitos provérbios bíblicos são simplesmente observações “do
jeito que está” e não contém qualquer avaliação explícita. Não devemos
simplesmente assumir que a declaração de uma realidade significa a
sua aprovação. Compare o seguinte:
“O presente é, aos olhos dos que o recebem, como pedra preciosa;
para onde quer que se volte servirá de proveito” (17:8).
“O ímpio toma presentes em secreto para perverter as veredas da
justiça” (17:23).
Lendo estes dois provérbios juntos, podemos concluir que o
suborno frequentemente funciona, mas que é errado utilizá-lo. Isso
se equilibra ainda mais: “O que age com avareza perturba a sua casa,
mas o que odeia presentes viverá” (15:27). Nem todos os provérbios
oferecem conselhos bons – eles podem ser apenas uma observação da
nossa realidade.
Finalmente, os provérbios não são leis. Eles são observações
permanentes, que descrevem a norma e não expressam o inevitável.
Isso nós já observamos a partir da perspectiva diferente no parágrafo
anterior. A vida e os seres humanos são complexos demais para serem
resumidos em uma breve frase ou para detalhar a verdade sobre uma
determinada situação. Aqueles que são sábios estão cientes de usar os
provérbios com a devida discrição.
Referências Bibliográficas
Introdução
Objetivos
Plano da unidade
• Jó e quando Deus faz o que Ele quer
• Eclesiastes – estabelece-se no insondável da vida
1
Talvez você esteja à espera de algumas anotações sobre Cantares. Este livro é ainda mais ligado com
a poesia – então vou tratá-lo na unidade sobre Salmos.
79
Jó e quando Deus faz o que Ele quer
Se a conexão entre ato e consequência é quebrada pelo pecado e
pela injustiça, o que a sabedoria pode oferecer em uma crise? Por que
o insucesso? Por que é que os opressores são ricos e gordos? Por que
é que alguns sofrem de uma doença ou da pobreza mesmo não tendo
feito nada de errado e sendo tementes a Deus? Muitas vezes, o mundo
parece estar fora de ordem. Parece que Deus não está fazendo o seu
trabalho para manter o sistema. As respostas do padrão tradicional
são bastante insatisfatórias para explicar a causa do sofrimento. Isso
pode ser visto no livro de Jó (e mesmo em nossa própria realidade).
Considerando que você já leu o resumo de Hans Walter Wolff
do livro de Jó, vou tocar em alguns outros pontos interessantes, que
podem nos ensinar algo sobre como lidar com algumas dificuldades
na Bíblia Hebraica. A primeira coisa seria como lidar com as tensões
evidentes no estilo de um determinado livro. Em Jó, o cenário narrativo
que constrói quase uma moldura ao redor do diálogo (Jó 1-2; 42:7-
17) é esteticamente bem diferente dessa parte principal do livro,
que é um diálogo de estilo alto-poético, artisticamente tecido. Além
disso, o cenário narrativo demonstra a localização de Jó e seus amigos
em Edom, sendo então, um contemporâneo de Abraão. As outras
características do livro, no entanto, sugerem fortemente os séculos
IV ou III para a sua forma final. Para complicar ainda mais, muitos
estudiosos sugerem que o capítulo 28, o poema sobre a sabedoria, não
pode fazer parte da primeira composição, por ser tão calmo e tranquilo
em sua entonação. O que podemos dizer sobre estas coisas?
Durante as últimas décadas, várias coisas mudaram
consideravelmente na área de estudos bíblicos e cada vez mais os
teólogos estão preparados para tentar ver os textos bíblicos com
olhos literários. Isso significa que eles tentam entender a Bíblia como
literatura e não como documentos arbitrários que testemunham sobre
Sidelight...
Em hebraico, há uma distinção forte entre o artigo determinado
e o indeterminado. Em Jó encontramos sempre “Satanás” com
artigo determinado (“o Satanás”). Podemos assim supor que
aqui “Satanás” é um título (o acusador / adversário), não um
nome. Só muito mais tarde na literatura judaica - e, claro, nos
escritos cristãos - encontramos a ideia de que “Satanás” denota
um ser especificamente demoníaco.
Lembre-se: este tipo de desenvolvimento do sentido de
vocabulário ocorre muitas vezes na Bíblia. Sabendo disso
podemos evitar uma interpretação ao pé da letra.
O capítulo 28, com seu tom calmo, não combina com a
argumentação calorosa de Jó. O que é falado por Jó parece ser sugerido
pela titulação 27:1. No entanto, há uma nova posição no 29:1, que
introduz um novo argumento. Assim, podemos supor que o cap. 28
nunca foi destinado a ser lido como a fala de Jó, mas sim como um
comentário do autor. Na verdade, Jó 28 vem em um momento muito
apropriado do diálogo. É uma expressão do ponto de vista de que os
humanos têm a capacidade de compreender a sabedoria divina e que a
resposta adequada a esta questão é ter reverência a Deus e evitar o mal.
Isto prepara o caminho para os discursos divinos – e ajuda o leitor a
separar mentalmente o último discurso de Jó do diálogo anterior.
Uma nota breve sobre a questão teológica deve terminar nossa
reflexão sobre Jó. Como já observado, muitos estudiosos veem uma
aparente tensão teológica entre o epílogo e o resto do livro. Os versos
de abertura do prólogo parecem indicar a doutrina convencional de
recompensa e punição. Jó é apresentado tanto como “íntegro e reto,
81
temente a Deus e afastando-se do mal” e como “o maior de todos os
povos do oriente”, o leitor pode supor que existe uma ligação direta
entre a sua grande piedade e sua grande riqueza e posição social.
No entanto, o pressuposto de que sempre deveria haver tal ligação é
quebrado quando Deus aceita o desafio do satanás, para experimentar
Jó. O diálogo, em seguida, explora as implicações do rompimento desse
vínculo. Em Jó 42:7-9, Deus condena os amigos de Jó por defenderem
a posição de que deve haver uma ligação entre a religiosidade e a
prosperidade. No entanto, a restauração de Jó parece restabelecer
essa ligação, contradizendo a essência da mensagem do livro. Houve
numerosas tentativas para resolver essa aparente tensão. Reitero
apenas algumas das mais prováveis.
Em função da quebra da ligação entre a justiça e a prosperidade,
a restauração de Jó não deve ser entendida como justiça, mas como o
fato de que o teste está terminado. Foi argumentado que a arte do livro
exigia isso. É preciso que haja uma conclusão adequada para o teste, e
qualquer coisa além da restauração de Jó seria intolerável para o leitor.
Outros veem no epílogo, não tanto a restauração de Jô, mas
a restauração da reputação de Deus. A aceitação de Deus ao teste
de Satanás e a aflição de Jó, no mínimo, levanta questões sobre a
preocupação de Deus com Jó. Isto precisa ser direcionado. Uma
resposta é dada, pelo menos em certa medida no epílogo, ao tratamento
de Deus para com Jó.
Em ambas as interpretações do epílogo os estudiosos salientam
que Deus age livremente, não sob a restrição de qualquer vinculação
inevitável de piedade e de prosperidade, como fora afirmado pelos
amigos de Jó. As ações de Deus no epílogo devem ser vistas como
decorrentes da liberdade de Deus. Esta liberdade é a lição a ser
aprendida com os diálogos e seu clímax nas intervenções divinas. Deus
não é obrigado a agir de acordo com uma lei rigorosa de recompensa
e punição. Ele pode agir gratuitamente para com os seus servos – e Ele
age!
Para pensar...
A ideia de uma ligação direta entre a piedade e a prosperidade é
bastante comum no Brasil moderno – no pensamento popular,
bem como na religião. Como este fato faz o livro de Jó ser
relevante nos dias de hoje? Coloque no fórum as suas ideias!
Sidelight...
83
É impressionante como as interpretações destes versículos podem
ser variadas. Crenshaw1 compreende esses versículos como expressão
de uma visão profundamente pessimista sobre a vida. Ele traduz hevel
como “absurdo” ou “fútil” e, portanto, 1:2 representa uma avaliação
muito negativa da vida. A palavra jitron ele traduz como vantagem
e, portanto, 1:3 expressa que
os seres humanos podem não
ganhar nada, independente de
todos os seus esforços. Perdue2,
por outro lado, interpreta
Qohelet como tendo uma visão
menos pessimista. Ele vê na
raiz hebraica de hevel o sentido
da respiração e aponta para
A grandeza da palavra refere-se ao número de vezes que essa a sua qualidade metafórica
palavra aparece no livro Eclesiastes.
“efemeridade”. A vida é como
um vento, uma sombra, muito instável e breve. Para Perdue, Qohelet
lamenta a brevidade da vida e não a sua insignificância.
Estas duas concepções diferentes de 1:2-3 levam-nos a diferentes
compreensões das várias passagens em Eclesiastes, que defendem o
gozo da vida (por exemplo, 3:12 e 22; 5:18; 11:8-9). Crenshaw vê isso
como algo que incentiva os prazeres em uma tentativa sem fundamento
para salvar alguma coisa além da insignificância da vida. Com base no
entendimento de Perdue, essas passagens podem ser vistas sob uma
luz mais positiva. Whybray3 assinala que essas passagens formam
uma série onde há um aumento constante de ênfase, e que o último
nessa série (11:9-12,7) tem uma posição chave no final do livro. Uma
característica comum dessas passagens é a afirmação de que todo
prazer vem como um dom de Deus. As exortações a aceitar o gozo da
vida como um dom de Deus podem ser vistas como, implicitamente,
afirmações de que, apesar de sua brevidade, a vida tem algumas
qualidades positivas, porque Deus não abandonou suas criaturas a
uma vida de desespero completo.
1
James L. Crenshaw, Ecclesiastes: a Commentary, OTL (Philadelphia: Westminster Press, 1987).
2
Leo G. Perdue, Wisdom & Creation: The Theology of Wisdom Literature (Nashville: Abingdon,
1994).
3
Norman Whybray, “Qoheleth, Preacher of Joy,” JSOT, no. 23 (1982): 87-98.
Referências
85
Anotações
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Introdução
87
Objetivos
Plano da unidade
• Poesia hebraica
• O Saltério – um livro!
• Os gêneros dos Salmos
Poesia Hebraica
Textos poéticos do antigo Israel não têm a aparência que
normalmente esperamos de poemas. Eles não rimam. Mesmo quando
você lê-los em hebraico, não rimam. Você pode já ter observado isto,
lendo poesia moderna. Alguns poetas modernos escrevem sem rima.
Geralmente, na poética a linguagem é utilizada com fins estéticos. Isso
significa que o poeta normalmente toma grande atenção com a forma
do texto e com a escolha das palavras. Um poeta bom pode comunicar
emoções e sutilezas que um texto de prosa não pode transmitir. “A
poesia é a mínima distância entre o sentimento e o papel” (Levi
Trevisan). Então, quando lemos poesia devemos interrogar menos
“Que é isto?” e mais “Que significa isto?” Poemas querem abrir – ou
até construir – um mundo de significado. Normalmente, neste mundo,
encontramos bastante metáforas, linguagem indireta, repetições e
exageros.
Tudo isso não é diferente com a poesia hebraica. A forma literária
mais utilizada neste grupo de textos é o parallelismus membrorum
(paralelismo das partes). Os poetas do Antigo Israel criaram textos
que vivem de diferencas sutis no significado de palavras ou de
expressões. É um processo semântico onde uma linha expressa uma
89
• Utilização de pares de palavras: homem/mulher, céu/terra,
fidelidade/verdade, acordar/dormir... (Sl 115,16: Os céus são os céus do
SENHOR; mas a terra a deu aos filhos dos homens.);
• Ritmo, mas esta é uma característica bastante difícil e muito
variável (algo somente visto no original hebraico);
• Linguagem figurada: já temos observado isso quando refletindo
sobre poesia em geral. Frequentemente não podemos entender
literalmente (Is 55,12: Os montes e os outeiros romperão em cântico
diante de vós, e todas as árvores do campo baterão palmas.).
Por que isso é importante para nós? Bem, basicamente você
não pode ler a poesia como outros textos não-poéticos. Muitas vezes,
uma leitura literalmente não faz sentido – e não deve nos assustar.
Como sempre: não é tão importante interpretar a Bíblia literalmente,
mas interpretá-la corretamente! A consciência de suas características
literárias ajuda muito a evitar muitas armadilhas exegéticas.
Saltério – um livro!
Dentro do cânon, os Salmos ocupa uma posição especial. Neste
livro, diferentes linhas do Antigo Testamento são juntadas. Aqui, há
retrospecção da história de Israel (Sl 78, 106 e outras), há elementos
proféticos (Sl 50 e em outros lugares), e textos de sabedoria (Sl 1, 49 e
outras). O saltério combina o que em outras partes do cânon fica para
si.
O saltério guia o leitor na oração, um caminho de lamento a
louvor. No início do livro superam os salmos de lamento, mas no final
todo mundo se junta no louvor a Deus. Este é o caminho por onde cada
salmo de lamento quer levar o orador. Também é a linha principal que
atravessa todo o livro.
Como um “livro de orações da Bíblia”, o saltério é indispensável
para a igreja do Novo Testamento. Ele nos ensina como podemos falar
com Deus e nos mostra Deus como o todo-poderoso é misericordioso,
um Deus que se volta a nós em cada necessidade. Só ele merece toda
honra.
91
150 Salmos em cinco livros. No final de cada livro tem uma doxologia
breve.1
Através destas cinco partes do Saltério é formalmente criada
em paralelo o Pentateuco. No entanto, não podemos determinar uma
correlação mais extensa ou profunda. Para concluir, quero enfatizar
que o saltério é realmente um livro. Podemos descobrir muitos grupos
de Salmos que são compostos deliberadamente juntos. Um exemplo:
Sl 26-32 começa com três salmos de pedido (26-28) que correspondem
aos três salmos de agradecimento (30-32). No centro Sl 29 celebra
Deus como um rei que salva o seu povo.
93
do antigo Israel, bem como fornecer-nos com algumas ferramentas
para compreender melhor a importância teológica dessas orações.3
A maioria dos estudiosos da Bíblia concordam no seguinte
sistema de classificação dos salmos:
• Hinos
• Louvor geral de Deus
• Salmos celebrando Deus como Rei
• Salmos de Sião (46, 48, 76, 84,87, 122)
• Salmos de Lamentação
• Individuais
• Coletivos
• Salmos de Ações de Graça (Todah)
• Individuais
• Coletivas
• Salmos reais
• Tipos menores: Salmos da Confiança, Salmos Sapienciais...
Louvai ao SENHOR.
3
Usei muito de Ernest C. Lucas, A Guide to the Psalms & Wisdom Literature, Exploring the Old
Testament, Volume 3 (InterVarsity Press, 2003), 1-28.
Salmos de Lamentação
Consistem no maior grupo no saltério. Mais ou menos uma
terceira parte dos salmos pertence a este tipo. Eles expressam a reação
do autor a Deus quando enfrenta uma situação de necessidade ou
aflição. Sua estrutura é relativamente flexível: nem todos os elementos
aparecem em todos os salmos e nem sempre na mesma sequência.
95
Tipo: Salmo de Lamentação
• Endereço a Deus, Invocação;
• Reclamação a Deus (descrição do problema: uma crise de
qualquer tipo; em salmos penitenciais é o pecado; uma reivindicação
de inocência; uma condenação do “mau” ou do “inimigo”;
• Afirmação de Confiança (“Mas, quanto a mim” ou “Não
obstante”; isto, às vezes, é o ponto de viragem do salmo);
• Petição (para a intervenção de Deus; muitas vezes usa-se a
expressão “salvar” ou “entregar”);
• Aviso de Resposta (voto de louvor, de adoração);
• Exclamação de louvor.
97
Tipo: ação de graça
• Introdução que envolve o nome de Deus (Javé). Pode
incluir uma declaração da intenção de agradecer Deus e pode ser
expandido por várias adições hínicas;
• A seção principal é basicamente um relato da experiência do
salmista (isto pode incluir uma descrição de seu estado anterior de
angústia; uma oração de libertação, que foi proferida neste estado;
uma conta do ato de Deus da libertação; uma referência para o
cumprimento do seu voto);
• Conclusão, incluindo muitas vezes uma exortação ao louvor
a Deus.
Referências
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Anotações
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Para pensar...
O que você acha da “defesa” de Zenger do uso dos salmos
de vingança no culto público hoje? Você tem algumas
ideais práticas de como recuperar estes salmos em nossas
comunidades?
Introdução
Objetivos
Plano da unidade
• Aspectos Teológicos dos Salmos
101
Para pensar...
Salmos 15-24 podem ter um único tema teológico. No
início e no final, há referências a “a porta”. 15,1 e 24,3
levantam a questão de quem merece estar no monte do
Senhor. O tema aqui poderia ser o de “pertencer” ou
“estar em casa”, na presença de Deus. O movimento de
desejo a repouso - você pode rastrear essa progressão
através desses salmos?
Coloque as suas ideias no nosso fórum!
Prepare um estudo bíblico para a sua igreja!
103
Cântico dos Cânticos
Cântico dos Cânticos foi “o livro mais frequentemente interpretado
da cristandade medieval” (Ann Matter) e também inspirou um grande
número de comentários judaicos medievais. O Cântico dos Cânticos
tem desempenhado um papel fascinante na cultura ocidental. Foi um
caso de teste e uma oficina para o método alegórico e ainda um esteio
de ascetismo e um ímpeto para o misticismo.
É muito mais difícil estabelecer uma mensagem teológica do livro
comparado com qualquer livro profético, por exemplo – Ct nem sequer
menciona Deus – e ainda lê-lo refresca o coração e a incentiva para
apreciar e para afirmar a vida, especialmente na área de sexualidade.
Formalmente, o livro é poético em alto estilo. Muitas palavras são
difíceis de traduzir, pois só aparecem aqui na Bíblia hebraica. Cântico
dos Cânticos representa um conjunto disperso de 30 canções de amor:
“Discursos” da mulher alternam com respostas por parte do homem.
Não há desenvolvimento evidente da trama. Apesar disso, estruturas
foram encontradas (isso faz parte de ser teólogo, eles sempre podem
descobrir estruturas em qualquer texto). Um dos mais prováveis é
descrito na tabela a seguir:2
105
sociedade, é cantado como um poder que obedece as suas próprias leis.
A consideração de Ct na Sagrada Escritura poderá, assim, preservar,
biblicamente orientadas, uma antropologia e doutrina da sexualidade
humana diante de uma fixação patriarcal, de um direcionamento
unilateral para gerar descendência, e da observância exagerada de
aspectos jurídicos.
Com a valorização e admiração do corpo do homem e da mulher,
Ct se posiciona diametralmente contra toda cultura que hostiliza o
corpo e o amor. Voltando a refletir sobre o significado original de Ct, a
Igreja poderá ser vitoriosa em superar tendências hostis ao corpo e ao
amor de sua própria história.
Contudo, também por respeito à história da interpretação
judaica e cristã, não se deve deixar totalmente de lado a explicação
alegórico-tipológica. Ela percebeu corretamente que no “amor físico”,
como é enaltecido em Ct, reside uma força que transcende a dimensão
meramente corporal humana.3
Para pensar...
O que você acha sobre essa interpretação teológica do Cântico
dos Cânticos? Se não podemos usar cada versículo para basear
um sermão – podemos usar o texto em geral. Essa seria uma
mensagem para sua comunidade? Talvez seja texto para ler só
com os homens ou só com as mulheres.
Coloque as suas ideias no nosso fórum!
Referências
Ibid., 348.
3
Introdução
107
Para pensar...
Na sua igreja tem alguém com o dom de profecia? Qual
é o papel que ele/ela desempenha na sua comunidade?
Quais são os tipos das mensagens transmitidas? Qual é a
relação entre essas mensagens e as mensagens proféticas
do AT?
Coloque as suas ideias no nosso fórum!
Objetivos
Plano da unidade
• O profeta e o seu livro
• O profeta – uma pessoa estranha
• O livro
• A arte dos profetas
1
Para esta seção aprendi bastante, e usei bastante, um texto não publicado do meu amigo Prof. Dr. C.
Rösel, Marburg.
109
O Profeta – Uma Pessoa Estranha
Podemos ver os profetas por várias perspectivas. De um ponto de
vista sociológico, podemos distinguir 4 tipos de profetas, dependendo
de sua filiação a um grupo e/ou alguma instituição:
• Irmandades proféticas: Estudantes de escolas proféticas,
“cooperativas proféticas”;
• Profetas do templo (ligados a uma instituição);
• Profetas da corte (ligados a uma instituição);
• Profetas individuais (que são os profetas literários como Isaías
ou Jeremias, mas também Elias, Eliseu, dentre outros).
• Uma outra perspectiva óbvia é a cronologia:
111
O livro
Palavras proféticas orais foram bastante comuns no antigo
Oriente Próximo. Mas os livros proféticos são uma característica
singular de Israel e Judá.
A escrita das palavras começou no momento em que a mensagem
dada por via oral foi recusada (cf. Jr 36). Jörg Jeremias escreveu:
“Paradoxalmente, foi a desobediência e a falta de vontade de ouvir dos
ouvintes em primeiro lugar, que levam as primeiras palavras escritas
dos profetas. O imediatismo das palavras orais ganha, por ser escrito,
uma qualidade paradigmática e comunica aspectos gerais sobre o
relacionamento de Deus com Israel, que seriam transferidas para
novas situações históricas” (J. Jeremias, Hosea und Amos, FAT 13,
Tübingen 1996, 29+31).
113
a Palavra de Deus e eles fazem isso de inúmeras formas para que sejam
adequadas ao seu objeto (Deus e o reino celestial) e a sua intenção (para
chamar as pessoas de volta a Deus). O discurso profético é basicamente
uma fala de um mensageiro. Mas como é que este discurso pode ser
eficaz? A pronúncia de uma sentença pode ter o efeito de transformar
as pessoas de seus pecados, e assim evitar o julgamento que lhe foi
pronunciado. O melhor (talvez o único) exemplo disto no corpus
profético é o livro de Jonas, no qual o povo de Nínive se arrepende.
A intenção retórica de Deus foi presumivelmente cumprida no seu
arrependimento, mesmo que Jonas tenha sido oposto a isso!
Referências
Introdução
Objetivos
Plano da unidade
• Temas teológicos
• Isaías
• Jeremias – Ezequiel – Daniel
• Os profetas menores – o Livro dos Doze
115
Temas teológicos
Com a pregação dos profetas, no tempo de crise política (após
760), podemos observar o início de um novo modo de falar e agir de
Deus com seu povo.
Os escritos proféticos são mais conhecidos por sua crítica às
instituições que, inicialmente, foram dadas pelo próprio Deus, mas
que se desenvolveram longe Dele. Assim, eles formam um corretivo
necessário contra o estabelecimento de sacerdotes e reis. O importante
para eles é a crítica a um sentido errado da eleição e da autoafirmação
que acaba por conduzir a um abandono das palavras de Deus. Faz parte
desta mensagem um futuro glorioso para Israel (e do mundo inteiro),
apesar de todos os atos de autoengrandecimento. Os profetas têm uma
mensagem corretiva que acaba abrindo um caminho para mudar e,
finalmente, para evitar a condenação. Mas há também a noção de
julgamento inevitável (esp. Amós, que só fala, muito timidamente,
de uma salvação futura). Esta mensagem mostra como o amor divino
pode ser profundamente violado.
Mesmo como comunidade do Novo Testamento, precisamos
estar atentos a essa forte mensagem (simplesmente não podemos
prever, quando Deus irá “permitir-nos” colher dos frutos do nosso
pecado, ou quando ele vai agir no perdão misericordioso mesmo tendo
as consequências naturais da nossa natureza). Claro que isso precisa
ser equilibrado pela vitória final da sua misericórdia – o julgamento já
foi tomado por Jesus.
Um aspecto importante que merece destaque é o da necessidade
de restabelecer em nossas igrejas: o cultivo da correção crítica das
pessoas da liderança – seja da sociedade (política), da economia ou
da própria igreja. Pentecostes foi o dia em que a visão da profecia
universal de Joel tornou-se realidade. O Espírito de Deus foi derramado
sobre todos os crentes para que eles pudessem conhecer a mensagem
divina com a cruz e a ressurreição de Jesus em seu coração. Portanto,
o trabalho de todos consiste em testemunhar esta mensagem para o
mundo, tal como os profetas fizeram por Israel.
A dupla mensagem dos profetas – a oposição ao culto de outros
deuses do que Javé e a procura de justiça social na comunidade,
Para pensar...
117
Isaías
Ler Isaías é sempre muito edificante – aqui encontramos alguns
dos textos mais amados do Antigo Testamento. É realmente muito
difícil limitar-se ao introduzir este livro – mas é necessário.
Uma coisa que eu deveria mencionar é a divisão de Isaías 1-66
em três “profetas”: Isaías (1-39), Deutero-Isaías (40-55) e Trito-Isaías
(56-66). Cada uma destas partes pertence a uma época muito diferente
de Israel e apenas 1-39 têm qualquer ligação real com o homem Isaías,
filho de Amós, a partir do final do século VIII. Os outros são do
exílio ou pós-exílio. Essa divisão foi consenso
acadêmico por muito tempo, mas está se
dissolvendo cada vez mais, pois a maioria dos
estudiosos hoje está convencida de que não faz
sentido ler um destes três separados dos outros
dois. Os temas e palavras-chaves funcionam
durante o livro inteiro. Apesar de algumas
discussões consideráveis sobre a data do livro
de Isaías, você pode ficar tranquilo que você
está perfeitamente certo de lê-lo como uma
unidade. Como se você não tivesse feito isso
Visão de Isaías - (Sieger Köder)
de qualquer maneira.
Então aqui vem uma proposta de uma estrutura geral (também
vou destacar algumas passagens importantes):1
119
estabelecimento da justiça ao seu povo. Este pensamento é, então,
desenvolvido no que chamamos de promessas messiânicas, de um rei
que realmente cumpre plenamente o que Deus exige dele (Is 9-11).
Esta figura messiânica domina a primeira parte de Isaías, enquanto no
segundo momento, a metáfora se volta para o servo. Essa transição não
é muito dura, como “servo” era uma designação comum para o rei do
Antigo Oriente Próximo – o rei é o servo de Deus que deve estabelecer
a justiça e a paz ao seu povo. A identidade deste “servo” em Isaías é
difícil de definir. Podendo ser um indivíduo ou um grupo (Israel), ele
tem características divinas e, por outro lado completamente humanas,
parece, às vezes, uma figura real, por vezes, um profeta. O tema de
servo anda de mãos dadas com a mensagem da salvação das nações
(Is 49:6). O retorno do exílio da Babilônia não é um simples retorno à
forma como as coisas eram antes. Deus quer um povo verdadeiramente
justo para habitar sua “cidade” – e este povo será composto de pessoas
de muitas nações.
A data do livro é outro grande problema. Mas lembre-se da nossa
discussão acima sobre a relação do profeta com o seu livro: podemos
ser bastante relaxados sobre isso. O próprio profeta em primeiro lugar,
falou ao seu povo por via oral. Só em uma fase posterior o livro foi
escrito e certamente com a intenção de preservar a mensagem do
profeta para as gerações futuras. De fato, ao tentar ler a mensagem de
Isaías em diversos cenários históricos, a retórica faz sentido em todos
eles – e ainda, o livro continua a falar para nós. Isso aponta para a
qualidade literária dos textos deste livro.
Para pensar...
Pensando no “servo”... se a identidade dessa pessoa continua a
ser tão vaga em Isaías, o que isso lhe diz sobre seu próprio papel
como um “servo”? (É claro que Jesus tem que ser interpretado
como o servo final, mas isto não exclui as outras interpretações!)
O que isso quer dizer sobre ser parte de um novo Israel? Que
tipo de motivação missionária viria com isso?
121
Os profetas menores – o Livro dos Doze
Os doze profetas menores formam um livro. Essa coleção, logo
no início, acabou sendo considerada um livro; como pode ser visto na
tradição massorética: as somas da Masora final se referem a todas as
palavras destes doze livros e afirmam que a palavra “Sião”, em Mi 3:12,
é (matematicamente) a palavra central desta coleção. Nós encontramos
várias referências aos doze (nos rolos de Wadi Murabba’at e Qumran e
em uma referência em Eclesiástico 49:10).2
Essa coleção segue uma sequência cronológica. Primeiramente,
encontramos os profetas que ameaçavam a queda do reino do norte:
Oséias, Amós, Miquéias (1:2-7). Judá era salva deste mesmo destino,
porque eles seguiram o conselho de Joel e pediram a ajuda de Deus,
que por sua vez poupou seu povo (Joel 2:18). Obadias e Jonas
discutem como as nações estão relacionadas com o destino de Israel.
Com Miquéias, Naum, Habacuque e Sofonias, ouvimos os profetas
pregarem o castigo a Judá. Suas advertências passaram despercebidas
e, assim, Judá também desapareceu. Entre Sofonias e Ageu deveríamos
ler sobre o exílio, mas isso não acontece. Ageu, Zacarias e Malaquias,
finalmente, gravam a mensagem que levou à restituição limitada de
Judá, sob o domínio persa. Mas ao mesmo tempo, sublinham a forma
final do desejo de Deus para salvá-los e com eles todo o mundo; ainda
é uma coisa do futuro.
Eu adoraria ir mais fundo na mensagem e nas retóricas de vários
escritos maravilhosos, mas, novamente; não há espaço. No entanto,
comecem a estudar como esses profetas interpretam a realidade atual
na luz do relacionamento especial entre Deus e Israel.
Referências
Introdução
123
prosa (1-4), pequenos oráculos (oráculo = fala, anúncio) em forma
poética, retratam a esperança do profeta (5-11, 12-17 e 18-24). Jr 31:1
é a introdução ao capítulo, que inclui os seguintes oráculos: 2-9.10-
14.15-22.23-25.27-30.31-34.35-37.38-40, que retomam os temas da
restauração de Israel e Judá, da mudança da sorte e linguagem dos
capítulos iniciais do livro de Jeremias. Nosso estudo será restrito ao
capítulo 31, no qual encontramos o tema da Nova Aliança.
Naquele tempo, diz DEUS, serei o Deus de todas as tribos
31,1
125
para a infidelidade, de modo que o juízo não é a negação do amor,
mas a consequência da infidelidade. Quem ama e é traído sabe bem
de que Jeremias está falando. Ressalta, mais uma vez, a referência de
Jeremias ao reino de Israel, a sua capital Samaria (v. 5-6) – palavra
que certamente não cairia bem aos ouvidos dos judaítas exilados ou
remanescentes na terra, ouvintes de Jeremias. Como séculos mais tarde
dirá o Messias em uma de suas parábolas, o filho pródigo é recebido de
volta à casa com alegria, mesmo que o ciúme do bom filho seja incapaz
de entender o significado do verdadeiro amor.
A linguagem da dança, da festa, da alegria continua a ressoar
nas demais perícopes do capítulo 31, até a declaração da nova aliança.
É Israel quem recebe a promessa de retorno e restauração, Judá terá
de aceitar a fidelidade individida de DEUS e encontrar um modo de
restaurar a unidade perdida do povo de Deus – as fronteiras nacionais
para nada contam, o que vale é a eleição divina: um só povo, uma só
terra, um só Deus.
127
Como vimos, o velho mundo tinha suas certezas teológico-
políticas. Eram pelo menos três: (1) DEUS escolheu Davi e sua família
para reinar para sempre em Israel (tudo bem que Israel já deixara de
fazer parte do domínio davidida no século IX a.C. e se tornara província
do Império assírio no séc. VIII. A linhagem davídica reinava apenas em
Judá, mas quem se preocupa com exatidão quando ouve a profecia?); (2)
DEUS era o deus do rei de Judá e, assim, o comandante-em-chefe dos
exércitos terrestres do rei e dos celestes dele mesmo, e olha que DEUS é
retratado como bom de briga nas tradições antigas de Israel e Judá; (3)
DEUS mora no Templo, por isso, Sião será inabalável – montanha da
felicidade, refúgio seguro em tempos de aflição, umbigo do universo.
O novo mundo jeremiânico, porém, nasce rompendo com
essas certezas. Desde o rei Acaz, mais de cem anos antes do tempo de
Jeremias, um descendente de Davi continuava no trono, mas era servo
de outros reis – da Assíria ou do Egito, ou da Babilônia. Nos dias de
Jeremias, porém, não mais havia um davidida no trono. A primeira
certeza desmoronou. DEUS era bom guerreiro mas, aparentemente, os
deuses da Assíria, do Egito e da Babilônia, na ordem cronológica, eram
melhores. O exército de Judá, segunda certeza, foi para o cemitério.
Os muros de Jerusalém, que livraram Ezequias da morte, mas não
do tributo, ainda estavam em pé depois das guerras contra assírios e
egípcios; o Templo mantinha sua imponência. De três certezas, uma
ainda funcionava. Mas nos dias de Jeremias o Templo foi destruído,
os muros de Jerusalém foram demolidos, quase metade da população
morreu. Terceira certeza – literalmente desabou.
A teologia da corte real de Jerusalém e do sacerdócio do Templo
de Jerusalém estava se esvaindo também – mas como a fé não é vista,
o rei e o sacerdócio ainda diziam: DEUS nos livrará! Entretanto, um
sacerdote do interior, também profeta, não teria medo de ficar na
oposição. Outro sacerdote-profeta, Hananias, peitou Jeremias várias
vezes, e a dúvida se estabeleceu: quem era o verdadeiro profeta?
Jeremias ou Hananias? Moral da história: Jeremias entrou para a
Bíblia. Hananias só é lembrado porque Jeremias colocou as discussões
com ele no seu livro.
Para Refletir
129
• Note no texto a inversão da forma de conhecer as coisas: a
nova aliança não será como a antiga, escrita em tábuas de
pedra, mas estará gravada no íntimo e no coração de cada
pessoa. Jeremias está tirando dos sacerdotes o monopólio da
Torá e o democratizando! Modernidade é o nome que se dá ao
tempo em que a autoridade exterior do dogma é substituída pela
certeza interior da razão pesquisadora do sujeito autônomo.
Por que não reconhecer a Modernidade judaíta?
• Note no texto a universalização individual da moralidade:
“Cada pessoa me conhecerá, da mais insignificante até a mais
poderosa ... perdoarei o seu delito e de seu pecado jamais me
lembrarei”. A responsabilidade ética passa a ser reconhecida
como individual e o perdão dos pecados é um ato direto de
Deus – o que reforça o fim do monopólio sacerdotal – não só
sobre a instrução, mas também sobre o perdão. Modernidade
é o nome que se dá ao templo em que os direitos individuais
e a igualdade de todas as pessoas são afirmados como
inalienáveis. Por que não reconhecer a Modernidade judaíta?
Por quê? Por que a Modernidade moderna se define como o
tempo em que não mais se precisa de Deus, que está quieto e passivo
no distante céu transcendental – enquanto a Modernidade judaíta é
fruto da palavra e da ação de Deus “aqui e agora”: note no texto a
tríplice presença da fórmula do dito profético. Por que a Modernidade
moderna se define como o tempo das relações contratuais, mediadas
pela instituição estatal – enquanto a Modernidade judaíta se define
como o tempo das relações da aliança, sem mediação institucional,
definidas pela fidelidade: note no texto a linguagem afetiva da aliança.
Por que a Modernidade moderna é enganadora – a autonomia do
sujeito individual só existe para Ricos, Poderosos, Filósofos e Cientistas
– a imensa maioria das pessoas só faz é pagar a conta (tudo bem que
a gente ganha umas coisinhas interessantes – celular, computador,
avião, televisão, DVD, HD ...). Por outro lado, a Modernidade judaíta
é esperançosa: esses dias virão – antes deles chegarem, porém, nós
temos de mudar nosso estilo de vida, nossa fé, nossa teologia, nosso
mundo – note no texto como o defeito da velha aliança foi a traição
dos pais e não um erro de DEUS.
131
Anotações
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Introdução
133
1. Aspectos da hermenêutica no Antigo
Testamento
YHWH, YHWH, Deus de ternura e de piedade, lento para
a cólera, rico em graça e fidelidade; que guarda sua graça a
milhares, tolera a falta, a transgressão e o pecado, mas a ninguém
deixa impune e castiga a falta dos pais nos filhos, e os filhos dos
seus filhos, até a terceira e a quarta geração (Êx 34:6-7);
Saberás, portanto, que YHWH teu Deus é o único Deus, o Deus
fiel, que mantém a aliança e o amor por mil gerações, em favor
daqueles que o amam e observam os seus mandamentos; mas
é também o que retribui pessoalmente aos que o odeiam; faz
com que pereça sem demora o que o odeia, retribuindo-lhe
pessoalmente (Dt 7:9-10);
Tu YHWH, Deus de piedade e compaixão, lento para a cólera,
cheio de amor e fidelidade, volta-te para mim, tem piedade de
mim! (Sl 86:15-16).
Os trechos acima estão em ordem cronológica: o mais antigo é o
do livro do Êxodo, depois o do Deuteronômio e, por fim, o do Salmo
86. Repare como o texto de Êxodo é interpretado e reformulado:
1. O texto deuteronômico interpreta o do êxodo a partir da
nova situação urbana em que o Deuteronômio está sendo escrito:
(a) desaparece a expressão “a falta dos pais nos filhos, e os filhos
dos seus filhos, até a terceira e a quarta geração”, que é substituída
pelas expressões “o que retribui pessoalmente aos que o odeiam [...]
retribuindo-lhe pessoalmente”. O Deuteronômio interpreta o texto do
Êxodo e já lhe dá um novo sentido (ou um sentido renovado). O texto
do êxodo fazia bastante sentido em uma comunidade agrária, pouco
urbanizada, em que os filhos e netos viviam na propriedade do pai
(e do avô), e sofriam os efeitos dos problemas do pai (ou do avô) –
quando a colheita ia mal, todos sofriam! Já o texto do Deuteronômio é
escrito em um ambiente urbanizado, onde pais e filhos e netos vivem
em casas separadas, têm (podem ter) diferentes profissões e suas vidas
não estão ligadas de forma tão intensa quanto no sítio; (2) pela mesma
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podendo ser uma ampliação, uma reformulação, uma correção, ou
uma nova aplicação.
Vejamos outro exemplo, desta vez destacando um aspecto mais
técnico da interpretação, o recurso à intertextualidade:
Em Dt 12,13-19 há dois exemplos de citação de Êx 20,24, o
primeiro no verso 14 e o segundo no 15:
(a) Em Dt 12,14 que faz referência ao santuário único e às instruções
acerca do que fazer no santuário citam Êx 20,24 mas de forma quiástica,
ou seja, invertida. A lei do altar em Êx 20,24 tem dois componentes
principais:
A Sacrificarás sobre ele tuas ofertas queimadas
B em todo lugar onde... .
Dt 12,14 toma esses dois elementos em ordem quiástica, invertida,
fazendo com que o foco da lei recais sobre o lugar do sacrifício e não
sobre o ato do sacrifício (como em Êxodo):
B1 no lugar que Javé tiver escolhido
A1 lá oferecerás tuas ofertas queimadas
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Jesus era anunciado como o Servo de Deus que morre e ressuscita em
benefício do Seu povo – o princípio (2) acima.
O terceiro princípio que vimos no exemplo do Antigo Testamento
é usado de forma peculiar por Marcos. Ele, de fato, corrige o sentido
dos textos vétero-testamentários, mas não os textos em si, e sim a
interpretação que rabinos judeus faziam desses textos, afirmando que
a interpretação cristã era a mais correta. Isto nos mostra um quarto
princípio hermenêutico: (4) o da conflitividade da interpretação –
textos sagrados recebem interpretações conflitantes nas diferentes
comunidades de seguidores desses textos. Um novo princípio, por
fim, também é perceptível: (5) Marcos usa uma técnica comum entre
os intérpretes judeus: a associação de textos das diferentes seções do
cânon hebraico mediada pelo uso de palavras-chave ou temas-chave.
No pano-de-fundo dessa técnica está o texto bíblico de Dt 17:6:
“Pela boca de duas ou de três testemunhas, será morto o que houver
de morrer; pela boca duma só testemunha não morrerá”. Esse texto
é interpretado a partir de outro princípio hermenêutico: (6) se um
texto vale para uma situação material, também há de valer para
uma situação espiritual. As três seções do cânon hebraico são as três
testemunhas que confirmam a validade do texto de Marcos! (Note
como este princípio está presente também na pregação de Paulo, 1 Co
9:8-14 e 1 Tm 5:17-18 que interpreta o texto “não amordaçarás o boi
que debulha” como um texto que valida o pagamento de remuneração
aos pregadores da palavra.)
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Anotações
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