Texto+Completo 0
Texto+Completo 0
Texto+Completo 0
MIGRAÇÃO NORDESTINA NO
BRASIL VARGUISTA:
DIFERENTES OLHARES SOBRE A
TRAJETÓRIA DOS RETIRANTES
PORTO ALEGRE
2012
TIAGO DA SILVA COELHO
Porto Alegre
2012
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
BANCA EXAMINADORA:
_____________________________________________
Prof. Dr. René Ernaini Gertz – PUCRS (Orientador)
_____________________________________________
Prof. Dra. Núncia Santoro de Constantino – PUCRS
_____________________________________________
Prof. Dr. João Henrique Zanelatto – UNESC
Porto Alegre
2012
Dedico este trabalho aos meus pais e irmãos,
em especial a Manoel Francisco da Silva – Vô Nelo
In Memoriam.
AGRADECIMENTOS
Agradeço imensamente aos meus familiares, ao meu pai e à minha mãe, Lucas e
Márcia, meus irmãos Camile e Mateus, suas palavras de incentivo foram fundamentais para a
realização deste trabalho, sem o suporte, o carinho e o incentivo de vocês este trabalho se
tornaria incompleto. Nos momentos de preguiça, foram um puxão de orelha, nos momentos
de dificuldades foram um ombro amigo, durante a escrita foram a compreensão que se fez
sentir nos momentos de ausência. A vocês meus mais sinceros agradecimentos. Também não
poderia deixar de agradecer ao amigo e cunhado Guilherme Monteiro Raupp, que sempre
incentivou, em conversas amistosas, a prosseguir com a escrita da dissertação. Aos meus
familiares de modo geral, gostaria de dedicar especial atenção. Tios, tias, primos, primas,
meus queridos avôs e avós, sempre buscaram auxiliar proferindo palavras de incentivo, a
todos sou grato.
Gostaria de tecer imensuráveis agradecimentos a minha companheira Michele
Gonçalves Cardoso. Juntos passamos por duas dissertações, e muitos foram os momentos de
ausência, de cansaço, mas foram maiores os momentos de carinho e compreensão, de risos, de
sinceras gargalhadas, de ajuda, de descobertas, de crescimento mútuo. De tudo a Michele sou
grato, esta dissertação que passou muitas vezes por seu olhar crítico e inteligente esta pronta,
mas como você mesma diz, não está finalizada, e sei que com sua parceria posso contar
sempre para realizações de muitos sonhos futuros. Um beijo muito grande no seu coração com
todo o meu amor. Estendo meu agradecimento aos pais de Michele, seu Valdeci Cardoso e
Ezanete Gonçalves Cardoso, que me apoiaram, mesmo sentindo minha ausência,
compreenderam e torceram para o meu sucesso.
Gostaria de agradecer também aos professores e colegas da PUCRS, aqueles com
quem tive grandes lições que me engrandeceram de forma profissional e pessoal, um especial
agradecimento dedico aos professores Luciano Aronne de Abreu, Ruth Chittó Gauer, Arno
Alvarez Kern, Núncia Santoro de Constantino e Charles Monteiro, que com sábias palavras
trouxeram grandes reflexões para minha vida. Um muito obrigado mais que especial ao
professor René Gertz, que aceitou orientar-me por veredas estreitas e muitas vezes pouco
conhecidas, ouvinte atento e grande conhecedor da História do Brasil, que por vezes dedicou
seu tempo de folga para me ajudar com as muitas dúvidas que surgiram durante o caminho da
dissertação, contudo ter o professor como guia fez com que este caminho fosse de grandes
conhecimentos, muito obrigado.
Aos colegas de mestrado da PUCRS, em todos encontrei palavras amigas e
discussões sinceras, além, é claro, de grande amizade, que levarei por todos os caminhos que
trilhar, nunca esquecendo que após viagens cansativas sempre haveria um sorriso sincero para
me recepcionar em Porto Alegre.
A direção da SATC, assim como todos os professores, colegas de profissão e amigos
em tempo integral, agradeço por todas as formas de apoio, não citarei nomes, pois muitos
foram os que ajudaram, de uma maneira ou de outra, justificando ausências, cobrindo
momentos dedicados à dissertação, a eles endereço sinceras palavras de agradecimento.
Não poderia deixar de agradecer aos professores e colegas de trabalho que encontrei
no Departamento de História da UNESC. Com eles, percorri os primeiros anos desta
profissão, neles me espelhei muitas vezes, e com eles percorro no momento este novo desafio
de minha vida profissional, agradeço a todos, mas em especial aos professores Paulo Sérgio
Osório, Marli de Oliveira Costa, Carlos Renato Carola, e João Henrique Zanelatto, que
acompanhou meus passos desde a graduação até o mestrado, grande incentivador e ótimo
profissional com que tenho o prazer de conviver.
Agradeço também à CAPES, pelo financiamento nestes dois anos de mestrado, sem
o apoio financeiro esta caminhada seria muito mais difícil.
Os quinze anos de governo do presidente Getúlio Vargas compreendidos entre 1930 e 1945
incutiram no país profundas modificações políticas e sociais. A história tradicional, ao nomear
os momentos históricos do Estado brasileiro como República Velha e República Nova,
repercute, respectivamente, os acontecimentos anteriores ao golpe de estado de 1930 e os
acontecimentos que vieram após esta data. Ao mesmo tempo em que esta nomenclatura
visava a diferenciar as formas de se fazer política no país entrava em confronto com as
práticas empreendidas pelo governo, muito do que era de praxe nos governos anteriores
manteve-se na era Vargas. Um exemplo são as políticas públicas de combate à seca
organizadas pelo Estado, e que neste período pouco diferiram das empreendidas por governos
anteriores. Algumas destas ações não surtiram o efeito desejado, e muitas outras nem foram
colocadas em prática, obrigando os sertanejos a migrar. Tal situação levou a sociedade a criar
um imaginário de que todos os migrantes nordestinos saíam de sua região única e
exclusivamente por conta da seca, não evidenciando outros fatores que o impulsionavam a
realizar tal ato. Contudo, este trabalho visa a problematizar a relação estabelecida entre a seca
e a migração nordestina, objetivando compreender através das produções culturais de
Graciliano Ramos e Candido Portinari as concepções de migração presentes nos espaços
urbanos. Igualmente buscando entender os processos migratórios estabelecidos em momentos
de seca demonstrando também a ocorrência do fenômeno migratório em épocas de chuvas.
Assim, a seca não pode ser compreendida, em última instância, como o fenômeno
impulsionador das retiradas, havendo muitas outras questões a serem consideradas.
The fifteen-year government of President Getúlio Vargas of between 1930 and 1945, the
country instilled deep political and social changes. The traditional story, by naming the
historical moments of the Brazilian state as the Old Republic and New Republic reflected
respectively the events prior to the coup of 1930 and the events that came after this date. At
the same time that this nomenclature was intended to differentiate the forms of doing
politics in the country came into confrontation with the practices implemented by the
government, much of what was the practice in previous governments remained in the Vargas
era. One example is the public policy of combating drought organized by the State and who in
this period did not differ from the activities carried out by previous governments. Some of
these actions do not have the desired effect and many others were not put into
practice forcing the backlanders to migrate. This led the society to create an imaginary that all
migrants move out of their northeastern region solely because of the drought, finding no other
factors that propelled him to perform such an act. Yet this present work aims to
problematize the relation between migration and northeastern drought in order to
understand through the cultural productions of Graciliano Ramos and Candido Portinari
present the concepts of migration in urban areas. Also seeking to understand migration
processes established in times of drought have also demonstrated the occurrence of
migration in times of rain. So the drought can’t be understood ultimately as the booster
phenomenon of withdrawals, there are many other issues to consider.
1 INTRODUÇÃO......................................................................................................... 10
REFERÊNCIAS........................................................................................................ 138
10
1 INTRODUÇÃO
É hora,em que a morte é certa / Mas ninguém deserta se for pra lutar
No peito,coração aberto, / esperança perto, sem querer chegar
coragem mansa eu tive até partir / pra não morrer de morte igual,fugi
e andei errando,pela vida afora / sempre indo embora, dei volta no mundo / vim morrer aqui.
Ave Maria dos Retirantes – Carlos Coqueijo e Alcivando Luz
1
BIOGRAFIA de Francisco Everardo Oliveira Silva (Tiririca). Disponível em: <http://www2.camara.gov.br/
deputados/pesquisa/layouts_deputados_biografia?pk=189219> Acesso em: 26 abr. 2011.
11
2
IBGE, Resultados do Censo – 2010. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/
populacao/censo2010/populacao_por_municipio.shtm> Acesso em: 26 abr. 2011.
12
Tal ambição fora projetado para iniciar no ano de 2004, com grande oposição. A
novela da transposição do rio São Francisco gerou vários capítulos, entre todos, aquele com
maior repercussão foi o do bispo de Barra (BA), Dom Luiz Flávio Cappio. O bispo manteve-
se em greve de fome, durante o ano de 2005, objetivando a interrupção das obras de
transposição do rio. Após receber emissários do governo e apelos por parte dos movimentos
sociais, o bispo encerrou a sua greve de fome, acreditando nas negociações que estavam em
andamento.3
Para compreender melhor a intenção do projeto, há de se entender as principais
modificações a serem realizadas pelas obras governamentais. O rio São Francisco nasce no
interior do estado de Minas Gerais, região Sudeste, seguindo na direção norte do país.
Passando pelo oeste do estado da Bahia, cortando o estado de Pernambuco, prosseguindo pela
divisa entre os estados de Alagoas e Sergipe, até a sua foz na região Nordeste. O projeto prevê
a retirada de 26 metros cúbicos de água por segundo do rio, de forma continuada, podendo
chegar até 63m3/s.4 Ao todo, o volume estimado do rio que é passível para retirada é de
360m3/s, destes, de acordo com o engenheiro agrônomo e pesquisador – especialista na bacia
hidrográfica do velho Chico – João Suassuna, 335m3/s já estão alocados a outros serviços,
como irrigação e usinagem.5
O governo argumenta que há disponibilidade de muitos metros cúbicos para a
transposição.6 Mesmo com todas as alegações governamentais, foram, e continuam sendo,
realizadas diversas manifestações pelo encerramento dos trabalhos e pela rediscussão da obra.
Em 2007, mais uma vez o bispo Dom Luiz Cappio entrou em greve de fome, esta teve de ser
paralisada quando o bispo foi internado na UTI por agravações em sua saúde debilitada
decorridas da falta de alimentação.7
Há ainda hoje muitos críticos à transposição do velho Chico, que argumentam existir
outras saídas melhores e mais baratas para o problema do semi-árido nordestino. Um desses
críticos é o teólogo e ambientalista Leonardo Boff, que aponta para a existência de projetos
3
GLASS, Verena. Bispo faz greve de fome para protestar contra a transposição. Carta Maior. 27 de setembro de
2005. Disponível em: <http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=3845> Acesso
em: 26 abr. 2011.
4
NÚMEROS do Rio. Disponível em: <http://www.integracao.gov.br/pt/numeros-do-rio> Acesso em: 30 abr.
2011.
5
DO Rio para o Sertão. Revista Nossa História. Abril de 2005 ano 2, n. 18, p. 22-24.
6
NÚMEROS do Rio. Disponível em: <http://www.integracao.gov.br/pt/numeros-do-rio> Acesso em: 30 abr.
2011.
7
CARVALHO, Cleide. ‘Lula não faz mais jus ser chamado de nordestino’, diz Dom Cappio no 14º dia de jejum
contra a transposição do rio São Francisco. Extra. 10 de dezembro de 2007. Disponível em:
<http://extra.globo.com/noticias/brasil/lula-nao-faz-mais-jus-ser-chamado-de-nordestino-diz-dom-cappio-no-14-
dia-de-jejum-contra-transposicao-do-rio-sao-francisco-641757.html> Acesso em: 30 abr. 2011.
13
mais baratos e com um maior aproveitamento das águas existentes no semi-árido, sem
precisar do rio São Francisco:
8
BOFF, Leonardo. O semi-árido: o mais chuvoso do planeta. 19 de Out. de 2007. Disponível em:
<http://www.leonardoboff.com/site/vista/2007/out19.htm> Acesso em: 26 abr. 2011.
9
BETTO, Frei. O Natal de Dom Cappio. Eco Debate. 17 de dez. 2007. Disponível em:
<http://www.ecodebate.com.br/2007/12/17/natal-de-dom-cappio-artigo-frei-betto/> Acesso em: 26 abr. 2011.
10
CAPPIO, Dom Flávio. A transposição do Rio São Francisco. Entrevista. REMHU – Revista Interdisciplinar da
Mobilidade Humana. Ano XIX n. 36. Jan./jun. de 2011. p. 255. Para saber mais sobre as argumentações
contrárias a transposição do Rio São Francisco, Cf.: <http://www.fundaj.gov.br/>;
<http://www.saofrancisco.cbh.gov.br/>; <http://www.ana.gov.br/>. Para considerações a favor das obras
governamentais Cf.: <http://www.integracao.gov.br/saofrancisco/index.asp/>; <http://www.dnocs.gov.br/>.
11
FREIRE, Sílvia. Pronta, transposição do rio São Francisco em Alagoas não funciona. Folha.com. 25 de maio
de 2011. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/mercado/906904-pronta-transposicao-do-sao-francisco-
em-alagoas-nao-funciona.shtml> Acesso em: 30 abr. 2011.
14
12
IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. 2009. Disponível em: <ftp://ftp.ibge.gov.br/
Indicadores_Sociais/Sintese_de_Indicadores_Sociais_2010/tabelas/aspectosdemo.zip> Acesso em: 30 abr. 2011.
13
FERRARI, Monia de Melo. A migração nordestina para São Paulo no segundo governo Vargas (1951-1954)
- Seca e desigualdades regionais. 2005. 160 f.. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Centro de
Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2005. p. 72.
15
motorizados? Para onde vão? Será que voltam? E uma das principais perguntas é, por que
vão? Perguntas nada fáceis de se obter respostas. Mas ao ser utilizada uma análise
reducionista, a primeira e mais óbvia resposta é a “seca”. Como se sozinha a seca pudesse
obrigar milhões de pessoas a sair de seus lares, como se a sociedade nada pudesse contra ela.
Nada pode contra ela por uma questão social, balizada pela perda de poder de uma
oligarquia agrária em tempos de crise da sua cultura, ou deve-se dizer, monocultura, seja ela
do açúcar ou do algodão. É com a falta de água e a calamidade pública que a mesma classe
dominante vislumbra uma saída para seu decréscimo de poder, para falta de investimentos no
seu setor. É essa classe dominante que, oportunamente, verá ser criada a “indústria da seca”.
A seca sempre castigou o nordeste do Brasil, há indícios da falta de água, da aridez
do solo, nos relatos dos primeiros viajantes pela colônia portuguesa da América, no século
XVI, durante todo o século XVII, quando a economia do açúcar era centrada na capitania de
Pernambuco, ela já açoitava o sertão. Porém, só seria vista como calamidade pública nos anos
70 do século XIX. A grande seca dos “três setes” (1977-79) inaugura as grandes remessas de
verba para combater a seca e amparar os nordestinos que sofrem com as mazelas da
natureza.14
Em tempos em que o envio de verbas de amparo àqueles que morriam de fome e de
sede, era alvo de grande disputa por parte dos deputados do império. A grande questão
levantada era se havia a real necessidade de amparar as províncias, ou se havia corrupção para
lucrar com tal calamidade pública. A ajuda vinha muitas vezes de grandes campanhas
organizadas pela sociedade civil em prol dos despossuídos do nordeste, e o papel
desempenhado pelos governos sempre contava com valores abaixo do necessário
compactuando com a tragédia anunciada.15
Acabando o tempo da seca, acabava-se também a preocupação do governo com os
homens, as mulheres e as crianças que sofreram com o fenômeno natural, ampliado em muitas
vezes a sua dimensão pela falta de políticas públicas para o combate a todas as secas que
ocorriam de tempos em tempos, no semiárido nordestino. Ações governamentais haviam,
porém sem o planejamento necessário, serviam muito mais para dar visibilidade ao governo
do que viabilidade no combate a seca. A principal era a construção de açudes. Se os rios,
naturalmente, secavam, com os açudes, por maiores ou mais profundos que fossem,
aconteceria a mesma coisa.
14
VILLA, Marco Antonio. Que braseiro, que fornalha. Nossa História. Rio de Janeiro: Vera Cruz, v. 18, p. 15,
abril de 2005.
15
ALBUQUERQUE Jr., Durval M. “Palavras que calcinam, palavras que dominam: a invenção da seca do
Nordeste”. Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUH/Marco Zero, v. 15, n. 28, p. 111-120, 1995.
16
Essas medidas são (de uma certa forma, até hoje [vide sítio eletrônico do DNOCS])
pensadas segundo a lógica de que para combater a seca, é necessário acumular água:
a chamada “solução hidráulica” que remonta aos tempos do Império. As estruturas
de sobrevivência dos camponeses sertanejos jamais foram pensadas em sua
fragilidade crônica, em termos de uma brutal concentração de terras e de recursos
d`água. [...]. Não basta construir açudes ou barragens, isto é, acumular água para os
períodos de seca; mas o problema central é: a quem serve a água acumulada? 16
No auge das mazelas causadas pela estiagem, quando não havia mais como abrigar
tantas pessoas, a saída encontrada pelos governantes era tirar as pessoas dali, pois grande
concentração de famintos causava agitações nas cidades, e aqueles que ainda tinham
condições de suportar a seca de uma maneira consideravelmente digna temiam pela cólera
proveniente daqueles que não tinham tais condições, e dependiam das benesses do Estado. A
forma mais fácil de eliminar o problema era levá-lo para outros lugares, os retirantes e suas
famílias embarcavam em navios e eram levadas, na maioria das vezes, para áreas inóspitas e
desconhecidas. Eram transportados a lugares em que não se adaptavam ao ambiente, seja a
floresta amazônica ou a outras regiões do país.17
Nessa área da migração, não havia planejamento governamental, a ordem era retirar
o máximo de pessoas das cidades litorâneas, primeiro destino dos cidadãos sedentos do
interior. A migração acontecia, planejada ou não, as pessoas eram obrigadas a sair, migrar
para novos lugares, decorrendo deste acontecimento outra série de problemas a serem
sanados. As migrações se configuram dentro da formação de uma nação como atividades
muito importantes, sendo que redimensionam o contingente populacional em um determinado
espaço geográfico. Essas migrações de nordestinos aconteciam fora do período da seca, ou
somente quando esta se apresentava?
Como a colonização do país foi iniciada pela região nordeste, esta sempre teve uma
densidade populacional mais elevada em relação às demais regiões do país. Com o fim do
ciclo da cana-de-açúcar, essa densidade vai se dispersando para outras regiões, principalmente
a das minas. Neste momento, a migração será principalmente de escravos vendidos das
fazendas de cana para as minas de ouro.18 Tal atividade migratória viria a ser amplificada na
16
No sítio eletrônico do Departamento Nacional de Obras contra as Secas, as principais ações empreendidas e
divulgadas na capa do site são a construção de açudes e barragens. NEVES, Frederico de Castro. A seca e o
Homem: Políticas anti-migratórias no Ceará. Travessia: revista do migrante. Ano IX, n. 25, p. 18-23, Maio/Ago
de 1996.
17
GRAHAM, Douglas H., HOLLANDA FILHO, Sergio Buarque de. Migrações internas no Brasil: 1872 -1970.
São Paulo: IPE/USP/CNPQ, 1984.
18
GRAHAM; HOLLANDA FILHO, op. cit.
17
grande seca dos “três setes”, quando, com medo de perder o investimento em escravos, os
fazendeiros nordestinos vendem seu contingente.
Dentro desse panorama geral de migração, coube ao governo indicar os locais de
destino. Até 1930, esse local é a floresta amazônica, para o trabalho com os seringais. Em
relação à borracha, no fim do século XIX e durante os anos da primeira grande guerra, devido
à necessidade dos países do ocidente, ocorre uma ampla circulação e venda do látex extraído
no norte do país. Após a data fatídica de 1929, com a queda da bolsa de Nova York, os preços
do café e da borracha decaem abissalmente, fazendo com que essa atividade migratória para a
região norte não tenha mais o sentido que tinha até o momento.
É também no ano de 1930 que há uma significativa reviravolta política no país. Após
ser derrotado nas urnas para o cargo de presidente do Brasil, Getúlio Dornelles Vargas
articula, a “revolução de 1930”, ou o “golpe de 1930”, decretando o fim da política café-com-
leite e o fim do domínio oligárquico de São Paulo e Minas Gerais. O presidente Vargas
governa o país até 1945, quando renuncia ao cargo que ocupou por 15 anos.
Nos anos decorrentes do governo Vargas, são realizadas consideráveis mudanças nas
políticas adotadas pelo Estado em relação ao nordeste. Há, neste período, duas grandes secas,
uma em 1932, nos primórdios do governo Vargas, e outra em 1942, às vésperas de sua
despedida. São duas secas, dois modos distintos de ação desempenhados pelo governo no
auxílio às populações nordestinas.
Durante o governo Vargas, surge no Brasil o princípio daquilo que podemos chamar
de industrialização, no mesmo momento em que cessam as entradas de imigrantes
estrangeiros, comuns desde as últimas décadas do século XIX. Porém, a necessidade de mão
de obra muda o seu foco, não mais virão moradores de terras longínquas, a atenção é para
atrair trabalhadores nacionais. Para suprir a ausência dos imigrantes, virão os migrantes, sem
estrangeiros entrando no país o número de nacionais que se movimentam no território é muito
maior. E nesses números podemos enquadrar o migrante nordestino afugentado das suas terras
pela seca, mas não só por ela.
Além da seca, as relações sociais de sua terra também o expulsam, mas a questão
central é: de onde migram? E para onde migram? Além do que, vale observar também, se
migram por motivos de expulsão; e a seca seria um dos grandes motivos; ou migram por
motivos de atração, como oportunidades e esperança? O que, a priori, pode ser pré-
apresentado é um dos principais destinos, a cidade grande como São Paulo e Rio de Janeiro, o
“sul maravilha” imortalizado pelos traços de Henfil e sua graúna.
18
Nesses 15 anos que compreendem o governo Vargas, passaram-se três fases distintas,
o governo provisório (do ano de 1930 até o ano de 1934), o governo constitucional (até o ano
de 1937) e o Estado Novo (até o ano de 1945). As secas aconteceram no primeiro e no último
período. Concomitantemente a seca de 1932, acontecera a “Revolução Constitucionalista”, na
qual o estado de São Paulo rebelou-se contra o governo central, ante a inexistência de uma
constituição, e a existência de um governo proveniente de um golpe de estado. Em 1942,
durante a seca desse ano, acontecia em plena Europa a segunda grande guerra, e o Brasil,
neste momento, estava em plena negociação com ambos os grupos para a tomada de uma
posição oficial.
Ao passar dos anos de governo de Vargas, há, nas grandes cidades, uma preocupação
insistente sobre as ações governamentais em relação à seca. Desde os anos 1877-1879,
quando repórteres foram enviados para cobrir os acontecimentos da estiagem no nordeste, a
imprensa da capital e de São Paulo envia, nos anos de grande seca, correspondentes que
remetem às redações suas observações sobre os acontecimentos na região. Foi assim em
1877-79, em 1915, 1920, não sendo diferente em 1932 e 1942. A população dessas cidades se
vê à volta com muitas notícias, e, porque não, com os migrantes recém chegados das zonas de
secas.
Entre estes habitantes das cidades, os artistas muitas vezes se tornam sensíveis aos
acontecimentos, transmitindo em suas obras ações e emoções contemporâneas. Dois deles em
especial, amigos e denunciantes dos problemas da seca, produzem, durante os quinze anos do
primeiro governo Vargas, algumas de suas principais obras, o escritor Graciliano Ramos, e o
pintor Candido Portinari. Respectivamente, com o livro Vidas Secas, e a série de pinturas
Retirantes.
A obra Vidas Secas de Graciliano Ramos foi publicada pela primeira vez no ano de
1938, quando o autor tinha 46 anos de idade. Natural de Quebrangulo, no estado nordestino
de Alagoas, Graciliano teve uma vida movimentada, na qual publicou 12 obras literárias.
Político, foi prefeito de Palmeira dos Índios, também no estado de Alagoas. Preso em 1936, e
solto em 1937, escreve as suas Memórias do Cárcere, sobre a experiência na cadeia, livro
publicado após o seu falecimento. Morre em 1953.19
Candido Portinari é filho de imigrantes italianos que chegam ao Brasil no fim do
século XIX, para trabalhar nas fazendas de café do interior paulista. A família se dirige para a
cidade de Brodowski. Nasce em 1903, torna-se pintor reconhecido nacionalmente, e
19
Para saber mais Cf.: <http://www.graciliano.com.br>
19
internacionalmente em 1934. Pinta a série Retirantes durante o ano de 1944, aos 41 anos.
Morre aos 58 anos, em 1962.20
Presentes na sociedade e contemporâneos aos acontecimentos históricos, os artistas
tendem a retratar o mundo em que vivem, e as atividades pelas quais passam. São parecidos a
casos ilustres como os de Goya, Tolstoi e Delacroix, um denunciando a invasão francesa em
terras espanholas durante as guerras napoleônicas, o outro exaltando a formação de uma
sociedade livre e sem reis.21
As obras de arte, sejam elas escritas ou pintadas, não são uma cópia dos
acontecimentos reais, porém nelas há indícios de como essa realidade foi interpretada. A
princípio, nem o escritor, nem o pintor, apresentam-se como cronistas de acontecimentos reais
para que a posteridade possa observá-los. No Brasil, tanto Graciliano Ramos quanto Candido
Portinari não buscavam absorver uma condição real e inalterada dos acontecimentos,
procuravam, sim, retratar aquilo que viam à sua volta, de uma forma denunciante, nesse caso
aos problemas climáticos, políticos e sociais, decorrentes da estiagem. Há para se vislumbrar
nas obras de Graciliano e Portinari indícios de um passado, que devem ser recolhidos e
analisados frente às discussões teóricas sobre o período histórico vivenciado e retratado por
esses dois artistas.
Reflexões em torno dos acontecimentos históricos podem e devem ser feitas
utilizando produções culturais. No caso em questão, há de se analisar os pormenores e as
relações em torno da História e das artes, escritas ou visuais. No diálogo estabelecido entre os
seres humanos e a sociedade que os cerca, a cultura tem papel fundamental para a observação
desse universo, metaforicamente a cultura se torna o prisma no qual o historiador vislumbra o
passado, recorrendo a métodos dos mais diversos para compreender e problematizar esse
passado distante no tempo, do qual recebemos somente os ecos.
A História, há muitos anos – para não dizer séculos – trava um grande diálogo com a
literatura, conversa necessária para se estabelecer os campos de atuação de cada uma. Quando
o passado chega ao presente o faz através de uma produção escrita, mas, devido à analise e ao
corpus documental do historiador, ela é diferente do universo literário. Ambos podem
escrever “verdades”, mas a do historiador tem de ser complementada com argumentos
próprios e concretos. Porém a história não pode perder de vista que seu campo é do verídico, e
20
Para saber mais Cf.: <http://www.portinari.org>
21
Francisco de Goya pintou os terríveis atos dos franceses na invasão à Espanha comandados por Napoleão, sua
série Los desastres de la Guerra. Eugène Delacroix pintor francês que pinta La Liberté guidant le peuple, ou a
liberdade guiando o povo, pintada anos após a revolução de 1789, mas que servia para exaltar esses
acontecimentos e os que se seguiram, em 1830, com a exigência do fim da restauração monárquica. Ambos são
casos muito comuns na história, seja como denúncia aos acontecimentos, seja como elogio a eles.
20
inventar um caminho que afaste, ao mesmo tempo, a ideia de que a história não seria
mais que uma produção de ficção dentre outras (e não é porque a história utiliza as
figuras e formas narrativas da ficção que não se define como um conhecimento, um
saber, e daí a vinculação possível entre a história como um saber crítico em uma
dimensão cívica), e, por outro lado, pensar que esta dimensão crítica e de
conhecimento não se pode estabelecer segundo os modelos tradicionais de uma
ciência positiva, que se pensava como a adequação do discurso ao real.23
O papel do historiador é re-criar esse passado, de modo que ele seja entendível ao
presente, é retirar das fontes informações valiosíssimas, que por si só seriam mais difíceis de
serem acessíveis aos interessados sobre o tema. Ser historiador, nesse momento, é ser
detetive, e buscar os mínimos detalhes, em pequenos indícios, em documentos oficiais ou não,
é buscar em produções culturais como a literatura, como bem disse Carlo Ginzburg, fios e
rastros desses tempos idos. O papel da história de vislumbrar o passado e seu encontro com o
modo de ver o mundo da literatura se faz na junção do estudo desse tempo decorrido
juntamente com as produções dessa mesma época.
A literatura é, pois, uma fonte para o historiador, mas privilegiada, porque lhe dará
acesso especial ao imaginário, permitindo-lhe enxergar traços e pistas que outras
fontes não lhe dariam. Fonte especialíssima, porque lhe dá a ver, de forma por vezes
cifrada, as imagens sensíveis do mundo. A literatura é narrativa que, de modo
ancestral, pelo mito, pela poesia ou pela prosa romanesca fala do mundo de forma
indireta, metafórica e alegórica. Por vezes, a coerência de sentido que o texto
literário apresenta é o suporte necessário para que o olhar do historiador se oriente
para outras tantas fontes e nelas consiga enxergar aquilo que ainda não viu. 24
22
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & literatura: uma velha-nova história. Nuevo Mundo Mundos Nuevos.
2006. Disponível em: <http://nuevomundo.revues.org/1560> Acesso em: 5 maio 2011.
23
CHARTIER, Roger. Literatura e História. Topoi. Rio de Janeiro. v. 1, p. 212. Jan-Dez de 2000.
24
PESAVENTO, op. cit.
21
reproduções de pinturas nos folhetins e nas revistas ilustradas as imagens chegam aos
espectadores de uma forma mais simplificada, e é com elas que faz-se possível analisar uma
gama de ilustrações e visualidades de uma época.
No século XX iniciou-se uma grande reviravolta no universo editorial, as imagens
passaram a fazer parte das publicações impressas ainda com técnicas pouco desenvolvidas,
anteriores a impressão em OFFSET. O surgimento destas tecnologias fazem com que as
ilustrações invadam as publicações de todos os tipos, torna-se muito mais fácil veicular
informações, chegando ao ponto de que, em muitos jornais, as notícias sejam apresentadas
através das figuras de forma muito mais privilegiada do que os escritos. Havendo ainda a
possibilidade das imagens serem manipuladas de uma forma menos perceptível que os textos
escritos.25
Para a história, as imagens são valiosíssimas, através delas é possível observar e
analisar diferentes visões de mundo, sem contar que elas transitam em um universo paralelo
aos textos escritos. Até mesmo as pessoas que não dominam os sinais gráficos da linguagem
escrita tem acesso ao universo composto pelas imagens. A própria vivência no mundo é uma
escola que ensina a observar essas representações pictográficas do mundo. Em hipótese
alguma a imagem deve ser encarada como algo puro, ou desprovido de intenção, somente o
fato de se capturar visualmente determinado momento já representa uma das muitas e
possíveis intenções. Contudo, há determinadas reflexões acerca das imagens que devem ser
respeitadas, como:
1. As imagens dão acesso não ao mundo social diretamente, mas sim a visões
contemporâneas daquele mundo. [...]. Os historiadores não podem dar-se ao luxo de
esquecer as tendências opostas dos produtores de imagens para idealizar e satirizar o
mundo que o representam. Eles são confrontados com o problema de distinguir entre
representações do típico e imagens do excêntrico.
2. O testemunho das imagens necessita ser colocado no ‘contexto’ [...], incluindo as
convenções artísticas para representar as crianças (por exemplo) em um determinado
lugar e tempo, bem como os interesses do artista e do patrocinador original ou do
cliente, e a pretendida função da imagem.
3. Uma série de imagens oferece testemunho mais confiável do que imagens
individuais.
4. No caso de imagens, como no caso dos textos, o historiador necessita ler nas
entrelinhas, observando os detalhes pequenos mas significativos – incluindo
ausências significativas – usando-os como pistas para informações que os produtores
de imagens não sabiam que eles sabiam, ou para suposições que eles não estavam
conscientes de possuir.26
25
MARTINS, Ana Luiza; LUCA, Tânia Regina de. (org.). História da Imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto,
2008.
26
BURKE, Peter. Testemunha Ocular: História e Imagem. Bauru: EDUSC. 2004. p. 237-238.
22
As imagens agem como atores de um universo muito importante para ser deixado de
lado, são portadoras de visões de mundo, criaturas de seus criadores, possibilidades infinitas
para a análise historiográfica. Não somente como olhos para um tempo que não se encontra
mais, mas assim como os outros documentos, as imagens abrem um leque inovador de
observações e problematizações acerca do passado.
A História como disciplina tem um encontro marcado com as fontes visuais. Esse
certamente pode ser um caminho para rever a própria memória disciplinar e, ao
mesmo tempo, revalorizar sua própria tradição erudita, ultrapassando as fronteiras
do conhecimento estabelecidas. Nesse encontro há um laço a ser fortalecido entre a
história da imagem e a história da arte para definir que o conceito de arte é histórico.
O olhar sobre a história é capaz de deixar isso claro, mesmo que nossa experiência
diante do fato artístico nos conduza a valores extemporâneos.27
27
KNAUSS, Paulo. O desafio de fazer História com imagens: Arte e Cultura Visual. ArtCultura. v. 8, n. 12,
Uberlândia: EDUFU. Jan.-Jun. 2006. p. 115.
23
transformar as condições sociais dos espaços urbanos. Contudo, o campo ficaria sem a mesma
atenção, e as zonas atingidas pela seca registrariam grandes estiagens, sem muitas ações para
amenizar o flagelo. Há de se ressaltar também a presença de campos de concentração, em que
os retirantes eram induzidos a entrar através de falsas promessas, e impedidos de sair, ficando
reservados até a ocorrência das chuvas.
Nas primeiras palavras do capitulo 2, buscasse apresentar a região de ocorrência das
secas e como se dá sua representação através dos tempos até a atualidade, com a
transformação da antiga região Norte em duas novas regiões, uma de mesma nomenclatura,
restrita à área úmida da floresta Amazônica, e outra chamada de Nordeste, região da
ocorrência das secas. A criação da região Nordeste foi antes de tudo um ato político, que viria
a diferenciar uma classe dominante destronada de sua posição de prestígio, em contraposição
às outras regiões, principalmente o Sul do país representado pelo estado de São Paulo. De
certa maneira, esta criação não fora tramada enquanto plano de Estado, ela se dá no âmbito
político-cultural e é pensada por uma oligarquia letrada que tem, por assim dizer, um
saudosismo de sua época áurea.
Os confrontos intelectuais que permearam esta diferenciação regional estão presentes
na gênese do movimento modernista e na oposição São Paulo x Nordeste, tratando o
movimento regionalista de Recife como precursor de um imaginário difundido sobre a região.
Estas ações transformaram, de certo modo, a maneira de se pensar o nordeste e influenciaram
muitas gerações futuras com sua concepção. Em plena década de 1930, durante o governo
Vargas, estas produções culturais figurarão como síntese do conhecimento naquilo que diz
respeito ao país. Assim, a literatura, como expressão da uma parcela da sociedade, representa
também uma visão difundida para a população dos acontecimentos do país. Neste caso em
particular, o livro Vidas Secas de Graciliano Ramos, além de tratar da região Nordeste
apresenta à população brasileira uma interpretação do problema da seca, tratando também das
questões relativas à migração de nordestinos para os centros urbanos. Tal deslocamento de
grandes proporções iniciou-se nos primórdios do século XX, porém foi intensificado durante
o período de governo de Getúlio Vargas.
A literatura não é a única forma de comunicação da intelectualidade brasileira com a
população nacional, a música, o cinema, o teatro, o rádio também o são. Porém, neste
trabalho, será enfocado principalmente o relacionamento entre as artes plásticas, na figura de
Candido Portinari e sua série de obras representativas da migração de nordestinos fugidos da
seca. Assim, as telas da série Retirantes dialogam com as produções até então realizadas, e,
24
da seca foram levados aos campos de borracha para a extração do látex necessário aos
exercícios de guerra dos países aliados, principalmente dos Estados Unidos.
Neste trabalho, e através das questões apresentadas, busca-se compreender a
migração, e como ela foi encarada pelos órgãos governamentais e pela sociedade, através das
composições de Graciliano Ramos e Candido Portinari, observando também de que maneira
as ações empreendidas chegavam até a população. Pois em alguns momentos a migração de
nordestinos é vista como benéfica e em outros ela é combatida como portadora do atraso e da
precariedade. O retirante nordestino seria positivado e negativado, nestes quinze anos de
duração do governo de Getúlio Vargas, sendo retratado pela sociedade e transmitido ao povo
sob a forma de um ícone que se mantém até os dias atuais.
Fato é que a seca infringiu duras penas aos habitantes da região nordeste, e não
somente nos anos que compõem o governo Vargas, contudo, neste momento histórico, o país
vivenciava um momento de transformação política e social, e os habitantes do universo rural,
principalmente aqueles centrados na região nordeste, são inseridos neste mundo, e, ao mesmo
tempo, excluídos dele. A fascinação e as possibilidades elencadas por estas novas concepções
empreendidas pelo governo irão atrair para a cidade o migrante nordestino, que, motivado
pela existência da seca buscará na cidade uma possibilidade melhor para a sua vida.
A sociedade urbana centrada na sua visão de país entraria em choque com esta
população proveniente do campo e da região da seca, e este encontro foi representado pelos
artistas da época, em especial por Graciliano Ramos e por Candido Portinari, pois ao mesmo
tempo em que estavam inseridos nos ambientes oficiais do governo Vargas, tomavam para si
o compromisso da denúncia social. Neste sentido, criticando as ações e a falta de ações do
governo no qual estavam inseridos. É importante compreender como as diferentes correntes
políticas/culturais/sociais compreendem os migrantes, ou seja, de que modo estes artistas
apresentam os retirantes de seca, relacionando-os com as ações e concepções oficiais, neste
caso pelo Conselho de Imigração e Colonização, através de sua Revista de Imigração e
Colonização. As muitas imagens dos retirantes nordestinos são disseminadas na sociedade
através da propaganda e da mídia, contribuindo para a concepção de retirante e de migrante
que a sociedade cristalizou como realidade.
26
O anno de [15]83 houve tão grande secca e esterilidade nesta província (cousa rara e
desacostumada, porque é terra de contínuas chuvas) que os engenhos d’água não
moeram muito tempo. As fazendas de cannaviaes e mandioca muitas se secaram, por
onde houve grande fome, principalmente no sertão de Pernambuco pelo que
desceram do sertão apertados pela fome, socorrendo-se aos brancos 4 ou 5 mil
índios. Porem passado aquelle trabalho da fome, os que poderam se tornaram ao
sertão, excepto os que ficaram em casa dos brancos ou por sua, ou sem sua
vontade.29
Aqueles que ficaram no litoral, ou aqueles que retornam ao sertão, são vítimas dos
flagelos da seca desde os tempos mais remotos da colonização do Brasil. O “problema” da
seca não é uma coisa atual, tem caráter histórico. Durante todos os séculos do período colonial
houve notas, apontamentos e crônicas sobre a seca no interior de Pernambuco.
Sem contar também a dura luta da coroa portuguesa no intuito de povoar as regiões
mais interioranas dos seus territórios d’além mar. Com as Entradas, o objetivo do Rei de
Portugal era encontrar ouro e metais preciosos, mas também povoar o interior da colônia.
Muitas Entradas obtiveram êxito naquilo que tange à conquista de novos territórios, todavia
aquela que nos anos 1603-1605 se dirigia ao que corresponde atualmente o território do
estado do Ceará, chefiada por Pero Coelho, não teve êxito.30 Muitos crêem que o explorador
não obteve êxito por causa da terrível seca que grassava na região, outros acreditam que é por
28
VILLA, Marco Antonio. Vida e morte no sertão: História das secas no Nordeste nos séculos XIX e XX. São
Paulo: Ática, 2000. p. 17.
29
CARDIM, Fernão. Tratados da Terra e Gente do Brasil. Rio de Janeiro: Editores J. Leite e Cia, 1925. p. 331.
30
As Entradas eram expedições financiadas pela Coroa portuguesa com o objetivo de, enfim, reconhecer as
posses do rei de Portugal e do Brasil, encontrar especiarias, ouro e pedras preciosas.
28
causa da falta de recursos, como comida e água, “no entanto, a nota marcante do trágico
descolamento foi a fome e a sede, através dos sertões jaguaribanos e riograndenses do norte, o
que significa esterilidade e abandono”. 31
Ao todo houve, segundo as crônicas de viajantes dos seiscentos, “seis grandes secas:
1603, 1605-1607, 1614, 1645, 1652 e 1692, que afetaram principalmente a Paraíba, o Rio
Grande do Norte e o Ceará”.32 Fato interessante é que no decorrer dos anos 1600 existem
poucas passagens escritas sobre a seca. Isso se deve ao fato de que havia pequena presença de
homens brancos no interior do sertão, diferentemente daquilo que aconteceu no século XVIII.
No alvorecer dos setecentos, há novamente a presença de um aspecto muito ligado à seca, o
ato de migrar. Como ressaltado pelo padre Cardim, os indígenas realizavam pequenos
processos de migração durante os grandes períodos de seca, sendo que viviam em áreas com
grande presença de água. Porém, com a crescente ocupação do interior, os indígenas entraram
em grande confronto com os portugueses, as confederações indígenas disputam as terras com
os soldados do senhor da Casa da Torre.
É interessante o fato de que os conflitos, a expulsão dos indígenas de suas terras e a
ocupação dessas terras pelos homens brancos, dê-se também na relação violenta ocorrida
durante os períodos de seca dos setecentos. Nas sete grandes secas ocorridas no século
XVIII33, muitas delas correspondem exatamente ao momento de maior ataque de indígenas às
possessões dos colonizadores, “examinando-se o quadro das secas que devastaram os sertões
do Nordeste naqueles tempos, verificamos a incidência das mesmas, nos períodos de maior
intensidade de predações dos índios”,34 fato que pode demonstrar mais uma ocorrência da
obrigatoriedade da migração impulsionada pela seca, que além de impulsionar os indígenas à
migração, os fez também caçar o gado português nas pastagens, gerando assim cada vez mais
conflitos.
É triste constatar que a seca, além de ter como sua decorrência a fome e morte, gerou
ainda mais conflitos, sendo que, muitas vezes, levou as pessoas a deixar de lado sua
dignidade, para não penar até a morte. Mais uma vez, devido à tomada das melhores terras
indígenas pelos portugueses, os primeiros habitantes dessa terra tem de recorrer à ajuda do
homem branco para sua sobrevivência. Mesmo quando “as sucessivas secas enfraqueceram o
31
ALVES, Joaquim. História das secas (século XVII a XIX). Acervo virtual Oswaldo Lamartine de Faria. p. 5.
Disponível em: <http://www.colecaomossoroense.org.br/pics/Historia_das_secas.pdf>. Acesso em: 04 maio
2011.
32
VILLA (2000), op. cit., p. 18.
33
Segundo o autor, existiram as secas de: 1710-1711, 1721, 1723-1727, 1736-1737, 1745-1746, 1777-1778 e
1791-1793. VILLA (2000), op. cit., p. 19.
34
ALVES, op. cit., p. 24.
29
processo de ocupação do sertão (...). Diversas vezes, nos períodos mais intensos de seca,
comunidades indígenas foram obrigadas a se vender para os conquistadores em troca
simplesmente de comida”.35 Abandonando o modo de vida que tanto prezavam, destruídos
por anos de estiagem, como eram recorrentes no sertão para o qual foram forçados à migrar.
Das sete secas do século XVIII, a mais violenta foi a dos anos 1791 e 1793,
Os relatos são da província do Ceará, porém podem ser estendidos pelos diversos
locais do Nordeste. A família migra com a esperança de fugir da estiagem, e muitas vezes não
35
VILLA (2000), op. cit., p. 21.
36
VILLA (2000), op. cit., p. 20.
37
PAULET, Antonio José Silva; VIEIRA Jr., Antonio Otaviano. Descrição geográfica da capitania do Ceará.
Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza, 1898, tomo XII, p. 10.
38
VIEIRA Jr., Antonio Otaviano Vieira. O Açoite da Seca: Família e Migração no Ceará (1780-1850). Trabalho
apresentado no XIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais, realizado em Ouro Preto,
Minas Gerais, Brasil de 4 a 8 de novembro de 2002. p. 15.
30
volta mais. Ocorreram casos de empregados de grandes fazendas fugirem, e o dono ter de
arcar com sua manutenção, tendo de acudir os animais nas fazendas do sertão e como eles
acabava morrendo de fome e sede.39 A seca não escolhia classe social, quem mais tinha,
melhor poderia suportar as dificuldades, porém em muitas vezes acabava tendo de pedir
socorro como os que pouco tinham.
As grandes estiagens dos oitocentos são as mais documentadas dentre todas que
ocorreram entre os séculos XVI e XIX. Desde a primeira seca do pós-proclamação da
independência, em 1824-1825, até a do alvorecer dos novecentos 1898-1902, passando pela
grande seca dos “três setes” de 1877 até 1879 (77-79) e dos “dois oitos” no ano de 1888. Não
era somente o Brasil que sofria com as grandes secas, em geral toda a região de clima tropical
teve grande estiagem no século XIX, principalmente na década de 70.
39
“Um dos casos notórios foi o do fazendeiro chamado Francisco Nobre de Almeida, que morava em Recife.
Este foi pessoalmente com sua família combater as conseqüências da seca (1791-3) em suas fazendas no Ceará e
Piauí: morreu de fome ele e parte de seus familiares”. VIEIRA Jr., op. cit., p. 9.
40
DAVIS, Mike. Holocaustos Coloniais: Clima, fome e imperialismo na formação do Terceiro Mundo. Rio de
Janeiro: Record, 2002. p. 16.
41
DAVIS, op. cit., p. 17.
31
se instalou na região, porém através deles é possível imaginar monumental desafio às classes
governantes.
O Brasil era governado então pelo imperador D. Pedro II, e, exatamente no início da
grande seca, estava vossa majestade viajando à Europa. No alvorecer do ano de 1877,
pouquíssimas chuvas caíram no território da região Nordeste, porém era de costume do
sertanejo esperar até o dia de São José para iniciar qualquer manobra migratória. Quando se
passaram os meses de março e abril e as notícias começaram a sair da região chegando até a
capital do império, a situação já estava calamitosa.42
Quando já não existiam muitas esperanças de que pudesse cair a água das monções
daquele ano, as estradas começaram a se encher de espectros feitos de homens, mulheres e
crianças que vagavam sem saber para onde. O caminho muitas vezes já era conhecido de
outros tempos, mas o destino nem sempre era sabido. A primeira parada em busca de ajuda
seria em algum polo comercial, mas, se não caíssem as chuvas, dali partiriam novamente a pé
para outras paragens.
Não havia qualquer tipo de política para manter as pessoas em suas terras, para evitar
a migração, não havia apoio nenhum de governo, seja distrital, provincial ou imperial, a única
solução encontrada pelos sertanejos em todas as secas da história fora a migração em busca de
auxílio. Os resultados eram cidades lotadas e cadáveres pelas estradas. Os ajuntamentos
urbanos vão provocar sérios problemas às classes dominantes e aos governantes, além de
milhares de desempregados esperando qualquer tipo de auxílio estatal. A falta de comida e
água, ou a péssima qualidade das mesmas, disseminava entre os espaços urbanos casos de
doenças e de criminalidade.
Doenças como cólera, febre amarela, beribéri e varíola, assolaram estradas e cidades.
As enfermidades não atacavam somente os migrantes, aqueles que tinham melhores condições
de vida também foram contaminados, mostrando aos governantes e às classes dominantes que
42
VILLA (2000), op. cit., p. 44.
43
VILLA (2000), op. cit., p. 47.
32
alguma coisa deveria ser feita rapidamente. As cidades tinham seus números de habitantes
dobrados, quando não triplicados, havendo casos extraordinários em que, devido às
migrações, a população de algumas cidades aumentara mais de 1000%!44 Deixando claro que
essas cidades não possuíam nenhuma infraestrutura para abrigar tal número de flagelados.
A instauração da criminalidade se dá no contexto da falta de auxílio proveniente dos
governos, sem contar as ações corruptas dos homens responsáveis pela distribuição dessa
pequena ajuda. Foi lamentavelmente comum a existência de relatos denunciando os
distribuidores de rações diárias por desvio de alimentos. Houve inúmeros casos como os de
funcionários públicos, padres, políticos, donos de padarias, terem seus nomes computados nas
listas de necessitados. Escândalos noticiados pelos jornais, mas que acabaram sem
investigações mais profundas ou punições. Muitas vezes o alimento destinado aos flagelados
era vendido nos mercados das maiores cidades.
Sobre os acontecimentos de 1877-1879, o historiador Marco Antonio Villa definiu
muito bem em sua análise sobre a história das secas, “a sociedade acostumou-se com o
sórdido espetáculo. Como numa guerra, a seca eliminou os mecanismos sociais de controle e
repressão e estabeleceu novas regras”.45 Entretanto as abomináveis ações de violência contra
os homens e as mulheres atingidos pelas secas não param em desvios e corrupções. Os
horrores vão mais além.
Os inúmeros atos de prostituição em troca de alimento ou mesmo água não são
restritos a um determinado local, foram disseminados por todo o nordeste durante a estiagem.
Mulheres, jovens ou velhas e até crianças, se prostituiam por comida. Muitas vezes pais
tornaram-se aliciadores de seus filhos menores. Nas cidades dos refugiados “era rotineiro
encontrar meninas de 12, 13 anos prostituindo-se pelas ruas em troca de alimentos”. Vale
ressaltar que a migração feita pelos retirantes era, na esmagadora maioria dos casos, em
família, sendo muito comum que essas fossem desfeitas por mortes ou quando cada membro
tomava um caminho diferente para lutar por sua sobrevivência. Houve casos como os de
“mulheres, abandonadas pelos seus maridos, [que] não encontravam outra forma para
alimentar seus filhos a não ser a venda do próprio corpo em troca de comida”. 46
Isso quando não eram os pais que fugiam ou morriam deixando inúmeras crianças
órfãs circulando pelas cidades em busca de alimento. Segundo Villa, a descrição que José do
44
Na cidade de Fortaleza, estimasse em setembro de 1878 uma população de 130 mil habitantes, sendo que
desses 110 mil estavam fugindo da seca. Aracati, no litoral do Ceará, possuía uma população regular, anterior à
seca, de 5 mil habitantes, e no fim de 1878 recebia mais de 60 mil retirantes. VILLA (2000), op. cit., p. 70.
45
VILLA (2000), op. cit., p. 67.
46
VILLA (2000), op. cit., p. 66-67.
33
Patrocínio faz destas cenas “é suficiente para expor o quadro desolador: ‘nuas ou seminuas,
com rostos encaveirados (...) vagam sozinhas ou em grupos tossindo a sua anemia e
invocando, com voz fraquíssima, o nome de Deus em socorro da orfandade’”. 47 Os estupros
foram outra forma de violência praticada contra as mulheres (crianças, adolescentes ou
adultas), e como se já não fosse sórdido o bastante, os atos eram cometidos pelos responsáveis
em dar auxílio aos desamparados, “pela imprensa foram denunciados diversos casos de jovens
defloradas pelos dirigentes das comissões de socorro, responsáveis pela distribuição dos
víveres (...). Em Quixadá, Ceará, o acusado não era um cidadão comum, mas o pároco da
cidade, o padre João Scaligero”.48
Talvez o ato mais vil praticado contra os retirantes fosse a fome. Ela poderia levar ao
desespero, e quando as ações como roubo, prostituição, não eram suficientes para conseguir o
sustento, ou por haver medo das ações repressoras, os flagelados recorriam a atos que iriam
certamente contra o modo de vida “cristão” levado no nordeste. Existiram durante os três anos
de seca, documentados pelos jornais e pela polícia, casos de canibalismo; “diversos casos de
antropofagia foram revelados pela imprensa e acabaram por fazer parte da literatura sobre as
secas”.49 Nos mais diferentes lugares, “na Paraíba segundo [o jornal] O Publicador, de 24 de
abril de 1878, Dionísia dos Anjos, uma retirante no mercado da cidade de Pombal, encontrou
Maria, de apenas 5 anos de idade. Levou-a para casa, decapitou-a e comeu a carne da
menina”. No Ceará, o farmacêutico e cronista da seca “Rodolfo Teófilo relatou vários casos:
em um deles o pai matou o filho para comê-lo, em outro, um retirante foi encontrado numa
gruta comendo restos de carniça humana”. Ainda no Ceará, na cidade de Canindé, “Joaquim
Punaré, foi preso após ter comido uma criança com mel de Abelha”.
47
VILLA (2000), op. cit., p. 68.
48
VILLA (2000), op. cit., p. 65.
49
Marco Antonio Villa usa em seu livro Vida e Morte no Serão, na página 68, a definição para o ato de comer o
seu semelhante, como antropofagia, entretanto “quando relacionadas a rituais sociais, coletivos, estas práticas
são geralmente denominadas de antropofagia, enquanto que o termo canibalismo é usado mais freqüentemente,
com relação ao ato de comer a carne para saciar a fome ou uma vontade, ou associado a um ato arbitrário, uma
crueldade” (p.1). Como no caso dos retirantes da seca não se trata de nenhum ritual de incorporação do outro,
mas sim de um ato de desespero provocado pela fome, isso justifica o uso do termo canibalismo nesse contexto.
“Na sociedade ocidental as circunstâncias em que o canibalismo ocorre são sempre excepcionais e, além do
medo e do horror, não carregam nenhum outro significado para a coletividade, pois, mesmo envolvendo um
pequeno grupo, são situações consideradas antissociais. Elas podem ser divididas em, pelo menos, três
categorias: a da fome, a de tática do medo, e as práticas individuais geralmente associadas ao crime e à loucura”
(p.4). CARVALHO, E. K. Antropofagia e canibalismo: do consumo à sociabilidade. In: Anais - XIX Encontro
Regional de História: Poder, violência e exclusão, 2008, São Paulo: Anpuh/SP, 2008. p. 4.
34
noticiou que tinha sido absolvida pelo júri de Souza, na Paraíba, “Antonia Maria da
Conceição, que matou e comeu duas crianças. [...] o júri fundamentou a sua
sentença, reconhecendo que a criminosa fora arrastada pelo medo irresistível de
morrer”. No dia seguinte, Joaquim Nabuco, indignado, apresentou um projeto à
Câmara propondo a suspensão do parágrafo terceiro do antigo 10 do Código
Criminal, na parte relativa ao medo irresistível, que tinha sido tomado como base
para a decisão do Júri.50
50
VILLA (2000), op. cit., p. 68- 69.
51
VILLA (2000), op. cit., p. 63.
52
VILLA (2000), op. cit., p. 63.
35
Quando a chuva tão requisitada veio molhar os campos secos e rachados dos sertões
nordestinos, no ano de 1879, o grande número de mortos e de emigrados, já havia abalado os
moldes estruturais da economia local. Enquanto os retirantes voltavam as suas casas sem
dinheiro e muito menos sementes para plantar, as discussões em torno da seca iam se
extinguindo na capital do Império. Nenhuma ação de grande escala foi planejada para esperar
pelo próximo infortúnio.
Para o sertanejo não restavam muitas saídas. Permanecer onde vivia, apesar de todos
os pesares, era a alternativa preferencial. O amor à terra sempre marcou a sua vida.
Manter-se nela representava para aquele que nada tinha e mesmo para o pequeno
proprietário ter de submeter-se ao todo poderoso do local, geralmente um
latifundiário. A emigração acabou conduzindo milhares de nordestinos para outras
regiões do país. O Nordeste, principalmente devido à constância das secas, tornou-se
a região onde ocorreram os maiores movimentos demográficos, tanto internos, como
externos: milhares de nordestinos foram para a Amazônia; outros emigraram para
outras províncias da região menos afetadas pela seca, como o Maranhão e o Piauí,
ou áreas menos suscetíveis à escassez de chuvas, como o próprio litoral da região. 53
Restava àqueles que queriam se manter na região aceitar o poder dos grandes
coronéis, qual precisados de mão de obra, pois muitos, em um último esforço de salvar seu
investimento, haviam vendido seus escravos para o sul do Brasil. Os senhores das fazendas de
cana-de-açúcar e de algodão tiveram grandes perdas econômicas com as estiagens. Uma
explicação para esse empobrecimento da classe dominante é justificada pela inserção do país
e da região no mercado mundial.
Com a guerra civil estadunidense (1861-1865), as indústrias têxteis da Inglaterra
passam a comprar algodão produzido no Brasil, principalmente em São Paulo e na região
Nordeste. Após o fim da guerra na América do Norte, os ingleses deixam de comprar o
algodão brasileiro, “o resultado em toda parte foi intensificada competição e a queda abrupta
da renda agrícola. Os preços nos mercados mundiais de algodão, arroz, tabaco e açúcar
despencaram em muitas regiões para seu custo de produção, ou até menos”. 54 Levando a fraca
moeda nacional à instabilidade econômica. Sabendo-se que, no Brasil imperial, todos os
impostos e as taxas referentes à exportação dos produtos nacionais ficavam com as suas
respectivas províncias, as do Nordeste – devido à queda brusca do preço e da venda de
algodão e dos outros produtos – passavam por grandes dificuldades, ou então já se
encontravam falidas.
53
VILLA (2000), op. cit., p. 84-85.
54
DAVIS, op. cit., p. 75.
36
55
DAVIS, op. cit., p. 300.
56
DAVIS, op. cit., p. 391.
37
Os anseios das classes mais modestas foram podados em detrimento do auxilio aos
grandes latifundiários, que, devido aos problemas internacionais, perdiam grandes safras, ou
mesmo mão de obra para regiões com um desenvolvimento mais acelerado. O nordeste do
país é transformado em “região problema” pela nascente República café com leite, os
nordestinos mais bem colocados no universo político passam então a receber uma pequena
ajuda a título de propina para não atrapalharem o bom andamento dos assuntos do café. Como
anteriormente referenciado, a seca não maltrata somente o sertanejo simples, o homem do
campo, ela afeta também, em menor escala a classe dominante, e é ela que vai ser deposta
pelas oligarquias paulista e mineira de uma posição central nos governos subsequentes à
queda do império.
A fraca participação dos deputados nordestinos em tentar desenvolver a região
nordeste no pós-secas do século XIX, seria pautada na pequena representação da região na
economia nacional, mas principalmente pelas “ajudas” periódicas enviadas às grandes
oligarquias e aos antigos proprietários rurais. A corrupção prejudicou o Nordeste durante a
época de secas e depois durante as chuvas, momento em que a imprensa nacional esquecia o
que a região sofreu com a estiagem.
Foi através da imprensa que o Nordeste, e a sua classe dominante, vão despontar
como “problema” ao país. Circulavam nos diversos jornais do Brasil, até nas províncias mais
longínquas, como o caso do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, notas, ou mesmo artigos,
discutindo o “problema da seca”, durante as épocas de estiagem, pedindo o auxílio àqueles
brasileiros mais necessitados. E foi a partir dos jornais que vai dar-se,
57
DAVIS, op. cit., p. 394.
38
transformarão o “discurso da seca” numa das armas mais poderosas a serviço dessa
elite decadente.58
Esse “discurso da seca” é que vai movimentar no cenário nacional uma imagem de
Nordeste, é esse discurso que vai criar o que passa a ser chamada de “indústria da seca”. Que
nada mais é do que a sistemática organização das classes produtoras, ou ex-produtoras, mas
ainda presentes como dominantes no cenário regional, em troca de auxílios a título de ajuda
aos flagelados da seca.
Essa região, que se manteve durante anos como principal polo econômico do país,
colhendo os bons frutos da venda do algodão e do açúcar se viu, no apagar das luzes do século
XIX, tolhida de seu modelo de gestão tradicional, onde até mesmo as classes dominantes
tiveram de se apoiar em um subsídio nacional corruptivo para que esta classe dominante não
atrapalhasse as decisões dos governantes da nação.
Esse “discurso da seca” que tem na “grande seca” [de 1877-1879] sua condição de
possibilidade, vai sendo reelaborado, atualizado ao longo da história do Norte e do
Nordeste, cumprindo sempre um papel estratégico de explicar o real, criando-o, e
servindo de base para a sustentação de privilégios de uma elite que há muito deixou
de ser importante economicamente no país. Ele só se tornou possível com a
descoberta da seca como “problema”, com a sua entronização como questão sempre
a ser solucionada permanentemente reposta e que requer soluções diferenciadas
conforme os interesses dessa elite em cada momento. Enquanto a seca foi problema
para o mundo dos despossuídos, ela era uma senhora desconhecida, não merecia
mais que breves notas em pé de páginas de jornais, mas, quando chega ao mundo
dos proprietários, ela não só é percebida, como é transformada no “cavalo de
batalha” de uma elite necessitada de argumentos fortes, para continuar exigindo o
seu quinhão, na partilha dos benefícios econômicos e dos postos políticos em âmbito
nacional. Foi, pois, a seca um achado, uma invenção com a qual essa elite procurou
conquistar novamente seu espaço no plano nacional e, com isso, dispor das
condições necessárias para perpetuar a sua exploração e dominação secular, nessa
área do país. Seca, pois, invenção não apenas de palavras que calcinam, mas de
palavras que dominam.59
A grande importância dada à região nordeste durante os anos de império vai cedendo
espaço a um esquecimento gradativo das populações nordestinas, esquecimento que vinha à
tona durante os anos de seca e mergulhava no torpor dos anos chuvosos. Essa voluntária
amnésia sobre a região nordeste foi sendo cada vez mais responsável também pela
periferização da região em questão. Ao partir, a seca deixa desestruturada toda a economia
nordestina, a agricultura – de subsistência ou de exportação – falida e o comércio, precarizado
pela falta de investimentos nas comunidades e pela pauperização dos prováveis compradores.
58
ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz de. “Palavras que calcinam, palavras que dominam: a invenção da seca
do Nordeste”. Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUH/Marco Zero, vol. 15, nº 28, p. 117. 1995.
59
ALBUQUERQUE Jr. (1995), op. cit., p. 120.
39
Todos esses ingredientes misturados ao descaso pelo qual as classes dominantes tratavam os
sertanejos, rompendo as relações de patriarcalismo presentes no Brasil colônia possibilitavam
o surgimento do banditismo e dos movimentos messiânicos.
Ao nordeste foi reservado, pelas oligarquias republicanas, o lugar de subsistência, de
pobreza e de desvio de verbas, local de surgimento de homens santos ou fanáticos, como são
considerados Antônio Conselheiro e Padre Cícero, ou mesmo de heróis ou bandidos, como
Virgulino Lampião e os outros cangaceiros dos sertões nordestinos. O lugar marcado ao
Nordeste na política republicana foi o de espectador dos acontecimentos das regiões sulistas.
Participando como convidado nos momentos de combate aos chamados fanáticos e
imperialistas, como os moradores da destruída Canudos.
Mas o milenarismo no sertão também era uma estrutura social prática para dar conta
da instabilidade ambiental. Quando os padres e missionários estrangeiros fugiram do
sertão em brasa, na primavera de 1877, o antigo mestre-escola transformado em
beato Conselheiro e o padre ordenado Cícero ficaram para trás com seus rebanhos,
fazendo sermões sobre o apocalipse mas praticando enérgica auto-ajuda. O primeiro
ganhou reputação de santidade restaurando igrejas locais e cemitérios, enquanto o
segundo se tornou localmente famoso por assentar os famintos refugiados da seca
nas subdesenvolvidas mas férteis terras da Serra do Araripe.60
O homem livre pobre que não se submetia à humilhação diária dos trabalhos, nos
serviços públicos, em troca de rações ou pequenos salários, não abandonava a
região, descobrindo no banditismo, no cangaceirismo um meio de sobrevivência e
roubando os mais abastados. Durante a seca de 1877/79 é que se intensificou o
fenômeno do banditismo na região, passando a ser conhecido como cangaço. Surgiu
um grande número de bandos que atacavam as propriedades dos potentados locais e
retiravam destas o gado, dinheiro, jóias e até água para poderem sobreviver. Muitos
ao se encerrar a seca, após sentirem o gosto tentador da “liberdade” dos vínculos que
lhes atavam aos grandes proprietários, preferiam adotar o cangaço como
“profissão”.61
60
DAVIS, op. cit., p. 199.
61
ALBUQUERQUE Jr. (1995), op. cit., p. 115.
40
comuns às diversas secas enfrentadas pelas ações do Estado, serviram principalmente para
ocupar os retirantes com o mínimo de trabalho para um mínimo pagamento. 62 O serviço era
sempre em larga escala, e que, de preferência, empregasse um número muito alto de
migrantes das grandes cidades. O banditismo surgiu em alternativa à espera pelo auxílio, o
cangaço também virou sinônimo de roubos, mortes, mutilações, pilhagens, deflorações.
Inúmeros atos de violência praticados contra os pobres, que pouco tinham, e, por assim dizer,
pouca resistência também poderiam oferecer. Como o cangaço também encarava uma face de
justiceiros, muitas vezes, principalmente em oposição aos regimes mais violentos, os
cangaceiros foram encarados como Robin Hood’s do sertão nordestino. Os bandos de
cangaceiros sobreviveram até a década de 1930, quando foram perseguidos e exterminados
pelo governo de Getúlio Vargas.
Sertanejos, beatos, bandidos, coronéis, homens santos ou demoníacos, assim foram
sendo estabelecidas algumas figuras do imaginário nordestino, e, por extensão, brasileiro.
Fez-se do Nordeste um lugar de mundos diferenciados, o da “zona da mata”, próspero – lugar
do cultivo da cana-de-açúcar, das usinas, do capital estrangeiro – e o interior, lugar do sertão e
dos sertanejos – inóspito, seco, sem vida. Deste modo foram disseminados dois “nordestes”,
dois mundos distintos se espalharam pelo Brasil, seja pela imprensa, seja pelos livros e pelas
produções nordestinas, os nordestes apresentados foram confluindo e inventando um só. O
Nordeste do Brasil, lugar de seca, mas também de homens valentes e de mulheres prendadas,
lugar dos senhores de engenho, dos negros escravos que viveram nas senzalas, lugar de uma
unidade criada para parecer continuidade de um passado que de fato não existiu.
Entre os momentos mais difíceis para os nordestinos está a volta para casa. Durante a
época as secas, mesmo sofrendo com as atrocidades da estiagem e da falta de amparo
governamental, ainda havia alguma esperança de auxílio proveniente das entidades públicas.
Entretanto, na volta para casa, na ampla maioria dos casos, nada lhes era propiciado. Os
retirantes eram enxotados como animais, obrigados a voltar para o sertão sem ferramentas,
sem sementes e sem alimento para a viagem. Assim como chegaram, partem, com uma mão
na frente e outra atrás. Havia ocorrido deste modo nas secas do século XIX, e também nas
secas do início do século XX, seja aquela que termina no ano de 1902, ou então a seca de
62
Durante a seca de 1970 os retirantes foram contratados para varrer estradas! VILLA (2000), op. cit., p. VI.
41
1915. Contudo, nos anos que compreenderam a década de 1930, outra conjuntura política foi
encontrada, a “era Vargas”.
O governo de Vargas ficou marcado na História do Brasil de várias maneiras, pode-
se dizer que em muitos casos agiu como “pai dos pobres” e “mãe dos ricos”. Quando assume
o poder em 1930, imediatamente após fechar o congresso, promove uma série de mudanças
nas políticas nacionais, a queimada do café estocado nos armazéns é uma delas, em uma
tentativa de aumentar o preço da mercadoria provocando uma escassez no produto. Além do
mais, seu governo ficou marcado pela legislação trabalhista e social, que já no ano de 1930
produz efeitos marcantes na nascente indústria nacional, como a criação do Ministério do
Trabalho, Indústria e Comércio.
Essas leis e esses direitos não surtiram resultado, ou podemos dizer que tiveram
pouquíssimos efeitos nas sociedades sertanejas nordestinas, por exemplo. O homem do campo
que vivia da agricultura de sobrevivência, ou mesmo era funcionário, ou apadrinhado, de
algum grande coronel, não viu nenhum dos direitos assegurados aos trabalhadores urbanos
serem empregados no seu caso. Os direitos eram direcionados aos trabalhadores urbano-
63
GOMES, Ângela de Castro. A Invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro: FGV, 2005. p. 164.
64
FERRARI, Monia de Melo A migração nordestina para São Paulo no segundo governo Vargas (1952-1954) –
seca e desigualdades regionais. 2005. 160 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Centro de Educação
em Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2005. p. 99.
42
industriais sindicalizados e àqueles que estavam desempregados, para que nas cidades não se
instaurasse um clima de lutas e reivindicações como já ocorrido nas grandes greves dos anos
1910 e 1920. Os trabalhadores do campo ficam desassistidos pelo governo Vargas, que, nas
inúmeras propagandas promovidas para exaltação de sua figura, era reconhecido como “pai
dos pobres”, daqueles “pobres” moradores dos nascentes centros urbanos e industriais.
Mesmo Getúlio Vargas possuindo muitos partidários oriundos da região Nordeste,
que sustentaram a sua candidatura à presidência, apoiaram-no no golpe militar, estavam
presentes em seu governo, as ações de combate à seca não foram muito diferentes das
empreendidas pelos governos anteriores, seja republicano ou monárquico. Ao criticar o
IFOCS – inspetoria federal de obras contra a seca, durante a sua mensagem presidencial do
ano de 1933, as suas ações não foram de encontro a suas palavras.
Como departamento de ação construtora nos combates aos flagelos periódicos das
secas do Nordeste, a Inspetoria de Secas tornara-se quase inoperante, fundida à
rotina burocrática a às conveniências dissolventes da política oligárquica.
Esterilizava-se, há muito, em pequenas obras dispersas, por falta, sobretudo, de um
plano de conjunto, numa eterna sangria do erário público, sem nenhuma
possibilidade de alcançar a solução definitiva do problema. 65
65
Mensagem presidencial de 1933. In.: VILLA (2000), op. cit., p. 159-160.
43
Prato cheio para se encontrar um culpado, que, através da imprensa, passa a ser o ex-
presidente Epitácio Pessoa, que recebeu acusações de não ter gasto com qualidade o dinheiro
público destinado ao IFOCS.66
Durante os quinze anos de governo Vargas o país teve de combater duas grandes
estiagens, em 1932 e 1942. Situações distintas, dois momentos históricos importantes para o
Brasil. Contudo, a importância não se deu pela ocorrência de novas secas, mas por outros
motivos políticos concebidos como de maior importância do que a seca nordestina, “nesses
dois momentos distintos, as ações emergenciais diferiram em modo e intensidade, conforme
as circunstâncias do contexto histórico nacional e internacional”. 67
Os primeiros anos da década de 1930 são problemáticos para o então presidente,
mesmo tendo relativa paz nos anos de 1930 e 1931, mas não foi o que aconteceu no ano
seguinte, pela sua demora em promulgar uma nova constituição para o país, o chefe da nação
encontrou resistência em São Paulo, principalmente. O denominado estado perdeu sua
hegemonia nos discursos e nas decisões do país com o golpe de 30, a reação até demora a
acontecer, mas vem em 1932, com a Revolução Constitucionalista. Caracterizado pelo levante
dos paulistas frente à intensa interferência do governo central nos assuntos da unidade
federativa. De certa maneira, Getúlio Vargas não deixava com que o estado se organizasse
autonomamente.
É durante esses anos conturbados que no Nordeste do Brasil ocorreu mais uma vez o
fenômeno natural das estiagens, a seca da região fez com que muitos problemas dos anos
imperiais voltassem à tona, tomassem fôlego ante a falta de planejamento e de interesse, e por
consequência afetassem seriamente as populações menos providas dos sertões nordestinos.
As estiagens promovidas por mudanças climáticas no nordeste do país trouxeram,
mais uma vez, durante a década de 1930, certo terror para as regiões sertanejas. Como
sempre, desde as primeiras secas documentadas, dois pontos foram recorrentes: o sofrimento,
principalmente dos sertanejos despossuídos, e o despreparo de qualquer órgão público de
combate, ou auxílio, à seca e aos flagelados.
66
VILLA (2000), op. cit., p. 148-149.
67
NEVES, Frederico de Castro. Getúlio e a seca: políticas emergenciais na era Vargas. Revista brasileira de
História. São Paulo: ANPUH. v. 21, n. 40, Jan – Jun, 2001. p. 108.
44
terríveis efeitos! Foi assim, entretanto, que se explicou à falta de projetos de obras e
os recursos em matérias indispensáveis para entrar em ação no tempo oportuno. 68
De fato o governo mais uma vez estivera “atrás” dos acontecimentos, não
conseguindo antevê-los em tempo hábil para qualquer ação preventiva, mais uma vez os
açudes secaram facilmente, deixando milhares à míngua. Isso sem contar que a maioria dos
açudes construídos pelo IOCS estavam nas mãos de particulares, os açudes públicos eram
sempre os primeiros a secar, e mais uma vez o nordeste se punha em marcha! À direção do
litoral, guiados pelas estradas construídas em outros momentos de seca, é irônico o fato de
que em outras estiagens, para manter os retirantes afastados das cidades grandes, os levavam à
construção de estradas, de ferro e de rodagem, em locais mais distantes. Na seca de 1932 e
subsequentes, essas mesmas estradas levaram às cidades grande número de migrantes.
A situação da seca de 1932 foi aterradora, como as que a antecederam. Assaltos,
miséria, fome, sede, doenças, um número incontável de mortes e de atrocidades cometidas por
quem deveria amparar essas almas que vagavam pelo sertão em busca de ajuda. Houve
corrupção, despreparo e esquecimento. Crianças deixadas nas beiras de estradas agonizantes,
homens e mulheres caindo pelo caminho, mortos de sede, de fome, de inanição.
As ações governamentais, em um primeiro momento, foram de envio de verbas para
que os interventores pudessem tratar da situação sem o envolvimento do governo central,
pois, segundo os meteorologistas da capital, previam grandes precipitações e até mesmo
enchentes na região. Quando a chuva não veio, o governo central teve de tomar as rédeas das
ações. Em primeiro lugar, pela incapacidade dos interventores de tomar decisões, muitas
vezes a figura nomeada para o cargo por Vargas não estava em contato com a realidade local,
e, em outras tantas, sua estada na cadeira de governador das províncias era muito curta.69
Quando da centralização das ações no governo federal e na figura do ministro José
Américo, as coisas começaram a ser traçadas com um plano único para toda a região. Devido
ao estado ditatorial pelo qual estava passando o país os nomes dos interventores variavam
muito, e o ministro José Américo, além de ser da região já havia enfrentado a seca,
“teoricamente”, em seu livro A Paraíba e seus problemas, de 1927. Para ver a real situação
em que se encontrava a sua região natal, o ministro viaja ao lócus do “problema”, excursiona
68
“Isso obrigou, muito a contra gosto, o Ministro a mandar abrir “Campos de Concentração” em Fortaleza, Patu,
Quixeramobim, Crato (Buriti), Cariús e Ipu.” SOBRINHO Thomaz Pompeu. História das secas (Século XX).
Acervo virtual Oswaldo Lamartine de Faria. p. 44. Disponível em: <http://www.colecaomossoroense.org.br/
acervo/historia_das_secas_xx.pdf> Acesso em: 04 maio 2011.
69
VILLA (2000), op. cit., p. 145.
45
Como problema natural, a seca não tem como ser sanada. Não havia, à época e muito
menos atualmente, noções e grandes engenhocas para sanar o tempo, fazer chover quando se
deve, e dar sol nos momentos necessários. O fato da seca ser um fenômeno climático tira
muita responsabilidade dos governantes e das classes dominantes. Mas ao mesmo tempo que
se fala de um problema ambiental, a seca também é uma questão social. E aí sim, governantes
e coronéis do nordeste tem uma grande parcela de culpa na pauperização dos sertanejos. A
inserção de uma sociedade de subsistência no mercado internacional acelerou o grande
problema da falta de recursos para as ações de auxílio e investimentos visando a combater os
problemas acarretados pelas estiagens frequentes nos sertões nordestinos.
E nos idos de 1930, a situação não foi diferente do visto até então. Os investimentos
vindos do governo central, mesmo mais organizados e comandados de um único ponto, ainda
assim eram atrasados em relação aos retirantes. Milhares já haviam saído de suas casas, outros
milhares estavam no caminho, perecendo pela falta de víveres, água e comida, tão abundantes
em outras regiões valiam seu peso em ouro durante a seca. E para não tornar o problema mais
sério, o governo central em nome do ministro José Américo, traça um plano de ações a ser
implementado nas áreas sofridas com o fenômeno.
Como ponto inicial, uma política voltada ao mercado como plano traçado pelo
“Governo Provisório [que] usava toda a sua autoridade, advinda da situação discricionária
daquele momento, para intervir nas relações de mercado e regulamentar as atividades que
pudessem alterar a ordem pública, gerando a insatisfação popular pelo aumento dos preços”,
70
O ministro teve sérios problemas com seu avião, que caiu no dia 26 de abril de 1932. Houve muitas mortes, e,
por grande sorte, o ministro sobreviveu no mar, sem saber nadar e sem enxergar muito bem, pois era míope e
perdera seus óculos na queda. VILLA (2000), op. cit., p. 149.
71
NEVES (2001), op. cit., p. 108-109.
46
72
NEVES (2001), op. cit., p. 112.
73
VILLA (2000), op. cit., p. 151.
47
milhão de pessoas. Nas obras sob responsabilidade do IFOCS morreram nesses anos
22.616 pessoas, das quais 14.738 eram crianças.74
Dessa oligarquia [paulista] partiu, em 1932, a mais séria tentativa de reação contra
os vencedores de 1930. Tendo conseguido unir-se internamente, em boa parte já
como reação á interferência do Governo federal, aliou-se a outras dissidências
regionais e ao setor militar preocupado com a manutenção da hierarquia e da
disciplina. A Revolta de 1932 pedia a volta ao regime liberal, a restauração do
sistema constitucional, do federalismo, da disciplina militar. A vitória dos revoltosos
era altamente provável, só não acontecendo pela retirada, no último momento, de
apoios prometidos, sobretudo o do Rio Grande do Sul. Dentro do Exército, a
simpatia pelos constitucionalistas era grande, o mesmo acontecendo na Marinha. 75
A oligarquia paulista em conflito com o governo central poria em risco toda a ação de
combate à seca que estava sendo realizada no Nordeste do país, de maneira a preocupar as
oligarquias locais. Fato que desagradava em grande parte a imprensa nordestina. Porém, com
o centro do país em guerra, sobrava espaço para uma renegociação da participação política
das forças nordestinas no movimento revolucionário de 1930. E um posicionamento contra os
74
VILLA (2000), op. cit., p. 157-158.
75
CARVALHO, José Murilo. Vargas e os militares: Aprendiz de feiticeiro. In: D'ARAUJO, Maria Celina (org).
As instituições brasileiras da Era Vargas. Rio de Janeiro: Ed. UERJ; Ed. Fundação Getulio Vargas, 1999. p. 67.
48
paulistas, “garantiria para o ‘Norte’ uma posição favorável no jogo de forças políticas a nível
nacional, já que a vitória governista ameaçaria, [...] o predomínio paulista sobre a política e a
economia nacionais, considerado pelas elites locais como o principal fator da sua
decadência”.76
A seca que se estendia concomitante aos conflitos não foi o alvo das atenções do
governo nessa época, contudo, o governo não poderia deixar de lado as necessidades da
oligarquia nordestina, correndo sérios riscos de ganhar novas desavenças. Pelo contrário, as
classes dominantes do Nordeste tornaram-se ferrenhos aliados da política varguista, traçando
até mesmo, em meio aos desabrigados e famintos atingidos em cheio pela seca, uma
campanha de arregimentação de combatentes voluntários para compor as fileiras do exército
varguista.
Para os “voluntários”, provavelmente, não haveria muitas outras saídas, ficavam nos
seus estados e tentavam ganhar algo do governo – emprego, comida e água – ou buscavam a
boa sorte nos estados do Sul, como combatentes pró-Vargas – colocando suas vidas em risco
em prováveis confrontos armados. Todavia, teriam comida e água para seu sustento, e, quem
sabe, algum soldo para preencher os bolsos vazios. A morte já rondava as vidas no nordeste,
era mais que comum ver corpos no meio das estradas, o óbito os estaria rondando no nordeste
ou nos campos de batalha do sul.
O envio de tropas ao sul para combate na Revolução Constitucionalista de 1932 foi
mais uma ação para evitar as aglomerações como ocorrido na seca de 1877-79, novamente
muitas cidades tiveram suas populações regulares multiplicadas. As classes mais abastadas
reclamaram muito na época, pelo medo disseminado através das invasões e pelo incômodo
dos pedintes. No intuito de evitar novas surpresas como essas, foi organizado um grande
“programa de criação de campos de concentração, em que os retirantes fossem induzidos a
entrar e proibidos de sair, foi implementado com total apoio da Interventoria Federal no
76
NEVES (2001), op. cit., p. 111.
77
VILLA (2000), op. cit., p.152.
49
78
NEVES (2001), op. cit., p. 109.
79
Alguns campos em 1932 chegaram a contar com mais de 60 mil habitantes.
80
NEVES, Frederico de Castro. Curral dos Bárbaros: os Campos de Concentração no Ceará (1915 e 1932).
Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUH. v. 15, n. 29, 1995. p. 100.
81
NEVES (1995), op. cit., p. 104-105.
50
Para barrar a marcha dos retirantes rumo a Fortaleza e outras cidades do Estado,
foram erguidos sete “campos de concentração” [...]. Eram locais onde grande parte
dos retirantes foi recolhida, a fim de receber do governo comida e assistência
médica. Dali não podiam sair sem a autorização dos inspetores. Havia guardas
vigiando constantemente o movimento dos concentrados. O nome oficial desses
espaços de isolamento era campo de concentração, mas os retirantes logo batizaram
o local ao seu próprio modo. Chamavam-no de “curral do governo”.83
Desta maneira, foram organizados sete campos somente no estado do Ceará, Octávio
Bonfim e Urubú nas proximidades de Fortaleza, Quixeramobim, Cairús e o de Burity,
relativamente maior do que os outros, nas proximidades de Crato e Juazeiro do Norte, Ipú nas
proximidades de Sobral, devido ao prolongamento da estrada de ferro de mesmo nome e Patú
em Senador Pompeu. Ao todo, os campos mantiveram encarcerados mais de 100 mil
flagelados, segundo informações do próprio governo central. Alguns existiram por mais de
um ano, outros duraram poucos meses, isso demonstra a inviabilidade dos campos, que
deveriam ser muito mais do que aglomerações de pessoas à espera do trabalho nas frentes
públicas.
A princípio, o encaminhamento aos campos de trabalho seria em primeira instância o
foco principal dos currais, isso tudo “para que fosse evitado ‘dentro do possível o socorro
diréto, a esmola desmoralizadôra’. [...] As obras se encaminhavam sem a preocupação
primeira com a qualidade do serviço realizado ou com a racionalidade lógica, mas apenas
‘ocupando’ os homens”84, que não tinham muito a fazer nas condições em que se
encontravam. Muitas vezes o serviço a ser realizado não possuía nenhum planejamento, nem
82
NEVES (1995), op. cit., p. 108.
83
RIOS, Kênia Sousa. A cidade cercada: festa e isolamento na seca de 1932. In.: NEVES, Frederico de Castro;
SOUZA, Simone (Org.) Seca. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2002. p. 122.
84
NEVES (1995), op. cit., p. 113.
51
85
NEVES (1995), op. cit., p. 115.
86
NEVES, Frederico de Castro. A seca e o homem: Políticas anti-migratórias no Ceará. Travessia. São Paulo:
CEM. Ano IX, n. 25, Maio-Agosto. 1996, p. 21.
52
87
Polígono das secas é a região de abrangência das secas, tem este nome pelo formato poligonal e foi definida
pela lei 175/36 e revisada pela lei 1348/51. Cf.: YOSHIKAWA Daniella Parra Pedroso. O que se entende por
polígono das secas. JusBrasil. Disponível em: < http://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/1013964/o-que-se-entende-
por-poligono-das-secas> Acesso em: 20 abr. 2012.
88
VILLA (2000), op. cit., p.154.
89
GRAHAM, Douglas H.; HOLLANDA FILHO, Sergio Buarque de. Migrações internas no Brasil: 1872-1970.
São Paulo: IPE-USP, 1984. p. 37.
53
baldeados para outro navio rumo ao Rio e o sudeste famintos de mão-de-obra”,90 segundo o
historiador Marco Antonio Villa, durante essa época, na seca de 1877-79, houve por parte do
jornal
Além disso, o mesmo autor salienta não haver grandes levas de retirantes enviados
ao sudeste por ações governamentais, “a migração para o Sul só passou a representar um
movimento demográfico expressivo no século XX, e no caso de São Paulo somente a partir
dos anos 1930”,92 sendo então nos anos 1930, precisamente durante a seca de 1932, que o
ministro José Américo, nas proximidades do mês de abril daquele ano, antes de sua viagem à
região, sugeriu uma proposta de migração para as fazendas de café da região Sudeste,
“subsidiada pela União”, tendo como principal destino São Paulo.
colonizadores e africanos trazidos à força, igualmente composto pelos povos que imigraram
para cá no final do século XIX. Levas e levas de trabalhadores italianos, alemães, espanhóis,
árabes, e de outros tantos locais de partida, vieram ao Brasil, principalmente para os estados
do Sul, São Paulo e Rio de Janeiro, tentando uma nova e melhor vida. Ao mesmo tempo em
que a migração surge como grande força, acontecia no Nordeste a seca de 1877-1879,
milhares de retirantes flagelados da seca apinhavam-se nas cidades fugindo das inexistentes
condições de vida nos sertões. E mesmo com um grande excedente populacional na região
nordeste, o governo central não teve nenhuma iniciativa para remanejar esse pessoal e trazê-
los para o Sul. Ao invés disso, aos nordestinos foi reservada a vida na floresta, com a qual eles
não estavam nenhum pouco ambientados.
Esse apontamento mostra o grande preconceito enfrentado pelas populações
nacionais em épocas de ideias eugênicas e de “branqueamento”, que seriam, segundo alguns
cientistas as causas para o atraso nacional. “A República brasileira, além disso, talvez tenha
sido o primeiro governo de qualquer parte do mundo explicitamente comprometido em grande
escala com a ‘eugenia positiva’” aonde as classes dirigentes foram “obcecadas com a
‘desafricanização’ e ‘embranquecimento’ do Brasil”.94 Essa política nacional trouxe milhares
de imigrantes europeus, como alemães, italianos, portugueses e também de japoneses ao país,
em mais ou menos meio século.
Em todas as secas até a década de 1930, e devido, principalmente à força dos
políticos paulistas, mineiros e fluminense, os flagelados da seca continuavam nos mesmo
trajetos, fazendo suas migrações sazonais, em épocas de chuva para o interior, em épocas de
grande estiagem para cidades maiores e litorâneas. As políticas públicas existentes à época
visavam, principalmente, a uma oposição à migração dos nordestinos para o sul, as frentes de
trabalho, os campos de concentração, as levas para o Norte, enfim, as ações políticas durante
as secas, mesmo que muitas vezes não obtivessem total sucesso, não quer dizer que não o
obtiveram em parte.
Foram construídos quilômetros e quilômetros de estradas de ferro e de rodagem,
assim como os açudes e poços. O que traz à tona um fato irônico, as estradas de ferro e de
rodagem criadas pelos sucessivos governos, até mesmo o de Vargas, o qual José Américo
vangloria-se dos quase 2.500 quilômetros de estradas rodoviárias, servirão também para levar
grandiosos números de migrantes nordestinos ao Sul do país.95
94
DAVIS, op. cit., p. 395.
95
ALMEIDA, José Américo. As secas do Nordeste. [s/l]: Fundação Casa de José Américo e Fundação
Guimarães Duque, 1981. p. 17.
55
96
VILLA (2000), op. cit., p. 155-156.
97
CORTÊS, Geraldo Menezes. Migração e colonização no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1958. p. 63.
56
de suas referências básicas de trabalho, e, ao voltar para sua casa, não consegue meio de se
inserir no antigo ambiente.
98
DURHAM, Eunice R. A caminho da cidade: a vida rural e a migração para São Paulo. São Paulo:
Perspectiva, 1984. p. 111.
57
A sociedade capitalista que surge no Brasil com a inserção nos mercados mundiais,
devido às atividades agrário-exportadoras e de uma diversificação do mercado nacional, o
país se vê inserido na era da comercialização de bens de consumo. As atividades urbano-
industriais criam o espaço e as necessidades antes não almejadas pelos trabalhadores do
campo. Por desconhecimento de uma diferente forma de vida, muitas vezes, o trabalhador do
campo almejava o seu próprio espaço agrário, porém, com as dificuldades levantadas pelo
insucesso das atividades agrícolas, muitas vezes, culpando o tempo, e as novas necessidades
comerciais difundidas pelo contato com a vida das cidades, o trabalhador rural almeja mais.
Uma escola para as crianças ou empregos remunerados, o homem que vivia da
subsistência passa a pensar em uma nova vida suprida dessas novas necessidades. “Nessas
condições, a melhoria de vida só pode ser concebida como abandono desse universo e
integração em um sistema diferente que ofereça melhores oportunidades. A oportunidade é
pois dada ao trabalhador e não é criada por ele”.100 Quando das retiradas em épocas de seca,
muitos entravam em contato com outra forma de trabalho sem ser o rural. Muitas vezes,
Seja na época das secas, ou mesmo fora delas, havia um início de integralização do
país, com as redes de notícias e o modo de vida urbano tomando conta, aos poucos, do meio
rural. A cidade de Fortaleza é tomada como exemplo, porém em muitas outras cidades ocorre
o mesmo processo, retirantes tomando as cidades ou se estabelecendo em campos de
concentração, tendo contato com o modo de viver citadino. O campo nunca foi
completamente isolado da cidade, sempre existiu uma relação entre a “venda” da cidade
pequena, que fornecia aquilo que não poderia ser plantado e os trabalhadores rurais que
vendiam algumas vezes o excedente da sua produção. O que há nesse princípio de século é
uma reformulação da relação campo-cidade.
99
DURHAM, op. cit., p. 11.
100
DURHAM, op. cit., p. 115.
101
RIOS (2002), op. cit., p.112.
58
102
SINGER, Paul. Economia política da urbanização. São Paulo: Contexto, 2002. p. 31.
103
SINGER, op. cit., p. 37.
59
pode ser estabelecida a propaganda das melhores condições de vida em outros lugares. Se a
vida não é boa no lugar de origem, e há possibilidade de melhora em outro lugar, que possa
ser considerada real, dá-se então, a migração.
Nota-se que a imigração não decorre em geral, de uma situação anormal de fome ou
miséria desencadeada por calamidades naturais. Ao contrário, a emigração aparece
como resposta a condições normais de existência. O trabalhador abandona a zona
rural quando percebe que “não pode melhorar de vida”, isto é, que a sua miséria é
uma condição permanente. [...] fundamentalmente, a emigração decorre de uma
situação desfavorável que é vista como permanente. 104
De uma forma geral interpreta-se esta demanda por forças de trabalho como
proporcionando “oportunidades econômicas”, que constituem um fator de atração na
medida em que oferecem uma remuneração mais elevada que a que o migrante
poderia perceber na área de onde provém.106
104
A autora utiliza os termos imigração para designar a saída de um determinado local, e emigração para
apresentar a chegada a outro, contudo, ambos os termos fazem referencia a migração interna no Brasil.
DURHAM, op. cit., p. 113-114.
105
SINGER, op. cit., p. 40.
106
SINGER, op. cit., p. 40.
60
107
GRAHAM, Douglas H.; HOLLANDA FILHO, Sergio Buarque de. Migrações internas no Brasil: 1872-1970.
São Paulo: IPE-USP, 1984. p. 48.
61
rurais. O que de fato, auxiliado pela política varguista de limitação à entrada de estrangeiros
no país, deu maior impulso à migração interna dos chamados trabalhadores nacionais,
originários da região nordeste. Portanto, as primeiras migrações de nordestinos terão como
um dos fatores de impulsão a seca, e como destino o litoral da mesma região, somente quando
há a impossibilidade de recorrer ao litoral para amparo, o governo direciona esses migrantes
para a região Norte. E, sem nenhuma aparente ação governamental, os migrantes passam a
retirar-se da seca em direção ao sul do país.
Sem nenhum incentivo direto para a migração, a exemplo de financiamentos ou
transporte, o conjunto de modificações promovidas pelo governo de Getúlio Vargas
apresentou o estímulo inicial necessário para que fosse estabelecido o caminho entre o
nordeste e a atual região do sudeste. Por impulsos, pode-se ressaltar o crescimento interno das
indústrias nacionais, assim como o êxodo rural dos trabalhadores italianos, e os direitos
sociais e trabalhistas implementados pelo governo Vargas.
É provável que esse êxodo dos imigrantes italianos fosse provocado pelas condições
de trabalho no campo serem muito difíceis, e em muitos casos apresentada como uma
escravidão de italianos.109 Tal afirmação não é totalmente descabida, muitos senhores do café
não estavam acostumados a tratar com trabalhadores livres, todavia, no momento de migração
para a cidade, a época da abolição da escravidão já estava distante ao menos 40 anos.
Segundo consta, a primeira migração de nordestinos para o estado de São Paulo e para a
capital federal, Rio de Janeiro, dá-se no momento de desenvolvimento econômico dessas
cidades, “não foi por coincidência que os dois principais centros receptores de migração na
década de 30 (Rio de Janeiro e São Paulo) eram também os dois principais centros industriais
registrando um rápido crescimento”.110
108
GOMES, Sueli de Castro. Uma inserção dos migrantes nordestinos em São Paulo: o comércio de retalhos.
Imaginário. v. 12, n 13, 2006. p. 145.
109
GRAHAM; HOLLANDA FILHO, op. cit., p. 61.
110
GRAHAM; HOLLANDA FILHO, op. cit., p. 57.
62
111
GOMES, op. cit., pg. 147.
112
ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz de. Paraíbas e bahianos: órfão do campo, filhos legítimos da cidade.
Travessia. São Paulo: Centro de Estudos Migratórios. São Paulo , n. 8, set./dez. de 1990, p. 28.
113
GRAHAM; HOLLANDA FILHO, op. cit., p. 27 e 55.
63
114
SARMENTO, Walney Moraes. Nordeste: a urbanização do subdesenvolvimento. Porto Alegre: Mercado
Aberto. 1984. p.59.
115
GOMES, op. cit., p. 148.
64
A migração crescente de nordestinos para os grandes centros urbanos do Sul, que vai
se incrementar a partir dos anos 30, notadamente quando no final desta década se
constrói a rodovia Rio-Bahia, e os caminhões paus-de-arara começam a circular
acabando com a peregrinação a pé até a cidade de Juazeiro, na Bahia, a descida do
Rio São Francisco em barcos até a cidade de Pirapora, em Minas Gerais, onde se
tomava o trem até São Paulo ou o Rio para realizar a migração, é atribuída e
explicada pela ocorrência das secas, marcando todos os migrantes nordestinos com a
pecha de retirantes ou flagelados, quando, na verdade, esta vinha apenas a agravar as
causas mais fundamentais deste processo migratório que eram a concentração da
116
ARTIGO 1º do Decreto no 19.770 de 19 de março de 1931; Disponível em:
<http://www.jusbrasil.com.br/legislacao/116727/decreto-19770-31>
117
GOMES, Angela M. de Castro. A invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005. p. 163.
65
O relativo sucesso atraia mais e mais migrantes para as cidades, de modo que as
fábricas enchiam-se de trabalhadores nacionais, que acabavam “ampliando o exército
industrial de reserva”, favorecendo os donos de fábricas e o desenvolvimento industrial
sustentado sobre o trabalho mal remunerado. Em uma presença maciça, “estes migrantes
evitavam que as taxas de salários se elevassem, mesmo quando a migração estrangeira
praticamente acabou no final da década de 1920”, sendo ultrapassada em números pela
migração nacional no início dos anos 1930.119
A política varguista seguia “premiando” os trabalhadores sindicalizados anualmente,
melhorando as condições de emprego e de vida. Naquilo que tange à patronagem, o governo
negocia constantemente, em um estado de equilíbrio, a sua continuidade e o apoio das classes
sociais que estivessem dispostas a estar do seu lado, os grandes investimentos em infra-
estrutura, como portos e estradas, auxiliam o escoamento da produção industrial, facilitando a
venda dos produtos nacionais.
Com a quebra da bolsa de 1929, o café, que até tal acontecimento se mantinha como
principal produto nacional, vai ceder espaço para uma diversificação de outras áreas da
pequena indústria do país. O governo tratou de utilizar uma política de substituição das
importações, incentivando a “utilização da capacidade ociosa das indústrias já existentes no
país. A indústria têxtil e outras acabaram se beneficiando com os obstáculos colocados às
impostações de similares”.120 Algumas das empresas que se desenvolveram no período em
questão foram de setores da exploração vegetal e mineral, até a produção de tecidos e de bens
de primeira utilidade.
Para tanto, impôs-se a intensificação da promulgação de leis sociais nos anos 30,
como parte integrante de uma proposta política mais ampla, de feitio corporativista.
E é, fundamentalmente, da legislação trabalhista e previdenciária – para não falar da
progressiva institucionalização da Justiça do Trabalho – que a ideologia do
trabalhismo extrairá o seu elemento capital. Sem a “concessão” de direitos aos
118
ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz de. Preconceito contra a origem geográfica e de lugar: as fronteiras da
discórdia. São Paulo: Cortez, 2007. p.107.
119
ALBUQUERQUE Jr., (1990), op. cit., p. 29.
120
CAPELATTO, Maria Helena. O Estado Novo: o que trouxe de novo? In: DELGADO, Lucilia de Almeida
Neves; FERREIRA, Jorge (Orgs.) O Brasil Republicano. O tempo do nacional-estatismo: do início da década de
1930 ao apogeu do Estado Novo. v. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 119.
66
121
PARANHOS, Adalberto. O Roubo da Fala. São Paulo: Boitempo. 2007, p. 35.
122
D’ARAUJO, Maria Cecília. Estado, classe trabalhadora e políticas sociais. In: DELGADO, Lucilia de A. N.;
FERREIRA, Jorge. O Brasil Republicano: O tempo do Liberalismo Excludente. Vol. 2. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003. p. 217-218.
123
PARANHOS (2007), op. cit., p. 23.
67
Se em 1920, 10% das pessoas residentes no Brasil viviam na zona urbana, em 1940
este número já triplicara, 31% dos moradores do país, estimativas de mais ou menos
13.000.000 de pessoas, habitavam as cidades e seus entornos. No fim dos anos 1930, durante
o governo Vargas, 8,5% do total de habitantes haviam se estabelecido fora de seu estado de
origem. Esses dados vêem a complementar à afirmação de Singer, mostrando que as melhores
124
ALBUQUERQUE Jr. (2007), op. cit., p.116.
Segundo o autor, intelectuais como Aziz Simão e Leôncio Martins Rodrigues, responsabilizavam os migrantes
nacionais por esse declínio das lideranças operárias, que não possuíam uma consciência de classe revolucionária.
Fato interessante é que também a socióloga Eunice Durham apresenta os migrantes como usufruidores de
benefícios conferidos por muitas entidades e instituições que auxiliam o migrante proveniente de êxodo rural,
uma delas é o sindicato, que, mesmo que não se filie, e afirma que muitos não se interessam pelas associações de
classe, usufruem dos benefícios adquiridos por elas. Claro que durante o governo de Vargas aqueles que não se
associassem deixariam de receber os auxílios e direitos trabalhistas, porém benefícios sociais gerais conquistados
pelos trabalhadores estavam disponíveis a todos os moradores das cidades. Cf. DURHAM, Eunice R. A caminho
da cidade: a vida rural e a migração para São Paulo. São Paulo: Perspectiva. 1984. p. 125.
125
ALBUQUERQUE Jr. (2007), op. cit., p. 115.
126
SINGER, Paul. Economia política da urbanização. São Paulo: Contexto, 2002. p. 125.
68
130
CAPELATTO (2003), op. cit., p. 115.
131
GOMES, Ângela M. de Castro. A invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro: IUPERJ, 1988. p. 21.1
70
orientações. Alguns dos órgãos criados durante o Estado Novo traçam as políticas e as ações
do governo, a exemplo do Conselho de Imigração e Colonização e do Conselho de Minas e
Metalurgia, ambos tratarão em ações conjuntas da Inspetoria Federal de Obras Contra as
Secas, durante a grande estiagem de 1942. Esses três órgãos são somente alguns dos criados
durante o Estado Novo para coordenar as ações em direção ao aclamado progresso da nação.
Por fim, os acontecimentos do Estado Novo alardeavam o caminho para um país de
trabalhadores. Um país de trabalhadores com muitos desempregados, que beiravam, muitas
vezes ao desespero, principalmente por não possuírem acesso aos benefícios trabalhistas e de
assistência social. Ficando assim “marginalizados do mercado de trabalho, excluídos da
condição de cidadania”, da mesma maneira que os trabalhadores rurais, poder-se-ia dizer,
principalmente os que viviam no interior do Nordeste.132 Não seria total equívoco fazer tal
afirmação, porém mencionar essa relação é entrar em conjunção com a visão que mostra o
Nordeste como uma região problema.
Não se pode resumir a região do Nordeste como uma região “problema”. Assim
como as outras regiões do país, ela possui uma diversificada realidade sócio-ambiental. O
litoral é próspero, com grandes cidades e com uma grande população, existe também a
chamada zona da mata, onde a agricultura é farta e grande impulsionador econômico,
principalmente com a cultura da cana-de-açúcar de larga escala. E é claro, existe também a
região do semi-árido, onde o índice pluviométrico é menor devido à presença de uma
geografia acidentada pelas chapadas e grandes cadeias de montanhas, que impedem a
penetração de nuvens para o interior da região. Contudo, antes de ser encarada como uma
região-problema, vale salientar que o local não sofre simplesmente com a falta d’água, mas
principalmente com a má administração dos recursos hídricos existentes. Antes de ser uma
dificuldade puramente ambiental, a seca no nordeste do Brasil é também portadora de uma
significativa questão social.
Quando a oligarquia nordestina descobriu, nos anos que compreendem o fim do
século XIX, a possibilidade de utilização da questão “seca” como fundo para angariações de
verbas, de projetos e de obras de desenvolvimento, instaurou-se a chamada indústria da seca.
Junto destes interesses oligárquicos, muitas vezes a título de corrupção e desvio de verbas, um
132
CAPELATTO (2003), op. cit., p. 122.
71
imaginário regional passou a circular nas outras localidades do país. De tempos em tempos, os
jornais do sul veiculavam notícias alarmando a existência de uma nova seca, da mesma forma
que iniciavam campanhas para auxílio aos co-irmãos nordestinos. A região passou a ser
encarada também como infértil, improdutiva, e um peso para o progresso da nação.
Ao mesmo tempo em que o Brasil estava se readaptando, no cenário nacional, a
região Norte, que compreendia as atuais regiões Norte e Nordeste, estava sendo modificada.
Principalmente para diferenciar o Norte da floresta amazônica do outro Norte, cujos estados
eram banhados pelo oceano atlântico, para estabelecer diferenças entre a região chuvosa e
úmida da floresta e a região de estiagens e secas. O “Nordeste é, em grande medida, filho das
secas; produto imagético-discursivo de toda uma série de imagens e textos, produzidos a
respeito deste fenômeno, desde que a grande seca de 1877 veio colocá-la como o problema
mais importante desta área”.133 As secas da região são o início de um processo de
diferenciação desses estados atingidos, em contraposição às demais localidades do país. Antes
da seca o Nordeste era o local do Engenho de açúcar, dos senhores de engenho, dos escravos e
quilombolas, antes de 1877 a região já era considerada atrasada e marginalizada na sociedade
brasileira, com o advento da república cafeeira esse processo somente iria se acentuar.
Se no fim do século XIX o Nordeste passa a ser pensado como região geográfica,
mas somente nos anos 1920 esse processo do surgimento do Nordeste enquanto região que
engloba a geografia, o povo e a cultura, terá maior visibilidade. Neste momento é que se
configurou o que chamamos de regionalismo nordestino. Essa construção da identidade
regional daquilo que é “ser nordestino” é criado tendo como ponto de partida uma série de
produções das mais distintas áreas do conhecimento.
[...] a área localizada entre o norte e o leste, vai sendo dotada de significados, vai
sendo preenchida com imagens e textos que vão produzindo, em grande medida, a
forma como vemos e dizemos a região ainda hoje, assim como seus habitantes.
Políticos, jornalistas, escritores, poetas, pintores, historiadores, sociólogos,
folcloristas, vão articular toda uma produção cultural em torno desta idéia de
Nordeste, tornando este espaço visível e dizível, tornando essa designação um
133
ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez, 2009. p.
81.
134
ALBUQUERQUE Jr. (2007), op. cit., p.. 99.
72
135
ALBUQUERQUE Jr. (2007), op. cit., p. 100.
136
“Entre eles [os vários grupos modernistas] incluem-se os verde-amarelos, cuja atuação ao longo de três
décadas (1920-1940) denota, a nosso ver, profunda articulação ideológica voltada para a constituição de um
projeto de hegemonia paulista na organização nacional. Sustentando a idéia da primazia intelectual de São Paulo
sobre os demais estados da federação, e identificando a região como matriz da nacionalidade brasileira, esses
intelectuais, inicialmente articulados no grupo Verde-Amarelo e Anta (década de 20), e mais tarde no grupo
Bandeira (década de 30) mantêm sempre viva a defesa do nacionalismo de cunho autoritário e conservador. Sua
produção literária se exerce concomitantemente à atuação em cargos políticos de âmbito estadual: Menotti Del
Pecchia e Plínio Salgado são eleitos deputados pelo Partido Republicano Paulista (PRP), Cândido Motta Filho
torna-se assessor da bancada paulista à Constituinte e Cassiano Ricardo desempenha funções de assessoria junto
ao governo”. VELLOSO, Mônica Pimenta. A brasilidade verde-amarela: nacionalismo e regionalismo paulista.
Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas. 1990, p. 8.
137
ALBUQUERQUE Jr. (2009), op. cit., p. 68.
138
VELLOSO (1990), op. cit., p. 41.
73
Grande parte dos debates da época seja modernista, ou então em oposição a este,
tinham por intuito a criação de uma identidade nacional, a elaboração de um pensamento
voltado para toda a nação. O movimento modernista em especial buscava exaltar a
modernização do país, porém não copiando esteticamente os países considerados
desenvolvidos. O pensamento modernista revolucionou o campo das artes ao exigir dos
artistas uma postura de elaboração do imaginário de nação absorvendo as correntes européias
e as adaptando à realidade nacional. O pensamento central era criar um Brasil que tivesse
personagens brasileiros e não europeizados. Por isso do fato de o nacional ser a figura
dramática central no debate modernista, mesmo quando o europeu entrava em cena, deveria
ser como colaborador para a construção desta nação, e não como modelo já pronto que
deveria ser copiado.
Não pensavam assim os membros da classe dominante letrada do Nordeste. E em
oposição à identidade buscada pelos modernos, os nordestinos encabeçados por Gilberto
Freyre, organizaram em 1924 o Movimento Regionalista e Tradicionalista e também o Centro
Regionalista do Nordeste, os quais ajudaram a pensar e construir essa ideia de Nordeste
contrária ao movimento moderno paulista. Durante o Congresso Regionalista do Recife,
organizado pelo Movimento Regionalista, no ano de 1926, foi redigido “o Manifesto
regionalista do Nordeste [que] registra o seu protesto contra a homogeneização, criticando o
estilo citadino de vida, a cultura urbana ocidentalizada, enfim, a nova realidade do pós-
guerra”.140 O encontro ocorrido durante o carnaval da cidade pernambucana, na época ainda
detentora do título de capital do Nordeste, tratou dos assuntos relativos à construção do
imaginário nordestino.
Esse movimento e a forma como pensou a região é fundamental para que nós
entendamos porque, ainda hoje, o Nordeste é pensado como o lugar da tradição,
enquanto São Paulo é pensado como o lugar do moderno, do desenvolvido, do em
dia com o tempo presente, forma como o Movimento Modernista, contra o qual o
139
ALBUQUERQUE Jr. (2007), op. cit., p. 102.
140
VELLOSO (1990), op. cit., p. 37.
74
Aqui apenas se tenta esboçar a fisionomia daquele Nordeste agrário, hoje decadente,
que foi, por algum tempo, o centro da civilização brasileira. Do outro Nordeste
traçará o perfil para está coleção [Coleção Documentos Brasileiros] um dos
conhecedores mais profundos de sua formação social – Djacir Menezes.143
141
ALBUQUERQUE Jr. (2007), op. cit., p. 101.
142
A coleção “Documentos Brasileiros” foi organizada pela Livraria José Olympio e teve como primeiro e
principal diretor Gilberto Freyre, à época já consagrado pelo sucesso de Casa Grande e Senzala. A coleção tinha
por intuito revelar um material muito rico sobre a história do Brasil para uma melhor compreensão e
interpretação do passado do país nos seus aspectos mais significativos. A coleção contou com 107 títulos, sendo
o primeiro, Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, e o último do mesmo autor intitulado Visão do
Paraíso. Escreveram para a coleção o próprio Gilberto Freyre, com dez títulos, o primeiro fora Nordeste, livro
número 4 da coleção, seguido pelo livro de Djacir Menezes. Entre outros autores, estavam, Afonso Arinos de
Melo Franco, Lindolfo Collor, Euclides da Cunha, Nelson Werneck Sodré, Luís Câmara Cascudo, Rodolfo
Garcia, etc. FRANZINI, Fábio. À sombra das palmeiras: a Coleção de Documentos Brasileiros e as
transformações da historiografia nacional (1936-1959). 2006. 220 f. Tese (Doutorado em História) – Faculdade
de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.
143
FREYRE, Gilberto. Nordeste. São Paulo: Global, 2004. p. 37.
75
açúcar. Ela é baseada em uma dimensão folclórica do objeto de discurso, ou seja, busca
exaltar o folclore regional, para dar mais ênfase ao seu olhar sobre o Nordeste. Ação que fez
difundir entre a população esse imaginário no decurso da década de 1930, principalmente
quando essa “ideia de popular se confunde com as de tradicional e antimoderno, fazendo com
que a elaboração imagético-discursiva Nordeste tenha enorme poder de impregnação nas
camadas populares, já que estas facilmente se reconhecem em sua visibilidade e
dizibilidade”.144
Dizer que esta forma de ver o mundo difundiu-se entre a população significa afirmar
que ela chegou até as camadas populares de alguma forma. Diferentemente do acontecido no
congresso regionalista de 1926, cujos participantes do evento e do movimento regionalista
pertenciam à classe dominante agrária nordestina, que assistia a sua própria decadência,
contínua e lentamente. As camadas populares têm acesso às obras com esse caráter
regionalista através, principalmente, da literatura e da pintura, quando escritores como o
próprio Gilberto Freyre, José Lins do Rego, Ascenco Ferreira, durante os anos 20 e 30,
prosseguindo com a música de Luiz Gonzaga, Zé Dantas, Humberto Teixeira nos anos 40,
tendo como representante Ariano Suassuna, na década de 1950. “Pintores como Cícero Dias e
Lula Cardoso Ayres, o poeta Manuel Bandeira, os romancistas Rachel de Queiroz e José
Américo de Almeida, embora guardem enormes diferenças entre si, possuem em comum esta
visão do Nordeste e dela são construtores”.145
O outro olhar apresentado por Djacir Menezes busca retratar um Nordeste forte,
baseado na masculinidade, na rudeza, na rispidez do homem nordestino, da força do
fenômeno do cangaço, da fé ou do fanatismo. Será a busca por um Nordeste forte, mas ainda
assim arcaico, que não consegue se acostumar de maneira alguma com o progresso, com a
modernidade. Terra dos coronéis, dos beatos, dos sertanejos retirantes e flagelados, uma
região em que a seca sempre paira sobre os anos e as mentes dos homens e das mulheres
dessa região do país.
Este Nordeste, construído a partir do que seria a realidade sertaneja, vai retomar
aquelas imagens e aqueles enunciados que haviam sido produzidos, no século XIX e
início do século XX, em torno do sertão, do sertanejo e da seca. Figuras como as do
flagelado e do retirante, ou mesmo a narrativa da retirada, temáticas que vão surgir,
por exemplo, na literatura cearense do final do século anterior, vão ser retomadas e
agora agregadas ao conceito de Nordeste. Ao contrário do Nordeste das elites
açucareiras, este Nordeste é descrito como uma região de terras áridas, gretadas,
onde só predomina o verde do juazeiro ou a vegetação de cactos, vegetação hostil,
agressiva, espinhenta, como o próprio homem que aí habita, descendente mestiço da
144
ALBUQUERQUE Jr. (2009), op. cit., p. 92.
145
ALBUQUERQUE Jr. (2009), op. cit., p. 93.
76
146
ALBUQUERQUE Jr. (2007), op. cit., p. 106.
77
147
ALBUQUERQUE Jr. (2009), op. cit., p. 208.
148
ALBUQUERQUE Jr. (2009), op. cit., p. 117.
78
149
“Nasceu em 1892, em Quebrangulo, Alagoas. / Casado duas vezes, tem sete filhos. / Altura 1,75. / Sapato n.º
41. / Colarinho n.º 39. / Prefere não andar. / Não gosta de vizinhos. / Detesta rádio, telefone e campainhas. / Tem
horror às pessoas que falam alto. / Usa óculos. Meio calvo. / Não tem preferência por nenhuma comida. / Não
gosta de frutas nem de doces. / Indiferente à música. / Sua leitura predileta: a Bíblia. / Escreveu "Caetés" com 34
anos de idade. / Não dá preferência a nenhum dos seus livros publicados. / Gosta de beber aguardente. / É ateu.
Indiferente à Academia. / Odeia a burguesia. Adora crianças. / Romancistas brasileiros que mais lhe agradam:
Manoel Antônio de Almeida, Machado de Assis, Jorge Amado, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz. / Gosta
de palavrões escritos e falados. / Deseja a morte do capitalismo. / Escreveu seus livros pela manhã. / Fuma
cigarros "Selma" (três maços por dia). / É inspetor de ensino, trabalha no "Correio do Manhã". / Apesar de o
79
acharem pessimista, discorda de tudo. / Só tem cinco ternos de roupa, estragados. / Refaz seus romances várias
vezes. / Esteve preso duas vezes. / É-Ihe indiferente estar preso ou solto. / Escreve à mão. / Seus maiores
amigos: Capitão Lobo, Cubano, José Lins do Rego e José Olympio. / Tem poucas dívidas. / Quando prefeito de
uma cidade do interior, soltava os presos para construírem estradas. / Espera morrer com 57 anos.” RAMOS,
Graciliano. Auto-Retrato. Disponível em: <http://www.graciliano.com.br/grporelemesmo.html> Acesso em: 19
out. 2011.
150
Todos os dados biográficos presentes neste texto foram retirados do site oficial do escritor Graciliano Ramos:
<http://www.graciliano.com.br>. Também presentes no livro; RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 110ª ed. Rio de
Janeiro: Record, 2009.
151
Discurso proferido por Getúlio Vargas na Universidade do Brasil em 28 de julho de 1951. Apud VELLOSO,
Mônica Pimenta. Os Intelectuais e a política cultural do Estado Novo. In.: DELGADO, Lucilia de A. N.;
FERREIRA, Jorge. O Brasil Republicano: O tempo do Liberalismo Excludente. Vol. 2. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003. p. 170-171.
80
152
VELLOSO (2003), op. cit., p. 149.
153
RAMOS, Graciliano. Carta a Getúlio Vargas. 29 de Agosto de 1938. Disponível em:
<http://www.graciliano.com.br/manuscritos/cartaGV.html> Acesso em: 20 out. 2011.
154
MALARD, Leticia. Ideologia e realidade em Graciliano Ramos. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1976. p. 65.
81
As vidas secas de Fabiano, Sinhá Vitória, do filho mais velho, do filho mais novo,
da cachorra Baleia e do papagaio que não sabia falar, estas existências empobrecidas pelo
ambiente, pela falta d’água, pela opressão da patronagem, são retratadas em um ambiente
áspero, que os forma com estas mesmas características. A ordem do livro também foi
modificada pelo autor, de modo a começar com a seca e terminar com ela. Na realidade não
finaliza, principalmente porque apresenta essa ação como recorrente na região Nordeste, em
alguma cidade do interior dos sertões nordestinos.
O local e o desenrolar dessa história ressaltam vários aspectos do sertanejo, do
homem e da mulher acostumados com a lida do campo, Fabiano trabalhador rural, homem de
poucas palavras, principalmente por não saber usá-las. Suas ações assemelhavam-se a
instintos, muitas vezes equiparado a um animal como a cachorra Baleia, que não fala, mas
raciocina e busca compreender a sociedade de seu modo. Sinhá Vitória é a companheira de
Fabiano, que, segundo o marido, é mais esperta que ele em questões de números e contas,
cujo sonho é uma cama de couro para dormir confortavelmente.
Os meninos, sem nomes, chamados de menino mais velho e menino mais novo, que
brincam com o mundo sem ter certeza das coisas que acontecem à sua volta. O mais velho
entusiasmado para entender o que era “Inferno”, que, pela falta de habilidade dos pais com
palavras, recebe cascudos como recompensa pela curiosidade aguçada. Ao mesmo tempo em
que o menino mais novo idolatrava Fabiano, para ele o pai era como um herói, ao vê-lo
montar na égua alazã e rodopiar no lombo do animal indomado vestido de couros e esporas.
Sonhava ser igual a ele, pondo-se à prova ao meter-se sobre o velho bode, montar e cair, a
vergonha da falha somente se igualava à admiração e ao anseio de ser como o pai.
Assim é como Graciliano retrata o homem e a mulher do campo, os filhos e os
animais domésticos, de pouquíssimas palavras, facilmente passados para trás, formado e
conformado pelo ambiente, traduzido nos gestos, nas aspirações materiais e culturais, enfim,
ser humano coagido pela opressão do poder patriarcal e dos patrões corruptos. Através destes,
“o leitor revive os acontecimentos como um passado, [...] como uma vida pertencente à
humanidade, e aqui um passado que se estende ao presente: o homem brasileiro esmagado
pela opressão capitalista, pelo embrutecimento e pela miséria que lhe são inerentes”. 155 Da
mesma maneira que estes personagens se movem pela relação estreita que traçam com seus
sonhos e aspirações, esta opressão é apresentada pelo autor e várias vezes referendada pelos
155
MALARD, op. cit., p. 13.
82
pensamentos de Fabiano, ao ser passado para trás pelas forças opressoras do patronato, da
política e da polícia.
Roubado pelo patrão, “não podia dizer em voz alta que aquilo era um furto, mas era.
Tomavam-lhe o gado quase de graça e ainda inventavam juro. Que juro! O que havia era
safadeza. – Ladroeira”. Dizia ser passado para trás pelo governo, pelo cobrador de impostos
da prefeitura, que o impediu de vender o porco magro que havia matado, mas “ali não havia
porco, havia quartos de porco, pedaços de carne”.156 Assim como o soldado amarelo e as
forças do governo que o colocaram a dormir na cadeia, sem que tivesse feito nada de errado,
que podia ser vingado ao estilo dos cangaceiros, e Fabiano tinha vontade para isso, mas ao
mesmo tempo “– Governo é governo”157, e faltaram-lhe forças para fazê-lo.
156
RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 110ª Ed. Rio de Janeiro: Record. 2009. p. 95-96.
157
RAMOS, op. cit., p. 107.
158
RAMOS, op. cit., p. 97.
159
DURHAM, op. cit., p. 114.
160
RAMOS, op. cit., p. 40.
83
Outra vez sinha Vitória pôs-se a sonhar com a cama de lastro de couro. [...] Tinha de
passar a vida inteira dormindo em varas? Bem no meio do catre havia um nó, um
calombo grosso na madeira. E ela se encolhia num canto, o marido no outro, não
podiam estirar-se no centro. A princípio não se incomodara. Bamba, moída de
trabalhos, deitar-se-ia em pregos. Viera, porém, um começo de prosperidade.
Comiam, engordavam. Não possuíam nada: se se retirassem, levariam a roupa, a
espingarda, o baú de folha e troços miúdos. Mas iam vivendo na graça de Deus, o
patrão confiava neles – e eram quase felizes. Só faltava uma cama. Era o que
aperreava sinha Vitória.161
O caminho para Fabiano alcançar a felicidade era um pouco mais longínquo. A vida
no sertão era dura, havia poucos momentos de felicidade, e sempre que eles aconteciam o
homem era puxado para a sua realidade, uma realidade opressiva, que lhe chamava a atenção
pela imobilidade. Seu avô passara a vida cortando mandacarus e ensebando látegos, domando
éguas, cuidando de vacas, de cabras, de porcos, plantando na campina seca, assim seu pai
também tocara a vida, assim era Fabiano, bruto, e desta maneira seriam seus filhos. “Quando
crescessem, guardariam as reses de um patrão invisível, seriam pisados, maltratados,
machucados por um soldado amarelo”.162 Os personagens da história narrada por Graciliano
Ramos estão
próximos à natureza, mas ao mesmo tempo dela afastados por uma relação de
trabalho alienado, os personagens de Vidas Secas parecem ser símbolos do ser social
em seu processo de evolução histórica. É nesse sentido que se pode dizer que a
natureza é a questão aí: natureza e trabalho.163
161
RAMOS, op. cit., p. 44-45.
162
RAMOS, op. cit., p. 37.
163
BASTOS, Hermenegildo. Inferno, alpercata: trabalho e liberdade em Vidas secas. In.: RAMOS, Graciliano.
Vidas Secas. 110ª Ed. Rio de Janeiro: Record, 2009. p. 133.
164
RAMOS, op. cit., p. 9.
84
Por enquanto a inundação crescia, matava bichos, ocupava grotas e várzeas. Tudo
muito bem. E Fabiano esfregava as mãos. Não havia o perigo da seca imediata, que
aterrorizava a família durante messe. A caatinga amarelecera, avermelhara-se, o
gado principiara a emagrecer e horríveis visões de pesadelo tinham agitado o sono
das pessoas. De repente um traço ligeiro rasgara o céu para os lados da cabeceira do
rio, outros surgiram mais claros, o trovão roncara perto, na escuridão da meia-noite
rolaram nuvens cor de sangue. [...]. Mas aquela brutalidade findara de chofre, a
chuva caíra, a cabeça da cheia aparecera arrastando troncos e animais mortos.165
Caíra a chuva, e mesmo com a brutalidade que ameaçava a vida das pessoas, ou os
possíveis deslocamentos para fugir da enchente, mesmo assim, Fabiano e Sinhá Vitória
estavam felizes. Com a chuva o fantasma da seca ficava longe, mas não tardaria a chegar. A
estiagem rondava a cabeça do sertanejo, acontecesse o que fosse, a imagem da seca e as
lembranças dos tempos ruins estariam sempre presentes. Nas festas populares, na missa, na
cadeia, nas brigas, no trabalho, no descanso, no sono, nos sonhos, a falta de água conduzia o
caminho do sertanejo, e também do patrão, que tinha lugar para fugir, mas perdia muito com a
estiagem. Essa relação de sofreguidão, de presença do imaginário da seca, de futuro incerto,
está no decorrer do livro de Graciliano.
Nas páginas e capítulos desvelam-se ações distintas, com visões e personagens
diferentes para cada narração, nas quais a fala e os pensamentos dos personagens estão
ligados intrinsecamente à figura do narrador. Não se sabe ao certo quem fala, e de onde fala.
O fato de narrar, contar, traçar uma linha de acontecimentos díspares na vida desta família,
ora com um, ora com outro, traduz esta relação em uma experiência mútua, tanto para o
escritor quanto para o leitor, sem deixar de fora os personagens, que se situam em um
universo à parte. Estão ligados à história, entretanto são reconhecíveis e reproduzíveis em
outras figuras. Quantas famílias de sertanejos nordestinos se parecem com a de Vidas Secas?
É de se pensar na mistura que o autor faz, nesta relação que se estabelece com o leitor, este
“modo de compor abre a narrativa à busca do outro. Aí se materializa o ponto de vista
ideológico do escritor”.166
O narrador, aquele que encaminha a história, transita entre o universo da ficção e do
mundo real, a experiência do escritor, sua vivência e sua sabedoria são incluídas nas páginas
quais se imprimem a trajetória das vidas secas. A história adquire a forma impregnada de uma
realidade exacerbada, mais do que real, muitas vezes exagerada, tratando o real como algo
muito mais cruel, verdadeiro, áspero, que a própria noção de verdade, ou dos acontecimentos
165
RAMOS, op. cit., p. 65-66.
166
BASTOS, op. cit., p. 130.
85
compreendidos como reais. Assim, Fabiano é muito mais animalesco que o sertanejo
nordestino, os meninos são muito mais brutos que deveriam ser, a vida ganha uma roupagem
sobre-humana, expressando uma faceta da realidade para qual o autor quer chamar a atenção.
Dessa forma, não existe direcionamento da história. A narração da vida desta família
é direcionada pelos acontecimentos díspares ocorridos entre dois grandes momentos de seca,
contudo é reservado ao leitor a possibilidade de “interpretar a história como quiser, e com isso
o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação”.167 As ações da
família ficam situadas em momentos distintos do tempo, e ao leitor é reservada a
possibilidade de completar as lacunas entre os acontecimentos.
A falta de informação dá esta possibilidade de interpretação, assim como ao narrar a
trajetória de Fabiano, Sinhá Vitória, os meninos e da cachorra Baleia, o autor não encerra as
possibilidades com um fim definitivo, ele guia a ação para um momento no tempo e no
espaço. A migração define-se como saída aos problemas enfrentados no sertão, ao mesmo
tempo em que pode ser traduzida como fatalista, sem saída, no campo a única solução é o
caminho para a cidade. Esta migração é decidida pelos personagens, ela é o fim da história e o
início de outra, esta última a critério do leitor, a retirada do nordeste fica para que o leitor guie
os personagens, dando inúmeras possibilidades de destino para os sertanejos em fuga da seca.
A direção da marcha faz-se no caminhar, somente após perder todas as esperanças de
um milagre, é que a família pôs-se em retirada, o destino é decidido no decorrer do caminho,
povoado de sonhos, de possibilidades e de incertezas. O autor imprime a esperança como guia
para os passos pesados das alpercatas, a discussão leva-os a traçar como destino a cidade, não
por questões econômicas, mas principalmente por anseio de uma vida melhor.
E andavam para o Sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande cheia de pessoas
fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias. Eles dois
velhinhos, acabando-se como Baleia. Que iriam fazer? Retardaram-se, temerosos.
Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão
continuaria a mandar gente para lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes,
brutos, como Fabiano, sinha Vitória e os dois meninos. 168
167
BENJAMIN, Walter. O Narrador: considerações sobre a obra de Nickolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e
política: ensaios sobre a literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 203.
168
RAMOS, op. cit., p. 128.
86
Ainda quando Graciliano encontrava-se na prisão, em 1936, seu livro Angústia fora
publicado por José Olympio, alguns de seus artigos também tiveram circulação durante sua
estada forçada na prisão, o que demonstra que tal cárcere não o impossibilitava de continuar
em uma pequena atividade. É interessante também o fato de que Graciliano Ramos já era
conhecido como um bom escritor anteriormente à sua reclusão, um escritor de circulação na
capital federal. Tanto que seus livros, Caetés e São Bernardo, foram ambos publicados no Rio
de Janeiro, mesmo o escritor residindo em Alagoas.
Esta relativa presença de seus escritos na capital federal já o tornara relativamente
famoso, de forma que quando da publicação de seu terceiro livro, Angústia, os círculos
culturais já o conheciam. E aqueles que ainda não sabiam de quem se tratava terão um contato
muito maior no ano de 1937, quando no entorno de sua soltura é agraciado com o prêmio
Lima Barreto, concedido pela Revista Acadêmica.
Em 1937, essa obra recebe o Prêmio Lima Barreto, concedido pela Revista
Acadêmica que também lhe dedica um número especial com treze artigos sobre sua
obra, escritos por, entre outros, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Jorge
Amado e Rubem Braga. À figura do grande romancista, já parcialmente consolidada
pela crítica antes de sua prisão, será agregada a imagem do homem íntegro que
passara pela violenta experiência do cárcere.169
Ao tornar-se uma figura conhecida nos círculos culturais do Rio de Janeiro, o escritor
irá conquistar novas amizades, que por sua vez possibilitaram a ele novas oportunidades.
Além dos já citados, escreveram também nesta edição comemorativa muitos outros nomes da
cena cultural carioca. Em agradecimento ao prêmio concedido pela Revista Acadêmica,
Graciliano escreve uma carta aberta para publicação endereçada a Murilo Miranda.
Estou muito agradecido a você, aos membros do Júri que me conferiu o prêmio
Lima Barreto, aos colaboradores que, no último número da “Revista”, contribuíram
para melhorar a situação dum romance que nasceu infeliz e arrasta nas prateleiras
169
SALLA, Thiago Mio. O fio da navalha: Graciliano Ramos e a revista Cultura Política. 2010. 720 f. Tese
(Doutorado em Ciências da Comunicação) – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2010. p. 101.
87
das livrarias uma existência bastante precária. Se, depois de tantos trabalhos e tantos
artigos, ele continuar inédito, a culpa não terá sido dos generosos amigos que
tencionaram publicá-lo: você, Annibal Machado, Alvaro Moreyra, Mario de
Andrade, Rubem Braga, Peregrino Junior, Tavares Bastos, Oswald de Andrade,
Emil Fará, Jorge Amado, Aydano de Couto Ferraz, Bezerra de Freitas, João da Silva
Mello, José Bezerra Gomes, Paulo Saraiva, Portinari, Adami e o misterioso Nicolau
Moutzuma [...].170
Estas figuras apontadas por Graciliano em seu agradecimento permearam sua vida na
cidade do Rio de Janeiro até a data de sua morte. Estiveram juntos em muitas vezes,
manifestaram-se publicamente em tantas ocasiões, muitos chegaram até mesmo a militar
conjuntamente no PCB, a partir do ano de 1946. De todas estas personalidades representativas
da intelectualidade nacional, uma em especial é cara a esta pesquisa, Candido Torquato
Portinari.
Possivelmente esta amizade inicia-se com a execução do “Retrato de Graciliano
Ramos”, um retrato em carvão e crayon sobre papel, de aproximadamente 32cm x 27cm,
assinada pelo pintor, datada de 1937, e dedicada ao escritor “Para o Graciliano com um
abraço de Portinari 937”.171 Esta imagem serviu de ilustração aos escritos da edição especial
em honra a Graciliano Ramos, publicados pela Revista Acadêmica, em maio de 1937. Por
isso, o agradecimento do escritor ao pintor em sua carta, que é datada de 11 de junho de 1937.
A amizade iniciada nesta relação entre o pintor e seu modelo traduz-se nas diversas produções
dos dois nos anos que seguem ao de 1937.
Esta amizade será importante para a compreensão das produções relativas à migração
ocasionada pela seca. Tanto a de Graciliano Ramos, Vidas Secas, quanto os trabalhos de
Candido Portinari, da série Retirantes, ambos terão semelhanças relativas aos laços de
amizade que uniam estes dois. Tal relação pessoal iria se desenvolver durante toda a década
de 30 e 40 do século XX, tendo fim somente com a morte de Graciliano, nos anos 1950. Há
de se estabelecer um pequeno parênteses quanto ao grau desta ligação. Para muitos,
Graciliano e Portinari eram muito próximos. “Portinari era contra bebida, não entrava bebida
na casa dele. Nem a gente pensava nisso; íamos lá e tomávamos um cafezinho. O Graciliano
era o único que ele permitia beber. [...] Ele dizia: ‘- Bêbado, só admito o Graciliano’”.172
Esta maneira de agir de forma especial com o colega escritor demonstra uma relação
diferenciada das demais que estavam estabelecidas. Ao afinar-se ao colega, tanto Graciliano
170
RAMOS, Graciliano. Uma carta de Graciliano Ramos. In: SALLA, op. cit., p. 624.
171
PORTINARI. Candido. Retrato de Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: único Exemplar. Desenho a carvão e
crayon sobre papel. 32,5 x 27,5 cm, 1937. Disponível em:
<http://www.portinari.org.br/IMGS/jpgobras/OAa_3061.JPG> Acesso em: 14/12/2011
172
AQUINO, Flávio. Depoimento sobre Candido Portinari [01 nov. 1983]. Entrevistador: Maria Christina
Guido; Rose Ingrid Goldschimidt. Rio de Janeiro: Projeto Portinari. p.13;30.
88
173
CAPELATO (2003), op. cit., p. 126.
174
Portinari não conheceu pessoalmente um de seus inspiradores mais admirado, Picasso, porque trabalhou para
o governo ditatorial de Getúlio Vargas. Cf.: AQUINO, op. cit.; PORTINARI, Maria. Depoimento sobre Candido
Portinari [19 nov. 1982]. Entrevistador: Maria Christina Guido; Rose Ingrid Goldschimidt. Rio de Janeiro:
Projeto Portinari.
175
PEDROSA, Israel. Depoimento sobre Candido Portinari [06 dez. 1983]. Entrevistador: Maria Christina
Guido; Rose Ingrid Goldschimidt. Rio de Janeiro: Projeto Portinari. p. 68.
89
músicas que falavam contra o trabalho foram proibidas de circular durante o Estado Novo.
Controlados pelo DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda do Governo Federal –, os
meios de comunicação veiculavam somente aquilo que fosse permitido e liberado pelo
Estado.
De acordo com o decreto que lhe deu origem, o DIP tinha como principais objetivos
centralizar e coordenar a propaganda nacional, interna e externa, e servir como
elemento auxiliar de informação dos ministérios e entidades públicas e privadas;
organizar os serviços de turismo, interno e externo; fazer a censura do teatro, do
cinema, das funções recreativas e esportivas, da radiodifusão, da literatura social e
política e da imprensa; estimular a produção de filmes educativos nacionais e
classificá-los para a concessão de prêmios e favores; colaborar com a imprensa
estrangeira para evitar a divulgação de informações nocivas ao país; promover,
organizar e patrocinar manifestações cívicas e festas populares com intuito
patriótico, educativo ou de propaganda turística, assim como exposições
demonstrativas das atividades do governo, e organizar e dirigir o programa de
radiodifusão oficial do governo.176
Promover o país e evitar qualquer tipo de propaganda que o prejudicasse, era este o
papel central do Departamento de Imprensa e Propaganda do Estado Novo. Recorrendo à
censura para impedir toda atividade que viesse a incorrer em difamação à índole do país e de
seus habitantes. Deste modo, havia muitos financiamentos de produções que deveriam exaltar
a nação, “para os ideólogos do regime [...] a arte deveria estar voltada para fins utilitários, e
não ornamentais. Ampliar o acesso à arte significa nessa concepção, ampliar a própria esfera
de abrangência da doutrina estado-novista”. As produções culturais, após passarem pela
censura, poderiam servir para doutrinar os trabalhadores, urbanos ou rurais, que muitas vezes
tinham acesso a esta produção através do rádio, dos jornais, dos livros. Assim o “DIP e o
Ministério do Trabalho agiriam em íntima conexão, pois ambos tinham como ponto comum a
elaboração de uma política cultural destinada ‘as camadas populares’”.177
176
DEPARTAMENTO de Imprensa e Propaganda – DIP”. In.: DICIONÁRIO Histórico-Biográfico Brasileiro.
Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas. Disponível em: <http://cpdoc.fgv.br/acervo/dhbb> Acesso em: 17 ago.
2011.
177
VELOSO (2003), op. cit., p. 168-169.
178
VELOSO (2003), op. cit., p. 169.
90
realizar trabalhos contratados pelo Estado onde “Portinari pinta os painéis do Monumento
Rodoviário e do Ministério da Educação (1936-1944) com tema de exaltação ao trabalho”, o
pintor realiza, por sua própria vontade, os “Retirantes”. A série é uma “denúncia social:
Menino Morto, Enterro na Rede e Retirantes, demonstrando, o amadurecimento de uma
consciência ideológica libertária, anticolonialista, nacionalista e popular”.179 O mesmo
acontece com Graciliano Ramos.
179
PEDROSA, Israel. Depoimento sobre Candido Portinari [06 dez. 1983]. Entrevistador: Maria Christina
Guido; Rose Ingrid Goldschimidt. Rio de Janeiro: Projeto Portinari. p. 69.
180
PEDROSA, Israel. Depoimento sobre Candido Portinari [06 dez. 1983]. Entrevistador: Maria Christina
Guido; Rose Ingrid Goldschimidt. Rio de Janeiro: Projeto Portinari. p. 70.
91
Da mesma maneira, foram realizadas censuras prévias, nos jornais, nas peças teatrais
e nos filmes exibidos em salas de cinema.182 Tendo como matriz definidora de sua função
também a censura à literatura social, o DIP não agiu sobre o livro Vidas Secas, assim como
sobre as pinturas de Candido Portinari, mesmo este setor não estando vinculado ao âmbito de
censura do Departamento. Possivelmente por não se enquadrarem naquilo que o governo
considerava “cultura popular”, poucos eram os brasileiros que sabiam ler e escrever, poucos
ainda eram aqueles que frequentavam exposições artísticas e museus. Estas obras não se
enquadravam naquilo que se apresentava ao DIP como formas de influência aos trabalhadores
nacionais, com ideias que destoassem do ideário estado-novista voltado ao trabalho e a
construção da nação. Lembrando que os principais alvos da propaganda e do combate direto
do governo, além dos ideais comunistas e anarquistas, eram a malandragem e a vadiagem.
Estando presentes no círculo de relação do Ministério da Educação e Saúde Pública,
tanto Graciliano Ramos quanto mais Candido Portinari enquadravam-se no planejamento
levado a cabo em duas frentes durante todo o governo Vargas, principalmente no Estado
Novo.
Desta forma, havia então dois modos de doutrinação, aquele das camadas sociais
menos favorecidas e aquele das classes dominantes privilegiadas, ou ao menos com acesso a
educação formal. Estes modos de doutrinação eram encarados de maneiras distintas pelos dois
181
CARMO, Paulo Sérgio do. História e ética do trabalho no Brasil. São Paulo: Editora Moderna. 1998, p. 122.
182
Para saber mais sobre a censura do DIP: Em Jornais Cf; OLIVEIRA, Lucia Lippi de. O Intelectual e o DIP:
Lourival Fontes e o Estado Novo. In: BOMENY, Helena (Org.). Constelação Capanema. Rio de Janeiro: Editora
da FGV. 2001. Pg 54. No Teatro Cf; PEREIRA, Victor Hugo Adler. Os intelectuais, o Mercado e o Estado na
modernização do Teatro brasileiro. In.: BOMENY, op. cit., p. 66. No Cinema Cf; SOUZA, Carlos Roberto de.
Cinema em tempos de Capanema. In.: BOMENY, op. cit., p. 160.
183
VELOSO (2003), op. cit., p. 149.
92
órgãos, ao mesmo tempo em que o governo incentivava pesquisas de temas relativos à cultura
popular, principalmente encabeçados pelo grupo de modernistas que se agrupava ao redor de
Gustavo Capanema, Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade. Havia também,
outro grupo de modernistas que se organizavam do DIP. Enquanto o Ministério da Educação
incentivava pesquisas em torno da temática popular, o DIP orquestrava ações para doutrinar
este tipo de produção cultural, na qual o samba era uma das maiores expressões.184
184
“[...] Acreditamos que essa atitude ambígua por parte do regime refletia a própria diversidade de orientação
cultural entre o Ministério da Educação e o DIP. Os intelectuais eram incentivados a pesquisar sobre o assunto,
podendo até mesmo enaltecer os aspectos positivos da cultura africana. O que não poderia ocorrer era o samba
continuar difundindo valores que fugiam ao controle do Estado. O público que lê pesquisas é bem diferente
daquele que escuta no rádio as composições dos sambistas. Para cada público uma estratégia.” VELOSO (2003),
op. cit., p. 165.
185
FARIA, Daniel. Realidade e consciência nacional. O sentido político do Modernismo. História, São Paulo, v.
26, n. 2, 2007. p. 395.
186
FARIA, op. cit., p. 398.
93
não foram alvo de censura, suas obras não tiveram de se adequar exatamente àquilo que
queria o governo. Este contexto fora propício para a exposição de suas ideias e, muitas vezes,
também de sua ideologia. Todavia, as obras de Graciliano e de Portinari se mantinham no
círculo a que foram direcionadas. Inicialmente, ambas as criações se deram para uma classe
social privilegiada, uma classe dominante letrada, que consumia obras literárias e plásticas,
comprava livros e visitava exposições e museus.
Particularmente as obras de Candido Portinari se encerram em sua aura de tradição, o
acesso propiciado a poucos faz com que estas obras de arte tenham um grande valor de culto,
possuem uma atmosfera de contemplação, apresentada principalmente pela sua autenticidade.
A difusão destes quadros, inicialmente, se dá, através de exposições nos diferentes museus do
país e, consequentemente, no caso de Portinari, em outras partes do mundo.
Contudo, nesta relação de culto entre a obra, o local de exposição e o espectador,
insere-se a grande difusão gerada pela imprensa, subjugando o valor de culto ao valor de
exposição, substituindo nesta relação à necessidade da originalidade da obra. A partir da
grande divulgação proporcionada pela imprensa, seja em jornais ou em revistas ilustradas, as
obras de arte passam a ser acessíveis a muitas outras pessoas que não pertencem a esta classe
dominante letrada, referenciada anteriormente. “A exponibilidade de uma obra de arte cresceu
em tal escala, com os vários métodos de sua reprodutibilidade técnica, que a mudança de
ênfase de um polo para outro corresponde a uma mudança qualitativa comparável à que
ocorreu na [sua] pré-história”.187 Aquilo que nas pinturas era exclusivamente cultual, servia
para ensinar uma doutrina, como na igreja católica, ou demonstrar riqueza, como na idade
moderna, converte-se, devido à grande reprodução, em valor de exposição, onde o valor social
da obra de arte, ou seja, a sua mensagem intrínseca, pode ser melhor difundida.
Tal compreensão sobre as produções artísticas de uma determinada época pode ser
transposta para a questão apresentada de Graciliano Ramos e Candido Portinari. Mesmo estas
obras não sendo consideradas de circulação popular, também por isso menos suscetíveis a
censura, elas ganham os espaços urbanos dos trabalhadores com as reproduções em jornais e
187
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Magia e técnica, arte e
política: ensaios sobre a literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 173.
188
BENJAMIN, op. cit., p. 168-169.
94
demais periódicos. Os escritos de Graciliano Ramos que deram origem ao livro Vidas Secas
foram, primeiro, publicadas em forma de contos em jornais e revistas de grande circulação
como O Jornal (2), Revista Acadêmica, Diário de Notícias (5), Anuário Brasileiro de
Literatura, O Cruzeiro (2), Lanterna Verde, A Manhã, Revista do Globo, todos do Rio de
Janeiro, Folha da Minhas, de Belo Horizonte e Diário de São Paulo, de São Paulo.189
Ao todo, o escritor publicou, em jornais e revistas, 245 textos, entre contos, cartas,
romances, prosas, depoimentos, artigos políticos, etc. Além de publicar muitos artigos na
revista Cultura Política: revista mensal de estudos brasileiros, principal publicação do
Departamento de Imprensa e Propaganda – DIP, suas publicações eram intituladas “Quadros e
Costumes do Nordeste”, e foram reunidos postumamente no livro Vivente das Alagoas
(1962). Entre a perseguição política nos anos 1936-37, o trabalho para o Ministério da
Educação a partir de 1938, a colaboração para a revista do DIP em 1941-43, sem contar das
publicações na revista Dom Casmurro e Diretrizes, alinhadas com o PCB, o escritor buscava
sempre se distanciar do governo que o empregava, mas que, ao mesmo tempo, o havia
perseguido e retido de um modo ditatorial e antidemocrático. 190
Os textos de Graciliano Ramos circulavam sem censura pelos mais distintos meios
de comunicação, assim como suas críticas sobre a situação dos retirantes nordestinos fugidos
da seca e da estiagem. O mesmo ocorria com as obras de Candido Portinari. Além de não
sofrer com a censura, e muitas vezes ser defendido pelo próprio Gustavo Capanema, as suas
obras não ficavam restritas aos salões de exposição dos museus. Para o pintor, a obra de arte
era do povo, e por isso deveria ser pintada para ele. Como muito da cultura popular
distanciava os trabalhadores das pinturas de Portinari, o próprio, conscientemente, utilizava-se
do muralismo para demonstrar sua concepção de mundo, “La pintura mural es la más
adecuada para el arte social porque el muro generalmente pertenece a la colectividad y al
mismo tiempo cuenta una historia, interesando a un mayor número de personas”.191
Diferentemente de Graciliano, o pintor não publicava suas pinturas, era necessário que outras
pessoas o fizessem, e, mesmo dependendo disto, muitas vezes seu nome era lembrado em
jornais e revistas.
Somente no ano de 1944, são 87 publicações comentando sobre o pintor dos mais
variados conteúdos, cinco textos falando sobre as pinturas da série Retirantes, inclusive com
189
SALLA, op. cit., p. 692-693.
190
SALLA, op. cit., p. 704-720.
191
Em uma tradução livre do autor: “A pintura mural é a mais adequada para a arte social porque o muro
geralmente pertence à coletividade e ao mesmo tempo conta uma história, interessando a um maior número de
pessoas”. PORTINARI, Candido. Sentido Social del arte. In.: GIUNTA, Andrea (Org.) Candido Portinari y el
sentido social del arte. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2005. p. 313
95
imagens, em revistas como Revista da Semana, O Cruzeiro, Rio, nos jornais O Estado de São
Paulo e Diário de São Paulo, apresentando ao grande público, o que muitas vezes fica restrito
aos olhares de uma classe dominante letrada. No ano seguinte, 1945, foram encontradas 96
publicações com o tema Portinari, dentre estas, cinco com a temática dos retirantes. Em 1946,
mais de 290 menções no Brasil e no exterior, principalmente na França, pois o pintor expôs
neste ano na galeria Charpentier. Sendo que destas, mais de 20 textos aludem à série
Retirantes.192
Pois mesmo existindo, segundo o próprio governo, um distanciamento entre o mundo
erudito e o mundo popular, eles tendem a se emaranhar em muitos momentos. As obras de
Portinari não eram de fácil acesso para toda a população, que teve, graças à reprodutibilidade
das pinturas em jornais e revistas, um acesso facilitado a elas. A cultura popular influencia e é
influenciada pela cultura erudita, e a recíproca é verdadeira, nem sempre aquilo que era
imposto à população, seja de trabalhadores, ou nas escolas, era aceito sem contestação. 193 Ao
mesmo tempo em que o Departamento de Imprensa e Propaganda produzia uma cultura
popular para doutrinar o trabalhador brasileiro, este último utilizava-se de subterfúgios para
negar esta atitude de “bom moço”. Seja trocando a letra da música durante a roda de samba,
ou então, na resistência silenciosa de ler e ver um jornal ou revista.
O relacionamento da cultura erudita com a popular, demonstra um grande
relacionamento entre as classes sociais que compunham o Brasil do período Vargas,
principalmente pela profusão de ideias elaboradas no país nestes quinze anos. A possibilidade
de se falar, quase que abertamente, em um momento delicado qual fora o Estado Novo, tornou
este texto em questão, Vidas Secas, e a série de três pinturas dos Retirantes, denunciantes de
uma situação de miséria vivida no país. Mas em contrapartida foram utilizadas pelo Estado
para demonstrar o problema histórico que o governo enfrentava com ações duras. Seja pela
denúncia ou pela cooptação destas ideias, o texto e a imagem tornaram-se símbolos deste
assunto. É difícil não recordar da série de pinturas de Candido Portinari quando se trata da
seca e dos migrantes que fogem dela. Muito se vê destas pinturas, mas muito ainda pode se
questionar, principalmente sobre a composição dos quadros e sua relação com o contexto
histórico vivenciado. Isto fica para o próximo capítulo.
192
Números encontrados no site do Projeto Portinari, relativos às publicações com o tema Candido Portinari, que
mencionem o artista ou suas obras.
193
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. São Paulo: Companhia das letras. 2006, p. 18.
96
194
RAMOS, Graciliano. [Carta] 18 fev. 1946. Rio de Janeiro: [para] Candido Portinari. 2f. Reflexões sobre as
obras da série Retirantes. Disponível em: <http:// www.graciliano.com.br/manuscritos/cartaCP.html> Acesso
em: 02 nov. 2011.
195
PORTINARI, Candido. Sentido social del arte. In: GIUNTA, Andrea. Candido Portinari y el sentido social
del arte. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2005. p. 317.
97
o termo tornou-se uma referência para a arte cujas formas não nasciam diretamente
da realidade observada, mas de reações subjetivas à realidade. Atualmente, é
considerada “expressionista” qualquer arte onde as convenções do realismo sejam
destruídas pela emoção do artista, com distorções de forma e cor.197
196
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 227.
197
CARVALHO, Luciana dos Santos. Graciliano Ramos: a dor e a náusea. 2009. 190 f. Tese (Doutorado em
Literatura Brasileira) – Instituto de Letras/Literatura Brasileira, Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre, 2009. p. 38.
198
ARGAN, Giulio op. cit. CARVALHO (2009), op. cit.. FARTHING, Stephen. Tudo sobre arte. Rio de
Janeiro: Sextante, 2011.
199
CARVALHO (2009), op. cit., p. 177.
200
Esta frase foi dita em entrevista para o crítico português Mário Dionísio, em 1946, dois anos após a conclusão
das obras da série Retirantes. Cf: DIONÍSIO, Mário. Portinari, pintor de camponeses. Vértice, Coimbra, maio
1946, p. 220. Na mesma entrevista, o pintor deu outra declaração que o leva ao encontro do expressionismo: “–
A mensagem vai de epiderme a epiderme. O contrário não é arte. E assim, a parte mais abstrata da obra deste
homem conserva sempre uma ligação evidente com a realidade. Dir-se-ia que a sua criação não pode abandonar
nunca a condição primeira de estar visivelmente ligada ao mundo objectivo, que mesmo quando a fúria é tanta
que não sabe como exprimi-la pelos meio normais e tem de servir-se de planos que fogem à escala comum da
realidade visual, o elemento de ligação com os outros não deixa de existir e faz valer, custe o que custar, os seus
direitos”. DIONÍSIO, Mário. Portinari, pintor de camponeses. Vértice, Coimbra, maio 1946, p. 221.
201
ZILIO, Carlos. A querela do Brasil. A questão da identidade na arte brasileira: a obra de Tarsila, Di
Cavalcanti e Portinari/1922-1945. Rio de Janeiro: Funarte, 1982. p. 91.
98
202
As designações da Proletkult eram indicações de como as artes deveriam se comportar na URSS, contudo
deixava a sociedade livre para iniciativas particulares que não fossem contrárias à revolução e “afirmava que a
literatura [e a arte] deveria servir aos interesses do partido, enviando escritores para visitar canteiros de obras e
produzir romances que glorificavam o maquinário”. Já o Realismo Socialista afirmava categoricamente que toda
a arte deveria “‘fornecer um retrato verdadeiro e histórico-concreto da realidade em seu progresso
revolucionário’, levando em conta ‘o problema da transformação ideológica e a educação dos trabalhadores no
espírito do socialismo’”. As artes deveriam exaltar e criar heróis para a nação soviética. EAGLETON, Jerry.
Crítica literária marxista. São Paulo: Editora Unesp, 2011. p. 72. Trotsky julgava que a arte deveria ser livre,
incentivada pelo Estado, para então passar por uma análise de sentido, se favorável ou contrária à revolução,
para daí sim, ser a arte da revolução socialista. “No mais amplo sentido filosófico, e não no sentido estreito de
uma escola literária, pode-se dizer com segurança que a nova arte será realista”. TROTSKY, Leon. Literatura e
revolução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. p. 184.
99
Foi com um retrato que ganhou o seu primeiro prêmio em dinheiro, e foi com retrato
que ganhou o prêmio máximo do “Salão”, a viagem ao estrangeiro. Em 1928 foi contemplado
pela exposição do retrato do poeta e amigo Olegário Mariano. Embarca para Paris em 1929, e
sua estada se estende até o ano de 1931. Volta de lá com poucos quadros na bagagem, mas
com uma mudança na sua concepção de pintura. Diz que o que lhe interessa é o popular.
– Sou filho de camponês. Meus pais foram sempre camponeses pobres. Espantá-lo-
ei ao disser que não pude tirar mais que a terceira classe de instrução primária? Só
mais tarde é que tive um professor de português durante seis meses, e é que fiz,
lutando com a extrema pobreza, o curso da Escola de Belas Artes. Assim, não posso
esquecer-me deles. São o meu objectivo. Quando fiz os [a]frescos do Ministério da
Educação, queriam que eu fizesse a História do Brasil. Tentei. Mas foi impossível.
Não saía nada. Depois de estudos e estudos, nada. Então tive de dizer: a minha
pintura é pintura de camponês; se querem os meus camponeses, bem; se não,
chamem outro pintor. Foi então que, embora numa ordem histórica, fiz a série do
“Ouro”, “Fumos”, “Gados”, etc.203
Os trabalhos realizados após a sua volta da Europa terão o Brasil como tema. O
conhecimento de outros artistas fez com que Portinari se voltasse para seu país, e enveredasse
pela arte social, pela denúncia das mazelas do povo. Seja na história do Brasil, ou nos
acontecimentos de seu tempo. Assim, quando contratado em 1936 para pintar o novo prédio
do Ministério da Educação e Saúde Pública (MES), desde 1934 sob o comando do ministro
Gustavo Capanema, insistiu em pintar do seu modo. Foi chamado para tal obra principalmente
pela sua fama que começava a dar base para a alcunha de pintor nacional. Pois fora premiado
no ano de 1934 em Pittsburgh, pelo Instituto Carnegie, com a segunda menção honrosa para o
quadro Café. Tal empreitada no ministério irá alavancar sua carreira até grandes alturas.
Segue pintando o prédio do MES e compondo outras obras em casa. Como a maioria
dos pintores desta época, produz muitos retratos. Já que mesmo com os espaços públicos
garantidos à arte moderna, grande parte de suas receitas provinha das pessoas que adquiriam
retratos, ou seja, a classe dominante brasileira da época desejava ver-se retratada.204
203
DIONÍSIO, Mário. Portinari, pintor de camponeses. Vértice, Coimbra, maio 1946, p. 223.
204
MICELI, Sérgio. Imagens negociadas: retratos da elite brasileira (1920-1940). São Paulo: Companhia das
Letras, 1996.
100
205
ZILIO, op. cit., p. 92-93.
206
Portinari foi impedido de inaugurar os painéis na ONU devido à política estadunidense de caça as bruxas
contra o comunismo, o que pesou neste caso foi o fato do pintor ter pertencido ao PCB.
101
207
MUSEU de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand. Cem Obras Primas de Portinari. [Exposição] São Paulo,
nov.-dez. 1970.
208
Nota-se que as telas possuem nomenclaturas homônimas, há duas versões de Criança morta, uma de 1944 e
outra de 1945 (também chamada de Menino morto). Assim como há três versões de Retirantes, uma de 1944 e
duas de 1945. A de 1944 é a mais famosa das três, e encontra-se no MASP, as outras duas, de 1945, podem ser
reconhecidas por outras características principais, a primeira é conhecida também pelo nome de Retirante da
perna de pau (pelo membro de madeira que possui), a segunda diferencia-se principalmente pela sua reduzida
dimensão, enquanto as outras têm mais de um metro, esta possui 38 x 46 cm.
102
Morrendo, Preparando Enterro na Rede e Retirantes, todas de 1958 que figuram entre as
últimas desta temática.
É central nas discussões sobre Portinari que se leve em consideração todo o conjunto
das obras desta temática, porém como destoam entre si naquilo que tange a épocas, técnicas e
até mesmo de posicionamento político, reduz-se a interpretação às telas do MASP.
Principalmente por sua aparição emblemática na carreira do pintor, algumas das telas pintadas
em 1945 também são possuidoras destas mesmas características. É possível vislumbrar, nos
diferentes momentos de criação de Portinari, interpretações diversas sobre a temática da
migração. O próprio artista ressaltou em algumas entrevistas que os retirantes como os
pintava eram fruto das suas lembranças de infância, dos homens e das mulheres que cruzavam
meio país em busca de trabalho, passando por Brodowski a caminho de São Paulo tendo como
destino as lavouras ou as cidades.
Contudo, há de se levar em consideração a amizade do pintor com Graciliano Ramos,
e a leitura do livro Vidas Secas. Esta outra relação o auxiliou na composição destas imagens
de 1944/45, pois diferem das outras obras, anteriores ou posteriores. A dramaticidade, e a
tragédia, sem falar do pessimismo e da relação com o sofrimento, também são marcas
fortíssimas da produção de Graciliano Ramos.210
A ação expressionista de mostrar o sofrimento do interior dos retirantes e atirá-lo ao
observador há de ser pensado como uma decorrência da amizade entre Graciliano e Portinari.
Assim as imagens que se tornaram ícones das cenas sofríveis da retirada, ficaram marcadas na
memória coletiva através destes quadros de 1944. As obras apresentam o início, o meio e o
fim da trajetória do retirante, ele não é em essência migrante, ele se caracteriza assim nos
momentos de extrema necessidade. O nordestino não nasce retirante, ele se conforma devido
às questões físicas e sociais da região que habita, do mesmo modo que o Nordeste não é
somente seca, ali a presença deste flagelo é mais forte. A trajetória do retirante, assim como
da região que o forma, aparece nos quadros de Portinari, que, diga-se de passagem, nunca
209
FABRIS, Annateresa. Portinari, pintor social. São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1990. p. 108.
210
ÂNCORA DA LUZ, Ângela Azevedo Silva Balloussier. A Fabulação Trágica de Portinari na fase dos
Retirantes. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS, 1985. p. 47.
103
Cores terrosas utilizadas nos corpos, onde raras pinceladas de laranja aquecem
alguns pontos. Além disso os tons frios dos azuis e verdes, empregados com
parcimônia, se alternam e se misturam em áreas menores. O chão ocre, marcado por
sombras ou ossadas brancas se harmoniza com o colorido dos corpos dos Retirantes.
Os fundos se apresentam com céus azuis sombrios, entardecidos e horizontes
claros.212
211
ÂNCORA DA LUZ, op. cit., p. 47.
212
ÂNCORA DA LUZ, op. cit., p. 98.
104
213
PORTINARI. Candido. Retirantes. Petrópolis: único exemplar. Painel a óleo sobre tela. 190 x 180 cm, 1944.
Disponível em: <http://www.portinari.org.br/IMGS/jpgobras/OAa_2733.JPG> Acesso em: 14/12/2011.
214
FABRIS, Annateresa. Portinari, pintor social. São Paulo: Perspectiva/Edusp. 1990, p. 113.
215
PORTINARI. Candido. Enterro na Rede. Petrópolis: único exemplar. Painel a óleo sobre tela. 180 x 220 cm,
1944. Disponível em: <http://www.portinari.org.br/IMGS/jpgobras/OAa_2734.JPG> Acesso em: 14/12/2011.
Retirantes
Painel a óleo sobre tela. 190 x 180 cm.
1944
Enterro na Rede
Painel a óleo sobre tela. 180 x 220 cm.
1944
105
traduz o temor em um ato. O carregamento na rede do homem ou da mulher, até a sua cova, a
única terra que não precisará ser lavrada a duras penas pelo retirante e na qual a água não lhe
fará falta. O sofrimento da retirada está ausente, mas a dor da perda se configura no desespero
e no choro das duas mulheres presentes na imagem. Traços em segundo plano esboçam um
fundo identificando-o a uma paisagem, as cores terrosas dominam a tela esboçando a poeira
da terra nos pés descalços e ossudos, o contorno com um “traço negro para a definição
vigorosa do desenho, a cor indefinida que domina o conjunto, a pincelada mais gestual e a
textura dão uma unidade quase plana à tela, o que acentua ainda mais o dinamismo e a
formação expressiva das figuras”.216
A Criança Morta217 mostra outra família, de pai ausente, que chora a morte de uma
criança. Qual Pietá de Michelangelo, a mãe chora e tem nos braços o corpo inerte do pequeno
filho, torturado pelas marcas do sofrimento. As outras pessoas na tela choram a sua dor, com
lágrimas secas, lágrimas de pedra, assim como a paisagem desértica ao seu redor. A expressão
do choro e das lágrimas enrijecidas chocam o espectador, pois tamanha é a dramaticidade do
evento, elas não eram lágrimas comuns eram “de prantos inenarráveis, que não podiam desse
modo ser expressos de forma naturalista”. Eram lágrimas de uma vida inteira, “deviam tornar-
se pétreas, a fim de que nenhum vento ou mão pudesse secá-las ou nenhum lenço lograsse
enxugá-las”.218 O mesmo jogo de cores terrosas compõe o quadro. A presença da cabaça de
água e das lágrimas que não chegam ao chão imprime a sensação dos castigos que o sol impõe
aos personagens.
As outras telas com a temática dos retirantes, pintadas em 1945, Retirantes219 e
Criança Morta220, apresentam-se com cores monocromáticas, em um jogo mais claro para
uma e escura para a outra, respectivamente. Na primeira tela, nos Retirantes de 1945, mostra
um casal de certa idade iniciando um movimento, o homem idoso apoia-se nos ombros da
mulher, constata-se a necessidade de auxílio também pelo cajado que segura na mão esquerda
e pela perna de madeira que substitui sua perna esquerda até a altura do joelho. A senhora
leva às mãos uma sacola, e no chão encontram-se outros objetos espalhados que pouco
216
ZILIO, Carlos. A querela do Brasil. A questão da identidade na arte brasileira: a obra de Tarsila, Di
Cavalcanti e Portinari/1922-1945. Rio de Janeiro: Funarte. 1982, p. 103-104.
217
PORTINARI. Candido. Criança Morta. Petrópolis: único exemplar. Painel a óleo sobre tela. 180 x 190 cm,
1944. Disponível em: <http://www.portinari.org.br/IMGS/jpgobras/OAa_2735.JPG> Acesso em: 14 dez. 2011.
218
BENTO, Antonio. Apud ÂNCORA DA LUZ, op. cit., p. 78.
219
PORTINARI. Candido. Retirantes. Rio de Janeiro: único exemplar. Painel a óleo sobre tela. 180 x 150 cm,
1945. Disponível em: <http://www.portinari.org.br/IMGS/jpgobras/OAa_5186.JPG> Acesso em: 14 dez. 2011.
220
PORTINARI. Candido. Criança Morta. Rio de Janeiro: único exemplar. Painel a óleo sobre tela. 179 x 150
cm, 1945. Disponível em: <http://www.portinari.org.br/IMGS/jpgobras/OAa_4175.JPG> Acesso em: 14 dez.
2011.
Criança Morta
Painel a óleo sobre tela. 180 x 190 cm.
1944
Retirantes
Painel a óleo sobre tela. 180 x 150 cm.
1945
106
adiantarão, como o pilão, ou que serão de muita serventia, como a cabaça de água. Ao fundo,
um cocho se estende em diagonal dando a impressão de conjuntamente aos idosos formar uma
cruz. A cruz carregada à vida inteira pelos retirantes em fugas desesperadas e voltas
esperançosas.
Na tela da Criança Morta, desvela-se outro falecimento, outro pequeno não aguenta
o sofrimento e perece, os seus ossos aparentes contrapõem-se outra vez à barriga inchada, a
face da morte e da dor aparecem nos únicos rostos à mostra, o da criança e de sua mãe. Outras
pessoas estão pintadas na tela, mas seus semblantes e suas reações não são aparentes.
Prostram-se de joelhos em meio a dois cadáveres, um da criança nos braços da mãe e o outro
de um homem em segundo plano com as mãos sobre o peito e os dedos entrelaçados. A morte
do homem ao fundo pode revelar outras faces da morte no sertão, o assassinato e a
emboscada. O cão desmazelado enseja um pedido de atenção retido pelo manifesto desespero
dos presentes em cena.
Em criança morta, a tragédia está presente não só nos rostos dos retirantes, mas é
acentuada pelo próprio tratamento formal da tela, em que uma pincelada densa,
vigorosa aproxima a textura pictórica da escultura. A tela, mais que pintada, dá a
impressão de ter sido cavada na madeira. A figura central, que segura a criança
morta, tem algo de religioso: o desespero do homem, mais que um drama humano,
parece evocar a dor de Maria diante do corpo inerte de Cristo. [...]. A deformação
expressiva atinge nessa obra dimensões monumentais: mãos e pés vigorosos, rostos
deformados pela dor criam um contraste emotivo com a serenidade do pequeno
morto, cujo rosto informe, mais que a perda da vida, lembra a vida em embrião, que
não chegou a vingar.221
221
FABRIS (1990), op. cit., p. 112.
Criança Morta
Painel a óleo sobre tela. 179 x 150 cm.
1945
107
assim como os brasileiros do início da década de 1940, viveram a emergência de mais uma
seca. No ano de 1942, a estiagem no Nordeste chegou ao ponto limítrofe entre a regularidade
anual e a total falta d’água, obrigando o Governo Federal a intervir no auxílio aos flagelados
como já fizera em 1932.
Todas esas operaciones llevan a desplazar el cuadro de una posición cómoda frente a
la “representación” de una realidad social. En vez de representar una realidad
histórica […] contraponiéndolos a las fuentes históricas que le sirvieron de base,
Portinari construye escenarios ideales, simbólicos, sintéticos, que en ese sentido se
alejan de la representación pintoresca por un dibujo artificial. 222
O fato de não recorrer ao passado para pintar estas obras também demonstra a força
da denúncia veiculada pelo pintor, o assunto era contemporâneo às produções. A amizade
com Graciliano Ramos, aliada à influência de Picasso e do expressionismo, fez com que
Portinari direcionasse sua pintura não mais à formação da nacionalidade, mas sim a uma
crítica ácida contra o regime varguista. “O pujante trabalhador da década de 30 transforma-se
no retirante esquálido. A terra cultivada transforma-se em sertão”.223 Mesmo a seca sendo
tomada pelo governo como um problema ambiental, de solução impossível, tal denúncia
penetra nas mais distintas camadas sociais, pelo poder de disseminação da mídia nacional e
internacional.
As obras tiveram tamanha repercussão, dentro e fora do país, que as de 1944 foram
rapidamente adquiridas e doadas ao MASP, e a tela Criança Morta, de 1945, foi comprada
pelo Museu Nacional de Arte Moderna de Paris. Todavia, há de se ressaltar que as telas
também foram pintadas em momentos de tensão por causa da II grande guerra. O horror
representado pela Guernica de Picasso, durante o bombardeio a cidade espanhola é
trespassado para o problema social do Brasil. A seca e a guerra ocorreram na mesma época.
Outra vez, o governo central possuía outras preocupações tão importantes quanto a seca.
Assim, para o pintor, aquele “retirante torna-se um símbolo universal do Homem, vítima da
guerra e da miséria. Uma vítima que não perdeu sua grandeza, pois sua força está ainda
concentrada nas mãos espalmadas, nos punhos cerrados”.224
222
GARRAMUÑO, Florencia. Candido Portinari y Graciliano Ramos. La modernidad disfórica de sus
emigrantes. In.: GIUNTA, Andrea (Org.) Candido Portinari y el sentido social del arte. Buenos Aires: Siglo
XXI Editores Argentina, 2005. p. 196.
223
FABRIS (1990), op. cit., p. 70.
224
FABRIS (1990), op. cit., p. 70.
108
225
FERRAZ, Francisco César Alves. Os brasileiros e a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2005. p. 16.
226
FERRAZ, op. cit., p. 18.
109
A rigor, a guerra foi sentida pelo cidadão comum de duas maneiras: a) através das
estratégias do governo do Estado Novo de constituir um “front interno”, no qual se
visava à mobilização dos trabalhadores pela defesa do país e pelo aumento da
produção; b) através da escassez e do encarecimento de produtos de consumo
cotidiano, devido às dificuldades de importação e à especulação com os preços dos
gêneros de primeira necessidade.227
Contudo a guerra sempre esteve presente no cotidiano dos brasileiros, ela era
encarada como um acontecimento longínquo, mas que repercutia no país, transformando o dia
a dia do cidadão a cada nova medida imposta pelo governo Vargas. Medidas que eram
“dirigidas para instituir a mobilização da população civil diante da guerra, estas iniciativas, no
entanto, visavam essencialmente criar uma mobilização segundo os ideais do Estado Novo e
não conectadas efetivamente à guerra na Europa”.228 Tais ações existiam muito mais para
227
FERRAZ, op. cit., p. 20-21.
228
CYTRYNOWICZ, Roney. Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda
Guerra Mundial. São Paulo: EdUSP/Geração Editorial, 2002. p. 18-19.
110
Neste contexto, é fundamental ressaltar que todo esse esforço de propaganda e apelo
políticos, dirigido especialmente aos trabalhadores era feito pari passu à decretação
de uma série de leis que, respondendo às pressões dos industriais (em particular
têxteis), suspendia a vigência de diversos direitos trabalhistas. [...] o que
transformava literalmente seus empregados em “desertores” em casos de falta e
desistência do emprego.
Os trabalhadores, portanto, viviam um momento político muito especial. De um
lado, eram forçados a trabalhar em condições em que não tinham vigência vários
direitos sociais já garantidos por lei, e, de outro, eram conclamados a assumir um
papel central na “batalha da produção” desencadeada justamente pelo homem cujo
maior título era o de ter outorgado estes direitos sociais.229
229
GOMES, Angela M. de Castro. A invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005. p. 225.
111
tutelados pelo Ministério do Trabalho. Havia um grande temor de uma invasão germânica, tal
medo fora incutido nos brasileiros pela imprensa que durante a guerra era alvo da censura do
Estado Novo, veiculando somente aquilo que o governo permitisse. Assim, nos estados do sul
do país, onde a concentração de descendentes e imigrantes alemães e italianos constitui uma
grande soma, o ambiente fora muito mais tenso que em outras regiões do país. Os
enfrentamentos, a existência de campos de concentração para imigrantes e descendentes, o
quebra-quebra, a proibição das línguas italiana e alemã, tornou tenso o ambiente de trabalho e
o convívio nestas cidades.230
Outra grande questão que permeia a participação do Brasil na segunda grande guerra
era a da pequena força industrial presente no país no alvorecer dos anos 1940, visto que,
segundo os estudos governamentais, eram necessários de cinco até vinte vezes o número de
trabalhadores para cada combatente em solo Europeu. O Brasil dispunha à época de seis
milhões de homens para a guerra, “seriam necessários trinta milhões de homens na indústria.
[...]. Mas o país tinha apenas 1,25 milhão de trabalhadores industriais. Uma vez que cerca de
80% da população do país vivia no campo, seria do interior a contribuição de braços para a
indústria”.231 Grande parte da população camponesa do Brasil estava ligada ao trabalho na
agricultura, este quadro já vinha se modificando devido ao êxodo rural, e nos anos seguintes
iria mudar completamente, a população vivendo nas cidades superaria a do campo. O
incremento do trabalho urbano deu-se também, em grande parte, graças à migração dos
trabalhadores nordestinos para os centros urbano-industriais do país, eles compunham
também o exército da produção. E não somente este. Outro grande embate travado em terras
brasileiras ocorrera no território da Amazônia, nos seringais do norte do país, e é chamada de
“Batalha da Borracha”.
Com a entrada dos Estados Unidos na guerra em 1941 e com os acordos comerciais
travados no ano anterior com o Brasil, os norte-americanos irão requisitar do país o
fornecimento exclusivo do látex produzido no país pelos cinco anos que se sucedem ao
acordo. Assim sendo, o Brasil venderia aos EUA todo o excedente de sua extração de
borracha natural, em troca receberia mais do que o mercado mundial estava pagando pelo
produto. A necessidade da borracha para a indústria bélica estadunidense tornava o negócio
atrativo para o Brasil. Então o governo Vargas inicia, no biênio 1941/1942, um gigantesco
esforço de guerra para o alistamento de “soldados”, e eles eram assim chamados, para
230
FÁVERI, Marlene de. Memórias de uma (outra) guerra: cotidiano e medo durante a Segunda Guerra em
Santa Catarina. Florianópolis/Itajaí: Ed. da UFSC/Ed. da Univali, 2005.
231
CYTRYNOWICZ, op. cit., p. 199.
112
trabalhar nos campos amazônicos extraindo o látex das seringueiras. Deste modo, o
seringueiro estaria contribuindo para o esforço de guerra nacional, e deveria ser encarado
como um soldado defendendo a sua pátria, do mesmo modo daqueles que pegavam em armas
para defender o litoral ou para guerrear na Europa.232
A Amazônia, inicialmente, aparecia como a salvação dos aliados para o problema da
borracha, porém faltava-lhe a infraestrutura necessária para a exploração de centenas de
toneladas. O governo estadunidense providenciara já no início de 1941, um estudo sobre a
capacidade de extração da Amazônia, e “de acordo com os cálculos otimistas do estudo, uma
produção de 100.000 toneladas implicava 100.000 seringueiros, a serem trazidos, muito
provavelmente do árido e empobrecido Nordeste, como nos dias do boom” 233 da borracha no
início do século XX. Coincidentemente, o biênio 1941/1942 fora de grande seca para a região
Nordeste.
Portanto, o governo Vargas teria uma grande oportunidade de utilizar-se de uma
problemática para sanar outra. A expectativa de migrantes levados para o Norte foi de mais de
48 mil pessoas, a maioria de homens adultos, mas estão computados neste número tanto
mulheres quanto crianças, que, inicialmente, não preencheriam a vaga de “soldados”. Levados
aos seringais do norte do país principalmente por via terrestre, nos anos anteriores quando a
seca atingia a região, os retirantes eram levados por via marítima, porém, neste 1942, tal ação
temerária havia de ser evitada principalmente pelo medo provocado pelos submarinos
alemães, que navegavam pelo Atlântico e já haviam feito muitas vítimas.234
A seca e a guerra fizeram muitas vítimas brasileiras, na primeira metade dos anos
1940, contudo, o maior número de óbitos não se deu na seca do nordeste, ou nas batalhas
travadas na Itália pela FEB ou FAB. O altíssimo número de mortos deu-se na região norte,
nos seringais, principalmente pelo despreparo dos trabalhadores e pelas péssimas condições
de trabalho a que eram submetidos os soldados da borracha.
Já não havia chovido no ano de 1941, e quando não houve precipitações naquele
1942 a situação agravou-se. Novamente, as cidades viram acorrer às suas portas milhares de
retirantes, possivelmente um número atenuado, uma vez que a rota de migração para São
Paulo e Rio de Janeiro já havia sido estabelecida nos anos anteriores. A necessidade de
232
DEAN, Waren. A luta pela borracha no Brasil: um estudo de história ecológica. São Paulo: Nobel. 1989, p.
138.
233
DEAN, op. cit., p. 138.
234
O historiador Marco Antonio Villa apresenta 48.785 nordestinos computados por órgãos governamentais,
porém insinua a possibilidade de haver uma migração autônoma para a região, podendo elevar
consideravelmente este número. VILLA, Marco Antonio. Vida e morte no sertão: História das secas no
Nordeste nos séculos XIX e XX. São Paulo: Ática. 2000, p.164.
113
235
NEVES, Frederico de Castro. Getúlio e a seca: políticas emergenciais na era Vargas. Revista Brasileira de
História. São Paulo: ANPUH. v. 21, n. 40, jan-jun, 2001. p. 126.
236
NEVES (2001), op. cit., p. 118.
237
NEVES (2001), op. cit., p. 119. Conjuntamente à existência de campos de concentração no Nordeste durante
a seca de 1942, houve também, na região sul do Brasil, principalmente nos estados de Santa Catarina e Rio
Grande do Sul, campos de concentração para aprisionar suspeitos de cooperação com países membros do Eixo.
Cf.: FÁVERI, op. cit.
114
238
SOUZA, Itamar. Migrações internas no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes, 1980, p. 67.
115
239
A título de exemplo, Departamento Nacional do Café (1933), Instituto Nacional do Açúcar e do Álcool
(1933), Instituto Nacional do Mate (1938), Instituto Nacional do Pinho (1941), Instituto Nacional do Sal (1941),
Instituto do Cacau da Bahia (1931), Departamento Nacional de Produção Mineral – DNPM (1934), Conselho
Nacional do Petróleo (1938), Conselho de Águas e Energia Elétrica (1939), Conselho Nacional de Minas e
Metalurgia (1940), Plano Siderúrgico Nacional (1940), Comissão Executiva Têxtil (1942), Comissão Nacional
de Combustíveis e Lubrificantes (1941), Comissão Nacional de Ferrovias (1941), Comissão do Vale do Rio
Doce (1942), Comissão da Indústria do Material Elétrico (1944), Conselho Federal do Comércio Exterior (1934),
entre diversos outros. Cf: DRAIBE, Sônia. Rumos e metamorfoses: um estudo sobre a constituição do Estado e
as alternativas da industrialização no Brasil, 1930-1960. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985, p. 90.
240
MUNIZ, João Carlos. Apresentação. Revista de Imigração e Colonização. Rio de Janeiro: Conselho de
Imigração e Colonização. Ano 1, n. 1, p. 3, Jan. de 1940.
241
SECRETARIA do Conselho, Primeiro ano de trabalhos do Conselho de Imigração e Colonização. Revista de
Imigração e Colonização. Rio de Janeiro: Conselho de Imigração e Colonização. Ano 1, n o 1, p. 7, Jan. de 1940.
116
242
PERES, Elena Pájaro, “Proverbial Hospitalidade”? A Revista de Imigração e Colonização e o discurso oficial
sobre o imigrante (1945-1955). Acervo. Rio de Janeiro: Arquivo Histórico do RJ, v. 10, no 2, p. 55-70, jul/dez
1997.
243
MACHADO, Dulphe Pinheiro. Relatório de uma viagem através do Nordeste, em maio de 1942. Revista de
Imigração e Colonização. Rio de Janeiro: Conselho de Imigração e Colonização. Ano III, n o 2, p. 50, Ago. de
1942.
117
Como é notório, o rio São Francisco é uma das vias principais das migrações
internas do país e por ela, desde muito tempo, trabalhadores do sertão da Baía,
Paraíba, Pernambuco, Ceará e Piauí encaminham-se, principalmente, em demanda
dos pontos terminais da Estrada de Ferro Central do Brasil no Estado de Minas, isto
é: Pirapora e Montes Claros. Nessas cidades é-lhes fácil obter transporte gratuito
para o Estado de São Paulo, onde encontrarão uma colocação satisfatoriamente
remunerada na agricultura.246
Esta rota era conhecida dos migrantes principalmente pela facilidade, muito usada
pelos retirantes nordestinos, como pôde ser constatado pelo CIC, já no ano de 1939. Na data
citada houve uma proposição por parte do conselho à Presidência da República de duas ações
práticas para o auxílio a grupos de migrantes, “uma destinada ao socorro imediato e de
emergência aos flagelados concentrados nas cidades de Montes Claros e Pirapóra, em Minas
Gerais, a caminho do Estado de São Paulo”. Esta ação fora aprovada pela presidência e
executada por um dos “membros do conselho, o qual organizou hospedarias provisórias e
serviço médico em Montes Claros e Pirapóra e providenciou para o transporte dos
refugiados”. A outra proposta endereçada ao gabinete do presidente da elaboração de um
projeto visando a soluções permanentes “destinadas a evitar a repetição das migrações
periódicas determinadas pelo flagelo da seca”, porém as ações permanentes nunca saíram do
papel.247
A constatação da importância da migração para a região sul durante os anos de
guerra dá-se também na urgência de trabalhadores para a indústria e para a agricultura. Os
retirantes que partiriam para as localidades que auxiliariam no esforço de guerra tinham
privilégios, “as despesas de alimentação aos nordestinos relacionados pela Delegacia
246
VASCONCELOS, Henrique Dória de. Relatório de uma viagem de inspeção, apresentado ao Conselho de
Imigração e Colonização. Revista de Imigração e Colonização. Rio de Janeiro: Conselho de Imigração e
Colonização. Ano III, no 2, p. 98, Ago. de 1942.
247
SECRETARIA op. cit., p. 17.
119
Regional, e destinados aos seringais ou às lavouras do sul do país, corriam por conta do
Conselho de Imigração e Colonização”. Deveriam ser tratados com dignidade, para que não
fossem confinados nos navios, como ocorrera nos anos anteriores, “a representação do médico
da Hospedaria dos Imigrantes do Estado de São Paulo alude às condições precárias, em que
viajaram os trabalhadores nacionais, transportados pelo vapor Lloyd Brasileiro, ‘Santarem’,
chegado a 2 de novembro do ano próximo passado [1935]”. Ações que, no julgamento do
CIC, não deveriam ocorrer mais, principalmente devido ao controle desempenhado pelo
conselho.248
Se as ocorrências sobre as precárias condições de viagem dos destinados ao sul do
país chegavam ao conhecimento do conselho nos anos que antecederam a seca de 1942, o
mesmo não ocorrera com as viagens à Amazônia. As péssimas condições de transporte só
foram contornadas quando da viagem do conselheiro Machado para a região, ou seja, mais de
um ano após a liberação das passagens. “Os trabalhadores que, anteriormente à ação
coordenadora do Conselho de Imigração e Colonização, seguiam para a Amazônia e
Território do Acre, embarcavam como verdadeiros escravos dos aliciadores e dos
seringalistas”249, onde
248
MACHADO, op. cit., p. 36/80.
249
MACHADO, op. cit., p. 79.
250
ENCAMINHAMENTOS de trabalhadores nordestinos para a Amazônia. Revista de Imigração e Colonização.
Rio de Janeiro: Conselho de Imigração e Colonização. Ano III, n . 2, p. 9-10, Ago. de 1942.
120
no nordeste, entre diversas outras promessas firmadas entre o seringalista e o seringueiro, não
foram cumpridas. A fiscalização dos direitos trabalhistas não era realizada, quando os
trabalhadores desembarcavam nos seringais, deveriam seguir a lei dos seringalistas, donos das
terras onde trabalhariam. O auxílio às famílias desapareceu dentro de pouco tempo, não durou
os dois anos nos quais deveriam retornar os trabalhadores. Se o Brasil perdeu “465 soldados
mortos no front europeu da guerra: entre quinze e vinte mil trabalhadores teriam morrido no
mais completo abandono na floresta”.251 Se os números de retirantes recrutados pode ser
maior, assim também existe a possibilidade de que o número de mortos ultrapasse a casa das
vinte mil pessoas.
251
CYTRYNOWICZ, op. cit., p. 219.
252
DEAN, op. cit., p. 151.
253
VASCONCELOS, op. cit., p. 99.
254
MACHADO, op. cit., p. 78.
255
VILLA (2000), op. cit., p. 165.
121
256
VASCONCELOS, op. cit., p. 99.
257
VASCONCELOS, op. cit., p. 101.
258
CYTRYNOWICZ, op. cit., p. 222.
259
SECRETO, María Verónica. A ocupação dos “espaços vazios” no governo Vargas: do “Discurso do rio
Amazonas” à saga dos soldados da borracha. Estudos Históricos. Rio de Janeiro: FGV. v. 2, n. 40, p. 125. Jul.-
Dez. de 2007.
122
260
SECRETO, op. cit., p. 125.
261
Assim ocorrera no início dos anos 1930 com o advento dos direitos trabalhistas e sociais. “A ideologia do
trabalhismo é a resultante da confluência de distintas influências e perspectivas de classe. E não o produto do
mero cálculo interesseiro, plenamente intencional, dos agentes do Estado ou da burguesia brasileira. É possível
identificar nela as impressões congênitas deixadas pelas lutas das classes trabalhadoras. Nem por isso podemos
desconsiderar que, em ultima análise ela é uma fala roubada aos trabalhadores, reformulada e a eles devolvida
como mito”. Cf: PARANHOS, Adalberto. O Roubo da Fala. São Paulo: Boitempo, 1999. p. 23.
262
SECRETO, op. cit., p. 122.
123
do jornal pedir o auxílio dos operários para o presidente Vargas neste momento de luta.263 Da
mesma forma, o governo vai aos retirantes da seca, pedir ajuda no conflito que o Brasil
travava em defesa da democracia. Seja na cidade, no sertão ou na floresta, o dever de cidadão
do povo brasileiro era acudir em defesa da nação contribuindo para o esforço de guerra, de
modo a insuflar o nacionalismo e a atender às demandas do país através dos pedidos do líder
da nação o presidente Getúlio Vargas.
A sensação de pertencimento despertada exacerbadamente pela propaganda
veiculada pelo DIP surtiu, muita vezes, o efeito desejado. Dezenas de milhares acorreram à
batalha da borracha, e outros muitos tomaram seus postos juntamente às máquinas na batalha
da produção. Contudo, a aceitação de um sentimento despertado pela propaganda não
configura subordinação total ao ideário governamental. Os trabalhadores não cumpriam
cegamente as ações por aceitar sumariamente as ordens do governo, está submissão pode e
deve ser compreendida dentro do panorama geral que é a da evocação de um sentimento pré-
existente na sociedade, que é trazido à tona e direcionado para uma ação comum a toda
sociedade.
Muitas vezes os trabalhadores, e suas famílias, utilizavam-se deste ideário
governamental de cooperação para reclamar com o presidente sobre inúmeros assuntos, na
maioria das vezes, relacionados às promessas feitas pelos aliciadores, ou mesmo, pela
propaganda governamental. Em outras eram pautadas nos direitos assegurados pelos contratos
firmados entre seringueiros e seringalistas, desrespeitados pelos últimos, demonstrando que a
mobilização estava ocorrendo, porém nem sempre do modo como o governo esperava ou
queria.
Aceitar os dizeres dos cartazes que impeliam o trabalhador nordestino a uma
aventura heroica na floresta não significa dizer que ele estava indo somente por estes motivos,
sem um bom salário que o sustentasse, ou sem uma promessa de uma colocação que o fizesse
elevar o seu padrão de vida, é pouco provável que o efeito desejado pelo governo surtisse
tantos resultados. O artista que desenhara os emblemáticos cartazes da campanha da batalha
da borracha era Jean-Pierre Chabloz, imigrante suíço aportado no Brasil em 1940. O traço dos
trabalhadores que compunham os cartazes chegava muitas vezes a se assemelhar com o estilo
263
“Por isso, cada trabalhador estava sendo convocado pessoalmente para a manutenção da ordem,
transformando-se num observador atento de seu ambiente de trabalho nas palavras de Marcondes [Filho Ministro
do Trabalho], o presidente Vargas honrava o trabalhador brasileiro conferindo-lhe ‘a carta de vigilante da
ordem, do ritmo acelerado das nossas atividades e da crescente riqueza do país’. Durante 12 anos, Vargas tudo
dera aos trabalhadores pela força de sua vontade. Agora cabia a eles retribuir o bem que lhes fora outorgado,
mostrando que estavam à altura dos benefícios recebidos. Daí o lema lançado no segundo semestre de 1942:
‘Trabalho e Vigilância’, como forma de exercício da cidadania, como forma de participar do governo da nação”.
GOMES, Angela M. de Castro. A invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005, p. 225.
124
utilizado por Portinari na composição dos painéis do Ministério da Educação e Saúde, ou dos
retirantes retratados durante a década de 1930. Traços que funcionavam de modo a evocar a
memória àquelas figuras conhecidas por uma representação já clássica de trabalho e de
trabalhadores no Brasil.264
A ideia de que todos os retirantes aceitavam e desejavam a migração para o norte não
condiz com a realidade encarada por eles, muitas vezes o migrante destinado aos seringais não
precisava nem chegar ao seu destino para desgostar de sua escolha. O professor-economista
Samuel Benchimol, em um artigo publicado na Revista de Imigração e Colonização, artigo
escrito para o X Congresso Brasileiro de Geografia, intitulado O cearense na Amazônia.
Inquérito antropogeográfico sobre um tipo de imigrante, traduz o sentimento de seus
entrevistados quanto a realização da migração para a floresta. O anseio da viagem vai se
transformando em desgosto, em desmotivação. Os migrantes saíam confiantes do projeto
governamental, e no caminho nas muitas paradas para repor o estoque de lenha dos vapores,
iam se desestimulando com aquilo que encontravam e com aquilo que escutavam. A principal
reclamação era a da imensidão de água, a troca do lugar seco pelo lugar encharcado.
A paradoxal diferença entre a terra que habitava, seca, dura, e a terra que habita após
a migração, úmida, molhada, dificulta ainda mais a ambientação, e faz com que o pensamento
quase único seja o de enriquecer e voltar no prazo de dois anos. Das dezenas de milhares que
foram para os seringais, poucos voltaram. Muitos ficaram pelas terras úmidas, seja impedidos
de voltar ou mortos por não resistirem às doenças da floresta. Emblemático nas entrevistas de
Benchimol é a soma dos seus entrevistados, 12 deles foram para a Amazônia, enxotados pela
seca, 11 foram atraídos pelos seringais, e 22 deles foram arrebatados pela influência das
propagandas governamentais.
264
SECRETO, op. cit., p. 128.
265
BENCHIMOL, Samuel. O cearense na Amazônia. Inquérito antropogeográfico sobre um tipo de imigrante.
Revista de Imigração e Colonização. Ano VI, n. 4, p. 341-342. Dez. de 1945.
125
266
DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO de 11 de maio de 1942. Ata da 76ª Sessão ordinária do Conselho Nacional de
Minas e Metalurgia. p. 7724 Disponível em: Acesso em: 12 ago. 2011.
126
para o transporte dos mencionados nordestinos”.267 A resposta viria somente na 84ª sessão,
ocorrida em 8 de junho de 1942, algumas das companhias carboníferas responderam
afirmativamente ao ofício endereçado a elas pelo CNMM, o Consórcio Administrador de
Empresas de Mineração “Cadem” do Rio Grande do Sul e a Companhia Nacional de Carvão
do Barro Branco, a Companhia Brasileira Carbonífera de Araranguá, a Companhia
Carbonífera de Urussanga, a Companhia Carbonífera Metropolitana e a Montanha
Carbonífera S.A., todas de Santa Catarina. Entretanto, ao que tudo indica, somente as
companhias catarinenses aceitaram receber os migrantes, sobre o número de “300 operários
do nordeste”, porém juntamente com estes, e pode-se inferir que em contrapartida a eles, as
carboníferas de Santa Catarina requisitaram “200 operários escolhidos dentre os imigrantes
que aportassem ao Rio”.268
O ofício enviado ao Conselho de Imigração e Colonização é datado de 14 de maio de
1942, e segundo a Revista de Imigração e Colonização,
267
DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO de 11 de maio de 1942. Ata da 76ª Sessão ordinária do Conselho Nacional de
Minas e Metalurgia. p. 7724 Disponível em: Acesso em: 12 ago. 2011
268
DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO de 18 de julho de 1942. Ata da 76ª Sessão ordinária do Conselho Nacional de
Minas e Metalurgia. p. 11350 Disponível em: Acesso em: 12 ago. 2011.
269
O CONSELHO de Imigração e Colonização em 1942. Revista de Imigração e Colonização. Rio de Janeiro:
Conselho de Imigração e Colonização. Ano IV, no 1, p. 35. Mar. de 1943.
270
DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO de 24 de agosto de 1942. Ata da 93ª Sessão ordinária do Conselho Nacional
de Minas e Metalurgia. p. 13066 Disponível em: Acesso em: 12 out. 2011.
127
do país. A vontade por parte da CNMM existia, as carboníferas aceitaram receber estes
trabalhadores, e não só por uma questão de auxílio aos flagelados. O próprio conselheiro Sr.
Emygdio Junior contata que os três principais problemas da mineração do carvão
concentravam-se nas dificuldades de “transporte, operariado e financiamento”.271 Assim os
migrantes faziam-se necessários e poderiam auxiliar no desafogamento da produção de carvão
mineral que havia crescido muito durante a segunda grande guerra.
As dificuldades enfrentadas pelos retirantes durante o ano de 1942 não foram novas,
as medidas paliativas são recorrentes na ausência de políticas públicas que possuam ações
concretas para amenizar os problemas causados pelas estiagens. Tais medidas permanentes
nunca foram encaradas por nenhum governo anterior à revolução de 1930, e Getúlio Vargas
também não fizera muito para minorar as mazelas das estiagens. E sempre, como alternativa
para atenuar a situação do nordestino quando da aparição das secas, recorria-se à migração
incentivada.
Ora, se a migração era estimulada nas ocasiões de secas, porque então era combatida
enquanto um problema quando a situação das chuvas normalizava-se? O inchaço das cidades
somente foi encarado como uma dificuldade nos momentos após a segunda guerra, assim a
migração anterior a esta época era vista com maus olhos, principalmente por razões
higienistas. A primeira edição da Revista de Imigração e Colonização apresenta o imigrante
branco europeu como modelo de cidadão que era bem-visto pelo país, assim qualquer tipo
étnico diferente era encarado com desconfiança.
O nordestino sofreu com o preconceito relativo a sua formação social,
desacostumado a rotinas de trabalho extensas como as exigidas nas fábricas, o tipo nordestino
somente era bem-visto pelo governo em tempos de seca, e possuía a “missão” de povoar uma
região de baixa densidade demográfica, como o Norte. Porém, para a cidade existiam outros
modelos étnicos considerados mais aptos ao trabalho. Até mesmo para as minas de carvão do
sul do país, que, mesmo aceitando os nordestinos, em contrapartida requisitava também a
remessa de imigrantes europeus para a região. Assim, a migração possuiu através dos tempos
diferentes definições.
271
DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO de 16 de outubro de 1942. Ata da 93ª Sessão ordinária do Conselho Nacional
de Minas e Metalurgia. p. 15460 Disponível em: Acesso em: 12 out. 2011.
128
Grande parte dos estudos datados da década de 1940 dão seleta importância aos
direitos trabalhistas e sociais como motivação para a vinda à cidade, e em muitos casos o são
verdadeiramente, porém existiam poucas ações do Estado que visassem a estender este direito
ao trabalhador rural. Todavia, isto não acontecera, e nas tentativas ocorridas, como na batalha
da borracha as intenções foram frustradas. Os trabalhadores não viram seus direitos
trabalhistas ou sociais, e ainda por cima tiveram de aceitar a lei dos seringalistas, já que em
muitos casos, a fiscalização passava longe dos seringais mesmo com uma embarcação para tal
tarefa.
A medida número 10 apresentada pelo conselheiro Dulphe Pinheiro Machado para
amenizar os problemas das secas tem por iniciativa “instituir uma legislação adequada ao
272
NEIVA, Artur Hehl. O problema imigratório brasileiro. Revista de Imigração e Colonização. Rio de Janeiro:
Conselho de Imigração e Colonização. Ano V, n. 3, p. 178. Set. de 1944.
273
CARVALHO, Fernando Mibielli de. O Exôdo Rural. Revista de Imigração e Colonização. Rio de Janeiro:
Conselho de Imigração e Colonização. Ano III, n. 3-4, p. 18. Dez. de 1942.
129
Assim, atraidas por salários mais remuneradores, pela proteção social que se
começava a dispensar ao trabalhador industrial, procurando gozar o benefício das
conquistas da civilização moderna, que não chegavam até o campo, as populações
do interior vinham afluindo em número cada vez maior para os grandes centros
274
MACHADO, Dulphe Pinheiro. Relatório de uma viagem através do Nordeste, em maio de 1942. Revista de
Imigração e Colonização. Rio de Janeiro: Conselho de Imigração e Colonização. Ano III, n. 2, p. 91, Ago. de
1942.
275
VASCONCELOS, Henrique Dória de. Relatório de uma viagem de inspeção, apresentado ao Conselho de
Imigração e Colonização. Revista de Imigração e Colonização. Rio de Janeiro: Conselho de Imigração e
Colonização. Ano III, n. 2, p. 98, Ago. de 1942.
276
VASCONCELOS, op. cit., p. 99.
130
urbanos. Infelizmente, após a guerra e a crise mundial que acarretou, o seu número
passou a exceder as necessidades dos centros fabris da maioria das nações e a oferta
de braços para o trabalho nas cidades tornou-se maior do que a sua procura.277
277
CARVALHO (1942), op. cit., p. 14.
278
DURHAM, op. cit., p. 139.
131
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
caminhos percorridos, e o que irá definir se o migrante conseguiu o que queria é a sua
colocação no mercado de trabalho.
Os números apresentados, ano após ano, pelo IBGE demonstram que o país continua
em marcha, as trocas de ambiente de vida são apresentadas pelas oportunidades de trabalho.
Assim, mesmo com as muitas crises do sistema capitalista, que diminuem a oferta de
colocações no mercado formal, as levas migratórias mantêm-se em marcha. O destino pode
ser modificado, como foi durante os anos 1940, mas a migração existiu por toda a história do
país. Nos anos 1950-1960, o eldorado para os migrantes foi a construção de Brasília, e as
grandes possibilidades por lá encontradas. Contudo o lugar de São Paulo e Rio de Janeiro
como centro financeiro do país não fora retirado, e, assim, mesmo com as sucessivas crises
econômicas, com oportunidades em outras localidades, as correntes migratórias não deixaram
de se direcionar para a região sudeste.
E quando da chegada nestes espaços urbanos, seja nas capitais ou nas grandes
cidades interioranas, outra problemática surgia para o migrante: o que fazer? Para aqueles que
conseguiam a instalação nas hospedarias de imigrantes a situação tornava-se mais fácil, porém
não tanto, pois a permanência nestas instituições possuía limites. Encontrando ou não lugar
para ficar, o retirante em grande parte das vezes recorreria a um conhecido ou então aos
cortiços. Também por pouco tempo, pois a sua colocação final dar-se-ia em grande parte das
vezes nos subúrbios das grandes cidades, e quando isto não era possível, se uniria àqueles que
não possuíam condições para adquirir uma habitação licenciada, nas ocupações irregulares
das favelas paulistas e cariocas.
A primeira menção às favelas de que se tem notícia na história do país deu-se na
conjuntura da Primeira República, quando as tropas que derrotaram a cidade de Canudos
vieram reclamar sua premiação: moradia para todos os combatentes.
279
PERLMAN, Janice E. O mito da marginalidade: favelas e política no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 2002. p. 41.
133
responsáveis pelo censo é ainda a informação de que foi muito avultado o número de casas
vazias que os recenseadores encontraram em vários municípios baianos, pernambucanos,
alagoanos e mineiros”. O grande número de habitações abandonadas foi interpretado pelos
recenseadores como decorrência da migração para a região sul do Brasil, principalmente às
cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. Relacionando estes dados com os fornecidos pelo
“Serviço de Imigração e Colonização do Estado de São Paulo”, é possível encontrar a soma
de trabalhadores ingressantes naquele estado, entre as décadas de 1920 e 1940, de “701.302
trabalhadores nacionais.[...]. De acordo com a mesma fonte, o ano de 1939 registra a maior
cifra de imigrantes nacionais entrados em São Paulo, ou seja, exatamente, 100.139”.280
A música Recenseamento, cantada por Carmen Miranda, com a letra de Assis
Valente, conta a história do censo de 1940, e da visita a uma casa de uma das favelas cariocas.
O recenseador entra na casa e inicia as indagações sobre estado civil, profissão, a senhora
responde, “obediente eu sou a tudo que é da lei/fiquei logo sossegada e falei então:/O meu
moreno é brasileiro, é fuzileiro,/e é quem sai com a bandeira do seu batalhão!/A nossa casa
não tem nada de grandeza/nós vivemos na pobreza, sem dever tostão”. Indignada, prossegue
na descrição dos seus bens:
280
CARVALHO, Fernando Mibielli de. O Exôdo Rural. Revista de Imigração e Colonização. Rio de Janeiro:
Conselho de Imigração e Colonização. Ano III, no 3-4, p. 11. Dez. de 1942.
281
VALENTE, Assis. Recenseamento. [gravada por Carmem Miranda] 1940.
282
PARANHOS, Adalberto. A invenção do Brasil como terra do samba: os sambistas e sua afirmação social.
História, Franca, v. 22, n. 1, 2003. p. 108. Disponível em: <http://www.scielo.br/
scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-90742003000100004&lng=en&nrm=iso> Acesso em: 13 jan. 2012.
134
remete à presença de uma migrante na cidade do Rio de Janeiro. Além do mais, mesmo o
recenseamento sendo prática comum no Brasil já há algumas décadas, é interessante o fato de
pesquisar o morro carioca, local de moradia de famílias carentes muitas vezes sem condições
de habitar os bairros próximos ao centro.
A moradora dos morros cariocas, migrante, traduz a aspereza com que é tratada pelo
funcionário recenseador no seu canto, redentor e revelador da sua origem. “A atração exercida
pelos ‘confortos urbanos’, pelos empregos melhor remunerados que no campo, acaba
aparecendo como o principal fator condicionante da saída do lugar de origem”. 284 Contudo, é
reducionista afirmar que somente estes confortos urbanos façam com que o migrante largue a
sua vida e busque novas formulações, Eunice Durham, em uma de suas entrevistas, localiza
um migrante em situação emblemática, encontrado “na Favela do Vergueiro, então inundada.
Vivendo num barraco miserável e desempregado, quase sem ter o que comer afirmava sem
hesitação que em São Paulo ‘era muito melhor’ do que na Bahia, de onde vinha”. Mais do que
demonstrar o seu sucesso na cidade grande, esta fala demonstra “a falência de uma sociedade
rural em desintegração”.285
Uma sociedade que não consegue mais suprir as necessidades de seus habitantes, que
por sua vez, tal qual os retirantes esqueléticos de Candido Portinari, ou Fabiano, Sinhá
Vitória, o menino mais velho e o menino mais novo, de Graciliano Ramos, devem
empreender a migração como solução final para seus problemas. Pode-se observar que a
situação não se configura desta maneira, e como decorrência de uma maciça migração
nacional, as cidades incham, decorrendo daí outros problemas sociais.
Em grande parte das favelas brasileiras, “a maioria dos moradores são migrantes
rurais, não porque vieram diretamente da roça, mas porque, apesar de estarem habitando a
cidade, mantêm, através das atividades exercidas no campo, padrões e valores ‘tradicionais’,
com os quais enfrentam as novas condições de vida”.286 Estas relações pessoais travadas entre
283
PERLMAN, op. cit., p. 41.
284
TAUBE, op. cit., p.58.
285
DURHAM, Eunice R.. A caminho da cidade: a vida rural e a migração para São Paulo. São Paulo:
Perspectiva, 1984, p. 222.
286
TAUBE, op. cit., p.125.
135
287
PERLMAN, op. cit., p. 235.
288
HALL, Stuart. Da diáspora: Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003, p.
28.
136
289
FABRIS, Annateresa; FABRIS, Mariarosaria. A função social da arte: Candido Portinari e Graciliano Ramos.
Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. São Paulo, n. 38. p. 16-19, 1995.
290
RAMOS, Graciliano Apud FABRIS; FABRIS (1995), op. cit., p. 19.
138
REFERÊNCIAS
Gerais:
ALBUQUERQUE Jr., Durval M. “Palavras que calcinam, palavras que dominam: a invenção
da seca do Nordeste”. Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUH/Marco Zero, v. 15,
n 28, p. 111-120, 1995.
__________ Paraíbas e bahianos: órfão do campo, filhos legítimos da cidade. Travessia. São
Paulo: Centro de Estudos Migratórios. São Paulo, n. 8, set./dez. de 1990.
ALMEIDA, José Américo. As secas do Nordeste. [s/l]: Fundação Casa de José Américo e
Fundação Guimarães Duque, 1981.
ALVES, Joaquim. História das secas (século XVII a XIX). Acervo virtual Oswaldo Lamartine
de Faria. Disponível em: <http://www.colecaomossoroense.org.br/
pics/Historia_das_secas.pdf>. Acesso em: 04 maio 2011.
AQUINO, Flávio. Depoimento sobre Candido Portinari [01 nov. 1983]. Entrevistador: Maria
Christina Guido; Rose Ingrid Goldschimidt. Rio de Janeiro: Projeto Portinari.
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre a literatura e história da
cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
BETTO, Frei. O Natal de Dom Cappio. Eco Debate. 17 de dez. 2007. Disponível em:
<http://www.ecodebate.com.br/2007/12/17/natal-de-dom-cappio-artigo-frei-betto/> Acesso
em: 26 abr. 2011.
CAPPIO, Dom Flávio. A transposição do Rio São Francisco. Entrevista. REMHU – Revista
Interdisciplinar da Mobilidade Humana. Ano XIX n. 36. Jan./jun. de 2011.
CARDIM, Fernão. Tratados da Terra e Gente do Brasil. Rio de Janeiro: Editores J. Leite e
Cia, 1925.
CARMO, Paulo Sérgio do. História e ética do trabalho no Brasil. São Paulo: Editora
Moderna. 1998.
CARVALHO, Cleide. ‘Lula não faz mais jus ser chamado de nordestino’, diz Dom Cappio no
14º dia de jejum contra a transposição do rio São Francisco. Extra. 10 de dezembro de 2007.
Disponível em: <http://extra.globo.com/noticias/brasil/lula-nao-faz-mais-jus-ser-chamado-de-
nordestino-diz-dom-cappio-no-14-dia-de-jejum-contra-transposicao-do-rio-sao-francisco-
641757.html> Acesso em: 30 abr. 2011.
CARVALHO, Luciana dos Santos. Graciliano Ramos: a dor e a náusea. 2009. 190 f. Tese
(Doutorado em Literatura Brasileira) – Instituto de Letras/Literatura Brasileira, Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009.
DEAN, Waren. A luta pela borracha no Brasil: um estudo de história ecológica. São Paulo:
Nobel. 1989.
140
DIÁRIO Oficial da União. 11 de maio de 1942. Ata da 76ª Sessão ordinária do Conselho
Nacional de Minas e Metalurgia. Disponível em: Acesso em: 12 ago. 2011
DIÁRIO Oficial da União. 16 de outubro de 1942. Ata da 93ª Sessão ordinária do Conselho
Nacional de Minas e Metalurgia. Disponível em: Acesso em: 12 out. 2011.
DIÁRIO Oficial da União. 18 de julho de 1942. Ata da 76ª Sessão ordinária do Conselho
Nacional de Minas e Metalurgia. Disponível em: Acesso em: 12 ago. 2011.
DIÁRIO Oficial da União. 24 de agosto de 1942. Ata da 93ª Sessão ordinária do Conselho
Nacional de Minas e Metalurgia. Disponível em: Acesso em: 12 out. 2011.
DURHAM, Eunice R. A caminho da cidade: a vida rural e a migração para São Paulo. São
Paulo: Perspectiva. 1984.
EAGLETON, Jerry. Crítica literária marxista. São Paulo: Editora Unesp, 2011.
FÁVERI, Marlene de. Memórias de uma (outra) guerra: cotidiano e medo durante a Segunda
Guerra em Santa Catarina. Florianópolis/Itajaí: Ed. da UFSC/Ed. da Univali, 2005.
FERRARI, Monia de Melo. A migração nordestina para São Paulo no segundo governo
Vargas (1951-1954) - Seca e desigualdades regionais. 2005. 160 f. Dissertação (Mestrado em
Ciências Sociais) - Centro de Educação e Ciências Humanas Universidade Federal de São
Carlos, São Carlos, 2005.
141
FREIRE, Sílvia. Pronta, transposição do rio São Francisco em Alagoas não funciona.
Folha.com. 25 de maio de 2011. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/mercado/906904-pronta-transposicao-do-sao-francisco-em-
alagoas-nao-funciona.shtml> Acesso em: 30 abr. 2011.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. São Paulo: Companhia das letras. 2006.
GIUNTA, Andrea. Candido Portinari y el sentido social del arte. Buenos Aires: Siglo XXI
Editores Argentina, 2005.
GLASS, Verena. Bispo faz greve de fome para protestar contra a transposição. Carta Maior.
27 de setembro de 2005. Disponível em:
<http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=3845> Acesso em:
26 abr. 2011.
GOMES, Sueli de Castro. Uma inserção dos migrantes nordestinos em São Paulo: o comércio
de retalhos. Imaginário. v. 12, n 13, 2006.
GRAHAM, Douglas H., HOLLANDA FILHO, Sergio Buarque de. Migrações internas no
Brasil: 1872 -1970. São Paulo: IPE/USP/CNPQ, 1984.
KNAUSS, Paulo. O desafio de fazer História com imagens: Arte e Cultura Visual.
ArtCultura. v. 8, n 12, Uberlândia: EDUFU. Jan.-Jun. 2006.
142
MALARD, Leticia. Ideologia e realidade em Graciliano Ramos. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia,
1976.
MARTINS, Ana Luiza; LUCA, Tânia Regina de. (org.). História da Imprensa no Brasil. São
Paulo: Contexto, 2008.
MICELI, Sérgio. Imagens negociadas: retratos da elite brasileira (1920-1940). São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.
MUSEU de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand. Cem Obras Primas de Portinari.
[Exposição] São Paulo, nov.-dez. 1970.
PAULET, Antonio José Silva; VIEIRA Jr., Antonio Otaviano. Descrição geográfica da
capitania do Ceará. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza, 1898, tomo XII.
PEDROSA, Israel. Depoimento sobre Candido Portinari [06 dez. 1983]. Entrevistador: Maria
Christina Guido; Rose Ingrid Goldschimidt. Rio de Janeiro: Projeto Portinari.
143
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & literatura: uma velha-nova história. Nuevo Mundo
Mundos Nuevos. 2006. Disponível em: <http://nuevomundo.revues.org/1560> Acesso em: 5
maio 2011.
PORTINARI, Maria. Depoimento sobre Candido Portinari [19 nov. 1982]. Entrevistador:
Maria Christina Guido; Rose Ingrid Goldschimidt. Rio de Janeiro: Projeto Portinari.
RAMOS, Graciliano. [Carta] 18 fev. 1946. Rio de Janeiro: [para] Candido Portinari. 2f.
Reflexões sobre as obras da série Retirantes. Disponível em:
<http://www.graciliano.com.br/manuscritos/cartaCP.html> Acesso em: 02 nov. 2011.
RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 110ª Ed. Rio de Janeiro: Record, 2009.
RIOS, Kênia Sousa. A cidade cercada: festa e isolamento na seca de 1932. In: NEVES,
Frederico de Castro; SOUZA, Simone (Org.) Seca. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha,
2002.
SALLA, Thiago Mio. O fio da navalha: Graciliano Ramos e a revista Cultura Política. 2010.
720 f. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) – Escola de Comunicação e Artes,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.
SOBRINHO Thomaz Pompeu. História das secas (Século XX. Acervo virtual Oswaldo
Lamartine de Faria. p. 44. Disponível em: <http://www.colecaomossoroense.org.br/
acervo/historia_das_secas_xx.pdf> Acesso em: 04 maio 2011.
144
TROTSKY, Leon. Literatura e revolução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
VIEIRA Jr., Antonio Otaviano Vieira. O Açoite da Seca: Família e Migração no Ceará (1780-
1850). Trabalho apresentado no XIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos
Populacionais, realizado em Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil de 4 a 8 de novembro de 2002.
VILLA, Marco Antonio. Que braseiro, que fornalha. Nossa História. Rio de Janeiro: Vera
Cruz, v. 18, p. 15, abril de 2005.
VILLA, Marco Antonio. Vida e morte no sertão: História das secas no Nordeste nos séculos
XIX e XX. São Paulo: Ática. 2000.
YOSHIKAWA Daniella Parra Pedroso. O que se entende por polígono das secas. JusBrasil.
Disponível em: <http://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/1013964/o-que-se-entende-por-poligono-
das-secas> Acesso em: 20 abr. 2012.
Iconográficas:
PORTINARI. Candido. Criança Morta. Petrópolis: único Exemplar. Painel a óleo sobre tela.
180 x 190 cm, 1944. Disponível em: <http://www.portinari.org.br/IMGS/
jpgobras/OAa_2735.JPG> Acesso em: 14 dez. 2011.
__________ Criança Morta. Rio de Janeiro: único Exemplar. Painel a óleo sobre tela. 179 x
150 cm, 1945. Disponível em: <http://www.portinari.org.br/IMGS/ jpgobras/OAa_4175.JPG>
Acesso em: 14 dez. 2011.
__________ Enterro na Rede. Petrópolis: único Exemplar. Painel a óleo sobre tela. 180 x 220
cm, 1944. Disponível em: <http://www.portinari.org.br/IMGS/ jpgobras/OAa_2734.JPG>
Acesso em: 14 dez. 2011.
145
__________ Grupo. Rio de Janeiro: único Exemplar. Painel a óleo sobre tela. 56 x 46 cm,
1945. Disponível em: <http://www.portinari.org.br/IMGS/ jpgobras/OAa_3382.JPG> Acesso
em: Acesso em: 14 dez. 2011.
__________ Mulher do Pilão. Rio de Janeiro: único Exemplar. Painel a óleo sobre tela. 100 x
81 cm, 1945. Disponível em: <http://www.portinari.org.br/IMGS/ jpgobras/OAa_0905.JPG>
Acesso em: 14 dez. 2011.
__________ Os Despejados. Rio de Janeiro: único Exemplar. Painel a óleo sobre tela. 37 x 65
cm, 1934. Disponível em: <http://www.portinari.org.br/IMGS/ jpgobras/OAa_3677.JPG>
Acesso em: 14 dez. 2011.
__________ Retirantes. Petrópolis: único Exemplar. Painel a óleo sobre tela. 190 x 180 cm,
1944. Disponível em: <http://www.portinari.org.br/IMGS/ jpgobras/OAa_2733.JPG> Acesso
em: 14 dez. 2011.
__________ Retirantes. Rio de Janeiro: único Exemplar. Painel a óleo sobre tela. 180 x 150
cm, 1945. Disponível em: <http://www.portinari.org.br/IMGS/ jpgobras/OAa_5186.JPG>
Acesso em: 14 dez. 2011.
__________ Retirantes. Rio de Janeiro: único Exemplar. Painel a óleo sobre tela. 38 x 46 cm,
1945. Disponível em: <http://www.portinari.org.br/IMGS/ jpgobras/OAa_1501.JPG> Acesso
em: 14 dez. 2011.
__________ Retirantes. Rio de Janeiro: único Exemplar. Painel a óleo sobre tela. 73 x 60 cm,
1936. Disponível em: <http://www.portinari.org.br/ IMGS/jpgobras/OAa_3206.JPG> Acesso
em: 14 dez. 2011.
__________ Retirantes. Rio de Janeiro: único Exemplar. Painel a óleo sobre tela. 60 x 73 cm,
1936. Disponível em: <http://www.portinari.org.br/ IMGS/jpgobras/OAa_2292.JPG> Acesso
em: 14 dez. 2011.
ANEXOS
147
Os Despejados
Painel a óleo sobre tela. 37 x 65 cm.
1934
148
Retirantes
Painel a óleo sobre tela. 73 x 60 cm.
1936
149
Retirantes
Painel a óleo sobre tela. 60 x 73 cm.
1936
150
Mulher do Pilão
Painel a óleo sobre tela. 100 x 81 cm.
1945
152
Retirantes
Painel a óleo sobre tela. 38 x 46 cm.
1945
153
Grupo
Painel a óleo sobre tela. 56 x 46 cm.
1945