Tracos - Eduardo Cilto
Tracos - Eduardo Cilto
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Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 1
Dentre tantas casas regidas por uma tradição patriarcal, aquele lar era
visto no mínimo de forma curiosa pelos outros da pequena cidade. Além do
próprio fato de ser a única casa dos arredores governada por mulheres,
cogitar o motivo disso era o que dava ainda mais sabor às línguas. Mau
agouro, diziam uns; mero acaso, diziam outros. O fato era que todos os
homens que ali depositavam suas sementes, não duravam o suficiente para
ver seus cabelos ficarem brancos.
Auxiliadora tivera três filhas até a morte do marido por tuberculose. A
primeira filha, Firmina, tornou-se viúva com menos de um ano de casamento.
O marido foi picado por uma cobra e a mulher jamais se casou novamente.
Por nunca ter tido filhos, disfarçava a tristeza toda vez que fazia um parto, o
que lhe era muito comum, sendo uma das melhores parteiras da região. A
segunda filha, Benvinda, tivera apenas um menino, quando o marido foi
então acometido por febre tifoide. A vez de Auxiliadora também chegou,
morrendo pouco depois do nascimento da terceira e última filha, Amparo.
Esta ficou então aos cuidados das irmãs, que, tornando-se viúvas, retornaram
para a casa da mãe. Na casa moravam, assim, as três irmãs e o filho de
Benvinda, cujo nome era Sebastião. Mais um membro daquela família,
porém, estava por vir.
Amparo repousava na cadeira de balanço do alpendre numa manhã de
setembro; o tricô recém-finalizado dobrado em uma das pernas. Uma das
mãos tocava a grande barriga, sentindo os movimentos do bebê, enquanto a
outra balançava um leque. Ao longe, divisava as frágeis plantações com seus
espantalhos aposentados; ela mesma remendara a blusa de um deles. Estava
quente, não chovia há pelos menos seis meses. As chuvas desse ano haviam
sido fracas, fazendo muita gente perder o gado e a colheita pelo que ouvira
falar.
— Está mais tranquila? — Firmina perguntou, saindo da casa.
Achegando-se atrás da irmã.
— Ainda estou preocupada. Tenho medo de como vai ser o parto.
— Pena que eu não possa te dizer como é. — Repousou as mãos em
seus ombros, observando o movimento vagaroso das pessoas que passavam
pela rua. — Já passei dos cinquenta há tempos e nessa vida não conhecerei
dessa dor. Já não basta essa terrível dor nas costas que me acompanha. —
Sorriu. — Você precisa manter a calma, Amparo. Esqueceu-se de que vou
estar ao seu lado.
— É que...
— Ainda mais você, que dor ou enjoo algum sentiu desde o início da
gravidez. Na verdade, nunca a vi tão bem. Essa criança certamente te fez
bem. Não há com o quê se preocupar... E Benedito, quando volta?
— É sobre isso que eu queria conversar. Você acha que nossa família
tem algum problema?
— Lá vem você com essa conversa de novo? Deixe de superstição
besta! Não pense que só porque nos tornamos viúvas, que isso vai acontecer
com você também. Infelizes coincidências da vida, nada mais.
— Não estou com um bom pressentimento... Já faz quinze dias que não
chega carta alguma, nenhuma notícia sequer mandada por alguém. Gostaria
que Benedito voltasse antes do bebê nascer. Não gosto dessa história de ele
ficar indo à Fortaleza.
— Até quando você acha que isso vai durar?
— Disse quando voltou da última viagem que estava prestes a conseguir
um trabalho por lá. Não conte para ninguém ainda, mas ele quer levar a
gente. Eu e o bebê. Eu sinceramente não sei. Eu não me vejo saindo daqui, a
casa que cresci junto de nossa mãe.
— Algo melhor pode estar esperando por vocês em outro lugar,
Amparo. Não tenha medo de acompanhar seu marido. — Deu a volta na
cadeira e sentou-se num tamborete à sua frente. — Você sabe que pode ser a
qualquer momento, não é mesmo? — disse olhando para a enorme barriga.
— Não me deixe ainda mais nervosa.
— Preciso que você deixe de se preocupar com essas coisas. E quanto a
se mudar daqui, deixe isso de lado, pelo menos por esses dias. — Tomou as
mãos da irmã às suas. A cruz do terço que usava em um dos punhos pendulou
de um lado para o outro. — Sabe de uma coisa? Eu também tenho um
pressentimento.
— E é melhor que o meu?
— Você vai ter um lindo filho, irmã. E ele vai ser um grande homem.
— Desde o início que você insiste que vai ser um menino, não é?
— Você sabe que eu não erro nunca.
— Pois se você tem tanta certeza assim, acho que já escolhi o nome
então.
— Finalmente! E qual vai ser?
— Meu filho vai se chamar José Bonifácio, em homenagem ao avô de
Benedito. O que acha?
— Não poderia dar sugestão melhor. — Firmina gostou do nome, apesar
de esperar que alguém do seu lado da família que fosse receber a
homenagem. Ela só estava fugindo das superstições, pensou.
As duas permaneceram no alpendre a conversar até Benvinda aparecer
chamando-as para o almoço. As mulheres comeram, enquanto contavam e
recontavam antigas histórias. Sebastião não entendia aquelas conversas de
gente grande nem o motivo para tantas risadas. Amparo estava ainda mais
distraída. Imaginou-se com o bebê, segurando-o, pondo-o para dormir,
amamentando-o. Enquanto as outras falavam, sorria em retribuição sem
muito entender.
***
Foi no primeiro sábado de outubro, pouco depois das seis da noite,
quando a escuridão devorava toda a paisagem ao redor e nada além das
lamparinas e lampiões dos vizinhos mais próximos podiam ser vistos, que
Amparo sentiu as primeiras contrações. Duas cigarras ao longe competiam
pelo som mais arrepiante e os grilos da casa preparavam-se com seus reco-
recos para um concerto impaciente.
A notícia espalhou-se, trazendo homens e mulheres da vizinhança. O
padre recém-chegado à cidade também apareceu, para lembrar aos fiéis mais
esquecidos de que a presença deles era de grande valia para a igreja. Todos
ficaram a esperar pela notícia do nascimento. Benvinda recebeu as visitas no
alpendre, enquanto Firmina e outras duas moças estavam no quarto com a
grávida.
Amparo estava deitada, suas entranhas contraindo-se num ritmo
vertiginoso. Ao contrário de toda a gestação, sentiu naquela noite toda a dor e
desconforto que jamais sentira. Seu único consolo era a mão da irmã. Pensou
no marido e chamou pelo seu nome. Estava delirando.
As mulheres tentaram acalmá-la, mas a dor e a inquietação só
aumentavam. Depois de três horas de espera, Benvinda brechou da porta à
procura de notícias. Ver o rosto pálido de Amparo com todas aquelas velas,
trouxe-lhe uma sensação de agouro. Benzeu-se, beijando as pontas dos dedos
e mirando-os em seguida para a irmã.
— Ainda não. Agora é esperarmos por ela. Estou vendo aqui que houve
alguma abertura, acho que não vai demorar muito — disse Firmina.
— Vocês devem estar exaustas! Se quiserem ir à cozinha comer alguma
coisa, eu fico aqui com Amparo. Qualquer coisa eu chamo.
— Obrigado Benvinda, mas vamos ficar esperando. Será a qualquer
momento.
Amparo gritou com mais força, fazendo as parteiras se posicionar.
Benvinda, à porta, manteve-se em silêncio a observar.
— Força, Amparo. Vai! — Firmina ordenou, vendo em seguida a cabeça
surgindo e rasgando os tecidos para abrir caminho. Pôs a mão de forma a
apoiar a cabeça do sobrinho.
Amparo deu um último grito e expulsou o corpo banhado de sangue. Era
de fato um menino, um menino grande e cabeludo. Amparo silenciou-se. Era
a vez dos gritos de Bonifácio.
Algo então aconteceu naquela noite. Algo que ninguém conseguiu
entender, mas que foi lembrado por muitos anos pelo povo da cidade. Se as
futuras gerações iriam acreditar ou não, seria uma questão de fé.
O ar entrou nos pequenos pulmões de Bonifácio e o menino berrou.
Poderia ter sido apenas isso, algo de grande e de extraordinário, porém, havia
naquele som, ultrapassando os limites do quarto e da razão. Todos se calaram
à sua ordem. Como um bálsamo, o choro trouxe um inexplicável reconforto.
As mulheres fecharam os olhos e se sentiram purificadas, não havia mais
medo ali. O ar era doce e a sensação de senti-lo invadir as narinas
proporcionava calma e prazer imensuráveis. Firmina, que segurava o bebê,
pensou que fosse cegar por um momento. Abriu os olhos e tudo era branco,
só havia luz. As próprias chamas das velas pareciam grandes labaredas de luz
a projetar-se até o teto. A onda de arrebatamento transbordou do quarto e
percorreu por toda a casa, derrubando os que esperavam no alpendre.
Felizardos! A espera valera a pena. As pessoas caíram ao chão em
movimentos suaves, dominadas pelo gozo. Todas as mazelas deixaram de
existir naquela noite. A dor, a doença e a fome pareciam ser apenas velhas
histórias de outros povos, de outras vidas. Seus corpos estavam inundados
por uma substância desconhecida, de um mundo além. Aquele choro parecia
fazer cócegas nos tímpanos e estes amplificarem a sensação por todo o corpo.
Da cabeça aos pés, todos foram curados naquela noite. Por um momento, não
havia dano, só reparação.
A vida, obviamente, encontrou seus meios para novamente trazer a dor,
a ruína e a doença. Por um momento, entretanto, aquelas pessoas puderam
sentir algo que não era da natureza humana e sempre que se lembravam
daquela noite diziam “Amém”.
Quando o choro parou, Firmina foi a primeira a sair do transe. Limpou o
sobrinho e reparou em uma marca de nascença. Um sinalzinho do lado direito
do pescoço, quase escondido por trás da orelha. Levou-o limpinho e envolto
em um lençol aos braços da irmã.
— Parabéns, Amparo.
A mulher segurou o filho, com o grande peito cheio de leite para fora do
vestido. O bebê, como um bezerro que sabe o que fazer, abocanhou o mamilo
e se alimentou. Amparo sorriu para o filho, fechando finalmente os olhos.
Sua cabeça pendeu.
Bonifácio continuou a se alimentar do leite defunto. As mulheres do
quarto ficaram a observar a cena em silêncio. Amparo estava morta, mas
parecia esboçar um sorriso no rosto. O que quer que tenha pensado em seus
últimos instantes certamente havia sido algo extraordinário. Seus braços
ainda envolviam com firmeza o filho, a mordiscar o peito insensível.
Passados alguns minutos, Firmina tomou Bonifácio em suas mãos.
Benvinda, ainda à porta, assentiu com um leve movimento de cabeça. E
Firmina entendeu que seria sua missão criar o menino como seu.
No outro dia choveu cedo. A chuva inesperada em pleno mês de outubro
trouxe alegria para o povo. Choveu por três dias sem parar. A mata ficou
verde e os animais se exibiram em suas cortes. No terceiro e último dia de
chuva, chegou a notícia de Fortaleza de que Benedito havia morrido.
Capítulo 3
Já fazia pelo menos onze meses desde a última chuva. O milho e o feijão
foram perdidos. O gado definhara. E o medo da fome e da miséria eram
presenças constantes na rotina de Raimundo e de sua esposa, Rita.
Além dos problemas de falta de água e da improdutividade do solo para
o plantio, Raimundo era um homem preocupado demais com a opinião das
pessoas da redondeza. E justo aí residia o seu pior mal. O que mais
incomodava Raimundo, não era a pobreza ou a seca, mas o fato da
infertilidade ter pairado também no seu lar. Não só a terra parecia ser infértil.
Assim levaram mais de dez anos de casamento, sozinhos em uma velha casa
e rodeados por vizinhos com casas cheias de meninos. Raimundo procurava
justificativas em qualquer lugar, mas era Rita quem sofria com o
comportamento agressivo e desproporcional do marido.
Eis então que veio a primeira gravidez. Nasceu um menino. E que
alegria maior haveria para Rita do que dar um menino ao frustrado e
aborrecido marido? Uma mudança em seu atual comportamento trouxe-lhe de
volta o marido carinhoso, mas não tardou para perceber que algo havia de
errado com o menino.
Quando Joaquim fez dez anos de idade, não havia mais o que inventar
para justificar o seu comportamento aparvalhado. Não sabiam se pelas poucas
refeições diárias, hereditariedade ou praga, mas era fato que o menino era
extremamente lento de raciocínio. Com sua fala arrastada e olhos vidrados,
não demorou a ser apelidado pelas outras crianças como “o doido” ou “o
retardado”. Alguns preferiam o último. Poucos sabiam sequer seu nome.
As pessoas falavam do casal com propriedade, embora divergissem em
maior ou menor grau quanto às explicações. De toda forma, todas pareciam
muito bem embasadas. Alguns diziam que Deus não iluminara o ventre de
Rita e outros que ele não dava conta de exercer o papel de homem. Os
comentários maldosos eram trazidos pelo vento como sementes podres, as
quais davam vida a arbustos espinhentos a enovelar-se e perfurar o cérebro de
Raimundo. Houve assim a transformação do homem em um monstro.
Não foi preciso muito tempo após o nascimento de Joaquim para que
Rita desconhecesse o marido e mesmo fugisse dele o quanto podia.
Agressões e abusos em seu corpo tornaram-se frequentes, fazendo-a sentir-se
cada vez mais acuada. Passou então a tratar o marido com um respeito
alimentado pelo medo, sentindo que qualquer mínima discussão poderia fazer
o trem descarrilhar.
Enquanto almoçavam certo dia, após uma manhã infrutífera no roçado,
Raimundo não se conteve. Bateu forte na mesa, punho fechado, pedindo para
que o menino fechasse a porra da boca e parasse de choramingar. A violência
proferida, o murro na mesa e o som dos objetos derrubados estilhaçando pelo
chão só aumentaram o terror da criança, fazendo-a se levantar e correr, ainda
aos gritos, para a porta que dava para a sala.
— Tá vendo o que você fez? Assustou o menino.
— Posso chamar essa coisa que você gerou de filho? Esse retardado?
Isso nunca vai virar homem de verdade.
— Não fale assim do meu filho! — disse Rita, não se lembrando de
quando em toda sua vida já havia usado esse tom de voz contra o marido.
— Ele não entende, mulher. Isso é um imbecil. — Apesar da firmeza em
sua voz, ele não pôde deixar de transparecer surpresa à reação da esposa.
Rita pegou uma faca que estava na mesa e levantou-se, apontando o
objeto para ele.
— O que vai fazer com isso? Me matar, sua doida?
— Não fale assim com ele. É só um menino! — A mão à frente tremia.
O sabor do arrependimento veio-lhe à boca. Sentia-se ridícula, mas pareceria
ainda mais se desistisse do ato. Precisava mostrar coragem e a única maneira
era levar aquilo até o fim.
— Vão morrer de fome sem mim. Você e esse menino são dois
imprestáveis.
Rita pulou na direção de Raimundo, que desviou com facilidade, dando-
lhe uma cotovelada no rosto. A mulher caiu no chão; a cabeça girando. A
faca rodou pelo chão vermelho e liso de cimento, parando aos pés de
Joaquim.
O menino olhou hipnotizado para o brilho da faca, parando finalmente
de chorar. Era a primeira vez que via aquele brilho de tão próximo. Joaquim
pegou a faca e ficou olhando para os pais em silêncio. Seu rosto era um
quadro branco sem qualquer traço ou expressão.
— Não se aproxime! Vou te mostrar como você deve tratar uma mulher.
Raimundo baixou as calças, exibindo o forte membro; a cabeça brilhosa
apontava para o alto. O homem segurou o órgão na base, balançando-o.
— Você vai ter um desses, moleque. Espero que saiba fazer uso dele.
Raimundo levantou o vestido da mulher com violência e rasgou-lhe a
calcinha. Rita tentou soltar-se uma ou duas vezes, mas, percebendo serem
inúteis suas tentativas, pôs-se em silêncio a rezar, não tendo coragem de abrir
os olhos e ver seu filho diante de si.
Rita rezou com toda a devoção pedindo por alguma intervenção. E um
desejo repentino de morte surgiu pela primeira vez. Sua mente saboreou-se
com a ideia de uma morte misteriosa e repentina. Não sua! De forma alguma.
A mulher ansiou por um ponto final na vida de Raimundo naquele exato
instante. Mas a intervenção não veio. Rita sentiu o marido apoderando-se de
seu corpo. Suas pernas tentavam fechar-se a todo custo; os músculos
contraíram-se na tentativa de expulsar o corpo estranho.
Joaquim, diante da cena, segurava forte a faca a ponto de doer-lhe a
mão. O menino não entendia o que estava acontecendo, buscando com os
olhos inquietos os mínimos detalhes. E sua cueca molhava.
Após alguns minutos, Raimundo levantou-se de cima de Rita sem a
mesma vivacidade anterior. O órgão tenro balançava de um lado para outro
conforme subia as calças. O homem olhou para o filho uma última vez.
— Não se esqueça disso, tá me ouvindo? Seja homem.
Os meses se passaram e a barriga de Rita cresceu. A nova gestação
trouxe para dentro do lar um Raimundo amistoso e companheiro como dos
velhos tempos, fazendo Rita rezar todas as noites para que fosse um menino
saudável e que, dessa vez, trouxesse orgulho ao marido.
Nove meses depois, veio uma menina. Rita temeu a princípio, mas
grande foi a surpresa ao ver o contentamento do marido. O novo assunto para
com os amigos e os vizinhos o reanimou. Raimundo sentia-se homem.
Mas quem dera fosse mais duradoura a alegria pelo nascimento da filha.
Com o tempo, os insultos e os abusos voltaram a se incorporar em seu
comportamento habitual.
— Você não é capaz de me dar um menino forte e saudável.
Rita ouviu isso quando o marido saía de casa para o roçado meses
depois. Encostou-se à soleira da porta e, enquanto o observava se afastar, foi
mais uma vez tomada por aquele estranho desejo. Desta vez, deixou seus
pensamentos correrem livres. E a cada passo que ele dava, ela desejava que
ele tropeçasse, o joelho quebrasse ou o pé deslocasse. Desejou que sua
cabeça fosse de encontro com algo cortante que houvesse por acaso sido
largado na calçada. Uma pedra qualquer que lhe rachasse o crânio,
derramando os miolos no chão areento e quente. Desejou a cada virada de
pescoço que ele travasse e se quebrasse. Naquele momento, enquanto o
homem ficava pequeno ao ganhar distância, ela desejou que ele se
engasgasse, que se afogasse, que caísse numa fogueira ou mesmo que se
envenenasse.
Quando o homem sumiu de vista, Rita benzeu-se e olhou para o céu
pedindo perdão. Pegou a filha, que estava na calçada transformando lama em
massinha, e entrou.
— Senhor, cuide da vida de minha pequena Clemência. Não dê à minha
menina o mesmo destino que o meu — disse olhando para o céu, escorada na
janela.
Joaquim a um canto observava as preces da mãe, sem muito entender. O
que realmente chamava sua atenção eram os contornos de seu corpo,
marcados pelo fino tecido da camisola. A visão da mãe sendo estuprada fora
germe de insanidade em terreno fértil. Seus pensamentos formavam-se em
um turbilhão confuso e desconexo. Delírios perversos que não sabia como
extravasar ou acalentar. Por sorte, os sentimentos de proibição e erro ainda se
apresentavam à frente da frágil porta da loucura e da corrupção.
***
Os filhos de Raimundo cresceram. Clemência tornou-se mulher bonita e
habilidosa. Quando não estava ajudando a mãe nas tarefas de casa, estava a
moldar os mais belos potes de barros, uma arte que aprendeu e dominou
desde a infância. Joaquim tornara-se homem forte e corpulento, uma máquina
para o serviço braçal, mas sem habilidades com as palavras. Um homem que
se comunicava através de simples sinais de cabeça ou de sílabas emitidas de
forma ruidosa.
Raimundo ainda sonhava com outros filhos, mas nenhuma das tentativas
subsequentes nos anos seguintes trouxera resultado. Não havia mais o homem
ali, apenas o monstro. Raimundo implantava um clima de terror dentro da
casa, fazendo que mulher e filha sempre ficassem caladas com sua presença.
Joaquim aprendia o comportamento de homem da casa, mas não se exibia
como tal. Era tolo, mas não o suficiente para enfrentar o macho dominante.
Quando os sangramentos mensais cessaram junto com o aparecimento
dos primeiros fios de cabelo branco, Rita soube que dela não viria mais a cura
para as frustrações do marido. E dessa forma, ela sentiu-se livre de suas
investidas.
Certa noite, Rita acordou assustada com o marido retirando-lhe a
camisola, prestes a invadi-la. Ao contrário dos outros dias, nos quais desejava
que fosse logo inundada e que aquilo se findasse, a impaciência prevaleceu.
Ela não hesitou.
— Isso é agora em vão.
Rita sentiu o marido tornar-se pequeno e sendo expulso de si.
— O que diz, mulher? Acha que não sou homem o suficiente para fazer
um menino?
— Eu que não sou mais jovem o bastante.
— Não diga bobagens, sua tola.
— Não sangro há dois meses, Raimundo.
— E por que não me disse antes, mulher?
— Eu precisava ter certeza. Acho que não precisamos mais passar por
isso.
— O que diz?
— Você não precisa mais me acordar durante a noite.
— Eu sou homem e tenho minhas necessidades, droga. Enquanto for
minha mulher, vai ter que me satisfazer.
— Eu não quero mais, Raimundo. Estou cansada.
— Não fale assim comigo, sua inútil.
Num surto de violência, Raimundo cerrou o punho e esmurrou o ventre
de Rita com tamanha força, fazendo-a gritar como um animal selvagem no
meio da noite.
O homem virou-se na cama e caiu no sono, indiferente. Rita chorou
baixo. Sentia uma enorme dor irradiando-se do local do murro. O sangue
verteu furtivo pelo interior do corpo, caminhando por caminhos
desconhecidos.
Na manhã seguinte, Rita acordou-se com manchas espalhadas por toda a
barriga; o rosto estava notavelmente pálido. Tentou levantar-se, mas,
indisposta para tanto, passou o dia inteiro na cama.
— O que houve, mamãe? — Clemência aproximou-se. Estavam
sozinhas; Raimundo e Joaquim já haviam saído para o roçado. Embora nunca
tivessem verbalizado, achavam aquele momento do dia, em que se
encontravam a sós, o melhor.
— Não estou me sentindo bem, filha. Logo vai passar. — Rita fez uma
tentativa.
— Sei que algo não está certo. Não minta para mim. Seu rosto está
branco como algodão.
Rita deu as costas para a filha, virando-se para o outro lado.
— Eu ouvi seu grito.
— Pensei que tivesse um bicho na cama. Um sonho ruim, só isso. — A
última palavra tremulou, acompanhada por silenciosas lágrimas.
— O grito que ouvi não foi de susto. O que o pai fez?
— Eu estou com tanto medo, Clemência.
— Não fale assim — disse puxando o corpo da mãe, fazendo-o rolar
para o seu lado.
— Você trouxe felicidade de volta à minha vida, filha. — Soltou mais
uma lágrima. — Mas sinto que será em breve.
— Do que a senhora está falando?
— Cuide de nossa família. — Rita segurou-se em seus braços. Suas
mãos estavam geladas.
— Isso não é justo. O que o pai fez? — A voz de Clemência estava
embebida em ódio.
— Seu pai é um homem difícil. Só isso. Raimundo não é um homem
mau. Eu que não pude ser uma boa esposa para ele.
— Não diga isso!
— Filha, me escute...
— Não consigo levar isso adiante. Não imagino como será esta casa sem
a senhora.
— Não tenha medo. Você ainda vai ser muito feliz. — Rita desviou o
olhar de Clemência para um canto do quarto, de uma forma tão repentina,
como se alguém tivesse acabado de chamar. — Quero te pedir uma última
coisa. — disse voltando-se mais uma vez para a filha.
Clemência começou a chorar.
— Quero que me abrace forte.
Foi o último. O abraço tornou-se então folgado. Os braços de Rita
caíram, fazendo Clemência sentir o peso do corpo completamente sustentado
por si.
Repousou o corpo frágil na cama e enxugou as lágrimas. Prepararia o
corpo de sua mãe, ela merecia. Tinha que fazer aquilo sozinha. Retirando-lhe
o vestido, pôde ver o hematoma vermelho em seu ventre, próximo à vagina.
Clemência fechou os olhos, lembrando-se do que ouvira na noite anterior.
Aquele grito, tão vívido ainda em sua lembrança, despertou-lhe o mesmo
desejo de morte alheia saboreado pela mãe. Clemência a vestiu com o vestido
que ela usava para ir à missa aos domingos.
Em poucos minutos, a casa estava lotada de amigos e curiosos. Quando
Raimundo e Joaquim chegaram ao final da tarde, foram surpreendidos por
algumas últimas senhoras que ainda velavam o corpo. Joaquim demorou a
entender o que estava acontecendo e agiu como uma criança boba; ninguém
percebeu a diferença. Raimundo, por sua vez, providenciou o mais rápido que
pôde o que faltava para o enterro, temendo que descobrissem a causa da
morte.
Rita foi enterrada às oito horas da manhã seguinte.
***
O tempo passou e a vida continuou em sua inércia habitual. Raimundo e
Joaquim trabalhavam na roça, Clemência no lar, assumindo os papéis outrora
ocupados pela mãe. Ao final do dia, quando retornavam, uma atmosfera
pesada se instaurava, fazendo-a falar, se falasse, apenas o necessário.
Qualquer coisa fora de ordem era de imediato repreendida pelo pai ou
pelo retardado do irmão, que muito embora não entendesse bem das coisas,
seguia o exemplo do pai. Duas versões da mesma pessoa, como certo dia
concluíra Clemência, uma bruta e outra completamente demente.
Como animal isolado em sua concha, Clemência cresceu sem grandes
amizades, presa à rotina da casa e aos abusos do pai. Apesar da repreensão, o
fato é que Clemência decerto cresceu e virou mulher feita. As roupas frouxas,
muitas vezes vestidos velhos da mãe, esforçavam-se sem sucesso em
disfarçar a carne contida abaixo. Clemência tinha os quadris de um demônio.
Não tardou para que se sentisse invadida dentro de casa pelos olhares
indiscretos do pai e do irmão, os quais travavam jogos proibidos em suas
mentes pervertidas. Clemência fingia que nada estava acontecendo e detinha-
se firme em suas obrigações. Eles traziam a comida. Ela fazia a comida.
Cozinhava em panelas de barro feitas por si própria. Nesse lema a casa
funcionou até uma manhã de setembro, quando Raimundo dera um passo
além.
Raimundo acordou-se quinze minutos mais cedo do que o normal, não
encontrando o café e a tapioca prontos na mesa. Clemência, percebendo a
inquietação do pai, correu para a cozinha.
— Não seja uma vadia preguiçosa como a sua mãe, menina. Quando o
homem da casa acorda, tudo já deve estar pronto.
Os olhos de Clemência caíram sobre a faca da cozinha, a mesma que ela
usava todos os dias para degolar os pescoços finos das magras galinhas. Um
pensamento furtivo. Rápido demais. Clemência abanou a cabeça e pôs-se a
preparar o café da manhã.
Ao finalizar a tarefa, foi surpreendida pelo pai, que já estava sentado à
mesa. A mão pesada bateu em sua bunda.
— Não faça isso de novo, papai.
— Clemência?
— Não tenho medo. Repito, não faça isso de novo. — Seu tom de voz
era fraco, sem emoção. Mas aquela voz límpida, clara demais em sua
informação, somada aos seus olhos firmes, foi o estopim para a transgressão.
Raimundo a agarrou, atirando seu corpo por sobre a mesa. Ela rolou e
caiu ao chão. As pernas abertas e o vestido levantado conversaram com a
ideia perversa que passava pela cabeça doente do homem. Penetrou a filha
segurando-lhe pela cintura com tamanha força, não restando opção alguma de
defesa à moça. Clemência gritava em pânico, não acreditando no que estava
acontecendo. Mas a cada grito que dava e a cada movimento de fuga que
fazia, mais o desejo de dominação se apoderava do monstro.
Joaquim entrou na cozinha pelo barulho, fazendo Clemência, em sua
inocência, sentir-se segura e protegida pelo irmão. Ele certamente faria algo
contra o pai e a salvaria, ela pensou, esquecendo-se por uma instante de suas
próprias conclusões sobre os dois. Joaquim ficou a um canto assistindo a
cena.
A mente perturbada do garoto crepitava. Não entendeu o porquê, mas
lembrou-se da mãe a cada nota de desespero emitida pela irmã. As conexões
em seu cérebro eram confusas e agitadas, descargas elétricas em uma rede
danificada. Olhou para a mão assustado e, por um segundo, pensou estar
segurando uma faca. Podia até mesmo sentir o peso dela.
Clemência gritou por socorro, mas Joaquim apenas olhava petrificado
para a cena. Algo em sua cabeça dizia não ser correto o que estava
acontecendo, porém a parte insana e predominante empolgava-se com a
situação, manifestando sinais vitais às suas partes mais distantes. As pernas
de Joaquim tremiam pela excitação. Nunca penetrara uma mulher antes e
sentiu inveja da posição ocupada pelo pai.
Instantes depois, Raimundo urrou feito animal, alterando o ritmo dos
movimentos. Clemência foi então largada no chão da cozinha. Raimundo
levantou as calças e saiu para a rua.
Joaquim, não sabendo o que fazer, caminhou até a irmã. Os olhos dela
estavam frios e sem expressão, perdidos. Estaria ela morta? Provavelmente
não, sua mãe não havia morrido com aquilo. Joaquim caminhou com os olhos
por todo o corpo; suas pernas tremiam-se inquietas, querendo também
ocupar-se do trabalho. Aproveitando o estado de choque em que ela se
encontrava, Joaquim cedeu aos impulsos mais animalescos, os quais
correspondiam a quase que toda sua totalidade. Joaquim abriu o botão da
calça e deitou-se por cima do corpo de Clemência.
Ele não esperava por aquela facilidade. Era alargado e úmido. O corpo
da irmã mantinha-se inerte; os braços chacoalhavam levemente ao chão no
ritmo de suas investidas. E ele se lembrou de um cadáver. Por exceção dos
olhos, que giraram nas órbitas e caíram agora sobre os seus. Daqueles olhos
esbugalhados correu então uma lágrima. Clemência, em seu estado de transe,
pode até mesmo ouvir o som da lágrima caindo no chão. Alto e opressor
como o som de uma bomba.
Joaquim tentou se desviar daquele olhar, mas não havia como escapar de
sua gravidade. Intimidado, ele falhou. Levantou-se constrangido, abotoou a
calça e correu para fora, onde o pai o esperava desde que saíra cinco minutos
antes.
E Clemência ficou ali, abandonada, com a barra do vestido levantada,
incapaz até de espantar as moscas que a procuravam. Naquele momento, ela
não sabia de nada, não se lembrava de nada, não era ninguém.
O medo e a submissão entreolharam-se e saíram da casa.
Quando os dois voltaram ao final da tarde, o jantar estava pronto e
servido na mesa como de costume. Raimundo e Joaquim agiram como se
nada tivesse acontecido. Clemência não fez diferente. Mas para ela, o jantar
pareceu demorar uma eternidade.
No meio da noite, depois que todos haviam se recolhido, Clemência foi
à cozinha tomar um pouco de água. O único objeto a reluzir estava então ali,
ao alcance de suas mãos. Destacando-se. Provocando-a. Ela podia jurar que
tinha guardado tudo nas gavetas ao arrumar a cozinha após o jantar. Ela não
resistiu.
Pegou a faca, a mesma que anos atrás tivera sua estreia interrompida por
Joaquim, e seguiu para o quarto em que o pai e o irmão dormiam. Ela cortou
a garganta dos dois.
Clemência passou as mãos no vestido branco, à altura da cintura, com
uma expressão de desprezo e nojo. Deitou-se em seguida em sua rede e
dormiu até a manhã seguinte.
Ao amanhecer, caminhou até a porta da casa e olhou para fora. Era cedo.
O céu ainda exibia tons melancólicos do vermelho ao azul. Olhou para as
casas ao redor e sentiu vontade de desaparecer dali. Em pouco tempo, as
primeiras pessoas acordariam e não sabia por quanto tempo poderia esconder
os dois corpos. Olhou para a mata seca ao longe e pensou no que haveria
além daquelas terras. Seria merecedora de uma nova vida? Uma casa nova?
Um amor, talvez?
De dentro da casa, apesar de todas as janelas estarem fechadas, um
vento frio passou pelo seu pescoço, em direção à rua.
— Não tenha medo, filha! Vá!
Ela não olhou para trás, apenas deixou-se levar por aquela brisa.
Clemência desapareceu dos olhos da cidade antes que o primeiro habitante
despertasse naquele dia.
Só podia ser o seu castigo, pensou horas depois. Estava perdida no meio
da mata. Comeu calango e besouro e, de uma bromélia, roubou água. Ao final
do segundo dia, Clemência entregou-se a morte, que se aproximou satisfeita
depois de tanto a seguir.
Seus olhos fecharam pesados e seus sentidos voaram ao vento. No
último suspiro, Clemência então ouviu o canto de um sabiá ao longe e abriu
os olhos mais uma vez.
Capítulo 8
Havia algo de errado com Bruno naquele dia. Ele assistia à aula
distraído, sentado sobre uma das pernas, gerando uma visão desagradável de
uma criança completamente torta e desajeitada.
Raquel evitou a todo custo fazer contato visual com o menino. Precisava
manter-se concentrada, dar aula para trinta crianças não era tarefa fácil. As
crianças eram agitadas e embora isso tornasse o trabalho ainda mais
cansativo, desejou naquele momento que todas continuassem daquele jeito.
Desejou que Bruno fosse assim. O olhar do menino, embora vago e perdido,
tinha aquela terrível profundidade que só ela conhecia. Raquel evitou então
aqueles olhos, sabendo que eles poderiam ser o caminho para também
conduzi-la a uma queda dentro si própria para um abismo.
Ao final da aula, Raquel despediu-se dos primeiros alunos a sair e virou-
se de costas para a sala, demorando o dobro, talvez o triplo de tempo para
apagar o quadro. Seu coração batia forte; sua garganta estava seca. Desejou
que não houvesse ninguém mais ali. Desejou encontrar-se sozinha. Olhou por
sobre o ombro e viu de relance que um único aluno estava à sua mesa. Não
tinha saída, teria que encarar aquele que a fazia sentir-se diante de um
espelho, o demônio disfarçado de criança.
Em meio ao turbilhão de pensamentos antagônicos, que lutavam por um
espaço naquele corpo há tanto acomodado, Raquel virou-se com uma
determinação jamais experimentada. E ela falou com uma firmeza que não
lhe era típica.
— Bruno, você pode vir aqui?
— Oi professora — disse aproximando-se com dificuldade.
— Pode me ajudar a levar essas pastas para a sala dos professores?
Foram tantas lições que recebi hoje que acho que vou precisar de uma
mãozinha.
Bruno hesitou, olhou para a porta, mas voltou-se novamente para
Raquel. Segurou uma das pastas, mas logo desistiu ao tentar levantá-la. No
rosto, uma sutil expressão de dor, a qual temeu ter sido percebida por Raquel.
— Lamento não poder ajudá-la. Acabei de lembrar que minha mãe vai
chegar mais cedo hoje. Aposto como já tá me esperando lá fora e ela não
gosta quando eu me atraso.
— Bruno, está tudo bem com você? — disse Raquel com uma cara
abobalhada, tentando fingir que não desconfiava de nada.
Bruno não respondeu.
Raquel observou ele se afastar em direção à saída e percebeu que ele, ao
tentar colocar a mochila nas costas, desistiu. Não ficou claro para ela se era
dor nas costas ou se seu braço que não conseguia realizar o giro do
movimento.
Ela respirou fundo, organizou suas coisas e foi à sala dos professores.
Pela primeira vez ao entrar não cumprimentou ninguém. Entrou de cabeça
erguida, ajeitou suas coisas e saiu para almoçar. No piloto automático, já
estava guiando o carro na direção da casa da mãe, mas, lembrando-se da
discussão do dia anterior, decidiu almoçar em um restaurante próximo à
escola. Tereza ligou quatro vezes. Raquel não atendeu.
Deitada na cama ao final do dia, repassou incontáveis vezes a curta
conversa tida com Bruno. Pensava de que forma poderia abordá-lo, que frase
poderia ser jogada e que teria alguma chance de ser fisgada. Precisava de algo
forte o suficiente, mas não assustador a ponto de perder qualquer chance de
aproximação. Sabia que algo estava errado com o menino, mas precisava de
uma confirmação para assim tomar qualquer providência. Mas como fazer
isso? Como agir de uma maneira completamente nova para uma pessoa que
sempre se comportou a maneira de um ermitão?
Raquel era a típica pessoa em que todos passavam a perna. Muito
embora tivesse uma inteligência aguda o suficiente para perceber quando algo
estava errado, a atitude era inversamente proporcional ao faro. Sempre
baixava a cabeça. Ela não entendia por que as pessoas sempre tentavam
tomar vantagem até nas situações mais triviais. E isso acontecia todo o
tempo: era o troco num mercado, o preço superfaturado de um conserto banal
no carro, alguém furando sua frente numa fila.
Pela primeira vez, entretanto, Raquel se sentiu dona de uma grande
responsabilidade. Ela sabia que poderia ajudar alguém. Era a sua chance de
quebrar o ciclo. Sabia que poderia ajudar Bruno e isso a consumiu a noite
inteira.
***
Na manhã seguinte, entrou na sala de aula animada. Como de costume,
escreveu a data, o conteúdo e seu nome no quadro:
15 DE MARÇO DE 2017
ASSUNTO DO DIA: MEUS PAIS
PROFA. RAQUEL
— Bom dia, meninos e meninas.
— Bom dia, professora Raquel. — As crianças responderam num
uníssono desafinado.
— Vamos fazer algo diferente hoje. Vamos começar o nosso dia com
uma atividade. Pelo tema, alguém arrisca?
— Eu não quero ter que desenhar na frente de novo não, professora —
disse uma menininha assanhada sentada à frente. Cada palavra era
acompanhada por pelo menos uma fungada.
— Não precisa ter vergonha de vir pra frente, Michele. Mas fique
tranquila por hoje. Vocês vão realizar a atividade daí mesmo, da cadeira de
vocês.
— Ditado não, professora.
— Também não, Miguel. Mas se for pra já ficar ansioso, só se for com a
letra S. Não se esqueça da próxima vez — disse gerando risadas na turma.
— Eu já sei! A senhora vai pedir para fazermos uma redação.
— Muito bem, Marcela! E o tema já está no quadro. — Apontou para
onde havia acabado de escrever, enquanto alguns dos alunos resmungavam.
— Não quero ver cara feia, meninos! Vamos ao trabalho. Peguem uma folha
e escrevam o que quiserem sobre seus pais, sobre a sua família, sobre como é
a casa de vocês. Tentem escrever como é a rotina em suas casas. Quero um
mínimo de dez linhas.
— É pra arrancar do caderno, professora? — perguntou um mais
desatento.
— Sim, isso é importante! Obrigada, Artur! Quero que vocês me
entreguem. Vou fazer diferente das últimas vezes. Não vou pedir para vocês
lerem aqui na frente. Lerei eu mesma em casa, assim poderei fazer a correção
com mais cuidado. Repito: só eu vou ler o texto de vocês! Vamos lá então?
— disse batendo palmas uma vez e esfregando as mãos.
O som de folhas sendo arrancadas tomou conta da sala. Alguns alunos
iniciavam a primeira linha, mas já amassavam o papel antes mesmo de chegar
à seguinte. Raquel caminhou pelos corredores, de forma a auxiliá-los na
produção do texto, tentando a severas custas ser o mais discreta possível e
não olhar para a direção em que Bruno estava sentado. Como um grande
buraco negro, entretanto, o menino gerava uma atração que fazia até mesmo
seu pescoço se deslocar toda vez que ela se distraía de sua tarefa proibitiva.
Seus olhares encontraram-se duas ou três vezes perdidas.
Bruno exibia a expressão de um forasteiro recém-chegado a um país
além-mundo, sem saber o que fazer a seguir, sem conhecimento do idioma ou
de qualquer código de comunicação. Limitou-se, quase paralisado em sua
cadeira, a uma fria e ludibriante estátua de mármore posta em seu lugar. Não
parecia ter vida, era como se o ar não fosse tragado por seus pulmões e sua
mente não pudesse decifrar nada ao redor; a ponta do lápis estava cravada no
papel à beira de perfurá-lo. Durante um longo tempo, nenhum mínimo deslize
do instrumento para formar um traço qualquer, uma palavra ou uma
denúncia.
Raquel percebeu que Bruno não havia escrito nada e ficou desanimada.
Os ponteiros dos segundos rodavam e rodavam, incansáveis, no grande
relógio de parede e não tardou para que as primeiras redações fossem
colocadas em sua mesa. Organizou-as em ordem alfabética; seus olhos
cruzavam com palavras como amor, cachorro, sobremesa e carrossel.
Quando estava com cerca de vinte redações em mãos, faltando apenas as
de alguns poucos alunos e completamente desacreditada, foi surpreendida ao
ver Bruno levantando-se e caminhando até a sua mesa com o papel contra o
peito. O abraço era tão apertado que mesmo alguém do seu lado não teria
qualquer chance de ler.
Uma folha com bordas amassadas e uma péssima caligrafia. Um texto
que certamente tinha sido escrito de um lampejo, sem qualquer planejamento.
Suas mãos trêmulas fizeram a folha balançar no ar a caminho das de Raquel,
que a fez deslizar suavemente em direção às outras. O papel perdeu-se na
pilha e ele sentiu uma tranquilidade repentina ao constatar isso. Em nenhum
momento entreolharam-se e então retornou lentamente e com dificuldade até
sua cadeira ao final da sala.
Nada mais ao longo do dia parecia ter o menor sentido, a inquietação e a
ansiedade fizeram Raquel dar as últimas aulas do dia como um boneco
programado de repetição. Não havia outros caminhos, tudo que lhe restava
era ler o conteúdo daquele pedaço de papel e tentar fazer algo diferente pelo
menos uma vez na vida.
Ao chegar em casa, a primeira coisa que fez foi procurar a redação de
Bruno no meio das outras. Sentou-se no canto do sofá da sala e doou toda a
sua atenção a um menino de dez anos que, para falar a verdade, mal conhecia.
Minha família
A minha família é pequena. Somos apenas eu, minha mãe e meu pai,
mas eles são separados faz cinco anos. Eu mal lembro da separação, mas
lembro que chorei muito. Desde então moro com minha mãe. Ela traz
pessoas estranhas para casa quase todo dia. Eles jogam baralho a noite
toda. Eles bebem e fumam muito. Passo o dia todo no meu quarto, não gosto
de ficar andando pela casa, até por que se eu fizer algo errado, minha mãe
perde a paciência comigo. E eu tenho muito medo quando ela perde a
paciência. Ela fica nervosa. Quando tudo se resolve, ela sempre vem
chorando me pedir desculpas, mas eu já aprendi que nunca é a última vez.
Eu queria muito morar com o meu pai, mas ele não trabalha em Fortaleza e,
como viaja sempre, não me deixam ficar com ele. Mas ele está tentando
conseguir a minha guarda, pelo que me disse da última vez que nos vimos.
Ele manda dinheiro para minha mãe, mas nem sempre tem comida na
geladeira. Ela parece não se importar, está sempre bêbada. Meu pai vem me
visitar toda semana quando não está fora trabalhando. Eles fingem não se
ver quando ele vem me pegar. Eu nunca falo para ninguém o que acontece
em casa, nem mesmo para meu pai. Tenho muito medo da minha mãe. Tudo
que posso dizer é que ela é uma mulher difícil. Bem, cresci ouvindo meu pai
falar isso dela para os outros. Estou com muito medo de estar escrevendo
essa carta. Não quero que ninguém mais leia além da minha professora
Raquel.
Ela leu em voz alta de um fôlego só, soltando a carta ao final como se
tivesse acabado de ler algo proibido. As mãos inquietas procuravam a saia em
movimentos repetidos; estavam molhadas. A carta caiu em um movimento
confuso, rodopiando até juntar-se às outras espalhadas na mesinha de centro.
Estas também tiveram seu momento, mas não aquele. Ficaram ali
esparramadas esperando um final de semana qualquer, quando, na falta de
companhia, receberam uma leitura rápida e um tanto desatenta.
A esperança de que tudo fosse apenas um mal-entendido, um erro de
percepção, e que aquele fosse apenas um garotinho qualquer e de que tudo
estivesse bem despedaçou, soltando estilhaços para todo lado. A cabeça
girava, o peito arfava e as pernas traçavam rotas inúteis e sem sentido pela
sala. Tudo se encaixava: o comportamento inseguro do garoto e a falta de
amigos, a ausência de qualquer membro da família em reuniões de pais e
mestres, o atraso da mãe todos os dias ao final da aula. Raquel sentiu medo e,
por mais que tentasse resgatar toda a confiança daquela manhã, apenas
afundava ainda mais numa onda alucinante de insegurança. O que fazer?
Quem procurar? Como agir da próxima vez que o visse novamente? Não
poderia agora voltar atrás e fingir que nunca lera a carta. Poderia dizer que
havia perdido todas, pensou.
Naquela noite, assistiu à televisão sem entender o que passava e jantou
sem sentir o sabor de nada. Estava alheia ao mundo, como se aquele corpo
não fosse seu; encarnada por uma noite num corpo de uma maluca qualquer.
Um corpo nunca experimentado e de um mundo muito distante. Quando foi
se deitar, viu no celular que havia oito ligações perdidas de Tereza. Ela
retornou.
— Alô, filha!
— Oi mãe. Desculpa por não ter dado notícias. Muitas coisas para
resolver do trabalho. Não tive a intenção... — Sua voz era distante e
inexpressiva.
— Sei que está chateada comigo. Também peço perdão pelo o que eu
disse.
Seguiu-se um silêncio constrangedor para Tereza, mas indiferente para
Raquel.
— De toda forma, eu insisto. Preciso mostrar uma coisa para você. É
sobre seu pai — continuou Tereza.
— Como quiser, então. Se pra você é tão importante... Até amanhã.
— Boa noite, filha.
Raquel desligou o telefone, caminhando em direção ao espelho da
penteadeira. Virou levemente a cabeça de lado e passou a mão no pequeno
sinal. Um sinalzinho do lado direito do pescoço, quase escondido por trás da
orelha. Era impossível olhar para aquela marca e não lembrar-se do pai.
Deitou-se e passou sua segunda noite em claro.
Capítulo 10
Somente depois das quatro horas da tarde do outro dia, Pedro conseguiu
voltar para pegá-los. Adentrou o velho alpendre e encontrou Rose paralisada.
O olhar frio e vidrado a semelhança de um boneco de porcelana.
— O que aconteceu, Rose?
Ela não respondeu.
Pedro entrou e tamanha foi sua surpresa ao ver André empunhando uma
espingarda, apontada para um velho amarrado a uma cadeira. A casa, em um
dia, transformara-se em cativeiro. No rosto do homem, sangue e hematomas
deixavam claro que não tivera uma noite fácil. Vicente, diante de uma das
janelas da cozinha, olhava para fora com as duas mãos sobre a cabeça.
— Que droga! O que aconteceu aqui?
O velho levantou as sobrancelhas intumescidas ao ouvi-lo. Num
sentimento de êxtase e excitação, soltou sons ininteligíveis, remexendo-se na
cadeira. Ele quase tombou. Pedro precipitou-se para o homem, pondo-se a
desatar as cordas que o prendiam.
— Você conhece esse homem, Pedro? — disse André, podendo
finalmente entender algo pronunciado por ele.
— F-fi-filho!
Pedro desatou os nós e o homem quase caiu. Pedro sustentou o corpo,
repousando-o no chão.
— O que diabos vocês fizeram? — disse Pedro reparando no sangue do
pai nas próprias mãos.
— Peço desculpas em nome dos meninos. Não tínhamos como saber
quem era esse homem — disse Rose adentrando a cozinha. — Entenda nossa
situação! Desde que tudo começou a dar errado, a única pessoa em que
confiamos é você, Pedro.
— Podiam tentar não sair esmurrando o primeiro que aparecer pela
frente. — Ele olhou ao redor. — Onde está o Felipe?
Ninguém respondeu àquela pergunta.
— O que seu pai fazia aqui ontem à noite? — perguntou Vicente.
Pedro deu um sorriso bobo, descrente da pergunta que acabara de ouvir.
Aquela pergunta, para quem mentia sobre a morte do pai há tantos anos, era
por demais irreal. Na mesma hora, Rose entendeu tudo e lembrou-se da foto
da igreja, a última.
— Temos muito que conversar. Não imaginei que as coisas iam terminar
dessa maneira. Peço desculpas por não ter conseguido chegar pela manhã,
como havia prometido. Sei que estão com fome e sem saber o que fazer. As
coisas na cidade também estão um caos. Só agora consegui sair da pousada.
Tenho medo que alguém descubra que estou ajudando vocês. Como isso
nunca aconteceu, eu sinceramente não sei o que seriam capazes de fazer
comigo. — Ele engoliu em seco e voltou-se para Rose. — Fico feliz que
confiem em mim, mas por que não me deram ouvidos quando falei que não
deviam botar os pés fora desta casa? Agora temos mais um amigo de vocês
desaparecido e a cidade de Nova Jaguaruara entregue a ladrões e traficantes.
— Você está falando da... — tentou André, largando a espingarda a um
canto.
— Da bendita fuga da delegacia.
— Não venha colocar culpa na gente. A ideia foi quase que
completamente sua — disse André.
— O que quero dizer é que maldita foi a hora que vocês chegaram em
nossa cidade. Primeiro, fazia quase vinte anos que não havia nenhum
desaparecimento próximo à velha igreja. Segundo, o que a cidade de Nova
Jaguaruara sofreu da noite da fuga da cadeia até agora certamente entrará
para os memoriais da cidade. Não estão interessados? Preocupados demais
com o que vocês estão passando? Pois bem, vou dizer assim mesmo. Trinta e
dois prisioneiros fugitivos. Faço aqui questão de manter o número oficial, isto
é, com vocês. E o resultado dessa enorme farra? Vinte e sete carros roubados,
vinte e duas casas arrombadas, dezenove comércios saqueados e cinquenta e
cinco casos de assaltos à mão armada pelas ruas da cidade. Nem a pousada
escapou. Não tenho mais computadores na recepção e metade das televisões
dos quartos foram roubadas. Tive que passar a manhã com o dono fazendo
inventários para ver o que ele consegue recuperar com a seguradora. Ainda
passei mais de uma hora na delegacia depondo no início da tarde. Agora sou
um suspeito.
— Não sei o que dizer...
— As coisas saíram do controle, Rose. Só isso. Sugiro que vocês passem
mais uma noite aqui. Tem policiais armados na estrada, próximo à cidade.
Estão procurando pelos fugitivos e estão parando quase todo carro que passa
lá. Lamento informá-los, mas a atenção máxima ainda é para vocês.
— Você nos deve explicações. Ainda não entendo o que seu pai estava
fazendo aqui de noite — disse Vicente.
— Vocês estão famintos. Comam primeiro. — Apontou para a sacola
que trouxera. — Depois quero mostrar uma coisa a vocês — Escorou-se a
uma das janelas e acendeu um cigarro.
Um quarto de hora depois, Pedro seguiu para a saída da cozinha que
dava para o quintal, sendo acompanhado pelos outros.
— É aqui o local onde meu pai vem se escondendo há anos.
No quintal, havia uma porta de acesso para um pequeno quarto
desligado da casa.
— As pessoas de Nova Jaguaruara acreditam que ele foi um dos
desaparecidos. O último. Bem, até vocês chegarem aqui. Ninguém da cidade
lembra — continuou — que minha avó teve um primeiro filho. Um bebê que
não passou do décimo dia. Isso pode parecer irrelevante, mas isso não o torna
o primogênito.
— O que você quer dizer com isso? — disse André.
— Entremos.
O interior do cômodo, preenchido por prateleiras em todas as paredes
internas, denunciava tratar-se de depósito ou dispensa. Materiais e
ferramentas. Uma oficina, talvez, pensou Vicente. Uma pequena janela dava
para o quintal e permitia a passagem da luz do final da tarde. Um colchão
velho a um canto e uma mesa com algumas cadeiras eram toda a mobília
presente. Na mesa, uma quantidade exagerada de parafina derretida e jamais
retirada indicava que alguém estivera usando aquele lugar como refúgio há
muito tempo.
Pedro sentou-se diante da mesa. Os outros fizeram o mesmo, com
exceção de seu pai, que se deitou no colchão e ficou a contemplar com um
sorriso bobo a iluminação do final de tarde. Coçou-se como o cachorro duas
ou três vezes até achar a melhor posição.
— Bem, por onde começar... Existe uma lei em Nova Jaguaruara. Ela
consiste em escondermos um antigo segredo custe o que custar. As crianças
aprendem desde cedo com os pais. Não tudo! O suficiente. O suficiente para
que seus filhos não tenham o trágico fim que chegou a outras famílias tantos
anos atrás. A história foi perdendo seus detalhes a cada geração, entretanto.
Mesmo a fé sobre o que é dito caiu bastante, de toda forma, as pessoas tem
medo destas terras. Dois conselhos nos são dados desde cedo: não bisbilhotar
a antiga igreja e seus arredores e não falar sobre isso com pessoas de fora.
— Ainda não entendo como estas pessoas desaparecem, Pedro. — disse
Vicente.
— Conte-nos mais sobre Bonifácio — disse Rose com uma voz
amistosa.
— Dinheiro foi ganho aos montes por meio dos milagres. Bem, a fama
de Bonifácio espalhou-se, trazendo pessoas com as mais diferentes doenças.
Pessoas viam de longe em busca de socorro. Chegaram também, além de
doenças, os primeiros casos de possessão. Bonifácio conseguia expulsar os
demônios dessas pessoas, mas eles apenas ficavam a vagar pela cidade.
Apenas a igreja sabe o processo exato para a realização de um exorcismo. O
resultado disso é que pessoas foram utilizadas por essas entidades malignas
como via de entrada para este mundo. Bonifácio, pensando estar curando
essas pessoas, apenas estava liberando demônios em Jaguaruara. Ninguém
sabe ao certo, mas os desaparecimentos parecem ter começado logo após o
desaparecimento do próprio Bonifácio.
— E por que as pessoas desaparecem, Pedro? — insistiu Vicente.
— Para viver neste mundo, eles precisam de duas coisas. Escuridão e
alimento. E eles se alimentam de carne humana.
— E por que a igreja não fazia os trabalhos de exorcismos? — disse
Rose.
— Charlatões! Os trabalhos de Bonifácio traziam em mais quantidade o
que mais interessava à igreja.
— Dinheiro — sussurrou Vicente.
— Exato! E é por isso que os trouxe aqui. — Pedro apontou para uma
das prateleiras, onde estavam posicionadas e igualmente espaçadas nove
aglomerados de grandes pedaços de argila. — Em Nova Jaguaruara, há uma
lenda sobre velhas botijas com dinheiro enterradas. Muitos cavaram seus
quintais na infância com a esperança de achar dinheiro, eu mesmo fazia isso
quando garoto. O que ninguém imagina, é claro, é que essas botijas realmente
existam, mas escondidas a alguns quilômetros de lá, nessa parte do mundo
que poucos sabem existir. Parte do dinheiro recebido pelos trabalhos foi
utilizada para a construção da igreja, o restante foi escondido em botijas de
barro. Bonifácio escondeu dez botijas pelo terreno por medo de usar o
dinheiro. Guardou-o por segurança, para usá-lo um dia, quem sabe.
— Vocês encontraram todas? — Perguntou Rose.
— Não. Cada monte corresponde a uma botija — disse apontando para a
prateleira. — Falta uma.
— Como descobriram a localização delas? — disse Vicente.
— Da forma convencional.
— Que seria?
— Através de sonhos.
— Não pode ser... — disse Vicente balançando a cabeça. Rose tocou em
seu braço para que ele se controlasse. André ouvia tudo em silêncio, atento.
— Meu pai escuta vozes de pessoas que moravam aqui.
— Cl-Clemên-cia — o velho falou. Os joelhos estavam abraçados contra
o peito e ele balançava de um lado para outro no colchão.
— Ele sempre fala isso. Sempre pedindo para que os espíritos tenham
piedade.
— O que vocês fizeram com o dinheiro?
— Queimamos, Rose — disse apontando para uma lata de metal a um
canto.
— E o que aconteceu com Bonifácio no final das contas? — disse
finalmente André.
— Ninguém sabe explicar, como eu já havia dito. Vai ver foi o primeiro
a desaparecer de Jaguaruara.
— De-devorado p-pelo p-próprio S-Satana-nás.
Rose benzeu-se ao ouvir aquela voz; parecia vir da boca de um animal
selvagem que acabara de aprender a falar.
— Coisas que o meu pai diz escutar dos antigos moradores. Desde que
veio morar aqui, descobrimos muitas coisas sobre o passado desse lugar.
— Cle-Clemência.
— Muito do que contei é desconhecido pelo povo de Nova Jaguaruara.
Cabe a vocês acreditar ou não.
— A c-cruz f-foi es-esculpi-pida p-pelo pr-próprio S-Satanás.
— Por que não destroem a igreja? — disse Vicente voltando-se para
Pedro.
— Temos medo. Não temos ideia do que pode nos acontecer. Nosso
povo já foi poupado uma vez. Não sabemos o que fazer contra isso.
— E você e seu pai, por que não desaparecem como aconteceu com as
outras pessoas? — disse André.
— Porque não somos primogênitos.
— Isso de novo — disse André com uma nota de impaciência na voz.
— O que ainda não entendi, Pedro, foi como seu pai veio acabar aqui.
— disse Vicente. Pela janela, o céu adquiria um tom rosáceo de fim de tarde.
— Por muito tempo eu me culpei pela morte do meu irmão, afinal ele só
entrou na igreja por minha causa. Só depois pude entender que nada poderia
me acontecer nesse terreno. A maldição atinge apenas os primogênitos que
por aqui passam. Essa é a maldição dessa terra. Logo após o seu
desaparecimento, meu pai veio procurá-lo. Os policiais nunca o deixavam vir
sozinho e nunca o permitiam adentrar a mata ao redor da igreja. Diziam que
era perigoso demais. Um dia então ele veio sozinho e descobriu essa cidade.
Me contou tudo, as vozes que ouvia, os gritos de terror no meio da noite e,
principalmente, que esse lugar não representava perigo para ele ou para mim.
Ele tinha esperança de rever meu irmão, até mesmo morto. Queria pelo
menos se despedir. Mas o tempo passou e seu juízo se foi junto. Acho que
esse lugar deixou ele louco. Ele não voltou para casa e o povo da cidade
acreditou que ele tivera o conhecido fim. Minha mãe, ela sabia que ele estava
por aqui, só veio a me contar depois. Mas ele já não era o mesmo homem de
antes. Ela não aguentou a perda do filho e do marido. Suicidou-se no ano
seguinte. Por mais que eu tentasse convencê-lo, ele se recusou a voltar para
Nova Jaguaruara e por esta terra maldita perambula há duas décadas. No dia
que deixei vocês, voltei escondido e pedi a ele para que se mantivesse aqui
neste quarto durante toda a noite. Ele não resistiu a curiosidade, é claro. Faz
muito tempo que não vê ninguém além de mim. Venho aqui quase todo dia
trazer água e comida. Não conversamos muito, às vezes nem sei se ele ainda
sabe quem eu sou.
— Eu não sei o que dizer cara — disse Vicente, apertando o seu ombro
com uma das mãos.
— A maldição só atinge então os primogênitos? — perguntou Rose com
um tom assombrado.
— Não podemos tirar os olhos de você, Rose — disse Vicente,
espantando-se consigo mesmo e com o que acabara de dizer. Estava caindo
na história dele, pensou.
Pedro confirmou com a cabeça. Era a primeira vez que conversava
abertamente sobre aquilo com alguém. Sentia-se aliviado em parte, mas o
sentimento era acompanhado por uma terrível sensação de culpa. Sabia que
não deveria ter compartilhado aquilo tudo com outras pessoas, ainda mais de
outra cidade; crescera com esse lema. Mas era o mínimo que ele podia
oferecê-los. A sensação de rebeldia e desobediência, entretanto, era ao
mesmo tempo saboreada ao se lembrar dos olhares debochados vez ou outros
recebidos pelo povo de Nova Jaguaruara.
— Para mim, é o suficiente — disse André levantando-se. — Não vou
passar outra noite aqui.
Precipitou-se para a saída. Abriu a porta do quartinho e retornou para o
quintal. Já era quase noite.
— O que houve, André? — disse Rose seguindo-o. Os outros fizeram o
mesmo. O velho foi no encalço arrastando-se com as mãos e os pés.
— Estou voltando para Fortaleza. Vou caminhando até a cidade mais
próxima e vou tentar uma carona. Não acharemos mais ninguém aqui. Maria
e Felipe estão mortos. Mortos! — Sua voz beirava a histeria. Cruzou a
cozinha e seguiu pelo corredor em direção à saída.
— O que você está esquecendo é que a cidade mais próxima é Nova
Jaguaruara — disse Pedro. — Eles vão ter um enorme prazer em linchá-lo em
praça pública depois do que você fez. Com sorte você volta para a cadeia,
André.
— Ele tem razão. Temos que esperar a poeira baixar. Mesmo que tudo
isso seja verdade, estaremos a salvo aqui, nesta casa — disse Vicente.
André atravessou o alpendre. Quando desceu o último degrau, e pisou
no maldito solo, uma rajada de vento derrubou-o no chão. Durante a queda,
jurou ter ouvido cascos batendo no chão, por toda parte. A escuridão agora
era total.
— Qual o seu problema? — disse Vicente, alcançando-o. — Vamos,
levante-se! Só mais uma noite aqui e pensaremos em algo.
— Eu não posso continuar aqui! — Ele deixou escapar um soluço. — O
Gustavo não é meu irmão.
— O que você está dizendo? — Vicente segurava-o pelo braço, tentando
levantá-lo, mas André ainda estava esparramado diante da casa.
— Fui adotado! Uma criança deixada à porta da casa de uma família.
Meus pais nunca me esconderam a verdade. E como esconder, quando se tem
um irmão que faz questão de lembrar isso o tempo inteiro? — André
começou a chorar. — Vocês não fazem ideia do que eu sentia na infância. A
sensação de que eu não devia estar ali me acompanhava todo santo dia. Eu
era o intruso. O menino abandonado. O menino que nem os próprios pais
fizeram questão. Era isso o que Gustavo dizia para mim. Mas eu sempre fui
melhor que o Gustavo. Em tudo o que eu fiz. Sempre dei mais orgulho aos
nossos pais. Sempre conquistei tudo que o Gustavo conseguiu. Tudo.
— Por que nunca nos contou?
— Tenho vergonha disso, Vicente.
— Você sabe quem é sua mãe verdadeira? — disse Pedro aproximando-
se.
— Que diferença isso faz, droga? — disse André.
— Ele quer saber se você é o primeiro filho ou não — disse Vicente,
erguendo-o.
André não tinha aquela resposta.
— Já escureceu, devemos voltar para dentro da casa. Agora. — disse
Pedro, e ajudou Vicente a conduzi-lo de volta à casa. Rose observava a cena
da varanda, ao lado do velho.
As lanternas não mais funcionavam, as pilhas estavam fracas. Uma vela
foi então acesa por Pedro no centro da mesa da cozinha, onde os cinco se
mantiveram sentados enquanto a noite se arrastava. As horas passaram e algo
martelava sem freio na cabeça de Pedro, fazendo-o sentir pela primeira vez
uma sensação de insegurança no interior daquela casa. André fora marcado
por aquele sopro. Só podia ter sido isso. Enquanto a chama da vela estivesse
acessa, estaria tudo bem, ele pensou. Mas estava temeroso para o que
aconteceria em breve.
André não falou uma só vez, retirando igualmente o ânimo de qualquer
um que quisesse prestar-se a tal ofício. Na maior parte do tempo, manteve o
olhar fixo para o lado de fora numa expressão confusa, chamando por vezes a
atenção de Rose. Era como se ele visse algo pela janela.
A chama apagou.
— Pedro, acenda a vela. Rápido!
— Não vai acender, Vicente.
— Meia-noite — disse Rose.
André baixou a cabeça ao ver, num relance perturbador, o contorno das
quatro criaturas que estavam sentadas à mesa diante de si. Chifres apontados
para o teto e pares de cascos posicionados sobre a mesa, numa bizarra
imagem de bodes a iniciar uma partida de baralho ou, quem sabe, prestes a
fazer uma refeição. Teve vontade de olhar uma segunda vez, mas não queria
correr o risco de olhar para aqueles olhos. Ouviu então o som de cascos. As
criaturas deviam estar agora de pé. Vendo então o objeto colocado ao lado,
escorado à parede para garantir-lhes segurança, não viu outra saída. Deixou-
se cair, virando a cadeira na direção da parede e tomando a espingarda em
suas mãos. Pôs o cano em sua boca e, ainda de olhos fechados, pôde sentir o
sabor metálico e nauseante até ter os olhos tomados por um forte clarão.
Capítulo 27