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Anatomia Do Auto-Engano - Edição Formatada para o Kindle1 PDF

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ANATOMIA DO AUTO-ENGANO

VALDIR RODRIGUES BASSOUTO JUNIOR


Valdir Rodrigues Bassouto Junior 2017 – Todos os direitos reservados.
ÍNDICE
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
CAPÍTULO 24
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 1

Pensando no começo dessa história, lembro do choro de meu filho. Volto alguns
meses, quando perdi a paciência e soquei a cara do meu chefe. Justa causa na carteira.
Descontrole emocional. Problemas para conseguir outro emprego. Estava difícil para os
qualificados com cara de ator de novela, imagine alguém que mal completou o ensino médio.
Ali foi o início.

O bebê chorava e Larissa disparava reclamações, enumerando os problemas que


tínhamos. Naquele dia específico, cortaram a luz de casa. Estávamos no escuro, com fome e
um filho para criar. Pelo menos a escuridão permitia esconder meu rosto. As feições
simétricas dela, agora retorcidas de raiva, me diminuíam.

— E você ainda bateu nele! Onde eu estava com a cabeça? Minha mãe sempre dizia
―esse desgraçado não vale nada.‖ ―Foge dele, filha, você consegue algo melhor, muito melhor
que esse infeliz…‖

Acostumei com esse discurso. Sabia os momentos certos de grunhir, acompanhando


a evolução do esculacho. Ela estava certa. Agir de cabeça quente é uma merda e todos deviam
evitar. Problema foi me chamar de corno. Rafael Tanagaki, meu ex-chefe, afirmou que deu
umas trepadas em meu lugar. Impossível ficar quieto nessa situação. Os presentes,
engravatados saídos do mesmo inferno, disseram que testemunhariam a favor dele, caso eu
tentasse processar. Larissa nunca soube o motivo de eu ter socado o cara. Porém, sempre que
ela o defendia e citava minha estupidez, uma pontada estranha me aparecia no coração.
Imagens deles juntos vinham e sumiam à cabeça em menos de um segundo. Era quase como
se eu nunca tivesse sentido aquilo. Quase.

Tive certeza que Edison inventou a lâmpada apenas para não discutir com a esposa
no escuro. Para terminar o toque de decadência, choveu. As gotas batiam como pedras no
frágil telhado da casa, ritmando os gritos de inútil. E eu me sentia assim. Sem conseguir pagar
água e luz ou trazer comida para dentro de casa. Sem um puto no bolso e sem ter alguém para
emprestar.
Não procuro criar desculpas para minhas ações, saiba disso. Você ficaria dias citando
exemplos de pessoas em dificuldades, mas resistiram à tentação. E eu concordaria com você.
Fui um fraco e iludido. Hoje, mais do que nunca, tenho certeza.

Porém, com o estômago se retraindo de fome, encarando a parede, sentindo o cheiro


de esgoto subindo do banheiro, ouvindo as reafirmações constantes de Larissa sobre a minha
incapacidade como empregado, pai e homem, tomei minha decisão. Nunca mais em minha
vida outra noite seria como aquela.

Agora, outra vez encaro a escuridão, ouvindo a chuva que parece ter vindo para levar
toda essa praga humana com ela.
CAPÍTULO 2

— Porra, Amarelo. Deve ter alguma coisa em que você possa me ajudar.

Estávamos no apartamento dele. Morava em um dos prédios do calçadão da Rua XV,


vista privilegiada do Bondinho. Uma mistura de vodca, refrigerante e gelo.

— Pode ter. Pode ter. Sossegue um pouco e aprecie o ambiente. — Ele falou.

Pôr do sol num bonito tom avermelhado. Uma enxurrada de gente abaixo, saindo dos
trabalhos. Artistas de rua disputavam cada pedestre por alguns trocados, aumentando minha
sensação de não saber ganhar dinheiro.

— Só existe uma maneira de ficar rico. Desde sempre. Encontre algo que as pessoas
queiram. Compre por dois e venda por quatro. O resto é merda ensinada por gente que veio e
vão a lugar nenhum. — Falou, me tirando da contemplação das ruas.

Concordei. Estudamos juntos no colégio. Repetiu de ano diversas vezes em matérias


que nunca o levariam a lugar algum. Largou os estudos, numa atitude reprovada por muitos
da turma antiga, hoje, tão falidos quanto eu. Sabia ler, escrever e tinha facilidade em
matemática. Conseguiu um revólver e cinquenta gramas de cocaína. O rapaz mirrado e
sarnento agora mandava no tráfico de drogas em Curitiba. Era alguém que entendia de agarrar
oportunidades.

— Sempre existe algo em que podem me ajudar. Sempre existe. O problema… Não
sei se você aguenta a pressão. E tô sendo honesto com você. Posso te emprestar dinheiro, sem
tempo pra devolver se for o caso. Agora, trabalhar comigo, porra, malandro, tu me complica
pra caralho pedindo coisas assim. É viver pressionado. Sabe como é?

— Não tenho dinheiro pra por comida dentro de casa. Minha família está passando
fome. Eu estou desesperado. Não é pressão o suficiente para você?

— Eu sei. — Encheu o copo com mais bebida. — Esse é o problema. Não é a tua
praia. Você não foi feito para esse tipo de assunto. — Ele me encarou. Lembro de sentir as
lágrimas acumularem nos olhos. Apenas a vergonha as impediu de brotar. — Vou me
arrepender. Sei disso. Tenho um serviço que vai caber bem em você.
Foi para dentro do apartamento e voltou com um maço de notas de cinquenta.

— Resolva teus problemas. Amanhã volte aqui.

Saí pouco depois. Passei na COPEL, religar a luz era importante. Meu coração queria
estourar meus ossos. Um problema a menos. Vários a surgir.

***

Larissa estava com o humor em alta de noite. Dentes brancos à mostra, olhos verdes
de alegria brilhando. Além de luz elétrica e água em casa, fiz as compras do mês. Contei
sobre o novo emprego, enquanto brincava com Theozinho e a ouvia cozinhar. Uma empresa
nova ali no centro. Precisavam de experiência e viram alguém com potencial. Gostaram tanto
de mim que, além de me contratarem, me deram uma gratificação.

De noite, após o sexo, coisa que não acontecia desde que fui demitido, fiquei
encarando o teto, ouvindo a respiração leve dela. Teria acreditado na história? Larissa possuía
vários defeitos. Burrice não era um deles. A história foi tão mal contada que eu notei as
contradições ao falar. Pensei em acordá-la e dizer toda a verdade. Sobre como arrumei o
dinheiro. Que eu tinha medo das coisas nas quais podia me envolver.

Ela me abraçou, vindo para mais perto. Sussurrou que me amava. Acariciei os
cabelos e a apertei forte. Era uma questão sem importância, afinal de contas. Era uma situação
transitória. Em breve, eu estaria fora e seríamos uma família feliz, morando no exterior e
longe de toda essa bagunça.

Assim eu pensava naquela época. Todos têm necessidade de ilusões.


CAPÍTULO 3

Garoto de entregas. Era assim que me chamavam. De tudo que eu tive medo de fazer,
virei entregador de muamba. Alívio e decepção ao mesmo tempo. No popular, a famosa mula.
Passava o dia inteiro andando por Curitiba e região metropolitana. De Colombo ao
Pinheirinho, Campo Magro até o Boqueirão, não teve buraco onde não me enfiei. Se houvesse
uma arma a ser entregue, mercadoria de roubo a ser dispensada, droga a ser reposta, lá estava
eu.

Tudo bem. Era melhor do que me envolver com atividades criminosas de verdade. A
possibilidade me dava medo. Explicar a situação em casa seria terrível. Supondo que chegasse
a ser explicada. Seria a última vez que ouviria falar de minha esposa e meu filho.

Tinha dois melhores amigos, observação e paranoia. Todos a minha volta eram
policiais, ou membros de outra facção. Entrava nos ônibus e ia para os cantos, mantendo
todos em meu campo de visão. Muitas foram as voltas desnecessárias apenas para garantir
minha segurança. Depois da última entrega torcia para ninguém telefonar e corria ver
Amarelo, receber o pagamento diário. Bebíamos algumas, eu ouvia piadas sobre como era um
menininho assustado e ia para casa. No aconchego e segurança do lar, encontrava Larissa de
bom humor, casa cheirando bem. Perfeito. Na terceira semana, estava acostumado com a
rotina. Lembro bem, era uma terça-feira. Daquelas em que o sol fica o dia inteiro com uma
aparência bonita, mas o vento castiga quem é tolo o suficiente de sair para a rua.

Cheguei no apartamento, receber o dinheiro. Uma das namoradas de Amarelo me


recebeu. Ele usava o celular. Era uma menina nova, demais até. Polaca de descendência eu
diria. O olhar transmitia certo perigo. Prisão por abuso de vulnerável, talvez. Nunca soube o
fim dela.

Tomei o máximo de distância dela. Meu amigo sempre foi obtuso em relação às suas
namoradas. Brigava com conhecidos pelo menos duas vezes por semana. Às vezes, a garota
nem sabia que ele a considerava propriedade particular, gerando situações engraçadas.

— Mande eles enfiarem os honorários no cu! — Ouvi sua voz da sala. Ele apareceu
na varanda. Agitado e coçava o nariz. — Maninho, maninho. Vem cá, dá um abraço, parceiro.
— Antes que eu pudesse reagir ele me abraçou com força. Cheirava a bebidas diversas. Me
soltou após vários tapas em suas costas. — Veja só. Tu me ajuda um bocado, tu me ajuda.
Hoje tô precisando de um favor. Sei, sei, você está louco para ir embora e dar aquela sapecada
esperta na patroa, mas preciso de um favorzão. Pode ser?

— Não envolvendo nada de errado.

— Nunca envolve nada de errado, parceiro. Só fazemos a coisa certa aqui, não
fazemos? Faz o seguinte, preciso que tu leve um pó pra um apartamento e… Bom tu já fez o
bastante hoje. Deixa que eu vou.

— O caralho. Diz onde que é. Vou rapidão e de lá, pra casa.

Ele fez sinal de positivo. Entrou no quarto e voltou com o meu dinheiro e um
pacotinho de cocaína.

— Prédio à esquerda, no final do calçadão. Apartamento 308. Acertam contigo lá.

Agradeci e fui embora. A rua estava mais vazia que o normal. Pensando em
retrospecto, aquele dia inteiro foi recheado de coisas estranhas. Na hora, porém, eu apenas
pensava em chegar o mais rápido possível no prédio e voltar para casa, dormir o sono dos
justos e trabalhadores.
CAPÍTULO 4

Estava quase na Praça Santos Andrade, ao lado do prédio histórico da UFPR, quando
percebi que tinha passado do ponto de entrega. Voltei sob o olhar desconfiado dos policiais
em uma viatura. Calmo.

Era um prédio azul. Destacava-se de longe, no meio das construções cinzentas. Fiz
meu caminho tentando chutar os pombos que insistiam em se avolumar no trajeto. Não tinha
porteiro para impedir a entrada de gente mal intencionada, mas estava em melhor estado de
conservação que seus vizinhos. Também não possuía elevador. O 308 ficava no terceiro
andar. Toquei a campainha, um som que há muitos anos não escutava, e esperei. Um minuto.
Dois. Nada. Peguei o celular do bolso e comecei a discar o número de Amarelo. Nesse
momento, a porta marrom envernizada se abriu.

Era linda. Saída diretamente de meus pensamentos, se materializou em minha frente.


Usava um corte de cabelo curto, na altura do pescoço. Olhos escuros, lábios carnudos e uma
boca altamente suculenta. Deixava, propositalmente ou não, uma das presas por cima do lábio
inferior. Tudo nela, maquiagem, dentes, altura, número de fios de cabelo, parecia feito de
acordo com os moldes mais perfeitos. Suas roupas indicavam que estava pronta para sair. Não
usava nada vulgar, e mesmo assim, transpirava aquele ar de sexualidade que algumas pessoas,
principalmente as mulheres, sabem que tem.

— Vai continuar babando?

Senti o fluxo de sangue acumulando em meu rosto. Engoli a saliva e voltei ao motivo
da visita.

— Vim entregar o frango.

Ela balançou a cabeça para os lados. O olhar atento, mesmo tendo qualquer coisa de
inocente. Deu espaço e fez sinal para que eu entrasse.

— Cadê? — Falou após fechar a porta.


Puxei o saquinho do bolso de dentro da jaqueta. Uma grama, cem reais. O preço não
era justo, mas ela estava disposta a pagar. Um dos princípios básicos desse ramo é extorquir
os otários. Aos olhos de Amarelo, ela era uma.

— Tudo bem, tudo bem, eu acho. Nunca tive nenhuma experiência com essas coisas,
você sabe… Vou pegar o dinheiro… Prepara uma para mim enquanto isso? — Ela disse e
saiu antes de ouvir minha resposta.

Era comum esse tipo de pedido? Operava fora de minha área. Resolvi apressar o
processo. Peguei um naco da pedra branca do saco e macetei com um cartão. Fiz uma linha
que julguei ser o suficiente para ela. Como demorava, moí pedaços cada vez menores,
endireitei a linha mais, até virar um farelo branco.

Ela voltou com a nota azul na mão. Estiquei minha carteira, o bagulho em cima. Deu
um risinho sem graça. A coitada era uma amadora.

— Segure, por gentileza. — Falei, enrolando a nota de cem reais.

Entreguei o canudo e segurei a carteira. Ela mandou tudo para dentro de uma vez só.
Em seguida, os ruídos característicos de quem puxa algo do nariz. Os olhos lacrimejaram.

— O resto está em cima do micro-ondas. — Falei. — Você não tem cara de quem
mexe com isso. Nem deveria continuar.

Esse comentário, idiotice pura minha, a fez levantar uma sobrancelha.

— Você deve ser um péssimo vendedor, né? Como vive se diz para não usarem sua
mercadoria?

— Sou apenas um entregador.

— É? E se eu falar pro teu chefe que você fez isso?

— Provavelmente arrancaria meu pau fora e me foderia o cu com o pau amputado.

— Precisa ser tão nojento?

— Desculpe. Desacostumei a lidar com gente do seu nível.

Ela riu. Um som agradável. Menos agradável era a ver passando a mão no rosto. A
cocaína agia. Ela praticamente mastigava a língua.
— Meu nível?

— Sim. Gente de classe.

Eu não entendi o que aconteceu comigo. Nunca fui de falar dessa maneira.

— Quer dizer que se eu contar sobre seu pedido, teu chefe te mata?

— Duvido. Mas feliz ele não vai ficar.

Procurava alguma maneira de sair de perto dela, mas seu corpo bloqueava a
passagem da cozinha até a sala.

— Então sua vida está em minhas mãos? — Esticou a mão direita. Apontou a palma
com o indicador da outra mão. — Se eu fizer isso… — Fechou a mão. — Acaba esmagado.

Não gostei da analogia mais do que gostaria de ser enquadrado pelos policiais.

— Pode ser.

Guardei minha carteira, o dinheiro e passei por ela, relando de leve em seu corpo. Ela
ainda cheirava bem, algo doce que contrariava o ambiente em volta. Bonito, bem enfeitado
com várias bugigangas. Mesmo assim, era seco e cinzento demais. As paredes azuis davam
um clima estranho.

A mulher riu de novo e me deu passagem. Fui em direção à saída. Ela me


ultrapassou. Abriu a porta e fez uma pose exagerada para que eu passasse. Fui direto ao ponto
de ônibus, remoendo sobre como as pessoas são estranhas. Em poucos minutos, o
acontecimento sumiu de minha cabeça. Foi apenas uma das coisas que eu quase podia jurar
nunca ter pensado, nem mesmo por alguns segundos.
CAPÍTULO 5

Algumas pessoas só enxergam o lado ruim das coisas. Larissa deveria ser auditora de
padrão de qualidade. Seria o terror dos colaboradores e a queridinha da chefia. Depois de
sairmos da miséria quase total, mudarmos do barraco decadente escondido nos cantos das
indústrias para um apartamento no Mossunguê, era de se imaginar que as coisas ficariam
melhores. Como me enganei.

Ela ficava cada vez pior. Ia virando uma megera à medida que o tempo passava e o
bebê crescia. Um passo cada vez maior para tiranizar minha vida. Uns seis meses depois da
entrada provisória, ela começou a indagar sobre meu trabalho.

— Gostaria de saber — era assim que começava as ofensivas — quando poderei ir


até lá. Deve ter uma festa, confraternização, qualquer coisa, não? É estranho, as pessoas me
perguntam e eu não consigo responder direito o que você faz. Não acha engraçado?

— Estranho… — Falei. O bebê tinha quase oito meses. Tinha algo em seu rosto.
Encarei-o durante um bom tempo. Larissa aceitou o silêncio como licença para continuar.

— É bem essa palavra mesmo. É estranho. Não fosse o dinheiro, nem acreditaria que
você trabalha…

Seguia a ladainha. Ainda inspecionava a criança, formulando um plano que


diminuísse as perguntas de minha esposa. Essas são as coisas que nos pegam, no final das
contas. Aquele momento fodeu com tudo.

***

— Que cara de cu é essa, parceiro? Passou a mão onde não devia? — Amarelo falou.

O rosto dele apresentava traços de ausência de sono provocada por substâncias


ilícitas, quebrando o primeiro mandamento do tráfico: não usarás de tua própria droga. O
problema era dele. Minha preocupação era apenas com a entrega.

— Tive uma noite péssima, cara. Preocupadão com meu filho.

— Algo grave?
— Não sei… O menino não abre o olho. E ele tem bem uns oito, nove meses.

Silêncio por um momento. A menina da vez, uma baixinha de cabelos escuros,


magrela e sem graça, pelo menos cara de adulta tinha, trouxe uma sacola com as muambas e
me entregou. Amarelo foi comigo até a porta. Do lado de fora apertou meu ombro. Respirou
fundo umas três vezes.

— Abre o bico, cara. Tô ficando nervoso. — Falei.

— É sobre esse problema do seu filho, que tu me falou agora… Sobre não abrir o
olho e tal…

— Diga.

— É… — Amarelo estava um pouco vermelho. Nunca imaginei que ele fosse capaz
de sentir embaraço. — Bem… Falo na humildade, até fico chateado, na real. Quem tem que
abrir o olho é você, parceiro. Aquele moleque é filho de japonês.

— Vá se foder, cara. Numa boa, vá se foder.

Larguei ele sozinho e fui ao elevador. Bufando, respiração pesada. Apertei o botão e
gastei o piso andando de um lado ao outro. O elevador demorava. Fui direto às escadas.
Precisava caminhar. Filho da puta.

***

Casa, quase anoitecendo. Bebendo cerveja e assistindo televisão. Larissa se


incomoda com meu estado de espírito. Estou mais mandão que de costume. Tento me
convencer que ele estava tirando uma onda. Olho para ela. Olho para o bebê. Não tem como
ser piada. Não tinha como ser piada mesmo. A porra da criança era japonesa.

Brigamos a noite inteira. Os vizinhos abaixo batiam com vassouras. Os do lado


davam tapas fortes nas paredes. Um deles bateu na porta de casa. Coitado. Faltou se ajoelhar.
Rogou encarecidamente. Que tipo de pessoa roga encarecidamente?

Uma briga épica. O motivo me escapa. Só lembro que nem cheguei perto de
mencionar o verdadeiro motivo. Nosso casamento havia acabado há muito tempo. Prolongá-lo
seria um erro. Mas me tornei conhecido pelas decisões erradas.
CAPÍTULO 6

Nunca acreditei cem por cento na existência de Deus, mas sempre tive certeza do
Diabo ser real. Ele atende por nomes e formas diferentes. O vi aquela manhã ao me barbear.
Imagino que seja algo comum a todas as pessoas – pelo menos uma vez na vida, se olhar no
espelho e não aguentar encarar a pessoa no outro lado.

Estava sozinho em casa. Nenhuma surpresa nisso. Passei o café e repassei os


detalhes, naquela época vivos e ricos, da briga no dia anterior. Senti uma satisfação vazia.
Uma vitória que não deveria ser comemorada. Contando que pudesse chamar aquilo de
vitória. Alguns chamariam de vergonha.

Tomei o café e resolvi ligar mais tarde e pedir desculpas. O mínimo que eu poderia
fazer. Teria o dia inteiro para pensar em algo realmente decente. Também precisava descobrir
a verdade. A criança não podia ser japonesa. Era meu cérebro tramando contra minha
sanidade.

Ela nunca daria para aquele filho da puta do Tanagaki. Certo.

***

— Qual foi a merda que você fez?

Amarelo disparou logo que entrei no apartamento. Congelei. Seu tom de voz era tão
sério quanto uma epidemia de Ebola.

— Eu? — Minha voz saiu fraca. Apontei meu peito, só para o caso de ele não ter
escutado.

Ele acenou a cabeça afirmativamente.

— Pedi uma entreguinha no 308, final da XV. Só isso. Lembra?

— Sim. — Voz ainda fraca.

Ele se aproxima. Vejo o revólver na sua mão. Mordi os lábios por dentro. Devia ter
comido algo antes de sair de casa. Quem sabe meu estômago parasse no lugar.
— Faz o quê? Duas semanas?

— Talvez…

— Era só pra entregar e ir embora. — Gritou, vindo em minha direção. Recuei até
tropeçar no sofá. Sentia que era o menor ser do universo.

Ele riu com gosto. A menina do outro dia saiu de traz de uma das cortinas. Segurava
um celular. Estavam filmando.

— Tinha que se ver, parceiro. Tinha que se ver.

— Porra, cara… faz isso não. Quase morri agora, velho.

— É, parceiro, tem que ficar esperto. A mina ligou aqui de novo. E pediu mais
bagulho. E pediu você na entrega.

Ele ria, mas com certeza também não deve ter gostado da situação.

— E você atende ela por quê? Não é pouca coisa pra você?

— Vendo em atacado e varejo, parceiro. E ela tinha meu número de uma conhecida
dela e tal. Mas aí, me conta, tu não fez nada de errado lá, né? Não andou jantando por lá, nem
nada assim, né?— Passou a mão na narina.

— Não, cara. Sabe que não sou disso.

— Espero que sim. Faz o seguinte… Vai lá, entrega o bagulho e descobre que porra
ela quer. Esse tipo de coisa é estranho. Estranho demais. Todo cuidado é pouco. Tu deve
saber.

Concordei. Peguei a encomenda, uma quantidade bem maior que a primeira entrega e
saí.

— Como vai teu moleque? — Amarelo falou.

Larguei a porta com força antes de ir embora. O barulho da batida ecoando no


corredor me deu um pouco de satisfação.

***
Dessa vez ela demorou menos para abrir a porta. Usava roupas mais próprias de ficar
em casa, um shorts velho e uma camisa apenas. Seus cabelos soltos. Usava alguma
maquiagem.

— Está pedindo bastante para quem não é acostumada a usar. — Falei. Preparava
uma carreira.

— É? — Ela respondeu sem interesse. Andava de um lado para o outro da sala, mal
prestando atenção em mim. O tipo de pessoa fraca e idiota que se perderia na cocaína. Tinha
certeza disso.

O apartamento era grande, ao contrário da tendência atual de diminuir os espaços. A


sala onde estávamos um dia chegou a ser bonita. No tempo da avó da atual proprietária,
talvez. Agora era possível ver partículas de poeira voando pela sala. Os moveis estavam
tomados pelo pó, além de gastos. A última faxina deve ter ocorrido durante a passagem de
Vargas pelo Paraná em 1930.

Ela mandou a carreira para dentro. Sentou-se ao meu lado e ficou a me encarar, com
uma expressão que tentava ser simpática. Fiquei incomodado. Senti minha respiração acelerar
uns vinte quilômetros. Uma gota de suor percorreu minhas costas.

— Faz muito tempo que está nesse negócio? — Ela começou.

— O suficiente.

Ela deu um risinho. Ria com facilidade e de qualquer coisa, mesmo se não tivesse
graça. Seu rosto também convulsionava menos agora. Sua resistência à droga parecia ter
aumentado.

— Meu nome é Bárbara. — Continuou.

— Prazer.

Eu gastava meu tempo olhando para a tatuagem em sua coxa. Gostava daquele
desenho marcado contra sua pele, branca em excesso. Deve ter percebido meu olhar, pois
apoiou um dos cotovelos no desenho e colocou o rosto de volta na minha altura.

— Não vai me dizer o seu?

— Faz diferença? Nomes são apenas nomes.


— Claro que faz. Você está meio arredio.

Engoli um pouco de saliva. Precisava escolher bem as palavras. Não queria ofender
ninguém, mas como bem sabemos, muitas vezes a intenção passa longe do resultado obtido.

— Sou uma pessoa bastante fácil de lidar, até.

— Mas…

— Mas gosto de compreender as coisas. E não entendo nem um pouco o seu objetivo
em me chamar aqui.

Outra risada. Ela foi à cozinha e retornou com dois copos de café. Olhei para o
celular. Eu tinha um dia cheio de entregas a fazer. Mas café é sagrado. O Titanic afundou
porque o capitão negou um copo de café antes de partir. Falo sério. É de conhecimento geral.

— E isso é motivo para ficar na defensiva?

— Para muita gente é.

— Muita gente…

O café estava bom, apesar de morno. Devia ser de manhã bem cedo.

— É. Por que pediu que eu viesse aqui?

— Teria vergonha de pedir a outro cara preparar uma carreira para mim. — Risinho.

— Tá bom.

O celular dela tocou. Atendeu no mesmo instante e foi para longe do alcance de
minha audição. Continuei a observar o ambiente. Havia um aquário vazio por cima da
cômoda próxima à varanda. Nenhuma foto por cima. Nenhuma televisão na sala. Um lugar
estranho.

Ela retornou. Respirava mais rápido.

— Vou precisar…

— Não se preocupe. Estou saindo. Tenho um dia cheio.

— Eu gostaria de falar com você de novo. Qual é seu nome?


Respondi. Fui embora enquanto ela falava algo. Provavelmente pedia meu telefone.
Iria dificultar. Sei o tamanho da encrenca em que poderia me envolver.
CAPÍTULO 7

Avisei Larissa que teria de fazer hora extra. Amarelo pediu minha companhia depois
que eu fui levar o ordenado do dia. Preferia ter ido a um bar, mas ele não colocava os pés para
fora do apartamento há dias. Uma vez o vi sentado na varanda, olhando as ruas com um
binóculo. Sua paranoia tinha atingido níveis estratosféricos. Não posso julgar. Nem a mãe
dele compareceria ao seu funeral.

— Eu estou bem mau, parceiro. Bem mau.

— Aham.

Bebíamos suco de milho e álcool. O tempo estava estranho, nem calor ou frio. Podia
despencar para qualquer um dos extremos a qualquer momento. Curitiba. Amarelo usava uma
coberta.

— Peguei uma doença fodida de alguma dessas meninas, não sei. É que você não
pode me ouvir respirar. Por dentro, parceiro. Um barulho estranho, sinto minhas tripas
desmontando.

Pensei em como se desmontaria uma tripa, sem chegar a uma conclusão.

— Tem certeza que não cheirou demais?

Ele rosnou ao invés de responder. Espalmei as mãos para o alto.

— Se foder, parceiro. Tô precisando falar coisa séria contigo e tu vem me acusando


de cheirar? Que tipo de merda é essa? Logo passa essa parada. Mas preciso te falar. Vou ser
preso em breve. Tenho certeza.

— Preso? E você diz nessa calma? Que porra?

— Fica tranquilo, acontece todo ano. Uma vez a cada sete meses mais ou menos.
Esquenta não. Vou precisar de alguém para ajudar minha menina a dar uma cuidada nas
paradas aqui do lado de fora. E pensei em você.

— Ficou louco?
— Não, parceiro. Veja, é perfeito. Você não tem cara de bandido. Conhece o povo
principal a conhecer. E não é tão burro quanto os demais, mesmo passando longe de se ser
esperto. Além de que sempre posso confiar em você. Fico uns três meses na jaula, talvez
quatro. É pouca coisa. E tu vai tirar uma graninha a mais, é bem óbvio. Acha que pode
encarar?

Vou te contar. Não achava, mas tudo que me desse dinheiro era bem vindo. Tinha
um plano em minha cabeça. Mal formulado, escondido no mesmo canto da memória onde
estava a possibilidade de traição de Larissa. Uma saída para tudo. Aos poucos e sem tomar
consciência.

***

— Promovido?

— Não exatamente, meu amor. Mas chega bem próximo. Diego vai fazer uma tour
de prospecção de novos negócios na Itália, ou qualquer outra coisa do gênero. Vou ficar esse
tempo substituindo ele. Conversaremos sobre uma promoção quando ele voltar.

— Demorou a dar certo, mas é assim. A primeira porta é sempre a mais difícil de
abrir.

— Eu tava pensando aqui…

— No quê?

— Se sua mãe cuidaria do bebê. Daí nós podemos comemorar. — Puxei-a pela
cintura, tentando me encaixar no seu quadril. Ela virou um pouco a cabeça, mordendo de leve
o lábio.

— Dá para tentar. Claro que dá.

A infeliz da mãe dela aceitou cuidar da criança, apesar da chuva de reclamações.


Fomos a um restaurante, depois a um bar curtir uma música ao vivo, coisa que fizemos pela
última vez em 1912. Depois, direto para um motel.

— Tem certeza que você não tem nada para me contar? — Ela, antes de cairmos na
cama. A voz transmitia desconfiança.
Tentei. Juro que tentei. Mesmo assim, não conseguia tirar meus pensamentos daquela
pequena com cara de assustada, caminhando a longos passos rumo ao precipício.
CAPÍTULO 8

Racionalizar as coisas depois de feitas. É engraçado agirmos dessa maneira. Procurar


onde e quando, em todos os momentos possíveis, as coisas tomaram o rumo atual e sem volta
com o qual nos deparamos. Num primeiro momento, eu estava sem trabalho, água ou comida
em casa. Depois, estava entregando muambas com um amigo trabalhando forte para me
ajudar, mesmo sabendo que eu nunca havia me envolvido no tipo de atividade dele. Agora
uma reviravolta e eu ficaria como homem de confiança. Homem de confiança.

Nos dias que precederam a prisão de Amarelo, acusado de envolvimento num


homicídio, ele me atualizou sobre como funcionava o negócio. Conheci as pessoas certas para
manter o dinheiro fluindo. Enfrentei vários olhares desconfiados e sorrisos estranhos.

— É a maneira como os outros te enxergam. A atitude é de gigante. Você é o Mike


Tyson indo bater no piazinho que arrebentou seu filho na escola, saca? Tem que agir assim.
Se não sentem confiança, não te respeitam. Se não te respeitam, vão tentar te enganar. Se te
enganarem, eu perco dinheiro. Se eu perder dinheiro, vou ficar chateado pra caralho. Aí quem
sabe o que pode acontecer, não é?

Ele vivia com essas ameaças veladas em forma de discursos motivacionais,


oferecendo uma cervejinha, dando tapinhas nos ombros, esmola para alguma criança. Os
verdadeiros problemas nunca aparentam ser problemas. Estão disfarçados de solução. Mas eu
tinha planos também. E convenhamos, que chance teria um meliante sem o ensino
fundamental contra alguém como eu?

Nesse tempo, Bárbara aumentou a frequência de seus pedidos. Amarelo mandou


outro duas vezes. Ela reclamou, voltando a ser uma tarefa minha.

— Vai lá, pica de mel. — Dizia

Apenas balançava a cabeça, obediente à ordem. Em breve mais nada disso seria
necessário. Em breve.

***
Ela, sentada no sofá, esperava eu preparar uma carreira. Usava roupas largas sem
disponibilizar alguma parte de seu corpo para apreciação. O apartamento fechado e escuro
mal permitia ver seu rosto. Minhas mãos tremiam ao moer e afunilar o pozinho da felicidade
de minha cara anfitriã. Por duas vezes quase derrubei o monte. Tinha algo estranho no ar,
além do cheiro de gente velha. Falar apenas o necessário era, como de costume, a melhor
escolha.

Talvez fosse o quê de inocência em seus gestos, provocadores, mesmo quando era
um simples levantar e oferecer café. Ou talvez apenas o fato de ela se interessar em mim. Ela
precisava de ajuda, mas era orgulhosa demais. Dizer as palavras em voz alta seria admitir sua
derrota.

— Estamos perdidos. — Falou. Sua voz me deixava intrigado. Parecia sonhadora,


um pouco distante, como uma dessas médiuns falsas recebendo uma visão reveladora. O
cheiro de cigarro deu o ar de sua graça. Ela não fumava nas outras vezes que fui lá. Começava
a adquirir maus hábitos, minha menina.

— Ahn?

— Como sociedade. Somos uma espécie condenada. Pensamos demais, sonhamos


demais, realizamos pouco. E chamamos qualquer pessoa fora disso de loucos.

Ergui as sobrancelhas e balancei a cabeça afirmativamente, tentando parecer mais


interessado do que realmente estava. Lembrar qual era o cheiro do mar parecia bem mais
interessante. Não só parecia. Era.

— E agora ficamos assim. Você constrangido de um lado. Eu constrangida de outro.


Não acha horrível? — Uma garrafa de bebida se materializou em suas mãos. Esfreguei os
olhos, procurando o momento perdido. Ela se drogava e eu ficava doidão? Nada bom.

Tentei falar algo. Minha língua engrossou. Mal passava pelo espaço de meus dentes.
Engoli um pouco de saliva e tentei outra vez. Resultados igualmente medíocres. Ok. Não era
nada que renderia um Nobel. Provavelmente a humanidade ficou melhor sem ouvir o que era
pra ser dito. Abasteci um copo.

Bárbara riu. Estava mais perto agora. Notei que ela estava descalça. Notei uma
tornozeleira em seu pé direito. Era o que a escuridão do apartamento permitia ver. Que
caralhos ela fazia trancada três horas da tarde? Lutei para controlar a respiração e mantê-la
num nível aceitável. Ajeitei o corpo no sofá, escondendo melhor o amigão que dava sinal de
vida em minha calça.

Ela não tomou conhecimento de nada disso.

— E tudo é tão… Tão… — Falava. Tive um vislumbre rápido de seu rosto. Uma
marca grande tomava seu olho direito. Como uma olheira, mas escura demais para se tratar
apenas disso.

Engoli o conteúdo de meu copo em um gole. Preparei outro copo de alcoólico. Mais
forte. O gosto da bebida, álcool quase puro, voltou pela minha garganta. Fechar a boca e não
concentrar em vomitar todo o jato em cima dela.

Seu rosto estava perto agora. Ela ignorava minha agonia. Só conseguia ver seus olhos
brilhando no escuro. Lutei contra a vontade de tocar em seu rosto, em mais uma batalha inútil
contra meu subconsciente. Encostei a ponta de meus dedos levemente na curva de seu
maxilar, o dedão pousando na mancha escura. Ela se encolheu, soltando um gritinho abafado.

Pedi desculpas. O corpo dela voltou a relaxar apenas um segundo depois. Naqueles
poucos momentos vi muitas coisas em seu olhar. O que eram? Um brilho diferente, intenso
até. No instante seguinte, ela se debruçou em mim, a cabeça apoiada em meu peito. Tentei me
ajeitar, mas ela não permitiu. Entendi, um tanto constrangido. Bárbara chorava.

Continuei quieto. O silêncio ainda valia ouro.


CAPÍTULO 9

Sentei-me na varanda do apartamento de Bárbara. Como ficava nos fundos do


prédio, a vista era o estacionamento. Um pequeno fusca enferrujado me olhava triste,
esperando o dono que perdeu as chaves em 1975 voltar. O céu escureceu, tanto pelo anoitecer,
quanto pelas nuvens carregadas. Choveria forte em breve. O celular marcava seis e meia e
tinha duas chamadas perdidas de Amarelo. Devia passar no apartamento dele antes de ir para
casa. Devia estar em um ônibus indo embora naquele exato momento.

Bárbara encostou as mãos em meus ombros.

— Achava que pessoas na sua linha de trabalho eram mais calmas. Não deviam
ser?— Cochichou. Deixava o rosto à mostra agora. A mancha era gigante. Queria sentir
menos incômodo a encarando, mas não havia como evitar.

— Sou calmo. Estava longe…

— Sim… Queria ir longe também. Apenas…

Raciocinei alguns momentos. Precisava ir embora, tomar um banho, encher a cara.


Precisava dar um trato em Larissa, precisava dar bons exemplos ao meu filho e precisava
pagar as contas. Precisava fazer muita coisa e o tempo não colaborava. Uma luz azul iluminou
as nuvens escuras acima, dando uma ideia do tamanho da encrenca vindo pela frente.

O celular tocou. Era Amarelo. Aproveitei a deixa.

— O dever me chama.

— É. — Sua voz ficou fria. — Sei bem. Deixe seu número. Posso ligar direto para
você assim… — Voltou ao tom anterior. — Não vai te trazer problemas, vai?

— Claro que não.

Saí cinco minutos depois. Choveu no momento em que apontei do lado de fora.

***
Amarelo foi preso logo após a entrega para Bárbara. Seu rosto estava no noticiário
matinal. Magro, pálido e com alguns inchaços, proveniente de resistência à ordem de prisão,
de acordo com o noticiário local. Um sorriso meio desafiador permanecia. A repórter o
chamava de suspeito. Envolvimento com tráfico, prostituição, sequestros, homicídios,
falsificar cartelas de bingo.

Também parecia avisar quem ficou do lado de fora, cuidando de seus


empreendimentos.

— Não era seu amigo? — Larissa falou.

Neguei.

— É a primeira vez que o vejo prestando tanta atenção no jornal.

— Você que nunca presta atenção em mim.

Ouvi um zunido próximo ao meu ouvido. Interrompi a trajetória de sua mão.


Destino: face direita. Apertei o pulso. Ela ficou um pouco ofegante. Seu rosto avermelhava,
destacando as bochechas. Minha escolha de palavras foi péssima.

— Tudo bem?

Percebi alguns detalhes. Primeiro, ela não usou a mão livre para me golpear.
Segundo, eu usava força demais ao segurar seu pulso. Soltei. Larissa esfregou a região, me
encarando. Olhos se estreitaram. Prestei atenção nos cílios. Grandes e curvos, escondendo um
leve sentimento de raiva.

Saí da cadeira e fui em direção a ela. Abracei-a antes de ser empurrado. Resistiu ao
abraço usando o calcanhar com força nos dedos de meu pé. Ignorei a dor e ficamos assim.

— Está tudo bem. Fique tranquila.

Ela me olhou, uma interrogação brilhante estampada na face. Mordi a bochecha de


leve. Ia acabar falando bosta ainda. Peguei minha blusa, dei um beijo na testa do bebê, cujos
olhos pareciam abrir um pouco mais que o normal, e fui embora, encarar meu primeiro dia
como gerente de operações, se é que podemos chamar assim um trambiqueiro mentiroso.

***
A menina que andava com Amarelo possuía um apartamento no mesmo prédio dele,
uns andares acima. Toda muamba foi para lá. Os imóveis dele estavam sob vigilância. Tânia,
esse era o nome dela, explicou as últimas instruções de nosso amigo em comum. Uma
repetição de tudo que ele havia me passado. Só enrolou mais para chegar aos mesmos pontos:
cara de mau, não conheço o dono da muamba, se ele perder dinheiro fica chateado, ele
ficando chateado pessoas se machucariam. Filho da puta.

— Não precisa fechar a cara, estamos nos ajudando aqui. — Falou. Virei em direção
a um espelho grande que ela mantinha na sala. Corrigi a postura e desamarrei a cara.

— Desculpe. Não é com você o problema. Estou um pouco ansioso.

— Tudo bem. Esses meses vão passar rapidinho, nem veremos.

Ela jogou uma lata de cerveja e ligou a televisão no canal de desenhos. Sentei na
poltroninha. Três latas de cerveja depois, fiquei relaxado.

Podia até me acostumar com esse tipo de vida.

***

— Acho incrível você nem reclamar do trabalho em casa. É anormal, sabia? —


Larissa disse, atrapalhando minha concentração no jornal.

A mãe dela estava curiosa, atormentando-a com perguntas e mais perguntas. A velha
achava as respostas insatisfatórias e acabava com a paz de Larissa. Assim, eu também não
tinha paz. Some o bebê chorando. Era a fórmula do inferno.

Theosinho crescia rápido. Os traços orientais amenizaram, mas ainda estavam


presentes no rostinho. Lembrar do assunto embrulhava o estômago. Devia ter usado mais
força para amassar a cara daquele japonês cuzão.

Uma criança japonesa que levava o meu nome. Japonesa, porra. Fosse negro, diria
que puxou algum parente de minha família. Era forçado, mas aceitável. Não. A vagabunda me
traiu com um japonês.

— Tá bom, tá bom. Não pergunto mais nada. — Fez o sinal da cruz. — Você está
com um olhar maníaco. Credo. Deve ser muita pressão mesmo, no trabalho…
Ela queria discutir. Conheci-a tempo suficiente. Essas provocações não me afetariam.
Não, senhor. Aprendi a manter a calma. Tranquilidade.

— Sim. Esgota bastante.

Ela bufou e foi para a cozinha. Nunca estaria satisfeita, a pilantra. Nunca. Limpei os
dentes com a língua. Larissa voltou com a mamadeira da criança e a fez parar com o choro.
De volta ao noticiário.

Corrupção no governo. Tráfico de drogas. Apreensões recordes de maconha na


fronteira como Paraguai. Sem terras invadem fazenda. Fazendeiros matam os sem terra. O
mundo virou mais que um lugar doente. Virou um lugar repetitivo. A única mudança era a
roupagem. As histórias eram sempre as mesmas.

— Minha mãe nos chamou para almoçar amanhã…

— Amanhã? Preciso trabalhar, anjo. Quem sabe uma janta, mais tarde.

— Pois é, nós pensamos em dar uma passadinha no escritório e irmos juntos. Que me
diz?

Mulherzinha irritante. Como pude casar com ela? Ela engravidou de um japonês.
Desculpe o desvio de raciocínio. Algumas coisas ainda me deixam puto, mesmo essa hora.
Minha resposta a essa pergunta ridícula pode ser ocultada. O final é óbvio e previsível.
Discussão, berros, acusações, erros cometidos no século passado jogados na cara. No final das
contas, alguém dormiria no sofá. Eu.

O jornal da madrugada exibiu uma matéria sobre o aumento da violência contra as


mulheres. Um golpe seco atingiu meu estômago. Lembrei de alguém que não devia lembrar
em casa. O âncora dizendo que a impunidade era estimulada por quem sabia e não denunciava
a polícia. Puta que pariu. Desliguei a televisão e tentei dormir. Um rosto escoriado me pediu
ajuda a maior parte do sono.

Idiota.

***

Nem só de embriaguez era feita a vida desse pobre criminoso. Não havia pensado a
sério em levar esse tipo de vida. Gostava das benesses, mas a expectativa reduzida de vida era
algo a pensar. Considerando meu atual estado, teimando em viver apenas por esse relato, foi
uma escolha acertada. Morrer velho, decrépito, necessitando da caridade alheia para não
terminar os dias numa cama dura, atolado em merda. Passo, obrigado. Que fique para os
outros. Se despeça no auge, meus caros amigos. Melhor deixar a boa do que a péssima
impressão.

Tânia conversava direto com Amarelo, indiferente ao detalhe de ele estar preso. Ele
dizia gostar da vida dentro da prisão. Havia pouca diferença do lado de fora. Só detestava
realmente o cheiro de homem sujo amontoado. Conseguiu regalias diversas, graças a uns
favores prestados aos carcereiros. Cela boa, sozinho, comida fresca, celular e cerveja. Tânia o
visitava alguns dias, para o meninão dar uma descarregada. O recado era claro. Amarelo
estava restrito, não impossibilitado. Tome cuidado e não foda ele. Aquele merda. Ele me
colocou ali para o quê, afinal?

O maior problema era impor respeito nos demais. A camaradagem dos demais
comigo foi para o inferno desde que ele rodou. Era óbvio. Posição de comando era outra
história. Alguns dos rapazes saíram da barriga da mãe e meteram 157 na equipe de parto.
Detestavam obedecer alguém que nunca pegou uma arma a vida inteira e nunca fez nada mais
errado que casar com uma mulher que o traiu com um japonês.

Porra, não tiro o japonês da cabeça. A perda de sangue me faz perder a coerência.
Não posso deixar, não agora. Preciso ser forte. Continuar o registro.

De que eu falava? Ah, claro. Falava sobre os problemas para impor respeito…
CAPÍTULO 10

Mal havia entrado no apartamento de Tânia, vi o problema. Estava descabelada,


usando uma roupa velha, coisa que nunca vi antes. Havia duas opções e nenhuma delas me
agradava. Criar intimidade com ela resultaria no meu corpo mutilado, então rezei para ser a
outra opção.

— Temos um problema enorme. Gigante mesmo.

Mantive o olhar acima da linha dos mamilos. Garanto que foi difícil. Fixar nos olhos.
Olhos. Estavam avermelhados, pupila encolhida, quase inexistente.

— Zumbis?

Ela puxou a camisa velha para cima dos peitos, que eu não estava olhando, juro, a
não ser com a visão periférica. Inspirou ruidosamente e expulsou o ar, que assoviou no espaço
entre os dentes.

— Não, meu filho. Nada de zumbis e nada de piadas também. Tava fechando o
malote ontem à noite, como tínhamos combinado, e tá faltando dinheiro. Tá faltando dinheiro,
cara.

Ruim.

— Não deve ser muito.

— Se foder! Cinco centavos é muito dinheiro. É dinheiro do cara.

— Quanto falta?

— Cinco mil. Cinco mil. A mãe dele pega o malote hoje e vai guardar. Fodeu, fodeu,
fodeu.

Não havia palavra melhor para descrever a situação.

— Tudo bem. Conseguimos repor. O cara não precisa ficar sabendo.


Tânia sentou no chão. Sentou é a forma suave. Deixou as pernas fraquejarem e caiu
sentada. Agarrou os cabelos junto à nuca com as duas mãos e os puxou com força. Chegou a
doer em mim. Viver em um prédio era curioso. Ela segurou o grito magistralmente.

— Porra! — Falou após um tempo arfando. — Não seja burro. Cinco mil é troco de
bala. Dá pra repor e ninguém ficar sabendo? Dá. Claro que dá. O problema não é esse, seu
animal. Não é esse o problema. O Amarelo tá bem tranquilo, na dele, tão tranquilo quanto
homem preso consegue ficar. O problema é nosso. É com nós o problema. — Ela cravou os
dentes no braço. Gritar era mais saudável.

Não tinha pensado por aquele lado. A questão do respeito. Roubaram a gente. Mal.
Ou fazemos o cara pagar, ou perdemos o respeito. Se não acontecer nada, adivinha só? Mais
filhos da puta nos roubariam, até o momento em que o filho da puta a morrer seria eu. Nada
agradável. Não dava para começar um dia assim. É muito problema.

— Calma, Tânia. Calma, porra! Largue esse osso e me escute, porra, você não é uma
cadela. — Esperei ter certeza de que ela prestava atenção. Gotas de sangue no braço. — Vou
buscar o dinheiro, e você fecha o malote pra velha. Depois descobrimos quem foi e avisamos
o Amarelo, tendeu? Assim ele não fica no nosso pé.

Ela concordou, não muito por acreditar, mas por ser a opção que restava. O passo
definitivo rumo às sombras, alguém com alma poética diria. Minha observação foi diferente.

Era se afundar cada vez mais na merda.

***

A única pessoa de confiança, sem dúvida alguma, era Tânia. Estávamos fodidos igual
com a situação. De resto, cada marginal de Curitiba era suspeito.

Esperava no apartamento depois de repor a quantia que faltava, observando as


pessoas na televisão, bebendo um alcoólico forte. Procurei um cigarro em meus bolsos,
mesmo não fumando. Talvez esse tipo de momento fizesse o cidadão fumar. Volta a fase oral,
disse um alemão viado com mania de analisar os outros e incapaz de resolver os próprios
problemas.

Ouvidos bloqueados aos ruídos externos, ouvia apenas o barulho das engrenagens de
meu cérebro, enferrujadas e com pouca utilização, procurando descobrir onde foi cometido o
erro. Cinco mil reais. Como era possível não reparar uma merda dessas? Nunca fui um sério
concorrente das olimpíadas de matemática, verdade, mas não era tão burro a ponto de deslizar
em contas com esses valores. O trabalho era organizar as notas e fechar a quantia. Amarelo,
com sua escolaridade precária, conseguia realizar sem prejuízos.

Estava errado. Não podia ser do jeito que parecia. Estavam aprontando alguma para
cima de nós. Analisemos as possibilidades. Um: errei na hora de fechar o dinheiro.
Improvável, mesmo assim não devemos descartar. Ao invés de um grande desfalque, vários
infelizes desviando um pouco, de maneira que eu não repararia na hora de receber. Dois:
Tânia me deu uma bolada nas costas. Essa opção particularmente me desagradava; confiava
nela, mesmo sem razão específica. Talvez o tempo que a vi junto com Amarelo. Não foderia o
cara. Três: um filho da puta teve peito suficiente para roubar a grana. Não era minha opção
favorita. Envolvia dois erros: o do vacilão e o meu próprio.

O celular toca. Bárbara. Senti uma contração involuntária nos lábios. Merda. Não
devia me alegrar com essas coisas. Tudo bem. Até o diabo precisava de seus minutos de
descanso e lazer, por que eu também não mereceria? Não atendi e fiz uma promessa comigo
mesmo. Iria resolver essa merda de problema e depois ligaria para ela.

Agora eu estava motivado. Seja lá quem tentou me foder, vai pagar com a vida por
esse vacilo. Preparem o cu, cambada de filho da puta. Papai Noel voltou à cidade.

***

— Acorda, porra. Acorda!

Estava no chão, deitado de mau jeito, a costela chutada por Tânia. Péssima maneira
de acordar. Não resolvi nada. Que horas eram? Mesmo dia ainda? Jesus Cristo voltou? A luz
do sol estava um pouco mais forte agora. Não muito. Pouco dela ultrapassava a grossa
camada de nuvens cinzentas eternamente alerta no céu curitibano.

— Eu penso numa maneira de sairmos dessa, pode ir tranquila, você volta e tudo já
tá resolvido. Pode confiar. — Tânia disparou, falhando miseravelmente em me imitar. Minha
voz era duas vezes mais irritante. E monocórdica, seja lá o que for. O otorrino disse. Droga,
estou divagando outra vez.

— Foi o tempo. Precisamos conversar, tenho umas boas ideias formadas na cabeça.
Busque uma cerveja e sente aqui ao meu lado. Sinta-se em casa. — Falei.
Ela fechou a cara.

— Estou em casa.

Pegou a cerveja e sentou ao meu lado. — Melhor suas ideias serem muito boas
mesmo. Serem excelentes. O jeito que você tava caído, sei não… Olha a mancha de baba no
carpete, pelo amor… O cabelo da sua esposa deve ser uma coisa nojenta, se você dorme
abraçado com ela.

A mancha era mesmo escrota. Culpa da bebida. Como ela sabia de Larissa? Amarelo,
claro. Não devia esconder nada da menina. Outra coisa que dispensava explicação. Preparei
mais um copo de alcoólico.

— Vamos partir do básico. — Falei. — Como você percebeu que estava faltando
dinheiro?

— Contando. De que outra maneira seria? É assim que espera resolver nosso
problema? Acho melhor pedir arrego duma vez. — Ela falou. Uma nota de histeria temperada
com desprezo no tom de voz. Também, a pergunta foi idiota.

— Ok. Vamos tentar de outro ângulo. Eu pego o dinheiro dos meninos. Conto,
confiro e trago para você. Está sugerindo que eu roubei?

Ela riu. Seu sorriso era bonito. Dentes brancos e bem enfileirados. Não salvava os
outros defeitos que tinha, mas era um sorriso bonito.

— Claro que não estou te acusando. Que ideia. Você não teria essa coragem toda.

— Ah… Você não confia na minha honestidade?

— Tipo isso. — Bebeu um gole enorme da cerveja e arrotou. — Pare de fechar essa
cara. A questão é outra. Foda-se se eu confio ou não em você, entendeu? Foda-se. A questão é
outra. Sei que você não roubou. Também não vejo como te enganaram. Que tal
concentrarmos em achar o filho da puta?

— É, tá certinha você. São meros detalhes. Também confio em você, sabe-se lá o


motivo. — Matei o copo sem nem perceber. Devia estar mais bêbado do que pensava. —
Aonde foi aquele desespero de mais cedo?
— Pro inferno. Encontrar aquela velha é uma merda. Tem um tipinho de doida, mas
não é doida porra nenhuma. Ela teve a capacidade de falar em voz alta na minha frente,
fingindo que está pensando. — Amassou a lata. — Disse que eu era uma vadia ladrona. —
Lata bate na parede. — Velha vagabunda.

— Complicado.

— Complicado? Complicado é pouco. Eu queria que a velha estivesse por trás disso.
E juro que não ficaria nem um pouco triste de dar um fim nela. Se acha demais, só por ser a
mãe dele. O que qualquer um pode fazer? Ninguém vai mexer com ela. — Ficou quieta uns
dez segundos. Talvez mais tempo. Com certeza foi mais. — Puta velha.

Outro copo magicamente brotou em minha mão. A garrafa estava no final. Tânia
bebia da vodca também. Caralho! A bebida era a mãe da impunidade mesmo.

— Precisamos concentrar no problema. Não dá para deixar passar muito tempo.

Bebi um gole grande. Quase esqueci a merda do desfalque. Deus a abençoe.

— É. Tem razão. Odeio gente que sempre tem razão.

— Sempre? De que maneira você poderia saber?

— É o teu rosto, acho. Parece ser uma daquelas sabidas, do tipo que ainda fica
jogando na cara: avisei, não avisei? Por que não me ouviu? Eu falei, não falei…

Ela ria.

— Você está bêbado, cara. Como pensa em resolver qualquer coisa assim?

— Os bêbados herdarão o reino dos céus. Resolver esse nosso problema será fácil.

— Quero ver, a bebida está acabando.

Outro toque do meu celular. Demorou para eu conseguir tirar ele do bolso. Era
Larissa. Não atendi; seria impossível manter a farsa de trabalhador atendendo uma chamada
bêbado terça, quarta ou quinta-feira. Eram três da tarde. Ok. Vamos colocar o que restou de
sanidade no problema.

— Tânia… Se confiamos um no outro, então você acha que entreguei a quantia certa
e eu não acho que você escondeu o dinheiro em casa. — Ela me olhou, parecendo uma
criança interessada numa experiência do professor na sala de aula. — Alguém mais entrou
aqui?

Não era interesse. Era outra coisa. Culpa? Ela podia ter alguma relação com o
sumiço do dinheiro, afinal. Não como ladra, jamais. Era honesta até o ponto em que pessoas
metidas no nosso ramo podem ser honestas. Negligência. Explicava bastante coisa, inclusive
mesmo o desejo de matar a mãe de Amarelo.

— Veio mais alguém?

— Sim… — A voz saiu baixa. — É o que me deixa mais puta da cara.

Complicado. Não queria saber disso. Mais problemas. Se eu não informasse Amarelo
dessa bolada nas costas dele, ele entenderia mal. Poderia achar que eu apoiava esse tipo de
atitude. Acabaria mal para mim. Era me equilibrar em corda bamba. Além dos meus próprios
vacilos, tinha que lidar com o dos outros. Não queria ferrar com Tânia. Não queria acabar
fodido por acobertar a pobre traidora.

— Faz o seguinte… — Falei. — Amanhã você conta tudo. Penso em como fazer
ficar melhor. Agora… bom, agora vou dar uma volta, tentar ficar bom da cabeça.

Bati a porta do apartamento ao sair. Não era minha intenção. Eu só estava bêbado
demais para ser sutil. Do lado de fora do prédio, retornei a chamada perdida de Bárbara.
CAPÍTULO 11

As escoriações no rosto dela estavam menos intensas. Ela não queria cheirar dessa
vez. Apenas conversar. Não ficou satisfeita com meu estado inicial ao encontrá-la. Depois de
vários goles de água e respiradas fundas do ar livre de estacionamento, cheguei perto de fazê-
la compreender a situação.

Acordei melhor, jogado no sofá. Senti um pouco da umidade nos cantos da boca.
Dormir bêbado me deixava todo babado. Bêbado babado. Escuro. Olhei o celular. Oito horas
da noite e várias chamadas perdidas de Larissa. Que merda.

— Pensei em atender o celular… mas iria te acordar. Você fica com uma cara de
preocupado quando dorme. Até tirei uma foto. — Bárbara falou. Tinha trocado de roupa.
Usava um pijama, um tanto infantil.

Esfreguei os olhos e abri a boca para responder qualquer coisa. Senti os lábios
desgrudando um dos outros. O mau-hálito sólido, conseguia mastigá-lo igual um chicletes.
Muitas coisas a fazer, muitos problemas a resolver. A começar por esse. Eu precisava escovar
os dentes.

A casa estava escura. Pensei na possibilidade de ela ser um vampiro. Nunca vi


tamanha aversão à luz. Lembrei das escoriações. Deve ser chato lembrar dos machucados.

— Quem era? — Perguntou depois de algum tempo. A cabeça ainda não tinha
voltado a cem por cento de funcionamento. Sentia os líquidos do estômago chegarem à
traqueia, pincelar levemente na língua com o gosto amargo e depois voltavam para dentro.
Devia ser uma modalidade olímpica. Tente fazer qualquer dia desses. Vai saber do que estou
falando.

— Minha esposa. Eu tô fodido.

Um riso nervoso. Não era algo que eu esperava.

— Casado? — Mais risadas. Fiquei sóbrio na hora. — Você é casado? E eu aqui


pensando… Sei lá… Que a pessoa ruim dessa história era eu… Deuses, você é podre.
— Tá bem? — falei, me endireitando no sofá, batendo nos bolsos, verificando se
estava tudo no lugar. Carteira, celular, chave, dinheiro, dignidade. Quase tudo no lugar.
Dignidade ainda podia ir mais fundo no poço, ver se a encontrava.

— Ótima. Excelente. Vá embora. Precisa ver sua esposa, não é verdade? Seu…

Qual era o problema dela? Um porta-retratos voou ao meu lado. Era bom eu ser
rápido. Bêbado, fedendo, cara amassada e com escoriações. Não pegaria bem em casa.
Desviei de mais uns três objetos que foram utilizados como projéteis antes de sair. Do lado de
fora ouvi o som de algo pesado se chocando. Caralho, essa foi por pouco.

***

— Assalto? — Larissa. Voz tranquila, nada alterada. Tinha a melodia que eu gostava
de ouvir quando a pegava cantando distraída. Daria para acreditar que estava tudo bem. No
telefone eu acreditaria.

— Sim, meu anjo. Momentos de medo e pavor. — Quanto mais eu falava, mais
idiota a história parecia. — Podia desfazer essa cara de mau. Vai ficar com uma ruga eterna
por aí…

Por acaso, essa foi mais uma frase idiota pronunciada por este pobre relator. Um
prato voou em minha direção. Estava de uma maneira que todos os objetos jogados na cidade
vinham em minha direção. Logo sairia na rua e teria um concurso de acertem esse idiota. Está
nervoso e quer desestressar? Pegue um paralelepípedo, pedra, quina bem afiada, e mire no
meio da testa dele.

Larissa colocou a mão na frente do peito, como se estivesse orando. Quieta,


respirando, talvez fazendo aquela contagem que os psicólogos dizem funcionar para acalmar.
Pobres psicólogos. Com ela quebrariam a cara.

— Vamos colocar isso de maneira que não fique ofensivo para a minha inteligência,
pode ser? — Falou sem esperar a resposta — Você diz que saiu do escritório, note-se que não
sei onde ele fica, e foi sequestrado por dois homens numa van, veja bem, e foi solto apenas
agora. Explique você não ter perdido o celular e o principal, esse fedor de cachaça que está
vindo de você, seu filho da puta.
— Não, não jogue mais nada, pelo amor de deus. — Encolhi num canto. Ela riu.
Tudo bem, eu teria rido se não fosse comigo. — Olha só, amor… você não deixa eu terminar
de falar. Foi um engano, um engano. Os caras me confundiram com outro, que estava noivo e
trabalha no mesmo prédio. Eles me fizeram beber dentro da van. Por isso estou fedendo.
Imagine a situação, e eu tentando explicar que pegaram o cara errado. Só quando chegamos
na festa o engano foi desfeito.

Respirei fundo e mantive um sorriso no rosto.

— Essa vai ser a sua história? Essa mesma? Te confundiram com um cara que ia
para a despedida de solteiro. Essa?

— Meu anjo, não é história. — Me aproximei dela, envolvendo num abraço. Ela não
recusou, mas também não retribuiu. — Não é história. É verdade. Se não confia na minha
honestidade, confie na minha inteligência, porra. Acha mesmo que eu inventaria uma história
dessas? Porra, Larissa, podia respeitar ao menos a minha inteligência. Nem eu consegui
acreditar.

Feita essa grande representação, saí de perto, dei um beijo no menino que roncava
tranquilamente na cama e fui tomar um banho. Eu era um gênio, pelo amor de Deus. O
absurdo da história que a tornava boa. Qualquer outra coisa plausível daria merda. Tenho
certeza disso.

Eu estava quase pronto para sair do banheiro, ela entrou para me fazer companhia.

***

Dia seguinte, numa rua de bairro pros lados da Cidade Industrial, dentro de um carro
que não fazia a mínima ideia de onde Tânia conseguiu. Ela dirigia mal pra caralho, mas não
pude reclamar, visto que não sei dirigir. Vigiávamos um barraco na quadra seguinte, depois
do cruzamento da principal. A chuva tornava a vigilância difícil e o dia triste.

Uma viatura da polícia militar passou a nossa frente. A chuva tinha seus lados
positivos. Um deles era que os policiais não deixariam a viatura quentinha e seca para
enquadrar dois idiotas numa rua estreita, ou o homem no ponto de ônibus da esquina.

Se cumprissem com o dever, achariam uma boa quantidade de maconha, que Tânia
fumava para relaxar. Encontrariam dois revólveres. Sem registro e carregados. E também
encontraria pelo menos uns seiscentos reais. O carro eu desconfiava ser roubado. Não daria
para alegar que estávamos indo assistir a missa da tarde. Se é que existem missas no período
da tarde. Sendo assim, três vivas para as chuvas torrenciais.

— Dá pra ver porra nenhuma. Liga o limpador.

— Para de reclamar.

Não precisaria estar ali, na realidade. Uma coisa chamada hierarquia devia ser
respeitada. Mas avisar o porquê de matar seria incluir Tânia na jogada. Não queria ter a morte
de alguém com quem eu convivia na conta. O mal que fazemos para os desconhecidos nunca
parece tão mal.

Lembro dos detalhes agora, depois do ocorrido. O banco do carro, gelado, a rua
barrenta, o barulho das gotas e o sertanejo rolando; alguém cantando sobre uma festa cheia de
mulher, cachaça e a importância de não se dedurar os amigos.

O homem no ponto fumava um cigarro, parecendo desolado, esperando um ônibus


que com toda a certeza demoraria a chegar. Uma tarde vazia e cinza, numa vizinhança de
barracos multicoloridos, devido à falta de matérias para se manter um padrão de cor na
mesma casa.

— O merdinha vai voltar daqui a pouco. O merdinha volta. — Tânia falava, a voz na
altura de uma prece. Olhou para mim. — Acha que vai funcionar?

— A chance é boa o suficiente para tentar. Estamos mais ou menos garantidos. Só


não dá pra perder tempo.

— É… — Ela apertou o volante. Não largou dele por um segundo. Espremeu os


seios junto a ele ao se jogar para frente. A buzina soou. O cidadão que esperava o ônibus
desviou a cabeça para nós. — É ele! Tenho certeza, eu vi. Vamos!

Tânia saltou do carro e foi a minha frente, sem esperar, tirar a chave da ignição ou
trancar a porta. Eu podia sentir alguma simpatia por ela, claro, afinal o nosso amigo deu um
calote de cinco mil. E mais do que isso. Vazasse o menor boato que ele andava mexendo nas
gavetas do Amarelo, os dois rodavam, depois de muito sofrimento. Uma questão de
sobrevivência.
Desliguei o carro, coloquei a mochila e corri o mais rápido que pude, desatolando os
pés a cada passo na rua lamacenta. Um ônibus parou no ponto. Olhei para o lado. O motorista
se divertia. Entrei no beco a tempo de ver Tânia entrar numa casa. Apressada do caralho.
Devíamos entrar juntos.

Entrei na casa ouvindo os tiros. Puxei o revólver da cintura. Nunca havia feito uma
coisa dessas. Meu jeito para tratar do assunto o fez disparar, mandando uma bala para o teto,
provavelmente passando a milímetros do meu rosto. Pior entrada possível. Abaixei o cano e
disparei em direção ao sofá, desviando de Tânia. Fiz uns buracos no estofamento. Uma bala
pegou o cara sentado no sofá. Desnecessário, mas ao menos participei.

Tânia fez do cara um cosplay de peneira. A porta do quarto aberta, os pés de alguém
que não correu o suficiente na tentativa de fuga. A chuva ameaçava quebrar o telhado de
eternite. Na televisão um repórter discorria sobre as eleições municipais que se aproximavam,
detalhando o perfil de cada candidato. Tânia desligou o aparelho.

Apenas as gotas se faziam ouvir.

***

Um gemido de dor me arrancou do torpor. Não havia espaços para deslizes no plano,
um plano concebido no pressuposto do bandido padrão tinha a inteligência aproximada de um
rato.

As coisas começaram mal. Primeiro Tânia enlouquecida na rua. Depois o cara está
acompanhado, e tinha o gemido. Gemido de merda. Me aproximei do local onde ouvi o
gemido. Tânia agarrou a mochila em minhas costas e começou a espalhar a droga que
trouxemos. Ficamos um bom tempo recolhendo restos de crack, latas e outros itens para
desacreditar nosso otário. Olhei o corpo. O disparo pegou a menina, uma pobre coitada de uns
dezesseis anos, no máximo do máximo, nas costas. A camisa amarela dela estava manchada
com um vermelho de aspecto grudento. Meus conhecimentos da anatomia humana são
limitados. Pensei que a bala pegou no pulmão. Fazia um esforço tremendo para respirar. Ela
não podia ficar viva.

— Que tal você se apressar e me ajudar aqui? Não temos tempo a desperdiçar, sabia?
— Tânia gritou. Uma descarga de adrenalina transforma as pessoas. Não parecia mais a
pessoa indecisa e hesitante de dois minutos e meio atrás.
Em poucos minutos o lugar estaria infestado de policiais. Precisávamos ir embora e
contar uma boa história para os responsáveis pelo vilarejinho, eles também chegariam em
breve, com muitas armas e poucas perguntas.

O local virou um chiqueiro o mais rápido possível. Quem entrasse ali diria que o
cara, nunca perguntei o nome dele, sempre foi um noia. O problema era a porra da menina
viva. Tânia parecia não dar por isso. Avisei a situação.

Ela vasculhava a geladeira do cara, uma peça tão velha que transmitia tétano só de
você a olhar por tempo demais. Pegou uma garrafa de Coca-Cola pelo gargalo.

— Termina logo com ela, mas que cacete. — Falou depois de arrotar.

Queria não fazer aquilo. Pensei em argumentar o contrário, mas percebi que era
melhor não tentar. Eu dei a ideia, eu planejei a cena, eu devia arrumar as pontas soltas. Puxei
o revólver.

A menina se arrastou mais em direção ao quarto. Era uma tremenda força de


vontade. Gostei dos cabelos dela, trança-raiz bem feitas. Era uma pena. Olhei para o alto,
voltando a prestar atenção nas gotas que castigavam o telhado.

O barulho do tiro, alto e seco, faria meu ouvido zumbir por horas. Antes de ir embora
do barraco, olhei a situação. O cenário estava pronto e ninguém nos contradiria. Ocorreram
alguns imprevistos, mas soubemos lidar com eles.

Coloquei o focinho para a rua temendo o pior. Nenhuma pessoa, ou policial, à vista.
Apenas a chuva, com seus pingos da grossura de um dedo. Podia ter saído só de cueca
gritando que era o rei do mundo. Ninguém se importava.

No carro, Tânia demorou para conseguir dar a partida. Silêncio em todo o caminho
até o centro. Na única vez em que a olhei, rápido, maneira a não dar na vista, pensei ver uma
lágrima escorrendo de seu olho, mas também podia ser uma das gotas da chuva.
CAPÍTULO 12

O celular tocou meia noite. Larissa começava a responder minhas tentativas de


aproximação na cama. Tive que largar do meu empenho, e me empenhei bastante, para ver de
quem se tratava, coisa que não faria antigamente. Essa é a responsabilidade extra, diriam
alguns filósofos. Número desconhecido. Código de São Paulo.

— Você comeu merda? — Era Amarelo. O burburinho dos presos nas outras celas
dava à ligação um ar de escritório de cobranças.

— Espera um pouco. — Falei. Larissa me encarou, a raiva atravessando a escuridão


do quarto.

— O caralho, seu filho da puta. O caralho. Que merda foi essa que vocês me
aprontaram? Pode explicar que merda foi essa que vocês me aprontaram?

— Já retorno, cara. Só…

— Filho da puta! Vai tomar no teu cu, entendeu? Vai tomar no teu cu. Não tá falando
com idiota, não, irmãozinho. Tá falando comigo, esqueceu? Esqueceu de quem manda nesse
teu cu, seu filho da puta? Que merda foi essa que vocês fizeram?

Os gritos dele; mostrando preocupação nenhuma com o detalhe de estar no presídio,


vazava pelo meu alto-falante. Larissa sentou na cama. A raiva deu lugar à desconfiança.
Péssimo sinal. Perdi a foda e ganhei uma discussão para mais tarde. E, rapaz, eu precisava dar
uma descarregada nos meninos.

Saí da cama chutando tudo à minha volta, cobertas, lençol, travesseiro, queixo de
Larissa e uma mesinha ao lado, enquanto ia cambaleando em direção à sala, ouvindo Amarelo
enumerar as variantes de prostituta em relação a minha mãe. Negócio era xingar, pelo visto.
Resolver o problema ficava para depois.

— Você quebrou meu pote, seu filho da… — Larissa gritou. Anota aí, outra ideia
horrível para a coleção. O bebê começou a chorar no outro quarto, estridente, daquela maneira
que só os bebês choram. Larissa passou gritando, indo ao outro quarto, ocupando meu ouvido
livre com mais merda. O cérebro espremido entre dois filhos da puta ingratos que eram muito
bons e criativos na hora de xingar. Cinco minutos passados da meia noite e o dia já estava
uma merda.

— Cale a boca, porra! — Entrei na onda.

Larissa apareceu na porta, os dentes escancarados e olhar feroz, mas parou.

— Como é que é parceiro? Você tá loucão? É isso mesmo? — Amarelo.

Respira fundo, engole o medo na voz. Respira de novo. Não se cague, porra.
Mantenha a boa forma.

— Não, não, não. Não era com você. A Larissa não parava de encher o saco. Juro,
rapaz, tava gritando feito uma maluca aqui, ia acordar os vizinhos. Daí já viu, cara, não dá.

— Entendi. Tudo firme, então. — Falou, começando a demonstrar um pouco mais de


calma. — Agora preciso de uma explicação aqui.

— Do quê? — Minha voz saiu sussurrada.

— Uma história chegou nos meus ouvidos aqui. Tem noção de um problema que é se
manter inteiro nesse lugar, e evitar conversinha fiada dos outros, tio?

— Não.

— Claro que não tem. Não tem, mas sabe como funciona… Acho melhor te me
mandar o proceder reto, entendeu? Que merda foi essa?

— Olha, Amarelo, correndo o risco de parecer um idiota… O que aconteceu?

Um dos presos urrou. A palavra duque foi a única que entendi. Gritaria pavorosa na
sequência. Amarelo berrou para eles, dizendo qualquer coisa sobre silêncio e assunto
importante.

— Aconteceu, meu amigo, é que nós fomos atacados. E tu não fez nada. Esse é o
acontecido. Que é que você anda fazendo por aí? Batendo punheta só, pensando naquela
cheiradora? Comeu? — Falou. Assim, da água pro vinho.

— Atacados? Como assim?


— Porra, seu filho da puta! Eu sou o detento. Tu que devia me falar os bagulhos e eu
não devia saber. Fomos atacados, seu cuzão. Um dos meninos morreu hoje, em casa. Ele e
uma marmitinha que tava lá na hora. Novinha a menina, pena mesmo. Foi o que chegou aqui.

— Onde isso? — Perguntei, sabendo qual era a resposta.

— Cidade Industrial. Como tu não sabe disso?

— Me ocupo mais em manter o dinheiro ir certinho na tua mãe.

— Tem isso. Nunca foi bandido de verdade.

— Magoa, sabia? Maluco, do jeito que você chegou falando… Porra, faz mais isso
comigo não.…

Enquanto ouvia Amarelo rir do outro lado, minha visão periférica capturou Larissa
ninando o bebê junto à porta. Quanto ela teria ouvido? Porra, tenho de ser mais cuidadoso.

— É pra não perder o respeito. Tem muito que se atuar aqui nessa prisão. Não queira
cair aqui. Pra mim, que tenho vários arrego, é uma merda, pra você então, vixe, sério, nem
pensar.

— Não pense que eu estou te desrespeitando ou coisas assim, mas o que você queria
me falar? Eu tava indo dar umazinha com a patroa… Daí chega você e me faz esse escarcéu
todo, vou tomar mó esporro depois…

— Ok, cuzão. Sem tempo pros amigos, deixe estar. Fomos atacados, eu disse.
Atacados. Tem um boato forte aqui no xis. Uns caras de São Paulo estão querendo pegar
nossa área. Facção pesada. Teve um idiotinha que chegou hoje. Pagando de machão, dizendo
que foram eles os caras da parada de hoje. Daí falei com o Rocha, um carcereiro gente boa
aqui, traz cigarro e tudo, ele me disse que os caras mataram o Néquinha e a menorzinha dele
lá no Industrial. Trampo profissa mesmo. Ninguém viu ou ouviu nada, tinha tiro até no teto,
disseram… Vou te falar uma fita, cara, temos que ficar espertos… Esses caras são bons…

— É?

— É. O seguinte. O idiotinha que chegou falando tá levando um amasso no outro


lado. Sabe pouco. O certo é que os caras estão por aqui em Curita já. Aqui não é brincadeira,
porra. Não é cidade sorriso. Ache esses filhos da puta pra mim, tio. Sei que tu não gosta, mas
precisa achar antes que façam mais merda.

Deus, te devo uma. Várias, na realidade.

— Claro, claro.

— Vai com Deus, parceiro. Quero muita gente na rua. Ninguém mata um dos nossos
e fica impune. É pra sapecar até o cachorro da vizinha dos filhos da puta que fizeram isso,
tendeu?

— Sim, sim.

— Firmeza. Vai com Deus, na fé, e se prepara para ouvir o esporro monstro da tua
mina.

Desliguei o celular. Mesmo com essa excelente notícia, estava desanimado. Pensei
em contar a notícia para Tânia. Ela merecia dormir aliviada. Aí lembrei de Larissa.

Tânia dormiria bem, pensei. Eu que tava fodido.

***

— Tua orelha está gigante. Tentou furar e inflamou? — Bárbara disse. Era a primeira
vez que estava com ela ao ar livre. Nenhuma marca de porrada no rosto. Pelo menos que eu
percebesse. Ela podia ser uma maquiadora habilidosa. Não dava pra desconsiderar.

— Acertou. Diga seis números.

— Como?

— Seis números. Sua adivinhação é certeira. Diz seis números que eu jogo na mega-
sena. Dinheiro fácil e garantido.

Deu um tapa em minha mão.

— Você é um bobo.

Três dias se passaram desde o tiroteio na Industrial, ou o grande exemplo da


mediocridade das políticas de segurança pública, como diziam os detratores do atual
governador. Os repórteres e opositores estavam certos. Alguém precisava dar um jeito nesses
criminosos.

De volta ao cenário. Rua XV, mesa fora do bar, próximo ao bondinho. Pessoas indo e
vindo, ocupadas demais com seus problemas, por mínimos que fossem. Um palhaço de rua
imita um distraído, um senhor de certa idade. O senhorzinho inicia um bate-boca com o
palhaço. É claro que se trata de um turista.

Barulho de foto.

— Merda. — Bárbara deixa escapar no meio de uma risadinha culpada. Celular


apontado ao meu rosto. — Você precisava ver essa cara de pensativo. É hilária.

— Apaga, por favor.

— Qual é o problema? Apenas uma foto inocente.

— Deixa eu ver como ficou.

— Mais tarde te envio. Agora você vai apagar, eu sei.

— Não confia em mim?

— Não.

— Juro que não vou apagar.

Ela fingiu pensar no assunto. Deu uma golada do suco de laranja.

— Claro que vai. Não vou cair nessa.

Avancei a mão com velocidade e agarrei seu pulso. Talvez tenha sido brusco demais,
talvez tenha apertado com mais força que o necessário, talvez ela fosse uma fresca, não se
sabe. O fato foi que o rosto endureceu. Os olhos ganharam dois quartos de medo.

Idiota. Recolhi a mão, rosto avermelhado.

— Desculpe. Desculpe. Por favor.

Ela sacudiu a cabeça, concordando. Silêncio por parte dela. Olhei ao redor. Uma
pedinte era expulsa de um dos bares ao lado. O garçom a pegou com força pelo braço e a
atirou longe dos clientes.
Um idiota berrou: — Pra que isso, cara? É uma mulher. Não precisava disso.

Grande sincronia. Valeu, criador. Você é um filho da puta sádico. Tudo para me
colocar em maus lençóis.

Bárbara também observa a cena. Indiferente. A mendiga xinga o garçom. Ele esboça
ir atrás outra vez. Mendiga vai embora. Todas as mesas voltam a se ocupar com suas vidas.
Incidente encerrado.

— Não foi nada, sério. Só um susto. Sei que você não me machucaria… — A voz
diminuindo à medida que a frase se encerra. Olhou para mim e esboçou um sorriso. Tentava
se mostrar simpática Era algo. — Estamos bem. Precisamos conversar direito, você sabe.
Minha reação no outro dia foi…

— Não precisamos falar de nada. — Cortei. Falei alto, certamente. O cara da outra
mesa me olhou. Voltei ao tom normal. — É sério. São coisas que não servirão para nada.

— Não, não é disso. Precisamos mesmo conversar, mas não aqui. E também não lá
em casa. Existe um lugar assim?

As chaves do apartamento de Amarelo ganharam vida em meus bolsos. Tinha uma


das cópias, junto com a mãe e Tânia. A velha nunca aparecia por lá. Tânia foi visitar o homem
na cadeia. Lembrei da expressão de alívio quando contei a história que tinha chegado nos
ouvidos dele.

— Existe um lugar assim para conversar.

***

Dentro do apartamento. Ninguém entrava no local desde a prisão do proprietário.


Poeira cobrindo a sala, copos largados pelos móveis, cacos de vidro perto da pia. Um local
congelado no meio de uma ação policial.

Bárbara entrou daquele jeito, meio tímida, verificando bem todos os cantos de um
lugar antes de entrar totalmente nele, qualquer coisa de suspeita. Eu estava maluco, concluí.
Sabia algo a respeito dela? Não. Era apenas uma pessoa que cheirava cocaína e aparecia com
marcas de agressão.
Ela sentou no sofá, olhando direto para a janela grande em direção à varanda. A
educação em pessoa. Fui verificar a geladeira, ainda não havia bebido o suficiente. Havia um
finzinho de vodca numa garrafa e nada para misturar. Joguei o conteúdo num copo e coloquei
um pouco de água. As contas foram pagas. Tânia devia cuidar desses detalhes. A limpeza era
uma despesa supérflua, pelo visto. Ou talvez a polícia ainda vigiasse o lugar e entrar lá fosse
uma burrada sem tamanho. Foda-se. Tarde demais para lamentar essas coisas. Bebi um gole.
Estava uma merda. Na sala, ela continuava plantada no mesmo lugar, uma orquídea em fim de
vida.

— Pode falar. — Disse eu.

Recebi um olhar, ela parecia meio confusa. O gosto ruim da bebida me deixou
amargo. Eram cinco da tarde. Em breve eu tinha que voltar e cumprir meu outro papel. —
Você pediu para ir a lugar discreto. Estamos em um.

— É… Eu sei… Mas é muito difícil, sabe?

— Difícil é escalar o monte Everest. Falar é a coisa mais simples do mundo. Só abrir
a boca. — Tomei o resto da vodca aguada de uma vez. Fiz um esforço considerável para não
vomitar. — Por outro lado, ficar quieto sempre se mostrou muito mais complicado.

Bárbara fez um beicinho daqueles de criança birrenta no mercado, vendo os


chocolates. Considerou minhas palavras.

— É tanto para falar e não saber como…

— Seu psicólogo deve ficar louco com você.

Ela levantou as sobrancelhas.

— Como sabe? — Fez menção de levantar. Eu devia tê-la deixado ir embora. Não
consegui. Segurei-a pelo pulso, firme, mas sem brutalidade.

— Chutei. Pode achar mentira, mas também tenho ocupações. Queria ver você e
fiquei feliz por você ter aceito o convite. Sinto que você precisa de ajuda, sei disso, mas não
sou nenhum adivinho. Não posso fazer nada pelo pouco que sei.

— Não sei por onde começar. — Falou entre soluços. Estava à beira de um ataque.

— Fale o problema. Depois veremos o resto.


Voltou a sentar. Olhava para o céu, os prédios, qualquer coisa lá fora.

— Ele me bate. — Disse, por fim. Uma voz indiferente, sem emoção.

— Era óbvio. — Tomei uma encarada. — Nunca falei nada porque não era problema
meu. E até onde eu sabia você podia praticar alguma luta.

Ela formou um sorriso. Não sei se eram os dentes, o olhar, ou a besteira que falei. Sei
que me assustou.

— Não era problema seu. Não era mesmo, como seria? Vou te dizer o que tem de
errado com o mundo. Um monte de filho da puta igual a você. — Levantou em minha
direção. Ganhou uns três metros de altura. Botou o indicador na minha cara. — É, cara. Você
mesmo. Sabem que há algo de errado e não movem uma palha para ajudar os outros. Escória.

Escória. Meu Deus, usaram a palavra escória. Coisa rara. Tão rara que resolvi
perdoar a perda de foco por parte da minha amiguinha. Agarrei a mão dela com menos
amabilidade e a joguei pra baixo. Pro inferno com essa merda.

— Olha, meu anjo, preste bastante atenção. Não sou seu inimigo. Tenho um monte
de problemas, concordo, e acho essa porra de mundo mais podre do que consigo por em
palavras. Não estamos discutindo isso. Vamos ao começo de tudo. Falou o problema. Ótimo,
excelente mesmo. Vamos continuar daqui. Quem está te batendo?

Lágrimas. Fez lembrar que eu devia ligar a luz. Estranho, escurecer tanto antes das
cinco da tarde. Não, pensando bem, não era nem um pouco estranho. Ia chover de novo.
Tempo filha da puta. Cidade filha da puta. País filha da puta. Vida filha da puta.

Os olhos dela eram verdes. Desviou o olhar.

— Meu marido.

Silêncio. Evitamos o contato visual. Fui atrás do interruptor. As paredes da sala eram
de um tom pacificador. Não adiantava muito. Raiva fervia em mim. Não saberia explicar o
motivo. Tinha me comprometido a ajudá-la.

— Não é tão ruim — comecei. Ela se limitou a dar uma risada. — Olhe, é ruim você
apanhar. Só não é nenhum fim do mundo. Duas coisas para você, meu anjo. Maria da Penha e
divórcio. Século vinte e um.
Gargalhou durante um bom tempo. Ao terminar de rir chorou. Chorou, chorou,
chorou.

— Acha que sou uma idiota, é? Essa é a sua opinião? Sou uma idiota e nunca pensei
em nada disso. Não é tão simples assim. Puta que pariu.

— Olha essa boca. É feio xingar.

— Puta que pariu. Puta que pariu. Puta que pariu.

— Não banque a mulher histérica. Esse papel não cai bem em você.

— PUTA QUE PARIU!

Faça o bem e receba o bem em troca. Certo?

— Ok. Diga, filha, diga por que não é tão simples assim?

— Ele é policial.

Ótimo. Entregava cocaína para a esposa de um policial. Senti uma pontada forte na
boca do estômago. E não era vontade de cagar. Era algo primitivo. O corpo reagindo a uma
situação. Mãos e pés gelaram. Visualizei a tabela com o horário de ônibus. Tudo dizendo:
some dessa encrenca. Ouça seus sentidos. Seu pobre corpo percebe as coisas antes mesmo de
você perceber.

— Precisamos ir embora. Vai chover. — Falei.

Bárbara me olhou sem entender. Tudo bem. Fui encaminhando ela em direção à
saída. Tranquei o apartamento e fomos em silêncio. Me despedi rápido. Não percebi quando
entrei no ônibus. Estava em casa num tempo recorde, considerando o horário e a chuva.
Pensei em Larissa e em como responder suas milhares de perguntas. O apartamento estava
vazio.

Precisava raciocinar. Os problemas se acumulavam e havia pouco tempo para


resolver. Caralho, como as coisas são complicadas nesse ramo. E eu só queria pagar a conta
de luz. Puta que pariu, puta que pariu, puta que pariu.
Calma, porra. Não adianta ficar histérico igual a Bárbara. Banho. Dormir antes que
chegue alguém. Esse é um plano decente. Água pelando, pedaços da pele saindo junto com
ela. Eu perdido no meio do nevoeiro levantado pelo banho.

Um policial. Cacete. Como se não tivesse merda o suficiente.


CAPÍTULO 13

Larissa estava de bom humor. Trouxe café da manhã na cama, fazendo a semana ser
uma das mais estranhas de minha vida. Não iria reclamar, não agora. Poderia ter um pouco de
sorte e virar um hábito dela. Não a vi chegar e não fiz nenhuma pergunta relativa a sua
ausência. Poderia ter ido visitar a mãe. Ou talvez estivesse me traindo. Pobre alma. O amante,
não ela. Era um bom arranjo; ele a mantinha feliz, ela me trazia café da manhã.

— Lembra aqueles desenhos bem antigos, que passavam mais de noite, quando tinha
um lobo vendo uma dançarina — Ela falou. Usava um pijama diferente. Não lembro de ter
visto. Procurei marcas em seu corpo. Nenhuma, até onde consegui enxergar. — Ouviu?

— Lembro. Qual o bicho?

— Teu sorriso. — Riu também. — Está igualzinho. O que se passa na sua cabeça?

— Gosto de ver você feliz.

— Deve ter sido um dia cheio ontem. Cheguei e você estava desmaiado. Ouvi seus
roncos do elevador.

— Eu não ronco.

— Estou falando sério. Era alto e durava bastante. Não sabia que alguém roncava a
ponto de ficar sem ar.

Resolvi interromper a conversa devido à falta de honestidade dela. Larissa era uma
mentirosa. Vil, mentirosa e caluniadora. Era óbvio que eu não roncava.

— Tem algo de diferente em você. Seus olhos, eu acho. As olheiras estão quase
sumindo. Parece ter dormido muito bem.

Levamos o resto da manhã nesse tipo de conversa amena. Saí de casa refletindo
sobre a conversa. Refletindo sobre os últimos acontecimentos. Concluí que Deus estava do
meu lado. Bárbara casada com um policial não era uma situação tão ruim.
Sabe como é. Aquela mão perfeita no truco. As cartas aparecem do jeito que você
quer, inclusive a dos teus adversários. É só uma questão de jogar com inteligência e tudo
acabará bem e com você por cima. Em breve Amarelo sairia da cadeia e eu voltaria ao posto
de sempre, entregas para lá e para cá, correr riscos inutilmente.

No momento ele continuava engaiolado e eu precisava descobrir os filhos da puta por


trás do ataque ao menino no Industrial. Aquilo não podia ficar assim. Tânia, Bárbara, Larissa,
Amarelo, o marido de Bárbara. As peças começam a se encaixar. A situação vai melhorando.
Só não vê quem não quer.

***

— Ele disse que deve sair em um mês, no máximo. Tá meio puto, mas disse que
confia em você para resolver a situação.

— Vai acabar tudo bem, não falei? Planejamos uma coisa e terminou melhor.

Tânia soprou a fumaça do cigarro. — Foi sorte. Uma sorte do caralho. Você tem
menos crédito do que tenta fazer parecer.

— Quando você começou a fumar?

— Importa?

— Sorte é apenas mais um dos fatores envolvidos num jogo. Sem a jogada arriscada
seria impossível de ter sorte. Sem sorte, hoje você estaria numa bela caixa de madeira.
Contando que ele deixasse o seu corpo aparecer. E duvido muito que ele teria tamanha
benevolência. Também, se posso dar um conselho, evitaria algumas observações a meu
respeito. Posso falar coisas sem querer.

— Vai me chantagear agora?

— Que palavra feia! Não, não vou fazer isso. Não faz meu estilo. Só queria te
lembrar o quanto você me deve.

Jogou o cigarro dentro da lata que usava como cinzeiro.

— Eu sou grata. Já disse. Não há motivo para ficar jogando porra nenhuma na minha
cara, seu filho da puta.
— Tudo bem, tudo bem, peço desculpas. Tive uma manhã difícil.

Ela riu.

— Manhã difícil? Tive que fazer sexo numa prisão ontem. Um ambiente imundo,
cara. Eu tava seca, sem tesão nenhum, vontade de porra nenhuma e tive que fazer só para
manter as aparências. Pensa que teu amigo notou? Não, não fez diferença para ele, aquele…

— Pare de falar, cacete. Informação demais para mim. Não preciso e não quero saber
disso. Não mesmo.

Acendeu outro cigarro. Eram Classics. Coisa nojenta.

— Tem razão. Estou mal-humorada, desculpe.

— O que ele disse sobre a suposta facção?

— Não tem nada de suposta. Eles existem. Infelizmente o pessoal dele não é muito
inteligente. O pessoal do Amarelo, digo. Arregaçaram o menino que podia dar alguma
informação. Está na enfermaria do presídio. Tem poucas chances de escapar. Espancaram,
estupraram, enfiaram muita coisa dentro dele, Vai adiantar nada.

— Só temos a palavra de um cara querendo ser o fodão da prisão sobre pessoas que
ninguém viu?

— Isso mesmo. É o suficiente para ficarmos preocupados, Amarelo falou. Devo


lembrar, ele acredita realmente num funcionário dele morto por esses paulistas de merda. —
Risinho maldoso. Inocência pontual. — Algum plano, gênio?

— Nenhum fio para puxar, nenhuma ideia de como começar, ou quem procurar. A
situação está nada boa. — Falei.

— Olha… Sei que ele encarregou você de cuidar disso, mas, bom, na realidade eu
tenho mais tempo de vivência nesse meio, concorda?

Tânia conseguia ser irritante, mesmo constatando o óbvio. Ou talvez seja por esse
motivo. Fiz que sim com a cabeça. Procurei outra lata de cerveja. Minha barriga dava sinais
de inchaço. Qual era o problema com minha vida?

— Então… tenho um pouco mais de noção de como funcionam essas coisas.


— Vai ficar brincando de conta-gotas? Que merda, porra! Pode falar de uma única
vez o que você tem na cabeça?

A cara dela era a de uma criança arteira.

— Sei como descobrir quem são. Mas preciso de sua promessa de que irá ficar em
silêncio. Confia em mim?

Confiança. Algo difícil de se lidar, pensar ou raciocinar. Naquele momento eu


confiava. Tudo se conectava em minha cabeça, de uma maneira ou de outra.

— Claro que confio.

— Estamos bem, então.

Silêncio. Ela liga a televisão. Segue o dia. Notícias no horário de almoço, programa
esportivo, tempo cinzento, porém estável, do lado de fora. Telefone com ligações e
mensagens. O boato da facção rival ter pego um dos nossos espalhou. Uma única pergunta: o
que você pretende fazer? Caralho, eu pretendo resolver essa merda. Quando? Teremos
novidades em breve. É bom mesmo, parceiro, Néquinha era dos nossos, não dá pra deixar
essa merda baixo.

Esse pessoal me cansava. Eles não gostavam de mim e eu não gostava deles, mas
éramos peças necessárias para a sobrevivência mútua. A caridade dos que se detestam.

Um toque diferenciado, para uma pessoa diferenciada.

— Preciso de você aqui em casa.

— Ok.

— E traga a coisa.

— Ok. — Menti.

Tânia balançou a cabeça, desaprovando minha atitude, mesmo sem ter ouvido uma
palavra. Era tão óbvio. Às vezes, as coisas são exatamente aquilo que parecem ser. Qualquer
um via a palavra ―encrenca‖ num outdoor iluminado com neon roxo no meio da noite. Menos
eu. Estava ocupado demais me divertindo e não via que a estrada era rumo a autodestruição.
CAPÍTULO 14

A mira dela era péssima, sendo a única coisa boa naquele momento. Gritos
alucinados, transformando qualquer objeto à mão em projétil, tentando acertar esse alvo que
vos fala. Os mais pesados espatifavam contra a parede, provocando a sinfonia do caos e
violência doméstica. Xingamentos dirigidos à minha mãe e à minha barriga mole e cheia de
merda. Palavras dela.

Desviei, tentando ganhar o terreno até ela. Apesar de não gostar da ideia, teria que
me valer de minha força física para acalmá-la. Caralho, de onde apareciam tantas coisas para
atacar?

Três pensamentos rodopiavam em minha cabeça. O primeiro era que eu não devia
estar ali. O marido dela era policial, merda. Dois, os vizinhos ouviam todo o ocorrido. As
paredes desses prédios tem a grossura de um sulfite. Três, eu precisava perder uns dez quilos.

Afinal fiquei a uma distância razoável para saltar sobre ela. Não foi o movimento
mais rápido, ou elegante, mas o fator surpresa estava ao meu lado.

Caímos feito bolas de boliche das mãos de uma criança de três anos. Tentei virá-la
ainda no ar, para ela não receber nenhum impacto. O resultado foi eu caindo de costas,
espatifando uma mesinha de canto.

Dor. Berrei, fazendo ela cessar, o rosto passando da raiva a preocupação. EU,
baixando a adrenalina do momento, senti um líquido quente molhando as costas. Sangue,
claro. Quem sabe eu teria ficado tetraplégico?

Tomei um tapa bem colocado nas bolas. Consegui mexer as pernas.

— Era a minha favorita. Sem ressentimentos. — Falou.

Arrumei um milímetro cúbico para rir.

— Está mais tranquila?


Ela confirmou com a cabeça. Nenhum vizinho se incomodou com a bagunça. Deus
andava me favorecendo muito ultimamente. Dava até para ficar desconfiado. Deveria ter
ficado desconfiado.

— É que eu precisava dar uma aliviada. — Disse.

— Faça exercícios, lave uma louça, varra a casa, pratique caridade.

O olhar dela me mandou tomar no cu sem precisar abrir a boca. Meu senso cômico já
foi mais afiado.

— Não vou mais trazer nada. Na realidade, você nunca mais vai conseguir um
bagulho desses que seja por aqui.

Risadas.

— E você acha que vai impedir como, entregador? — Palavras, a segunda pior
invenção desde a cerveja sem álcool. — Peço de outro lugar, outra pessoa. O que você pode
fazer? Nada. Não há como você me vigiar.

Fiquei vermelho. Por um ou dois segundos, simpatizei com o marido espancador.


Uns dois sopapos, de leve, só para ela lembrar qual era a posição dela nesse relacionamento.
Reparei que estava com os pulsos fechados. Abri as mãos e voltei a raciocinar.

Vamos lá, cara, paciência. Não é ela falando, é o vício. Abstinência é uma merda.
Não é pessoal, apenas negócios. Ela nem tem como saber o que você pode ou não. Não foi
pessoal. Sossegue.

— Eu dou um jeito. Nem que me mude para o apartamento aqui em frente.

— Aí você ia me dar razão. Ouviria o terror, igualzinho o resto dos filhos da puta que
moram aqui. Aí eu queria ver se não achava justo fazer o necessário para dar uma aliviada,
relaxar um pouco. Esquecer as merdas que fazem com você.

Aquela voz embargada, segurando para não dar vazão às lagrimas, mexia comigo.
Também o fato de eu ser conivente com o abuso. Sabia e não tomei providências, usando as
mesmas desculpas covardes de todos os outros. Cara era policial. Ninguém quer arrumar
confusão com esse tipo de gente.

Abracei-a sem jeito, desacostumado a prestar solidariedade.


***

O café dela era excelente. Tudo para dar uma levantada no astral. Pequenas coisas
que fazemos bem e dão uma melhora tremenda. Ela discorria sobre um assunto qualquer, ao
qual não considerei minha atenção total. Balançava a cabeça e grunhia de tempos em tempos,
colocando as engrenagens para funcionar.

Os últimos meses foram excelentes. Pensei no dinheiro levantado, o suficiente para


largar a vida a que tinha me entregue. Voltaria a ser um cidadão honesto, abriria um pequeno
negócio e morreria tentando obter um lucro mínimo entre as taxas enormes do governo e o
cenário que desestimulava o consumo. Tudo isso criando um filho que não era meu e ouvindo
a esposa reclamar sobre qualquer coisa que eu fizesse, da queda do padrão de vida, dos
problemas, das contas.

Era ou não a realização da classe média tradicional brasileira?

Não, de forma alguma, eu não era um criminoso. Todas as atitudes que tomei, pior
que fossem, nunca visaram o ganho próprio. Não, não e não. Fui um nobre cavaleiro, me
sujando para garantir uma vida melhor aos outros, sempre para favorecer aos outros, nunca
me colocando no primeiro plano. E recebendo porradas e críticas em volta, sem nunca
esmorecer em meu propósito.

Amarelo voltaria ao comando de tudo em breve. Eu poderia me contentar em fazer


entregas, como antes, mas o tom de desprezo de Bárbara ao falar aquilo me fez sentir pior do
que era. Um dos lados ruins de se alcançar o topo. Nunca mais vemos a parte de baixo com a
perspectiva antiga. Podia tentar abrir um negócio pequeno, sem concorrer com Amarelo, mas
ele não veria assim, podia ter certeza. Amizade e negócios não se misturam, principalmente
nesse ramo, onde a concorrência sadia é inexistente. A concorrência mata.

Passei a mão no cabelo dela, desajeitado como tudo que envolvia prestar
solidariedade. Marido policial, Amarelo saindo da cadeia, paulistas declarando guerra, Tânia
sendo infiel a um amigo e Larissa grávida de um japonês. As coisas tinham de ter uma saída.
Quem não ousa não vence, eles disseram. Era o momento de mostrar o porquê vim.

— Dá para ouvir você pensando, sabia disso? — Bárbara falou.

— Telepatia?
— Não, seu bobo. Você faz uns barulhos horrorosos com a boca. Sem contar que não
para com os pés quietos. — Ela se virou em meu colo, encarando. Parecia apenas alguém sem
esperança. Talvez eu conseguisse ajudar com essa parte. Mais uma mancha no currículo.
Tudo para a felicidade alheia. Sempre.

Celular tocando, nos tirando do estado de transe. O céu escurecia outra vez. Era hora
de voltar para casa e representar outro papel.

— Preciso de uma foto dele. — Falei.

Bárbara não recebeu bem a frase. Se encolheu, procurando abrigo dentro do casco.

— É sério, meu anjo. Quer minha ajuda?

— Não. Ele vai mudar. Vai voltar a ser uma pessoa melhor. Sei disso.

Preferia um chute no saco. O olhar dela era o pior. Acreditava na merda que disse.

— Não, não vai. Essas coisas só pioram.

As piores prisões estão na mente. Pobre garota.

Fui ao ponto de ônibus desejando uma curva que lavasse minha alma e pensamentos.
O céu estava limpo e a as pessoas e carros deixavam o clima rançoso.

Pensei em todos os casais que conhecia. Em todas as casas e apartamentos. Em todos


os pequenos dramas, pequenas vitórias, tudo que acontecia em uma residência e ignorávamos,
pelo tratado coletivo de fingir que temos um pouco de privacidade. Quantas Bárbaras havia
por aí? O mundo é uma merda.
CAPÍTULO 15

Tânia conseguiu a localização dos caras. O ―como‖ não importava. Eu podia


imaginar, mas não reclamaria de um golpe de sorte igual àquele. Umas poucas conversas com
Amarelo e, por intermédio dela, conseguimos autorização para enviar uns caras maus para
fazer serviço de gente má. Os resultados foram satisfatórios.

Estava me acostumando com a ideia de voltar ao meu postinho insignificante.


Mentira. Os últimos tempos mostraram como era fácil conduzir a firma. Amarelo valorizava
demais a sua própria importância, querendo falar sou insubstituível. Dizia a Larissa sobre a
vontade de investir em um negócio próprio. Ela ouvia com pouco interesse, balançando a
cabeça e soltando grunhidos afirmativos nos momentos certos. Desgraçada. Usar a técnica
contra mim era baixo.

O bebê crescia, forte, saudável e, surpreendentemente, pouco chorão. Alguns dias, o


encarava e via os traços orientais, cada vez mais fortes. Outros dias, dizia a mim que era
loucura. Não havia traço oriental algum. Eu era um idiota com alguma coisa na cabeça. São os
chifres, uma voz maldosa falou.

Cale a boca, seu filho da puta.

Existia apenas uma maneira de tirar a dúvida e esclarecer a situação incômoda. Uma
opinião imparcial. Sentia um ímpeto absurdo de pegar a criança, dar uma volta na rua, parar
um desconhecido e perguntar:

— Desculpe a intromissão no seu dia, senhor, mas diga um negócio, essa criança é
japonesa? Calma aí, calma aí, eu sei, soa meio estranho, mas sou o pai dela. Quer dizer,
registrei como meu filho, mas nunca tive certeza absoluta, então, se você puder fazer a
gentileza de resolver essa questão para mim, ficaria extremamente grato.

Acabaria preso com um dessa maneira. Passava horas a fio dentro da cabeça,
calculando as mais variadas maneiras de abordar esse problema que não terminasse em prisão
ou sanatório. A vida não é moleza.
Pensar sobre esse assunto me fazia bem, de um jeito masoquista. Conseguia
mergulhar em dúvidas e no mar de autopiedade e assim ficava impedido de pensar em
Bárbara, largada naquele apartamento decadente, servindo de sparing para um policial
maníaco. Considerei por um vigia no apartamento e descobrir qual era a fachada do marido
dela, mas teria que pedir autorização. Não precisava, mas como ele estava voltando, era
sempre bom mostrar algum respeito.

— Vi um filme engraçado ontem. — Larissa falou.

— É mesmo?

— Aham. Você demorou bastante a chegar em casa. Tive que me ocupar com algo e
aproveitar que Theosinho dormia.

— Dormiu cedo? Que coisa boa. Você se esforça demais. — Beijei a ponta do nariz
dela.

Ela rolou para o meu lado da cama.

— Uhum… E vou te contar uma coisa, acaba com a gente. Parece realidade
alternativa quando acontece. Fica sempre esperando algo de errado. Mas tinha que te falar do
filme. Esperei você chegar, mas acabei dormindo.

— Era tão bom assim?

— Era. Daqueles que te fazem querer conversar logo com alguém. Vou ter que te
falar. Não se importa de eu contar o filme, importa? Não tem como falar sem entregar a
trama.

— Tudo bem, acho. Lembra o nome?

— Esqueci, acredita? A memória anda virada naquela coisa horrível. O filme trata de
uma família de subúrbio, aqueles americanos. Pai, mãe, casal de filhos, cachorro, entregador
de jornais.

Silenciou um pouco, um truque para ver se eu prestava a devida atenção.


Normalmente ela teria me pegado, mas dessa vez resolvi prestar. Duas coisas na verdade. A
camaradagem de levar café na cama e o tom de voz. Macio, sem agressividade.
— Era uma família normal, tipo uns quinhentos filmes que vimos. Tudo bem, peguei
a ideia. Continue.

Sorriu. Voltei a pensar na possibilidade dela ter um amante.

— Aí é que está… veja bem, eles não eram uma família normal…conceito é batido,
na verdade. O cara é um serial killer e ninguém desconfia. Parece a pessoa mais normal do
mundo e até é normal. Só tem uma mania estranha de fazer as coisas escondidas da mulher…

— Esses roteiristas tiram cada ideia.

Larissa passou a mão em meu rosto, apenas as pontas dos dedos, toque leve e macio.
Mão bem cuidada.

— Sempre tiram essas experiências da realidade. — Interrompeu o gesto de afeto.


Tirou a bandeja de cima de mim e sentou no meu colo, deixando os seios na altura do meu
rosto. — Assim, de cara, eu lembro do Gayne.

— Não fomos apresentados.

Risada. Tomou distância suficiente para continuar a olhar meus olhos e passar a mão
em meu rosto.

— Ele é citado no filme. Era um desses loucos… Se vestia de palhaço, atraia as


crianças e… Você imagina o que ele fazia.

Melhor ficar em silêncio. Os olhos dela…

— Daí — continuou — ele as enterrava no quintal de casa e dava uma festa para a
vizinhança. Era o ritual dele.

— E como ficou sabendo disso tudo?

— Foi no filme de ontem, te falei.

— Aquele que você não lembra do nome?

— Esse mesmo.

— Mas lembra de todos esses detalhes?

— Curioso, não?
—É

O celular tocou. Uma vez. Duas vezes. Três. Atendi. Tânia falava de um problema
menor, blá, blá, blá Amarelo, requeria minha presença. Estava absorvido pelo calor do corpo
de Larissa, a gentileza de seus toques, a voz macia e a sinopse do filme.

Decisão esperta a tomar: levantar da cama, resolver o pepino e esquecer o negócio.


Respirar um pouco e descobrir quem era o amante dela. O filho da puta tem colocado ideias
muito erradas na cabeça dela.

Além dos chifres na sua, falou aquela voz do hemisfério direito.

Vá se foder.

***

Tânia bebendo. A menina nunca foi exemplo de sobriedade. Talvez eu que estivesse
bebendo de menos nos últimos tempos, numa tentativa falha de desinchar a barriga. Ela
assistia Lagoa Azul na sessão da tarde, encarando a tela com o desprezo típico de quem não
tem nada melhor para fazer.

— Ouviu falar em televisão a cabo? Ou internet e ver algo melhor? — Falei

Ela abanou a mão, dispensando minha fala, opinião ou pessoa.

— Dá trabalho demais me mover. A última vez em que me movi foi para trazer a
bebida mais perto. Estou um pouco alta, eu acho.

Dei a volta no sofá e sentei de maneira a ficar de frente com ela. Não tentava bancar
a menina sedutora, longe disso, mas achei difícil manter o olhar longe do umbigo. Ela
percebeu, mas não pareceu ficar chateada.

— E qual era o barulho do Amarelo? Larissa encheu o saco. E seria interessante…

Ela colocou o indicador em frente aos lábios e soprou.

— Precisava conversar com você. E tinha que ser a sós. Dar impressão de urgência
foi apenas uma maneira de te fazer vir até aqui.

Roí a unha do dedão. Meses evitando. Bárbara disse que era uma atitude porca.
— E precisava ser hoje? Não podia ser amanhã?

Tânia espreguiçou e deu uma bocejada de meia hora. O sofá ficou desconfortável.

— Poder, podia… mas amanhã… quem sabe eu perdesse a coragem. — Sentou


direito e ficou a me encarar. — Tenho uma proposta a te fazer.

Engoli a pouca saliva em minha boca.

— Diga.

— O problema é… Sabe como pode ser… É uma situação bem delicada para mim…
Posso acabar me complicando se você abrir a boca…

Rodeios do caralho.

— Eu não segurei uma barra com você? Não uma qualquer, uma pesada. Se der
merda, eu rodo junto. Sou todo ouvidos…

Risinho. Contido. Esticou o copo para mim. Tinha pouco menos da metade. Tomei
um gole. Aquela merda era veneno puro. Devia estar muito bêbada.

— Está certo. Te devo um voto de confiança.

Fiz um esforço para engolir o vômito. Veneno do inferno.

— Continue.

— Fizemos uma boa dupla administrando esse negócio todo. Foi legal o tempo que
passamos aqui juntos, cuidando um do outro, resolvendo problemas. Vou sentir falta. Da
responsabilidade. Até dos perigos. Mandamos bem, não concorda?

Voltas e mais voltas.

— Pode me alcançar a garrafa? Vou preparar um mais fraco para mim.

— Claro que sim, querido. — Esticou a garrafa. Cambaleou em minha direção.


Bêbada, mas conseguiu recuperar o equilíbrio sem derrubar uma gota. Riu um pouco de sua
tolice, esticando o pijama. Seus peitos estavam soltos, não que importe. — Vou sentir falta
desses tempos… E você?

Olhei ao redor.
— Eu preciso de um copo. Tem na cozinha? — Disse, me colocando de pé sem
esperar a resposta. Ficar bêbado para conversar parecia uma boa ideia. A melhor das ideias.
Entraria no mesmo nível mental dela. A conversa fluiria com mais facilidade.

Refrigerante, conhaque. Gelo. Experimente um gole. Nada mal. Ouço os passos dela,
leves como um elefante, indo ao banheiro. Volto à sala. Bebo rápido e chacoalho a cabeça.
Tudo por mais facilidade na comunicação. Tânia de volta. Pijama curto. Sorriso bêbado e voz
pastosa. Brigando com as próprias pernas, volta ao lugar que ocupava no sofá. Estou mais
bêbado. O mesmo tanto desconfortável. Cristiano Ronaldo dribla as caspas na televisão. Ela
manda um beijo para ele. Ele a ignora.

— Ele é esnobe mesmo. Não fique triste. — Falei.

Ela soltou um som agudo que pretendia ser uma risada. Alguma coisa no banheiro a
deixou pior. Einstein tinha uma teoria sobre você só ficar bêbado depois da primeira mijada
durante o porre. Ganhou um Nobel por essa pesquisa.

— Ele não prestou atenção. Não conseguiria me ignorar.

— Se você diz.

Ela mordiscou os nós de um dos dedos. Talvez ela quisesse salgar a boca. Talvez ela
quisesse uns amendoizinhos.

— É claro que eu digo. Sou boa nessas coisas. É tipo um dom natural.

— Ele é o Cristiano Ronaldo. Não estou te desmerecendo. É apenas o Cristiano


Ronaldo. Pode ter a mulher que quiser. Nem precisa se esforçar. Só fazer assim e pronto.
Trinta das maiores top models do mundo. Não é desmerecer. É a realidade.

— Sim… Alcança a bebida, por favor? — Alcancei. Ela tomou um gole direto da
garrafa, sem fazer careta. Tende piedade de nós. — Eu tenho chances.

— E eu tenho chances de ganhar na mega-sena. Ter chances não significa muita


coisa. — Ri. — Na realidade, significa nada.

— Estamos falando de outra coisa aqui. Não envolva trapaça com sexo.

— Sexo é uma trapaça.


— Olhe só, tenho uma teoria. Como você disse, não fui eu, foi você, ele pode ter a
mulher que quiser fazendo assim — tentou estalar os dedos igual a mim. Conseguiu na
terceira vez. — E as mais tops das tops estão aos pés dele.

— Não só falei, é o que acontece.

— Claro, é o que acontece. Aí, meu amigo, entra a minha vantagem. Tudo que é
demais enjoa. Então, às vezes ele está tão acostumado com essas modelos, que quando vê
uma mais ou meninha que nem eu… — Ficou de pé e girou o corpo, se pondo a avaliação —
não tão perfeita, mas com certeza muito mais autêntica e menos repaginada… Ele vai gostar.
Afinal de contas, é uma carne que ele não está acostumado a comer todo dia. Assim, posso ter
chances.

Fui retrucar. Abri a boca com esse objetivo. Não veio nenhum argumento em meu
socorro. Sorriso dela. Outra golada da garrafa. Nada de careta.

— Você ganhou. É um bom argumento, mas é só isso. Um bom argumento.

— Vá se foder. — Rindo. Jogou uma bola de papel em mim.

Encostei o corpo todo no sofá. Relaxado pela primeira vez no dia. Devia ser a bebida
fazendo efeito. Lagoa Azul de novo na televisão. Como as pessoas suportavam ainda?

— É. Vou sentir falta disso.

A garrafa estava no final.

— Eu busco mais.

— Ahn? Não. Tô falando disso aqui. Esses momentos. Não me divirto tanto com o
Amarelo por perto. Sabia não?

— Sabia não.

— Menino do céu! É um inferno. O cara não suporta ninguém feliz perto dele. Vai
ver os outros rindo lembram que ele não consegue ser feliz. Canalha. — Cuspiu. — Por isso
te chamei aqui, descontrair. Em breve ele está de volta aos negócios. Eu tenho que virar a
mulher frígida. E você volta às entregas.

Minha garganta fechou.


— Pois é…

— E nós mandamos bem nesse tempo. Não que eu deseje, longe de mim um negócio
desses — fez uma cruzinha com os indicadores e beijou-os duas vezes. — Só que se
acontecesse algo que o mantivesse longe, tipo mais um tempão na cadeia, eu não acharia tão
ruim assim.

Ela levantou. Acertou a garrafa, que foi longe e quebrou.

— Merda! Bem que podia buscar um pouco para nós, não?

Concordei. Era bom aproveitar os tempos de descontração.


CAPÍTULO 16

Acuado. Esse era eu. Ninguém tinha coragem de abrir a boca. Ninguém falava os
seus objetivos. Você deve perceber da mesma maneira que eu. Era tão claro o que todos
queriam. Por que não falavam? Respondo, amigos: covardia. Todos queriam, mas ninguém
queria assumir o risco. Então, qual a melhor maneira de lidar? Respondo: Uso de indiretas
para alguém tomar uma atitude e você poder sair inocente, oras. Cheio de problemas não
resolvidos, más ideias plantadas na cabeça e um aperto na alma. Esse era eu. Uma porção de
sanidade e boas intenções cercado de gente sem caráter por todos os lados. As coisas não
pareceriam melhorar nunca.

O tempo cinzento cobria toda Curitiba.

Percebo que estava em frente ao prédio de Bárbara, segurando uma lata de cerveja às
três horas da tarde. Há tempo de sobra para fazer um social. Ouvir um pouco de suas piadas,
suas esperanças, de qualquer coisa que me parecesse remotamente puro e honesto. A
purificação viria dela e, por um segundo ou dois, eu também seria salvo.

Peguei o celular e fiquei olhando para ele assim, daquele jeito reflexivo, esperando
que aparecesse uma resposta para todos os problemas. A maneira fácil era ligar. A maneira
idiota era bater na porta e ver o que acontecia.

Toc, toc, toc.

A porta marrom me encarava. Dizia com todas as letras: seu otário. Muito tempo
passa. Ninguém aparece. Mais uma tentativa não faria mal. Nenhuma resposta. Tudo bem, ela
devia ter outras ocupações além de saco de pancadas. Outro dia eu volto. Ligaria e fingiria
que nada aconteceu. Apagaria da mente a vergonha dos últimos acontecimentos.

Teria funcionado, não fosse outro problema. Ela passou ao meu lado, mãos dadas
com um homem, o maior que vi em toda minha vida. Eu tô falando de um cara grande
mesmo, quase dois metros de esteroides e supinos. Bárbara parecia uma bonequinha junto a
ele. Cabelo raspado, óculos escuros, uma postura que me causou inveja, fazendo corrigir a
minha própria. O cara era um policial à paisana feito por encomenda. Entrega em três dias ou
seu dinheiro de volta.
O rosto dela mostrava terror disfarçado, despercebido por ele, no orgulho de passar
com aquela que considerava sua propriedade. Continuava linda, mesmo assustada. Usava
roupas que cobriam o corpo inteiro. Raiva.

Ele a largou por uns segundos, foi atrás de um pombo e chutou o pobre rato alado.
Filho da puta desprezível, não perdoa nem os pombos. Homem fraco na cama é forte fora
dela, falava a velha.

Bárbara me viu. Em um segundo, riso radiante. No outro, expressão dolorida e


sofrida. No próximo, de costas para o bruto, ainda me encarando, moveu os lábios sem emitir
som. ―Depois. Vá agora.‖

Podem não ter sido as palavras exatas, mas era o teor. Mesmo que não fosse o teor,
foi o que eu entendi. Um homem sábio reconhece seus limites. Por mais que ele fosse um
filho da puta covarde e sádico, maltratava todos os tipos de pombinhas, eu ainda levaria
desvantagem no mano a mano. Colt tornou os homens iguais, seu filho da puta. Avancei com
velocidade, estava a ponto de correr. A uma esquina de distância deles, parei. Era seguro
observar. Se destacavam pelas costas do homem, largas como uma avenida. O homem andava
como se estivesse sofrendo de assaduras. Aquele broxa não sabia, mas estava morto. Em
breve. Algumas ligações. Somente esse mísero detalhe.

Eu estava com sede.

***

— Caralho! Onde você aprendeu a fazer isso?

— Guardei para um momento de crise. Sinto você distante, às vezes. Imagino como
é, claro. Responsabilidades, problemas dos outros, o chefe voltando… Vai conseguir voltar
àquele trabalho de sempre, distribuindo pequenas coisas, agora que se acostumou com mais?

Inferno.

— Estou pensando em abrir meu próprio negócio. Falei com você a respeito umas
par de vez. — Mantenha-se a história original, por mais idiota que ela seja. Te ajudará
bastante nesses termos. — Guardou para um momento de crise… Nós tivemos momentos
piores em nossa vida de casado. Lembra de quando eu bati no japonês filho da puta?
Larissa sorriu, mas o bebê chorou no outro quarto, eliminando-o tão rápido quanto
apareceu. Ela havia comprado uma daquelas babas eletrônicas, como se o bebê não chorasse
alto o suficiente para que todos os vizinhos ouvissem. Aproveitei a cama e estiquei todos os
ossos. Tentei não sentir ódio da criança, falhando miseravelmente. Ressentia-me mais do bebê
que de Larissa, apesar de ser a menos culpada.

Tinha que cuidar do pequenino. Na verdade não tinha, mas como sou sentimental,
não pude evitar pensar nele. Encaixaria ele em algum plano. Instituição religiosa, algo assim.
Nada como uma boa estadia num orfanato para construir o caráter. Simples e genial. Eu.

Voz dela no outro quarto. Alguma cantiga estúpida numa voz afinada igual um gordo
bêbado roncando. A criança parou de chorar. Graças a Deus. Eu seria o próximo a chorar,
ouvindo a canção.

— Qual a graça? — Ela perguntou. Parada na porta do quarto, balançando seu filho.
Criança me olhava. Ela sorriu. Felicidade genuína, se eu tenho como avaliar essas coisas.
Poderia ser. — Ele quer brincar com o pai, veja só.

Entregou o bebê. O bebê ainda vai continuar com vontade de brincar com o pai,
pensei, tomando outra decisão de ficar quieto. O bebezinho era fofo e engraçado, igual a
todos. Tentei acender aquela fagulha de amor e ternura, mas, meu irmão, não conseguia. As
freiras fariam um trabalho melhor.

— O legal de você abrir seu negócio é que eu posso deixar ele com a mamãe e te
ajudar.

Tentei parecer simpático. Ficou na tentativa. Ela, por sua vez, manteve a pose.

— É sério, meu amor… — continuou. Amor? Luz vermelha piscando. Perigo,


perigo, perigo. — Posso ser mais habilidosa do que você pensa. Meu pai sempre dizia. Eu
posso ser muito inteligente quando quero. Ele ficava muito raivoso.

— Você fala pouco sobre ele.

— Não tem muito que falar. Bebia bastante, trabalhava pouco. Humilhava mamãe do
horário que acordava ao horário que ia dormir. Se duvidar a humilhava até sonhando. Típico
babaca. Parecia um touro, tanto nos modos quanto no peso. E também, é claro… — Simulou
um chifre com os dedos.
Meu queixo foi até o colchão.

— Tua mãe? Não brinca comigo.

Cacete, o problema era genético.

— Aham, e veja bem, estamos falando de uns vinte anos atrás. Uma situação bem
pior que a atual. Mamãe rodou por geral mesmo. Não se importou de ficar mal falada. Até
que, um dia, ele teve o derrame e ficou inválido, com ela cuidando dele até morrer.

— Não foi só isso, não?

— Claro que não. Você conheceu mamãe. Ela nunca falou, claro, mas uma vez eu vi
ela limpando a baba dele, falando para quantos amigos dele ela tinha dado, como foi… Nunca
pensei que minha mãe fosse tão suja, sério.

— Sua mãe?

Ela confirmou com a cabeça. Até o bebê ficou assustado. Silêncio. Bati com o
indicador de leve no narizinho dele. Uma, duas, três, quatro vezes. Ele riu e tentou pegar meu
dedo, com o reflexo nada ágil. Meu Deus.

— Ela não me deixava dormir na sua casa, porra! Ela correu atrás de mim com um
facão, lembra, no dia que falamos que você estava grávida. Tudo porque não éramos casados
ainda.

— Eu sei. Ela fez exatamente isso com você.

— Não pode ser a mesma pessoa.

— É a mesma pessoa.

Pensei na velha dos cabelos grandes, sempre usando saia, uma passagem decorada da
bíblia para recriminar nossos comportamentos.

— Por isso que sempre tive comigo, meu amor… — ela continuou. — Tem gente
que gosta de se fazer de idiota. A maioria dos idiotas não sabe que são idiotas, mas alguns
gostam de se fazer. No fundo, penso que ela gostava. Não era problema ficar mal falada.
Esperou essa oportunidade boa parte do casamento. Abriu mão da própria dignidade, se é que
foi disso, em troca de um dia, quem sabe, ter a chance de jogar na cara dele o tanto que ele se
achava esperto, mas, na verdade, era o idiota. Que o amigo que ele bebia todo dia, e ouvia ele
falando mal dela, na verdade passava o carro na esposa dele.

Agora ouvia apenas meu coração, o bebê dando risadinhas, tentando mastigar meus
dedos em sua boquinha desdentada. Larissa, deitada na cama, dava a impressão de abrigar nós
dois ali. Seus olhos não perdiam os meus de vista.

— Somos uma bela família, concorda, meu amor? — Sua voz ecoou, vinda de todos
os cantos do quarto.

— Claro que somos.

Continuei a brincar com o bebê, nenhum traço oriental dessa vez. Ela aguardou um
tempo e o levou para dormir. Concordei e o beijei na testa. Criança abençoada, pura e
inocente. Uma família feliz e sem problemas, brincando.

O inferno é o que fazemos dele.

***

Acordei grudando no lençol, Larissa dormindo. Levanto e suas costas descobrem.


Ela se contrai de frio. Pouco, mas ainda dorme. Ou finge. Marcas de unhas por todo lado.
Seriam apenas as minhas? Genética era uma força tão poderosa a esse ponto? Que merda ela
queria dizer contando o podre da mãe? Ela e um possível, ou possíveis, por que não? amantes
estariam tramando para me deixar louco? Que horas eram? Paguei a fatura do cartão de
crédito? Tantas perguntas e o tempo correndo.

Saí da cama e a cobri. Fui ao banheiro, ainda pensando naquele urubu mal-disfarçado
que era minha sogra. Nunca gostei dela, afinal de contas, a desgraçada correu atrás de mim
com um facão; era natural que não a tivesse na mais alta conta, mas, porra, aquilo? É muita
psicopatia, frieza, falta de caráter. Como posso ficar perto de gente assim?

E Larissa… Deus do céu. A conta de luz vence hoje ou amanhã? Pensar, pensar,
pensar. De qualquer forma, esteja avisado, reles mortal, falou a voz do meu hemisfério
direito, tome cuidado para não depender dela em caso de um derrame. Se eu fosse você, e sou,
dava um jeito de ter alguém para te matar.

Pela primeira vez, concordamos.


CAPÍTULO 17

Estava de folga e saí com Theosinho. Crianças são mudas, graças a Deus. Larissa
tinha ido ao cabelereiro, de acordo com a informação que se dignou a me lançar. A
possibilidade de ela estar com o amante que eu supunha existir passou pela minha cabeça. Era
o cúmulo da castração sair com o filho de outro cara num passeiozinho enquanto a mãe
colocava mais chifres em minha testa.

Esses pensamentos deviam ser expulsos de minha cabeça. Eles se traduziam em


atitudes. Atitudes poderiam ser percebidas. Larissa percebendo, poderia gerar algum
problema. Negativo. Por via das dúvidas, tentaria notar alguma diferença no cabelo. Como ele
estava mesmo de manhã? Solto ou preso? Complicado. Precisaria me lembrar de mais
detalhes antes disso.

Detalhes, sempre eles. Detalhes na hora da negociação, letras miúdas no contrato, um


quiproquó jurídico qualquer atrasando a saída de Amarelo da tranca, um policial batendo em
Bárbara, eu batendo na porta dela. De surpresa outra vez. O gigante que era o marido dela não
bateria em um cara segurando uma criança. Eu esperava.

Bárbara atendeu a porta e sorriu. Esticou os braços para Theosinho, ele, pressentindo
maior habilidade nela em carregá-lo, esticou seus bracinhos em direção a ela.

— Meu Deus do céu! Olha que coisa mais linda!

O bebê me lançou um olhar rápido, difícil de outros perceberem. Era desprezo.


―Assim que se faz, seu desajeitado. Parece difícil? Não, nem um pouco. Aliás, quem é essa
dona? Sorte tua que não sei falar, senão… Ah, ia contar pra mamãe a respeito. Com toda
certeza, meu chapa.‖

— Tá surdo? Pode entrar. E feche a porta. — A voz de Bárbara dentro do


apartamento.

Ela sentada com ele no colo. Algumas pessoas levam jeito com crianças,
naturalmente se dão bem com elas. Até eu tinha algum jeito. O problema era com esse
pequenino. Ele sentia, com certeza. Bebês são médiuns de emoções. Bárbara estava feliz. Ele
estava feliz. No final das contas, eu estava feliz.

— Não aprendeu ainda? Ligue antes de aparecer. Vai complicar o meu lado você
aparecendo assim. Tenho coisas demais a considerar.

— Então era aquele?

Voltou a se concentrar no bebê. Ele passava a mão nos cabelos dela. Bárbara acenou
afirmativamente.

— Imaginei… Não me surpreende… Daquele jeito todo…

Nada. Até o bebê ficou mais triste. Azul. A roupa dele era azul. O assunto não ficava
bom de abordar. Um psicólogo, alguém mais preparado, com certeza se livraria dos
problemas que eu tive. Mas naquela hora era complicado. Não concebia meios de abordar o
problema. Eu tinha a solução, é claro. Ela não me dava uma brecha para dizer.

Ficamos uns bons quarenta minutos conversando fiado, ela contando sobre
experiências com crianças, vendo os dois de palhaçada até ser envolvido na brincadeira. Dois
bobões, pais de primeira viagem assistindo a criança. Eu rezava para ele não cagar. Era uma
situação tensa demais trocar a fralda.

Um olho na criança, outro no celular. Não é que o tempo passava rápido quando a
gente está se divertindo mesmo? Theosinho dormindo.

— Nunca te vi de preto.

— É uma cor triste. Atrai coisas ruins.

— Quer se livrar do seu marido? — Mandei assim mesmo, direto. O melhor


momento nunca aparecia, então foda-se.

Ela colocou o dedo na frente dos lábios. Silêncio. Talvez o cara grampeasse a casa.
Não. Seria paranoia demais. E eu já teria problemas antes. Ele devia confiar que as porradas a
mantinham assustada o suficiente. Ela parelhou o rosto com o meu.

— Ele não vai me dar um divórcio. — Sussurrou no tom de confidência.

— A pergunta não foi essa.


Ela lambeu os lábios finos e rosados. Um pouco de saliva espalhada, mas não se
preocupou em secar. Uma baforada de seu hálito, chiclete de menta vagabundo, chegou em
mim. E algum lugar alguém ouvia Coltrane. Os acordes soavam em minha cabeça.

— Ele é policial.

— Você disse antes.

Ela se afastou. Passou as mãos pelo rosto e jogou os cabelos para trás. Conferiu o
teto, deixando o pescoço totalmente a vista.

— Não consigo acreditar. — Falou num tom seco.

— Em?

— Você! Aparece na minha casa no meio da tarde sem avisar. Tem sol lá fora, pelo
amor de Deus! E com um bebê. E a gente brinca com a criança e você fala isso. Como pode?

— Isso o quê?

— Você sabe. Sobre matar ele.

Sorri.

— Foi você quem disse.

Ela confirmou, apenas uma vez, num aceno quase imperceptível.

— Posso ter pensado a respeito uma ou duas vezes, de noite, enquanto fico acordada
dolorida e ouvindo ele roncar. E daí? Não é como se eu fosse realmente fazer de verdade.
Esse apartamento é dele. Ele coloca comida em casa, querendo ou não. Nada justifica, eu sei,
mas você acha certo falar sobre matar ele logo aqui?

— Qualquer lugar é lugar de falar sobre gente escrota morrendo.

— Idiota.

Fui para cima dela e a beijei. Ela não resistiu, mas também não ficou sem ar, nem os
sinos estalaram.

— Preciso de uma bebida. — Falou.


— Dois copos.

Ela voltou com um vinho.

— Não é dos melhores.

— Sem problemas. Também não sou das melhores companhias.

Bebemos meia garrafa em silêncio, com apenas uma ou outra respiração mais alta de
Theosinho. Olhávamos para ele, verificando que ele continuaria bem. Então a atenção voltava
para o copo.

— Teriam algumas vantagens dele morrer… eu receberia uma bela pensão do estado.
E bem que mereço…

Álcool. Fiz questão de concordar.

— Ele é policial. É um problema. Não se mata um policial e fica impune. Conheço


vários casos que acabaram mal. Só por isso aguentei todo esse tempo. — Ela era um pouco
exata demais. Maldita consciência tardia. Agora eu sei. Agora é tarde. — Teríamos que fugir.
E não gostaria de viver o resto da vida se escondendo.

— Bárbara… Se preocupe menos… Muito menos, ok? Tenho tudo planejado. Se


preocupe com as coisas a medida em que acontecerem.

— Estamos falando sério? Realmente faremos?

— Claro que sim. Você merece apenas o melhor. — Falei. Não era uma frase
inteligente, mas era o melhor que consegui fazer. Já tentou soar romântico planejando um
assassinato? Sugiro que tente.

As primeiras lágrimas caíram dos olhos dela. Sem nenhuma outra reação, ela chegou
mais perto e me abraçou. Soluçava pouco. Fiquei ali, tentando retribuir o abraço e consolar. O
bebê poderia acordar. Era uma boa hora. Ele tinha mais experiência que eu nesse negócio de
alegrar os outros.

Theosinho, agora vejo, foi a única pessoa sensata nessa história.

***
Indo embora. Nossos rostos avermelhados. Theosinho relutante em voltar aos meus
braços.

— Tudo bem, meu amigo. Você a verá de novo e em breve. É uma promessa para
mim e para você.

Ele me encarou desconfiado. ―É bom você manter essa promessa, meu chapa.‖

— Ele é a sua cara. — Bárbara falou antes de eu sair.


CAPÍTULO 18

Não havia diferença alguma no cabelo dela. Foi a primeira coisa que reparei.
Nenhuma mesmo. E sabia que era verdade, por mais que nunca prestasse atenção. Ela era a
mesma e ainda assim, tinha algo de diferente. Era a raiva. Larissa parecia alguém sem nada a
perder. E também não tinha o jeito complacente da mãe em esperar tempo e circunstâncias
adequadas para uma vingança.

Palavras simples e movimentos contidos, pensei. Ela na cozinha, uma faca enorme na
mão, cortando um pedaço de carne.

— Oi. — Falou sem levantar os olhos. A batida seca da faca na tábua não me
animou. Theosinho me deu um olhar de ―tá fodido, parceiro.‖ — Aproveitou bem sua folga?

Outra batida. Um pedaço de carne caiu para baixo da pia. Queria eu caber lá.

— Aham. — Grunhi. Manter o bebê junto comigo. Ela não vai me esfaquear
correndo o risco de acertar o próprio filho. Esperava.

— E o filme?

— Foi legal. Ele amou ir ao cinema com o paizão pela primeira vez, não foi?

Se ele falasse, teria mandado eu não o incluir nas mentiras. Certeza disso.

— Engraçado… Você disse que ia num teatro…

Falei isso? Teatro? Quem vai ao teatro?

— Você está louca. Falei cinema.

Berro gutural dela. Rapaz… Por essa eu não esperava. Homem criado que sou, nada
fiz. Theosinho, ainda sem as amarras da sociedade, realizou meu desejo e chorou alto e
estridente. Pelo cheiro, também devia ter se cagado.

— Olha só o que você fez! O bebê tá chorando. Satisfeita, Larissa?

— Não! Nem um pouco, seu filho da puta. Dá o meu filho e depois nos acertamos.
Levou o filho pro quarto. Cacete de hora ruim de ser uma pessoa vivente. Geladeira.
Uma bebida qualquer. Nada além de um pack de seis garrafinhas de cerveja. Teria que servir.
Beber rápido e de um gole só. Balançar a cabeça.

Fodeu.

Voltou, passos decididos. Olhei nossa cozinha planejada, imaginando se não teria
nenhuma arma ao alcance dela. Tranquilo. A cozinha, branca de uma maneira que muito me
incomodava naquele momento, tornaria difícil para limpar qualquer evidência de um futuro
crime.

Larissa foi mais razoável que meus medos. Caminhou até minha direção e plantou
um beijo leve nos meus lábios. Respondi com um pouco de atraso, o que pareceu provocar
raiva nela.

— Tudo certo?

— Sim. Tranquilíssimo. Desculpe o pequeno show de agora pouco. Estava tentando


cozinhar. Notícias especiais para nós, hoje. — Sorriu. — Só pequenas surpresas, porém, nada
que vá estragar nosso relacionamento, porque não é algo que queremos. Ou queremos?

— É… — Fiquei uns segundos estático, observando o trabalho dela na carne. —


Poderia ter pedido carne moída direto, sabia? Pouparia muito trabalho.

— Eu sei. É que eu acabo me distraindo.

Entendia coisa alguma. Era vantagem sair logo e me entrincheirar no quarto. Com
sorte eu apagava rápido. Ela percebeu, urrou insatisfeita e a carne foi parar no lixo. Assim,
sem mais nem menos.

— É o almoço de três crianças em Angola que você acabou de desperdiçar. Dura


uma semana.

— Ok. Vou parar de ser educada. — Largou a faca. — Pensei que poderíamos
conversar igual adultos, mas você, meu amor, você consegue sempre me tirar do sério. Sabe
por que ainda te suporto?

— Orgasmos múltiplos e nunca antes tão intensos?

A risada dela acabou com meu orgulho.


— Você não vai sair do trabalho.

— Ainda estou decidindo…

— Vá se foder! Quer parar de mentir um pouco? Você não pode sair de algo que não
existe. Merda! — A voz mais elevada, ainda sem gritar, mas transmitindo autoridade de quem
fala e está acostumada a ser obedecida. O tom me lembrava da mãe dela falando comigo. —
Então vamos conversar um pouco? Depois saímos para comer, ou pedimos pizza, não sei. Só
pare de tentar fugir do assunto. As coisas podem ficar estranhas se você insistir nisso.

Busquei uma cerveja. Precisava. Sentei na cadeira. Ela tomou posição ao meu lado.
Pegou minha lata depois de ter recusado uma e tomou um gole considerável. Repousou a mão
por cima da minha. Sorriu. Achei que ela me passaria uma cantada.

— Eu estava convencida que o problema era mulher. Sempre imaginei outra. A mãe
concordava. Disse que até te dava um pouco de sal, apesar de eu odiar. Engravidei mal, essa
foi a verdade. Nós dois… Um erro… é o que digo.

Vaca.

— Tem um motivo para essa ofensa toda?

— Não é ofensa, meu bem. Nunca te ofenderia. Só precisamos encarar as coisas


como elas são. E nós somos dois pobres unidos por uma gravidez indesejada. Em condições
normais, não duraríamos dois meses. — Deu de ombros. — Só que nos viramos com o que
temos.

— Sim. — Falei, observando o pescoço dela. Era fino. Não precisaria de muita força
para quebrar. Um cara do meu tamanho poderia fazer sem problemas, se estivesse com raiva o
suficiente.

Larissa percebeu meu olhar demorado. Sorriu. Olhou para o teto, esticando ao
máximo o pescoço, e passou o indicador pela traqueia. Um desafio? Não pense merda.
Colocou de novo os olhos na altura dos meus.

— Continuemos de onde paramos. Estava lá eu, desconfiada sobre uma amante,


você, o senhor importante, o senhor agora eu tenho um emprego, essas coisas que passam pela
cabeça de gente desocupada. E eu aqui, dia após dia, preocupada se você estaria me traindo. E
nem me importava tanto assim com você, o que tornava mais irritante para mim.
Tomei mais um gole da cerveja. Tinha mais espuma que líquido, o gosto leve do
alumínio. Ela estava feliz. Sentada reta, numa postura de aluna orgulhosa recebendo os
elogios da professora. O relógio fez o barulho do ponteiro passando. Cacete de mulher.

— Então…

— Então, com um tanto do dinheiro que você deixava comigo, paguei um detetive
para te seguir. — Todos os dentes dela apareceram. Afastei a cadeira. Ela parecia pronta a
saltar em cima de mim.

— Mesmo?

Ela acenou com a cabeça. Passou a mão pelos cabelos e deixou a franja cair em seu
rosto. Levantou e foi até a cozinha. Televisão desligada. Tinha jogo da seleção.

— Servido? — A voz dela ao meu lado. Uma garrafa de vinho em uma das mãos e
duas taças na outra. Aceitei. Eu precisava ficar bêbado. Os rumos da conversa só me faziam
imaginar finais trágicos para ela. A bebida ao menos seria uma desculpa.

Serviu e brindou. A calma dela incomodava.

— Fiquei surpresa, devo admitir. Nunca imaginei que você fosse capaz… Digo, meu
amor, com toda a sinceridade… Drogas? Você? Não, não. Não. Não era possível. Mas estava
ali, filmado e gravado. Daí, com meu tempo livre, sabe como é, puxo uma informação aqui,
outra ali, converso com alguém aqui e outro lá… Parabéns! — Bateu palmas de leve com o
pulso.

— Não sei do que você está falando.

— Estou falando da representação que você tem feito para aquele seu amigo, o
Amarelo. É disso que estou falando. Desse dinheiro todo que você pretende abrir mão. Olha
isso. — Pegou o celular e mostrou um vídeo. Um carro que eu conhecia, um dia chuvoso,
uma filmagem de um ponto de ônibus. A filmagem continuava; primeiro Tânia, desesperada.
Eu. Os tiros. Como caralhos não percebi o filho da puta correndo e filmando tudo atrás de
mim? Minha entrada em cena. Nós arrumando a casa.

Só encarei Larissa. Não tinha o que falar. Você falaria o quê?


— Fiquei com tesão vendo da primeira vez. Estranho, né? — A voz mais baixa
agora, como se tivesse muita gente prestando atenção em nós.

— É?

— É. Mas voltemos aos negócios. O cara quis me chantagear, pra não te mandar pra
cadeia. Te fiz um favor. Um favorzão, na verdade. Vários, até. Ele vai ficar quieto e você nem
precisará se acertar com ele. Nem com seu amigo… — Os dentes aparecendo de novo. — Eu
sei de tudo. Tudinho.

— O que você quer?

— Aí está uma boa pergunta. Um ano e meio casados, e veja só, é a primeira vez.
Tudo ocorre no seu tempo certo. O que eu quero? Quero tudo e quero mais. Estamos bem e
cobertos. Ninguém desconfia de nada. Só precisa de alguém com maior capacidade de
planejamento para te ajudar. E olha só, acabou de conseguir.

Pobre Larissa.

— Entenda… Só estou quebrando um galho. O Amarelo volta logo. Eu tô fora. É


inevitável.

— Eu disse que cuidava de planejamento, não disse? Acalme-se. Tudo ficará em


nossas mãos. Pode confiar.

— Claro, meu amor. — Abracei-a. — Juntos somos imbatíveis.

Riu.

— Dizem que é para ser o lema do casamento.


CAPÍTULO 19

— Que vagabunda maluca! — Tânia falou. — Desculpe, ela é a mãe do seu filho.
Desculpe.

Desculpei. Era justo deixá-la a par dos novos desdobramentos.

— Nos afeta como?

Abri a boca. Nada. Tapei com a mão, evitando que assim alguma mosca se
aproveitasse da abertura larga. O cheiro de cigarro misturado com Bom-Ar no apartamento
devia afastá-las, mas não era bom correr riscos.

— Das piores maneiras possíveis. É uma merda, vou te dizer.

— É…

— A tranquilidade, como se tivesse uma carta na manga. E se eu a conheço, deve ter


o baralho inteiro. Pilantra desalmada. — Falei. Tânia me congelou com o olhar. Percebo que
andava em círculos pela sala, derrubando o líquido do copo no chão. Bagunça do caralho.

Continuei xingando Larissa e fui buscar um pano na área de serviço.

— Digamos que a gente dê um fim nela… Não é nada que não tenhamos feito,
verdade? — Ela tentou dar um tom de piada, mas acabou saindo como uma sugestão a se
considerar. — Pelo amor de Deus, cara, você tá fazendo mais merda. Larga esse pano aí.

Fiz o que foi pedido. O dono da casa está em seu reino.

— Larissa não é burra. Se ela me falou é porque está garantida de alguma maneira.
No momento quem toca a banda é ela. E aí entra nosso real problema.

— Ela gosta de fandango? — Tânia falou da área de serviço, voltando com um rodo.
— Mau gosto a gente sabe que ela tem.

Perdi um minuto pensado se ela tentava bancar a engraçadinha. Não era importante.
— Larissa não tem problema com a atividade paralela que exercemos, por assim
dizer. Ela gosta. O problema sempre foi, e agora enxergo, perder o status. É uma situação que
ela não aceitaria. É o tipo de coisa que pode nos arrumar problemas. E o Amarelo sai em
breve. Daqui a pouco mesmo. Então, será eu de volta às entregas, você acalmando ele e ainda
teremos de lidar com Larissa e toda informação à disposição dela.

— Só pegamos um filho da puta roubando. Ela não tem nada além disso.

— Cacete, Tânia! É coisa pra caralho. Pra caralho, entenda. Amarelo vê o vídeo. Vê
a gente eliminando aquele rato filho da puta. Por que vocês mataram o cara, ele pergunta. Não
tinha sido aqueles paulistas safados? Que porra é essa? Sem contar na polícia atrás da gente.
Com sorte, teremos um corpo para os parentes enterrarem.

— Abaixe a porra da voz. Não que ir na delegacia e se entregar de uma vez? — Ela
parou de esfregar o chão, apontando o rodo pra mim. — O que sugere?

— Larissa não quer ser coadjuvante.

— Ninguém quer.

— Eu queria pular fora. Ela não vai deixar.

— Então…

— Larissa quer se livrar do Amarelo.

Estava falado. Em voz alta. Pensávamos nisso antes, mas como uma ideia absurda,
uma pequena e remota possibilidade no canto da mente.

Tânia guardou o rodo e voltou fumando. Um fio de cabelo solitário caído no rosto,
descuidado demais para estar ali por acaso. Sentou no braço do sofá, pernas cruzadas.

— É uma coisa horrível de se dizer. — Falou. Deu uma tragada longa e se pôs a
examinar o cigarro, como se ali estivesse o segredo da vida, ou algo tão relevante quanto.

Comecei a roer uma unha. O sol entrou na sala, atravessando o eterno bloqueio de
nuvens cinza no céu curitibano. Uma barata rastejava perto do sofá, tentando passar
despercebida.

— Amarelo nos deu tudo. Você sabe. Dinheiro, confiança, sabe.


Cuspi o pedaço da unha na direção da barata. Passou longe.

— Eu sei. Mas ainda assim…

— É complicado mesmo. Ela tem a gente na mão.

— Sim. Temos que acatar as ordens dela.

Esfreguei o rosto com as duas mãos. Pus força no gesto. Péssimo ator, eu sei, mas
achava que o momento pedia. Precisávamos convencer um ao outro que não iríamos fazer o
que faríamos.

— É a sobrevivência. — Ela falou por fim. O cigarro parecia durar pela eternidade.
A fumaça me incomodava. Pensei em saxofones e trompetes. — Não queremos fazer. Não
somos assim. Eu, pelo menos, não sou assim. Acredita, não é? — Inclinou-se em direção a
mim, a mão esquerda espalmada no peito.

— Claro que acredito. Também não sou assim.

— Viver entre as feras nos tornou dessa maneira.

Ri.

— Nada original.

Ela me olhou com cara de interrogação.

— Esquece. Você tem razão. Nós ou ele.

— E não é como se fosse uma boa pessoa. Não estamos colocando nenhum filho de
Deus na cruz, nem apedrejando um santo. Vamos fazer justiça a muitas pessoas, essa que é a
verdade.

Olhei para o lugar onde estava a barata. Havia sumido. Estávamos no oitavo andar e
o bicho foi até ali. Nunca existe só uma. Talvez devêssemos comprar veneno.

— Larissa vai ter a gente na palma da mão de qualquer maneira. — Falei. — E com
mais um problema.

— Não. Vai ser momentâneo. Precisamos dar um jeito no problema mais urgente,
que é o Amarelo. Depois, vamos jogando o jogo dela até surgir um momento oportuno.
Ri. Desespero, eu acho. Quem eu queria enganar?

— Amarelo morrendo é um problema. Cada puto com uma arma vai parar de nos
obedecer. O cara é um símbolo. Temos de tomar muito cuidado.

— Tomaremos. Claro que tomaremos.

Depois de alguns detalhes girando no mesmo assunto, peguei um dos revólveres que
ficavam no apartamento e fui embora. Queria ver Bárbara. Ela teria um papel nessa trama. E
gostaria.

***

Os olhos dela estavam roxos. Sensação de impotência abraçando a mim novamente.


Como alguém tinha coragem de maltratar uma criaturinha daquelas? Abracei-a. Estava
começando a ficar bom nessa história de consolar as pessoas.

— Preciso, eu preciso. Só um pouquinho, por favor.

Tentei negar. Era para ter negado. Não resolveria nada, eu sei. Mas se não fosse
oferecer a ela, não deveria ter levado, para começo de conversa. Tomei distância, preparei
uma carreira de bom tamanho. Ela mandou para dentro e deitou a cabeça em meu colo. Sua
respiração ficou acelerada, ela, inquieta, passando a mão pelo meu braço.

Encontrei o controle remoto em minhas costas e liguei a televisão. Passava um filme


de roubo, com os caras planejando cada mínimo detalhe, e pior, funcionando. Eles faziam
parecer tão simples. Eu lidava com algo muito maior. Tinha outras pessoas dependendo de
mim, além de minha própria vida em jogo.

Só um pouquinho mais de planejamento. Um pouco mais de raciocínio analítico,


porra. Não muito. Estamos falando de um monte de bandido burro. De um cara que acreditou
numa facção de paulistas vindo ameaçar ele. Um cara que não reconhecia problemas a menos
de dois metros do próprio nariz. Um idiota completo. Não seria difícil tomar o negócio dele.
Então, por que parecia? Precisava de um estímulo novo, outra perspectiva. Precisava trocar
ideias. Sei lá do que eu precisava.

Iria escurecer em breve. Podia ficar com Bárbara o tempo que desse agora.

— Vai ficar sozinha hoje?


— Sim. Por quê?

— Não vai. Eu fico aqui.

Enviei uma mensagem a Larissa. Não vou para casa essa noite. Pelo menos algo de
bom ela fez. Podia agir como realmente tudo se passava e não como uma imagem projetada
para os outros.
CAPÍTULO 20

Larissa aos berros – incoerentes – e o bebê chorando – coerentemente – estavam


competindo pela hegemonia do barulho. Atravesso a sala assoviando os acordes iniciais de
Love Me Do.

Mentir teria sido uma opção melhor. Ou ter voltado para casa. A segunda opção teria
mais efeito. Existe algo no ser humano sobre possuir outras pessoas. O jogo de aparências.
Ilusões alheias não existem para ser destruídas. Ela tinha um quadro da nossa situação bem
claro na mente e tudo que o atrapalhasse dava raiva. Não importa o quanto Larissa não ligasse
para mim em particular, ou mesmo que ela pudesse estar me traindo, fato de que eu tinha cada
vez mais certeza. Afinal de contas, como ela convenceu o tal ―detetive‖ a não divulgar o
vídeo?

Tive um minuto de simpatia por ela. Chantageava por ser obrigada a chantagear.
Todos cometem erros. Pensando um pouco mais e com calma, todos se livrariam dessa
situação. Um impacto forte esquentou minha nuca e acabou com o sentimento. Ela me acertou
com uma colher de pau, a vaca egoísta. Nem sabia que tínhamos uma em casa. Merecia o que
estava por vir. Até o bebê me agradeceria depois, você pode ter certeza. Quem gostaria de ser
criado por aquela louca?

— Preste atenção em mim, seu filho da puta. — Rangia os dentes. Bruxismo. Coisa
horrível. Ela, não o bruxismo.

Olhei com um rosto amável, lindo e divertido. Silêncio. Esfreguei a nuca. Aquela
merda doía. Tudo pode ser uma arma eficiente nas mãos de quem tem raiva.

— Diga.

— Não sou tua mãe, entendeu? Pensa que é assim? Não vou para casa? Uma
mensagem? Você…

— Para de assustar a criança!

— Ah! Agora você se preocupa com nosso filho? Que lindo e amável de sua parte.
Vou te dizer um negócio…
Estava ficando cansado daquilo.

— Estou resolvendo os assuntos que você me pediu. Não estamos lidando somente
com gente fina e bem legal, entende? Então fica bem quietinha aí, que você pode ter me
amarrado com uma corda pelo saco, mas eu ainda tenho um monte de assuntos para tratar
com gente do pior tipo. — Falei. Nas últimas palavras eu grudei ela contra a parede,
apertando a garganta. Merda. — Desculpe.

Larguei-a e fui tomar um banho. Depois de um tempo, ela entrou no banheiro.

— Você entendeu tudo errado. — A voz dela veio do meio da fumaça que ocupava
todo o banheiro. — Tudo errado mesmo, meu amor. Nunca quis te prender, nem deixar em
você essa sensação. Nunca mesmo.

Encarei a parede. Ela me abraçou.

— Só queria dizer que estou junto com você. Não ligo para tudo que você teve de
fazer. E estou me preparando para te ajudar a ir num nível ainda maior. Nós dois.

Eu não conseguia acreditar nela. Esse tipo de aproximação devia ter ocorrido há
muito tempo. O rancor e a desconfiança com a pessoa dela se instalaram.

Pobre Larissa. Uma carta fora do baralho, achando ser a dona do cassino.
CAPÍTULO 21

Depois de tanto enrolar, finalmente chegamos, meu amigo. O motivo de todo esse
relato. No final, só queremos que alguém lembre de nossa história. Apenas esse motivo e nada
mais.

Ah, a confiança. Tanta certeza de que o plano funcionaria. Confiava em mim e em


minha leitura da situação. As pessoas tendem a exaltar a autoconfiança. Algumas vezes pode
até ser bom. Em outras era apenas o inferno.

Agora vejo o tamanho da ignorância. Soubesse o que sei agora, não teria a mínima
confiança em meus planos. Eu devia ter previsto. Os idiotas confiantes tendem a existir em
maior número das pessoas capazes e confiantes. Se você acredita demais em si, as
probabilidades de estar com os idiotas são altas.

Amarelo finalmente saiu da cadeia. Deu uma festa gigante, uns cinco mil para mim,
só por estar feliz, e levou Tânia num motel, matar a vontade de fazer sexo num lugar limpo.

Passei os dias remoendo meu plano, procurando falhas. Nada encontrei. Sim,
sabemos agora dos furos, mas como poderia eu saber àquela hora? Não poderia, vocês
perceberam.

Pareço criar desculpas, colocando a falha em fatores externos. Não é isso. É apenas a
clareza atingida por um homem em minha condição. Não precisamos nos importar com mais
nada. A vida se esvai a conta-gotas. Não sou médico e sei que em breve estarei morto.

Divago. Divago mesmo. Amarelo finalmente estava livre. Chamou para conversar no
apartamento. O homem jogado em seu sofá, acariciando o braço aparentemente sem notar
esse pequeno ato de carinho.

— Nunca me canso disso. — Falou como se estivesse sozinho num campo florido.
— É uma sensação muito boa, parceiro. Sério. Faz quase valer a pena o tempo que fiquei no
xís, só para ter essa sensação ao voltar.

— Imagino.
Esfregou as mãos no rosto. Parecia um homem cansado. Uma paródia de si mesmo.
Nunca amolecer. Nunca demonstrar compaixão ou qualquer sentimento próximo da fraqueza.

— Traz uma cerva para nós, parceiro. Tem um fardinho novo na geladeira.

Peguei uma e sentei ao lado dele. Acendeu um cigarro. O cheiro era horrível.

— Fiquei num aperto essa última vez. Lá dentro. As coisas estão ficando estranhas
demais. Antes era mais fácil. Dessa vez também foi, mas… Sei lá. Feliz que você estava do
lado de fora. — Cuspiu no chão. — São esses paulistas. Fodem com a gente. Fodem demais.
Aí você tenta ficar tranquilo e… Porra. Nem sei do que falo agora.

— Você está chapado.

— Estou. Algo contra? Mereço curtir um pouco, né?

— Sim. Não me leve a mal.

— Tudo bem. Tudo bem. Acho que o negócio é só ficarmos numa boa. Tô pensando
em sair dessa vida.

Ri uma risada honesta.

— É brincadeira não, parceiro. Não é. Vou sair. Falei alguma vez antes que eu
pularia?

— Não.

— Então, porra, não fode. Dessa vez foi diferente. Posso até virar pastor e dar
testemunho. — Ergueu a cerveja. — Então, irmãos, na cela, ele veio. E eu sabia que era ele.

— Aleluia, irmão!

Balançou a cabeça.

— Estaria atuando no mesmo ramo. Tudo negócio desonesto. — Falei.

— Brinca com isso não, parceiro. Com isso não. Pode dar problema. O seguinte.
Estou mais calmo agora. Foram os paulistas. É tudo morte e burrice. Fale que sou cuzão se
quiser. Sou mesmo. Até agora sempre fui o atirador. Nunca fui feito de alvo. Matam um dos
meus, na cadeia eles já tem gente pra caralho. É foda.
Bebeu outro gole de cerveja.

— Você, por outro lado, solução. Magnífico mesmo. Falo, porra, tu leva jeito pro
bang mesmo. Sei disso. É por isso que eu vou pular fora. Vou pra algum lugar seguro.
Paraguai, não sei. E tu fica aqui no meu lugar. Manda um tanto de grana por mês de gratidão e
ficamos certos.

Não queria ter ouvido por diversos motivos.

— Claro. Vai ser um prazer.

— Claro. Vai ser um prazer. — Ele repetiu, imitando minha voz. — Fala igual
bandido, parceiro.

— Falei. Igual dos maiores.

— Vou te dizer. Junto minhas coisas essa semana. Tânia e o dinheiro. Vou embora,
cara. Que se foda esse lugar, os paulistas, os polícia. Se fodam. E ainda largo o barraco em
boas mãos. Tu vai saber administrar os negócios. Que tal, hein?

Silêncio. Mentir sem usar palavras é mais fácil.

***

Sentia nojo demais para falar. Bárbara continuava apanhando. Seus ossos deviam ser
um caso de estudo para a ciência. Talvez ela fosse a primeira de uma raça de humanos mais
resistentes.

Vê-la encolhida, com medo de tudo e todos, me mantinha firme no plano. Era injusto
com ela ter crises de consciência agora. Uma traição. Demorou a acreditar que finalmente se
veria livre dos problemas.

Era injusto com Amarelo também, mas esse pensamento era jogado no canto do
cérebro. Foda-se, grilo miserável. Não acontecerá nada demais. Apenas um pequeno
desfalque. A aposentadoria dele levaria um pouco mais de tempo, apenas isso. Ele continuaria
inteiro.

— Está quieto hoje. Algo te perturba?

Sorri. O coração doendo.


— Só o de sempre.

Ela encolheu os braços infantilmente. Uma criança ouvindo o maior sermão de sua
vida.

— Desculpe. Você não gosta de ver. Esqueço.

Cheguei mais perto dela, passando a mão em seus cabelos.

— Claro que não gosto. Principalmente pela sensação de impotência. Acha que é
fácil para mim?

— Pode aguentar. A pior parte sobra para mim. — Uma risada sem alegria. — Ver
essas marcas é a parte fácil a situação.

— Falta pouco. Em breve. Poucos dias.

Ela se desvencilhou de minhas mãos e foi para a cozinha. Ofereceu café. Recusei. A
escuridão voltava a tomar conta de Curitiba.

— Não sei… Eu aguardo, aguardo e aguardo. Levo o que me cabe por enquanto. —
Tomou um gole e cuspiu de volta. — Esperança é tão engraçada.

— É pelo que alguns vivem.

OS olhos gigantescos, inquiridores, que tanto me assustaram, agora estavam fixos


sobre mim. Soprava o café. Um vizinho colocou música para tocar.

— Alguns sim. A maioria morre por ela. — Experimentou o café novamente. — Eu


estava conformada com essa vida. Alguns dias ele está de bom humor e me trata bem. Em
alguns ele me bate. Na maioria me ignora. Era horrível? Sim, não tenha dúvida. Mas era a
vida que estava acostumada. Do nada você entra em meu apartamento, trazendo cocaína e diz
que me tirará daqui e que tenho de ser forte. Eu tento. Só que você nunca age. Tirou a
anestesia de mim, fez voltar a viver e me proporciona uma nova morte. Mais lenta e dolorosa.

Fiquei encolhido no sofá, o olhar dela mantendo-me ali. Sorriu. Me abraçou, ainda de
pé. Encostei o rosto em seu peito.

— Confio em você. Tudo terminará bem. — Ela disse, passando a mão em meu
cabelo.
Confiança.

***

Amarelo, Tânia e eu ocupávamos uma mesa do pé sujo da XV. Observo uma barata
subir na mesa logo atrás de Amarelo, que está contando a boa novidade a Tânia, rezando para
a cozinha ser mais higiênica. Difícil. Ele a pedirá em casamento. O revólver na cintura me
dava sensação de poder mais. Por que fui convidado a esse momento dos dois? Não tive ideia.
Seria constrangedor o suficiente, mesmo que eu não planejasse o que planejava.

Ele se ajoelhou e tudo. Pelo amor de Deus. Existe um limite de mau-caratismo que
todos podem ter. Eu estava próximo do meu.

Tânia. Passava a olhos vistos por uma transformação. Como Amarelo, um cidadão
conhecedor dos maiores perigos da humanidade, não via? Seria a mente pregando peças toda
vez que eu a via. Sabia o que estávamos planejando. Sabia também o que eu planejava fazer
com ela. Uma ou duas vezes, via a sombra de um risinho nela. Era a perspectiva. Uma criatura
interessante. Maldosa. Até mesmo não confiável. Estava sozinho nessa.

Não era hora de ter uma crise. Tinha de continuar minha parte. No final das contas,
eles ficariam juntos e o amor renovado pelo sentimento de ódio a mim. Os dois passados para
trás. Os dois se reerguendo e me caçando. Eu teria de mudar para longe. Bolívia, eu pensava.
Ficaria o resto de meus dias mastigando folhas de coca e vendo as lhamas passarem na
esquina de algum vilarejo. Nem a morte me acharia na Bolívia.

— Você planeja dar o fora quando? — Falei.

Tânia se remexeu na cadeira. Não teve uma grande mudança em sua postura, mas
ficou de frente com o futuro esposo. Os olhos dela se estreitaram. Porra. Ela dava muito na
cara.

Amarelo, por sorte, não prestava atenção nela desde o pedido. A largou de lado após
o aceite e deu tanta importância quanto teria dado a um quadro novo que adquiriu. Tânia
cumpria o papel de penduricalho. Agora podia ficar ali. Sua raiva era justificável.

— Não sei ainda. Vou tirar os apetrechos do lugar. Tu fica com algum dinheiro no
caixa, pode acreditar. — Sorriu e levantou o copo de cerveja. A mesa ficou com uma boa
metade do conteúdo. Ele xingou a mãe da mesa e pediu outra garrafa ao garçom antes de
retomar ao raciocínio. — Que tal, hein? Podemos dizer que te ajeitei. Chegou pra mim com as
calças curtas e sem um puto no bolso. Não acreditei em você. Nem um pouco. Agora, te deixo
tudo que construí de mão beijada. Sou ou não sou o próprio Jesus? Aceita uma massagem nos
pés também? Estou virando a Madre Teresa. Custa nada uma dessas.

Sorri. O garçom veio com a bandeja de comida e me poupou de formular uma


resposta. Olhei mais uma vez para meu amigo. Tão esperto e tão iludido. Muita luz em nossos
olhos cega mais que a própria escuridão.
CAPÍTULO 22

O plano era a própria simplicidade. Só havia uma maneira de terminar mal: uma
mistura nova nos elementos tão previamente planejados. Estamos na vida para aprender algo
que nos matou na vida anterior. Me esvaindo nesse gravador, concluo que minha próxima
lição será confiança.

Não confie. Nem nos outros, nem em você. Confiança é bonito de se falar e ler. Do
lado de cá, meu amigo, digo: se você confia é porque existe uma informação que você
desconhece.

Tânia e eu nos falávamos pouco. Qualquer coisa poderia levantar a suspeita de


Amarelo, mesmo ele vivendo os últimos dias andando em câmera lenta nos campos rumo à
redenção. Pobre homem iludido. Nós.

***

— Vou pegar o dinheiro e daí sumo na mesma hora. É hoje. Preciso de você por
aqui. — Amarelo falou rápido, como se a linha fosse cair a qualquer momento.

Três horas da manhã, o cara falando essas coisas. Larissa acordou comigo e grudou o
ouvido para escutar a conversa.

— Agora?

— É, porra. Agora mesmo. Tem uns filhos da puta vigiando minha casa, certeza
absoluta disso.

Filho da puta.

— Tem que parar de cheirar, meu velho.

— Vá se foder, seu merda. Tô falando. Não confia em minha intuição, não? Se eu


não sumir daqui hoje, não saio dessa vida nunca mais. Eu sei. — Ficou em silêncio. Imaginei
ele observando pelas janelas com um binóculos. — Presta atenção. Tem gente mexendo na
caixa de luz da rua, aqui na frente. Uma movimentação do demônio o andar. Até a Tânia
sentiu. Tá diferente hoje. Fui preso mais vezes que você pode imaginar e tenho plena
convicção de que…

— Tá bom, tá bom. Tô indo, segura um pouco.

Ele desligou e me deixou encarando.

— Ele está falando sério? — Larissa.

— Quem sabe? Seja como for, tenho de ir lá.

— Uhum…

Levantei e fui vestindo as roupas que iam chegando primeiro à mão, tentando
configurar a nova situação de meus planos. Bárbara tinha de ser avisada. Mais cedo do que o
planejado, tudo bem, mas ele ia trazer o dinheiro direto até mim. Uma chance dessas não
podia ser desperdiçada. Estava saindo do quarto, Larissa limpou a garganta. Ela segurava o
revólver que estava confortavelmente escondido embaixo do travesseiro.

— Não vai precisar?

Assenti e peguei o revólver. Ela me beijou na face, disse umas três palavras bonitas e
me desejou boa sorte.

Chamei um táxi e fiquei plantado na frente da portaria, esperando a boa vontade do


motorista. Corria o risco de nenhum aparecer. Fiz outra chamada para Bárbara. Ela atendeu
com meia dúzia de palavrões direcionados a ninguém em especial. Expliquei a situação.

— Agora? — Sussurrou. — Não tenho como sair. Foge do plano.

— Eu sei, mas o cara deve ter cheirado um quilômetro e meio de cocaína.

— Não tem como. Desculpe. Pode me deixar.

— Vou ligar em breve, faz o que combinamos. Nos livramos dele. Entendeu?

— Não dá. Para de forçar.

— Não é forçar. É agora. Precisamos de um pouco de audácia também.


Ouvia apenas meus pés batendo no piso de madeira da recepção. A luz de um carro
laranja me animou. Era o táxi. Um mendigo remexia o lixo da frente. O dispensei com um
aceno, entrei no carro e dei o endereço ao motorista.

— Tá bom. Ligue quando tudo acabar.

— Claro.

Ouvi passos atrás dela. Um grunhido.

— Te amo. — Falou antes de desligar o telefone e me deixando o questionamento de


se teria sido imaginação minha.

Desci do carro em frente ao prédio de Amarelo. As ruas estavam vazias e o ar,


gelado. Meu corpo tremia e o revólver enfiado na cintura era uma lembrança tenebrosa.

Pensei no que teria de ser feito. Pensei em Bárbara; seu tom de voz assustado, seus
olhos roxos, nas diversas vezes em que vi o corpo dela coberto de hematomas.

Era por uma boa causa.

***

Abri a porta e vi meu amigo encolhido num canto do apartamento, sem nenhuma
disposição para brincadeiras, segurando uma escopeta que apontava em direção à porta. Entrei
com as mãos bem levantadas. Se uma pomba aparecesse na varanda ele atiraria em mim.

— É, é. — Falou por cima do cano. — Demorou, parceiro. Você demorou mesmo.


Tava tramando qual?

— Tramando porra nenhuma. Acordei há pouco tempo. Demoro pra pegar no tranco.

— É, é. Sei. — Apoiou a escopeta junto à parede, como se tratasse de uma vassoura.


Fiquei aliviado com esse pequeno ato. Muita gente aí na rua? Tá sem luz no prédio todo.
Odeio essa sensação.

— Mais vazio que minha consciência.

— Ahn?

— Vazio.
Coçou a parte de trás da cabeça com a mão esquerda, lembrando um macaco. O cara
estava travado.

— Então, qual o BO?

— Vamos esperar a parada chegar. — Pegou a escopeta de novo, dessa vez sem
apontar. — Não se preocupe. O trabalho de verdade começa quando a Tânia voltar. Daí tu
vem comigo. Estamos tranquilos assim.

Cocei a sobrancelha. Tânia sozinha com o dinheiro. Confiar nela essa altura do
campeonato é difícil. A única pessoa de confiança esta trancada com um psicopata da lei.

— Tá armado?

— Aham.

Olhou meu rosto. Se alguém me dissesse que ele podia escanear as pessoas e
descobrir tudo sobre elas, eu acreditaria. Eram aquelas órbitas saltando, ele me observando
com o queixo encostado no pescoço. A falta de luz da porra do apartamento não ajudava.

Cheirado de merda.

— Tudo bem — disse — Vamos precisar. Essa merda não tem uma bala. — Jogou a
arma no sofá. Pega uma cerva pra nós, parceiro.

***

Quieto ao lado dele, cinco garrafas de cerveja que haviam partido dessa. A porta
abriu, nos tirando da mesmice. E do perigo. Eu tinha arma e estava na companhia de um cara
travado. Ele era incapaz de dar três passos sem tropeçar. E eu era quem tinha medo.

— Essa merda de prédio! Escuro pra caralho! Tá aqui essa merda! — Uma mochila
em formato de sacola foi atirada por cima de nós. Amarelo estava entrincheirado no sofá,
mesmo assim levou a pancada direto na cabeça.

Tânia passou direto por nós, indo ao quarto. Vi um sinal de vem cá da mão dela. Na
dúvida se era pra mim ou pra Amarelo, levantei inventando uma desculpa. Precisava ir no
banheiro. Não era totalmente mentira.
— Aqui. — O sussurro soou como um tiro. Senti os pelos da nuca baterem
continência.

Tânia estava apoiada no vão da porta. O sorriso era um farol numa ilha paradisíaca.
Viraria chefe esta noite. Ficaria mais pobre do que imaginava. Ainda assim, teria como
levantar o dinheiro.

— Que deu nele?

— Importa? — Ela disse. O sorriso não diminuiu ou perdeu a intensidade. — A


gente ia dar uma. Ele broxou e ficou nesse estado. Melhor para nós.

Balancei a cabeça até me dar conta do quanto a situação estava horrível. Encostei na
parede, o revólver pesando cada vez mais.

— Sair do plano é uma péssima ideia.

Ela encostou os lábios no meu ouvido. A voz saiu decidida.

— O negócio é o seguinte. Ou fazemos agora, ou nunca mais teremos a


oportunidade.

Meu amigo cantava uma música antiga.

— Não é bom deixar esperando. Vai que ele surta. Vá logo até lá e resolva a
situação.

Tremia ainda. Um pouco mais. Tânia balançou a cabeça, resignada.

— Não me deixa escolha.

Gritou.

— Que merda é essa? — A voz distorcida de Amarelo veio da sala.

Eu não tinha mais escolha alguma a fazer. Tinha que render um cara mau, roubar o
dinheiro dele e dar o fora da cidade. E rápido. Corri para a sala, empunhando o revólver na
altura do peito.

O corredor do apartamento, pequeno em outras ocasiões, esticou indefinidamente.


Não havia coisa que eu pudesse fazer. A impressão era correr numa esteira.
Cheguei na sala. Ele lutava contra o sofá. Levantou e os olhos me fuzilaram. Ele
balançou a cabeça negativamente.

Graças a Deus a escuridão me impedia de ver o seu rosto.


CAPÍTULO 23

— Assim, parceiro? Assim?

Faltou coragem para responder. Mantive o revólver em direção ao peito dele. A


escuridão do apartamento ainda lhe ocultava o rosto.

— Espero que pelo menos não tenha machucado a Tânia. Dinheiro eu recupero. Vou
comer teu cu por essa rataria, entendeu? Entendeu, seu filho da puta? Você está morto. E por
pouco.

— Cale a boca, seu merda. — Tânia falou por trás de mim.

O olhar dele me atravessou como se nada houvesse em sua frente. Ele jogou o saco
de dinheiro em cima do sofá e o dedão na boca.

— Entendi tudo. Já entendi. E nem precisam desenhar. — Cuspiu em minha direção.


— Vai me trair por buceta, parceiro? Dela? Espero que tenha gostado de comer bem ali onde
eu amaciei. Filhos da puta.

Tânia jogou um ferro de passar roupas nele, sem chegar perto do alvo.

— Tá vendo, seu filho da puta? Tá vendo? Acha que é quem? Acha que se envolveu
com quem? É isso que você pensa de mim, não é? Idiota do caralho. Seu merda.

Outra risada. Cada vez mais perdendo a seriedade. O tipo de risada que te faria correr
de uma rua escura. Uma risada que eu nunca mais esqueceria.

— Os dois? Acham que vão me substituir? Os dois? Acham que alguém vai seguir
vocês? Uma puta e um traidor? Esse negócio todo é sobre respeito, seu merda. É respeito.
Entenderam? Uma arma e uma quantidade de drogas qualquer merda pode conseguir. Não é
matar. Nunca foi sobre matar ou ter coragem. É só respeito. O que acham que impede esse
monte de bandido trabalhando pra mim de me roubar ou encher de bala? É respeito. Sabe
quem vai respeitar uns cuzões, uns merdas traidores igual vocês? Ninguém.

Sentia as gotas de suor se acumulando na ponta de meu nariz. Queria enxugar, mas
nada no mundo me faria tirar uma das mãos do revólver. Nada na vida me faria fraquejar
naquele momento. Sabia, tão certo quanto dois e dois são quatro, o primeiro vacilo resultaria
em Amarelo fodendo legal comigo. E eu não queria ser fodido.

Tânia se aproximou dele, pisando forte e andando devagar, sem pressa alguma. Bateu
com o indicador na ponta do nariz dele.

— Traidores? Não, não. Dois amigos que sempre estiveram com você até sua morte.
Afinal, esses paulistas de merda ficaram abusados. Resolveram matar você. Nós vamos
conduzir a busca pela sua vingança. — Riu. — E você será um herói. Um símbolo pelo qual
valerá a pena lutar.

Ele deu um passo mais perto dela.

— Ninguém vai acreditar numa merda dessas.

— Já acreditaram uma vez. Você mesmo acreditou. Os outros também irão pelo
mesmo caminho.

Silêncio denso no local. Se não se tratasse da situação em que estávamos, seria o


momento de alguém perguntar algo sobre o tempo, futebol, política ou outra coisa.

Foi rápido. Amarelo voou para cima de Tânia e a dominou antes que eu tivesse
reação. Quando se virou para mim, estava com ela em frente ao seu corpo. A postura dela
mudou. O mais tênue desespero por alguém que já me viu atirando e não confiava em minha
mira.

Andei para ganhar mais distância deles.

— É. Acho que o negócio vai ficar cada vez mais interessante, não vai? Tua
amiguinha devia ser mais esperta. Vadia.

Tânia deu um gritinho.

— Ela vai morrer — continuou. — Melhor você abaixar essa arma, parceiro, pegar o
dinheiro e ir embora. Essa piranha eu mato. Você, me arrumo depois.

Disparei. Duas vezes. Essa atitude me deu uma vantagem importante: a surpresa. Ele
imaginou que eu não machucaria Tânia. Eu também imaginava.
Pessoa inocente que sempre fui, achava que as balas atravessariam o corpo e os dois
cairiam. Engano. O cinema mentiu para mim, quem diria? Acertei duas vezes em Tânia. Uma
no seio esquerdo, outra na barriga. A camisa branca manchou de vermelho.

Amarelo jogou a menina no chão. E foi a abraçando. Ele gostava dela. Pensei que
teria algo de poético nesse final. Os dois morrendo abraçados, juntos. Ou seria apenas um
clichê?

Descarreguei mais duas balas nas costas de meu amigo. Ele ficou por cima dela.
Duas balas na cabeça para finalizar o trabalho. Ninguém saberia. Só restava pegar o dinheiro e
ir embora. Larguei a arma.

— No chão, seu filho de uma puta!

Uma voz familiar, bonita, e investida de autoridade policial às minhas costas. Virei
em direção a porta e me deparei com um policial segurando a maior pistola que já vi em toda
minha vida. Andei para ela com as mãos estendidas. Ouvi o estouro e senti uma queimação
nas pernas. Indolor. Fiquei mais alguns segundos de pé, vendo a sala encher de pessoas, antes
de finalmente cair, olhando para o teto.

A luz acendeu e a policial que disparou em mim apareceu no meu campo de visão,
permitindo pela primeira vez que eu visse o rosto dela. Era desnecessário, óbvio. Eu passara
os últimos meses sonhando com a dona daquela voz.

O riso frio de Bárbara fixou bem em minha mente antes de apagar.


CAPÍTULO 24

— Não me foda, cara. Não vai morrer aqui.

Gritei. Alguns problemas em minha cabeça. Porém, o mais importante, eu não estava
em um hospital e nem estava em uma delegacia. O galpão era enorme e vazio.

Estava solto. Correria menos que uma tartaruga perneta. E cega. Bárbara sentada na
única cadeira do recinto. A pistola descuidada em cima de sua coxa. Era a mesma pessoa e
ainda assim era outra.

— Era pra você ter pego o dinheiro e me encontrar na rodoviária. Nada mais que
isso. Como você não consegue seguir um plano simples desse? E foi você quem elaborou.

Procurei me ajeitar com os cotovelos e me apoiei na parede. Ela estava linda, mesmo
de rosto limpo. Nenhuma das marcas antigas.

— O plano apresentou algumas inconformidades.

Ela riu.

— Acho que você pode falar assim. Temos um problema enorme aqui, não acha?
Muitas pessoas tiveram de mudar os planos Sem mortes, sem problemas. Só precisávamos do
dinheiro. Teríamos Amarelo preso outra vez. Uma pessoa fácil de manejar no lugar dele. —
Me apontou o dedo. — E você ficaria livre. Teríamos te mandado para um lugar seguro.

— Fui um otário esse tempo todo.

— Otário? Não seja tão rígido com você. Iludido. Não há problema algum com isso.
Quer dizer, na verdade há. De sua maneira você nos fodeu também, logo não dá para dizer
que é um otário.

Balancei a cabeça. Manter a voz numa altura razoável era de um esforço danado. A
ferida doía de verdade agora que a surpresa tinha acabado.

— Traidor e manipulado. Que lindo.

— Você não sabia que estava ajudando a polícia. Não seja rígido com você.
— O efeito foi o mesmo.

— Foi.

Ficamos em silêncio. Num lugar desses, parece dois séculos. Larissa me esperava em
casa.

— Como eu fico? — Falei.

— Só quer saber isso?

— Eu quero saber um monte de coisas. Tenho um monte de perguntas. O problema é


que as respostas não importam mais. Entendo um pouco sobre bodes expiatórios. Não podem
ficar vivos para alegar inocência e estragar uma cena bem armada.

Ela riu novamente aquele riso anterior, o riso da garota inocente que apanha do
marido policial e mau. Foi o primeiro estalo que tive sobre o quanto sou idiota. Primeira vez
na vida.

— Você realmente não é otário.

— Sim. Algumas pessoas são inteligentes demais para o próprio bem. Vocês me
tiraram de lá, então acho que teriam algum plano extra onde me encaixo.

— Temos sim. Ah, se temos. Foi difícil, mas configuramos um bom caso para a
mídia. Vai ficar como se tivessem se matado. — Massageou as têmporas. — Ninguém se
importa com dois bandidos se abatendo. É de comemorar. E você...

— Estou fodido.

— Sem dúvida alguma.

Ela me entregou a pistola que estava em sua posse.

— Vai gostar disso. Planejo voltar aqui em algumas horas. O que não planejo é, vou
avisar já, chegar aqui e lidar com situações desagradáveis. Tudo está preparado. Essa pistola
em suas mãos tem uma história. Foi utilizada em algumas chacinas.

A arma era preta igual a tantas outras.


— Alguns policiais ficariam satisfeitos de encontrar essa arma na mão de alguém.
Por baixo uns vinte homicídios. Talvez mais.

O idiota aqui tinha segurado ela e examinado com interesse. Digitais.

— Dou umas três horas até você resolver o que fazer. Tenho um gravador aqui
também, caso queira dizer alguma coisa para alguém. Se lembre. Tudo está pronto, mas eu
sou uma pessoa muito legal. Apenas esperamos que você cumpra sua parte.

Se aproximou e me deu um beijo. Eu retribuí. Alguns amam ser otários. Vi Bárbara


pela última vez me dando as costas. Falou alto o suficiente para eu ouvir.

— Tem apenas uma bala. Entenda como quiser.


CAPÍTULO 25

Pensando no começo dessa história, lembro do choro de meu filho. Volto alguns
meses, quando perdi a paciência e soquei a cara do meu chefe. Justa causa na carteira.
Descontrole emocional. Problemas para conseguir outro emprego. Estava difícil para os
qualificados com cara de ator de novela, imagine alguém que mal completou o ensino médio.
Ali foi o início.

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