Romilda Costa Motta PDF
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Departamento de História
Dissertação de Mestrado
São Paulo
2010
Romilda Costa Motta
São Paulo
2010
Resumo
Abstract
This Master thesis analyzes the five volumes of Memorias by the Mexican
intellectual José Vasconcelos (1882-1959), who had an important role in Mexican politics
and culture during the post-revolutionary period. He has been Minister of Education
proposing relevant political and cultural projects. He ran for presidency in 1929 and was
defeated. I intend to analyze the five tomes of his Memorias to understand the arguments
created by the author to elaborate images of himself and also the built of his own project
of memoir.
Agradecimentos
Meu carinho aos amigos Amanda Vasquez Ramalho, Ubirajara Prestes Filho e
Cristiane Camacho. Destes, em especial, tomei bastante tempo. Entretanto, sei que a
amizade, respeito e admiração que nos une dão-me liberdade para incomodá-los, sempre
que necessário. Na etapa final, foi fundamental o apoio da Daniela Carvalho e da Gisele
Maranhão, a quem também agradeço imensamente.
Sumário............................................................................................................................. 6
Introdução ......................................................................................................................... 7
Capítulo 1. As Memórias de José Vasconcelos – A escrita autobiográfica ................... 16
1.1– Sobre José Vasconcelos ...................................................................................... 16
1.2 - A escrita autobiográfica ...................................................................................... 28
1.3 - O historiador e as escritas (auto) biográficas ..................................................... 34
1.4 - As Memórias de José Vasconcelos ..................................................................... 42
Capítulo 2. Diálogos culturais ........................................................................................ 49
2.1 - José Vasconcelos e as correntes mestiçófilas no México ................................... 49
2.2 - América Latina como utopia. Conciliando mestiçagem e hispanismo na Raça
Cósmica ...................................................................................................................... 68
Capítulo 3. A construção de identidade nacional nas Memórias de José Vasconcelos. . 79
3.2 - O “presente decrépito” e as memórias de infância. ............................................ 91
3.3 - Mestiçagem e criollismo. Ideais vencidos? ........................................................ 99
Capítulo 4. Escrita como arma de combate pela memória. As imagens de si nos escritos
autobiográficos de Vasconcelos ................................................................................... 107
4.1 - A reencarnação de Quetzalcóatl, o deus civilizador ......................................... 107
4.2 - A alma dividida: a contemplação como prazer e a política como sacrifício .... 127
4.3 - De herói civilizador a profeta rejeitado ............................................................ 136
Considerações Finais .................................................................................................... 147
Bibliografia ................................................................................................................... 151
Introdução
1
BORGES, Vavy Pacheco. “Fontes Biográficas. Grandezas e misérias da biografia”. In: PINSKI, Carla
Bassanezi (org.). Fontes Históricas, 2ª edição. São Paulo: Contexto, 2006, p.203. Ver também
LEVILLAIN, Phillipe. Os protagonistas: da biografia. In: RÉMOND, René (org.). Por uma história
política. 2ª edição. Editora FVG, 2004, pags.141-176.
2
NORONHA, Jovita Maria Gerheim Noronha. “Apresentação”. In: LEJEUNE, Philippe. O pacto
autobiográfico: de Rousseau à internet. (org.) Jovita Maria Gergheim Noronha; Tradução de Jovita Maria
Gergheim Noronha, Maria Inês Coimbra Guedes. BH: Editora da UFMG, 2008, p.7.
7
gênero e voltando a debatê-lo.
3
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Citado por DOSSE, François. A História. Trad. Maria
Elena Ortiz Assumpção. Bauru, SP: Edusc, 2003.
4
DOSSE, François. A História. Op.cit., p 261.
5
Ibidem, p. 289
6
Ibidem. P.286
8
Ulpiano Meneses, a historiografia ganharia muito se os historiadores não abandonarem
a sua função crítica.7
Jacy Alves Seixas9 concorda com o que Pierre Nora afirmou em Os lugares da
10
Memória quanto à necessidade de uma postura crítica referente às relações entre
história e memória. Entretanto, diferentemente do que Halbwachs afirmou, quando
apresentou a memória como algo de caráter “espontâneo, natural e desinteressado”,
Seixas ressalta a necessidade de reflexão sobre suas finalidades políticas.
7
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. “A memória, cativa da história? Para um mapeamento da memória
no campo das ciências sociais”. In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. SP, nº 34, p. 9-24, 1992,
p. 22 e 23.
8
DOSSE, François. Op.cit., P. 305.
9
SEIXAS, Jacy Alves. “Percursos de memórias em terras de história: problemáticas atuais”. In:
BRESCIANI, Stella; NAXARA, Márcia (orgs.). Memória e (res) sentimento: indagação sobre a questão
sensível. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2004.
10
Pierre Nora identificou alguns dos “lugares da memória coletiva”, chamando de “topográficos”: os
arquivos, bibliotecas e museus; “monumentais”: cemitérios e as arquiteturas; simbólicos: comemorações,
peregrinações, aniversários, emblemas e também os “funcionais”: manuais, as associações e também as
autobiografias. Cf: LE GOFF. História e Memória. (Tradução Bernardo Leão... [et.al.]). - 5ª edição.
Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003, p. 467.
11
SEIXAS, Jacy Alves. “Percursos de memórias em terras de história: problemáticas atuais”. In:
Memória e (res) sentimento... Op. cit., p.42.
9
definir ou desconstruir suas identidades e territórios.” 12
Vavy Pacheco Borges, que tem se embrenhado no estudo das escritas (auto)
biográficas, chama a atenção para a necessidade dos interessados por tais fontes
pensarem em suas “grandezas e misérias”. 13 Essa pesquisadora recorda que elas são
fontes fecundas, mas, em contrapartida, apresentam limites para os quais o historiador
deve ficar atento. O enfrentamento da questão da subjetividade e as imagens parciais
presentes nas mesmas são parte da problemática que envolve o trabalho com a “escrita
de si”, exigindo esforço reflexivo e um trabalho rigoroso de análise crítica para que o
interessado na pesquisa não se deixe seduzir pela “verdade” do objeto de estudo e
encontre, mesmo dentro dos limites impostos, oportunidades para explorar as
representações do passado criadas pelo memorialista.
12
RAGO, Margareth; GIMENES, Renato Aloizio de Oliveira (orgs.). Narrar o passado, repensar a
história. Campinas: IFCH, Unicamp, 2000(Coleção Ideias), p.14.
13
BORGES, Vavy Pacheco. Op. Cit., p. 203.
14
Ângela de Castro Gomes (org.). Escritas de si, escrita da História. Rio de Janeiro: Editora da FGV,
2004, p.15.
10
México, especialmente entre as décadas de 1920 e 1930. Essa pesquisa trabalha com a
análise de suas Memórias, escritas durante a década de 1930, quando ele vivia uma de
três experiências de exílio voluntário.
15
PITOL, Sergio. “Liminar: Ulises Criollo.” In: Ulises Criollo. Ed. Crítica. Fell, Claude. (coord.) Op.
Cit.,p.xx.
16
Vasconcelos recebeu o título de “maestro de la juventud” por estudantes da Colômbia( 1923), Peru e
Panamá.
17
FELL, Claude. “Nota filológica preliminar”. In: Ulises Criollo. Ed. Crítica. Fell, Claude (coord.). Op.
cit.,p LXVII. Em 1968, o Movimento estudantil também fazia denúncias ao autoritarismo e controle
político colocados em prática pelos burocratas do PRI (Partido Revolucionário Institucional). Esse tema
foi um dos principais alvos de denúncia de Vasconcelos nas Memórias.
18
Sobre a atuação de Vasconcelos à frente da SEP: FELL, Claude. José Vasconcelos: Los años del águila
(1920-1925) Educación, cultura e iberoamericanismo en el México postrevolucionario. México: UNAM,
1989.
19
CRESPO, Regina Aída. Itinerarios intelectuales: Vasconcelos, Lobato y sus proyectos para la nación.
México: Universidade Autónoma de México, 2004.
11
projeto cultural e educativo de Vasconcelos. Outros se concentraram sobre a campanha
malograda de 1929.20 Na análise das Memórias, encontramos o trabalho da escritora e
crítica literária mexicana Martha Robles. A autora oferece uma importante contribuição
a esse trabalho por meio da obra Entre el poder y las letras. Vasconcelos en sus
Memórias.21
Martha Robles toca numa questão em que não há consenso entre aqueles que
estudam ou estudaram a figura de José Vasconcelos. Robles afirma que a derrota nas
eleições presidenciais de 1929 teria sido um fator determinante na vida de Vasconcelos.
A partir desse fato, Vasconcelos teria sido dominado por ressentimentos e ódios,
passando a emitir injúrias, depreciações, mostrando-se inapto a expressar juízos
políticos confiáveis, apresentando uma visão maniqueísta, com afirmações parciais e
insustentáveis, preocupado, apenas, em colocar a “sua verdade”. Especialmente em suas
Memórias. Robles, como outros autores, reconhece a dificuldade de uma análise “justa”
da personalidade, das palavras e dos atos de Vasconcelos,24 particularmente pelos rumos
que sua trajetória tomou entre as décadas de 1930 a 1950.
20
SKIRIUS, John. José Vasconcelos y la Cruzada de 1929. (Tradução de Félix Blanco) 2ª Edição.
México: Siglo Veintiuno, 1982,
21
ROBLES. Martha. Entre el poder y las letras. Vasconcelos en sus Memórias.México. Fondo de Cultura
Mexicana, 1989.
22
ROBLES. Martha. Op.cit., p.65
23
Ibidem, p. 59.
24
Carlos Monsivais é um desses autores que concordam com a afirmação quanto à dificuldade de
reconsideração da obra de Vasconcelos por conta, principalmente, de seus posicionamentos políticos
ligados à extrema direita, realizados a partir da década de 1940. Cf: MONSIVAIS, Carlos. “Notas sobre
la cultura de México”.In :COSÍO VILLEGAS, Daniel (org.). História General de México. México: El
Colégio Nacional, p.1428
12
projeto de memória. Alguns estudos sobre Vasconcelos, especialmente aqueles escritos
anteriormente à década de 1980, em geral, avaliaram sua ação como intelectual
engajado no período pós-revolucionário; após a saída do Ministério da Educação
Pública e a derrota nas eleições presidenciais, apresentando-o como alguém que utilizou
os seus escritos para enaltecer-se e/ou para detratar seus adversários. Partimos do
pressuposto de que a estratégia utilizada nas Memórias denota a construção de um
projeto: o desejo de intervir no presente político mexicano e deixar para a posteridade o
testemunho dos “verdadeiros fatos” e da grandiosidade do seu próprio “eu”. 25
Sendo assim, entendemos que, ao optar pela análise das chamadas escritas
“auto-referenciais” ou “de si”, o historiador deve ter claro que seus instrumentos
teóricos e metodológicos devem ser outros, descartando a preocupação com coerência
ou veracidade.
25
Cf. FREDRIGO, Fabiana de Souza. História e Memória no epistolário de Simon Bolívar (1799-1830).
Tese de doutorado/Unesp, Franca, 2005. O trabalho de Fabiana Fredrigo sobre Simón Bolívar ajuda e
inspira este projeto de pesquisa por ser um estudo cuidadoso de projeto de memória, onde a autora faz um
cruzamento entre memória individual e coletiva, avaliando como, através das cartas, Bolívar buscou
lapidar sua imagem para si, para seu grupo e para a posteridade.
13
textos não é sequer cronológica, e menos ideológica; é a unidade dionisíaca da
paixão”.26
14
visão sobre o passado recente.
Por fim, no capítulo IV, abordamos um tema imprescindível a esta pesquisa, que
é a análise das imagens de si, construídas nos tomos memorialísticos de José
Vasconcelos. Procuramos entender quais eram suas perspectivas na construção
voluntária do seu “eu”, discutindo as finalidades políticas ou o seu “projeto de
memória”. As duas principais imagens analisadas são as que fazem referência ao “herói
civilizador”, quando descreve suas lembranças ligadas à sua atuação junto à Secretaria
de Educação Pública, durante o Governo de Álvaro Obregón, entre os anos de 1920-
1924 e a do “profeta rejeitado”, quando Vasconcelos narra sua derrota na campanha à
presidência, em 1929. Nesse capítulo, buscamos identificar as manifestações de
ressentimentos nos seus escritos, discutindo suas conseqüências na prática política deste
autor.
Diante da possibilidade de fazer uma leitura dos cinco tomos das Memórias de
José Vasconcelos, o trabalho se propõe a explorar novas abordagens dentro da temática,
não ignorando as dificuldades de apreensão das subjetividades presentes, mas, mesmo
assim, procurando interpretar os objetivos de Vasconcelos ao narrar a sua vida,
estabelecendo sentidos e reconstituindo, então, a sua “ilusão biográfica”.28 As traduções
contidas ao longo da pesquisa são de nossa autoria.
28
BOURDIEU, Pierre. ”Ilusão Biográfica”. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína
(orgs.) 8ª ed. Usos e abusos da história oral. RJ: FGV, 2006, p.183/191. Bourdieu demonstra que, na
necessidade de o (auto) biografado organizar a narrativa com certo “sentido de existência”, significados,
linearidade, coerência, tentando unificar o “eu”, ignorando o fato de que as pessoas são multifacetárias,
acaba realizando a “ilusão biográfica”.
15
Capítulo 1. As Memórias de José Vasconcelos – A escrita autobiográfica
16
de Jurisprudência, embora o Direito nunca tenha sido sua área de maior interesse. Em
1906 formou-se como advogado. Sobre a escolha pela jurisprudência, escreveu em
Ulises criollo: “A disciplina legal me era antipática, mas oferecia a vantagem de
assegurar uma profissão lucrativa e fácil. A rigor, era minha pobreza o que me lançava à
advocacia”. 30 Após trabalhar por poucos meses como agente federal em Durango,
integrou-se à sucursal mexicana do escritório nova iorquino “Warner Jobson and
Gladston”, que defendia interesses de empresas ligadas à exploração de petróleo no
México.
17
de poetas, filósofos, pintores, escritores, advogados, entre outros. Em relação a alguns
de seus membros, destacam-se a presença de Alfonso Reyes, Antonio Caso, Pedro
Henríquez Ureña, Martín Luis Guzmán, Antonio Castro Leal, Diego Rivera e outros.
34
A expressão foi utilizada pela escritora mexicana Martha Robles como título de um livro onde essa
autora trata da atuação política e cultural de José Vasconcelos. Cf. ROBLES, Martha. Entre el Poder y las
Letras. Vasconcelos en sus memórias. México: Fondo de Cultura Económica, 1989.
35
Os exércitos “constitucionalistas” ou os “convencionistas” pertenciam a diferentes Estados mexicanos
que participaram da Convenção de Aguascalientes que buscavam um acordo entre os vários chefes das
divisões, durante a fase armada da Revolução. Eulálio Gutiérrez, chefe de San Luis de Potosí, foi
designado presidente interino até que o país pudesse escolher o próximo presidente. Entretanto, as
divergências políticas e ideológicas logo provocaram a cisão do grupo e o retorno a uma fase de muita
agitação revolucionária. VER AGUILAR CAMÍN, Héctor & MEYER, Lorenzo. À sombra da Revolução
mexicana. Trad. De Celso Mauro Paciornick. SP: Edusp, 2000 (Ensaios Latino- Americanos, 5),pags. 56-
71.
18
Nesta etapa de primeiro exílio, iniciada em 1915, viajou ao Peru como Diretor
da agência das Escolas Internacionais de Scheneltady, onde tomou contato com José de
la Riva Agüero. Pronunciou conferências em Universidades de países da América do
Sul e Central. Em 1917, voltou aos Estados Unidos, residindo nas cidades de San Diego
e Los Angeles. Atuou como advogado, frequentou bibliotecas norte-americanas e
publicou livros. Seu primeiro livro, Pitágoras, una teoria del ritmo, foi publicado
primeiramente em Havana; Prometeo Vencedor (1917), publicado em Madri e
Monismo Estético(1918) e Estudios Indostánicos(1920), no México. Durante os anos de
exílio, manteve-se informado dos acontecimentos políticos mexicanos por meio de
cartas e também pela imprensa. Com a queda de Carranza, Vasconcelos voltou ao
México, onde foi nomeado reitor da Universidade Nacional do México, pelo Presidente
provisório Adolfo de la Huerta( 1920), iniciando, a partir daquele ano, uma campanha
em favor da cultura e da educação no México.
19
unidade nacional por meio da cultura, visto que o México era um país com múltiplas
diferenças linguísticas, étnicas e regionais. 37
20
que nós intelectuais devíamos e podíamos fazer algo pelo México (...) E este fazer41
algo não era por suposto escrever ou discursar; era trabalhar por uma obra de benefício
coletivo”.42
41
Grifo do autor
42
COSÍO VILLEGAS, Daniel. Ensaios y Notas, T.I.México: Editorial Hermes, 1996, p. 14. Citado por
KRAUZE, Enrique. Op. Cit., p.13.
43
Vasconcelos escreveu que a viagem que fez em 1922 por alguns países da América do Sul - inclusive
pelo Brasil - quando era Ministro de Álvaro Obregón, trouxe inspiração para a elaboração de sua teoria
em defesa da mestiçagem.
44 Em Indologia, constam orientações de sua política educativa e cultural como Ministro da Educação,
21
Rubio,45 do Partido Nacional Revolucionário, candidato sem tanta projeção até aquele
momento, teve o apoio interno de Calles, “Chefe Máximo da Revolução”, da alta
hierarquia do exército, da burguesia mexicana e o apoio externo, por parte dos Estados
Unidos, representado pelo embaixador Dwight Morrow.
45
Até o dia da Convenção, realizada em Querétaro, em março de 1929, tudo indicava que o
“Obregonista” Aarón Sáenz seria o nome aprovado pelo partido. No último momento, numa manobra de
Calles, que coordenava a “família revolucionária”, o nome de Ortiz Rubio foi indicado como candidato
do PRN. Cf: AGULIAR CAMÍN & MEYER. Op. cit., p.125
46
Cf: VILLAR, Ernesto de La Torre; Navarro, Moises González e Ross, Stanley (orgs.). História
Documental de México Tomo II. México: UNAM, Instituto de Investigaciones Historicas, 1974, p. 486.
22
a Calles, intelectuais que apoiavam esse político, a outras lideranças políticas e ex-
correligionários.
47
TARACENA, Alfonso. Cartas políticas de José Vasconcelos. México: Clasica Selecta – Editora
Librera, 1959, pags. 88 e 89. Carta enviada de Somió, Espanha, em maio de 1933.
23
ignorar, também, que tinha urgência na questão, devido a dificuldades econômicas que
enfrentava.48
Após fazer contato com vários periódicos no México, Estados Unidos e com
uma revista em Cuba, Taracena efetuou contratos para que o conteúdo fosse publicado
em forma de folhetins em alguns órgãos de comunicações. A revista mexicana, de
publicação mensal, Sistema, publicou em forma de folhetins, entre dezembro de 1934 e
abril de 1935, a obra sob o título de “Las memórias del licenciado Don José
Vasconcelos”. Em abril, Sistema emitiu uma nota avisando aos leitores que aquela seria
a última edição contendo as memórias de Vasconcelos. Afirmando lamentar a
interrupção, explicava aos leitores que o fato ocorrera por causas alheias à vontade da
editora e que obedecia ao cumprimento de um convênio acertado entre o autor e uma
empresa editorial, que faria a edição completa em forma de livro. Outras revistas
mexicanas publicaram fragmentos: El Diario de Yucatán, La Palabra e na capital, a
Revista de Revistas. Em Cuba, durante 15 semanas, ao longo dos meses de janeiro a
abril de 1934, a revista Bohemia também publicou trechos das memórias de
Vasconcelos. A publicação foi interrompida sem explicações prévias. Bohemia e
Sistema contaram com ilustrações em suas edições e o assunto teve boa aceitação entre
os leitores.49
48
Numa carta enviada de Somió, na Espanha, em julho de 1933, lemos: A proposta de Revista de Revistas
me parece muito pouco, para ter a exclusividade na capital, mas se não houver outra oferta, teremos que
dá-la a este preço. Pensei no Ômega, não por ter relações pessoais ou preferência e sim porque imaginei
que se atreveriam a publicar. Hermínio (genro) me disse que talvez o Gráfico ou La Prensa, da capital,
pudessem pegá-las. Mas você saberá se é ou não prudente propô-las. Em todo caso, autorizo-o a decidir
sobre o assunto sem consultar-me e certo de que qualquer coisa que se consiga me beneficia, dado que
estou ficando bastante apertado. Você não sabe o quanto fico agradecido. In: TARACENA, Alfonso. Op.
cit., p. 92/3
49
Cf: FELL, Claude. “Nota filológica preliminar”. In: VASCONCELOS, José. Ulises Criollo. Ed. crítica.
FELL, Claude (coord.). Op. Cit., p. LXX.
24
mexerico permitiria ganhar algum dinheiro. Equivoquei-me e
suspendo, mas te rogo que não penses que esta suspensão implica o
menos desconhecimento dos esforços que você tem feito e que lhe
agradeço de todo o coração (...).50
Em março de 1934, recorreu mais uma vez a Alfonso Taracena para fazer o
contato com editoras. Sugeriu um novo título, substituindo a ideia inicial de “Odiseo”,
justificando que escrevia, naquele momento, outro livro de conteúdo educativo que se
chamaria De Robinson a Odiseo. 51 Como não queria confusões nos títulos, sugeriu
“Ulisses Criollo” e não apenas “Memórias”, pois cria que o título não era chamativo e
não dizia nada por si só.52
50
Carta enviada de Adrogué, província da Argentina, em dezembro de 1933. In: TARACENA, Alfonso.
Op. Cit., p.99.
51
Vasconcelos afirma nessa carta que o conteúdo desta obra seria uma contestação à obra de Dewey e
seus sistemas Robinsonianos, apresentando a defesa da volta ao latinismo e do classicismo em matéria
educativa.
52
Carta enviada a Taracena, em dezembro de 1934. In: TARACENA, Alfonso. Op. Cit., p.148.
53
Acredita-se que tenha sido impresso um número muito maior de livros do que o afirmado pela Editora
Botas. No prefácio da edição realizada pela editora Trillas, Emmanuel Carballo escreveu: É provável, e
afirmo como hipótese de trabalho, que de “Ulises” tenham sido feitas mais de vinte e duas edições até
25
tornando-se um dos livros mais vendidos na primeira metade do século XX, no
México. 54 Entre julho e agosto de 1935, ocorreu o maior número de críticas e
comentários em jornais como El Universal, Excélsior e El Ilustrado a uma obra
publicada no México.55 Mesmo aqueles que criticavam o conteúdo histórico e político
da obra, não deixaram de perceber a sua qualidade literária, transformando-a numa
referência na literatura mexicana. 56
1938. O primeiro titular dos direitos, Botas, parece que imprimiu unicamente treze edições, cujo número
não ultrapassa os trinta e seis mil. Creio que estes dados não correspondem à realidade, já que as
“Memórias” de Vasconcelos, sobretudo “Ulises”, foram o best seller histórico-literário mais
surpreendente de nossos anos trinta e quarenta.CARBALLO, Emmanuel. “Prólogo” a Ulises criollo.
México: Editorial Trillas, 1998, p.41. Citado por FELL, Claude. Op. Cit.,p.XL.
54
A análise das cartas trocadas entre Vasconcelos e Taracena nos possibilita afirmar que, apesar do
sucesso de vendas que foi Ulises criollo, Vasconcelos não obteve muitas vantagens financeiras no
negócio com a Editora Botas. Um dos motivos, já apontado por Emmanuel Carballo na nota anterior, teria
sido a dificuldade de confirmar a exatidão nos números de livros anunciados e os verdadeiramente
publicados por Botas. Outro fator foi o acordo assinado na época com a editora, que pagou um valor
menor que os demais livros de Vasconcelos, editados no México. Sabe-se que nem Vasconcelos nem
Taracena poderiam imaginar, é claro, as dimensões comerciais que a obra tomaria. Taracena fez questão
de responder àqueles que o acusaram de ter prejudicado Vasconcelos, devido ao “péssimo acordo” feito
com Botas para a edição do primeiro volume do conjunto memorialístico e que ainda citavam números
que apontavam para 60 mil exemplares vendidos, sendo que Vasconcelos não teria recebido por seus
direitos de autor, nem 60 mil pesos. Sobre a questão, Taracena justificou: Em primeiro lugar, os que
assim falavam, não entendiam de livros, uma palavra. Dificilmente mencionam-se livros modernos em
espanhol, que alcancem tanta circulação e ainda em tão curto tempo (...). Incluiu uma carta enviada pelo
genro de Vasconcelos, em que o mesmo afirmava que o proprietário intelectual das Memórias estava de
acordo com o valor acertado com a editora - mil pesos mexicanos, pela tiragem de cinco mil exemplares -
Afirmou ainda que Vasconcelos havia dado provas de não concordar com a acusação feita, pois seu
segundo livro, La tormenta, fora dedicado a ele, Taracena. Cf: TARACENA, Alfonso. Op. Cit., p.
140/141
55
Sobre a recepção crítica de Ulises Criollo, ver: REVUELTAS, Andrea. “El Ulises criollo de
Vasconcelos: recepción de la crítica”. Op.cit., p.593-612.
56
Cf.Revueltas, Andréa. “El Ulises Criollo de Vasconcelos: Recepción crítica”. In: Ulises Criollo. Ed.
crítica. Coodenação de Claude Fell. Op. cit.p.583-612. Andréa Revueltas afirma que chegaram a sugerir
Ulises Criollo como um dos concorrentes ao Prêmio Nacional de Literatura de 1935, por ser considerado
o melhor livro do gênero, naquele ano. Revueltas inclui em seu texto um artigo escrito na época por Juan
Franco para o jornal Excélsior (28-12-1935, p.5), que questionava se o júri teria o “valor civil” ou
“espírito de justiça” requerido em tal julgamento, para premiar o livro de um inimigo do Governo, quase
um “conspirador?” O ganhador do prêmio foi Gregório López y Fuentes, com o romance El índio.
Segundo Revueltas, uma obra que combinava bem mais com a atmosfera cultural da época, dominada por
um realismo socializante.
26
mesmo autobiografias que objetivavam dar a outra versão dos fatos em respostas às
“calúnias” presentes na obra de Vasconcelos. 57
57
Alberto J. Pani, chamado por Vasconcelos nas Memórias de “Pansi”, foi um destes personagens que
buscaram responder aos ataques de Vasconcelos. Qualificou a obra como um “mero romance” e atribuiu
as críticas de Vasconcelos à “frustração de um perdedor”. Cf: PANI, Alberto J. Mi contribuición al nuevo
régimen, 1910-1935. (A propósito de Ulises Criollo, autobiografia del licenciado José Vasconcelos).
México: Editorial Cultura, 1936.
58
PITOL, Sergio. “Liminar: Ulises Criollo.” In: Ulises Criollo. Ed. Crítica. Fell, Claude. (coord.) Op.
Cit., p.xx.
59
VER: I. BAR- LEWAW. “La revista Timón y la colaboración nazi de Jose Vasconcelos”. AIH. Actas
IV (1971) In: http://cvc.cervantes.es/obref/aih/pdf/04/aih_04_1_018.pdf. Acesso em 27/01/2010.
60
Na última publicação de seus tomos memorialísticos, ainda em vida, com 76 anos, Vasconcelos
suprimiu muitos trechos da versão original. Especialmente aqueles que descreviam suas “tentações
carnais”. Com a ajuda dos censores da editora católica, JUS, apresentados como dois sábios amigos que
me prestaram o serviço de suprimir excessos, sem modificar nem uma vírgula, o que foi acordado em
27
Flama, seu último tomo memorialístico, que seria publicado postumamente, e começou
a colaboração na organização de suas Obras Completas. Sua morte ocorreu na cidade do
México, no ano de 1959, aos 77 anos, após ataque cardíaco. No momento, possuía
títulos “Honoris Causa” das Universidades do Chile, da Universidade Nacional
Autônoma do México, de Guadalajara (Jalisco), de Porto Rico, de El Salvador e da
Guatemala.
comum. Justificou o corte dizendo: Os anos passaram e não poucos dos sucessos e cenas que tive que
relatar me causam, no momento, uma repulsa viva. Já que não é possível destruir o que foi, pelo menos
nos resta o recurso de apagar aquilo que não merece recordação. Talvez isto explique a aparição das
edições expurgadas: o desejo de não contaminar a consciência do leitor com nossas próprias misérias e
iniquidades. Necessita-se de outra consideração e é a de que, limpando a casa, podemos receber sem
vergonha a visita daquele setor de leitores que é mais estimável de todos, o que está constituído por
almas puras, inocentes e nobres e que, por sorte, abundam em todo tempo e lugar. VASCONCELOS,
José. Ulises Criollo. Edición Expurgada. México: Editorial JUS, S.A., 1958, p. 5. In; Ulises Criollo/José
Vasconcelos; Edición critica. FELL, Claude (coord.). Op. cit.,p. LXXX.
61
Enrique Vila-Matas, escritor catalão
28
hipóteses de trabalho na teorização sobre a escrita autobiográfica.62 Em nosso trabalho,
recorreremos algumas vezes a esse autor.
Na obra referida, Lejeune fez um esforço para tentar definir as categorias que
63
formam o “gênero autobiográfico”. Utilizaremos as definições deste autor como
referência em nosso trabalho. Temos ciência quanto ao risco de cairmos no erro da
rigidez de definições de termos, e não desejamos ignorar o ensinamento tirado por
Lejeune quanto à importância de considerar a elasticidade e a polissemia das palavras.
Consideramos fundamental esclarecer que nessa tentativa de identificação de pequenos
distanciamentos, não buscamos o enquadramento dos gêneros, visto que temos total
clareza quanto à possibilidade de quebras de normas, devido ao fato de os gêneros
memórias e autobiografias serem caracterizados por fronteiras fluidas. Entendemos que
a distinção entre os gêneros vizinhos seja algo meramente formal. Entretanto, por uma
questão “didática”, optamos por ressaltar pequenas diferenças entre “memórias” e
autobiografia, apontadas por Lejeune, já que usaremos constantemente as expressões ao
longo do trabalho e não gostaríamos que tal ação fosse vista como realizada de forma
impensada.
62
A historiografia francesa e a brasileira voltaram-se, com maior interesse, para as fontes privadas ou
arquivos pessoais, a partir da década de 1970. GOMES, Ângela de Castro. “Nas malhas do feitiço: o
historiador e os encantos dos arquivos pessoais”. In: Estudos históricos. Rio de Janeiro, v.11, nº 21, 1998,
pags. 3 e 4. Disponível em http://www.cpdoc.fgv.br/revista/asp/dsp_edicao.asp?cd_edi=39. Acesso
27/01/2010. A paginação fornecida da revista Estudos Históricos corresponde à versão eletrônica,
seguindo uma numeração a partir da página 1, em cada artigo fornecido pelos respectivos autores.
63
Lejeune inaugurou seus estudos sobre a escrita autobiográfica em 1973, com L´autobiographie em
France. Em 1975, lançou sua primeira de O pacto autobiográfico, depois em O pacto autobiográfico
(bis), em 1986 e finalmente O pacto autobiográfico, 25 anos depois, em 2001. Desde então, este
intelectual fez revisões importantes referentes a vários posicionamentos teóricos colocados na primeira
versão, sobre os quais não nos deteremos a discutir neste momento. Algumas destas revisões referem-se
às categorias que Lejeune colocou na primeira versão como “absolutas”, na tentativa de sistematização
dos gêneros vizinhos da “autobiografia”: memórias, biografia, romance pessoal, poema autobiográfico,
diários e auto-retrato ou ensaio. Na segunda versão de sua obra, após a repercussão das ideias defendidas,
reconheceu e alertou que elas não são e nem devem ser apresentadas como absolutamente rigorosas,
devendo-se admitir sempre posições intermediárias. Reconheceu que há situações em que as categorias
não se encaixam nas definições e por outro lado, outros gêneros também poderiam ser, dependendo da
interpretação, considerados “autobiográficos”. Cf: LEJEUNE, Philippe. Op. Cit.,74.
64
Lejeune brinca com a afirmação que se tornou comum de que seria sua essa definição, dizendo que
simplesmente reformulou algo que já estava presente nos dicionários Larrouse, desde 1886. Cf: “O pacto
autobiográfico (bis)”. In: O pacto autobiográfico. De Rousseau... Op. cit., p. 50
29
real faz de sua própria existência, quando focaliza especialmente sua história individual,
em particular a história de sua personalidade”.65
Para o gênero vizinho, “memórias”, Lejeune afirmou que elas podem tratar-se
de uma história de uma personalidade, de sua vida individual, mas não há uma
obrigatoriedade. Na maioria das vezes, a narrativa limita-se a representar um
testemunho pessoal do autor personagem sobre um fato histórico, alheio à sua vida
pessoal.
Na discussão sobre os dois gêneros, os estudiosos crêm que a única certeza,
quando se trata desse assunto, é o fato de que as diferenças entre autobiografia e
memória são muito tênues. Por isso mesmo, são considerados “gêneros vizinhos”. As
semelhanças são indiscutíveis, mas, conforme as definições colocadas por Lejeune,
defendemos ser possível identificar, além das inúmeras aproximações, pequenas
diferenças entre esses dois tipos de escrita confessional.
Ambas são narrativas que têm a característica de uma visão retrospectiva,
contando com uma distância do fato ocorrido e fazendo com que o autor-narrador
organize os acontecimentos descritos, munido de um saber prévio, colocando-se como
um “profeta retrospectivo”. Tratam-se também de textos produzidos sob o amparo da
memória e centrados no sujeito.66 Enfim, sustentamos que as Memórias de Vasconcelos,
atendem às características que Lejeune destacou como exigências para uma “autêntica”
autobiografia, pois preenchem as características do gênero na sua forma mais clássica.
No entanto entendemos, também, que não estaremos incorrendo em erro quando nos
referirmos à obra, tratando-a como memórias. Talvez possam ser adequadamente
chamadas de “memórias autobiográficas”.
65
O grifo é do autor, desejando chamar a atenção para o fato de que uma autobiografia pode conter
também fatos que não sejam diretamente ligados à vida pessoal do autobiógrafo. LEJEUNE. Phillipe.
Op.cit., p.49.
66 Sobre essa questão, ver também: FOISIL, Madeleine. “A escrita de foro privado”. In: ARIÉS, P;
CHARTIER, R (orgs.). História da Vida Privada. Da renascença ao Século das Luzes. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991. 3º vol.p. 331-369. Entre outras questões, Foisil explora também as
diferenças entre “memórias históricas” e “memórias da vida privada”, ressaltando a dificuldade e riscos
de sistematização deste último tipo de documento citado.
67
FOUCAULT, Michel. O que é um autor. 2ª edição. Tradução de António Fernando Cascais e Edmundo
Cordeiro. Vega: Passagens, 1992.
30
importante da vida ascética na subjetivação do discurso por meio dos hypomnemata 68 e
das correspondências.69 Concentraremos nossa atenção no momento nos hypomnemata,
elemento importante da vida ascética, por atuar como “arma de combate espiritual” e
adestramento de si pela escrita.70 Os hypomnemata eram espécie de “cadernos pessoais”
que atuavam como memória material das coisas ouvidas ou pensadas. Neles estavam
presentes citações, fragmentos de obras, exemplos e ações de que se tinha sido
testemunha, relatos lidos, reflexões e debates ouvidos ou que tivessem vindos à
memória. 71 Também serviam como matéria prima para a redação de tratados mais
sistemáticos, onde eram fornecidos argumentos e meios para lutar contra este ou aquele
defeito, ou para ultrapassar esta ou aquela circunstância difícil (luto, ruína, exílio...). 72
Objetivava-se tê-los sempre à mão para utilizá-los, quando necessário, na ação, servindo
como “tesouros acumulados”, aos quais se recorria posteriormente para releitura e
meditação. 73
Foucault alerta para algumas questões ligadas aos hypomnemata. Eles não
devem ser vistos como simples auxiliares de memória e, sim, como material de
enquadramento para exercícios a realizar frequentemente: ler, reler, meditar, entreter-se
a sós ou com outros.
Por mais pessoais que possam parecer ser, também não devem ser entendidos
como diários íntimos, ou como aqueles relatos de experiências espirituais (tentações,
lutas, fracassos, vitórias) encontrados na literatura cristã ulterior. Numa sociedade
marcada fortemente pela tradição, o valor reconhecido ao já dito, pela recorrência do
discurso pela prática “citacional”, tal instrumento terminava por se tornar um veículo
68
Na acepção técnica, os hypomnemata poderiam ser livros de contabilidade, cadernos pessoais, que
serviam de agenda. O uso como livro de vida ou guia de conduta parece ter-se tornado corrente entre um
público cultivado.
69
Ao tratar dos dois instrumentos utilizados na antiguidade como “adestramento de si por si mesmo”
Foucault fala dos hipomnemata e das correspondências, ressaltando que os primeiros, apesar de terem
como finalidade a constituição de si, não “constituem uma narrativa de si mesmo”, visto que o seu papel
era permitir a construção de si a partir da recolha do discurso dos outros. Em contrapartida, as
correspondências, sim, eram uma prática cultural que dava lugar ao exercício pessoal. Cf: FOUCAULT,
Michel. Op. Cit., p. 137
70
FOUCAULT, Michel. Op. Cit.,p. 137
71
Ibidem. P. 135.
72
Ibidem. Pags. 134 e 135.
73
Ibidem. P. 135
31
importante na constituição de uma identidade a partir da recolha do discurso dos outros,
74
captando o já dito.
74
Ibidem, p.137
75
FRAIZ, Priscila. “A dimensão autobiográfica dos arquivos pessoais de Gustavo Capanema. In: Estudos
históricos. Op. cit., p.5.
76
Ver também CALLAGARIS, Contardo. “Verdades de autobiografias e diários íntimos. In: Estudos
históricos. Op. Cit.,p.5. Callagaris faz referência ao trabalho de Gusdorf, que afirma que o “ato
biográfico” é historicamente e culturalmente datado ( fim do século XVIII), entendendo que a condição
básica para esta prática cultural foi dupla: a saída de uma sociedade tradicional e (portanto) o sentimento
da história como aventura autônoma e individual.
77
Em alguns momentos de seus relatos memorialísticos, Vasconcelos faz uso desse recurso de estabelecer
um diálogo direto com seus leitores, provocando-os através de expressões como: “julgue o leitor” ou “(...)
mas eu pergunto ao leitor”. Cf: VASCONCELOS, José. El Desastre. P.73, 174 e 175.
78
Philippe Lejeune, estudioso da escrita autobiográfica, acrescenta que o fato de alguns teóricos
definirem o século XVIII como um marco, não quer dizer neguem a existência de uma literatura pessoal
anterior ao período citado e fora dos limites geográficos europeus. Lejeune defende simplesmente que “a
maneira como pensamos hoje, a autobiografia torna-se anacrônica ou pouco pertinente fora desse
contexto. Cf: LEJEUNE, Philippe. “O pacto autobiográfico”. In: O pacto autobiográfico. De Rousseau à
internet. NORONHA, Jovita Maria Gerheim (org.). BH: Editora da UFMG, 2008, p. 14.
32
naquela obra, o autor “explícita e conscientemente” se toma como objeto de análise, ao
afirmar: “Assim, leitor, sou eu mesmo a matéria deste livro”.79
Há consenso no fato de que o fortalecimento do gênero começou a ser percebido
e definido com a emergência e consagração do “indivíduo moderno”, mais
marcadamente na segunda metade do século XVIII, quando o homem ocidental adquire
uma convicção histórica de sua existência.80 Com a consciência do eu privado, tal como
entendemos hoje, foi fortalecida a ideia de um indivíduo único e singular, trazendo a
convicção de que a trajetória, as razões, sentimentos e verdades individuais têm uma
importância que até então não era conhecida, tornando-se matéria digna de ser narrada
como uma história e que pode sobreviver na memória de si e dos outros.81
Na obra já citada, O que é um autor, Foucault estabeleceu um parentesco entre a
escrita e a morte, ressaltando que há muito tempo a arte de narrar já havia se tornado
uma estratégia na busca pela perpetuação de uma existência e cita duas narrativas
amplamente conhecidas. Sua primeira referência contida ali é sobre o herói grego
Aquiles, que, aceitando morrer jovem, terminava por ter sua vida consagrada e
glorificada por meio da narrativa, passando, assim, “à imortalidade”. Num outro
extremo, a narrativa árabe As mil e uma noites, também tinha como tema o pretexto de
adiar a morte: Xerazade, sabendo da iminência de seu assassinato, contava histórias para
evitar o momento em que o narrador se calaria.82
Esse desejo de perpetuar-se utilizando a narrativa, foi ganhando novas
estratégias e dimensões cada vez maiores, a partir do período Moderno, dando, também,
dimensões ainda maiores à subjetividade e levando as sociedades ocidentais a viverem
uma era de “auto-arqueologização”.83 Beatriz Sarlo afirma que um dos resultados dessa
transformação manifestou-se na literatura, em forma de bens simbólicos, que se
propunham, por meio da rememoração da experiência, uma busca por transformar seu
79
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. Tradução de Sergio Milliet. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 7.
Citado por FRAIZ, Priscila. Op cit.,p. 22
80
ALVAREZ, Maria Antonia. La autobiografia y sus géneros afins.In: EPOS. Revista de Filologia,
vol.V.Madrid. U.N.E. D, 1989, p. 439. Citado por FAÇANHA, Luciano. Para ler Rousseau... Op. cit.,
p.74.
81
GOMES, Ângela de Castro. Escritas de si, escrita da história. Op. Cit., pags. 12 e 13.
82
Cf: FOUCAULT, Michel. O que é um autor. Op. cit., pags. 35 e 36.
83
Expressão cunhada por Charles Maier. Citado por SARLO, Beatriz. Op. Cit., p. 11. Foucault chama a
mesma prática de “entesouramento”; Ralph Samuel optou por nomear como “mania preservacionista”.
Ambos referem-se à prática de se “auto-arquivar”, por meio da reunião de documentos diversos, visando
produzir uma memória para si e para outros.
33
testemunho em “ícone de verdade”, visando, em última instância, “parar o tempo”,
conservando as lembranças ou buscando reparar uma identidade machucada. 84
No século XX, as escritas de si atingiram proporções equivalentes ao culto do
individualismo, quando o sujeito assumiu toda a sua subjetividade e o “desejo de
monumentalização” ou o que outros denominariam de uma era de “espetacularização do
sujeito”. 85 O mercado editorial tem registrado a proliferação de produções que giram
em torno da construção de memórias individuais, por meio de atos (auto) biográficos.
Além das produções do mercado editorial, ainda constam os registros midiáticos:
entrevistas, confissões, a moda dos blogs na internet, talk shows e reality shows. Diana
Klinger, em Escritas de si, escritas do outro, lembra que “o avanço da cultura midiática
de fim de século oferece um cenário privilegiado para a afirmação dessa tendência. Nela
se produz uma crescente visibilidade do privado, uma espetacularização da intimidade e
a exploração da lógica da celebridade, que se manifesta numa ênfase tal do
autobiográfico, que é possível afirmar que a televisão se tornou um substituto do
confessionário eclesiástico e uma versão exibicionista do confessionário psicanalítico.86
84
SARLO, Beatriz. Tempo passado. Cultura da memória e guinada subjetiva. Op. cit., pags.18 e 19.
85
LOPES, Denilson. “Por uma crítica com afeto e com corpo”. Revista Grumo, nº 2, Buenos Aires/ Rio
de Janeiro, 2003, pags. 52-53. Citado por KLINGER, Diana Irene. Escritas de si, escritas do outro. O
retorno do autor e a virada etnográfica. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007.
86
KLINGER, Ruth. Op. Cit., p. 22.
87
Ver também LEVILLAIN, Philippe. “Os protagonistas: da biografia. In: RÉMOND, René. Por uma
história política (org.) 2ª Ed. Tradução de Dora Rocha. RJ: Fundação Getúlio Vargas, 2003, pags.141-
176.
34
ao postular a dignidade teórica do individual e a fecundidade metodológica do
quantitativo.88
88
GOMES, Ângela de Castro. “Nas malhas do feitiço: o historiador e os encantos dos arquivos pessoais”.
In: Estudos históricos. Op. cit., pags. 3 e 4.
89
Ibidem. P. 4
90
Gonzalo de La Parra. “Puntos de vista: Pani frente a Vasconcelos”, El Universal, 15/V/1936, p. 3.
Citado por REVUELTAS, Andréa. “El Ulises Criollo de Vasconcelos: Recepción crítica”. In: Ulises
Criollo. Ed. crítica. Coodenação de Claude Fell. Op. cit., p.606.
35
defende que essas reconstruções do passado devem ser vistas a partir da relação
memória e política ou como memória e poder.91 Essa mesma autora afirma que:
Embora a expressão “criação do passado”, utilizada por Jacy Seixas, não tenha a
conotação de “invenção”, gostaríamos de aproveitá-la para ressaltar que a escrita
memorialística, vista como uma “construção engajada” do passado não deve ser vista
como algo descolado da realidade. Entendemos que o autor-personagem não inventa os
fatos narrados. Pelo menos de forma deliberada. Ele viveu ou presenciou pelo menos a
maioria dos fatos relatados. Entretanto consideremos, também, que há que se levar em
conta as ausências e lapsos naturais ou voluntários.
91
SEIXAS, Jacy Alves. “Percursos de memórias em terras de história: problemáticas atuais”. In:
Memória e (res) sentimento... Op. cit.,
92
Ibidem. P. 42
93
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade. Lembrança de velhos. São Paulo, T.A. Queiroz, 1971, p. 29
94
LE GOFF, Jacques. História e memória. Trad. Bernardo Leitão [Et. Al]5ª Ed.. Campinas, SP: Editora
da Unicamp, 2003.p.420.
36
sentimentos experimentados pela primeira vez. Em suas palavras:
95
BOSI, Ecléa. Op. cit., p. 17.
96
Ibidem. P 7( numeração da revista em versão eletrônica)
97
Ibidem. P.6 (versão eletrônica)
98
PROCHASSON, Christophe. ”Atenção” verdade! Arquivos privados e renovação das práticas
historiográficas. In: Estudos Históricos. Op. Cit.,p.13.
37
Ainda nesse sentido, gostaríamos, mais uma vez, de fazer referência a Lejeune,
ao continuar discutindo sobre os cuidados que o historiador deve tomar para poder tirar
o proveito das fontes escolhidas. Quando esse autor indicou as condições necessárias
para uma autobiografia “clássica”, afirmou que havia uma característica na
autobiografia que a diferenciaria nos modos discursivos fictícios; e isso seria a
identidade entre autor, narrador e personagem concretizada pelo “pacto autobiográfico”.
Segundo Lejeune, o “pacto” seria um contrato implícito entre o autor e leitor, no qual o
autobiógrafo se comprometeria, após essa declaração de identidade, uma espécie de “eu
abaixo-assinado”, a “dizer a verdade”, por desejar “honrar a sua assinatura”. 99
Lejeune esclareceu nas outras versões que o fato de ter estabelecido a relação
entre o compromisso de “dizer a verdade” e a declaração de identidade não implicaria
uma exatidão histórica impossível, mas uma apresentação sincera da vida do autor.
Defendeu que, no “pacto autobiográfico”, como em outros contratos, o leitor poderia
questionar o que está dito, mas não a identidade de quem escreve. Ou seja, ao definir o
gênero autobiográfico, esse estudioso descartou a possibilidade de incluir relatos
ficcionais, nos quais é possível o leitor duvidar da autenticidade.100
A discussão entre discurso ficcional e histórico, presentes no gênero
autobiográfico, traz questões importantes para nelas refletirmos. Hermenegildo Bastos,
autor de Memórias do cárcere. Literatura e testemunho, acredita que a escrita
autobiográfica se aproxima da historiografia no sentido de que ambas são construções
textuais, compartilhando, assim, das limitações comuns a toda forma de escrita e
exigindo um trabalho de crítica como outras fontes de análise. Esse mesmo autor
afirma:
99 A proposição de Lejeune gerou inúmeros comentários e críticas. As principais delas faziam referência
ao conceito de “pacto autobiográfico”. Os comentaristas apontaram como ilusória a possibilidade de
estabelecer uma relação a três: produtor, obra e leitor, já que essas três instâncias nunca participam ao
mesmo tempo de uma mesma experiência, especialmente pensando que haverá uma defasagem entre a
intenção do autor e a leitura do leitor. Lejeune acatou muitas das observações e explicou-se em relação a
outras.
100
Lejeune fez questão de esclarecer que “autenticidade” não deve ser confundida com “veracidade”.
Segundo esse autor, a autobiografia não se define por seu grau maior ou menor de veracidade. O “pacto”
feito entre o autor e o leitor, estabelecido através de sua assinatura, é que determina a forma como o texto
deve ser lido: como “autobiografia”. Sobre os últimos comentários e revisões feitos por Lejeune,
realizados em 2001, VER: LEJEUNE, Phillipe. “O pacto autobiográfico, 25 anos depois”; In: O pacto
autobiográfico. De Rousseau à internet. Op. Cit., pags. 70 a 85.
38
neutra. Mas a versão do historiador pode ser criticada, contestada ou
reafirmada. Enquanto isso, a versão autêntica do autobiógrafo, ainda
que possa ser contestada, não perderá o seu valor como
autobiografia.101
O fato é que o trabalho com autobiografias nos leva a pensar sobre seu estatuto
ambíguo, que termina por se tornar um dos grandes desafios para os historiadores que
optam por se debruçar sobre este tipo de fonte. Por um lado, o gênero autobiográfico,
não sendo um documento com características “oficiais” ou “ de arquivo”, permite ao seu
autor a liberdade de uma linguagem menos preocupada com a “objetividade”. Nos
escritos de Vasconcelos, é muito comum expressões como “se não recordo”, “esqueci os
nomes” (em algumas situações reconhece que não desejava mesmo citá-los, por não
“merecerem a fama”) e também a existência de descrições de lugares idílicos, situações
com contornos épicos, onde claramente se percebe a capacidade imaginativa do autor.
Por outro lado, entendendo essa prática cultural como um instrumento político,
em que o sujeito histórico busca definir sua identidade por meio da exposição da sua
“verdade”, o gênero autobiográfico traz consigo também um estatuto de “discurso
verídico”. Quando recorremos a algumas obras do gênero, é muito comum vermos
101
BASTOS, Hermenegildo. Memórias do cárcere. Literatura e testemunho. Brasília: UnB, 1998, p. 64.
102
Cf: GOMES, Ângela de Castro Gomes. “O historiador e os encantos dos arquivos privados”. In:
Estudos históricos. Op. cit., p..
103
GOMES, Ângela de Castro. “Escrita de si, escrita da História: a título de prólogo”. In: Escrita de si,
escrita do outro. Gomes, Ângela de Castro. (org.) RJ: Editora FGV, 2004, p.15
104
GOMES, Ângela de Castro Gomes. Estudos Históricos. Op. Cit. p. 7
39
expressa essa intenção de fidelidade, ao se utilizarem expressões típicas como: “assim
105
me ocorreu desde aqueles dias”, “eu vi”, “contarei o que de fato ocorreu” e,
especialmente no caso de Vasconcelos, muitas vezes, nessa busca pelo “efeito de
verdade”, pelo convencimento de seus leitores, incluiu “documentos” e desafios aos
seus leitores para que buscassem a confirmação de suas afirmações: “Pode quem quiser
confirmar com os jornais daquela data.” 106 Em outras situações, reuniu elementos do
discurso verídico, assumindo a possibilidade de estar incorporando elementos fictícios
em suas descrições:
Não sei bem se isso é o que eu lhe disse ou o que devia dizer. Tudo
isso tem se tornado um sonho que não me importa corrigir. Quem
quiser fazê-lo, achará os dados autênticos na imprensa da época, por
exemplo, no El Universal daquelas datas, que fielmente transcreviam
os correspondentes. Não se acharão discrepâncias de fato entre o que
ali consta e o meu relato. A recordação não deforma nem falsifica; se
é sincero, molda e purifica, seleciona a memória, esquecendo o trivial,
exaltando a essência.107
105
VASCONCELOS, José. El Desastre. P.287
106
VASCONCELOS, José. El Desastre. P.289
107
VASCONCELOS, José. El Desastre. P.273/4.
108
CALLAGARIS, Contardo. “Verdades de autobiografias e diários íntimos”. Estudos históricos. Rio de
Janeiro, v.11, nº 21, 1998, p.50
109
FOISIL, Madeleine. Op. Cit., p. 331.
40
encontramos juízos bastante particulares construídos na perspectiva deste sujeito autor
que, não podemos esquecer, se encontrava num espaço e tempo diferentes daquele em
que viveu os fatos narrados. Tais testemunhos se tornam uma fonte rica para a análise
por parte de um historiador porque mostram as reações individuais – e também de um
grupo social - de um sujeito histórico que presenciou enormes transformações sociais,
políticas, culturais e econômicas, num momento vibrante da história de seu país.
Momentos aqueles, que foram marcados por descobertas e constatações, esperanças e
desencantos. Sobre alguns desses acontecimentos, expectativas, realizações e
frustrações, José Vasconcelos emitiu interpretações e o fez amalgamando história
pessoal e nacional.
Por fim, tendo ressaltado a riqueza desta fonte para historiadores, desde que
tomados alguns cuidados na abordagem de análise, não gostaríamos de encerrar essa
parte sem reforçar o fato de que vemos as Memórias de José Vasconcelos como
instrumento político utilizado pelo autobiógrafo para a construção/reafirmação de uma
identidade que gostaria que se cristalizasse na posteridade.
41
1.4 - As Memórias de José Vasconcelos110
110
Os manuscritos da autobiografia de José Vasconcelos foram comprados da Editora Botas, em 1988 e
descritos pelo Berson´s Mexican Archives Project, em 1994, antes de serem definitivamente
inventariados e repertoriados em janeiro de 1995. Atualmente, encontram-se depositados no “The Nettie
Lee Benson Latin American Collection”, da Biblioteca da Universidade de Austin, no Texas. Cf: FELL,
Claude. “Nota filológica preliminar”. In: VASCONCELOS, José. Ulises Criollo. Op. cit., p. LVIII e
LXIX.
111
Nessa contagem, incluímos os quatro volumes principais, escritos na década de 1930 e La Flama,
escrito, posteriormente, na década de 1950 e publicado após a sua morte.
112
Muitos argumentos ou mesmo trechos parafraseados de outras obras de sua autoria são incorporados às
Memórias.
113 Ulises Criollo foi publicado por várias editoras ao longo da história. Primeiramente pela Editora Botas
e, a partir de 1958, pela Editora Jus, que produziu a primeira edição expurgada, a pedido do próprio
Vasconcelos. Em 1979, pela editora Promexa, na coleção Clasicos de la literatura mexicana . Em 1982, a
editora Fondo de Cultura Económica organizou os quatro principais volumes do conjunto memorialístico
de Vasconcelos, em dois grandes tomos, sob o título de Memórias I e Memórias II. A primeira
reimpressão ocorreu no ano seguinte. Em 1998, foi produzida a última edição pela Editorial Trilla. No
ano 2000, o historiador francês Claude Fell organizou a edição crítica de Ulises Criollo, fazendo o
cotejamento dos manuscritos com as edições de Botas, Jus e a do Fondo de Cultura Económica. Nesta
edição, Fell incluiu diversos artigos de historiadores e críticos literários do México, Argentina e França
que tiveram interesse pela obra de Vasconcelos.
42
ainda não toca diretamente nos temas políticos que lhe trouxeram desencantos e
ressentimentos.
Além dos rumos pessoais que sua vida toma, no início do século XX,
Vasconcelos inclui nas páginas desse primeiro tomo os autores que influenciaram o seu
pensamento e sua obra; Chateaubriand, indicado pela mãe; Tolstoi e Dostoyesvky,
durante o curso de Direito; Bergson, Nietzsche, Shopenhauer e clássicos da literatura,
sendo estes últimos, em companhia dos colegas ateneístas. Em relação ao Ateneo,
Vasconcelos registra sua visão referente a algumas figuras importantes que participaram
43
das reuniões e trata também da forma como viu a sua participação nesse movimento
intelectual que marcou a cultura mexicana, no início do século XX.
114
“Adriana” foi o codinome dado por Vasconcelos a Elena Arizmendi, fundadora da “Associação
Mexicana da Cruz Branca Neutral”, em 1911. Arizmendi organizou o atendimento aos feridos durante
algumas jornadas revolucionárias. Morreu em 1949, com fama de filantropa.
115
A ideia da paternidade será apresentada por Vasconcelos como algo indesejável e pesado. Não
exatamente pela figura dos filhos, que ele insistia em afirmar que amava. Na construção das imagens de
si, apresentou a paternidade como uma responsabilidade pesada demais para quem tinha “missões” tão
importantes a cumprir e colocou os filhos como “vítimas inocentes” de todos os transtornos que
envolveram a sua vida política e pessoal, por não ter aceitado “transigir com o mal”.
44
Peru, durante seu primeiro exílio.116 A amante voltou para Nova Iorque, manteve um
romance curto com o também ex-ateneísta Martín Luis Guzmán - “Rigoletto” nas
Memórias – e terminou se casando com um estrangeiro de nome não declarado por
Vasconcelos . 117
116
Vasconcelos esteve exilado pela primeira vez entre os anos de 1915 e 1920. Ao longo desse exílio,
escreveu livros, trabalhou durante nove meses no Peru, viajou pela Europa e estabeleceu relações com
alguns intelectuais hispano- americanos. Fixou-se nos Estados Unidos: primeiro em Nova Iorque e depois
na Califórnia
117
Além de “Adriana”, Vasconcelos escreveu sobre outras duas mulheres que tiveram passagem
importante em sua vida: a salvadorenha “Charito”, Consuelo Sunsín Zecém de Gómez, mais tarde, “Saint-
Exupéry”, após casar-se com o autor de “O Pequeno Príncipe” e “Valéria”, na verdade, Antonieta Valeria
Castellanos, conhecida como Antonieta Rivas Mercado (1900-1931). Antonieta foi literata, periodista,
dramaturga e uma das figuras importantes do movimento feminista no México. Pertenceu ao círculo de
artistas e intelectuais que renovaram a cultura mexicana após a fase armada da Revolução. Foi uma
grande promotora das artes, financiando pintores e escritores mexicanos como Andrés Henestrosa,
Salvador Novo, Celestino Gorostiza, Julio Castellanos, Roberto Montenegro e Manuel Rodriguez Lozano.
Conheceu Vasconcelos na época da Campanha presidencial de 1929. Direcionou muitos de seus recursos
financeiros e intelectuais para a campanha. Após a derrota, Antonieta também se exilou voluntariamente,
passando por Nova Iorque e Paris. Ao longo do ano de 1930, enfrentava problemas financeiros, disputava
a custódia do filho com o ex-marido e sofria de uma profunda depressão. Vasconcelos dedicou El
proconsulado à Antonieta, colocando apenas suas iniciais: A.R.M.Também dedicou capítulos para tratar
do drama que envolveu o fim trágico de “Valéria”, que optou por tirar a sua vida com um tiro no peito, na
Catedral de Notre Dame, em Paris, em fevereiro de 1931. O drama tornou-se maior para o autobiógrafo
porque o ato ocorreu poucas horas após um encontro entre ambos. Na ocasião, “Valéria” avisou-lhe sobre
suas intenções e ainda utilizou uma arma que Vasconcelos carregava sempre consigo. Cf:
VASCONCELOS, José. El proconsulado. Op. Cit., pags 1076-1108.
45
intelectual lhe conferiu o título de “Villista traidor”. Faz questão de desvincular a
imagem que alguns lhe atribuíam de “villista” e também de “traidor”. 118
Neste volume, José Vasconcelos comenta também sobre sua tese da “raça
cósmica”, defendida na década de 1920, e que lhe deu projeção como um dos grandes
defensores da mestiçagem como própria dos países latino- americanos. Este segundo
tomo se encerra com a descrição dos acontecimentos ligados à queda de Carranza e o
posterior retorno do memorialista ao país, após o primeiro exílio. Com o governo
interino de Adolfo de la Huerta, Vasconcelos reaparece no cenário mexicano com o
cargo de reitor da Universidade Nacional do México, quando iniciou o desenvolvimento
de seu projeto cultural .
O presidente Plutarco Elias Calles, que governou o México entre 1924 e 1928,
ainda era uma das figuras políticas mais fortes no México enquanto Vasconcelos
escreveu as suas Memórias 119 e tornou-se, abertamente, o seu principal antagonista nos
volumes posteriores à La Tormenta. É importante dizer que, embora a escrita
autobiográfica tenha a intenção de reconstruir os fatos da história de forma cronológica,
não podemos ignorar que múltiplas temporalidades estão em combate em todo o tempo.
Vasconcelos não foge a isso também e é patente o quanto o desejo de intervir no
presente e suas projeções de futuro interferiram na reconstrução de sua narrativa. As
referências ao nome de Calles, por exemplo, também chamado de “Chefe Máximo da
Revolução”, já eram anunciadas, desde Ulises criollo, quando o memorialista ainda
118
Cf: VASCONCELOS, José. La tormenta. Op. Cit., p. 650.
119
Calles só perdeu a hegemonia no cenário político mexicano após poucos anos da chegada de Cárdenas
(1934-1940) ao poder que, numa manobra política, conseguiu finalmente neutralizar a influência
asfixiante daquele governante.
46
descrevia fatos anteriores ao fim da “Era Porfiriana” , usando-o como parâmetro em
todos os momentos em que se referia à desmoralização no serviço público. Aliás, o
título desse tomo é uma referência a Calles. A indicação, por parte de Obregón, ao nome
de Plutarco Elias Calles à sucessão presidencial, em 1924 , é apresentada por
Vasconcelos como uma das etapas importantes para o “desastre” do México.
47
La flama é considerado o último tomo de seus escritos autobiográficos.120 Os
acontecimentos descritos abarcam os anos de 1929 até 1939. A obra é composta de 120
capítulos, distribuídos em 496 páginas. Foi escrito num período posterior aos quatro
primeiros e publicado após a sua morte. Trata-se de uma obra confusa, escrita ora em
primeira pessoa, ora em terceira, na qual Vasconcelos seleciona como foco principal a
derrota à cadeira presidencial, em 1929. Descreve as esperanças que alimentou, ao
longo daqueles anos, de que o povo reagisse e “fizesse justiça”, utilizando-se, inclusive,
de uma arma que sempre condenara nos seus adversários: a violência, como último
recurso para que fosse reparada a “injustiça” sofrida em 1929. Foi também sua última
tentativa de reafirmar-se (ainda!) como “o presidente usurpado” e “o profeta” que
insistia em usar a escrita como arma para demonstrar a indignação frente à realidade da
política nacional.
120
Pelas características anunciadas anteriormente, que marcam o gênero “autobiografia”, nem todos os
autores consideram “La Flama” como o quinto tomo do conjunto autobiográfico de Vasconcelos, mas
sem dúvida, pode ser considerado um livro de memórias.
121
VASCONCELOS, José. La Flama (...) Op. Cit.,, p.496
48
Capítulo 2. Diálogos culturais
122 Agustín Basave Benítez faz uma análise bem elaborada das origens e os encaminhamentos das
correntes “mestiçófilas”, no México. O conceito de mestiçofilia que adotaremos também foi utilizado por
esse autor. Basave Benítez entende a mestiçofilia como um fenômeno que coloca a mestiçagem, ou seja, a
mescla de raças e culturas como um fato desejável. Ver: BASAVE BENÍTEZ, Agustín. México Mestizo.
Análisis del nacionalismo en torno a la mestizofilia de Andrés Molina Enríquez.México: Fondo de
Cultura Económica, 1992.
49
Agustín Basave Benítez afirma que, no Período Colonial, iniciou-se um
movimento de cunho político e ideológico, no qual os criollos, relegados a um segundo
plano pelos peninsulares, apropriaram-se do passado indígena para legitimar-se nas
disputas contra a Espanha e iniciaram um movimento de consciência coletiva contra a
sua marginalidade.123 É bem verdade que, naquele momento, apesar da mescla racial,
ainda não havia ocorrido o amadurecimento de um autêntico pensamento mestiçófilo,
que somente seria possível após a Independência. Embora tenham recorrido à imagem
do indígena, também sabemos que aqueles nunca se sentiram iguais aos índios e sua
cultura.124 As transformações advindas com o Estado Nacional, fruto da desagregação
do colonialismo, abriram mais que possibilidades, mas necessidades de “aproximações”
entre os dois mundos antagônicos existentes, o criollo e o indígena. Tal fato levaria a
iniciativas que buscavam conciliar essas distâncias abissais.
123
BASAVE BENÍTEZ, Agustín. México Mestizo. Op. Cit.,p.19.
124
Benítez afirma que o índio serviu, subjetivamente e por pouco tempo, ao criollo para alegar uma
tradição própria e arrancar a etiqueta de “espanhóis degenerados”, cujo destino não era mais que fazer
uma cópia defeituosa da Espanha. Cf: Ibidem, p. 19.
125
Ibidem, p 22. Basave Benítez afirma que o lema das classes privilegiadas do período liberal bem
poderia ter sido “índio bom é o índio invisível.”
126
A“desnacionalização” do indígena é interpretada como resultado do conteúdo da Constituição de
Cadiz, de 1820, quando, reivindicando “igualdade constitucional”, fez “desaparecer” os índios, criando,
em seu lugar, abstratos cidadãos mexicanos. Em 1824, o educador Juan Rodríguez Puebla, rechaçou o
conceito constitucional de equidade, pedindo um tratamento especial para os índios.
127
MORA, José Maria Luis. “México y sus revoluciones”.Porrúa, México, 1965.Tomo I, PP 63 e 74.
Publicado originalmente em 1836. Citado por: BASAVE BENÍTEZ, Agustín. Op. Cit., p.22
50
com respeito à fusão de raças, apelando à imigração europeia como antídoto contra o
obscurecimento da raça. Na segunda metade do XIX, levando em conta que os
principais líderes da Reforma Liberal no México, Benito Juárez, Ignacio Ramírez,
Ignacio Altamirano e Melchior Ocampo, eram descendentes diretos da raça indígena ou
mestiços criollizados, a mestiçofilia passou a ganhar mais adeptos.
Em 1864, com a obra Memória sobre las causas que han originado la situación
de la raza indígena y médios para remediarla, 128 Francisco Pimentel (1832-1893)
produziu a primeira investigação minuciosa no século XIX, abordando a questão
indígena e apontando a mestiçagem como solução para os problemas que afligiam o
México.129
A opinião de Pimentel sobre índio não destoava do que pensavam muitos de sua
época. Apresentou os indígenas como seres “taciturnos e melancólicos, fleumáticos,
frios e lentos, sofridos, servis, preguiçosos e entregues ao roubo e à embriaguez”. Em
sua análise, concluiu que a situação de extrema desigualdade entre a população branca e
a indígena não poderia continuar, visto que seria um obstáculo à homogeneização do
país, ao estabelecimento de crenças e propósitos comuns para a nação. Essa era, de fato,
uma questão pertinente que trazia sérios transtornos sociais políticos e econômicos para
os governantes. Pimentel afirmou: “o querer remediar aos índios, tem por objeto evitar
os males que sua situação ocasiona ao México”. 130 De acordo com esse autor, as
dificuldades se tornavam maiores ainda porque não via meios de conseguir desarraigar,
senão depois de muitos séculos, tanto erros e desvios de caráter que permeavam a raça
indígena. Afirmou que as dificuldades para o índio “alcançar a civilização europeia e
adquirir suas necessidades”, seria obra de várias gerações. Em seu pessimismo com
relação aos índios, afirmou que poderiam até ilustrar a mente, mas o caráter não seria
128
PIMENTEL, Francisco. Memória sobre las causas que han originado la situación de la raza indígena
y médios para remediarla . México: Imprenta de Andrade y Cavalvante, 1864. Disponível em versão
eletrônica:
129
A obra de Pimentel aborda temas ligados aos indígenas que tocam sua religiosidade, o sistema
psicológico, a organização política e social, a educação dos jovens, as cerimônias rituais. Na segunda
parte, desenvolve sobre o tratamento dispensado aos índios por parte dos diferentes governos durante o
período colonial. Ao longo da obra, Pimentel descreve as causas da degradação indígena, fala da situação
“atual” e, finalmente, apresenta o seu projeto para remediá-la.
130
Cf: PIMENTEL, Francisco. Op. cit.,p. 239.
51
melhorado. Na verdade, a ilustração do índio não era colocada como solução para
Pimentel, pois em sua visão, “ilustrado o índio, mas desenvolvendo-se nele um talento
maligno, sua civilização traria males e não bens”.131 O temor de que o “feitiço virasse
contra o feiticeiro”, fica manifesto em sua teoria. Sua preocupação com relação ao
índio chega a tal extremo que colocou a alternativa: “matar ou morrer”.
Vicente Riva Palacio (1832-1896) foi outro elo da corrente intelectual que
tomou a defesa da mestiçagem como solução para o problema das imensas
desigualdades existentes na população do México. Diferentemente de Pimentel, que
buscava uma transformação do índio, Riva Palacio queria a criação de um povo único,
de uma nacionalidade homogênea. As distintas etnias foram identificadas por Riva
Palacio como um obstáculo para a existência de uma “alma nacional” e acreditava que o
131
Ibidem. P. 232 e 233.
132
Em seus arrazoamentos, Pimentel questiona: “será preciso que degolemos aos índios como fizeram os
norte-americanos?” Cf: Ibidem. P. 233 e 234.
133
Ibidem. P. 236
134
Ibidem. P. 238.
52
cruzamento étnico, iniciado na Colônia, deveria ser estimulado como fórmula eficiente
para a formação de uma raça nova que caracterizaria a nacionalidade mexicana.
Em duas de suas obras, Evolución política del pueblo mexicano e México social
y político, este educador, intelectual e político apresentou o mestiço como o “nacional”,
aquele que representava o elemento dinâmico, central da sociedade: “ o mestiço, sim,
tinha vislumbres de crenças ilustradas, por seu espírito essencialmente curioso, inquieto
e descontente(...) e essa era a levedura da sociedade mexicana do futuro”.138 Respondeu
com vigor aos argumentos do etnologista Le Bon, argumentando que aquele fazia
135
Citado por BASAVE BENÍTEZ, Agustín. Op. cit., p.29
136
Ibidem. P. 32
137
Ibidem, p. 34.
138
SIERRA, Justo. Evolución política del pueblo mexicano SIERRA, Justo. Evolución política del pueblo
mexicano. Prólogo de Abelardo Villegas. 2ª edición. Caracas: Biblioteca Ayacucho; 21, 1985, p. 89.
53
“declarações dogmáticas”, defendendo teorias racistas que apontavam a mestiçagem
como culpada pela “incurável impotência” e pelas convulsões políticas entre árabes e
hindus. 139 Em contrapartida, quanto aos índios, insistiu no seu “atraso” e “passividade
incuráveis” que, segundo ele, eram fruto de dois procedimentos de tratamentos
extremos ofertados pelos espanhóis: a tutela, ao tratá-los como “menores perpétuos” e a
opressão, ao explorá-los como animais. 140 Referiu-se aos indígenas como um “povo
sentado”, mas “sujeito à transformação”. Assim, cumpriria aos “neomexicanos”, saldar
a dívida para com os “irmãos de infortúnio” e colocá-los em pé. 141 Portanto,
verificamos que a partir de Sierra, que, foi ficando cada vez mais claro que seria
impossível a modernização do país sem uma campanha de “modernização indígena”, ou
seja, aos olhos dos governantes e daquela intelectualidade, tornava-se imprescindível
incluir, de todas as maneiras, a população indígena e prepará-la para o ingresso na
modernidade.
139
Cf: SIERRA, Justo. México social y político. Apuntes para un libro. Op. Cit., p. 8/9. “Atendendo ao
objetivo político de sua obra, que era, também, justificar o porfiriato, Sierra argumentava não considerar
justo que “os condenadores de nosso futuro” fizessem “induções que não eram científicas”,
generalizassem suas conclusões sobre a miscigenação. Justificou a falta de liberdade política daquele
momento, argumentando ser, sem dúvida, o grande problema do momento: a conciliação entre liberdade e
a ordem. Pediu que ponderassem para verificar se, acaso, aquele não tinha sido também um problema
recente para o povo francês? Finalmente apontou que, se “os sábios estrangeiros” estudassem a fundo o
caso mexicano, veriam que as explicações para os problemas apontados não poderiam ser respondidos por
conta da maioria mestiça e sim, por culpa da educação colonial.
140
Cf: SIERRA, Justo. México Social y político. Op. Cit., p. 6. Os criollos ricos também foram acusados
por Sierra de passividade e por não terem agido para diminuir a passividade indígena, ao mantê-los num
estado de servidão. Segundo Sierra, a mescla de raças teria resultado “tendências inovadoras” colocadas
em prática naquele momento por meio da ação dos “neomexicanos”.
141
Ibidem. P.7 e 22.
54
Contemporâneo de Sierra, o conservador Francisco Bulnes (1847-1924),
escreveu uma obra pessimista, El Porvenir de las naciones hispanoamericanas (1889),
em que sentenciou que estes povos: “não têm mais futuro do que a barbárie encorajada
pela miséria e a guerra civil”. “Nossos adversários, acrescentou, são nossa tradição,
nossa história, nossa herança mórbida, nosso alcoolismo, nossa educação contrária ao
desenvolvimento do caráter”. Também nesta obra, Bulnes classificou a humanidade em
três raças, de acordo com o cereal com que se alimentavam: a do trigo, a do milho e a
do arroz. Para o autor da tese, somente a primeira, a europeia, estava apta ao progresso.
Apesar de seu conservadorismo, Bulnes não deixou de enxergar as contradições
que se acentuavam cada dia mais no regime porfirista: a concentração de riquezas nas
mãos de poucos, que lançava índios e mestiços a condições nada favoráveis, os padrões
de comportamento social e de modelos estrangeirizantes e a coexistência de raças
antagônicas.142 Apesar do ceticismo daquele positivista porfiriano em relação ao futuro
dos hispano-americanos, também incorporou a defesa da mestiçagem, ao constatar a
inegável potencialidade do mestiço, que passava a representar promessa de estabilidade
necessária para a governabilidade da nação. Quanto aos índios, Bulnes não fez questão
de omitir o seu desprezo aos “bárbaros corrompidos”, mas defendeu a potencialidade do
mestiço. Dessa forma, escreveu que a solução seria, como indicara Sierra, a melhora
urgente da alimentação e o fomento da imigração.
Como observamos até o momento, a mestiçagem começou a ganhar vigor como
projeto político dos governantes, a partir da Independência. Na primeira fase desta
busca pela definição da “essência” da mexicanidade, verificamos, que, em relação ao
índio, na maioria das vezes, apenas a imagem, como autóctone, original da terra, é que
foi aproveitada. Entretanto, como bem colocou Roberto Blancarte, o índio real, de carne
e osso, continuou durante um bom tempo marginalizado e empobrecido, oscilando entre
duas visões inferiorizantes: desprezo ou compaixão. Sobre a figura do índio , Blancarte
afirmou:
142
BENÍTEZ, Agustín. Op. Cit.,p.40
55
diversidade e seu afastamento dos cânones ocidentais, aparentemente,
dificultam o país a alcançar a unidade cultural desejada. 143
Com a obra Los grandes problemas nacionales (1909), Molina Enríquez fez um
levantamento analítico e sistemático dos problemas que, a seu ver, comprometiam o
bem estar de seus compatriotas e a própria consolidação da nacionalidade. 147 Nos
resultados de Molina ficaram evidentes a grande discrepância da divisão da riqueza e de
143
BLANCARTE, Roberto. (Compilador) “Prefácio”. Cultura e identidade nacional. México: FCE,
1994, p.13.
144
BASAVE BENÍTEZ. Op. Cit. 121.
145
Molina Enríquez afirmou que os criollos, juntamente com a população indígena, compunham a
minoria da população no México: respectivamente 10% e 30%. Os mestiços seriam 60%. Cf: Molina
Enríquez. Op cit. Pags. 35-43.
146
BENÍTEZ. Op. Cit., p. 13 e 99.
147
Molina Enríquez dividiu sua obra em duas partes. Na primeira, fez um percurso histórico da história
do México dedicando capítulos que falaram sobre as sociedades pré-hispânicas, a composição social, a
formação do poder político no México, as características territoriais, climáticas e de relevo. Na segunda
parte, tratou de indicar os problemas que considerava de ordem primordial: a propriedade da terra, crédito
territorial, irrigação, população e questão política. Para cada problema citado, Molina indicou soluções.
VER: MOLINA ENRÍQUEZ, Andrés. Los grandes problemas nacionales. Cidade de México: 1909.
Disponível em < http://www.cervantesvirtual.com/Buscar.html? Texto =Molina+Enr% EDquez ,
digitalizado por El Colégio de México. Acessado em 27/01/2010.
56
poder entre as raças que compunham a nação. Apesar de ser maioria, Molina Enríquez
chamou a atenção para o fato de que a população mestiça não tinha grandes posses que
lhe outorgasse poderes político e econômico consideráveis, com exceção de uma
minoria que cercava o governo de Porfírio Díaz, também ele, mestiço. O estado de
subalternidade destinado aos mestiços e indígenas, identificado por Molina Enríquez e
manifesto na concentração de poder em mãos de uma elite mexicana, levou-o a
questionar a continuidade da ordem colonial, que permanecia a se manifestar até aquele
momento.
Neste quesito este intelectual pode ser visto como um homem que se antecipou
aos posicionamentos de seu tempo. Percebendo as contradições do regime porfiriano,
mas sem ter como saber naquele momento que as coisas se encaminhariam para o
148
Molina Enríquez escreveu sobre a ideia de “energia étnica” como propulsora de mudanças sociais:
“Cuadro-programa de las necesidades y aspiraciones del país e del modo de satisfacer unasy otras” no
jornal México Nuevo( México, 21/09/1909). Citado por BASAVE BENÍTEZ. Op. Cit., p. 106.
149
Ibidem. P. 105. Os apontamentos dos problemas e as soluções propostas por Enríquez Molina,
especialmente aquelas ligadas à posse da terra. Como jurista que era, Molina participou diretamente da
elaboração do artigo 27 da Constituição de 1917, que regulamentou a questão da propriedade e uso da
terra.
57
movimento revolucionário pouquíssimo tempo depois, já advertia que era hora de a
nação olhar para si mesma, descobrir seus próprios valores, desenvolver uma “cultura
própria”. Já sabemos que o programa cultural da Revolução, posto em prática por
Vasconcelos, levou essa questão muito a sério. Por meio da arquitetura, pintura,
desenho, danças e, entre outras manifestações artísticas, produziram uma originalidade
que Molina já indicara que os mexicanos deveriam buscar e que resultaria na chamada
“cultura mestiça”.
150
Ibidem. Pags. 121 e 124.
58
México”. 151 Na obra citada, os autores fizeram referência às impressões causadas a
Manuel Gómez Morín152, personagem bastante atuante nas primeiras décadas do século
XX , em relação à “descoberta” da realidade que o Porfirismo tentara esconder:
151
AGUILAR CAMÍN, Héctor & MEYER, Lorenzo. À sombra da Revolução mexicana. Tradução Celso
Mauro Paciornick. São Paulo: EDUSP, 2000 (Ensaios Latino-americanos: 5), p.76.
152
Manuel Gómez Morín fez parte do grupo dos “Sete Sábios”, juntamente com Antonio Castro Leal,
Alberto Vasquez del Mercado, Vicente Lombardo Toledano, Teófilo Oleya y Leyra, Alfonso Caso e Jesús
Moreno Baça. Foi ainda fundador do Banco do México e do PAN (Partido de Acción Nacional), na
década de 1930.
153
AGUILAR CAMÍN, Héctor & MEYER, Lorenzo. Op. cit. p.75 e 76. O trecho final da fala de Morín
foi citado por: KRAUZE, Enrique. Caudillos culturales en la Revolución mexicana. México: Siglo XXI
Editores, 5ª edición, 1985, p.65.
154
MONTFORT, Ricardo Pérez. “Indigenismo, hispanismo y panamericanismo en la cultura popular
mexicana de 1920 a 1940”. In: BLANCARTE, Roberto. (Compilador). Cultura y identidad nacional.
México: FCE, 1994, p. 344
59
Alguns, ainda isolados, marcados pelas diversidades étnica, linguística e
cultural, enfim, eram o símbolo do atraso da nação, visto que se encontravam
155
completamente fora dos “cânones” do projeto de modernidade desejado - um entrave
para o desenvolvimento de futuros projetos políticos e econômicos. 156 Desenvolver o
ensino técnico e profissional – projeto que interessava às classes médias e urbanas,
essencial para o crescimento econômico – era uma questão premente para o
desenvolvimento da integração nacional e para a governabilidade.
Conciliar interesses tão divergentes era desafio muito grande. Além disso, a
busca de respostas passou pela questão da definição da “alma nacional” e, por
conseguinte, pela defesa da mestiçagem. De fato, desafios colossais estavam postos aos
governos pós - revolucionários que, mais do que nunca, se viram impulsionados a
fortalecer a noção de “nação mestiça” e trabalhar em prol da “elevação” do índio.
Tendo tratado sucintamente sobre esse “espírito introspectivo” e assinalado parte
das dificuldades que marcavam a nova fase da história mexicana, voltemos ao tema
específico da miscigenação e aos outros grandes nomes que se destacaram ao longo das
duas primeiras décadas do século XX.
Considerando a existência de diferenças de propostas e visões, existentes entre
os intelectuais mestiçófilos que marcaram a história intelectual mexicana, no século XX,
ainda assim, podemos afirmar que todos fizeram eco a uma noção básica que já se
consolidava: o mestiço era o fator dinâmico da sociedade mexicana e fonte histórica da
nacionalidade. Passemos primeiramente a Manuel Gamio.
157
A obra de Manuel Gamio (1883-1960), Forjando a pátria, publicada em
158
1916, é representativa do discurso nacionalista e “indigenista” revolucionário, que
sugeria a fusão de raças e a convergência das manifestações culturais, bem como a
155
O analfabetismo em Chiapas atingia 91%, Oaxaca, 88% e Guerrero, 90%.Cf.: SKIRIUS, John.José
Vasconcelos y la cruzada de1929.México, Siglo XXI Editores.2ª edición corregida,1982. Em 1924, o
México contava com aproximadamente 15 milhões de habitantes. Destes, três milhões não falavam
espanhol e sim, 50 dialetos. Entre sete a oito milhões falavam espanhol, mas não liam ou escreviam neste
idioma. Cf: FELL, Claude. José Vasconcelos. Los años del águila (1920-1924)Op.cit.,.p.65.
156
Os primeiros anos que se seguiram à Revolução foram marcados pela crença no ideal liberal do
progresso, por meio da modernização. Mesmo considerando que os governantes tenham buscado enfatizar
a valorização das contribuições da população indígena, não se pode ignorar que houve vigor maior em
incorporá-la aos valores modernos ocidentais por meio da transformação cultural.
157
Gamio institucionalizou a antropologia no México enquanto esteve à frente da Direção de
Antropologia, durante os anos de 1917-1924. É considerado o fundador do indigenismo moderno no
México.
158
Ao usarmos o termo, temos claro que as preocupações, iniciativas e ações daquele momento não
podem ser entendidas ao pé da letra como “movimento indigenista”, tal como entendemos que ocorreu
nas décadas seguintes. Entretanto, entendemos que ali já se iniciava um movimento que não pode deixar
de ser visto como a fase inicial que mais tarde ganharia características próprias.
60
unificação linguística e o equilíbrio econômico. Os estudos realizados por Gamio e seu
grupo possibilitaram detectar aspectos ligados ao “problema indígena”, levando a
conclusões que indicavam os “grandes problemas nacionais”. 159 A perspectiva social
adotada na interpretação, evidentemente também política, apontando críticas à situação
social e econômica em que se encontrava a população indígena, encontrou no discurso
revolucionário um terreno bastante fértil. A questão do uso e posse da terra, a busca das
origens nacionais e a defesa da mestiçagem – problemáticas colocadas por Gamio -
fizeram com que a antropologia fosse utilizada como um instrumento dirigido à
melhoria das condições sociais e econômicas da população indígena. Seu pensamento
indigenista deu ênfase no problema central no México, que era a heterogeneidade racial,
cultural, linguística e econômica do país, que devia ser solucionado, segundo ele, por
meio da incorporação das culturas indígenas à identidade e cultura nacionais. 160
61
“inferiores”. Considerava que os povos indígenas possuíam aptidões intelectuais
comparáveis a qualquer raça. O problema do “atraso” dos índios devia-se ao fato de que
a política colocada em prática, ao longo de quatro séculos, havia priorizado um grupo
socialmente dominante: os brancos.
É importante sublinhar que Gamio não era partidário da homogeneização
cultural e linguística que pudesse representar a extinção das culturas indígenas.
Defendia, diferentemente de Vasconcelos, o ensino bilíngue nas comunidades
indígenas. Isso não quer dizer, como destaca a historiadora Regina Crespo, que ainda
assim, as iniciativas de “melhoramento”, propostas por Gamio, não tendessem a uma
gradativa “ocidentalização”, já que a alfabetização em espanhol, concebida como uma
língua ponte, seria um passo inevitável para a homogeneização cultural ou a
“nacionalização” dos habitantes do país, podendo, cedo ou tarde, representar o fim das
línguas autóctones. Esta mesma autora ressalta que Gamio via que a antropologia tinha
um papel chave, já que era concebida, tanto como trabalho científico quanto de ação
social e, assim, desenvolveu um projeto que tinha uma perspectiva interdisciplinar, pois
pretendia chegar a uma compreensão integral da população e seu entorno. Para tanto, o
projeto de Manuel Gamio requereu conhecimentos de geografia, antropologia,
sociologia e economia. 162 Com seus estudos, objetivava estudar regiões representativas
do país em termos geográficos, climatológicos, culturais, históricos, linguísticos e
étnicos, para poder melhorar as condições de vida de sua população. 163
162
CRESPO, Regina Aída. Itinerarios culturales: Vasconcelos, Lobato y sus proyectos para la
nación.México: UNAM.Centro Coordinador y Difusor de Estudios Latinoamericanos. Serie Nuestra
América, 61.2004, pags. 117 e 119.
163
Das experiências de Gamio e seu grupo, a mais exitosa foi no Vale de Teotihuacán, que durou sete
anos (1917-1924). Contou com medidas econômicas e educativas e os resultados foram considerados
bastante favoráveis. No Vale de Yucatán, após incursões de antropólogos estrangeiros que resultaram em
extraordinárias riquezas arqueológicas, investigadores mexicanos (arqueólogos, historiadores e
etnólogos), feridos em seu orgulho e também movidos pela curiosidade, iniciaram pesquisas que visavam
conhecer as condições de vida da população que ainda vivia nas proximidades do local. Entusiasmados
com os achados do passado pré-colombiano e também cumprindo objetivos de dar uma dimensão
“verdadeira da história nacional”, mostrando, em particular, a riqueza do passado pré-colombiano, com
freqüência apresentavam os índios como herdeiros diretos de tal esplendor. As provas científicas eram
algumas vezes utilizadas “para provar que o México teria sido o centro de uma civilização
particularmente brilhante, antes da chegada dos espanhóis (...), enquanto que os Estados Unidos não
tinham nenhuma existência palpável”. É necessário ressaltar que nos artigos publicados nos jornais da
época, apesar da satisfação com as riquezas arqueológicas, boa parte dos observadores mostrava-se
bastante pessimista em relação ao material humano e ao futuro das comunidades indígenas, questionando
até se seria possível a “regeneração por meio da escola para povos em estágio tão atrasado”. Nesses
artigos, alguns escritos por membros do grupo de investigações liderado por Gamio, havia uns poucos que
demonstravam preocupação com o que hoje chamamos de “aculturação” e “desaparecimento progressivo
dos costumes rituais”, apressando-se em descrever e documentar, antes que se transformassem em uma
recordação distante. Na maioria dos casos, palavras como “degeneração”, “decadência”, “apatia”,
“atraso”, eram as que mais apareciam , demonstrando, também, a defesa da necessidade de
62
Enfim, conforme pudemos ver, para Manuel Gamio, a relação raça-cultura era
fundamental para entendermos sua tese. Além da mescla racial, defendeu a cultura
como um importante catalisador da fusão étnica. 164
“hispanização” rápida das comunidades indígenas. Cf: FELL, Claude. Op.cit., 215 e 216. Este autor faz
uma série de referências a artigos publicados nos Boletins da SEP e a jornais na época.
164
BENÍTEZ. Op. Cit, p.128.
165
Ibidem. P. 135.
166
Cf: La raza cósmica. Op. Cit. A ideia de fusão étnica, espiritual/cultural aparece em vários momentos
desta obra de Vasconcelos.
63
mestiços, que seríamos senão mais que uma Espanha decaída e menor
em cultura? 167
167
VASCONCELOS, José. Indologia. Una interpretación de la cultura ibero-americana. Barcelona:
Agencia Mundial de Libreria. 2ª edición, 1926, p. 105.
168
CRESPO, Regina Aída. Op. Cit., p. 240.
169
Molina Enríquez havia indicado: (...) Melhor será quando, sempre que seja necessário, por razões
utilitárias ou estéticas, reproduzir as formas humanas em nosso país, se imponha a obrigação de
escolher as da nossa raça dominante (...). É claro que, quanto mais se aproximarem as formas ideais às
dos mestiços, mais compreendidas serão pelo numeroso grupo destes e maior número de admiradores
terão. Se nossos pintores, em lugar de pintar tipos exóticos como parisienses ou moças sevilhanas ou
odaliscas turcas, indubitavelmente mal observadas (...) pintarem nossos tipos próprios (...), é seguro que
alcançarão maior originalidade, que conseguirão maiores proveitos e que contribuirão para fixar bem os
traços formosos de nosso tipo geral. Cf: MOLINA ENRÍQUZ, Andrés. Op. Cit. P.317.
170
VASCONCELOS José. La raza cósmica. Misión de la raza iberoamericana. Notas de viajes a la
América del Sur. Barcelona: Agencia Mundial de Libreria, 1926. Disponível em: >
http://www.filosofia.org/aut/001/razacos.htm. Acessado em 27/01/2010. Esta obra foi publicada
simultaneamente, pela primeira vez, em Paris e Barcelona, no ano de 1925.
64
berço de uma civilização que há milhares de anos floresceu no
continente desaparecido e em parte do que é hoje América.171
171
Cf: Ibidem. Pags. 3 e 4. Citou as ruínas arquitetônicas legendárias dos maias, quechuas e toltecas
como vestígios de vida civilizada anterior a dos povos do Oriente e da Europa. E questionou: Se somos
antigos geologicamente e também no que diz respeito à tradição, como poderemos seguir aceitando
esta ficção inventada por nossos pais europeus, sabendo que nosso continente existia antes que
aparecesse a terra, de onde vinham os descobridores e reconquistadores?
172
A primeira publicação de seus estudos ocorreu em 1915, seguida por outras edições em 1920, 1922 e
1929.
173
VASCONCELOS, José. La raza cósmica. Op.cit., p.4.
174 Na elaboração da tese da “raça cósmica”, Vasconcelos propôs um ensaio com explicações, não com
fantasia de novelista, mas sim, com uma intuição que se apoia nos dados da história e da ciência. Há
muitos pontos obscuros e fantasiosos em sua teoria. Com respeito à linha civilizatória, que teria se
encerrado com os “atlantes”, atravessado oceanos e mares, José Vasconcelos afirmou apenas que tais
preceitos de sabedoria dos homens vermelhos teriam sido gravados na pedra de esmeralda e levados até o
Egito. Cf. Ibidem, pags. 2 e 3.
65
aborígenes. Afirmou ainda que mesmo sem saber, os europeus também estariam
colocando as bases de um período novo. Entretanto, apesar do papel de “recivilizador”
atribuído ao homem branco, é necessário reconhecer que Vasconcelos buscou coerência
em sua teoria que defendia a mestiçagem ao afirmar que, embora o encontro entre
brancos e os indígenas tivesse ocorrido em meio a um estado de “barbárie” por parte
destes últimos, o predomínio dos brancos seria temporário, já que, segundo ele, após
cumprir a sua missão, que seria mecanizar o mundo, os brancos dariam lugar a um novo
175
e definitivo tipo humano, o miscigenado.
Em relação ao índio, vimos que Vasconcelos reproduziu uma ideia comum entre os
intelectuais que o precederam na defesa da miscigenação. Mesmo quando a defendeu
como um fator diferenciador para os povos da América Latina, a participação do índio
permaneceu pífia. Ao pensar a mescla, tanto biológica quanto cultural, a participação do
homem branco representou o fator contribuinte para a “elevação” do elemento indígena.
Se por um lado, o branco não seria o tipo dominante, por outro, vemos que sua cultura
seria a que triunfaria e se imporia.
175
De sua formação positivista, Vasconcelos herdou alguns resquícios. Dividiu a história da humanidade
em períodos: Material ou guerreiro; intelectual ou político e o espiritual ou estético. Durante o transcurso
de superação dos “estágios primitivos da civilização”, reconheceu a importância do papel do branco no
processo, admitindo a importância da industrialização nas etapas. As divisões eram as seguintes: Período
do soldado, quando prevaleceria a força e o governo estaria regulado pela vontade dos caudillos;
Advogado, quando se organizariam as normas coletivas; do Economista, quando se ouviria, buscando
resolver, os problemas das desigualdades pecuniárias e a justa retribuição do trabalho; do Engenheiro,
momento de grande desenvolvimento industrial. Finalmente, tendo a humanidade superado todas as
etapas, envolvendo problemas ligados à carne e à matéria, estaria preparada para entrar no quinto e último
período, o dos Filósofos, quando poderiam atuar, dedicando-se também às questões transcendentais como
a arte, a religião e a poesia. CF. VASCONCELOS, José. Indologia. Uma interpretación de la cultura
Ibero-americana. Barcelona: Agencia Mundial de Libreria. 2ª edición, 1926. Pags. 211-218.
176
Lembremos que, entre as décadas de 1920 e 1930, outros intelectuais na América Latina defendiam
um papel de maior importância política para as populações indígenas. No Peru, por exemplo, Haya de la
Torre e José Carlos Mariátegui foram nomes representativos do período .
66
porque toda ela é transformação e novidade. Nenhuma raça volta:
cada uma cumpre sua missão e se vai. 177
177
VASCONCELOS, José. Indologia. Op. Cit.,p. 12.
178
VASCONCELOS. La raza cósmica. Op. Cit., p. 13.
67
para promover o ingresso destes à nação. Percebemos que Vasconcelos não esteve
sozinho na proposta de “elevar” os indígenas por meio da miscigenação ou da educação.
Ao se deterem sobre o tema da mestiçagem, os estudos, propostas e ações feitas
por esses intelectuais sobre as populações indígenas e setores mais marginalizados da
população mexicana, terminaram evidenciando particularidades sociais, políticas,
linguísticas, que, mais tarde, contribuíram para fortalecer o movimento indigenista na
luta por conseguir, junto aos governos, iniciativas que atendessem às suas demandas.
Especialmente, contribuíram para evidenciar aquilo que indicou Maria Ligia Prado: (...)
a “identidade nacional estava construída de modo a mostrar que as sociedades não se
compunham apenas de brancos, e que “os outros” deveriam ser levados em conta na
conformação da unidade nacional”. 179
179
PRADO, Maria Ligia Coelho. “Identidades Latino-Americanas (1870-1930). In: Historia General de
América Latina – UNESCO, Vol. VII, p. 17
180
Para Vasconcelos, a “latinidade” seria o reconhecimento pelos países hispano-americanos de suas
raízes históricas e culturais. Entre os elementos definidores da “coesão latina”, incluiu a língua, a religião
católica e a colonização ibérica.
181
As duas derrotas sofridas pela Espanha - A derrota da “Armada Invencível”, em 1588 e a “Batalha de
Trafalgar”, em 1805 foram apresentadas por Vasconcelos como determinantes nos novos direcionamentos
políticos mundiais, favorecendo a Inglaterra, em detrimento do Império Espanhol. Especialmente, em
relação às Américas.
68
nas Memórias.
Pretendemos desenvolver nesta parte do texto, que tal perspectiva, adotada por
Vasconcelos, deve ser vista dentro de um contexto de embates intelectuais e políticos
182
Nesta obra, Zea colocou Vasconcelos como referência, ao lado de nomes como José Martí, José
Henrique Rodó, Antonio Caso, chamando-os de “Construtores da Nova Ordem”. Segundo Leopoldo Zea,
diferente daqueles que negavam o passado histórico, entendido como expressão da dominação ibérica. Os
chamados “construtores da nova ordem” interpretavam que a renúncia deveria ser, no máximo, relativa,
visto que, para eles, o passado não era obstáculo e, sim, apoio para o futuro. Vasconcelos,
reconhecidamente, hispanista católico, insistiu numa saída que buscasse a conciliação ou um retorno aos
valores legados pela Espanha e fez disso sua bandeira política, até os últimos dias de sua vida. Cf. ZEA,
Leopoldo. El pensamento Latino-americano. Barcelona: Editora Ariel, 3ª ed.1976, pags. 8 e 9.
183
Ibidem. P.9.
69
que se travavam naquele momento. Por mais discutível que a tese de Vasconcelos possa
parecer, as premissas da mesma devem ser vistas dentro de uma tradição intelectual que
buscou ressaltar a natureza peculiar da América em relação à Europa e ainda da
América Latina em relação à América anglo-saxônica. 184
184
Sobre os diferentes discursos identitários que circularam ao longo dos séculos XIX e início do XX,
ver: PRADO, Maria Ligia Coelho. Op. cit.
185
Alfonso Reyes, como Vasconcelos, viveu boa parte de sua vida longe do México. Entre 1930 e 1938,
foi representante do governo mexicano no Brasil. Sobre as relações culturais entre México e Brasil,
envolvendo Vasconcelos e Reyes, VER: CRESPO, Regina Aída. “Cultura e Política: José Vasconcelos e
Alfonso Reyes no Brasil (1922-1938)”. In: Revista Brasileira de História. São Paulo: Vol. 23, nº 45,
07/2003. Apesar dos distanciamentos temperamentais e ideológicos que os marcaram, Reyes e
Vasconcelos cultivaram uma longa amizade a partir do exílio, por meio de cartas. Parte dessas
correspondências foi reunida, organizada e publicada. VER: FELL, Claude (compilação e notas) La
amistad en el dolor. Correspondencia entre José Vasconcelos y Alfonso Reyes. 1916-1959. México: El
Colegio Nacional, 1995.
186
Apesar de não ser mexicano, Pedro Henríquez Ureña manteve uma relação pessoal (casou-se com
Isabel Lombardo Toledano, irmã de Vicente Lombardo Toledano) e intelectual muito forte com o
México. Chegou àquele país em 1906 e, a partir de 1907, participou da “Sociedade de Conferências”,
nome inicial do Ateneo de la Juventud. Participou também da criação da Universidade Popular. Em
1914, afastou-se do México, voltando em 1921, quando foi chamado por Vasconcelos para participar do
seu projeto cultural, dinamizando a Universidade e no fomento da “Escola de Altos Estudos”. Em 1922,
fez parte da comitiva que representou o México em alguns países da América do Sul, sob a liderança de
Vasconcelos.
187
MONSIVAIS, Carlos. “Notas sobre la cultura mexicana en el siglo XX. In:COSÍO VILLEGAS,
Daniel. Historia general de México. Tomo 2. 2ª reimpressão.México:Ed. Harla/ El Colegio de
México,1988, p. 1394- 1402.
70
assim, reabilitar os laços com a “nação de nossa origem”. Fez referências a nomes de
escritores espanhóis como Menéndez y Pelayo (1856-1912), 188 Blasco Ibánez (1867-
1928), 189 Benito Pérez Galdós (1843-1920),190 autores que fizeram parte das rodas de
leituras e discussões nas reuniões ateneístas. De sua parte, mencionou, com orgulho, o
esforço empreendido por estabelecer intercâmbios com a porção hispânica no continente
latino-americano, que se concretizou na forma de convites ao argentino Manuel Ugarte
e ao poeta peruano José Santos Chocano (1875-1934) para a realização de conferências,
no ano em que ocupou a presidência daquela instituição.
Não é nosso propósito nem teríamos condições de nos aprofundar sobre o
conjunto da obra de Ureña e Reyes. Faremos breves referências a dois ensaios, La
ultima tule, de Reyes e Utopia de América, de Ureña. Ambos escritos ao longo da
década de 1920, coincidindo com o período de produção de La raza cósmica (1925) 191
de Vasconcelos, e atendem ao nosso interesse de apontar elementos comuns entre o
pensamento destes três intelectuais, que, influenciados por circunstâncias diversas,
sentiram-se impulsionados a buscar internamente elementos culturais que pudessem ser
apontados como “uma expressão própria” para a América Latina.
É patente o impacto da obra de Oswald Spengler,192 A decadência do ocidente,
publicada em 1918, sobre esses pensadores latino-americanos.193 Sua análise pessimista
sobre os acontecimentos europeus, interpretada como uma “crise de civilizações”,
criticando o pragmatismo e o tecnicismo levado à frente pelos países tidos como
188
Historiador espanhol, dedicado fundamentalmente à história das ideias, à crítica e história da literatura
espanhola e hispano-americana.
189
Romancista e político espanhol. Participou de lutas políticas, caracterizando-se por sua oposição à
monarquia. Manifestou seus ideais republicanos no periódico El Pueblo. Foi recebido no México pelo
presidente Venustiano Carranza, em 1920. Ibañez publicou uma obra com um retrato bastante crítico da
situação mexicana: La revolución mexicana y la dictadura militar .
190
Romancista e dramaturgo espanhol. Suas obras refletem sobre a vida espanhola no século XIX, nos
aspectos civis e políticos.
191
Vasconcelos publicou esta obra em 1925, mas afirmou ter reunido argumentos para sua tese desde a
viagem referida na nota acima, realizada em 1922. Reyes escreveu La ultima tule entre 1920 e 1921.
Urenã iniciou a escrita de seus ensaios em 1922. Publicaria, em forma de livro, no ano de 1925.
192
Oswald Spengler (1880-1936), ensaísta e historiador alemão. Publicou “A decadência do Ocidente”
em 1918. Spengler viu os eventos trágicos ligados à Primeira Guerra com muito pessimismo, fazendo
duras críticas ao pragmatismo e ao tecnicismo reinantes que se voltaram contra o próprio homem no
momento de beligerância. Interpretou a crise do Império alemão guilhermino como a crise da totalidade
da civilização ocidental .
193
Num artigo publicado em 1923, no El Universal, do México, Ureña fez referência direta à “crise da
civilização moderna, que iniciou em 1914 e se agrava a cada dia, deixando órfã, espiritualmente, a nossa
América”. Cf: UREÑA, Pedro Henríquez. “Orientaciones”. Obras Completas. Vol. V, p. 61. In: Pedro
Henríquez Ureña. Ediciones de cultura hispânica. Instituto de Cooperación Iberoamericana, 1993, p. 57.
O artigo foi publicado em El Universal, do México, em abril de 1923.
71
“desenvolvidos” na Europa, associada ao espiritualismo arielista 194 de José Enrique
Rodó, encontrou terreno fértil, provocando resultados no que tange à defesa de uma
identidade particular, e principalmente, um protagonismo para a América Latina.
Defendiam que o conceito não fosse interpretado como um sonho, mas como
uma realização histórica possível, vista, principalmente, como a inquietude do
aperfeiçoamento constante por meio do esforço humano.196As citações seguintes são de
Ureña e esclarecem parte do entusiasmo que então contaminava aquele segmento da
intelectualidade: “Se na América não frutificarem as utopias, onde encontraremos asilo?
(...) América começou sendo um ideal e segue sendo um ideal. A América é uma
utopia”. 197
Reyes, por sua vez, também militou pela causa da integração ibero-americana
de sua identidade cultural, posicionando-se em defesa de um novo papel para a América
ao afirmar: “O continente se deixa envolver em uma nova esperança e se oferece à
198
Europa como uma reserva de humanidade”. Em La ultima tule, propôs uma
194
O arielismo de Rodó defendia a preservação das tradições hispânicas como marca da cultura latino-
americana, que estaria ameaçada pelo materialismo.
195
A ideia de América como uma “utopia” é muito forte entre os três autores. Já vimos que Vasconcelos
chegou a afirmar que o continente americano poderia ser o lugar onde teria existido a mítica Atlântida.
Reyes não tentou provar nenhuma tese filosófica ou historiográfica, como fez Vasconcelos, mas fez
inúmeras referências à República de Platão, enaltecendo o ressurgimento da utopia. Referiu-se à Atlântida
de Platão como um “pressentimento científico e poético” e chamou a América de “Lugar da Promessa” e
“maravilhosa utopia”. REYES, Alfonso. Op. cit., p. 203, 204, 223 e 224.
196
UREÑA, Pedro Henríquez. “La utopia de América”. Obras Completas. Vol. V, p.233. In: Pedro
Henríquez Ureña. Op. cit., p. 51.
197
UREÑA, Pedro Henríquez. “Patria de la justicia”. Obras Completas. Vol. V, p. 241. In: Pedro
Henríquez Ureña. Op cit., p. 54.
198
REYES, Alfonso. La ultima tule y otros ensaios. Selección y prólogo: Rafael Gutiérrez Gigardot.
Caracas, Biblioteca Ayacucho, 1991, p. 225. Vasconcelos usa a mesma expressão em “La raza cósmica”
72
“redescoberta” da América, afirmando que os erros europeus deram mais uma vez
condições à América para voltar a representar o preenchimento de um espaço vazio,
significando, mais uma vez, a possibilidade de equilíbrio para a humanidade.
(...) Antes de ser descoberta, a América já era pressentida nos sonhos e
nos vislumbres da ciência. A necessidade de completar a figura
geográfica, respondia à necessidade de completar a figura política da
terra.199
199
Ibidem. P.225
200
Como indicava o espírito clássico dos gregos, os intelectuais citados faziam questão de ressaltar, nos
textos citados, a busca pelo aperfeiçoamento da vida humana por meio do esforço humano.
201
UREÑA, Pedro Henríquez. “Orientaciones”. In: Pedro Henríquez Ureña. Op. Cit., p.58. Publicado
originalmente em El Universal. México, abril de 1923, pags. 57 e 58.
202
Ver MONFORT, Ricardo Pérez. “Indigenismo, hispanismo y panamericanismo en la cultura popular
mexicana de 1920-1940. IN. BLANCARTE, Roberto. Cultura y identidad nacional. Op cit. 343-383.
73
203
como proposta original da cultura “superior”: “E, fracassada a Europa, temos
descoberto que os Estados Unidos têm pouco de si para nos ensinar”.204 Ureña justificou
a exclusão dos Estados Unidos com a seguinte afirmação:
Depois de ter nascido da liberdade, sido escudo para as vítimas de
todas as tiranias (...), tornou-se opulento e perdeu a cabeça. A matéria
devorou o espírito e a democracia que haviam constituído para o bem
de todos foi se convertendo na fábrica para o lucro de uns poucos.
Hoje, o que foi arquétipo de liberdade é um dos países menos livres do
mundo. Permitiremos que Nossa América siga caminho igual?205
203 Da Argentina, citamos dois intelectuais que compartilharam essa mesma tradição. Manuel Ugarte
74
segundo eles, ao simplesmente reproduzir a norma utilitária da metrópole, aquele país
havia perdido o seu encanto.208 Numa alusão direta às obras de Spengler e Rodó, Ureña
sublinhou que, nas de “crises de civilizações”, o espírito é que poderia salvar a América
Latina. Apresentou-a como herdeira de uma tradição espiritualista, o que lhe conferia,
segundo ele, condições de fazer frente à cultura saxônica, apresentada como uma cultura
materialista, tecnicista, pragmática e imediatista.209
75
categoria universal, colocando-o como o tipo que prevaleceria no futuro da humanidade.
Evidenciou as diferenças entre os norte-americanos e os latino-americanos, dando-nos
um lugar de supremacia ou uma “missão sem precedentes na história”, ao apresentar a
mistura de raças como uma capacidade superior, que poderia oferecer à humanidade um
“novo homem”, com maiores capacidades de aceitação de diferenças.
212
Segundo Ricardo Pérez Monfort, durante as décadas de 1920 e 1940, tanto na esfera nacional como
latino-americana, houve três correntes de pensamento que disputavam a representação do “nacional”.
Segundo esse autor, além do discurso latino-americanista, que teve o seu auge na década de 1920 e se
estendeu até os anos finais dos anos de 1930, havia ainda o indigenista e o hispanista. O indigenista, que
se opunha claramente ao hispanismo, foi incorporado com muita força nos projetos oficiais. O latino-
americanista reunia elementos desses dois que se opunham. O autor afirma ainda que, se por um lado, o
discurso latino-americanista negava as “culturas paralisadas” do velho continente, também o fazia em
relação ao “atraso” das culturas aborígenes. Monfort afirma ainda que o diferencial desse discurso esteve
no fato de não reivindicar, como os dois outros, um passado – indígena ou hispânico – e, sim, apontar
confiança no futuro. Cf.: MONFORT, Ricardo Pérez. “Indigenismo, hispanismo y panamericanismo en la
cultura popular mexicana de 1920-1940”. In: BLANCARTE, Roberto. (comp.) Op. Cit. Pags. 350 e 351.
213
Monfort ressalta que a “confiança no futuro”, que havia sido defendida no discurso latino-
americanista, foi aproveitada pelos Estados Unidos nos anos seguintes para arregimentar alguns daqueles
intelectuais em direção ao pan-americanismo, que priorizou romper com os “exclusivismos latinos”,
tentando apagar as diferenças entre América latina e saxônica, apoiados no argumento da “segurança
76
apresentados por Vasconcelos, uma das figuras proeminentes daquele discurso, como os
continuadores da visão materialista dos saxões na América, abriam suas asas poderosas
sobre a América Latina, ampliando, a cada dia, sua influência política, econômica e
cultural e dificultando a manutenção de utopias baseadas em quimeras espiritualistas.
De fato, algo mudara, mas não como o imaginado pelos defensores do espiritualismo
arielista de Rodó.
77
nacional, tanto no México quanto em outros países da América Latina.214
No próximo capítulo concentraremos nossa análise nas Memórias, discutindo a
construção de identidade nacional em José Vasconcelos, onde continuaremos analisando
o papel exercido pela Espanha nos elementos que ele considerava como “genuinamente
nacionais”.
214
As décadas de 1920 e 1930 deram evidência a intelectuais que exaltaram a mestiçagem. Além dos
citados, ligados à história mexicana, destacamos também Gilberto Freyre, no Brasil; José de la Riva
Agüero, no Peru e Nicolás Palacios no Chile, entre outros.
78
Capítulo 3. A construção de identidade nacional nas Memórias de José
Vasconcelos.
215
Na segunda metade da década de 1920, por meio da atuação diplomática do embaixador Dwight
Morrow, os Estados Unidos conseguiram resultados favoráveis no que diz respeito ao pagamento da
dívida externa mexicana e também a assuntos ligados aos interesses das companhias petrolíferas. O
embaixador também foi um excelente intermediário entre Calles, o Vaticano e a hierarquia da Igreja
Católica, no fim do conflito do Movimento Cristero, movimento armado que ocorreu entre os anos de
1926 a 1929, como reação às medidas anticlericais assinadas pelo governo de Calles, em 1926. Morrow
também atuou de forma decisiva no restabelecimento da ordem, quando estourou a rebelião escobarista,
em março de 1929, conseguindo com o governo norte-americano armas, munições e a vigilância da
79
Nesse contexto de mudanças e definições, na busca por encontrar as
caracterizações da identidade nacional, uma série de debates e enfrentamentos políticos
e ideológicos agitaram o cenário intelectual e político do México. Por um lado,
argumentos conservadores que defendiam a manutenção da tradição e, por outro, a
defesa de que o México deveria renunciar ao que havia sido para adentrar outro
momento histórico.216
As Memórias são ricas para análise devido ao fato de que o autor vivenciou
essas notórias transformações na história mexicana e posicionou-se sobre boa parte
delas.217
fronteira, como forma de evitar que os rebeldes recebessem suprimentos. Cf: AGUILAR CAMÍN &
MEYER. Op. Cit., pags127-129
216
ZEA, Leopoldo. El pensamiento latino-americano. Barcelona: Editora Ariel, 3ª edição, 1976.
217
Lembremos que Vasconcelos viveu, acompanhou (mesmo no exílio) e escreveu sobre alguns dos
momentos mais marcantes da história mexicana: parte do desenvolvimentismo porfirista e também o seu
fim; a Revolução, as ações e a morte de alguns dos principais nomes do movimento revolucionário, o
início da institucionalização do país, na década de 1920; o florescimento do Movimento Muralista, sob
sua égide, e o surgimento do Partido Nacional Revolucionário mexicano, mais tarde, Partido
Revolucionário Institucional.
218
BLANCARTE, Roberto (compilador). Cultura y identidad nacional. Op. cit., p. 17.
219
Diante da dificuldade própria de se definir o que seria o conceito de “civilização latina”, Vasconcelos
incluiu elementos culturais ligados à língua e a alimentação típica da região Mediterrânea, mas aferrou-se,
80
o memorialista afirmava que os elementos considerados identitários da nação mexicana
eram a língua espanhola e a religião católica. Construiu sua narrativa colocando,
constantemente, passado e presente frente a frente, conferindo permanente
superioridade ao período colonial, momento em que o México esteve sobre domínio
hispânico: as melhores realizações, os governantes mais aptos e, especialmente, a fase
em que os elementos essenciais da identidade nacional mexicana haviam sido
definidos.220
principalmente à religião católica. Ao chamar atenção para o quanto este conceito é vago e ambíguo,
Ruggiero Romano, apesar da nacionalidade italiana, afirma que nunca soube bem o que seria “latinidade”.
Afirma que, se fosse considerar a língua, pensaria em Itália, Portugal França, Espanha, Romênia. O autor
questiona sobre quais outros entrariam no leque da “latinidade”: países da América Latina? Os
colonizados na África, pela França? Segundo esse autor, o conceito leva apenas a uma alteridade “lá” e
“aqui”. Apegando-se ao que escreveu Michel Chevalier sobre o tema, conclui que, no fim das contas,
acredita que “latinidade” terminou, de fato, por representar catolicidade. Cf: ROMANO, Ruggiero.
“Algunas consideraciones alredor de nación, Estado y América Centro-Meridional”. In: BLANCARTE,
Roberto. (comp.). Op. Cit. pags. 36 e 37.
220
Num de seus discursos proferidos em 1932, Vasconcelos falou sobre uma imaginada homogeneidade
cultural que Espanha havia conferido à América Latina, no momento da colonização, ao disseminar,
“desde o Colorado até a Patagônia, os fatores de unidade e coesão: um Deus, uma cultura e uma língua.
Naquele momento, defendeu a necessidade de os mexicanos reconhecerem suas origens hispânicas e a
contribuição da Espanha na definição da identidade nacional. Cf: VASCONCELOS, José. Discursos.
Op.cit., 158. Sabemos que os critérios escolhidos por Vasconcelos, especialmente a estreita relação
estabelecida entre religião e identidade nacional, sustentam-se em bases nada sólidas. Tratando sobre os
processos de construção de identidades nacionais, Eric Hobsbawm afirma que outros países, como o
México, enfrentaram imensas dificuldades ao buscar estabelecer critérios “objetivos” para essa “autêntica
nacionalidade”. Em Nações e Nacionalismos, este historiador afirma que “critérios como língua, território
comum, história comum, traços culturais ou população “homogênea”, apesar de servirem como
propósitos propagandísticos e programáticos, sempre falharam e foram bastante problemáticos. Um dos
grandes problemas na construção da identidade de uma nação, utilizando critérios tão específicos, é que,
ao eleger, por exemplo, uma crença ou um idioma num país com tanta diversidade nesses aspectos,
escamoteiam-se inúmeras diferenças existentes. HOBSBAWM, Eric J. Nações e nacionalismos. São
Paulo: Paz e Terra, P.15.
221
Em 1924, Vasconcelos publica Los ultimos 50 años. Ali, o autor já propunha uma revisão da história
nacional, tentando trazer à cena heróis nacionais “esquecidos” pela nação. Em 1938 publica Breve
História do México, ampliando suas ideias e se afirmando como um “ideólogo de direita.”
81
222
uma obra colossal civilizadora ainda não superada, já que a Espanha, naquele
período, congregava “os melhores homens, os maiores feitos, os maiores ideais”. Não
ignoremos que a valorização desses personagens por parte de Vasconcelos devia-se ao
fato de que eles tinham trazido as sementes das quais nasceram os mexicanos. Cortés,
por exemplo, foi chamado por Vasconcelos de “porta-bandeira do Deus cristão e, de
certo modo, reivindicador de Quetzalcoatl versus Huitzilopochtli”.223 Imputou a Hernán
Cortés o título de “fundador da nacionalidade”. 224
222
VASCONCELOS, José. Indologia. Op. cit.,p. 76 e 123 .
223
VASCONCELOS, José. El Proconsulado. P. 725.
224
Consciente de que sua afirmação enfrentaria controvérsias, antecipou-se na defesa do colonizador:
Apontaremos seus crimes sem perdoá-los e ainda depois o chamaremos grande. Grande porque de reinos
em disputas fez uma nação imensa. Grande porque fundou povos pelo norte e pelo sul, pelo ocidente e
pelo oriente e por todos os confins de um vasto Império. Grande, porque pôs ao mar barcos para
consumar a empresa surpreendente de descobrir e colonizar as duas Califórnias. Construtor, grande
construtor. Que homem de nossa época possuiu seu impulso? Quem fez mais para a integração do que é
hoje o México? VASCONCELOS, José. “Discurso pronunciado el Dia del Maestro”(1924).In: Discursos
(1920-1950) Op.cit.,109. Nos discursos proferidos na década de 1920, Vasconcelos já enaltecia a figura
de Cortés. Em 1941, ratificou seus posicionamentos em forma de livro, publicando Hernán Cortés,
creador de la nacionalidad. Na busca por aumentar o grau de importância de Cortés na história nacional
e diminuir o de Cuauhtémoc, Vasconcelos afirma que o “mito de Cuauhtémoc” fora criado por
historiadores norte-americanos para apagar a marca da colonização espanhola, fazendo com que os
mexicanos vissem o colonizador como um “estranho”. Completou a argumentação dizendo que a figura
de Cortés cobria a pátria do mexicano desde Sonora até Yucatán e – provocando - também nos territórios
“ganhos por Cortés e perdidos após a independência”, enquanto a figura de Cuauhtémoc teria ficado
restrita aos otomíes da chapada de Anáhuac. Segundo ele, “sem nenhuma relação com o resto do país.”
Cf: VASCONCELOS, José. Breve historia de Mexico. Op. cit.,p.95.
225
Sobre a visita de Vasconcelos ao Brasil, VER: TENÓRIO, Mauricio. “Um Cuauhtémoc carioca:
comemorando o Centenário da Independência do Brasil e a raça cósmica”. In: Estudos Históricos. RJ:
Vol. 7, nº14, 1994, p.123-148.
82
equipe de diplomatas profissionais, pintores e poetas que o acompanhou.226 Referindo-
se àquele momento nos seus relatos memorialísticos, afirmou com orgulho que aquela
havia sido a “primeira vez que o México mandava ao estrangeiro, não só soldados, mas
também conferencistas e artistas, livros e obras de arte”. 227
226
Após passar pelo Brasil, Uruguai, Argentina e Chile, Vasconcelos concluiu sua missão diplomática
fazendo uma conferência em Washington. No ano de 1922, o governo de Álvaro Obregón ainda buscava
o reconhecimento por parte daquele país. No artigo, Maurício Tenório lembra que, com o assassinato de
Carranza, os generais Obregón e Calles haviam conseguido vitórias políticas e militares sobre os
numerosos grupos revolucionários, mas o México ainda carregava as marcas de anos de violência e de
imprevisibilidade política e, em 1922, nada parecia indicar uma mudança de cenário. Segundo Tenório, à
frente da presidência, Obregón havia conseguido certo nível de centralização econômica e política entre
as facções revolucionárias. Por meio da política externa, buscava o reconhecimento do novo regime por
parte dos Estados Unidos e a recuperação da reputação financeira internacional do México. “Buscava
negociar, não apenas armas, dinheiro e palavras, mas as próprias noções de nacionalismo, cultura
nacional e educação apresentavam fronteiras fluidas”. TENÓRIO, Mauricio. Op., cit., pags. 127 e 130.
227
VASCONCELOS, José. “Memórias II. El Desastre. México: Fondo de Cultura Económica, 1ª
reimpressão, 1984. P.133. Entre alguns nomes que viajaram com Vasconcelos na época, destacamos
Pedro Henríquez Ureña, Julio Torri, o poeta Carlos Pellicer e os pintores Roberto Montenegro e Gabriel
Fernández Ledesma. Cf: TENÓRIO Maurício. Op cit., p. 130.
228
Cf: VASCONCELOS, José. “En el ofrecimiento que Mexico hace al Brasil de una estatua de
Cuauthémoc”. In: Discursos. Op. Cit., p.92-97. Foi nessa viagem diplomática por alguns países da
América do Sul que Vasconcelos encontrou elementos de inspiração para desenvolver suas ideias sobre a
“raça cósmica”.
83
“pequena presença de indígenas”. 229 Justificou-se, afirmando que não havia participado
da escolha do presente e que, na ocasião, não conhecendo direito a história do índio,
teria criado um Cuauhtémoc um “pouco fantástico”:230
Confesso que minhas ideias não andavam muito claras a respeito, nem
tinha eu de Cuauhtémoc outra lembrança, além do texto que aquelas
peregrinações, que na Capital organizava um pastor da América do
Norte, o padre Hunt, lá pelos dias que eu era um preparatoriano (...).
Fica, pois, em meu discurso, ainda o que eu disse de Cuauhtémoc e do
poisenttismo, no meu livro de “História do México”, onde aponto o
perigo de um indigenismo que não se propõe a consolidar a obra da
Espanha dentro da qual o índio conquistou uma pátria e, sim, a
destruir, insultar a obra da Espanha, a fim de que fique outra vez à
mercê de ideologias novas e estranhas que são antecedente de uma
nova e mais perigosa conquista.231
229
VASCONCELOS, José. El Desastre. P.131.
230
Descrevendo os comentários feitos pelos que participaram do evento e que lhe fizeram observar a
“inconsequência”, respondeu: “Não faço história; tento criar um mito”. Cf: Ibidem, p.132.
231
VASCONCELOS, José. El Desastre. P. 132.
232
Ibidem, p. 145.
233
Ibidem, p. 145.
84
mito esta suposta destruição violenta de uma cultura. Um conquistador
que não traz mais que violência, ao ficar no povo submetido sofre seu
influxo e é absorvido; mas, para isso, necessita-se de que o povo
submetido possua cultura (...). Em nosso continente, a conquista
material foi acompanhada da destruição da ideologia indígena, mas
essa ideologia destruída foi substituída, e não creio que ninguém
negue a sério, que se substituiu com vantagem.234
Além do idioma espanhol, segundo ele, uma “das línguas mais ilustres do
mundo”, o outro elemento cultural, a religião católica, foi disseminada pelos primeiros
povoadores, no México e por toda a América Latina, dando coesão aos povos. Quando
relacionava religião e nacionalismo, Vasconcelos dava aos seus argumentos, matizes
antimperialista, afirmando que o catolicismo tinha o “poder de levantar muralha
impenetrável” contra a cultura alheia.235 Ainda, segundo o autor, “(...) a destruição do
catolicismo tira à nossa raça o mais vigoroso aglutinante e a deixa à mercê de toda a
conquista espiritual que é o antecedente da dominação política e econômica de todo o
território.” 236
Em sua concepção, o marco do “desastre” da nação mexicana fora a partir da
Independência do México em relação à Espanha, evidenciada através da desintegração
territorial, perda dos valores identitários e volta à “barbárie asteca”.
234
VASCONCELOS, José. Indologia. Op cit.,p. 114. Em El Desastre, recupera a ideia. Cf: El Desastre.
Op. Cit., pags. 106-108.
235
Numa tentativa de conferir uma suposta “humanidade” como característica do catolicismo em relação
ao protestantismo, Vasconcelos afirmou: “plasma as almas, imunizando os espíritos contra a varicela do
protestantismo, pois este, uma vez terminado seu papel histórico, como campeão do livre arbítrio, por
exagero individualista, produz o sistema capitalista contemporâneo”. Cf: VASCONCELOS, José. El
Proconsulado. P. 748.
236
Ao estabelecer essa relação complicada entre nacionalismo e catolicismo, Vasconcelos apresentou o
presidente Plutarco Elias Calles (1924-1928) como um dos maiores traidores da Nação por ter colocado
em prática, durante seu governo, diversas medidas anticlericais. Vasconcelos alimentava um
ressentimento particular em relação àquele presidente. Sua irmã Carmem, que era freira, teve que se
refugiar na Espanha, quando Plutarco Elias Calles ordenou que fosse fechado o convento onde a mesma
vivia. Em referências constantes, Calles foi descrito pelo memorialista como um “pseudo-
revolucionário”, que estaria levando o México a aproximar-se de um “pseudo-socialismo”, por meio de
uma reforma agrária que prejudicava os “nacionais” e perseguia a “Igreja nacional”, deixando incólumes
os estrangeiros. Segundo ele, os governantes, especialmente Calles, estariam entregando a “alma da
nação” ao estrangeiro e contribuindo para dissolver os elementos identitários do país ao defender o Estado
laico e tirar da Igreja Católica a administração das escolas. Seu argumento era que o “genuinamente
nacional” era perseguido, enquanto o “outro” era favorecido com medidas governamentais que davam
liberdade de atuação para o “protestantismo ianque” e o “ateísmo socialista”. Cf: El desastre. P.585.
Sobre a situação da irmã de Vasconcelos, Cf: SKIRIUS, John. La cruzada de 1929. Op cit.,p. 47.
85
Espanha. Isto não se confirma. 237 Além de aspectos mais pontuais, a grande crítica
presente em seus escritos, fazia menção ao fato de que, após a independência política,
ao deixar de ser colônia da Espanha, havia passado por um processo de colonização
espiritual por parte dos Estados Unidos, afastando-se, então, de valores culturais
“superiores”.
86
civilização mais deficiente que conhece a história. Tais são os
elementos que têm travado combate na alma deste “Ulisses Criollo”, o
mesmo que em cada um de seus compatriotas.242
Há algumas questões que merecem ser analisadas com especial atenção nesse
trecho do prefácio de Ulises Criollo. Ali, Vasconcelos reafirmou seu posicionamento
sobre as consequências do rompimento dos laços com a Espanha. Segundo ele, a partir
dali, teria iniciado uma “luta desigual”, tendo, de um lado, a cultura hispânica e de
outro, os dois inimigos: um “indigenismo falsificado” e a civilização anglo-saxã, que,
aos seus olhos, representava apenas um “verniz” de civilização. O “desastre nacional”
era interpretado como resultado do protagonismo destes dois elementos nocivos na
história do México.
87
As portas e janelas das casas estão protegidas com grades de ferro,
como o antigo costume, mas abertas quase todo ano, graças ao clima
benigno. Por isso é que se torna fácil notar, pelos interiores, alguma
silhueta feminina de doce olhar e enérgica distinção. Negras as
pestanas e pálida a pele, como algo do tipo racial da Extremadura ou
da Andaluzia. Quem conhece a história recente não deixa de pensar,
ao olhá-las, que são mães ou irmãs de heróis autênticos. 244
Nas ruas centrais, abrem suas portas às bancas de comidas, junto com
implementos agrícolas, ferramentas, chapéus de feltros e de penas,
rebozos 245 e sapatos, mantas e telas de cores vivas para as damas. Nas
estantes, brilham garrafas de vinhos e licores. Contra os muros se
amontoam montes de grãos; Em vidros sobre o balcão, há conservas,
queijos e piloncillo 246. Há sempre, no lugar, uma farmácia bonita e
sortida (...). Cada povoado tem a sua praça (...). Ao fundo, enchendo
de toda a sua magnitude, a festa arquitetônica da igreja, com seus
campanários, suas cúpulas e suas fachadas barrocas, que são causa de
alegrias. 247
88
defender interesses considerados “nossos”- tanto mexicanos como latino-americanos.249
Em sua revisão dos heróis, conferiu a Alamán uma posição superior até mesmo a
Bolívar, indicando que o primeiro havia avançado ao demonstrar que acreditava “na
raça, no idioma e na comunidade religiosa”, elementos que eram caracterizadores da
cultura nacional mexicana e ibero-americana.250
249
Alamán tornou-se figura reverenciada por setores mais conservadores do México, especialmente Jose
Vasconcelos. Os argumentos eram de que o ex Ministro havia enfrentado interesses dos Estados Unidos,
ao defender a união de países latino-americanos e mostrar-se contra tentativas de formação de tratados de
limites e de comércio entre Estados Unidos e México. Após tentativas de acordos, Alamán perdeu força
política e renunciou, em 26/09/1825. VER:
http://www.memoriapoliticademexico.org/Efemerides/8/25081829.html. Acessado no dia 27/01/2010.
250
Vasconcelos afirmava que a solução para a nação seria a construção de um “nacionalismo renovado e
defensivo”, que acabasse com o dualismo “liberal-conservador”. Segundo ele, obra de “intenções
inimigas e estranhas” e que tanto tinha prejudicado aos nacionais. Sugeria que os mexicanos deveriam
adotar um “Liberalismo criollo”, que não ferisse os valores nacionais, garantindo liberdade de culto como
solução fraternal para os conflitos religiosos. VASCONCELOS, José. Bolivarismo y Monroísmo. Op. cit.,
p.78.
251
A constituição de 1917 ratificou disposições anticlericais da Constituição de 1857. Especialmente os
artigos 3, 25, 27 e 130, trouxeram conflitos entre o Governo e hierarquia da Igreja católica que
consideravam os artigos lesivos à Igreja e aos fiéis. Os temas dos artigos referiam-se às restrições de
direitos à propriedade das organizações religiosas, educação laica e à prática de cultos públicos fora da
igreja. Uma verdadeira guerra de braço foi travada entre as duas partes. Em 1915, Obregón expulsou um
grupo de padres espanhóis da Cidade do México, acusando vários deles de estarem contaminados por
doenças venéreas. Em resposta, foi criada a militante Associação Católica de Jovens Mexicanos, que
organizou uma série de boicotes e manifestações. Em 1926, durante o seu governo, Calles ordenou o
fechamento de conventos e igrejas, expulsou duzentos sacerdotes estrangeiros, reduziu a permissão para o
número de sacerdotes, em alguns Estados da República. Além disso, o bispo de Huejutla foi preso,
julgado e condenado por emitir opiniões contra as leis do país. Naquele mesmo ano, eclodiu a guerra
Cristera. Cf: AGUILAR CAMÍN & MEYER. Op. Cit., pags.113-116.
252
VASCONCELOS, José. La tormenta, p. 541
89
ressaltou, em inúmeras páginas, a tristeza pelo rompimento do vínculo e ausência de
reconhecimento das “raízes hispânicas” por parte dos mexicanos.
Segundo ele, tais medidas eram um “instrumento nefasto”, utilizado pelo único
inimigo – o ianque - contrariando os interesses da “Igreja Nacional”, que, há cinqüenta
anos, já não oferecia perigo algum e perseguindo os “nacionais”, restando-lhes apenas o
exílio. 253
Leal aos seus costumes castiços, a gente dos Altos254 chegou até o
callismo como uma reserva nacional étnica e política de melhor
qualidade. Em destruir aquele tesouro humano, se empenhou o
Governo, que, a sangue e fogo, com Calles à cabeça, desenraizava o
catolicismo, segundo as exigências de um jacobinismo que parecia
tresnoitado, mas resultou terrivelmente cruel.255
253
Sob um tom acusatório, Vasconcelos emitiu juízos, chamando os mexicanos de “raça diminuída,
deformada pelos tontos da Reforma que aboliram Deus por decreto”. Cf: VASCONCELOS, José. El
desastre. P. 584
254
Região de Jalisco.
255
VASCONCELOS, José. La Flama. P. 20
256
Referiu-se aos norte-americanos como referência, inclusive para justificar a manutenção de privilégios
ao catolicismo, apresentando as Universidades de Stanford e da Califórnia como modelos de instituições
que não haviam abolido a religião do currículo, mantendo um Seminário Protestante em suas
dependências.
90
estimuladas por uma influência externa, que tinha por objetivo uma nova “colonização”
do México.
Assim como fez com Cuauthémoc, quando afirmou que não passava de um
“mito” criado por historiadores norte-americanos que visavam, em última instância,
destruir a obra que a Espanha havia construído no México, fazendo com que os
mexicanos vissem o colonizador como um “estranho”, expandiu seus argumentos para
definir outros dois nomes importantes que tinham origens indígenas: Benito Juárez e
Emiliano Zapata.
91
glorioso” e um “presente decrépito”, que nos remetem à ideia da “perda”. Associa uma
visão de decadência ao observado ambiente de destruição: a arquitetura colonial
destruída por anos seguidos de guerra, o remanescente de população criolla,
prejudicado economicamente e culturalmente por perseguições políticas e religiosas
veladas, “sob pretextos avançados”.261
92
mesclaram à seiva da Europa. Puebla é o tipo de mestiçagem: de
habilidade sutil, mas dissimulado e fraco. 264
264
VASCONCELOS, José. El Desastre. P.206.
265
VASCONCELOS, José. Ulises criollo. Pags. 6 e 7.
266
Referimo-nos a um conceito desenvolvido por Marianne Hirsch. Essa autora chama de “pós-memória”
o tipo de lembrança que traz consigo uma “dimensão afetiva, moral e, por que não dizer, identitária”.
Hirsch criou o termo para designar a memória da geração seguinte àquela que protagonizou os
acontecimentos. Enfim, de acordo com Hirsch, “pós-memória” seria a “memória” dos filhos sobre a
memória dos pais. Citado por SARLO, Beatriz. Op. cit., p.90 e 01.
93
violando mulheres e roubando crianças maiores para lhes servirem nas guerras. 267
Advertia sua mãe:
A partir da advertência da mãe sobre o perigo de se cair nas mãos daquela gente
“cruel”, elaborou a primeira representação de si, apontando para a “missão” à qual se
sentia destinado a cumprir e que foi amplamente explorada ao longo dos demais
volumes: como um missionário nos tempos modernos, a ele também caberia a tarefa de
“dar a conhecer a doutrina entre os gentios, os selvagens: Esta é a suprema missão”.269
94
que, por falta de escolas “aceitáveis” no lado mexicano, tinha que atravessar a fronteira
para frequentar aulas na Escola de Eagle Pass, no Texas.
Além das dificuldades próprias do idioma, narrou a sensação de ver crescer seus
primeiros conflitos raciais e patrióticos, ao se defrontar com a visão do norte-americano
que olhava o mexicano como inferior. Segundo ele, suas “febres patrióticas” sentidas
como “dor misturada à vergonha” eram comuns, especialmente durante as aulas de
história do Texas, quando a professora apresentava a imagem do mapa antigo de Garcia
Cubas, afirmando: When México was the largest nation of the continent e depois
271
mostrava o mapa atual: present México. Sua tristeza era constatar que o rechaço à
Espanha levara o México a vivenciar um processo histórico inverso ao dos Estados
Unidos: expansão norte-americana e declínio mexicano.
Não podemos perder de vista que as três primeiras décadas do século XX,
momento de intensa atuação política e intelectual de José Vasconcelos, foram anos
marcados por grandes transformações políticas, culturais e sociais no cenário mexicano.
Segundo Beatriz Sarlo,272 quando ocorrem grandes transformações numa determinada
sociedade, afetando relações sociais e econômicas, além de perfis urbanos, a cultura
elabora estratégias simbólicas e de representação que, convertidas em tópico, têm
merecido o nome de “idade dourada”, entendida como a configuração literária da
estrutura ideológico-afetiva, que emerge dos incômodos causados pelo novo. Por vezes,
essas transformações em marcha, resultantes do processo de modernidade, são
interpretadas como um cenário de “perda”. Sarlo afirma que se trata de um período de
incertezas, mas também de seguranças muito fortes, de releituras do passado, utopias e
de fantasias reparadoras. 273
271
VASCONCELOS, José. Ulises criollo. Op. cit., p.46
272
Sarlo analisa o impacto ou a reação em parte dos intelectuais argentinos das décadas de 1920 e 1930,
frente às transformações urbanas modernizadoras em Buenos Aires. VER: SARLO, Beatriz. Una
modernidad periférica: Buenos Aires 1920 y 1940. Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión, 1988.
273
Ibidem, p. 31. Ao falar sobre o tema, Sarlo baseia-se nos estudos de Raymond Williams (The country
and the city). Referindo-se às conclusões de William, Sarlo lembra que esse tópico não trata de uma
reconstituição realista nem histórica e, sim, uma pauta que, localizada no passado, é basicamente
imaginativa, além de anacrônica e utópica. Cf: SARLO, Beatriz. Op. Cit., pags. 29-32.
95
este evento histórico, no que tange à incorporação das camadas sociais populares,
especialmente os indígenas e também à aproximação do México em relação dos Estados
Unidos. Nossa interpretação é de que uma parcela da sociedade mexicana, que se sentia
identificada com a “cultura criolla”, por diferentes motivos, foi aquela que mais se
ressentiu com as mudanças. Entendemos que esse autor materializou, por meio de suas
Memórias, o pensamento e sentimentos de um setor da população mexicana que, por
diferentes motivos, não se sentia identificado ou atendido com as transformações
ocorridas na vida mexicana.
274
Fazendo uma análise dos três discursos que travaram embates pela imagem do “povo mexicano”,
Ricardo Pérez Monfort lista uma série de publicações periódicas que circularam de forma profusa na
década de 1920 e que evidenciavam a defesa do hispanismo: Don Quijote, El Día Español, La Raza,
América Española, Acción Española, La Revista Española, España, El Diario Español. Algumas tiveram
duração efêmera e público bastante reduzido, como Don Quijote e La Raza. Outras seguiram sendo
publicadas até a entrada dos anos 1930, gozando de boa aceitação entre a sociedade da Capital. Por meio
do artigo de Monfort, concluímos que havia concordância entre o conteúdo dessas publicações e aquilo
que Vasconcelos defendia como valores identitários nacionais. Cf: PÉREZ Monfort, Ricardo. Op cit.,p.
366.
275
O conceito de “estrutura do sentimento” foi desenvolvido por Raymond Williams para focalizar
uma modalidade de relações históricas e sociais. “(...) trata-se de descrever a presença de elementos
comuns em várias obras de arte do mesmo período histórico que não podem ser descritos apenas
formalmente, ou parafraseados como afirmativas sobre o mundo: a estrutura de sentimento é a
articulação de uma resposta a mudanças determinadas na organização social”. Raymond Williams citado
por CEVASCO, Maria Elisa. Para ler Raymond Williams. Rio de Janeiro. Ed. Paz e Terra, 2001, p.152-
153).
276
Ibidem, p.32
96
pela constatação de uma “cultura decaída”, por conta da invasão da cultura norte-
americana, que alterava costumes e valores “nacionais”. 277
O “Ulisses Criollo” também relatou sobre suas andanças pela Europa durante
seus exílios voluntários, especialmente, suas passagens pela Espanha. 280 Nesses relatos,
procurou ressaltar o quanto eram fortes as semelhanças entre o México e a Espanha.
Vasconcelos foi minucioso ao descrever as emoções sentidas ao ouvir o espanhol falado
na “pátria-mãe”. Segundo ele, o prazer que a beleza e a sonoridade da língua lhe
proporcionava, dava-lhe uma sensação quase inenarrável. Nas imagens relatadas das
cidades espanholas, fez descrições do impacto que o encanto pela cultura hispânica
havia lhe provocado, ao passar pelas ruas, a beleza das construções, as pessoas, o som
melodioso do sotaque da língua na Espanha, as músicas e comidas.
277
Em seus volumes, especialmente em El Proconsulado, Vasconcelos escreve como um “profeta”,
condenando a “norte-americanização” dos costumes no México. John Skirius afirma que, em 1929, não
era preciso olhar com uma bola de cristal para observar as mudanças que já estavam se produzindo, pois o
México já estava no umbral de uma nova era: basebol, cheques de viagens da American Express, métodos
educativos importados dos Estados Unidos, o National City Bank, a fábrica da Ford e outros projetos já
assinalavam uma presença cada vez maior dos Estados Unidos na economia e na cultura do México. Cf.
SKIRIUS, John. José Vasconcelos y la cruzada de 1929.México, Siglo XXI Editores.2ª edición
corrigida.Pags. 192 e 193.
278
VASCONCELOS, José. Ulises Criollo. P. 73.
279
VASCONCELOS, José. El Desastre. P.182.
280
Aproximadamente metade dos capítulos de El Desastre é dedicada às descrições de lembranças de
viagens realizadas por países da Europa, à “Terra Santa” e também ao Egito. Concentrou as maiores
emoções nas descrições ligadas às cidades espanholas. Entre alguns dos títulos escolhidos, constam
“Viagem à Espanha”, “Minha Espanha”, “A odisséia espanhola” e outros em que simplesmente citava o
nome da cidade visitada. Cf: VASCONCELOS, José. El Desastre. Pags. 298 -559
97
O valor que Vasconcelos dava à arquitetur coloniallevou-o a ressaltar o que
havia observado em suas viagens por cidades europeias, fazendo constantes
comparações com o México. Descreveu a beleza de palácios, muros e catedrais,
construídas desde os séculos XI ou XVII e que continuvam a impressionar, não dando
sinais de decadência. Tais lembranças serviram-lhe para manifestar sua insatisfação em
realação ao desparecimento desta arquitetura no México, tanto pela destruição,
consequência dos anos revolucionários, como por conta do novo estilo arquitetônico
que se fazia presente nas novas construções.
Ao olhar para o presente, via, para desgraça da nação, todo legado espanhol
perder força, permitindo uma “invasão anglo-saxônica-protestante, que se manifestava,
segundo ele, em diversos setores da vida mexicana.
281
VASCONCELOS, José. El Desastre. Op. Cit.,p 327.
98
cultural, seria necessário um tônico capaz de nutrir o povo mexicano: a reafirmação dos
282
valores culturais espanhóis.
Descreveu, com desprezo, os salões de jogos de cartas e bilhares, “passatempos
embrutecedores”, em vez dos cafés europeus, locais que possibilitavam um estado
civilizado de sociabilidade. Falou ainda com desprezo das gorduras industrializadas dos
norte-americanos, frente ao azeite de oliva; do café, “bebida perversa, em vez do
vinho.” Escreveu sobre a diversidade de sabores da farinha de trigo, dos presuntos
encontrados na Espanha, que se diferenciavam da uniformidade de sabores patenteados
dos ianques. Em suas comparações, concluiu afirmando que a uniformidade existente
nos Estados Unidos levava os visitantes à impressão de que, ao conhecerem uma aldeia,
teriam conhecido o modo de vida de cento e trinta milhões de habitantes.283 Em seus
argumentos, defendia que o encantamento da cultura espanhola devia-se ao fato de
existir a possibilidade de surpresas de sabores, cores e formas, já que nada ali estava
regulamentado. Cada região visitada apresentava particularidades e nisso estaria a força
e o encanto de uma cultura que era rica, por ser diversa.284
Por outro lado, também destacamos que, em relação aos Estados Unidos, é bem
verdade que Vasconcelos teve posições bastante ambíguas. Como Rodó, que afirmou
não amá-los, mas reconheceu que os admirava, Vasconcelos teve com o vizinho do
285
norte uma relação de admiração e “ódio.” Mesmo colocando-os como opositores,
reais inimigos da identidade nacional mexicana, usou-os, muitas vezes - também como
Rodó - como exemplo de uma cultura que, embora longe de ser refinada ou espiritual,
tinha uma eficácia admirável: autoridades eleitas regularmente e sujeitas às
responsabilidades, civilidade, democracia, modelo em relação à organização e
funcionamento de bibliotecas. 286
282
VASCONCELOS, José. El desastre, p. 169 e El Proconsulado, p. 747.
283
VASCONCELOS, José. El Desastre. Pags. 334 e 360.
284
Ibidem. Pags. 329-336
285
RODÓ, José Henrique. Ariel. Op. Cit.,p.105.
286
Cf: VASCONCELOS, José. La tormenta. P. 519
287
Eric Hobsbawm já chamou a atenção para movimentos que ocorreram desde a época romântica, que
também buscaram preservar um passado. Como Vasconcelos, o “herói criollo”, Hobsbawm afirma que
99
ofereceu uma versão do que entendia como o “naufrágio de uma civilização” ou a
“catástrofe étnico-social”, apontando o presente apenas como o lugar da decadência
econômica, cultural e política.288
muitos desses movimentos são liderados por “repositários da continuidade histórica e da tradição.”
Entretanto este autor lembra que, apesar dos esforços, nunca poderão desenvolver, nem preservar um
passado vivo: normalmente estão destinados a se transformarem em “tradições inventadas”. Este autor
lembra ainda que, “o próprio aparecimento de tais movimentos, que defendem a restauração das tradições,
sejam eles “tradicionalistas” ou não, já indicam uma ruptura”.287
Cf. HOBSBAWM, Eric J.&RANGER Terence (org.) A invenção das tradições.RJ: Paz e Terra,1997,
pags.15/16.
288
Vasconcelos fez referências a algumas medidas políticas que entendeu como “hispanófobas”,
empreendidas por alguns governantes pós-revolucionários. Nessas ocasiões, fez ataques diretos a
Carranza e Calles, especialmente, acusando-os de terem realizado uma política de expropriações de terras
que havia atingido muito mais os espanhóis que os norte-americanos, por exemplo. Dados fornecidos por
John Skirius informam que, até o ano de 1927, a reforma agrária se aplicou, de fato, muito mais contra os
espanhóis que possuíam terras mexicanas do que contra os norte-americanos. Citando um informe de
07/07/1929, p. 15 do NY Times, Skirius afirma que, nas estatísticas até o fim de 1927, das terras em mãos
de estrangeiros, 51.7% eram de norte-americanos e 19.5% de espanhóis. Das terras expropriadas, durante
a Reforma agrária, 27% foram de norte-americanos e 53% de espanhóis. Cf.: SKIRIUS, John. Op. Cit., p.
75.
100
demolição. A obra da mestiçagem, obra indispensável e salvadora, não
teve tempo ainda de frutificar.289
Num momento onde o tom era de pesar, por diversas expectativas frustradas, a
mestiçagem foi apenas mais uma. Ele, que chamou o México de “terra de abortos”,290
sublinhou que a mestiçagem tinha sido mais um destes, já que a condição colocada - a
prevalência dos valores brancos, “civilizados” - não se confirmara, fazendo com que as
propostas originalmente imaginadas não frutificassem. Em seus relatos memorialísticos,
o mestiço praticamente desapareceu e, nos momentos em que se referiu à sua “raça
cósmica”, chamou-a de “tese derrotada”.291
289
VASCONCELOS, José. El Desastre. P. 291.
290
VASCONCELOS, José. El Proconsulado. P.613
291
VASCONCELOS, José. El Proconsulado. P. 1075.
292
Cf: VASCONCELOS, José. El desastre, pags. 37 e 97.
293
Ao longo dos três exílios, além de passagens curtas por países das Américas Central e do Sul e
também pela França, Vasconcelos permaneceu por períodos um pouco mais longos na Espanha e na
Argentina. Entretanto foi nos Estados Unidos que viveu temporadas mais extensas, até poder voltar ao
México.
101
comum, que era o fato de ambos se sentirem como “desajustados na América”. A
citação completa:
294
VASCONCELOS, José. El Desastre. P. 455/6
102
problemas sérios. O passado dos grupos indígenas não era incorporado à história da
pátria, visto que Vasconcelos não via em seu passado algo que devesse ser preservado.
295
ACHEBE, Chinua. O mundo se despedaça. Tradução de Vera Queiroz da Costa e Silva. São Paulo:
Ática, 1983 (Coleção de autores africanos; 17).
103
apresentasse com qualidades e virtudes tão superiores, que ele não concebia a ideia de
substituição ou da perda dos mesmos. Sua mágoa foi manifestada em inúmeros
momentos ao relatar a sua luta inglória em tentar fazer o povo mexicano valorizar suas
raízes culturais e a voltar a sentir orgulho pela tradição interrompida. Tristeza, cólera e
desencanto foram manifestações constantes em seus escritos quando se referiu ao
passado colonial: idealizado, tradicional, católico e criollo, que, aos seus olhos, havia se
perdido. Localizou, ali, o lugar hierárquico dos “melhores”, quando o tipo nacional
civilizado, o elemento branco e a Igreja “nacional”, tinham o seu espaço e direitos
garantidos.
Os tons de sua narrativa oscilam entre nostalgias e duras acusações àqueles que,
em seu discurso, haviam levado a pátria àquele estado de descaracterização da
identidade nacional. Seus escritos são o registro da busca de uma origem e apontam um
destino nada promissor para uma nação que abrira mão daquilo que representava “o
nosso”, ou seja, os “valores superiores, belos”, legados pela Espanha, para substituí-los
296
VASCONCELOS, José. El Desastre. P.29
297
Citado por Samuel Ramos. In: RAMOS, Samuel. História de la filosofia en México. México: UNAM
Biblioteca de Filosofia Mexicana. Imprenta Universitaria. Volumen X, 1943, p.143, 144.
104
pelos valores do “outro”, da cultura ianque: “materialista, agressiva e
homogeneizadora”. 298
Okonkwo, após tirar a vida de um guarda branco que fora até o local desfazer
uma reunião tribal, que discutia ações para a manutenção dos valores leais aos
antepassados, preferiu cometer um ato abominável para aquele clã, o suicídio, perdendo,
assim, até o direito de ter um enterro com as honras que lhe caberiam em situação
normal.
298
Importante salientar que, durante o período em que as Memórias de Vasconcelos foram escritas,
Alemanha e Itália tinham governos Fascistas no poder. Vindo de um histórico de ressentimentos, a
ideologia presente nos dois regimes explorava a ideia de um “passado glorioso e presente decadente”,
reivindicando um “Nacionalismo regenerador” - que também aparece com muita frequência nos escritos
de Vasconcelos. Sobre simpatias de Vasconcelos com o regime de Hitler, VER: I. BAR- LEWAW. “La
revista Timón y la colaboración nazi de Jose Vasconcelos”. AIH. Actas IV (1971) In:
http://cvc.cervantes.es/obref/aih/pdf/04/aih_04_1_018.pdf. Acesso em 27/01/2010.
299
Aqui fazemos referência apenas ao último de seus três auto-exílios.
105
particularista de um fenômeno, marcada por expectativas frustradas. Defendemos que
seus escritos podem ser interpretados como representativo de uma construção de um
grupo social e político que assistiu ou/e viveu uma série de transformações culturais,
políticas e sociais, ocorridas naquele momento histórico, e esboçou reações em relação
às mesmas.
106
Capítulo 4. Escrita como arma de combate pela memória. As imagens de si nos
escritos autobiográficos de Vasconcelos
300
Há muitos textos e livros nativos escritos em náhuatl que falam do nascimento, vida e feitos de
Quetzalcóatl. As versões existentes não coincidem em alguns aspectos. Conta-se numa delas que, ainda
na juventude, Quetzalcóatl - a Serpente emplumada - retirou-se para Huapalcalco, uma antiga aldeia dos
teotihuacanos, para dedicar-se à meditação. Lá, foi convidado pelos toltecas a tornar-se seu governante e
sumo sacerdote. Palácios e templos foram construídos e muitas cidades aceitaram o seu domínio.
Cronistas narram que, durante a administração do deus “civilizador”, cessaram os sacrifícios humanos,
desenvolveram-se as artes e ciência. Há muitas versões sobre o desaparecimento de Quetzalcóatl. Grosso
modo, fala-se que foi vencido (uns dizem que teria morrido e ressuscitado e, outros ainda, que teria
fugido em direção ao golfo, deixando a promessa de retorno para reclamar sua terra). Na nova fase, sob
domínio de Huitzilopochtli, divindade titular dos mexicas, deus da guerra e representado pelo colibri,
teria havido um retorno ao canibalismo e sacrifícios humanos. Cf: BETHEL, Leslie (org.) Trad. Maria
Clara Cescato. História da América Latina: A América Colonial. 2ª edição. São Paulo, EDUSP; Brasília,
DF: Fundação Alexandre Gusmão, volume 1;1988, pags.37-40.
301
Numa carta enviada a Alfonso Reyes, em 27/07/1920, quando Vasconcelos ainda era Reitor, ao tocar
no tema da criação da Secretaria de Educação Pública e Belas Artes, escreveu: “Estou agoniado pelo que
tenho a fazer, mas descobri o segredo de não sentir o cansaço. Tal como você pode supor, estou livre de
monstros e serpentes e animado somente pelo impulso das águias”. Cf.: FELL, Claude. (compilações e
notas). La amistad en el dolor. Correspondencias entre José Vasconcelos y Alfonso Reyes. 1916-1959.
México: El Colegio Nacional, 1995, p. 44.
107
“Odisseia”, mas, principalmente, como o fracasso do “Ulisses americano”, ou “Criollo”,
que, movido por uma “ilusão”, um dia acreditara ser possível “civilizar” o México.302
302
Cf: VASCONCELOS, José. La Tormenta. P. 95.
303
VASCONCELOS, José. “Prefácio”. El desastre. P.10. Observação: Todas as referências à atuação de
Vasconcelos junto à Secretaria de Educação Pública encontram-se no terceiro tomo de seus escritos, El
desastre. Desta forma, nos limitaremos a informar apenas o número da página.
304
A expressão é de Philippe Levillain. Esse autor cita a obra Aspects de la bigraphie, publicada em 1928
por André Maurois, onde o autor, de formação positivista, demarcou que a distinção entre as biografias
histórica e literária seria o fato de a primeira ser consagrada a um protagonista da história, seguir regras
rigorosas que demonstravam preocupação com a “verdade” documental; enquanto a segunda seria
consagrada a um escritor, incluindo elementos de fantasia, sem postular a “expressão de verdade”. A
distinção incluía também a quantidade, o tipo de fatos que convinha ser narrado, o estilo empregado. Cf:
LEVILLAIN, Philippe. “Os protagonistas: da biografia”. In: RÉMOND, René. Op. Cit., p 152.
305
VASCONCELOS, José. El Desastre. P. 79.
306
No capítulo “Las tentativas del oficio”,Vasconcelos narrou ocorrências em que se absteve de ceder
favores em troca de “serviços galantes”, desafiando seus críticos a indicarem o nome de alguma mulher
que pudesse se ufanar de algum gasto desonesto ou indecoroso de fundos do Governo , estando em sua
companhia.Cf: VASCONCELOS, José. El Desastre. Pags. 110/111.
108
Ao longo de muitos capítulos de El desastre, Vasconcelos descreveu a sua
“aventura de regenerar um povo pela escola.” Narrou ainda seu empenho em construir,
reformar e elaborar estratégias que pudessem difundir e democratizar a cultura no
México, apresentando a organização do Ministério e sua permanência à frente da
Secretaria como sendo de “tempos de simpatias e entusiasmo pela cultura”. 307 Deu
grande ênfase a seu empenho pessoal, fazendo longas viagens a cavalo, visitando
regiões do país pouco prestigiadas por autoridades de sua magnitude, até aquele
momento. Ali, buscando angariar apoio à empreitada que tinha pela frente, expunha aos
governantes locais o conteúdo do projeto de lei que propunha que o Governo Federal
tivesse jurisdição sobre a educação em todo o território nacional,308 e não apenas sobre a
capital e alguns poucos territórios, como havia sido desde os dias de Justo Sierra.309
Dentre as virtudes que atribuiu a si, Vasconcelos soube reconhecer que a oratória
não constava entre elas. Entretanto, diferentemente do que possa parecer, esse deslize de
humildade lhe serviu para afirmar a seus leitores que a participação dos envolvidos não
se devia a discursos inflamados e, sim, à constatação da necessidade da colaboração de
toda a sociedade. Fez alusão ao discurso que pronunciou em 1920, no teatro de Mérida,
307
VASCONCELOS, José El Desastre, p.12, 54 e 55.
308
De acordo com a proposta de “federalização” do ensino, o Governo deveria agir conjuntamente e
paralelamente com as autoridades locais. As instituições atuariam com autonomia, mas seguindo
diretrizes gerais estabelecidas por um conselho federal. O projeto propunha o fim do “regionalismo”, que
até então era considerado o principal obstáculo para a unidade nacional e erradicaria os “vícios” que
condenavam o povo à apatia e à ignorância (alcoolismo, falta de higiene). Cf: Boletim da SEP, I,
03/01/1921. P. 71-84. Citado FELL, Claude. José Vasconcelos: Los años del águila: 1920-1925.
Educación, cultura e iberoamericanismo en el México postrevolucionario. México: UNAM, 1989, p. 63.
309
Diante do fato que algumas regiões do México eram caracterizadas por um verdadeiro vazio educativo,
entre os grandes eixos do projeto educativo de Vasconcelos devem ser destacados a prioridade ao ensino
primário, tornando-o acessível ao setor mais numeroso e humilde da população mexicana, fazer com que
o ensino tivesse um caráter mais prático e trabalhar pela uniformidade aos métodos de ensino e dos
programas. Cf: FELL, Claude. Op. cit., pags.158 e 159. Além da integração cultural dos não
alfabetizados, para que o México pudesse se estruturar como uma “nação poderosa e moderna”, o projeto
propunha que o ensino devia “aumentar a capacidade produtora de cada mão que trabalha e a potência de
cada cérebro que pensa”. Cf: VASCONCELOS, José. “Discurso con motivo de la toma de podesion del
cargo de rector de la Universidad Nacional de México”. In: VASCONCELOS, José. Discursos. 1920-
1950. México: Editora Botas, 1950.
109
quando estavam presentes, na época, além dos membros da equipe, as “melhores
famílias” e o povo:
310
Monsiváis afirma que havia, em parte da intelectualidade, num primeiro momento, uma visão que
entendia a Revolução como um “monólito, um todo homogêneo, uma entidade indivisível”,
compreendendo o processo de uma forma que buscava apagar ideologicamente qualquer efeito da
violência e sua capacidade de produzir mudanças positivas, o que equivalia a negar as causas materiais da
Revolução. Para parte da intelectualidade o problema do México era a corrupção moral, problema de
natureza eminentemente espiritual, e criam que a desordem econômica persistiria enquanto o ambiente
espiritual não mudasse. Assim, insistiam que a verdadeira Revolução estava no “desenvolvimento
coerente do espírito”, que produziria a autonomia intelectual. Martín Luís Guzmán é um dos maiores
porta-vozes desta visão. Em obras como La querella de México, El águila y la serpiente( 1928) e La
sombra del caudillo (1929), este intelectual registra uma visão que aparece em outros “romances da
Revolução”, marcada pelo idealismo, desencanto e pessimismo em relação aos rumos que a Revolução
havia tomado no decorrer dos anos. Muitas das chaves interpretativas que aparecem nas Memórias de
Vasconcelos constam também nas obras de Guzmán: queixas e denúncias políticas, ênfase numa
interpretação caricatural dos personagens envolvidos na Revolução, sublinhando, preferencialmente, a
violência e a corrupção como “espetáculos do cotidiano”. Em grau maior ou menor, o tom de desilusão
faz com que nesses romances o México seja apresentado como uma nação que “não tinha remédio”. Por
conta da forma como foi composta a narrativa e também pelos argumentos e interpretação da história
mexicana, os quatro primeiros tomos memorialísticos de José Vasconcelos são incluídos na categoria de
“romances da Revolução” por alguns críticos literários. Cf: MONSIVAIS, Carlos. “Notas sobre la cultura
mexicana en el siglo XX”. In: Historia General... Op. cit., 1409-1412.
110
O clima de otimismo e sede de heroísmo, que atingiu também a intelectualidade
mexicana na década de 1920, deve ser interpretado dentro dessa perspectiva, que
envolvia o sentimento de responsabilidade por parte de uma minoria seleta de “guiar os
espíritos”, anunciar, “elevar” e “redimir” as massas tanto materialmente como
culturalmente. 311
311
Sobre a relação de intelectuais e a Revolução, VER: KRAUZE, Enrique. Caudillos culturales en la
Revolución mexicana. México: Siglo XXI Editores, 5ª edición, 1995.
312
VASCONCELOS, José. El Desastre. P. 14.
313
Sobre o envolvimento de intelectuais durante a efervescência política nos anos revolucionários no
México, VER: MONSIVÁIS, Carlos. “Notas sobre la cultura en siglo XX. In: Historia General de
México. Op. Cit., pags. 1377-1477. Enrique Krauze chama a atenção para o fato de que, entre as últimas
décadas do XIX e primeiras do século XX, verificou-se uma clara simultaneidade do fenômeno que se
refere ao envolvimento de intelectuais no andar da política, em vários países da América. Krauze destaca
nomes como Rui Barbosa, no Brasil; Justo Sierra, no México; Enrique José Varona, em Cuba; Manuel
González Prada, no Peru; Eugenio Maria Hostos, em Porto Rico Latina.Cf : KRAUZE, Enrique. Op.cit.,
pags. 150-153.
314
O Partido Nacional Revolucionário mostrou-se uma máquina partidária eficiente para dar os rumos na
política mexicana, por meio da figura de Calles. O “Chefe Máximo” comandou a política no México, “por
trás do trono”, de 1928, após a morte de Álvaro Obregón, até a gestão de Lázaro Cárdenas. VER: CAMÍN
& MEYER. Op. Cit., pags. 97-198.
315
VASCONCELOS, José. El Desastre. Pags. 75, 122 e 123. Claude Fell afirma que o apoio da
imprensa e de outros setores da população mexicana ao projeto de Vasconcelos obteve um entusiasmo
incontestável, até o fim de 1921. Num artigo de El Universal (11/10/1921), possivelmente escrito por
Félix Palavincini, um dos alvos de ataques por parte de Vasconcelos nas Memórias, (“Plagianini”), foi
publicado: “Suas ideias, todo mundo sabe, são radicais. Mas, mesmo dentro de seu radicalismo
revolucionário, é um espírito eminentemente construtor. Para ele, a Revolução deve ser o mais possível
criadora e o menos possível destruidora (...).” A partir de 1922, os jornais começam a publicar críticas ao
111
Antes de tratar sobre o andamento do projeto cultural, após a aprovação,
Vasconcelos reservou um espaço nas páginas de El desastre para esclarecer aos leitores
como havia surgido a ideia do projeto. Colocou-o como resultado de inspiração quase
instantânea. No entanto, não deixou de reconhecer a influência que o russo Anatoly
Lunacharsky lhe inspirara :316
caráter filantrópico do programa e apontam reservas em relação ao alcance e eficácia da empresa, devido
às carências evidentes dos meios e de pessoal. Cf: FELL, Claude. Los años del águila...Op. cit. pags. 39 e
68. Também em 1922, parte da intelectualidade que havia apoiado Vasconcelos começou a levantar
questionamentos quanto às reais possibilidades de resultados concretos do programa cultural de
Vasconcelos, argumentando que, para aquele intelectual político, “não faltavam intenções, mas também
método, planos consistentes, objetivos claramente definidos, obtenção de crédito e oferta educativa
apoiada através de uma propaganda visual”. VER carta de Manuel Gomez Morín a Alberto Vázquez del
Mercado em 12/01/1922.Citado por KRAUZE, Enrique. Op. Cit., pags. 139/140.
316
Em 1917, quando assumiu funções na Secretaria de Educação, o russo Anatoly Lunacharsky tinha
problemas muito próximos aos que Vasconcelos enfrentava no México: existia um número preocupante
de analfabetos, aproximadamente 65% da população. Lunacharsky liderou um projeto com campanhas de
alfabetização, enfatizando o fomento das bibliotecas circulantes. Nas artes, é notória sua influência sobre
o mexicano, ao combater o que considerava como “tendências artísticas elitistas”, defendendo que as
artes não deveriam servir apenas para recrear os gostos de uns poucos ociosos e, sim, para levantar o nível
espiritual dos homens. É preciso ressaltar que, no que se refere à arte e à formação da “alma nacional”,
havia, entre Lunacharsky e Vasconcelos, diferenças que mereceriam ser pensadas de forma mais
aprofundada. Entretanto sabe-se que ambos concordavam quanto à eficiência que a imagem poderia
atingir na integração de uma nação formada por uma parcela considerável de analfabetos. Os dois
Ministros buscaram o compromisso de artistas que aceitassem tornar a nova cultura acessível às massas,
implementando a prática de concertos clássicos gratuitos, festivais de danças e teatros públicos ao ar livre.
Também concordavam que os abismos entre o mundo do saber e o mundo do trabalho deveriam ser
diminuídos, entendendo que o primeiro deveria revisitar seus métodos e o conteúdo de sua mensagem
para poder satisfazer o mundo do trabalho. Por uma série de fatores, Lunacharsky conseguiu resultados
mais efetivos que Vasconcelos. Ver também: FELL, Claude. Op. Cit., Pags. 80-85.
317
Vasconcelos refere-se ao seu primeiro exílio, ocorrido durante todo o governo de Venustiano Carranza
(1915-1920).
318
VASCONCELOS, José. El Desastre. P. 19.
112
as primeiras décadas do século XX, a influência dos Estados Unidos mostrava-se cada
vez mais crescente sobre a América Latina. Levando em consideração que Vasconcelos
foi um dos grandes porta-vozes do hispanismo, pensamos que esta constatação o
influenciava consideravelmente no momento da escrita, quando buscou construir um
discurso “antimperialista”, procurando assinalar distanciamentos em relação à
influência da cultura norte-americana, que via apenas como um “verniz de civilização”.
319
Na argumentação de Vasconcelos, ao adotar a estratégia de ir buscar referências para a educação
mexicana nos Estados Unidos, estes administradores demonstravam desconhecer ou, no mínimo,
desvalorizar o seu rico passado e a contribuição cultural da Espanha no mesmo. Os ataques de
Vasconcelos se expandiram e respingaram em personalidades, além das fronteiras nacionais. O argentino
Sarmiento, antiga referência de “civilizador”, e o peruano Leguía, também foram acusados de terem se
deixado seduzir pela “sereia do norte”, ao contratarem professores e diretores norte-americanos para dar
as diretrizes da educação, em seus respectivos países. Cf: VASCONCELOS, José. El Desastre. P. 58.
320
Claude Fell afirma que, embora tenha negado, e de fato a influência foi pequena, sabe-se que Eulália
Guzmán, diretora da campanha contra o analfabetismo da SEP, na gestão de Vasconcelos, visitou
estabelecimentos nos Estados Unidos e Europa, informando-se sobre as novas propostas pedagógicas de
Dewey e Ferreiére. Pelo menos na capital, Guzmán, com a participação de pedagogos reunidos em torno
da Revista Educación, implantou, no ensino primário, as orientações gerais da “Escola Ativa”. Quando
Ministro, como Dewey, Vasconcelos defendeu a democratização da educação pública, acreditando que
esta facilitaria o acesso de todos os cidadãos na vida social e econômica. Cf: FELL, Claude. Op. Cit.,
pags. 180-182.
321
VASCONCELOS, José. El Desastre. P. 58
322
VASCONCELOS, José. Ulises Criollo. P. 44.
113
prática não foi, como se poderia imaginar, de alfabetização, mas de banho e corte de
cabelo. Extirpar piolhos, curar sarnas, lavar roupas dos pequenos e dar merenda, eram
atividades que os professores tiveram que cumprir antes de ensinar a ler e escrever.323
323
VASCONCELOS, José. El Desastre. P. 54. A proposta inicial do projeto era que as crianças ficassem
em tempo integral, seguido o seguinte programa: das 8:00-9:00 asseio pessoal; 09:00-10:00 escrita e
leitura; 10:00-10:30 recreio; 10:30-11:00 aritmética; 11:00-11:30 cultura física e jogos; 11:30- 12:00
composição oral; 15:00- 16:00 desenho e exercício de observação; 16:00-16:20 recreio; 16:20- 17:00
cultura física ou biografias mexicanas. In: Boletim da SEP, I, 1º/05/1922, p. 101. Citado por FELL,
Claude. Op. cit., p. 40.
324
“Todos os nossos saíram pobres”. Cf: VASCONCELOS, José. El Desastre, p. 67.
325
Cf: VASCONCELOS, José. El Desastre. Pags. 70-83. Na ânsia por demarcar os critérios de escolha,
Vasconcelos fez menção a uma conversa com o Presidente Obregón, que o procurou para falar sobre uma
funcionária da Escola Industrial de Mulheres que fora demitida porque não tinha título de professora
normalista. Na conversa, informou-a que não poderia desfazer a ação, pois estaria passando por cima da
autoridade do Ministro. Informou a Vasconcelos que, com o salário, sustentava as filhas e o marido
paralítico. De acordo com o relato, Obregón terminou acatando a decisão e Vasconcelos defendeu-se
argumentando os leitores “Mas eu pergunto ao leitor: um marido paralítico é desculpa para que uma
escola fique em mãos pouco aptas?”
326
VASCONCELOS, José. El Desastre. P. 70.
114
político, escritor e profissional: trabalhava das sete da manhã às sete da noite, exigindo
pontualidade daqueles que estavam sob sua autoridade, não tendo tempo para
compromissos sociais, festividades, recepções diplomáticas e banquetes. 327
327
VASCONCELOS, José. El Desastre p. 73.
328
Ibidem. P. 76.
329
Ibidem. P. 69.
330
Por “ação técnica ilustrada”, afirmava ser a prática de governar, procurando compor um quadro de
profissionais qualificados para as funções, que fugisse de improvisações e favoritismos praticados até
então.
331
Não é nosso propósito fazer uma descrição detalhada do projeto cultural de Vasconcelos. Tal tarefa foi
muito bem desempenhada pelo historiador francês Claude Fell. Limitar-nos-emos a analisar aquilo que
Vasconcelos considerou relevante ponderar. Especialmente em relação a algumas polêmicas geradas,
ligadas ao momento em que atuou como Ministro. Sobre a análise do projeto cultural de Vasconcelos,
realizado de forma comparada ao de Monteiro Lobato, ver: CRESPO, Regina Aída. Itinerarios
culturales... Op. cit.
332
VASCONCELOS, José. El Desastre. P. 45.
115
México não era a “questão indígena”, mas, sim, a “ignorância”. 333 Ele afirmava que os
índios deveriam ser vistos, primeiramente, como “mexicanos” e, somente depois, como
“índios”. Sempre em defesa do modelo deixado pela Espanha, insistia em que, tal como
fizeram os missionários católicos espanhóis do século XVI e fugindo da imitação da
“prática norte-americana e protestante”,334 o índio deveria frequentar escolas especiais
somente o tempo suficiente para aprender noções do idioma espanhol e os primeiros
elementos do saber, inscrevendo-se, depois, na escola rural, educados com mestiços,
brancos e negros.335 Em sua perspectiva, adotar o “sistema norte-americano” equivaleria
a desfazer a grande obra social, mais profunda e eficaz que a Colônia havia deixado: a
mestiçagem.
Essa forma de lidar com a situação indígena levou-o a receber críticas por parte
de alguns de seus contemporâneos e por estudiosos que avaliaram posteriormente sua
atuação. Guillermo Bonfil Batalla, ao fazer referência à obra de Vasconcelos, em
México profundo, una civilización renegada, destaca que essa “descoberta” por parte da
333
Quanto a este posicionamento, Vasconcelos não estava isolado. Abraham Castellanos e Gregório
Torres Quintino, combatiam, há muitos anos, a instauração de uma escola especificamente destinada aos
indígenas. FELL, Claude. Op. cit., p.204
334
VASCONCELOS, José. El Desastre. Op. cit.,p.20.
335
Ibidem. P. 20.
336
Ibidem. P. 368.
337
Ibidem. P. 123.
116
intelectualidade e dos governantes não fez com que os valores positivos do “México
profundo” fizessem parte dos projetos. A linha dos projetos foi traçada de forma a dotar
as comunidades da técnica necessária para adequar-se às novas necessidades do país e,
consequentemente, o processo de integração pressupôs uma “desindianização”. “Elevar”
essa população representou, também, para este autor citado, a tentativa de fazê-la perder
sua especificidade cultural e histórica. 338
338
Ao comentar sobre programas colocados em prática, após a Revolução, e fazendo referência direta a
Vasconcelos, Batalla afirma: “Levam escolas ao campo e às comunidades índias, mas não para que nelas
se estimule e sistematize o conhecimento de sua própria cultura e, sim, para que aprendam os elementos
da cultura dominante. (...) Valorizam algumas manifestações das culturas indígenas e camponesas
(artesanato, expressões artísticas), mas como atividades isoladas, fora de seu contexto e sem que o apoio
que lhes dão pretenda ser estímulo ao desenvolvimento cultural próprio e integral das comunidades.
Reconhecem os direitos de igualdade, mas negam o direito à diferença. Uma vez mais, a civilização do
México Profundo fica excluída do projeto nacional. “Guillermo Bonfil Batalla. México Profundo - Uma
civilización renegada. México: SEP, 1987, p.169 - 171. Não temos por objetivo, neste trabalho, destruir
ou enaltecer a obra de Vasconcelos. Concordamos em parte com Bonfil Batalla quando afirma que, na
trajetória modernizante, governantes priorizaram uma política homogeneizante da cultura. Sem dúvida, as
políticas nacionalistas visavam a incorporação desta parcela da sociedade à nova nação que se construía e
isso pressupunha iniciativas, defendidas não apenas por Vasconcelos, que entendiam que o caminho era,
de fato, a “desindianização”.
339
As missões culturais deveriam ser compostas por uma equipe contando com especialistas em educação
agrícola, professores de matérias técnicas especializadas na fabricação de sabões e perfumes, curtição do
couro, um membro da direção de Cultura Estética, especializado em canções populares, e na organização
de orfeões, bem como um professor de educação física e higiene. A primeira “Missão” ocorreu entre os
dias 22 a 28 de outubro de 1923. Cf: FELL, Claude. Op. Cit.,pags. 147-149.
340
Os professores estavam divididos pelo Departamento Escolar em “ambulantes, missionários,
voluntários, e residentes”. A função dos professores missionários era ensinar o castelhano ao índio, para
melhor integrá-lo à nação, inculcar-lhe o “apego à terra” – alvo de muitas críticas – e desenvolver-lhe o
espírito cívico, o suficiente para que compreendesse o funcionamento das instituições nacionais e as
respeitasse.Cf: Ibidem. P. 221.
117
“único caminho que resta ao laico para aproximar-se das coisas de Deus”, 341e outros
mais que incitassem à ação social e ao trabalho na “empresa patriótica”.342Apontando
números, não se esqueceu de afirmar que os “professores missionários” eram os mais
bem pagos da SEP. 343
Na descrição de suas lembranças, ressaltou que, em “tempos de falta de livros e
prédios”,344 que caracterizou o período pós-armado da Revolução, também conseguiu
imprimir a sua marca. Demarcou sua passagem pela SEP como um divisor de águas,
numa etapa construtiva para o México. Relembrou ainda a importância que teve outro
departamento auxiliar, o de Construções Escolares, que tinha o objetivo de adaptar
velhos edifícios e construir novos locais para dar lugar, tanto à educação quanto à
difusão da cultura. Nas páginas de seus relatos, salientou sua relevância recordando as
inúmeras inaugurações de escolas e bibliotecas: “Nunca fiz uma viagem que não tivesse
por objetivo inaugurar uma escola já construída, reformar uma já pronta. (...) Por onde
íamos fazia-se patente o fruto de dois ou três anos de trabalho sincero.” 345
O memorialista não se esqueceu, também, de ressaltar o seu papel, não apenas
como alguém que se empenhou em levantar obras, mas que foi além, ao implantar, no
México, um estilo que se converteu em “doutrina arquitetônica” do Governo pós-
revolucionário, apresentado como “nacional”: o “neocolonial”, estilo que pretendia
fazer a síntese de elementos artísticos pré-hispânicos e coloniais. 346
341
A missão da escola primária moderna deveria, segundo a proposta do projeto cultural, não apenas
ensinar a ler, escrever e contar, mas ensinar a fazer isso “bem”. O professor também deveria trabalhar
para que o aluno desenvolvesse simpatia pelo “bom”, pelo “útil” e pelo “belo”. Cf: FELL, Claude. Op.
Cit., pags. 170-171.
342
VASCONCELOS, José. El Desastre. Pags. 93 e 125.
343
Além da presença de intelectuais mexicanos no projeto, Vasconcelos conseguiu o envolvimento de
nomes importantes de outros países da América Latina: o dominicano Pedro Henríquez Ureña, fazendo
conferências de literatura espanhola; a poetisa chilena Gabriela Mistral, e o peruano Haya de la Torre, na
época, exilado político, que trabalhou na tradução dos clássicos.
344
Cf: VASCONCELOS, José. La Flama. P. 151.
345
VASCONCELOS, José. El Desastre. P. 136.
346
Cf: DE ANDA ALANÍS, Enrique X. La arquitectura de la Revolución mexicana.México, UNAM,
1990, pags. 69 e 70. O propósito de enaltecer e oficializar o estilo neocolonial como a “arquitetura
propriamente mexicana”, foi amadurecido por Vasconcelos quando visitou o Pavilhão do México, na
Exposição Internacional do Rio de Janeiro, por ocasião das comemorações de nossa Independência. O
prédio que representou o México foi idealizado por dois jovens arquitetos: Carlos Obregón Santacilia e
Carlos Traditi. Vasconcelos fez de Obregón Santacilia o responsável pela elaboração e reformulação de
boa parte das obras realizadas durante sua gestão na SEP. Entre construções e adaptações, este autor
lista16 obras, entre elas, A Biblioteca Cervantes, o Centro Escolar Morelos, o Estádio Nacional, o
Instituto Técnico Industrial, a Escola Gabriela Mistral, o Centro Escolar Benito Juárez, entre outras.
Sobre demais construções ligadas a SEP na gestão de Vasconcelos, ver também: FELL, Claude. Op. Cit.,
106-109.
118
Nos escritos, Vasconcelos não fez referência direta a Manuel Gamio, mas somos
levados a crer que ele esteve atento à orientação daquele mestiçófilo, quando defendeu,
conforme já apontamos no capítulo anterior, a necessidade de uma “arte nacional” – que
em sua concepção, deveria ser “mestiça” - como instrumento eficiente para integrar a
Nação.
347
DE ANDA ALANÍS, Enrique Xavier. “Tradición y nacionalismo como alternativas de identidad en la
arquitectura moderna mexicana”. In: AMARAL, Aracy (Coord.). Arquitectura neocolonial. América
Latina, Caribe, Estados Unidos. México, FCE, 1994, pags. 259-269.
348
Ibidem, p. 177.
349
À frente do Departamento de Bibliotecas estiveram Julio Torri e Jaime Torres Bodet. Daniel Cosío
Villegas, Eduardo Villaseñor e Samuel Ramos trabalharam no departamento, fazendo traduções e
editando obras de Homero, Ésquilo, Platão, Eurípedes, Dante Alighieri, Plotino, Cervantes, entre outros.
Enrique Krauze afirma que “o contato destes jovens com essas obras lhes parecia, radical, novo e
revolucionário”. Cf: KRAUZE, Enrique. Op. Cit., p. 106. De acordo com Claude Fell, não existem
estatísticas globais sobre o número de bibliotecas criadas nem a quantidade de livros distribuídos entre
1920 e 1924. Entre os diferentes informes anuais que circularam, o que se considera mais coerente, é o
apresentado por Jaime Torres Bodet, diretor do Departamento. De acordo com esses dados, em 1920,
119
Vasconcelos ainda ressaltou sua “missão” de integrar o índio, tirando-o do
isolamento cultural e sócio-econômico por meio da alfabetização. Salientou, também, a
dificuldade pra atingir a meta, devido à escassez de livros e bibliotecas e argumentou
que, para “chegar a obter ambos, seria necessário despertar o interesse do povo pela
leitura”.350 A partir da apresentação dos desafios, respondeu a seus críticos, justificando
a escolha de traduzir, editar e distribuir os “Clássicos da literatura”. Vasconcelos
apresentou as críticas como resultado de um “escândalo perverso de “jornalistas
malvados”, “intelectuaizinhos despachados” e a “porção idiota do povo” que classificou
como ineficácia e disparate editar clássicos para um povo que não sabia ler.351 Dirigiu
uma pergunta direta aos leitores: “Há, no mundo, pessoa ilustrada que negue que o
melhor começo de toda leitura culta está nos Clássicos da Humanidade?”Denotando
ignorar os problemas sociais e as necessidades mais imediatas da parcela mais pobre da
população mexicana e esboçando todo o seu idealismo, concluiu de forma categórica:
“O que este país necessita é pôr-se a ler a Ilíada”: 352
Não se reflete que não se pode ensinar a ler, sem dar o que ler. E
ninguém explica porque há de se privar ao povo do México, a título de
que é um povo humilde, dos tesouros do saber humano que estão ao
alcance dos mais humildes nas nações civilizadas. Meus detratores
não têm desejado inteirar-se de que as mais humildes bibliotecas da
América do Norte contam com sua coleção de Clássicos. Nem levam
em conta que, onde não há, tem que se criar.353
havia cerca de 70 bibliotecas no país. Até 1924, próximo à saída de Vasconcelos, foram criadas 1916
bibliotecas infantis, técnicas e literárias que constavam de 297.103 volumes, o que representaria um
esforço financeiro e editorial considerável. Um dos destaques, conforme já assinalamos, foram as
sessenta e oito bibliotecas ambulantes que fizeram circular, ao todo, 4.161 volumes, pelas regiões mais
remotas do México.Cf: FEL, Claude. Op. Cit., pags. 513 - 520.
350
VASCONCELOS, José. El Desastre. P. 46.
351
Ibidem. P. 47. Os críticos de Vasconcelos enfatizaram muito a edição e distribuição dos “Clássicos” a
uma população que não sabia ler. Entretanto é necessário ressaltar que o Departamento de Bibliotecas não
ficou restrito a edição dos Clássicos da literatura. Em Indologia, Vasconcelos escreveu que adquiriram
dos Estados Unidos uma relação de livros indicados para compor uma biblioteca, composta das seguintes
obras e autores: Ilíada e Odisseia; Ésquilo e Eurípedes; três tomos de Platão; Os Evangelhos; dois tomos
de Plutarco; a Divina Comédia; Fausto, de Goethe; Seleções Fundamentais, do indiano Rabindranath
Tagore; As vidas, de Romain Rolland; Plotino; uma Antologia ibero-americana; um tomo do dramaturgo
e poeta espanhol Lope de Vega; uma coleção de contos infantis, em dois volumes. Também foram
produzidos 50 mil exemplares de História de México, de Justo Sierra, 20 mil de História Universal,
Leitura para mulheres, de Gabriela Mistral, livros técnicos, sobre higiene, cartilhas e obras científicas de
autores locais. Cf: Indologia. Op. cit., p.165-169.
352
VASCONCELOS, José. El Desastre P.46.
353
Ibidem. P. 47/48.
120
democrático à cultura no México. É visível a sua preocupação em deixar seus leitores
inteirados de sua versão dos fatos, para que o julgassem. Ressaltou sua “ação criadora”,
em oposição à atuação dos governos “ignorantes e militaróides”, que nada faziam para
evitar o saque da maior parte dos tesouros nacionais mexicanos. Referiu-se diretamente
à saída clandestina de livros do país, atacando:
Isto não falam os que escrevem, porque é mais fácil disfarçar suas
inquietações, caluniando a um que está desterrado porque soube
enfrentar o mal. Em todo o caso, há razão para que o homem honrado
se desencoraje em nosso meio.E tudo isso eu grito porque o silêncio é
outra forma de cumplicidade e porque, no exame de consciência desta
autobiografia, é necessário estudar as acusações justas e as infames.354
354
VASCONCELOS, José. El Desastre. P. 50.
355
Ibidem. P. 66.
356
Nas aulas de desenho, por exemplo, os artistas deveriam ensinar os sete elementos básicos, permitindo
que os alunos desenvolvessem sua criatividade.
357
DE ANDA ALANÍS, Enrique Xavier. Op.cit., p.67. De Anda Alanís afirma que o nacionalismo na
arquitetura e na pintura muralista não nasceu nem morreu durante o Obregonismo, mas, sem dúvida,
adquiriu vigor como parte da teoria geral do novo país em revolução, que tinham os governantes a partir
de Álvaro Obregón.
121
afirmar sua grande preocupação em promover o contato da população mais pobre com o
clássico. Justificou que, apesar de terem estimulado e organizado manifestações
folclóricas, reabilitando, por exemplo, o canto popular, essa era uma estratégia que não
visava transformar o “popular em fetiche”, muito menos ser apresentado como único
exercício de arte e, sim, despertar, por aquele caminho, o “gosto superior”. 358
O segundo aspecto tem a ver com uma ausência perceptível a qualquer leitor que
conheça minimamente o muralismo mexicano em sua fase de maior apelo popular – a
década de 1920, tendo Vasconcelos como o maior promotor das artes - quando a arte
ultrapassou a academia e chegou aos muros de instituições públicas do México. Ao
enaltecer as realizações e nomes ligados ao Departamento de Belas Artes, o
autobiógrafo fez referências a nomes de artistas que atuaram como maestros, diretores
de orquestras, criadores de orfeões, incluindo, também, o corpo de bailes folclóricos,
ressaltando que eram figuras que estiveram envolvidas em “elevar o nível espiritual dos
homens”.
Entretanto a grande lacuna ficou por conta da falta de referências aos “Três
Grandes”, Rivera, Orozco e Siqueiros, que iniciaram suas atividades como “muralistas”,
durante a gestão de Vasconcelos à frente da SEP. 359
A pouca importância que deu às manifestações artísticas populares e a ênfase ao
“povo” como protagonista de muitas obras nos murais, poderiam ser explicadas pelo
fato de que, no momento em que escrevia as Memórias, Vasconcelos parecia não mais
acreditar na possibilidade da arte como “redenção” dos “de baixo”? Ou pelo fato de a
arte dos muralistas ter se encaminhado por rumos “não desejados”? Talvez um pouco de
cada uma dessas hipóteses, mas também gostaríamos de incluir o fato de que, naquele
momento, as relações de José Vasconcelos com os principais nomes do muralismo já se
encontrava há muito tempo abalada.
Em capítulos posteriores, afirmou o quanto se sentia injustiçado pelos grandes
nomes do Muralismo, já que o Estado, na sua pessoa como Ministro, havia sido o
358
Cf: VASCONCELOS, José. El Desastre. P. 66. Foram realizadas ao ar livre, em distintas regiões do
país, apresentações de orquestras e orfeões, festas típicas regionais, peças teatrais, espetáculos de danças e
cantos populares. No capítulo “Hispanoamérica asoma”, Vasconcelos relembrou a visita da renomada
Companhia de drama e comédia de Camila Quiroga ao México.
359
Embora aquele movimento tenha se concentrado, cada vez mais, nas mãos dos “Três Grandes”, David
Alfaro Siqueiros, Diego Rivera - que voltaram da Europa para participar do projeto – e José Clemente
Orozco, Vasconcelos entregou as paredes de prédios públicos a outros artistas como Xavier Guerrero,
Roberto Montenegro, Adolfo Best Maugard e Carlos Mérida. Jovens artistas como Jean Charlot, Fermín
Revueltas, Ramón Alva de la Canal, Emílio García Cahero e Fernando Leal. Sobre as fases, nomes e
temáticas do Muralismo no México, VER: ADES, Dawn. A arte na América Latina: A era moderna:
1820-1980. Op. Cit., pags. 151- 180.
122
grande mecenas de suas obras. Em resposta, à “ingratidão” dos artistas, procurou omiti-
los ou desqualificá-los. Referiu-se a Diego Rivera como “antigo pensionista da ditadura
porfirista”, acusando-o de “mudar de lado para tirar vantagens”.360
Sobre Siqueiros, afirmou o quanto havia dispensado de paciência, defendido e
suportado as críticas da imprensa àquele artista, que achava um “despropósito” os seus
murais, além do fato de que “nunca terminava uns caracóis misteriosos na escada do
361
pátio pequeno da Preparatória.” Também não omitiu dois grandes pontos de
discordâncias que teve com alguns artistas do muralismo, especialmente os três mais
famosos, fato que terminou culminando com o afastamento entre as partes: a proposta
das temáticas, por parte do então Ministro, e a decisão, por parte dos artistas em formar
um sindicato. Sobre a sindicalização dos artistas pronunciou-se da seguinte forma:
Enquanto estive na Secretaria, todos esses intelectuais de sindicatos
(pintores...) me enalteciam como um grande revolucionário. (...)
Sempre me pareceu que o intelectual que recorre a esses meios é
porque se sente fraco individualmente. A arte é individual e
unicamente os medíocres se amparam no gregarismo de associações.
(...) A arte é luxo; não necessidade proletária.
360
Com relação a Diego Rivera, Vasconcelos parece ter guardado ressentimentos maiores. Nas páginas
das Memórias, manifestou as mágoas por saber que Rivera o taxava de “Ministro burguês” e ainda se
referiu a um episódio especial, por ocasião da publicação dos dois primeiros tomos. Segundo
Vasconcelos, “no prédio que ele havia levantado”, Rivera o havia pintado numa “posição infame,
molhando a pena em esterco”. Cf. VASCONCELOS, José. El Desastre, p. 261.
361
Ibidem. P. 261.
362
Grifo nosso
363 Cf: “Tradición y nacionalismo como alternativas de identidad en la arquitectura moderna mexicana”.
In: Arquitectura neocolonial. América Latina, Caribe, Estados Unidos. AMARAL, Aracy (Coord.).
México, FCE, 1994, p.259-269.
123
364
poder central. Enrique Krauze, que investigou casos significativos de integração
entre o intelectual mexicano ao Estado revolucionário, deu título à sua obra de “Los
caudillos culturales de la Revolución”.365
364
Além de fazer referência ao fato de que, em relação aos muralistas, Vasconcelos elaborou e promoveu
um “modelo cultural de Estado”, Fell também mencionou as discordâncias e conflitos que Vasconcelos
enfrentou com Antonio Caso e Pedro Henríquez Ureña, na questão da discussão em torno da autonomia
universitária; Com Lombardo Toledano, na reforma da Escola Nacional Preparatória e com as Federações
Estudantis e suas relações com a Confederação Regional Operária Mexicana. Cf. FELL, Claude. Op. Cit.,
pags. 12, 20 e 663-665.
365
Krauze se detém de forma mais aprofundada sobre o papel de Vicente Lombardo Toledano e Manuel
Gómez Morín, mas dá uma atenção especial para Vasconcelos, chamando-o de “guia moral” daquele
momento de “consciência social gerado pela Revolução”, que impulsionou vários intelectuais a se
envolverem na obra de reconstituição da nação mexicana, nas primeiras décadas do século XX. Em sua
obra, o autor contempla o conflito ocorrido entre Vasconcelos e alunos da ENP, em 1923, e seu posterior
rompimento com Toledano e Caso, que travaram luta aberta contra o “autoritarismo” de Vasconcelos. Cf.:
KRAUZE, Enrique. Op. Cit., pags. 176-178.
366
Vasconcelos tinha consciência da sua fama de “intransigente”. Deste modo, privilegiou explicar alguns
episódios ligados a essa questão, procurando, é claro, apresentar as suas justificativas para tal
comportamento. Deu atenção ao conflito com os estudantes da Escola Nacional Preparatória que terminou
por marcar o seu afastamento dos ex ateneístas Antonio Caso, na época, Reitor da Universidade Nacional
do México e Pedro Henríquez Ureña. Naquela ocasião, após uma série de manifestações que passaram
por uma greve de estudantes, desconsiderando a autoridade de Caso e Vicente Lombardo Toledano,
Diretor da Preparatória, Vasconcelos advertiu o então professor Alfonso Caso, acusando-o de agitar os
alunos. Também expulsou (mais tarde a situação foi revertida para uma suspensão de oito dias) os
principais envolvidos, entre eles, Salvador Azuela (Durante a campanha presidencial, em 1929, Azuela
foi um dos membros da “juventude Vasconcelista”) e um irmão de Toledano. Em sua versão, o
memorialista optou por justificar que não aceitava que a Instituição se tornasse espaço para politizações e
agitações da “CROM Callista” (Confederação Regional Operária Mexicana). Quanto à postura de Ureña e
Antonio Caso, acusou Caso de debilidade administrativa e ambos de não serem justos no julgamento,
pois, ao tomarem as dores de Toledano e Alfonso Caso, agiram pela “debilidade do parentesco”. (Ureña e
um irmão de Caso se casaram com uma irmã de Vicente Lombardo Toledano). Sobre a versão de
Vasconcelos, Cf. VASCONCELOS, José. El Desastre. Pags. 151- 164.
367
ADES, Dawn. A arte na América Latina. Op. Cit., p 151/2.
124
interpretação que aponta para uma completa liberdade conferida por Vasconcelos aos
artistas. A análise das fontes nos permite afirmar que de fato, não houve imposição368
aos artistas e que estes tiveram, sim, liberdade na escolha de temáticas e estilos.
Entretanto sustentamos que o posicionamento de Ades pode levar o leitor a imaginar
que os pintores não teriam sofrido coerção, o que não se confirma. Tanto que os
motivos do rompimento dos artistas com Vasconcelos explicam-se, em parte, por
discordâncias neste sentido. Nas fontes, o próprio memorialista reconheceu que indicou
temáticas em determinado muro público, mas também afirmou que Rivera havia
“rompido o plano geral da obra, pintando umas alegorias em homenagem a Zapata e
Felipe Carrillo”.369
Uma breve pesquisa sobre o conteúdo das obras nas paredes de instituições
públicas ligadas à SEP, realizadas durante aquele período, nos leva a concluir os artistas
tiveram liberdade para expor a sua interpretação ideológica e estética, que certamente
370
divergiam, muitas vezes, da visão e das indicações de Vasconcelos. Se o desejo
inicial do então Ministro foi que os pintores registrassem cenas de mulheres com trajes
típicos e personagens heroicos da história nacional - e isso também ocorreu - também é
necessário afirmar que tiveram condições de expandir horizontes com relação à temática
e à estética. 371 Em vez de simbólicas e decorativas figuras, os artistas também puderam
pintar cenas do cotidiano, paineis dedicados ao tema da distribuição de terra, ritos,
festejos de rua, no dia dos mortos, e alguns rituais pré-colombianos.372
125
sistematizar, unificar programas, definir propostas e parâmetros obrigatórios para toda
República, visando, primordialmente, a formação da “alma nacional.
É importante avaliar também que foi, naquele período, apesar das diversas
divergências e restrições existentes, que aqueles profissionais tiveram a porta aberta
para expor à nação e ao mundo, uma arte - tanto na arquitetura quanto na pintura - que
juntou os “dois Méxicos”, o branco e o indígena, aproximando-se bastante daquilo que
Manuel Gamio, Molina Enríquez e outros mestiçófilos haviam indicado.
373
FELL, Claude. José Vasconcelos: Los años del águila: 1920-1925. Educación, cultura e
iberoamericanismo en el México postrevolucionario. México: UNAM, 1989, p. 47.
126
Este mesmo autor sublinha que, em linhas gerais, a reafirmação do caráter
“gratuito, laico e obrigatório” do ensino primário, constante do projeto colocado em
prática por Vasconcelos, não diferia grandemente da proposta iniciada por Justo Sierra,
ainda durante o porfiriato. Entretanto sublinha que, embora os resultados concretos e
duráveis do projeto tenham ficado aquém do desejado, não há dúvida de que, naquilo
que se refere ao consumo cultural, ele foi “revolucionário” ou, no mínimo, inovador.
Especialmente, por incorporar no texto do programa a existência de um “tempo livre”
para os setores populares terem oportunidade de contato com as artes. Fell afirma:
374
Ibidem. Pags. 19 e 56. A proposta do projeto era que arte e conhecimento deveriam servir para
melhorar as condições sociais das pessoas.
375
VASCONCELOS, José. El Desastre. P. 171.
127
reiterar sua preferência pelas bibliotecas, igrejas, museus ou outro lugar que pudesse
elevar o seu espírito.
376
VASCONCELOS, José. El Proconsulado. P. 779.
377
VER: ROBLES, Martha. Entre el poder y las letras. Vasconcelos en sus Memórias. Op. cit. Em El
Proconsulado, Vasconcelos respondeu aos colegas intelectuais que foram críticos à sua conduta política
após a derrota, aconselhando-o a encerrar o assunto, não incitar a violência e voltar às suas atividades
intelectuais. Afirmou que não aceitava a separação e as homenagens que insistiam em fazer ao
Vasconcelos “intelectual”, “com reservas ao político”, e que seus colegas teriam que aceitar a sua
“posição intransigente ou renegá-lo para sempre”. Cf.: VASCONCELOS, José. El Proconsulado. P. 779-
780.
378
Com um discurso antimperialista, Vasconcelos faz da escolha do título de seu quarto tomo
memorialístico, El Proconsulado, uma denúncia das ingerências dos Estados Unidos nas questões
políticas e econômicas no México. O Embaixador norte-americano Dwight Morrow foi chamado de “pró-
cônsul”, o representante do Império norte-americano no México, à maneira dos romanos. Nas décadas de
1940 e 1950, Vasconcelos não repetiu o mesmo discurso, demonstrando simpatias pelo Nazismo e, nos
anos de Guerra Fria, afirmou-se a favor da adesão aos Estados Unidos contra a “ameaça” do “socialismo
ateu.”
379
Foi chamado de “Maximato” o período de governo dos presidentes Portes Gil, Ortiz Rubio e Abelardo
Rodríguez, que governaram à sombra de Plutarco Elias Calles, chamado por seus bajuladores como
“Chefe Máximo da Revolução”. O Maximato chegou ao fim somente em 1935, após a eleição de Lázaro
Cárdenas, que, com habilidade política, conseguiu livrar-se da influência daquele governante. Cf.:
MEYER & AGUILAR CAMÍN. Op. Cit., 97-170.
380
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade. Lembrança de velhos. São Paulo, T.A. Queiroz, 1971 P. 29.
128
descrições das lembranças relacionadas à sua volta ao México, no final de 1928, para
disputar a campanha à presidência, interpretasse o fato como a chegada de um “herói
civilizador” que se dispunha a sacrificar sua vida pessoal em prol da nação.
381
VASCONCELOS, José. El Proconsulado. Pags. 616 e 617.
129
pela “fé inquebrantável no povo mexicano e o imperativo do próprio destino a
cumprir.”382
382
Ibidem. P. 618. Ao longo dos últimos volumes, Vasconcelos foi exacerbando um argumento de teoria
conspiratória. Em La Flama, ganha dimensões delirantes a ideia de que o México era controlado por um
“plano internacional”, dominado por grupos de “maçons judeus, comunistas e ianques”. Cf: La Flama.
Pags. 325 e 419.
383
VASCONCELOS, José. El Proconsulado. P. 607. Em inúmeros trechos, o “Ulises Criollo”
demonstrou-se identificado com as “dores e perseguições” de um grupo que se sentia prejudicado por
medidas políticas praticadas por Calles, interpretadas por aqueles como “hispanófabas”. Por conta de tais
medidas, esses expatriados “saíam do país para adorar a Deus, à sua maneira”, fazendo com que a pátria
perdesse “uma verdadeira seleção de sua própria raça”, vivendo, assim, uma “catástrofe étnico-social”.
Cf: VASCONCELOS, José. El Proconsulado. P. 621; El Desastre, pags. 94 e 95.
384
VASCONCELOS, José. El Proconsulado. P. 607.
130
marcada por um discurso dicotômico, onde dois lados antagônicos, o bem e o mal
apareciam em conflito intermitente. Reconstruindo lembranças ligadas à disputa
presidencial, insistiu em afirmar que a campanha de 1929 havia representado um
“momento de união nacional”, quando o México se dividira em dois “bandos
irreconciliáveis: do seu lado, os “bons da Revolução”, os “civilizados”, “honrados e
patriotas”, “trabalhadores autênticos”, enquanto, do outro lado, estava a “barbárie”: os
“corruptos, ineficientes, violentos, ignorantes” e também “os obedientes a Morrow,
apoiada em sua maioria pelo exército”.385 Não se esqueceu de registrar o quanto sua
candidatura despertou simpatias junto a um grupo representativo da juventude
mexicana386 e também de mulheres, que até então pouco participavam de forma tão
ativa da política.387 Procurando afirmar que os “bons” estavam ao seu lado, afirmou:
“Em nenhum dos comícios que celebrávamos apareciam opositores; só quando
passávamos pela prisão, ouvia-se o sombrio grito: Viva Sáenz! Morra a reação!”388
385
VASCONCELOS, José. El Proconsulado. P. 779. Também foi muito forte a guerra de adjetivos
pejorativos durante a campanha. Se por um lado, os vasconcelistas acusavam o PNR de “bando de
salteadores capitaneados por analfabetos”, “gangsters” e “bárbaros”, por outro lado, aos vasconcelistas,
cabia o título de “reacionários”, “snobs cultos” e “almofadinhas”. Cf.: SKIRIUS, John. José Vasconcelos
y la Cruzada de 1929. (Tradução de Félix Blanco) 2ª Edição. México: Siglo Veintiuno, 1982, p. 137/8.
386
Maurício Magdaleno, um dos membros da “juventude vasconcelista”, analisou sua experiência e de
outros jovens que abraçaram a campanha à presidência da República, em 1929. Mesmo sem qualquer
carisma, a figura de Vasconcelos conseguiu mover uma parcela generosa de sua geração, entre 17 e 25
anos, por acreditar que ele significava renovação na política mexicana e que representaria possibilidades
mais efetivas da construção de uma “sociedade nova”, sem derramamento de sangue. O autor descreve o
significado do “sentimento embriagante” daquela experiência, a violência imposta sobre alguns e o
desfecho frustrante. Vasconcelos. Cf.: MAGDALENO, Mauricio. Las palabras perdidas. México. Fondo
de Cultura Económica, 1985. Vasconcelos não se esqueceu de prestar sua homenagem aos principais
estudantes que trabalharam em sua campanha, dando especial atenção aos nomes de Germán de Campo e
Nacho Lizárraga, assassinados durante a campanha. Cf: VASCONCELOS, José. El Proconsulado, p. 690,
832. Segundo John Skirius, a violência se manifestou com maior vigor nos dois meses antes e três depois
das eleições. Na semana que precedeu as eleições, as cidades de León, Veracruz, Mérida, Mazatlán,
Tampico, nas fazendas de Tanta Engracia, Tamaulipas e outras não comunicadas, vivenciaram cenas de
grande violência. Cf: SKIRIUS, John. Op. Cit., p. 101-103 e174.
387
Vasconcelos contou com o apoio de professoras que trabalharam na SEP quando fora Ministro. É
importante sublinhar, também, que o apoio deveu-se inclusive ao fato de que um dos poucos pontos
inovadores no programa do partido de Vasconcelos, em relação ao programa do PNR, era a promessa de
propor o voto feminino.
388
VASCONCELOS, José. El Proconsulado P. 630. Aarón Sáenz foi o primeiro nome indicado pelo PNR
para disputar com o partido de Vasconcelos. Entretanto, durante a convenção, seu nome foi substituído
por Ortiz Rubio, no último momento.
131
exemplares. Assim, evidenciou que grande parte de sua campanha havia sido financiada
por recursos obtidos em inúmeras conferências pagas por “desinteressados” que
apoiavam sua candidatura, acrescentando ainda que os que o acompanhavam assumiram
todos os custos com gastos pessoais.389
389
VASCONCELOS, José. El Desastre. P. 626 e 636. Sabe-se que Vasconcelos omitiu que também
contou com a ajuda financeira da empresa petrolífera Huasteca Petroleum Company. Cf: SKIRIUS, John.
Op cit.,p.163.
390
SARMIENTO, Domingo Faustino. Facundo. Civilización y barbárie. Petrópolis, Editora Vozes, 1996.
Maristela Svampa analisa a forma como a construção do mito do “bárbaro” e do “civilizado” não é de
forma alguma inocente, podendo ter alcances políticos e culturais. Segundo Svampa, na construção do
discurso, a ideia de “bárbaro” não é senão um vocábulo por meio do qual se estigmatiza e se define a
alteridade, ocorrendo sempre sob a forma da “auréola sagrada” da civilização. Ver: SVAMPA, Maristela.
El dilema argentino: Civilización o barbárie. Buenos Aires, El Cielo por Asalto, 1994.
391
VASCONCELOS, José. El Proconsulado. P. 775.
132
sofreu as consequências, como também, à figura de Jesus. A começar por sua chegada à
capital, comparada por Antonieta Rivas Mercado numa crônica e reproduzida nas
Memórias, com a chegada de Jesus a Jerusalém no “Domingos de Ramos”.392 Numa de
suas poucas demonstrações de humor, ou talvez muito mais de sarcasmo, Vasconcelos
escreveu que, naquela ocasião viu-se contagiado pelo clima eufórico da multidão.
Afirmando ter se sentido, na época, hipnotizado, mas também consciente da repercussão
de suas palavras sobre seus adversários políticos, descreveu que fez um discurso que
inflamou os ouvintes, ligando sua figura a de Quetzalcóatl. Em suas palavras:
133
político para si mesmo. 394 Como “civilizador”, não ousou ultrapassar as virtudes da
figura mítica de Quetzalcóatl, mas em relação a Madero, figura política que mais
admirava, não se absteve de se auto-afirmar como superior. Descrevendo um episódio
ocorrido durante a campanha, afirmou ter ouvido o grito de um anônimo na multidão:
“Viva o Madero culto”. 395
394
Um dos slogans da campanha de Vasconcelos era “Com Madero ontem, com Vasconcelos hoje!”
395
Vasconcelos referiu-se à sua passagem por Hermosillo, quando um anônimo teria gritado no meio da
multidão. Cf: VASCONCELOS, José. El Proconsulado. P. 633.
396
Sobre os acontecimentos ligados à campanha presidencial mexicana de 1929, ver: SKIRIUS, John.
José Vasconcelos y la Cruzada de 1929. Op. Cit. Skirius fornece os dados oficiais dos resultados das
eleições de 1929: Ortiz Rubio (Partido Nacional Revolucionário): 93,58%; Vasconcelos (Partido
Nacional Anti-reeleccionista): 5,42% e R. Traiana (Partido Comunista): 1,01%. Além de fraudes e
violências, deve-se considerar a habilidade política de Plutarco Elias Calles, ao negociar demandas de
dois setores importantes no jogo político, conseguindo afastar a possibilidade de uma reação à derrota de
Vasconcelos. Aos estudantes universitários, prometeu atender a reivindicação referente à autonomia
universitária, que se oficializou pouco depois, em 05 de fevereiro de 1930, sob o Governo de Ortiz
Rubio.Nas Memórias, Vasconcelos afirmou ver a autonomia como “daninha e ridícula”, e atribuiu o ato
de Ortiz Rubio como um “brinquedo novo para entreter aos estudantes”.Cf: VASCONCELOS, José.El
proconsulado. P.856/6. Também, em 1929, o Governo negociou com a alta hierarquia da Igreja Católica
o fim do movimento armado, abrindo concessões no que se refere à liberdade de culto. Com respeito aos
Cristeros, seria precipitado afirmar que tivessem ligações com Vasconcelos, naquela época. Nos relatos, o
autobiógrafo afirmou que havia sido convidado para estar com o líder, Gorostieta, que havia prometido
134
presidência, sai de cena um Vasconcelos que se apresentava como um “herói
civilizador” para prevalecer um “herói derrotado”.
apoio armado e proteção a Vasconcelos, numa eventual fraude. Por diversos motivos, Vasconcelos
preferiu não estabelecer aliança com grupo armado, não efetivando o encontro, afirmando preferir o
caminho da legalidade. O próprio Vasconcelos registrou nas Memórias que a rendição dos Cristeros lhes
causara um calafrio na espinha, pois lhes “privava de toda base para a rebelião que o desconhecimento do
resultado do voto logicamente deveria trazer”. Não podemos ignorar a “rebelião escobarista”, estourada
em março de 1929, que Vasconcelos chamou de “inoportuna”, entendendo que a mesma tinha fortalecido
moralmente e materialmente o governo, pois, com a derrota, o Governo mexicano mostrava sua força,
demonstrando também que contava com o apoio dos Estados Unidos. Cf: SKIRIUS, John. Op. Cit., p. 85.
Sobre a rebelião escobarista, VER: AGUILAR CAMÍN & MEYER, LORENZO. Op. Cit., Pags.126-129.
397
Segundo algumas versões, Quetzalcóatl também era uma divindade temível, para a qual também se
oferecia o sacrifício de um belo escravo, comprado quarenta dias antes da festa do deus. Outras falam até
de uma “origem europeia”, devido a algumas descrições da figura de Quetzalcóatl. Sabe-se que Hernán
Cortés tomou conhecimento da lenda em questão, da promessa de retorno e aproveitou-se da situação
quando os astecas confundiram a sua chegada com o cumprimento da mesma.
135
Huitzilopoxtli, deus sanguinário da guerra, símbolo da “barbárie”, prevalecia sobre
Quetzalcoátl, o deus da civilização. Como numa das versões sobre o herói civilizador
dos toltecas, Vasconcelos também se afastava, com perspectivas de retorno não
definidas. Restava ao México o retorno à “barbárie”. O “profeta rejeitado”, que já
aparecera em outros momentos, desde Ulises Criollo, toma espaço e forma definitiva até
o último parágrafo de La Flama.
398
VASCONCELOS, José. La Tormenta. P. 455.
399
VASCONCELOS, José La Flama. P. 16.
400
VASCONCELOS, José. El Proconsulado. P. 748.
401
VASCONCELOS, José. Indologia. Op. cit., p.20.
136
memorialista apresenta-se como um “derrotado”, nas empreitadas mais importantes e
louváveis em que se envolvera. Pronuncia-se como “profeta”, ser especial, com
qualidades e valores acima do comum e escolhido, exatamente por sua condição de
superioridade moral, para “narrar a iniquidade como forma de combatê-la”.
Vasconcelos escolheu o profeta bíblico Jó402 como a figura que melhor representava o
sentimento que dominava suas emoções, já que, como este, apesar de nada ter feito para
merecer, enfrentou a traição, o abandono por parte dos que o amavam e a injustiça, por
parte de seus adversários. 403 Em 1939, escreveu para o prefácio de El proconsulado:
402
De acordo com a narrativa bíblica, o profeta Jó, apesar de ser um homem íntegro e fiel, passara por
uma prova de grande sofrimento por conta de uma controvérsia entre Deus e o diabo. Perdeu bens, foi
acometido por graves doenças, abandonado pela família e amigos, sendo preservada apenas a sua vida.
Apesar do drama pessoal, Jó permaneceu fiel ao lado do bem, procurando apenas entender os desígnios
de Deus para sua vida. Em La Flama, Vasconcelos recupera a imagem de Jó, associando-a à sua.
403
VASCONCELOS, José. El Proconsulado. P. 602. Trecho do prefácio. Escrito em 1939, quando
Vasconcelos já se encontrava no México, em Hermosillo, Estado de Sonora.
404
Ibidem. P. 603.
137
rememoração dolorosa.405 Ambos são interpretados como produtos do individualismo
moderno, em que cada vez mais o indivíduo tem o seu espaço na sociedade e, cada vez
mais, se detém nele mesmo.
Segundo Maria Rita Kehl “O ressentimento é uma constelação afetiva, que serve
aos conflitos do homem contemporâneo entre as exigências e as configurações
imaginárias, próprias do individualismo, e os mecanismos de defesa do eu a serviço do
406
narcisismo.” Essa autora defende a ideia de que a atualidade do tema do
ressentimento pertence à área clínica, mas também à política. 407 Na concepção de Khel
– aceita e adotada por nós - o ressentimento não é visto como um conceito da
psicanálise, mas como uma categoria do senso comum que nomeia, não apenas a
impossibilidade, mas também a recusa de se esquecer, perdoar ou superar um agravo.408
405
Sobre a relação história, memória e ressentimento, VER: BRESCIANI, Stella & NAXARA, Márcia
(orgs.). Memória e (res) sentimento. Indagações sobre uma questão sensível. Campinas, SP: Editora
Unicamp, 2004.
406 KEHL, Maria Rita. Ressentimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004, p. 11. Referindo-se
ao que teóricos sobre o ressentimento concluíram – entre eles, Max Scheler e Robert K. Merton, Pierre
Ansart também defende que, devemos pensar a ideia de ressentimento como uma constelação de
sentimentos difusos que envolveria ódio, inveja, hostilidade, ciúmes, desejo de vingança. Cf: ANSART,
Pierre. “História e memória dos ressentimentos”. In: BRESCIANI, Stella & NAXARA, Márcia (orgs.).
Memória e (res) sentimento. Op.cit.,p. 16-18.
407
Sobre a repercussão do ressentimento social no campo da política, VER: ZAWADZKI, Paul. “O
ressentimento e a igualdade: contribuição para uma antropologia filosófica da democracia.” In:
BRESCIANI, Stella & NAXARA, Márcia. Op. Cit., p. 375. VER também: KHEL, Maria Rita. Op. cit.,
pags. 217-226.
408
Cf: KEHL, Maria Rita. Op. cit., p. 11.
409
ANSART, Pierre. “História e memória dos ressentimentos”. In: BRESCIANI, Stella & NAXARA,
Márcia (orgs.). Memória e (res) sentimento. Op.cit.,p.16. Ansart afirma que não é adequado pensar que o
ressentimento existe como um todo. O adequado, segundo este autor é falar de ressentimentos, já que há
várias formas: classes sociais, etnias, grupos de idade e que há intensidades variáveis nas manifestações
dos mesmos. Em relação aos sentimentos envolvidos, lista: ódio recalcado, ciúme, inveja, impotência,
desejo de vingança.
410
Em Genealogia da Moral, Nietzsche já ressaltava a existência de dois tipos de ressentimentos: o dos
“fracos”, dominados, padres ascéticos e o dos “nobres decadentes”, que, segundo ele, não acalentariam,
senão, arrogância e desprezo em relação aos fracos. Em comum, o ódio recalcado e desejo de vingança. O
ressentimento destes últimos seria marcado pelo desejo de reencontrar a autoridade perdida e vingar a
humilhação experimentada. Ansart chama a atenção para o fato de que a “humilhação” não deve ser
entendida apenas por um sentimento de inferioridade, mas como “a experiência do amor próprio ferido,
138
responsabilidade pelo que o faz sofrer, sacralizando a vingança sob o nome de justiça,
em forma de ruminações acusadoras.
139
indivíduo não esquece os fatos dos quais foi ator ou vítima, mas esquece-se ou ao
menos, se aferra bem menos às lembranças dos ressentimentos”. 415
Como pode haver despeito no que sabe que tem a razão mesmo que
não tenha tido sucesso? Em todo caso, seria desprezo, não despeito.
Desprezo, combustível amargo da soberba, mas há algo mais (...). Só
um tolo imagina que nisso há despeito. Há, ao contrário, satisfação
profunda e júbilo de senhor que faz lei de suas paixões, porque sabe
que elas são nobres (...). De onde, pois, Senhor, sai essa valentia de
sofrer o insofrível? Essa obstinação que nos obriga a persistir na
peleja nobre, ainda que não vejamos ninguém capaz de apreciar o
martírio? O que sentia e o que tenho sentido sempre é que se trata de
uma questão entre o destino e a alma. Certas atitudes são parte de uma
tarefa de nosso viver, que consiste em não deixar se impor pelas
circunstâncias e, sim, em criá-las.417
415
ANSART, Pierre. Op. Cit., p. 31.
416
Ao longo da pesquisa, tomamos contato com algumas construções autobiográficas em que seus
autores/narradores usaram essa prática cultural, encarando-a como instrumento eficaz para lidar com
alguns acontecimentos que tomaram valor traumático e incontrolável. Destacamos as autobiografias de
Ruth Klüger, sobrevivente do holocausto, e a do filósofo Louis Althusser, que usou a escrita após
assassinar a esposa, em 1980, fruto de um surto psicótico e ser absolvido com o benefício de
“impronúncia”; ou seja, o acusado não poderia ser responsabilizado por entenderem que o praticara num
ato de alienação. Em ambos os casos, bem como no caso de Vasconcelos, o acontecimento específico à
trajetória de cada um dos casos manifestou-se de força tão poderosa que se tornaram “muros”
intransponíveis, impedindo a fruição do presente. Escrever seria para superar ou lidar com as lembranças
que não os abandonavam, fazendo da escrita um instrumento quase “terapêutico” para responder aos
outros e a si mesmo. VER: KLÜGER, Ruth. Paisagens da memória. Autobiografia de uma sobrevivente
do holocausto. Tradução de Irene Aron. Editora 34, 2005. VER também: ALTHUSSER, Louis. O futuro
dura muito tempo. Os fatos: autobiografias. Tradução R F D´aguiar. SP: Companhia das Letras, 1992.
417
VASCONCELOS, José. La Tormenta. Pags.762/3.
140
seguinte que é revisão, quando se manifestam as disputas pela memória, tendo como um
dos objetivos a afirmação e revisão das memórias e dos ressentimentos.418
Como já explicitamos, Vasconcelos apresentou sua gestão ministerial como a
possibilidade concreta de realização de um “bom governo”. Também é importante
sublinhar que, desde a campanha presidencial de 1929, o PNR havia explorado sua
imagem, apresentando-o como um “reacionário”. Dessa forma, preocupado em construir
ou corrigir aquilo que entendia não ser positivo para a cristalização de sua memória,
utilizou seus escritos autobiográficos para acirrar a “guerra de memória”, provocando
seus leitores a reavaliarem o estigma que lhe haviam imputado.
Ao longo dos quatro primeiros volumes, Vasconcelos amalgamou fatos de sua
trajetória política à história nacional mexicana, entre os anos de 1910 e 1935,
procurando construir uma interpretação que não poupou adjetivos pejorativos para
descrever os eventos e principais nomes da política, buscando desqualificá-los.
Sobre as principais figuras políticas ligadas ao movimento e ao “Partido
Revolucionário”, Vasconcelos os representou como “desqualificados de honra
419
nacional”. Imputou pesadas críticas aos generais e sindicalistas “enriquecidos da
Revolução”, descrevendo de forma irônica, situações que desafiavam o leitor a
questionar o “critério revolucionário”, praticado pelos que ocupavam o poder, em
oposição ao que afirmara ter praticado em sua gestão. 420 Pediu, insistentemente, que
seus leitores julgassem quem poderia, de fato, ser considerado “construtor” e “patriota”
ou, em última instância, “revolucionário”.
Ciente de que o “eu” é constituído por meio da definição do “outro”,
Vasconcelos procurou construir uma memória, evidenciando valores que acreditava, o
diferenciavam dos políticos que ocuparam o poder a partir de Madero.421
Os líderes camponeses Pancho Villa e Emiliano Zapata foram apresentados
como a imagem da lenda negra: analfabetos e saqueadores, caracterizados pela
ferocidade e desonra. Carranza, como um “tipo macabro”, de “antecedentes vacilantes”,
“inteligência curta”, corrupto, “caudillo iletrado” e “incompetente”. Mesmo Álvaro
418
ANSART, Pierre. Op. Cit., p. 32.
419
Cf: VASCONCELOS, José. La Tormenta. Pags.512, 514, 517, 519, 525, 529, 552, 567, 569, 578, 612
entre outros.
420
Em vários trechos das Memórias, Vasconcelos acusou os governos pós-revolucionários de praticarem
confiscos arbitrários que beneficiavam apenas amigos e generais favoritos. Segundo ele, os critérios
praticados eram o “favoritismo e mandonismo”.
421
Em muitos momentos, fica ao leitor a dúvida se de fato, ao destacar virtudes em Madero, Vasconcelos
estava falando do líder revolucionário ou projetava para si mesmo tais virtudes. Em sua argumentação, “a
queda de Madero determinou o sacrifício dos melhores”. Cf: VASCONCELOS, José. La Flama, p.12
141
Obregón, de quem foi Ministro, não escapou dos ataques de Vasconcelos, chamando-o
de “traidor e dissimulado”.422 Quanto a Calles, alvo maior de seus ataques, descreveu-o
como um político de “antecedentes ignorados”, “tipo macabro”. Em suma, de forma
geral, nas representações construídas por Vasconcelos, com exceção de Madero, os
demais políticos que assumiram o poder após a Revolução foram descritos como
inaptos, corruptos e personalistas. A tese da “Revolução corrompida”, “degenerada em
caudilhagem”, “defraudada”, marcada pela “desordem”, “caos e barbárie” foi uma
constante nas Memórias. Seus posicionamentos terminaram se caracterizando por uma
interpretação maniqueísta, contrapondo, de forma simplificadora: “civilização e
barbárie”, “leais e traidores”, “patriotas e corruptos”, “trogloditas e idealistas”, entre
outras oposições.
422
Em El Desastre, Vasconcelos recorda situações em que coloca Obregón como um traidor por ter
preferido nomear Calles como seu sucessor para o mandato de 1924-1928 em detrimento do seu nome.
423
Cf: VASCONCELOS, José. El Desastre. P. 66.
424
Ainda que ciente de que o discurso presente na construção autobiográfica de Vasconcelos tivesse o
objetivo de formar um imaginário na memória coletiva de seus leitores, afirmando que seus sucessores
142
também nas lembranças de episódios em que descreveu o entusiasmo das multidões, nos
momentos de aplausos e promessas de apoios, ao longo de sua campanha à presidência.
O tom alegre que a situação impunha era interrompido com o comentário “... (Eu)
desconhecia a vileza da multidão”. 425
Num ato de provocação, escreveu que se arrependia por não ter “favorecido”,
enquanto esteve a frente da SEP, alguns que muito necessitavam, visto que os
“revolucionários” praticavam inúmeras ingerências políticas e continuavam no poder,
enquanto ele sofria todas as injustiças. 426 Por outro lado, afirmou, também, que lhe
entristecia o fato de se sentir esquecido por muitos que ele havia beneficiado.
Igualmente, reclamou de Ramón Valle Inclán, com quem tinha estado, há pouco
tempo. Vasconcelos afirmou que escritor e dramaturgo espanhol havia acompanhado o
florescimento da pintura mural no México e indicava que a Espanha imitasse o que
havia sido feito no México, sem se referir ao seu nome. Vasconcelos justificou sua
mágoa, argumentando que, ao não citá-lo, Inclán desmerecia sua atuação em favor da
pintura mural e favorecia o governo de Calles, que, segundo o memorialista, pouco
haviam desprezado todo o projeto iniciado em sua gestão, cremos ser necessário ressaltar que muito do
proposto foi aproveitado e colocado em prática por Puig Casauranc, Moisés Sáenz, Narciso Bassols e
Jaime Torres Bodet. Segundo Claude Fell, as Missões Culturais, por exemplo, tiveram um êxito
considerável durante o Governo de Calles, sob a direção do Secretário J. Maria Puig Casauranc. Cf:
FELL, Claude. Op. cit., p. 147. Muitos anos mais tarde, Jaime Torres Bodet (1943-1946 e 1958-1964)
retomou muitas das propostas praticadas por Vasconcelos: numerosa construção de escolas, ênfase na
coerência doutrinária da educação mexicana, reorganização e novo impulso nas campanhas de
alfabetização.
425
VASCONCELOS, José. La Tormenta. P. 628.
426
VASCONCELOS, José. El Desastre. P. 167.
427
Grifo de Vasconcelos.
143
havia feito pelo muralismo mexicano. Citou outros nomes, com os quais se sentia
ressentido:
Por outro lado, De los Ríos e García Lorca faziam teatro popular e
missões de arte e De Los Ríos falava que havia visto no México428
algo semelhante, mas também se esquecia de me citar. Mais generoso
foi o Duque de Alba, que, no breve período de seu Ministério
monárquico, não havia tido coragem de citar meu nome de mexicano
como antecedente de um plano seu de bibliotecas populares.429
Por fim, faremos referência à última atitude apontada por Pierre Ansart que é a
intensificação, nomeada também de reiteração ou exasperação do ressentimento, que
segundo este autor, pode assumir forma de um verdadeiro delírio. 430 A partir de El
Desastre, os ressentimentos de Vasconcelos já dão sinais evidentes desta manifestação
exagerada, mas os dois últimos volumes, El Proconsulado e La flama, configuram-se
como uma patente manifestação desta última etapa destacada por Ansart. Vasconcelos
assume a imagem do profeta, dando um tom aos seus escritos de uma memória
delirante: “Soltaste, Senhor, minha língua em irado clamor de redenção. Antes que eu,
profetas teus, mais dignos, falharam também no empenho de restaurar a justiça”.431 Sua
autobiografia foi transformada numa reconstrução narrativa marcada por acusações,
vitimizações e ressentimentos que o comprometeram a formulação de projetos.
428
Grifo de Vasconcelos.
429
VASCONCELOS, José. El Desastre. P. 167.
430
ANSART, Pierre. Op. Cit.,p. 33
431
VASCONCELOS, José. La Flama, p. 486.
432
Procurando homenagear a coragem demonstrada por parte daqueles que sacrificaram a vida, em nome
da “justiça e da verdade”, Vasconcelos deu categoria de “mártires” aos que morreram lutando pela “pela
religião e por liberdade política”. Nomeou a todos os que não colaboraram na “desleal contenda”: León
Toral, jovem católico fanático, que assassinou Álvaro Obregon; Anacleto Gonzáles Flores, e os Generais
Goroztieta e Bouquet, líderes do Movimento Cristero; Daniel Flores, que cometeu o atentado contra Ortiz
144
Contraditoriamente, ao tomar posições políticas tão intransigentes, Vasconcelos
produziu reações completamente adversas ao que havia buscado cristalizar. De
Quetzalcóatl - predicador da paz - acusavam-no de ter invertido a posição e assumindo o
papel de Huitzilopochtli - o deus da guerra - ao predicar matanças, em nome da justiça e
da lealdade. Provavelmente, essa acusação, feita na imprensa da época, lhe causou
contrariedades, mas a mágoa duradoura que alimentava era tão forte que se limitou a
justificar seu ato:
(...) Por isso haviam perdido os astecas. Não haviam sabido lutar para
defender Quetzalcóatl, como homens livres e, em troca, haviam se
condenado à guerra perpétua e à discórdia sem fim, pois não é sobre
bases criminosas que se levanta o edifício da prosperidade e a
felicidade das nações.
Com dor falo daqueles esforços malogrados, dor pela pátria que
perdeu no desastre e não porque a mim tenham privado de nada, pois
tive mais dinheiro depois, em outras ocasiões, e mais tempo livre para
meus próprios exercícios de fantasia. (...) Ufano estaria eu e não
despeitado se só por egoísmo houvesse atuado. A obra, entretanto, não
haveria produzido se só egoísmo a tivesse guiado. E é altiva e
desolada a dor com que hoje rememoro as oportunidades que perdeu
minha gente (...).433
Rubio, pouco tempo após o resultado das eleições, e os quarenta Vasconcelistas mortos em Topilejo, bem
como o estudante Germán del Campo, morto durante um comício. O leitor é constantemente confundido
pelo memorialista. Vasconcelos inverte os papéis, levando o leitor a se interrogar se ele de fato estaria
falando dos nomes citados ou de si mesmo. Cf: VASCONCELOS, José. La Flama pags. 125-128;196-
197; 218-224.
433
VASCONCELOS, José. El desastre. P. 171/2.
434
Cf: VASCONCELOS, José. El Proconsulado. Pags. 720-726. A analogia aparece em outros volumes.
435
VASCONCELOS, José. El Desastre. P. 376.
145
não se deseja esquecer - podem representar a busca por uma reparação. 436 Ao
assumirmos a produção de memórias como uma prática cultural, que deve ser
considerada dentro do jogo político, questionamos que o ressentimento possa produzir
somente passividade. Ao longo da história, a narrativa tem sido uma forma praticada
como defesa, para reiteração de uma memória, para exorcizar lembranças, podendo,
assim, ser entendida como uma forma de ação.
436 Sobre a evocação dos agravos, frutos da dificuldade ou recusa de se esquecer, Maria Rita Khel lembra
que “há eventos que não se conseguem esquecer; outros não devem ser esquecidos”. Khel exemplifica
citando “políticas de reparações” (fazendo questão de diferenciá-las das “políticas de ressentimento”),
realizadas após manifestações dinâmicas e positivas de ressentimentos: judeus e “desaparecidos”
politicos.Cf: KHEL, Maria Rita. Op. cit., p. 226
146
Considerações Finais
Logo ficou claro que Vasconcelos tinha motivos mais profundos. A princípio,
buscávamos averiguar a possibilidade de encontrar elementos que pudessem nos dar
alguma pista quanto ao desejo de Vasconcelos ter utilizado a escrita autobiográfica com
a finalidade de uma possível reinserção no cenário político mexicano. Não chegamos a
conclusões categóricas nesse sentido. O que podemos afirmar é que, mesmo
Vasconcelos, personagem que ao longo de sua vida apresentou características
distanciadas do pragmatismo, em 1931, ano em que iniciou a escrita de suas Memórias,
147
já havia compreendido o que se configurava como uma marca na política mexicana dos
anos seguintes: a consolidação da força do Partido Nacional Revolucionário. Tinha
plena clareza de que seu espaço para emitir opiniões políticas em jornais e revistas era
bastante limitado, por conta de seus posicionamentos. Ao longo do trabalho,
procuramos demonstrar que, diante de tal constatação, Vasconcelos deu duplo
direcionamento à sua construção autobiográfica. Utilizou-a como um instrumento para
afirmar e corrigir uma identidade ferida, emitindo a sua verdade, defendendo-se de
acusações que lhe eram feitas e também atacando seus adversários políticos. Assim,
entendemos que o memorialista buscava um impacto político imediato, escrevendo para
um público leitor do seu tempo, mas não somente.
437
LE GOFF. História e Memória. Op cit., p. 434.
438
VASCONCELOS, José. El proconsulado, p.601.
148
Ulisses, figura ligada aos valores europeus e a de Quetzalcóatl, personagem indígena tão
relevante na mitologia mexicana. Podemos afirmar que, mesmo com tom característico
de libelo político em grande parte do conteúdo, a obra memorialística de Vasconcelos
resultou em uma “obra mestiça”, ao evidenciar os conflitos na busca pela definição da
identidade nacional mexicana.
439
A expressão em itálico é utilizada por Maria Ligia Prado ao tratar da experiência do argentino José
Bernardo Monteagudo que participou do movimento pela emancipação da América do Sul e vivenciou
tais sentimentos em fases distintas dos acontecimentos. PRADO, Maria Ligia. “Esperança radical,
desencanto conservador na América Espanhola”. In: Revista História. SP: Ed. UNESP; v.22, p.15-34.
2003. A mesma autora amplia o tema tratando de outros personagens que atuaram nas lutas de
independência na América Latina. PRADO, Maria Ligia. “Sonhos e desilusões nas Independências
Hispano-americanas”. In: América Latina no Século XIX. Telas, Tramas e Textos. SP: EDUSP, 2ª Ed.
2004. Pág.53-73. Os trabalhos de Regina Crespo, que realizou um estudo comparativo das atuações de
Vasconcelos e Monteiro Lobato, e Fabiana Fredrigo, que analisou a construção de imagens por meio do
epistolário de Simón Bolívar, também reforçam a ideia de o quanto esperança e desencanto andam de
braços dados na experiência de personagens latino-americanos que desejaram realizar uma “grande obra”.
149
Vasconcelos, como outros, evidenciou uma questão recorrente na relação sujeito
- história: o descompasso entre a projeção e a realidade. As memórias dolorosas
insistiam em ressaltar “o que fui e fiz” e o que “poderia ter feito”. As dificuldades
encontradas terminaram por contaminar projetos para um futuro de realizações.
Impediram, ainda, que ele entendesse e aceitasse que as dinâmicas coletivas desviam e
ressignificam ações individuais. Especialmente, naquele momento, não foi capaz de ter
a percepção de que o que tinha realizado não estava perdido.
440
Num artigo da Revista Estudos Históricos, Renato Janine Ribeiro analisa a situação paradoxal que
pode gerar este anseio de “forjar uma glória”, manifesto na produção de uma memória gerada de forma
deliberada. VER: RIBEIRO, Renato Janine. “Memórias de si, ou...”. In: Estudos Históricos. Op. cit
441
VASCONCELOS, José. La Flama. Los de arriba en la Revolución. 9ª impresión. México: Compañia
Editorial Continental, 1977, p.350.
150
Bibliografia
151
ACHEBE, Chinua. O mundo se despedaça. Tradução de Vera Queiroz da Costa e Silva.
São Paulo: Ática, 1983 (Coleção de autores africanos; 17).
AGUILLAR CAMÍN, Héctor & Lorenzo Meyer. À sombra da Revolução Mexicana.
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