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Lilith em Agonia, Uma Leitura de Vinícius de Moraes

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Lilith em Agonia, uma leitura de Vinícius de Moraes

Jefferson Mauro Rodrigues de CARVALHO1

RESUMO: Este trabalho analisa o poema Agonia de Vinícius de Moraes por meio da
correlação mantida com o arquétipo de Lilith. Através de análise bibliográfica
conceituou-se mito e arquétipo para em seguida apresentar a figura mítica de Lilith.
O poeta Vinícius de Moraes foi escolhido devido a sua devoção à figura feminina,
bem como o modo pelo qual este apresenta a sua poesia, marcada tanto pela sua
formação católica, como pela busca do poeta em retratar o social e o cotidiano.
Dentro da poética do autor, escolheu-se o poema Agonia devido a sua riqueza
simbólica relacionada ao arquétipo em questão. Verificou-se, portanto, que o olhar
masculino do eu lírico no poema assume uma postura de medo e perdição ao ser
confrontado com o simbolismo da Grande Mãe Terrível e da Anima sedutora contidos
em Lilith, o que o faz vivenciar uma experiência dúbia de morte e prazer sexual.
PALAVRAS-CHAVE: Arquétipo; Lilith; Mulher; Poesia; Vinícius de Moraes.

1. Introdução
Desde os primórdios da sociedade humana, a mulher foi vista e reverenciada
como um ser ligado ao místico devido a sua capacidade de gerar a vida. Desta
forma, ao longo dos milênios a representação da figura feminina foi sendo tecida
junto a elementos tanto profanos quanto sagrados para a sociedade. Uma dessas
representações une mitos de diversas culturas na construção de um arquétipo que,
por si, representa o medo e ao mesmo tempo o desejo sexual causado pela figura
feminina. Trata-se da figura de Lilith, ser arquetípico que ronda as manifestações
artísticas e culturais humanas desde suas origens. Este trabalho aborda então a
representação da mulher através deste arquétipo.
A pesquisa partiu do interesse sobre a representação do feminino através da
literatura. Para tal foi escolhida a Escola Modernista e, situado nesta, o poeta
Vinícius de Moraes cujo poema Agonia é a matéria prima para o estudo.
A metodologia utilizada constitui-se de análise bibliográfica. Em primeiro
momento conceituou-se mito e o arquétipo de Lilith a fim de estabelecer o escopo
necessário para a análise. Em segundo momento apresentou-se o poeta Vinicius de
1
Graduação em Letras – Língua portuguesa e suas literaturas pelo Centro Universitário Barra Mansa,
especialização em Literatura Brasileira pela faculdade de educação São Luís, Jaboticabal, São Paulo, Brasil. E-
mail do autor: jef_omega@yahoo.com.br
2

Moraes ressaltando-se elementos de sua vida e obra pertinentes para o estudo


proposto. Finalmente segue uma análise detalhada do poema Agonia estabelecendo
pontos de ligação com o mito de Lilith e atestando assim a sua presença.

2. Mito e Arquétipo
Segundo Samuel (1992), o mito acompanha o homem antes mesmo do
surgimento da história, arte e lógica. É um estágio do desenvolvimento do
pensamento humano que em geral tem como função e conteúdo a explicação dos
fenômenos naturais por meio de alegorias.
Nesse sentido, o mito é um modo subconsciente e coletivo de explicação da
realidade. E como metáfora, está estreitamente relacionado à literatura que “como o
antigo mito, participaria da mesma natureza imaginativa de explicação do mundo [...]
da necessidade mítica de explicar a realidade” (p. 183). E por isso pode ser
entendido como uma função da literatura.
Dentro, não só, do mito, como também, da literatura, estão presentes os
arquétipos. Segundo o Grande Dicionário Houaiss (2018) Arquétipo pode ser
explicado, em seu sentido filosófico como “modelo ou exemplar originário, de
natureza transcendente, que funciona como essência e princípio explicativo para
todos os objetos da realidade material.” Desta forma os arquétipos podem ser
entendidos como unidades simbólicas de origem insondável que ajudam a entender
a realidade. Sendo assim o arquétipo é como uma matriz imagética atemporal que
se repete nas manifestações humanas, individuais ou coletivas, realizando
correspondências. (CIRLOT, 1984).

2.2 O arquétipo de Lilith


A figura da Lilith surgiu em diversas culturas antigas e sob diversas formas.
Segundo Hurwitz (2013) Lilith possui dois aspectos primordiais. O primeiro é o
aspecto de Grande Mãe Terrível que o autor associa a deusa suméria Lamashtu.
Neste aspecto Lilith é assim como Lamashtu, uma deusa, ou espirito demoníaco da
morte. Muitas vezes representada como um ser que ataca mães após o parto e
rouba as crianças recém-nascidas, estrangulando-as e matando-as para beber o seu
sangue e sugar o tutano de seus ossos.
O segundo aspecto de Lilith é o aspecto da Anima Sedutora que o autor
associa a deusa babilônica Ishtar. Neste aspecto, Lilith surge como uma mulher que
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seduz os homens e os leva a perdição. Aqui o seu caráter sexual é extremamente


aflorado, é uma figura dominadora que ataca os homens à noite em seus leitos,
montando sobre eles e levando-os a poluções noturnas.

2.3 Vinícius de Moraes e a figura da mulher


Na poesia de Vinícius de Moraes a figura da mulher surge não apenas como
uma temática perante a qual ele se debruça, mas como uma busca incessante,
personificada, do desejo do poeta por viver autenticamente sua vida, de não fugir de
seus sentimentos, de ser fiel a eles. (CASTELLO, 1997) Dessa forma, Vinícius
contempla a mulher de longe, como um ser profano. Ele a deseja, ele a busca e até
mesmo foge dela. Em seus poemas ele tem a mulher de perto, ele a ama e se perde
nela. Pede piedade e agradece a Deus pelas mulheres que, embora sejam “ser
vegetal, dona do abismo, que carregas o vórtice supremo da paixão”, ainda sim, e
por isso mesmo, jamais deixarão de ser “a coisa mais bela e mais perfeita de toda a
criação inumerável.” (VM CULTURAL, 2018).

2.4 A presença de Lilith no poema Agonia de Vinícius de Moraes


O poema Agonia, publicado no livro Forma e Exegese (1935), apresenta um
eu lírico disperso na imensidão do corpo da mulher:

Agonia

Rio de Janeiro , 1935


No teu grande corpo branco depois eu fiquei.
Tinha os olhos lívidos e tive medo.
Já não havia sombra em ti — eras como um grande deserto de areia
Onde eu houvesse tombado após uma longa caminhada sem noites.
Na minha angústia eu buscava a paisagem calma
Que me havias dado há tanto tempo
Mas tudo era estéril e monstruoso e sem vida
E teus seios eram dunas desfeitas pelo vendaval que passara.
Eu estremecia agonizando e procurava me erguer
Mas teu ventre era como areia movediça para os meus dedos.
Procurei ficar imóvel e orar, mas fui me afogando em ti mesma
Desaparecendo no teu ser disperso que se contraía como a voragem.

Depois foi o sono, o escuro, a morte.

Quando despertei era claro e eu tinha brotado novamente


Vinha cheio do pavor das tuas entranhas. (VM CULTURAL, 2018)

No texto o aspecto da Mãe Terrível de Lilith se sobressai. Os símbolos são


dúbios, ao mesmo tempo em que evocam a angústia, também não deixam de
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exercer uma sensualidade que confunde morte, ato sexual e maternidade em um


mesmo poema de teor altamente onírico. “eras como um grande deserto de areia/
[...] tudo era estéril e mostruoso e sem vida / E teus seios eram dunas desfeitas pelo
vendaval que passara.” (VM CULTURAL, 2018). O espaço do deserto remete ao
mito, onde o deserto é a habitação de Lilith, em consonância o vento retoma a
origem suméria de Lilith como um deus do vento. (Hurwitz, 2013). Também é
interessante notar a ação do vento nos seios, são “dunas desfeitas pelo vendaval”
como a representação de um toque erótico.
Em seguida, as cenas descritas são liricamente recheadas de simbolismos:
“estremecia agonizando e procurava me erguer / Mas teu ventre era como areia
movediça para os meus dedos./ Procurei ficar imóvel e orar, mas fui me afogando
em ti mesma”. Vemos aqui uma espécie de mortificação do eu lírico que retorna ao
útero da Grande Mãe. Segundo Chevalier e Guerbrant (2015, p. 580), “a vida e a
morte são correlatas. Nascer é sair do ventre da mãe; morrer é retornar à terra”
assim o afogamento do eu lírico no ventre dessa mulher/deserto é um retorno a
terra, a morte e ao útero materno; como também, o ventre como areia movediça
para os dedos possui grande apelo erótico e o afogar em ti mesma sugere a
penetração no ato sexual. “Desaparecendo no teu ser disperso que se contraía
como a voragem”. (VM CULTURAL, 2018) Também aqui a contração e a voragem,
podem significar tanto o ímpeto da morte que a tudo traga, quanto à contração de
um orgasmo.
Logo depois, o eu lírico apresenta uma quietação total, como um relaxamento
pós-orgasmo ou como o silêncio absoluto da morte. “Depois foi o sono, o escuro, a
morte. / Quando despertei era claro e eu tinha brotado novamente / Vinha cheio do
pavor das tuas entranhas.” (VM CULTURAL, 2018) Por último ele brota novamente,
renasce, o que permite entender o poema, mais que uma representação de Lilith
como Mãe Terrível ou como Anima Sedutora, uma representação de planos
sobrepostos da própria vida, contendo em si reprodução morte e ressureição.

3. Conclusão
No presente estudo verificou-se a estreita ligação que há entre mito e
literatura, como também a função que os arquétipos exercem de ideários livres e
atemporais que são constantemente ressignificados nas manifestações humanas.
Desse modo, valendo-se do arquétipo de Lilith pode-se verificar como ela surge no
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poema Agonia de Vinícius de Moraes, trazendo consigo todo o seu simbolismo de


repulsa e atração, medo e desejo, morte e ressureição.
Muito mais ainda pode ser feito no que concerne à presença de Lilith nos
poemas de Vinícius de Moraes. Tais análises são importantes, pois fornecem
material de estudo para a representatividade feminina no século XX, o que contribui
para os estudos de gênero tão significativos em nosso cenário atual.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CASTELLO, José. Vinicius de Moraes: O poeta da paixão - uma biografia. 2. ed.


São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 433 p. 444

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos: Mitos, sonhos,


costumes, gestos, formas, figuras, cores, números.. 27. ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 2015. 995 p.

CIRLOT, Juan-Eduardo. Dicionário de Símbolos. Trad. Rubens Eduardo Ferreira


Frias. São Paulo: Moraes, 1984. 614 p.

HOUAISS, Antônio. Grande Dicionário Houaiss. Rio de Janeiro. Disponível em:


<https://houaiss.uol.com.br>. Acesso em: 04 out. 2018.

HURWITZ, Siegmund. Lilith - a primeira Eva: Aspectos históricos e psicológicos do


elemento sombrio feminino.. 2. ed. São Paulo: Fonte Editorial, 2013. 224 p.

SAMUEL , Rogel (Org.). Manual de teoria literária. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 1992.
189 p.
SANTOS, Luísa Cristina dos (Org.). Literatura e Mulher: das linhas às entrelinhas.
Ponta Grossa: UEPG, 2002. 200 p.

VM CULTURAL. Livros de poesia. Disponível em:


<http://www.viniciusdemoraes.com.br/pt-br/poesia/livros>. Acesso em: 04 out. 2018.

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