O esquecido de si, Dante Milano: Rastros de uma poética do esquecimento
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O esquecido de si, Dante Milano - Bruno Darcoleto Malavolta
Milano
[11]
Sumário
Apresentação [13
Introdução [17
1 Tradição e traição: a biobibliografia de uma alma [25
A irrepreensível unidade [27
Classicismo e modernidade [30
O realismo estético e o neoplatonismo [33
O ritmo semântico: seu pensamento é de fato sua forma [36
O antilirismo sinistro [39
O pensamento emocionado e a emoção governada pela inteligência [43
O esquecimento [45
2 Uma poesia erguida das ruínas da civilização ocidental [47
A linguagem como ruína [48
A cultura como ruína [66
3 O esquecido de si, Dante Milano [83
O rastro do esquecimento [89
O mármore da memória e as ruínas do esquecimento [96
A ontologia deslocada [107
4 Os poemas esquecidos [123
Esquecimento como tema [125
Esquecimento como rastro [141
Tragédia moderna na paisagem antiga: a Elegia de Orfeu
[142
Tragédia esfacelada da modernidade esfacelada [149
Considerações finais [159
Referências [163
[13]
Apresentação
Este livro nasceu, de alguma forma prematuro, como resultado de sete anos de convivência com a obra poética de Dante Milano, desde os idos tempos da graduação do autor. Prematuro, pois nasceu de um só fôlego, após a longa gestação que se iniciou quando li, pela primeira vez, enquanto caminhava ao lado dos espelhos de água do campus da Unesp de Araraquara, o primeiro soneto do Poesias. De lá para cá, o tempo só me fez convencer de que seria impossível escrever esta obra crítica sem a demorada intimidade que o texto de Dante Milano, entre esfíngico e campestre, como diz Ivan Junqueira, exige de seu leitor. Esta índole paradoxalmente simples e hermética não permitiria, da mesma forma, perscrutá-la criticamente mal aparatado de um necessário arsenal filosófico, que eu só adquiriria bem depois de meu primeiro encontro com a verônica poética do poeta carioca.
O que se seguiu foi, além da contínua convivência com os poemas, uma convivência igualmente íntima com o crítico e também poeta Ivan Junqueira, através da leitura silenciosa de seus textos lapidares sobre a obra poética de Dante Milano. Desde então, a necessidade de confrontar o texto de Junqueira, como forma de demonstração de respeito a este como elo vivo de ligação minha com o herético poeta, cresceu dentro de mim como uma urgência da escrita, [14] sempre adiada, em virtude de todas as dificuldades que o texto poético em questão impõe a seu investigador. Quando, por fim, o estudo encontrava-se em estágio satisfatoriamente avançado de desenvolvimento, este autor tomou coragem e telefonou à Academia Brasileira de Letras e, munido dos contatos de Ivan Junqueira, telefonou ao poeta. Avisei que iria ao Rio, e que, se possível, gostaria de encontrá-lo para falarmos sobre Dante e sobre poesia. A minha vontade de conhecer Dante Milano pelo espelho de seu amigo, Ivan Junqueira, poeta por quem também tenho franca admiração, foi, então, freada por Ivan: que eu fosse ao Rio, no calor daquele janeiro, não era aconselhável: apenas tolerável, já que eu iria com a namorada
. Mas não haveria condições para nos vermos. Ivan estava mudando-se, encaixotando sete mil livros, se não fosse mais, e não poderia, em absoluto, ver-me. Também não poderia ler nada de minha lavra por aquele momento. Fui ao rio com a namorada
, mas não vi Ivan.
Em julho deste mesmo ano, quando eu, afinal, em férias, planejava procurar Ivan, recebi um telefonema que me comunicou logo na primeira linha: Ivan Junqueira havia falecido. Uma estranha sensação tomou conta de mim: eu perdera um amigo com quem nunca conversara, de fato, senão por uma ligação telefônica. Agora eram dois fantasmas a me perseguir e que eu perseguia: o de Dante e o de Ivan. Não houve solução senão retomar o contato com o biógrafo de Dante Milano, e também poeta, Thomaz Albornoz Neves, com quem já não me correspondia mais há alguns anos. Finalmente li sua dissertação de mestrado, e as conversas com Thomaz sobre Dante foram de absoluta importância para a fabricação dessa obra: por um lado, confrontando minha leitura pelas suas fraquezas ou iluminando-me quase por acidente, com seu conhecimento sobre o poeta, e, por outro, deixando-me menos órfão dos dois fantasmas, já que Thomaz fora amigo pessoal de Ivan Junqueira, e fornecia, assim, um elo vivo de segundo e terceiro grau com os poetas cariocas,
Ao longo deste breve século XXI, a fortuna crítica da poesia de Milano vem ganhando, a um ritmo frenético, leituras e leitores com [15] estudos que, à semelhança dos seus pares do século passado, são profundamente devotos a um poeta cujo esquecimento crítico o acompanhou sempre, tanto em sua vida quanto após sua morte. À revelia do próprio poeta, desinteressado nos rumores de falsa glória
, esses críticos têm empreendidos leituras verdadeiramente excepcionais da obra poética de Dante, o que não é nada além de justo, visto que a envergadura do poeta não encontra, ainda, paralelo no relevo diminuto que possui Dante nos círculos literários.
Este estudo, a se somar a essa ainda precoce crítica acadêmica sobre o poeta, vem sublinhar um traço peculiar de sua obra: o aparecimento contínuo da temática do esquecimento, já evidenciado por Manuel Bandeira, e seus consequentes desdobramentos para a unidade do Poesias, enfeixada pela poesia do pensamento, ou do pensamento emocionado. Forçando o núcleo central da obra pelo seu polo negativo, intentamos demonstrar como o esquecimento, tencionando-se ao pensamento, vai resultar em uma poesia de absoluta singularidade, e modernidade sui generis, em que tradição e modernidade medem forças em uma tensão, afinal, resolvida apenas em um ato resiliente deste eu lírico, o esquecimento.
[17]
Introdução
A figura do poeta debruçado sobre a folha de papel, circundado pelos signos culturais de seu tempo e desassistido pelas Musas, a caçar palavras e buscar enigmas que deverão sobreviver a si próprio e ao frio toque de seus exegetas, é uma atualização da figura do vate, do louco, do miserável, do andarilho, do ladrão, do insone, de deus, do diabo, do vazio: todos esses que, de maneira escatológica, deixam rastros cujo significado transcende as empresas humanas ordinárias, irritam ou fascinam os homens comuns. Como atividade polissêmica que deve, necessariamente, driblar intenções unívocas de leitura, a poesia nos interessa como objeto cujo poder reside em sua capacidade de afastamento de seu projeto original ou, nos termos em que falou Jorge Luis Borges (Borges; Sabato, 2005), em sua necessidade de escapar à intenção de seu autor para galgar sua natureza tanto metadiscursiva quanto metafórica.
É nesse mesmo sentido que perscrutaremos os rastros da obra milaniana: um pouco à maneira do arqueólogo
, do detetive
e do psicanalista
(Gagnebin, 2006), interessam-nos os signos deixados à margem pela fortuna crítica dessa obra solitária, o Poesias de Dante Milano, e é pela significação esquecida das margens que intentamos chegar a seu centro. Se Ivan Junqueira (1984, p.80) viu no Poesias uma irrepreensível unidade
, forçaremos esta unidade [18] (baseada em uma poesia do pensamento, ou do pensamento emocionado) pela sua oposição semântica imediata, o esquecimento, ou o rastro do esquecimento a cortar o Poesias, uma vez que, em língua portuguesa, o pensar e o lembrar confundem-se em algum ponto rarefeito de seu campo semântico, e o significado contíguo desses dois verbos aglutina-se em um termo de origem latina, comumente encontrado na variante caipira do português brasileiro e imortalizado pela Canção do exílio
: o cismar. Aquele que pensa incessantemente sobre um assunto, e dele, portanto, amiúde se lembra, está cismado: a Canção do exílio
, de Gonçalves Dias, coloca sobre este verbo toda a sua condensação ética e imagética: "Em cismar sozinho à noite (Dias apud Bernardi, 1999, p.90; grifo nosso) encarna tanto a perplexidade memorialista quanto reflexiva deste poema, que não deixa de ser a mesma de nosso projeto romântico. A cisma de Milano é, pois, uma poesia
pensamenteada" até o limite da perplexidade – para nos valermos do termo cunhado por Manuel Bandeira, imaginando que assim a chamaria Mário de Andrade (Bandeira, 1997) –; ação que só encontrará resolução, ao longo do Poesias, em um ato resiliente: esquecer.
Perscrutamos o rastro de esquecimento em Milano munidos das ferramentas exegéticas tomadas às teorizações sobre a memória e o esquecimento de Jeanne-Marie Gagnebin (2006), quais sejam: ser o rastro um signo de caráter especial, por vezes dotado de uma não intencionalidade e uma violência, empregada por aquele que o produziu. Analisaremos os signos milanianos que nos levam à tópica e à estrutura deste rastro que, ao fazer duplo negativo ao eixo central da obra milaniana, o pensamento, desloca-se igualmente para o centro do tabuleiro: o confronto entre pensamento e esquecimento, na obra milaniana, afina-se à visão de Octavio Paz sobre a analogia na modernidade, de que esta não suprime as diferenças: ela as redime, torna possível sua existência
(Paz, 2013, p.80). No limite, a pergunta que intentamos responder é se a existência do pensamento, em Dante Milano, não estaria condicionada ao esquecimento. É certo que nenhuma das nove seções do Poesias, somadas à seção dos últimos poemas, dedica-se nomeadamente ao tema do [19] esquecimento. Porém, atendo-se somente aos poemas em que há a aparição explícita da temática do esquecimento, podemos contabilizar que cerca de dez por cento dos poemas do volume abordam o tema como seu eixo semântico principal – quantidade suficiente para que isolássemos o esquecimento em uma seção dispersa e dissoluta na obra, uma seção-ao-longo-de – ou, simplesmente, um rastro. A possibilidade de se ler o Poesias pelo rastro desse signo marginal, portanto, se nos apresenta como uma métrica e uma medida para a leitura aqui empreendida: aquela que dá a baliza e os pés de equilíbrio para que o todo não se coagule em uma poesia de intolerável lucidez e irrepreensível unidade
, como é a poesia de Milano.
Relativamente ao sentido ético deixado por este rastro que, como afirma Gagnebin, deve vir sublinhado de uma violência por parte de quem o inscreveu, uma fala de Brecht – Apaguem os rastros!
– retomada por Benjamim em Experiência da pobreza
(Brecht apud Benjamin, 1987, p.118), refere-se ao comportamento dos homens comuns, mencionados no início deste texto, no salão burguês. Por homens comuns não entendemos aqueles que foram desassistidos pelas musas – condição também cara ao poeta moderno – mas, sim, aqueles que, ao compactuar com a ideologia burguesa, de evidente índole fascista, e aceitar, portanto, abrir mão da vida – em toda a pluralidade semântica que sobrecarrega esta palavra – apagam seus rastros em louvor do tecnicismo, aderindo à condição desumanizante do racionalismo moderno; esses que, de forma inconsciente, fazem coro à ideologia que possibilitou as maiores metáforas históricas desse racionalismo: o fascismo e, em sua máxima condensação, Auschwitz. Metáforas que são recuperados por Adorno e Horkheimer em sua Dialética do esclarecimento (1997), em que denunciam a relação entre a índole imperialista de nossa cultura e a origem mesma do pensamento ocidental. Para os autores, o logos liga-se à dominação; para Debord (2011, p.19), o espetáculo – a ultracondensação da ideologia imperialista do ocidente – é o "herdeiro de toda a fraqueza do projeto filosófico ocidental"; para Paz (2013), como bem definido na introdução de seu Os filhos do barro, é contra a modernidade que o poeta moderno escreve poemas.
[20] A polêmica afirmação de Adorno (1998, p.26), de que escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro, e isso corrói até mesmo o conhecimento de por que hoje se tornou impossível escrever poemas
, interessa-nos pela semelhança que mostra, em seu radicalismo, com esta tópica peculiar da poesia milaniana: o esquecimento. Haverá, aqui, uma estreita ligação ética entre a postura de absoluta impassividade e negação do mundo em que se inscreve a obra – esquecimento, pois – e, ao mesmo tempo, o rastro de tópicas relacionadas à guerra: único momento em que o eu lírico faz explícita menção a um fato social de seu tempo, rodeando-o, porém, de uma universalidade, em sua dura dicção classicizante e profética, à maneira dos bíblicos, que não permite traçarmos um paralelo direto entre este fato social e o seu fato estético e poemático, sob pena de trair essa mesma universalidade. Como aquele que tenta incessantemente reelaborar simbolicamente uma memória traumática, o rastro da guerra e o rastro do esquecimento aproximam-se estética e eticamente numa mesma direção: a negação da cultura em que se inscreve este eu lírico e, portanto, o resgate traumático, seguido do esquecimento, dessa mesma cultura.
Junqueira (1984, p.80-81) vê na poesia milaniana um "tecido de cruezas expressionais e significações objetivas, um voto de fidelidade à clarté cartesiana, um exercício raisonnant de imaginação irônica, em todo oposta à difusa deliquescência da ‘ironia romântica’. Tal economia de meios, na estrutura lírica da dicção classicizante de Milano, sublinha, a tintas negras, um enorme contraste entre o texto poético e seu tempo histórico, ou seja, a escolha de uma dicção clássica para uma poesia de inclinação ética moderna. É nessa dupla contradição, em, por um lado, utilizar-se de recursos clássicos, ou seja, esse voto de fidelidade à
clarté cartesiana", para versar sobre o esquecimento (ou apagamento) de uma cultura calcada no racionalismo e, por outro, produzir uma poesia do pensamento que só pode ser apaziguada e resolvida em seu duplo negativo, o esquecimento, que fecharemos a nossa chave de exegese do poema milaniano; a busca pelo esquecimento em três níveis, quais sejam: a dissolução entre a dicção clássica do texto e sua latente modernidade, o esquecimento [21] cultural empreendido pelo brusco distanciamento entre o tempo histórico e o tempo lírico, e o deslocamento ontológico resultante deste mesmo distanciamento, arremessando os poemas do Poesias em paragens que nos parecem antes alienígenas que mundanas, em uma espécie de distopia pós-apocalíptica. Uma linguagem que atinge seu mais alto nível de tensão ao misturar a analogia da dicção alighieriana com uma ironia moderna, assim como sugere Paz (2013), de forma a evocar a discussão metalinguística sobre a essência mesma dessa linguagem, que em alguns momentos parece estar próxima a seu próprio desaparecimento: ao aproximar mundo sensível e mundo inteligível como se fossem, ainda, mundos conciliados – ou seja, como se a poesia, na modernidade, não fosse já tocada pela arbitrariedade do signo e a consequente dúvida sobre o poetar em que essa arbitrariedade arremessou o fazer poético – de forma a evidenciar, através de