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Poéticas como políticas do gesto
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E-book367 páginas4 horas

Poéticas como políticas do gesto

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Sobre este e-book

Poéticas como políticas do gesto, é uma obra com características interdisciplinar e poética, que conta com a colaboração vários autores, que ao longo da obra buscam descrever e analisar "interfaces entre poéticas e políticas", "reafirmamos a política do gesto antes do resgate do gesto político da literatura", os autores buscam desenvolver e analisar o tema de maneira profunda e valorizando a literatura e seu gesto político.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento7 de abr. de 2021
ISBN9786558401018
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    Poéticas como políticas do gesto - Daniel de Oliveira Gomes

    final

    APRESENTAÇÃO

    POÉTICAS COMO POLÍTICAS: O REAL CRAVADO NO GESTO

    Daniel de Oliveira Gomes

    1. Suspensões

    Suspensa quer dizer suspensão, mas também dependência, condição, condicionalidade. Em sua condição suspensa a literatura apenas pode exceder a si mesma. (Derrida, 2014, p. 70)

    Eis um volume onde todas as colaborações cogitam interrupções, suspensões. A dimensão poética (e com ela, em maior escala, a literatura como prosódia) encena um gesto político quando suspende imagens, quando repensa (suspensa) a ideia de representação. Poderia dizer que a politização nas poéticas vai pôr efeitos de interrupções.

    O sobrevir poderoso da literatura como seiva política quem sabe esteja no gesto de que ela nunca de fato transgrida, mas sim ignore, as interdições, o mundo da Lei. Ou seja, mais poderosa é a literatura, enquanto ruptura, quão mais ela suspenda as consonâncias do Estado e não represente quaisquer ressentimentos, obsessões simbólicas dos laços sociais, mercancias entre os seres ou a dissimulação da linearidade ao poder. Ao contrário, na Literatura vista por este prisma que nos faz rever as regras do conceito político na comunidade, há uma inocência espontânea, que ignora transversalmente o nomos coletivo.

    Ignora este nomos que a deveria enquadrar, interditar, calar, conformar, paralisar. Tal desconhecimento que lhe é próprio desde muito tempo seria o fundamento fantasmagórico de sua função política? Qual a teoria do sujeito de Alain Badiou, questionar a política passa, então, pelo abandono da ideia de representação, pois uma política organizada, grosso modo, não representa ninguém para além de si mesma. Aquilo a que chamamos de gesto significa tornar a medialidade visível, como poria Agamben.

    Ou, como Jacques Derrida, autor que mostrava as dificuldades de se definir o que é esta estranha instituição da literatura. Pensador das instabilidades, da paixão política e do desconforto do literário, que diria do problema da identidade do literário, posto que todo texto literário joga e negocia com a suspensão da ingenuidade referencial (Derrida, 2014, p. 69). Ou seja, se não existe mesmo uma essência referencial da literatura, se o que se promete como tal nunca o é de fato, mas apenas desvios, suspensões, de outros modelos de discurso e fazeres, uma literatura que negasse o mundo, a política, e falasse apenas de si mesma seria, conforme o filósofo franco-argelino, nada mais que uma experiência de anulação do nada (id. ibid.). Derrida proferirá sobre a noção de literatura, definindo-a como algo estranhamente a beira de tudo, inclusive de si própria. No irredutível deste re-traço (retrait, retirada, dirá Derrida), seu lugar é o lugar da dificuldade de sua própria definição, lugar-espectro.²

    Contudo, como fazer a introdução deste livro em "fantasmata (ou seja, uma apresentação gestual": uma instantaneidade jamais pontuada ao longo de uma linearidade discursiva)? Experimentar este pontapé inicial sob uma nova crítica do instante, propondo uma cabível parada improvisada que suspendesse completamente um possível começo/um ponto cabal. Como abancaria Agamben, em Per un"ontologia e una politica del gesto:

    (...) Domenico chama fantasmata uma parada improvisada entre dois movimentos, a ponto de contrair na própria imóvel e petrificada tensão a medida e a memória de toda a série coreográfica. (Agamben, 2018)

    Imobilizado, exibir movimento. O gesto permanece na pausa improvisada de uma coreografia onde o corpo que exibe o movimento ao mesmo tempo é imobilizado. Paradoxo da comunidade inconfessável, na finitude não há fim. E o que dizer após um fim-sem-fim? Agamben exporia que as revoluções autênticas sucessivamente – e aqui acrescentamos as políticas autênticas – experimentam um tempo descontínuo do prazer, uma instantaneidade que se oferece em suspensão, em cairologia. Este prazer é o deleite do poder literário, suspensão de um pacto cronológico e representativo.

    2. Interrupções

    E tal começo, esta apresentação pendente aqui e agora deveria respeitar tal suspensão, não ter igualmente um traço (risco) decisivo que incitasse o movimento do discurso, ou seja, não ter uma entrada. Portanto, tomo Blanchot sem molas, me amparo (as)saltando seu pensamento, para quem o leitor é sempre sinal desconhecido, e no qual talvez Agamben inconfessadamente se inspirasse para vislumbrar o conceito de gesto. Novos e antigos conceitos. O poder literário pode ser, deveria ser, uma força política, mesmo na errância do sentido. (Contudo não um poder para o qual o leitor permanecesse – em seu grupo ideológico, ao aguardo e resguardo – da confiança do laço social instituído).

    Interrupções: Seria errôneo sintetizar o verdadeiro gesto literário dizendo que sua real incumbência estaria na relação com o conteúdo memorialístico que representa. Seria insensato dizer que os objetos literários ou artísticos deste livro teriam mais valor político apenas se se rendessem a uma mensagem ideológica. Ou que a instância do literário, em todas suas extensões próprias, no fundo, apenas desvelasse extravagantemente outro gesto, o político. (A técnica da composição literária não é uma lamúria de palavras mais ou menos indiretas a qual chamaríamos irrealidade ou poiésis. Lembremo-nos de Octávio Paz quando dizia que a poesia, por exemplo, jamais seria uma operação técnica, pois não haveria um princípio de aperfeiçoamento na arte. Uma obra não substitui outra. Virgílio não substitui Homero. Toda obra é, assim, suspensa da linearidade de valor, super/ação). Esta interrupção é, logo, uma estranha insubordinação. A poesia de Pucheu demonstra, por exemplo, este espectro do político, tal como a leio em um dos capítulos deste livro. Pucheu que, por exemplo, no poema doado para a segunda parte do livro, explora versos curtos, como Tonus, e, nisso, noto a interrupção do sentido, o modo como Pucheu e Tonus mostram como estamos cercados, cortados, aramados, em um terreno contemporâneo que quer renunciar às potências poéticas capazes de escandir o mundo. Por outro lado, em outra extensão raciocinante, a poesia de Jaime Rocha ou Isabel Mendes Ferreira também aram o arado, revolvem a terra, pensando o sentido da morte e da vida, assim fazendo o que é uma lírica política: indo ao extremo, à cerca, à partilha do terreno. Verso, versus – todo verso é reverso, porque a linha da poesia é a que vai adiante e, ao mesmo tempo, dá uma volta, ou melhor, consiste em outra melodia instantânea – no étimo que Nancy apontava como o retorno do arado na beira do campo, quando encontra a cerca, o limite, a partilha. A poesia é distinta da prosa, formalmente, no ritmo laborioso com que não vai sempre em frente, não segue sempre reto, como a prosa que vai prorsus, diria Nancy.³ Estudar poética como política é mais do que abordar poesias politizadas, é estender um pensamento desde lugares, cenas, ou gestos, onde a pausa é constantemente colocada, imposta. Mas uma pausa também contornada. A pausa do verso, a pausa do que é ininterrupto, a pausa que significa reverso ao verso, que significa a inapropriabilidade dos limites, sempre roçando o real.

    A política como ressensorialização do olhar está na provocação/suspensão, na interrupção do mundo, nesta pura fenda da origem, como na L´Origine du Monde de Gustave Courbet. Tomemos o burlesco, por exemplo. A pintura enquanto deboche da pintura. A imagem pastichando a imagem. Bosch, Duchamp, Warhol, Cy Twombly, Waltercio Caldas, Tony Camargo... Do mesmo modo, a palavra literária enquanto escarnecimento da política. A política do gesto enquanto abandono do útil. Já nas cantigas de escárnio – ainda antes de Proust, das novelas de Boccaccio, do período barroco, ou de Candido, ou o otimismo de Voltaire, por exemplo, – as manifestações literárias, quanto mais populares e mais próximas ao burlesco, mais se encenavam como mecanismo paródico-político. Mas o satírico, o gesto da mimese do poder, não condiz exclusivamente com um utensílio mais metafórico do real, da mediação com o leitor, que estivesse tão-somente a serviço de uma contra política. Ou seja, a serviço ainda do continuum político.

    Afinal, ao longo da história da literatura (perdidos numa nuvem atemporal, como abancaria Italo Calvino sobre os clássicos) não raro a estética literária potencializou-se politicamente quanto mais se apresentasse errantemente burlesca, digressiva ou paródico-pasticheira. Como demonstrou Foucault, a partir do séc. XVII, a literatura ocidental começou a assumir a revelação da infâmia. A ficção literária passou a dizer o não-dito, expor o ínfimo, acenar às pessoas absolutamente sem glória antes apagadas do discurso, como condição de existência e experiência de tirar das sombras o infame. Se na era clássica, a relevância do literário residia na naturalidade fabulosa (na indecisão entre o falso e o verdadeiro), ao ler Foucault, Agamben situará "l´autore come gesto". (Por conseguinte, a política do autor será uma política vinda do gesto). Um novo regime de relações entre literatura e poder passar a existir.

    Uma vez que o autor moderno presentifica sua ausência (se despersonifica) – para confessar o que antes era inconfessável, para expor o fim do mundo, o mundo ínfimo, o sujeito ínfimo, as classes ínfimas – esta mesma exposição não deixa de ser um retrato que se exerce no paradigma da suspensão, da fantasmática. Como diria Foucault, ao final de A vida dos homens infames, Les cahiers du chemin,

    a literatura, portanto, faz parte desse grande sistema de coação através do qual o Ocidente obrigou o cotidiano a se pôr em discurso; mas ela ocupa um lugar particular: obstinada em procurar o cotidiano por baixo dele mesmo, em ultrapassar os limites, em levantar brutal ou insidiosamente os segredos, em deslocar as regras e os códigos, em fazer dizer o inconfessável, ela tenderá, então, a se pôr fora da lei (...) (Foucault, 1977, p. 14)

    3. Alguns gestos deste livro

    O leitor desta obra talvez se veja em uma gestualidade suspensa, tal como a que existe diante do encanto de ruinas (como proferiria Georg Simmel), imaginando que a arquitetura deste livro oferece certa decomposição, em termos estéticos. Para mostrar melhor o que quero dizer, evidenciando uma erosão antes mesmo de mostrar o seu constructo, é que defino, agora, um pouco, alguns gestos deste livro. O artigo de Pedro de Souza nos intensifica ruínas alegóricas, pois mostrará que o gesto pode ser sonoro, que ele está também na dimensão, eu diria, da escuta, ou da apreciação. Ultrapassa-se o sentido literário das letras musicais com o querer dizer dizendo, para pensar no pressuposto anterior, a voz que se diz. Afinal, em verdade, lá está o sujeito, o sujeito ele-mesmo que canta, o sujeito que se suspende, ante os destroços da ditadura. Na questão da fraternidade de uma voz que encena novos gestos, apropriando-se de composições, criando sentidos políticos, ali entre Elis Regina e, depois, Mercedez Sosa, mostrará dois modos de resistências a períodos ditatoriais, onde a potência cantante acaba por vencer. A questão central é que a arte contém maneiras próprias de nos fazer brilhar a política e repensar os poderes hegemônicos a partir do falso.

    Detecto também uma indireta postura foucaultiana, num arqueogenealógico intuito de diagnóstico do gesto literário dado no belo capítulo de Marcos Siscar. Falar de poesia vem a ser falar fantasmaticamente de nosso ethos político, ou seja, a poesia assume uma posição precursora de um certo ato político e aceno crítico, mesmo naufragada no âmbito do recalque. Observando a generalização do político e dando razão a Vladimir Safatle (que propôs falhas na teorização contemporânea da cultura), Marcos Siscar contribui, aqui, com um capítulo que se debruça sobre o fim do gesto literário, a partir de uma fortuna crítica francesa que indicou de modo recente a anunciação da crise. Siscar vislumbra um problema remissivo a algo que não é tanto a despolitização da discussão sobre a literatura, mas, ao contrário, a generalização da política como horizonte contíguo.

    E a Literatura tem rompido a obra, ao invés de fundá-la, tem a trazido para o universo da desrazão, da gafe, desde a modernidade da política, onde teremos a literatura como desobramento, ou seja, como o que, como o neutro, anula o tempo e dissolve a história, diria Peter Pal Pelbart. Quanto mais as escrituras e os dizeres forem capazes de (qual explicará Leocádia Chavez em sua colaboração) "fraturar as vertebras de seu tempo", mais a história se dissolve. Quanto mais fragmentada e fora da zona de conforto da linguagem utilitária a escrita, ou a fala como suspensão, compareça, mais e mais ela potencializará um estatuto fantasmático.

    Apuramos mais a questão. Ponderemos outro gesto, o que Fernando de Castro Branco notará ao explicar que o laharsismo (esta estética contemporânea do poeta Luis Serguilha), por exemplo, questiona implicitamente todo o horizonte da recepção. Logo o tema do assombro da recepção não pode ser prescindido: No que advém, assim, falar de literatura, nos destroços da modernidade, nas ruínas do leitor, como política do gesto?

    Acredito que a política do gesto tem uma relação com a comunidade inconfessável, ou, poria Bataille, a comunidade negativa. Sim, literatura como política do gesto e não meramente vista como gesto político, esse é o risco que se pode confessar. O que significa isto? A ideia de gesto político está muito amarrada num sentido canônico de política como ação ou re-ação. Predominar, então, a consciência do gesto sobre a consciência política em si mesma (como atitude, gestualidade). Trata-se, como dirá a professora Ana Luiza Andrade em seu capítulo: antes de tudo, de um gesto artístico, que trabalha os vazios do esquecimento tanto quanto o conteúdo memorialístico no seu desejo de salvar da morte os objetos que produz, as coisas ameaçadas de desaparecimento. Gesto alegórico quando gera significados a partir de outro gesto.

    Os gestos deste livro... A literatura como política do gesto é, sobretudo, crítica e política. Encenar/acenar um gesto político quando se suspende imagens, dizíamos.

    4. O real, o corpo, no gesto

    Este livro é heterogêneo, pois suspende, por vezes, o academicismo como imagem, representação, o que possivelmente provocará certo sentido de suspensão, no decorrer da leitura. Algo possível de observar em alguns ensaios que metodologicamente evitarão o tom de capítulo para ir mais ao tom ensaístico. Estará mais claro ao se evidenciar, por exemplo, que Ingmar Bergman era sobretudo um encenador, como o faz André Queiroz em seu breve ensaio, doado como uma entrevista inconclusa, sem perguntas. Ou, por outro lado, ao notar que nos tornarmos um corpo só, numa metacorporeidade, como postulará o experimento artístico-filosófico e deleuzeano de Chiu Yi Chih, emblemático ensaio que parte do taoísmo indo de encontro às necessidades de muitos artistas e docentes que pesquisam butô, tai chi, artes corporais junto com as questões ligadas ao corpo.

    Este livro será, então, uma experiência que correrá figuras suspensas, imagens de gestos delirantes ou racionais de Artaud, Foucault, Van Gogh ou imagens do gesto do condenado, seja ela a de Lewis Payne, 1865, de A Câmara Clara, ou a do retrato em que Fortino Samano sorri sub judice, tendo este gesto do sorriso como arma contrapolítica. É o real cravado no gesto, confabulando uma quase irrealidade poética, instaurando uma ficção histórica em imagens, a partir da política do gesto.

    À braços abertos, tal seria a questão real e fantasmal desta obra, assim diria, uma pedra nua, mais especificamente a questão inicial que havíamos colocado no meio do caminho dos autores convidados. Os ensaios deles, colaborando à obra em questão, em verdade, trouxeram-me uma configuração enfim muito mais híbrida do que o imaginado a princípio. Eles trouxeram uma sorte de sustentação fissurada de como se entender análises sob a política do gesto. Entender a política do gesto passa por uma performance gestual que lê, interpreta, mas jamais decifra. Percebi que ela frequenta vários elementos e objetos que de algum modo cruzam o literário. Temos nas mãos, enfim como resultado, uma drusa inacabada, vários cristais que afixam (e interrompem) algum fundamento que é sempre atravessado e cria atravessamentos, uma forma de transparência onde cada filamento crítico aponta para um lado distinto, mas, por fim, dão um corpo ao gesto-cristal deste volume.

    5. Acenar gestos, assinar gestos

    Este livro acena um gesto. Acena gestos...

    Cada artigo deste livro em questão constituiria um gesto analítico delicado com sua energia acadêmica própria. Porém, no fundo acredito que cada lâmina crítica acaba bem aportada numa base híbrida, textualizando (gestualizando) apenas um encosto umas lâminas nas outras. (Ora, mas esta base pode não existir. Ou melhor, ela não pode existir. Afinal, esta comunidade não tem base, ou não deveria ter, para ponderar blanchotianamente). Caberá ao leitor desferir também a luz do olhar ao obscuro, entrar em harmonia ou dissonância com a experiência – ou a inexperienciabilidade fantasmática – a dança acanhada deste livro. Deverá o leitor lidar com essas águas passadas, como sublinharia Eunice de Morais, (des)atinando o quanto tal atravessamento se atém ou se esquiva a um conjunto de sentido, em novos moinhos. (Ora, mas este leitor pode não existir. Ou melhor, ele não pode existir. Afinal, esta comunidade deve ser inconfessável).

    Obviamente se distintos interesses o atravessam, se o cortam, por serem mesmo uma busca escritural de transversalidade, ultrapassam-no – o literário – como campo exclusivo para notá-lo ao fluxo de outros estrados estéticos. Referimo-nos à pintura, à história, ao palco pós-dramático, ou ao fim da própria literatura... O seu fim sem fim, não só como modo imediatamente político ou como possibilidade presente de representação, como o leitor entenderá no artigo de Marcos Siscar. Não apenas como prosódia. Mas, aludimos a um dado poder poético em sua própria via (como urgente necessidade qual reivindicou certa vez Edgar Morin), em sua manifestação, sua ex-posição como retrato político, como ausência-e-presença na escritura literária.

    A literatura projeta um fantasma de poder, ao mesmo tempo sujeito e objeto do caráter político. Este fantasma, esta interrupção instintual, gera o assombro politizador que deverá nos desalienar sensorialmente (aquilo que se causa a partir da interrupção, como entenderá, neste livro, Djulia Justen desde a leitura benjaminiana de Susan Buck-Morss).

    Este livro, latu sensu, assina gestos. Gestos de enfrentamento e deslizamento.

    6. Uma esperança mais profunda

    Ao fim, uma esperança mais profunda. Quando reafirmamos a política do gesto antes do resgate do gesto político da literatura, estamos asseverando tanto o risco do fim do político (em sua generalidade) quanto uma expectativa mais profunda, uma mirada mais densa do retrato. Tal esperança mais profunda existe mesmo que tenhamos aprendido, por exemplo, com a leitura de Jean-Luc Nancy citando Wittegenstein, que nada emerge da profundidade, pois o que está em plena superfície é o próprio fundo: e a mirada não capta, não segura, o objeto, ao contrário, é algo que sai, que se abre para o mundo em evidência. Esta esperança mais profunda constituiria em advertir blanchotianamente para o literário como sendo o arquétipo mesmo de um atravessamento gestual, o frenesi literário como palavra infinita, como um gesto sem fim – e para Agamben, possivelmente, infinitamente político – da composição ou de um retorno à (in)sensatez política. Qual uma passagem que Blanchot citava de Mallarmé que dizia esse jogo insensato de escrever.

    Este livro, como atentará o leitor e tal como já o disse, traz em si um caráter mestiço e que é atravessado por um jogo insensato. E, para potencializar este caráter é que resolvi incluir um segundo momento em seguida dos capítulos teóricos. Este segundo momento inclui poemas doados para o livro, por cada poeta convidado, após explicar-lhes a ideia da obra. A maior parte deles, inclusive, feitos especialmente para este livro. Tratam-se, em boa parte, de inéditos, com ressalvas, por exemplo, os poemas de Eliane Potiguara, uma vez já lançados no livro que é o seu carro-chefe Metade Cara, metade Máscara, obra lançada em 2004 e 2019, pela Global Editora e Grumin edições. Outra exceção é a do poema Distração do moçambicano Chagas Levene, uma vez já difundido, em Porto das Luzes, muito embora o público brasileiro certamente desconheça. (Por sua vez, Celso Manguana, também moçambicano da geração Oásis, escreveu-nos seu poema exclusivamente). Outra exceção são as estrofes sobre o tema do gesto, de Maria José Quintela, uma vez retiradas do seu Pertence à água a escolha dos náufragos. Ambas as obras, de Levene e Quintela, são de 2014. Vale acrescentar que um dos poemas doados por Jaime Rocha foi escrito em Cabo Verde, após visita à antiga prisão do Tarrafal, tendo saído apenas em um jornal de Lisboa, já o outro, sobre as guerreiras do Curdistão e suas lendas, guarda ineditismo. O poema de Heleine Fernandes, homenageando Evaldo Rosa (músico fuzilado no Rio de Janeiro), foi divulgado em blogs. Encontrará, o leitor, colaborações que cumprem o político como gesto, como os poemas de Caio Bona Moreira e Priscila Lopes, ambos referindo-se ao liame mandatório entre a arte e um certo gesto apolítico de venerá-la ou desprezá-la. Caio Bona também homenageia poeticamente o capoeirista Romualdo Rosário (moa do catendê), acenando ao recente assassinato à facada ocorrido em um debate após o mesmo ter declarado voto em Haddad, em 2018. Já outros poemas nem sempre cumprem diretamente o político, mesmo assim não deixando de atravessá-lo, como dois poemas inéditos de José Emilio Nelson, os quais tematizam o mercado da celulose (demonizar a árvore culpando-a de incêndios) ou a mercantilização da vida, a proibição da eutanásia (promovendo em certos países um agenciamento de legislação permissiva).

    Contamos com fragmentos inéditos de Os esgrimistas de á-peiron, em lançamento pela Lumme editora, último livro de Luis Serguilha. Tais fragmentos foram escolhidos em comum trabalho com o poeta, tendo por critério de seleção a pertinência à interface poético-conceitual entre gesto e animalidade. Ao enviar-me uma longa colaboração, o poeta deu total liberdade livre para fazer-se os recortes. Mesmo assim, acaba ocupando algumas páginas a mais, pois essa avalanche escritural faz parte da estética laharsista. Tal como a colaboração generosa de Alberto Pucheu, que ultrapassa o número de páginas que solicitei a princípio. Ainda mais liberal, posto que, detendo originais do poeta Carlos Assumpção, e sendo documentarista deste poeta, não hesitou em apresentá-lo, num contato livre. Senhor atentivo e acessível, com 93 anos de vida mergulhada em poesia de militância antirracista, que me enviou, também, duas colaborações inéditas muito bonitas. Do mesmo modo que Alexandre Guarnieri foi-me com desprendimento apresentado por Susanna Busato, autora que conheci em evento nas instalações da Sorbonne a falar sobre a poesia do autor. Ela, por sua vez, colabora também, doando um poema do livro Moldura de Lagartas, o qual considero inédito, pois o livro está no prelo. Por fim, o poeta Leonardo Tonus chegou generosamente a enviar-me diversos poemas ainda em caráter de construção, no sentido de notas esparsas, dando-me assim livre-arbítrio total para concluir o que seria ou não publicável a este livro. É assim que este livro, para mim, marca um gesto de esperança na generosidade poética, um gesto que encontrei maior e mais forte do que concebia à princípio.

    Após os artigos, temos, portanto, como notará o leitor, uma espécie de antologia de poesia política do presente, uma miríade de estilos e estéticas que ilustram, contemporânea e poeticamente, a política do gesto e a intolerância própria da verdadeira poética contra tudo que limita a força insurgente inseparável da arte. Qual uma esperança de ilustrar o viés de Nancy de que o que está em plena superfície é o próprio fundo. Há várias maneiras de aceder à esta plena superfície, com poesia.

    7. Impossibilidade da comunidade

    Enfim, retornamos às ruínas, ao real, à literatura, à coreografia suspensa do caminho. Aqui, o jogo insensato foi o de organizar o presente livro, com tantas miradas díssonas. Se há uma desordem, seja ela estética, seja política, seja imagética, como constitutiva do literário, há também, neste caso, a recusa instintiva (pulsional) de assumir um dado poder interpretativo, e evidentemente há um poder nisso em se recusar o poder, em doar-se como um poder in absentia.

    Poder in absentia. O que nos remete ao autor de Comunidade Inconfessável, explicando seu conceito de experiência de comunidade. Pensando no mundo verdadeiro dos amantes

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