Elizabeth Wein - Codinome Verity
Elizabeth Wein - Codinome Verity
Elizabeth Wein - Codinome Verity
Sobre a obra:
Sobre nós:
TIPOS DE AERONAVES
Maddie é, na verdade, Margaret Brodatt. Por estarem com sua identidade, sabem
seu nome. Brodatt não é um sobrenome nortista inglês, e sim russo, eu acho, pois
seu avô veio da Rússia. Mas Maddie é puro Stockport[1]. Ao contrário de mim,
tem excelente senso de direção. Consegue se guiar pelas estrelas e por
navegação estimada, mas acho que desenvolveu essa noção de caminhos a partir
do dia em que seu avô lhe deu uma moto de aniversário aos dezesseis anos.
Então, Maddie ficou longe de Stockport e galgou as trilhas desfeitas nas turfeiras
altas das colinas Pennine. Pode-se vê-las rodeando Stockport, verdes e nuas, com
tiras de nuvens e sol deslizando rápido, brilhando acima como uma imagem
Technicolor em movimento. Sei disso por ter passado um final de semana de
licença e ter ficado com Maddie e seus avós. Ela me levou em sua moto até o
Dark Peak, uma das tardes mais maravilhosas de minha vida. Era inverno e o sol
saiu por cerca de cinco minutos apenas e, mesmo então, o granizo não parou de
cair; foi pela previsão de clima impróprio para voos que ela teve três dias de
folga. Mas, por cinco minutos, Cheshire pareceu verde e cintilante. O avô de
Maddie é dono de uma loja de motos e conseguiu um pouco de gasolina no
mercado negro para a neta, especialmente quando a visitei. Escrevo isso (mesmo
não tendo relação com os tipos de aeronaves) porque tal fato prova que sei o que
falo quando descrevo o que significava para Maddie estar no topo do mundo,
ensurdecida pelo rugido dos quatro ventos e de dois cilindros, com a planície
inteira de Cheshire, formada por seus campos verdes e chaminés vermelhas, a
seus pés como uma toalha xadrez para piqueniques.
Maddie tinha uma amiga chamada Bery l, que deixou a escola e, naquele
verão de 1938, trabalhava na fiação de algodão em Ladderal; elas gostavam de
fazer piqueniques aos domingos na motocicleta de Maddie, pois era a única
ocasião que se viam. Bery l andava com os braços apertando a cintura de
Maddie, como fiz daquela vez. Sem óculos de proteção para Bery l, ou para mim,
embora Maddie tivesse os dela. Naquele domingo de junho em especial, subiram
as trilhas entre as paredes de pedra construídas pelos ancestrais trabalhadores de
Bery l, passaram por cima do Highdown Rise, com lama até as canelas nuas. A
melhor saia de Bery l ficou destruída naquele dia e seu pai a fez pagar uma nova
com sua remuneração da semana seguinte.
— Adoro seu avô — gritou Bery l no ouvido da Maddie. — Gostaria que
fosse meu avô. (Eu também gostaria.) — É o máximo ele ter te dado uma Silent
Superb de presente de aniversário!
— Não é tão silenciosa — gritou Maddie em resposta, por cima do ombro.
— Não era nova quando ganhei e já a tenho há cinco anos. Tive que refazer o
motor este ano.
— Seu avô não faria isso para você?
— Ele nem mesmo ia dá-la para mim até que eu desmontei o motor.
Tenho que fazê-lo sozinha, ou não poderei tê-la.
— Assim mesmo, eu o adoro — gritou Bery l.
Cruzaram as elevadas trilhas verdes de Highdown Rise, seguindo sulcos de
trator que quase as jogaram sobre muros de pedra dos campos para dentro de
um leito de lodo, urtigas e ovelhas. Eu lembro e sei como deve ter sido. Vez ou
outra, após uma curva ou na crista de uma colina, pode-se ver a cadeia verde
nua das Pennines se alongando serenamente para o oeste, ou as chaminés da
fábrica do sul de Manchester rabiscando com fumaça preta o céu azul do norte.
— E você tem habilidade de fazer isso — berrou Bery l.
— O quê?
— Habilidade.
— De consertar motores! — Maddie uivou.
— É um talento. Melhor que carregar os transportadores.
— Mas você está sendo paga para carregar transportadores — gritou
Maddie em resposta. — Eu não sou paga. — A trilha à frente tinha muitas poças
cheias de água. Parecia uma paisagem em miniatura dos lagos das Highlands.
Maddie desacelerou a moto até ela pipocar e finalmente parar. Pôs o pé em solo
firme, a saia arregaçada até as coxas, ainda sentindo o ronco confiável e familiar
da Superb no corpo todo. — Quem empregará uma garota para consertar
motores? — Perguntou Maddie. — Vovó quer que eu aprenda a datilografar.
Pelo menos assim se ganha dinheiro.
Tiveram que descer da moto para caminhar pela vala cheia de água. Então
havia outra subida e chegaram ao portão da fazenda, instalada na borda do
campo. Maddie apoiou a moto contra o muro de pedra para que pudessem
comer seus sanduíches. Olhavam, uma à outra, e riam da lama.
— O que dirá seu pai? — Maddie riu.
— E a sua avó?
— Ela está acostumada.
O nome que Bery l dava para piquenique era “ensacar”, contou Maddie.
Enormes fatias de pão integral que a tia da Bery l assava para três famílias toda
quarta-feira, com cebola em conserva tão grande quanto maçã. Os sanduíches
de Maddie eram de pão de centeio da padaria em Reddy ke, onde sua avó a
mandava toda sexta. A cebola em conserva interrompeu a conversa de Maddie e
Bery l, pois mastigar fazia tanto barulho na cabeça que não conseguiam ouvir o
que a outra falava, e tinham que ter cuidado ao engolir para não asfixiar com
uma esguichada acidental de vinagre. (Talvez o Capitão da Tempestade von
Linden possa achar cebola em conserva uma ferramenta persuasiva. E seus
prisioneiros seriam alimentados ao mesmo tempo.)
(Fräulein Engel me instrui a escrever aqui, para que o Capitão von Linden
saiba, quando ler isto, que desperdicei vinte minutos do tempo dado a mim
porque, neste momento da minha história, ri da própria piada idiota sobre as
cebolas em conserva e quebrei a ponta do lápis. Tivemos que esperar alguém
trazer uma faca para apontá-lo, pois a Srta. Engel não pode me deixar sozinha.
Então, perdi mais cinco minutos chorando depois que quebrei a nova ponta, pois a
Srta. E. o apontou muito perto do meu rosto, sacudindo as lascas nos meus olhos
enquanto o SS-Scharführer Thibaut segurava minha cabeça e isso me deixou
muito nervosa. Não estou chorando nem rindo agora e tentarei não pressionar
tanto o lápis depois disso.)
De qualquer forma, pensar em Maddie antes da guerra, livre e em casa,
com a boca cheia de cebola em conserva... ela só conseguiu apontar e engasgou
quando um aeroplano barulhento e fumegante surgiu acima de suas cabeças e
circulou o campo que observavam quando se empoleiraram no portão. Aquele
avião era um Puss Moth.
Posso lhes contar um pouco sobre os Puss Moths. São monoplanos rápidos e
leves, sabem, com só um conjunto de asas; o Tiger Moth é um biplano e tem dois
conjuntos (outro tipo do qual acabei de lembrar). É possível dobrar as asas do
Puss Moth para trás para transportá-lo em caminhão por aí ou para guardá-lo. De
dentro da cabine se tem uma supervisão e pode acomodar dois passageiros além
do piloto. Fui passageira em um avião desses algumas vezes. Creio que a versão
mais atualizada é chamada Leopard Moth (essa é a terceira aeronave que
nomeio em um parágrafo!).
O Puss Moth circulando o campo em Highdown Rise, o primeiro Puss Moth
que Maddie vira, pipocava para a morte. Maddie disse que era como ter um
lugar dentro da arena do circo. Com o avião a cerca de cem metros, ela e Bery l
podiam ver cada detalhe do motor em miniatura: cada fio, cada suporte de seu
par de asas de lona, das pás da hélice de madeira cintilando ao girarem
ineficazes ao vento. Grandes nuvens azuis de fumaça ondulavam do
escapamento.
— Ele pegou fogo! — Gritou Bery l, em um ataque extasiado de pânico.
— Ele não pegou fogo! Está queimando óleo — respondeu Maddie, pois ela
sabia dessas coisas. — Se ele tiver o mínimo de bom senso, desligará tudo e isso
vai parar. Então conseguirá planar para baixo.
Elas ficaram olhando. A previsão de Maddie se concretizou: o motor parou
e a fumaça se afastou. Agora o piloto claramente planejava aterrissar seu
equipamento danificado no campo bem em frente a elas. Era um pasto que não
fora arado nem ceifado, sem gado. As asas acima de suas cabeças taparam o sol
por um segundo, com um lufar e ondular de um barco à vela. A passada final da
aeronave puxou todo o lixo do almoço para dentro do campo, crostas marrons e
papel de embrulho tremulando na fumaça azul como confete do diabo.
Maddie disse que seria uma boa aterrissagem se tivesse sido em um
aeródromo. No campo, a aeronave ferida saltitou desafortunadamente sobre o
capim alto por uns 25 metros. Então, empinou graciosamente sobre o nariz.
Maddie desandou a aplaudir. Bery l agarrou suas mãos e deu um tapinha
numa delas.
— Sua boboca! Ele pode estar ferido! Nossa, o que faremos?
Maddie não pretendia aplaudir. Ela o fizera sem pensar. Consigo imaginá-
la soprando o cabelo preto anelado dos olhos, com o lábio inferior se projetando
antes de ela saltar do portão sobre as moitas verdes em direção ao avião abatido.
Não havia labaredas. Maddie escalou o nariz do Puss Moth para chegar à
cabine e enfiou um de seus sapatos com tachas através do tecido que cobria a
fuselagem (creio que é como o corpo do avião é chamado) e aposto que recuou
com medo; ela tampouco pretendia fazer aquilo. Até conseguir destravar a porta,
sentiu muito calor e incômodo, esperando uma reclamação do dono do avião, e
ficou vergonhosamente aliviada ao encontrar o piloto claramente inconsciente,
pendurado de cabeça para baixo nas correias meio desfeitas do arnês. Maddie
olhou os incompreensíveis controles do motor. Sem pressão de óleo (ela me
contou tudo isso). Acelerador, puxado. Desligado. Suficientemente bom. Maddie
desembaraçou o arnês e deixou o piloto deslizar para o chão.
Bery l estava lá para amparar o peso do corpo do piloto desmaiado. Foi
mais fácil para Maddie descer do avião do que subir, apenas um salto rápido para
o chão. Desatou o capacete e os óculos de proteção do piloto; o curso de
socorristas feito com Bery l no escotismo, como guia, bastou para verificar se a
vítima conseguia respirar.
Bery l começou a rir.
— Quem é a boboca? — Perguntou Maddie.
— É uma garota! — Riu Bery l. — É uma garota!
Bery l ficou com a garota piloto inconsciente enquanto Maddie rodou, na Silent
Superb, até a fazenda para pedir ajuda. Encontrou dois rapazes fortes de sua
idade recolhendo esterco de vaca e a esposa do fazendeiro separando batatas
novas e xingando o grupo de meninas que desenhou um enorme quebra-cabeça
no antigo piso de pedra do chão da cozinha (era domingo, ou estariam fervendo a
roupa). Um grupo de resgate foi despachado. Maddie foi enviada pista abaixo em
sua moto, para o sopé da colina, onde havia um pub e uma cabine telefônica.
— É certo que ela precisará de uma ambulância, querida — alertou
gentilmente a esposa do fazendeiro. — Terá que ir ao hospital se pilotava um
avião.
As palavras não saíram da cabeça de Maddie durante todo o caminho até o
telefone. Não exatamente a frase: “ela precisará ir para o hospital se estiver
machucada”, mas sim: “terá que ir para o hospital se pilotava um avião”.
Uma garota que pilota! — Pensou Maddie. Uma garota pilotando um
avião!
Não, corrigiu-se, a garota não pilotava um avião. Ela derrubou o avião em
um pasto de ovelhas.
Mas antes, ela o pilotou. Tinha que ser capaz de pilotar para pousar (ou
derrubar) o avião.
O salto parecia lógico para Maddie.
Nunca bati a minha moto, pensou. Eu poderia pilotar um avião.
Existem mais alguns tipos de aeronaves que conheço, mas o que vem à
mente é o Ly sander. É o avião que Maddie pilotava quando me deixou aqui. De
fato, era para ela pousar o avião e não me lançar para fora, no ar. Fomos
atingidas em pleno voo, e durante certo tempo a cauda ficou em chamas. Como
ela não conseguia controlá-lo corretamente, ela me fez sair antes de tentar
pousar. Não a vi descer. Mas vocês me mostraram as fotos tiradas no local,
assim, sei que agora ela já derrubou um avião. Não dá para culpar um piloto
quando seu avião é atingido por fogo antiaéreo.
Não posso crer realmente que precisem de mim para lhes contar que o
aeródromo Catton Park fica em Ilsmere Port, pois nos últimos dez anos tem sido
o mais movimentado do norte da Inglaterra. Lá constroem aviões. Antes da
guerra, fora um elegante aeroclube civil e ainda, por anos, uma base da Royal
Air Force. O esquadrão local da RAF vinha pilotando bombardeiros daquele
campo desde 1936. Seu palpite é tão bom quanto o meu, melhor até, quanto ao
seu uso atual (não duvido que esteja cercado de barreiras de balões e artilharia
antiaérea). Quando Maddie parou lá naquela manhã de sábado, passou certo
tempo arregalando os olhos feito boba (segundo suas palavras), primeiro para o
estacionamento, que tinha a maior coleção de carros caros que já vira em um
lugar, e depois para o céu, que tinha a maior coleção de aviões. Ela se encostou à
cerca para observar. Após alguns minutos, percebeu que a maioria dos aviões
parecia voar em certo padrão, revezando-se nos pousos e rugindo para cima
novamente. Meia hora mais tarde, ela ainda assistia e podia dizer que um dos
pilotos era novato porque seu avião sempre saltava cerca de dois metros no ar
depois de tocar o solo, antes de pousar corretamente; outro praticava manobras
acrobáticas totalmente insanas; um terceiro ainda dava carona para pessoas —
uma volta ao redor do aeródromo, cinco minutos no ar, de volta ao solo, entregue
seus dois xelins e favor passar os óculos de proteção para o próximo cliente.
Era um lugar impressionante naquela época de paz inquieta, quando pilotos
civis e militares se revezavam para usar a pista, mas Maddie estava determinada
e seguiu as indicações para o aeroclube. Encontrou a pessoa que procurava por
acaso — facilmente, até, pois Dy mpna Wy thenshawe era a única pessoa ociosa
no campo, vagando sozinha por um longo corredor de cadeiras desbotadas
enfileiradas diante da sede do clube de pilotos. Maddie não a reconheceu. Ela não
parecia nada com a foto glamourosa de polícia do jornal ou a vítima inconsciente
de capacete daquele domingo passado, quando Maddie a deixou. Dy mpna
tampouco reconheceu Maddie, mas perguntou com jovialidade:
— Gostaria de dar uma volta?
Seu sotaque culto demonstrava dinheiro e posição. Um pouco como o meu,
sem a pronúncia gutural escocesa. Provavelmente não tão privilegiado como o
meu, mas com mais dinheiro. De qualquer modo, de imediato fez Maddie se
sentir uma serviçal.
— Procuro por Dy mpna Wy thenshawe — disse Maddie. — Só queria
saber como ela está após a semana passada.
— Ela está bem. — A criatura elegante deu um sorriso agradável.
— Eu a encontrei! — Deixou escapar Maddie.
— Melhor impossível — disse Dy mpna, oferecendo uma mão lânguida e
pálida como lírio, que certamente nunca trocara um filtro de óleo (minhas mãos
brancas como lírio trocaram, espero que saibam, mas apenas sob rigorosa
supervisão). — Melhor impossível. Ela sou eu.
Maddie apertou a mão.
— Sente-se — disse Dy mpna, arrastado (imaginem que ela sou eu,
crescida em um castelo, educada em internato suíço, mas muito mais alta e que
não choraminga o tempo todo). Acenou para as cadeiras vazias. — Há espaço de
sobra.
Estava vestida como se estivesse em um safári, com intenção de ser
glamourosa mesmo ali. Dava aulas particulares e fazia passeios recreativos. Ela
era a única mulher piloto no aeródromo, certamente, a única instrutora.
— Quando meu querido Puss Moth estiver consertado, vou te levar em um
voo — ofereceu a Maddie, e esta, nada calculista, perguntou se poderia ver o
avião.
Eles o haviam desmontado e o levado para a casa de Highdown Rise.
Agora uma equipe de rapazes e homens em macacões gordurentos trabalhava
para montá-lo novamente em uma das oficinas dentro dos galpões altos. O lindo
motor do Puss Moth (esta é Maddie falando, ela é um pouco louca) tinha apenas
METADE DA POTÊNCIA da moto de Maddie. Tiravam pedaços de capim dele
com escovas de aço. Jazia sobre um oleado quadrado, em milhares de peças
brilhantes. Maddie soube imediatamente que tinha ido ao lugar certo.
— Oh, posso olhar? — Disse ela. Dy mpna, porém, que nunca sujou as
mãos, nem conseguia dizer o nome de cada cilindro e válvula no chão, deixou
Maddie pintar um trecho do tecido novo (sobre a fuselagem, que ela tinha
furado) com uma mistura de gosma plástica chamada “droga”, que tinha cheiro
de cebola em conserva. Passada uma hora e com Maddie ainda lá, perguntando
para que serviam todas as peças do avião e seus nomes, os mecânicos lhe deram
uma escova de metal e a deixaram ajudar.
Maddie contou que, depois disso, sempre se sentiu muito segura ao voar no
Puss Moth de Dy mpna, por ter ajudado, ela mesma, a montar o motor
novamente.
— Quando vai voltar? — Dy mpna quis saber enquanto tomavam canecas
gordurosas de chá, quatro horas mais tarde.
— É muito longe para visitar com frequência — confessou Maddie, com
tristeza. — Moro em Stockport. Ajudo meu avô no escritório durante a semana, e
ele paga a minha gasolina, mas não posso vir aqui todo fim de semana.
— Você é a garota mais sortuda do mundo — declarou Dy mpna. — Assim
que o Puss Moth voltar a voar, vou mudar meus dois aviões para o novo
aeródromo em Oakway. É bem próximo à Fiação Ladderal, onde sua amiga
Bery l trabalha. Haverá uma grande festa de gala em Oakway no próximo
sábado, para a abertura oficial do aeródromo. Eu a pegarei e poderá ver tudo do
estande do piloto. Bery l pode vir junto também.
Esses são os dois aeródromos que localizei para vocês.
Estou ficando um pouco trêmula, pois ninguém me deixou comer ou beber
desde ontem e estou escrevendo há nove horas. Então, agora, vou arriscar e
atirar este lápis na mesa e dar um belo uivo.
Ormaie 9.XI.43 JB-S
Esta caneta não funciona. Desculpe, borrões de tinta. Isto é teste ou punição?
Quero o meu lápis de volta.
A oficial de voo inglesa diz a verdade. A tinta dada a ela era muito
espessa para usar e empedrava na ponta da caneta. Já foi diluída e
estou testando aqui para confirmar que é aceitável para a escrita.
Heil Hitler!
SS-Scharführer Etienne Thibaut
Era como estar na escola. Não sei se Maddie também achou; ela não frequentou
um internato suíço, foi para uma escola normal em Manchester e com certeza
jamais pensou em frequentar a universidade. Mesmo quando estava na escola,
vinha para casa todo dia e nunca teve que compartilhar um quarto com vinte
garotas ou dormir em um colchão de palha composto de três fardos, como um
conjunto de almofadas de sofá. Nós os chamamos de “biscoitos”. Você estava
sempre tão cansada que não se importava; cortaria minha mão esquerda fora
para ter um aqui. O exigente kit de inspeção que nos mandavam fazer, onde
precisava deixar todos os pertences mundanos, em ordem aleatória, porém
específica, sobre o cobertor dobrado, como um quebra-cabeça, e se alguma
coisa estivesse um milímetro errada, descontavam pontos — aquilo era
exatamente como a escola. Também todas as gírias, os repetidos exercícios de
flexão, as refeições chatas e os uniformes, embora o grupo de Maddie não
tivesse roupas apropriadas de início. Todas usavam cardigãs azuis combinando,
como guias (guias não usam cardigãs azuis da Força Aérea, mas acho que me
entenderam).
Maddie estava alocada em Oakway no começo, muito próximo de casa.
Era final de 1939, início de 1940. A Falsa Guerra. Nada de mais acontecia.
Pelo menos, não na Grã-Bretanha. Roíamos unhas, praticávamos.
Esperávamos.
TELEFONISTA
RADIOTELEGRAFISTA
PONTO
Essa não é uma posição na WAAF. É como chamam quando você vai junto em
uma aeronave apenas pelo passeio, sem contribuir realmente para um voo bem-
sucedido. Talvez Maddie fosse mais uma motorista de assento traseiro do que
ponto.
— Não acho que tenha reinicializado o giroscópio.
— Ele disse direção 270. Você virou para o leste.
— Olhem com atenção, rapazes, aeronave ao norte, posição a três horas,
cerca de mil pés abaixo.
Uma vez, o trem elétrico de aterrissagem falhou e ela teve que se virar e
entrar no bombeamento manual para que não colidissem contra o solo. Certa vez,
deixaram que ela ficasse na torreta de artilharia. Ela adorou aquilo, como um
peixinho dourado, sozinha no céu vazio.
Outra vez, tiveram que içá-la para fora do avião após o pouso, pois tremia
tanto que não conseguia descer a escada sozinha.
Os passeios de Maddie no Wellington não eram exatamente clandestinos,
tão pouco triviais. Ela era incluída entre as S.O.B.[7] — Souls On Board —
quando os rapazes decolavam, mas certamente ela não tinha autorização para
influenciar a tripulação novata do bombardeiro, conforme praticavam voos
rasantes sobre as altas charnecas. Assim, várias pessoas em serviço e de folga
envolvidas saltaram dos escritórios e das casas de chá masculinas e femininas,
sem casacos, pálidos, ao verem os colegas de Maddie da RAF erguendo-a nos
braços em uma cadeira e cruzando a pista.
Uma colega sua da WAAF, chamada Joan, e o líder culpado do esquadrão,
a alcançaram antes.
— Qual é o problema? O que aconteceu? Ela está ferida?
Maddie não estava ferida. Já estava importunando a tripulação do
Wellington, que a carregava para colocá-la no chão.
— Se afastem, todos verão, as meninas jamais me deixarão esquecer...
— O que aconteceu?
Maddie lutou para ficar em pé e permaneceu tremendo no concreto.
— Atiraram em nós — contou ela e desviou o olhar, queimando de
vergonha por quanto aquilo a afetara.
— Atiraram em vocês! — Esbravejou o líder do esquadrão. Era primavera
de 1940, a guerra ainda se concentrava na Europa. Foi antes do desastroso maio,
quando os aliados fugiram, retirando-se para as praias francesas, antes do cerco
que foi a Batalha da Grã-Bretanha, antes do trovão e chamas encherem as noites
de Blitz. Na primavera de 1940 nossos céus estavam em alerta, armados e
inquietos. Mas ainda eram seguros.
— Sim, atiraram — ecoou o piloto do Wellington, furioso. Ele também
estava tão pálido quanto giz. — Foram aqueles idiotas da artilharia antiaérea na
barragem de balões de Cattercup. Por nossos próprios artilheiros. Que maldito
está treinando eles? Filhos da mãe idiotas! Desperdiçando munição e deixando
todos com o coração na mão! Qualquer garoto de escola sabe a diferença entre
um charuto voador e um lápis voador!
(Chamamos por brincadeira os Wellingtons de “charutos voadores” e os
terríveis Dorniers de “lápis voadores”. Divirta-se traduzindo, Srta. E.)
O piloto ficara tão assustado quanto Maddie, mas não tremia.
Joan abraçou Maddie, confortando-a e a aconselhou, sussurrando, a não
prestar atenção à linguagem do piloto. Maddie forçou uma risadinha amarela.
— Nem sentada na torreta eu estava — resmungou. — Graças a Deus eu
não vou pilotar para a Europa.
RAMO DE SINAIS
DEFESA COSTEIRA
Dei vexame por meia hora, enquanto brigava com a Fräulein Engel sobre a ponta
da caneta, que eu juro não ter entortado de propósito da primeira vez. É verdade
que isso me poupou de ter que continuar a escrever por um bom tempo, mas não
mudou as coisas, pois essa harpia a endireitou nos meus dentes, quando eu
poderia tê-lo feito facilmente contra a mesa. É verdade, ainda, que foi burrice
minha entortá-la novamente, de propósito, no momento em que ela a deu para
mim. Então, ela teve que mostrar DIVERSAS VEZES como, quando estava na
escola, a enfermeira usava uma ponta de caneta para espetar o dedo para um
exame de sangue.
Não sei por que entortei aquela coisa boba de novo. É tão fácil irritar a Srta.
Engel. Ela sempre vence, mas só porque meus tornozelos estão atados à cadeira.
Bem, também porque ao final de cada discussão ela me lembra do acordo
que fiz com certo oficial da Gestapo, e eu desabo.
— Hauptsturmführer von Linden é ocupado, como sabe, e não deseja ser
interrompido. Mas me disseram para chamá-lo, se necessário. Deram-lhe caneta
e papel, por ele ter julgado que estava disposta a cooperar com ele e se não
quiser escrever a confissão com a qual concordou, ele não terá escolha a não ser
voltar a interrogá-la.
CALE-SE APENAS, ANNA ENGEL. EU SEI.
Eu farei qualquer coisa: ela tem apenas que mencionar seu nome e lembro
agora. Farei qualquer coisa, qualquer coisa, para evitar que ele me interrogue de
novo.
Portanto. Verificação de Alcance e Direção. Defesa Costeira. Vou ganhar
minhas trinta moedas de prata? Não, apenas mais deste papel de carta de hotel.
Ele é bom para escrever.
Idiota choramingão.
Então. Então, na tela do RDF se vê um ponto verde, que é um avião; um ou
dois cruzando a tela. Podem ser nossos. Uma batalha se forma quando os pontos
se multiplicam — novos se juntam aos primeiros, com a luz pulsante varrendo a
tela. Alguns se agrupam, enquanto outros saem da tela, como chispas de brasa. E
todo clarão verde que desapareceu é uma vida que se acabou, um homem por
caça, uma tripulação inteira por bombardeiro. Fora, fora, breve vela. (Isso é de
Macbeth. Ele é considerado outro de meus improváveis ancestrais, e de fato
ficava com sua corte, de tempos em tempos, na propriedade de minha família.
De acordo com todos os relatos contemporâneos escoceses, ele não era o
bastardo traiçoeiro que Shakespeare descreveu. Será que a história me lembrará
para o meu MBE[15], minha honraria do Império Britânico pelo “cavalheirismo”
ou por minha colaboração com a Gestapo? Não quero pensar nisso. Espero que
possam retirar o MBE se você deixar de ser cavalheiresco.)
Se fossem equipados com rádio, Maddie poderia conversar com os aviões
sobre o que os special duties clerks viam em suas telas. Transmitiria aos pilotos,
mais ou menos, o que teria lhes dito lá em Oakway, só que não conhecia tão bem
os pontos de referência em Kent. Passaria as posições para a aeronave em
movimento, além da velocidade do vento e se havia ou não buracos na pista hoje
(às vezes, éramos bombardeados). Ou diria para outros aviões darem prioridade
para o que perdera seus flaps, ou cujo piloto tinha um caroço ou estilhaços
alojados no ombro, ou algo assim.
Certa tarde, Maddie escutava soldados extraviados chegando após uma
batalha que não envolvera o Esquadrão Maidsend. Ela quase caiu da cadeira
quando ouviu o chamado desesperado que veio em sua frequência.
— Mayday, mayday.
Reconhecível em inglês. Ou talvez fosse francês: M’aidez, me ajude. O
resto da transmissão era em alemão.
Era a voz de um garoto, jovem e assustado. Cada palavra terminava em
um soluço. Maddie engoliu — não tinha ideia da origem dos angustiados gritos de
socorro. Maddie chamou: — Ouçam, ouçam! — E ligou seu fone de ouvido no
alto-falante Tannoy para que todos conseguissem escutar e, então, agarrou o
telefone.
— É a Oficial Assistente de Seção Brodatt, na torre. Podem me ligar direto
com a Jenny, na Special Duties? Tudo bem então, Tessa. Qualquer um com a
tela ligada. Preciso de uma identificação para um chamado de rádio.
Todos se comprimiram ao redor do telefone, lendo, por cima dos ombros
de Maddie, conforme ela tomava notas e encontrava a estação de localização da
posição. Então, arfava alto assim que entendia o significado de suas anotações.
— Está se dirigindo diretamente para Maidsend!
— E se for um bombardeiro?
— E se ainda estiver carregado?
— E se for um engodo?
— Estaria chamando em inglês se fosse uma cilada!
— Alguém fala alemão? — Gritou o oficial em comando da sala de rádio.
Silêncio.
— Jesus! Brodatt, fique no fone. Davenport, corra para a estação de rádio;
talvez uma das garotas possa ajudar. Arranje alguém que fale alemão! Já!
Maddie escutava, com o coração saindo pela boca, segurando seu fone de
ouvido em uma orelha e o telefone na outra, esperando a garota da tela de RDF
lhe passar as novas informações.
— Psiu — avisou o oficial de rádio, debruçando-se sobre os ombros de
Maddie e segurando o telefone para ela, para que ela pudesse ter a mão direita
livre para anotar. — Não diga nada, não deixe que saiba quem está ouvindo...
A porta da sala de rádio se escancarou e o subordinado Davenport estava
de volta, com uma das operadoras de rádio da WAAF bem atrás dele. Maddie
ergueu os olhos.
A garota estava impecável, nem uma linha azul fora do lugar, seu coque de
cabelo longo e enrolado com esmero, cinco centímetros acima do colarinho do
uniforme. Maddie a reconheceu da cantina e das raras noites sociais.
Chamavam-na de Queenie, embora não fosse a Queen Bee[16] oficial da
WAAF (como era conhecida a oficial administrativa sênior da base) e esse nem
fosse seu nome verdadeiro. Maddie não sabia qual era. Queenie ganhou certa
reputação por ser rápida e destemida: ela desrespeitava oficiais superiores e
sempre se safava disso mas, da mesma forma, não sairia de um prédio durante
um ataque aéreo até se certificar que todos já estavam do lado de fora. Com
parentesco longínquo com a realeza, ela tinha algum título, mais por privilégio do
que por experiência, de oficial de voo; mas diziam que trabalhava com tanta
diligência em seu aparelho de rádio quanto qualquer garota de loja que se fez
sozinha. Era bonita, miúda e pé de valsa: se houvesse um baile do Esquadrão no
sábado à noite, era ela quem os pilotos convidavam.
— Passe o seu fone de ouvido, Brodatt — disse o oficial de rádio. Maddie
desenrolou os fones apertados e o microfone e passou-os para a bela
radiotelegrafista loira, que os ajustou à cabeça.
Após alguns segundos, Queenie disse: — Ele está sobre o Canal da Mancha.
Está procurando Calais.
— Mas Tessa afirma que ele se aproxima da costa em Whitstable!
— Está em um bombardeiro Heinkel, a tripulação foi morta, perdeu um
motor e quer pousar em Calais.
Todos olharam para a radiotelegrafista.
— Tem certeza de que falamos sobre a mesma aeronave? — Duvidou o
oficial de rádio.
— Tessa — disse Maddie, pelo telefone —, o avião alemão poderia estar
sobrevoando o Canal?
Agora a sala inteira segurou a respiração, aguardando a resposta
desencarnada de Tessa, de algum lugar abaixo dos penhascos de calcário,
encarando os clarões verdes na tela. Sua resposta surgiu abaixo dos rabiscos a
lápis de Maddie: “Ident. hostil, trajeto 187 40 km Maidsend, alt. estim 8.500 pés.”
— Por que diabos ele acredita estar sobre o Canal da Mancha?
— Ah! — Arfou Maddie, de repente, entendendo e acenou para o enorme
mapa do sudeste da Inglaterra e noroeste da França e os Países Baixos, que
cobria a parede atrás de seu rádio. — Olhem, olhem, ele está vindo de Suffolk.
Bombardeou as bases costeiras de lá. Atravessou o estuário do Tâmisa em seu
ponto mais largo e pensa ter atravessado o Canal! Está se dirigindo direto para
Kent e acredita estar na França!
O oficial de rádio deu um comando para a radiotelegrafista.
— Responda para ele.
— Terá que me dizer o protocolo, senhor.
— Brodatt, passe-lhe o protocolo correto.
Maddie engoliu. Não havia tempo algum para hesitação. — O que ele disse
estar pilotando? Que tipo de avião? Seu bombardeiro?
A radiotelegrafista disse, primeiro, o nome em alemão e eles a olharam
sem entender. — He-111? — Traduziu ela, hesitante.
— Heinkel He-111. Qualquer outra identificação?
— Um Heinkel He-111. Ele não disse.
— Repita para ele apenas o tipo de seu avião, Heinkel He-111. É uma
resposta aberta. Aperte este botão antes de falar e mantenha-o pressionado
enquanto fala, senão ele não poderá ouvi-la. Então, solte quando acabar ou ele
não conseguirá responder.
O oficial chefe de radiotransmissão esclareceu: — Heinkel He-111, aqui é
Calais-Marck. Diga-lhe que somos Calais-Marck.
Maddie escutou a radiotelegrafista em sua primeira chamada de rádio, em
alemão, tão calma e clara como se tivesse dado instruções por rádio para
bombardeiros da Luftwaffe a vida inteira. A voz do rapaz da Luftwaffe
respondeu em um arquejo de gratidão, praticamente soluçando de alívio.
A operadora de rádio se voltou para Maddie.
— Ele precisa de posições para aterrissar.
— Diga-lhe o seguinte — Maddie rabiscou números e distâncias em seu
bloco de anotações. — Repita a identidade dele, e então a sua: Heinkel He-111,
aqui é Calais. Depois, pista de pouso, velocidade do vento, visibilidade — disse,
rabiscando anotações furiosamente. A radiotelegrafista fixou o olhar nas
abreviações codificadas, então falou no microfone, dando ordens em alemão,
com calma confiante.
Fez uma pausa a meio caminho e apontou, com sua unha de manicure
perfeita, o roteiro que Maddie lhe passara. Fez silenciosamente com a boca: —
P-27?
— Pista vinte e sete — soprou Maddie. — Diga “desimpedida, em linha
reta, pista 27”. Diga-lhe para despejar as bombas restantes no mar, se tiver
alguma, para que não explodam quando pousar.
A sala inteira de rádio estava silenciosa, hipnotizada pelas instruções
precisas e incompreensíveis que a elegante radiotelegrafista falava com
autoridade descuidada de diretora; as respostas angustiadas, igualmente
incompreensíveis, soluçadas do garoto no avião destruído e as instruções
rabiscadas de Maddie e o protocolo de como passá-las, no bloco que afinava.
— Aí vem ele! — Exclamou o oficial chefe de rádio e todos, exceto
Maddie e a radiotelegrafista, cujas cabeças estavam presas ao telefone e aos
fones de ouvido, correram para a ampla janela para ver o bombardeiro Heinkel
sacolejar à vista.
— Quando ele avisar a aproximação final, passe apenas a velocidade do ar
— instruiu Maddie, rabiscando furiosamente. — Oito nós, oeste-sul-oeste, com
rajadas para doze.
— Diga-lhe que os bombeiros estão a caminho para encontrá-lo — disse o
oficial de rádio. Deu tapinhas no ombro de uma das operadoras de rádio. —
Mande os caminhões para fora. E uma ambulância.
A silueta preta à distância cresceu. Então puderam ouvir o único motor
sobrecarregado espocando e gemendo.
— Jesus! Ele está sem o trem de pouso — arfou o jovem oficial de voo
chamado Davenport. — Isso será uma avaria dos diabos.
Mas não foi. O Heinkel se achatou com destreza sobre a barriga, espirrando
grama e terra, e acabou parando bem diante da torre de controle, com os carros
de bombeiros e bombas e uma ambulância berrando em seu encontro.
Todos à janela se precipitaram para baixo e para fora, até a pista.
Maddie colocou de volta seu microfone. As duas outras operadoras de
rádio ficaram em pé junto à janela. Maddie se esforçou para ouvir o que
acontecia e escutou sirenes apenas. Longe da janela, conseguiu ver o céu e a
biruta ao final da pista de pouso, mas nada imediatamente abaixo dela. Um fio
fino de fumaça negra ondulante subia, passando pela janela.
Fora, ao final da pista, Queenie, ou qualquer que fosse seu nome, fitava em
pé os destroços do bombardeiro da Luftwaffe.
Apoiado na barriga, parecia uma grande baleia metálica jorrando fumaça,
em vez de água do mar. A radiotelegrafista podia ver, pelo Plexiglas rachado da
cabine de comando, o jovem piloto desesperado tentando livrar o navegador
morto do capacete quebrado e sangrento. Viu um enxame de montadores e a
equipe de bombeiros se aproximarem para erguer o piloto e a tripulação sem
vida do avião. E reconheceu o sincero alívio na face do piloto tornar-se espanto e
apreensão assim que ele percebeu que estava, cada vez mais, cercado por
uniformes azuis e listas e distintivos da Roy al Air Force.
O oficial chefe de rádio lamentou baixinho atrás dela: — Pobre jovem Fritz
sacana — entoou. — Não chegará em casa como herói, não é? Não deve ter a
mínima noção de direção.
Colocou gentilmente a mão no ombro da operadora que falava alemão.
— Se não se importar — falou, desculpando-se — poderia nos ajudar a
interrogá-lo.
Maddie estava saindo do turno quando os homens da ambulância terminaram,
apressadamente, de fazer os curativos no piloto alemão e o trouxeram ao andar
térreo da torre de controle. Vislumbrou o jovem atordoado bebericando devagar
algo em uma caneca fumegante e um enfermeiro lhe acender um cigarro. Era
agosto, ele estava enrolado em um cobertor, mas seus dentes ainda batiam. A
bela radiotelegrafista loira estava empoleirada na borda de uma cadeira dura do
outro lado da sala, educadamente desviando o olhar deste inimigo aflito e
abalado. Ela fumava seu próprio cigarro, à espera de mais instruções. Parecia
tão equilibrada e calma quanto estava ao tomar o fone de ouvido de Maddie na
sala de rádio, mas Maddie podia vê-la casualmente esburacar o espaldar de sua
cadeira com um indicador inquieto, cuidadosamente pintado.
Eu não conseguiria fazer o mesmo que ela, pensou Maddie. Não teríamos
realizado esta captura sem ela. Não importa falar alemão; não teria conseguido
fingir assim, de imediato, sem treinamento, nem nada. Provavelmente, também
não seria fácil para mim lidar com o que ela terá que encarar agora, no
interrogatório. Graças a Deus que eu não falo alemão.
Naquela noite, Maidsend sofreu outro ataque aéreo. Não tinha nada a ver com o
bombardeiro Heinkel capturado; era apenas uma incursão comum, a Luftwaffe
fazendo o pior para tentar destruir as defesas britânicas. Os alojamentos dos
oficiais da RAF foram atacados e explodiram (não havia oficiais dentro deles
naquela hora) e grandes buracos foram escavados nas pistas de pouso. As oficiais
da WAAF estavam alojadas na cabana da portaria, nos limites das terras da
propriedade que o aeródromo construiu. Maddie e suas companheiras de beliche
estavam dormindo tão profundamente que não ouviram as sirenes. Acordaram
apenas após a primeira explosão. Atravessaram correndo, de pijamas e
capacetes de metal, um bosque áspero até o abrigo mais próximo, com as
máscaras de gás e cartões de identidade nas mãos. Não havia luz para enxergar,
exceto a que vinha das explosões dos tiroteios e das chamas; não havia lâmpadas
de rua, nem frestas com luz em qualquer porta ou janela, nem mesmo o brilho
de uma ponta de cigarro. Era como estar no inferno, nada além de sombras,
chamas e fogo saltando. E as estrelas acima.
Maddie agarrou um guarda-chuva. Máscara de gás, capacete metálico,
cupons de racionamento e um guarda-chuva. O fogo do inferno chovendo sobre
ela, vindo do céu, e ela o afastando com um guarda-chuva. Ninguém percebeu o
que ela carregava, é claro, até que tentou passar pela porta do abrigo antiaéreo.
— Feche isso, feche essa porcaria. Largue isso!
— Não vou largá-lo! — Gritou Maddie, conseguindo enfiá-lo para dentro.
A garota de trás empurrou e uma das meninas da frente agarrou-a pelos braços,
puxou-a e então ficaram todas tremendo no subterrâneo escuro, com a porta
fechada.
Algumas tiveram a presença de espírito de pegar seus cigarros. Elas os
passaram a todas, compartilhando com parcimônia. Não havia um único rapaz
por ali, os homens estavam alojados a cerca de 800 metros, do outro lado do
campo de pouso, e usavam um abrigo diferente — aqueles que não se
esgueiravam para dentro de um avião para contra-atacar. A garota com os
fósforos encontrou uma vela e todas se ajeitaram para esperar.
— Traga o baralho, querida, vamos jogar uma partida de Rummy kub.
— Rummy ! Não seja mole. Pôquer. Apostaremos cigarrinhos. Caramba,
abaixe esse guarda-chuva, Brodatt, está completamente maluca?
— Não — respondeu Maddie, calmamente.
Estavam todas acocoradas no chão sujo, ao redor das cartas e pontas
brilhantes de tabaco. Estava tão aconchegante quanto seria no inferno. Alguma
coisa voando baixo metralhava a pista de pouso; mesmo enterradas no
subterrâneo, quase a 400 metros de distância, as paredes de ferro do abrigo
tremiam.
— Que bom que não estou de plantão agora!
— Que dó das pobres almas que estão.
— Posso compartilhar o seu guarda-chuva?
Maddie ergueu o olhar. Acocorada ao seu lado, à luz trêmula da vela e
uma lamparina, estava a pequena radiotelegrafista que falava alemão. Ela era
uma visão da perfeição feminina e do heroísmo, mesmo na versão masculina
dos pijamas regulares da WAAF, o cabelo claro pendendo em uma trança solta
sobre um ombro. Todas as outras soltavam grampos; os de Queenie marchavam
em classificação ordenada para o bolso do pijama e não voltariam para o cabelo
até que estivesse de volta na cama. Com os delgados e bem cuidados dedos,
ofereceu a Maddie seu cigarro.
— Quem dera tivesse trazido um guarda-chuva — falou pausadamente
com o tom educado e leve das faculdades Oxford-Cambridge. — Tive uma
superideia! Uma ilusão portátil de abrigo e segurança. Há espaço para duas?
Maddie pegou o cigarro, mas não conseguiu se mexer de imediato. Maddie
sabia que a doida da Queenie era dada a acessos de loucura, como roubar uísque
de malte da bagunça dos oficiais da RAF. E tinha certeza de que qualquer pessoa
atrevida o suficiente para personificar um operador de rádio inimigo, no calor do
momento, era totalmente capaz de zombar de alguém que sempre caía no choro
ao ouvir um disparo de revólver. Em um campo de pouso militar. Durante uma
guerra.
Mas Queenie não parecia estar zombando de Maddie, ao contrário. Maddie
se moveu um pouco, criando espaço para outro corpo abaixo do guarda-chuva.
— Maravilhoso! — Queenie gritou, feliz. — É como ser uma tartaruga.
Deveria fazê-los de aço. Deixe que eu o seguro...
Gentilmente, tomou o cabo da mão trêmula de Maddie e segurou o guarda-
chuva ridículo acima das duas cabeças dentro do abrigo. Maddie deu um trago do
cigarro ofertado. Pouco depois de, alternadamente, roer unhas e fumar o cigarro
emprestado até se tornar um pedaço de papel e cinzas, suas mãos pararam de
tremer. Rouca, Maddie disse: — Grata.
— Sem problemas — respondeu Queenie. — Por que não joga esta
rodada? Vou te cobrir.
— O que você fazia na vida civil? — Maddie disse, casualmente. — Atriz?
A pequena radiotelegrafista teve um acesso de risadas satisfeitas, ainda
segurando firme o guarda-chuva sobre a cabeça de Maddie. — Não, apenas
gosto de fingir — explicou. — Faço o mesmo com nossos rapazes, sabe? O jogo
da paquera. Na verdade, sou um tédio. Estaria na universidade se não fosse a
guerra. Não cheguei a terminar o primeiro ano.
— Cursando o quê?
— Alemão. Óbvio. Falavam alemão, ou melhor, uma variação estranha,
na vila onde frequentei a escola na Suíça. E eu gostei.
Maddie riu. — Você foi mágica esta tarde. Realmente brilhante.
— Não teria feito sem você me orientando. Você foi brilhante também.
Você estava bem ali quando precisei, nem uma palavra, nem uma indicação
fora de lugar. Tomou todas as decisões; só tive que prestar atenção, e é o que
faço o dia todo nos equipamentos de rádio, de qualquer forma, rádio sem fio,
sabe, só ouvir e ouvir. Nunca preciso executar nada. E tudo o que tive que fazer
esta tarde foi ler o roteiro que me deu.
— Você teve que traduzir! — Maddie disse.
— Nós conseguimos juntas — disse a amiga.
INDEPENDENTEMENTE DA HISTÓRIA
RECEITUÁRIOS MÉDICOS!
Fiz outro ainda melhor, para ela.
Pretendia lhe dar uma Noite de Folga, mas, ao imaginar a cena, pensei em
Mata Hari em missão. Engel seria mais feliz como uma espiã, glamourosa e
mortal? Simplesmente não consigo imaginá-la em qualquer função que não seja
a de “Oficial Brutalmente Meticulosa”. Tampouco posso dizer que o resultado
sombrio da missão malsucedida de um agente especial tenha algo a recomendá-
lo.
Pretendia emitir receita para William Wallace, Mary, a Rainha da
Escócia, e ainda Adolf Hitler, mas não consigo pensar em nada inteligente o
suficiente para fazer valer as represálias pelo desperdício de papel.
Café estaria no topo de minha própria prescrição. Depois, aspirina. Estou
com febre. Não é tétano, pois nos vacinaram, mas pode ser septicemia; não creio
que os alfinetes estivessem muito limpos. Havia um que não percebi por um
tempo depois de tirar os outros, e o local está muito dolorido agora (estou um
pouco preocupada com algumas queimaduras, também, que se irritam quando
meu pulso toca a mesa quando escrevo). Talvez morra tranquilamente de
envenenamento de sangue e evite o tratamento com querosene.
Não há um modo eficiente de se matar com um alfinete de costureira (não
diria que ter gangrena seja uma maneira eficiente de se matar); fiquei intrigada
com isso por longo tempo, vendo como deixavam os alfinetes lá, só que não é
possível. Entretanto, é útil para abrir fechaduras. Adorei as aulas de roubo que
tivemos durante o treinamento. Não gostei tanto dos resultados sombrios da
minha tentativa frustrada de colocá-los em uso, muito bons para abrir
fechaduras, mas nada úteis para sair do edifício. Nossas celas são apenas quartos
de hotel, mas são guardados como a realeza. Além disso, há cães. Após aquele
episódio com os alfinetes, tentaram se assegurar que eu não seria capaz de andar
se conseguisse sair; não sei onde aprenderam a desabilitar uma pessoa sem
quebrar de verdade suas pernas, na Escola Nazista de Agressão e Ataque? Como
todo o resto, não foi um dano permanente, nada sobrou nesta semana além dos
hematomas e, agora, verificam com cuidado se tenho pedaços soltos de metal.
Fui apanhada ontem tentando esconder a ponta de uma caneta no cabelo (não
tinha um plano para ela, mas nunca se sabe).
Ah! Esqueço com frequência que não escrevo para mim mesma, e aí é
tarde demais para riscar. A maldosa Engel sempre arranca tudo de mim e dá o
alarme se me vê tentando recolher algo. Ontem, tentei arrancar o fim da página
e comê-la, mas ela a apanhou primeiro. (Foi quando percebi que, sem pensar,
mencionara a fábrica em Swinley. É muito bom, por vezes, lutar com ela. Ela
tem a vantagem da liberdade, mas tenho muito mais imaginação. Além disso,
estou disposta a usar meus dentes, algo que ela tem escrúpulos de fazer.)
Onde eu estava? O Hauptsturmführer von Linden levou tudo o que escrevi
ontem. É sua culpa, Fritz idiota frio e sem alma, que eu me repita.
A Srta. Engel me lembrou. — A sirene de ataque aéreo disparou. —
Garota esperta, presta atenção.
Agora, sempre que termino uma página, faz que eu a entregue a ela. Nos
divertimos escrevendo as receitas. Será que ela terá problemas se eu mencionar
que ela mesma queimou algumas para se livrar delas desta vez? Isso a ensinará a
tentar fazer amizade comigo, Engel Guarda-Feminina-de-Serviço.
Já a coloquei em apuros, sem saber, ao mencionar seus cigarros. Não é
autorizada a fumar enquanto está de serviço. Aparentemente, Adolf Hitler tem
uma vendeta contra o tabaco, o considera imundo e nojento, e sua polícia militar
e seus assistentes não devem fumar em serviço. Não creio que isso seja aplicado
com rigor, exceto quando o lugar é administrado por um tirano obsessivo como
Amadeus von Linden. Que vergonha, já que um cigarro aceso é um acessório
tão conveniente se sua tarefa for extrair informações de Agentes de Inteligência
Inimigos.
Desde que os crimes de Engel sejam ínfimos, não se livrarão dela, pois
seus talentos combinados seriam muito difíceis de repor (um pouco como os
meus). Mas seus delitos são consistentes com “insubordinação”.
ARTILHEIRO ANTIAÉREO
A sirene de ataque aéreo disparou. Todas as cabeças da sala olharam para cima,
desanimadas e exaustas, para o teto de papelão da cantina, como se pudessem
enxergar através dele. Então, todos dispararam das cadeiras dobráveis
emprestadas do salão da igreja para encarar a próxima batalha.
Maddie encarou a nova amiga ao lado da mesa que acabaram de deixar,
as pessoas ao redor correndo apressadas. Sentiu como se estivesse no centro de
uma tempestade tropical. O ponto imóvel em um mundo girando.
— Vamos lá! — Exclamou Queenie, como a Rainha Vermelha em
Através do espelho[17], e agarrou Maddie pelo braço para puxá-la para fora. —
Você entra em serviço à uma, quanto tempo tem? — Ela olhou o relógio — Uma
hora? Uma soneca rápida no abrigo antes que eles precisem de você na sala de
rádio. Pena que não trouxe o guarda-chuva hoje. Venha, eu vou com você.
Os pilotos já corriam para os Spitfires e Maddie tentou se fixar no
problema prático de como decolariam da pista meio consertada. Taxiar seria o
mais difícil, pois não poderiam ver os buracos na superfície, além do nariz alto
dos pequenos aviões bombardeiros. Ela tentou não pensar como seria cruzar
correndo, sob fogo, a pista para a sala de rádio daqui a uma hora.
Mas ela conseguiu. Porque você consegue. É incrível o que se faz, sabendo
que tem que fazer. Pouco menos de uma hora mais tarde, para ter algum tempo
extra para evitar as bombas, as duas garotas estavam fora de novo, na paisagem
lunar que agora era Maidsend da RAF.
Queenie dirigiu Maddie em trote, ambas vergadas quase ao meio, beirando
os edifícios e zigue-zagueando pelos espaços abertos. Elas ouviram como, na
retirada da França, os aviões da Luftwaffe voavam baixo e metralhavam as
pessoas em solo, só pelo prazer, e bem agora havia dois ou três bombardeiros
alemães zunindo baixo acima da pista, como vespas, com o sol nas asas,
perfurando buracos nas janelas e aeronaves paradas.
— Venham aqui! Aqui! — Alguém gritou desesperado. — Ei, vocês duas,
venham me ajudar aqui!
Por alguns segundos, Maddie lutando obstinada contra o próprio inferno de
medo racional ou irracional, sequer notou que Queenie mudou de direção e se
dirigiu para o grito de socorro. A percepção voltou a Maddie por um minuto, e
ela observou que Queenie a arrastava para o abrigo mais próximo de artilharia
antiaérea.
Ou o que havia sobrado dele. A maior parte da barreira protetora de
concreto e dos sacos de areia que a cercavam explodira, levando consigo dois
dos artilheiros de exército que tentaram valentemente proteger a pista para o
esquadrão Spitfire, que teria que pousar após a batalha. Um dos artilheiros mortos
era, com certeza, mais novo que Maddie. Um terceiro homem ainda em pé
parecia um açougueiro sem avental, empapado do pescoço às coxas em sangue.
Ele se virou, cansado, e disse: — Grato pela ajuda. Fui abatido. — Então, ele
sentou-se na plataforma arruinada e fechou os olhos. Maddie se encolheu ao seu
lado, seus braços sobre a cabeça, ouvindo o ruído horrível do artilheiro sorvendo
ar nos pulmões repletos de sangue. Queenie deu-lhe um tapa.
— Levante-se garota! — Ordenou ela. — Não tolerarei isso. Sou sua oficial
superior lhe dando ordens agora. Erga-se, Brodatt. Se está assustada, faça algo.
Veja se consegue fazer esta metralhadora funcionar. Mexa-se!
— É preciso carregar o tambor antes — suspirou o artilheiro, apontando
um dedo para o local. — O Primeiro-Ministro não gosta de garotas usando
revólveres.
— Não se importe com o Primeiro-Ministro! — Exclamou a oficial
superior. — Carregue a maldita arma, Brodatt.
Maddie, mecanicamente dedicada e treinada a reagir positivamente a
ordens de autoridades, limpou caminho até a metralhadora.
— Aquela garota mirrada jamais carregará o tambor — gemeu o atirador.
— Aquilo pesa uns treze quilos.
Maddie não ouvia. Estava avaliando. Após um minuto de pensamento
racional e com a força que, mais tarde, não conseguiria explicar, ela carregou o
tambor.
Queenie trabalhava freneticamente sobre o atirador caído, tentando
tamponar os orifícios em seu peito e estômago. Maddie não olhou. Após algum
tempo, Queenie a pegou pelo ombro e mostrou como mirar.
— Você deve antecipar. É como atirar em aves, deve atirar um pouco à
frente de onde estarão em seguida.
— Atirou em muitas aves, não foi? — Maddie arfou, raiva e medo
deixando-a impertinente sobre os talentos aparentemente ilimitados da outra
garota.
— Nasci no meio de um charco de perdizes no primeiro dia da estação de
caça! Sabia atirar antes de ter aprendido a ler! Mas essa coisa esburacada é bem
maior que o rifle de ar Diana e não sei como funciona, então teremos que fazer
juntas. Como ontem, está bem? — Arfou de repente e perguntou, ansiosa: —
Aquele não é um dos nossos aviões, é?
— Você sabe a diferença?
— Realmente não!
Maddie se compadeceu.
— É um Messerschmitt 109.
— Bom, fogo nele! Aponte para cá, agora espere até que volte, ele não
sabe que esta estação ainda está operacional, espere.
Maddie aguardou. Queenie tinha razão: fazer algo, focar, afastava o medo.
— Agora, já!
A explosão cegou as duas por um instante. Não viram o que aconteceu.
Maddie jurou, mais tarde, que o avião não caiu em uma bola de fogo até passar,
pelo menos, duas vezes mais sobre a pista. Mas ninguém mais alegou ter abatido
aquele Me 109 (nossa, quantos aviões eu conheço afinal!), e Deus sabe que
pilotos de bombardeio são competitivos ao contar. Então, aquela matança (espero
que a Luftwaffe também chame de matança quando alguém derruba uma nave,
como um veado) foi creditada a duas oficiais fora do serviço da WAAF,
trabalhando juntas em uma estação de artilharia sem artilheiros.
— Não acho que nossa arma tenha feito isso — disse Maddie à amiga
pálida, com a fumaça negra oleosa subindo do campo de nabos onde o avião
caíra. — Deve ter sido um dos nossos, atirando de cima. E se foi essa arma, não
foi você.
Já era ruim o suficiente Maddie suspeitar que o motivo de Queenie estar ao
seu lado agora era porque ela teve que desistir do rapaz de quem pegaram a
arma. Já era bastante ruim. Mas também houve um piloto naquela bola de fogo,
um jovem vivo, com não muito mais formação que a própria Maddie.
— Fique aqui — disse Queenie com a voz embargada. — Consegue
carregar outro tambor? Encontrarei alguém que saiba o que fazer para assumir;
agora você será necessária na torre...
Queenie fez uma pausa.
— Como chegar daqui ao abrigo contra ataque aéreo do nordeste? —
Disse, ansiosa. — Fico tão confusa com a fumaça. — Maddie apontou. —
Atravesse a grama em frente. Fácil se for corajosa o suficiente, como encontrar
a Terra do Nunca: “Segunda à direita e então à frente até amanhecer”.
— E você? Corajosa o suficiente?
— Ficarei bem. Agora tenho algo para fazer.
Ambas se abaixaram por instinto quando algo explodiu do outro lado da
pista. Queenie apertou a cintura de Maddie e lhe deu um beijo rápido na
bochecha. — Beije-me, Hardy ! Não foram essas as últimas palavras de Nelson,
na Batalha de Trafalgar? Não chore. Ainda estamos vivos e formamos uma
equipe sensacional.
Então, prendeu o cabelo conforme a regra, cinco centímetros acima da
gola. Enxugou as próprias lágrimas e esfregou a graxa, a poeira de concreto e o
sangue do artilheiro que estavam em seu rosto com as costas da mão. Correu
novamente, como a Rainha Vermelha.
Oh, Maddie.
Estou perdida. Perdi o fio da meada. Estava me satisfazendo com detalhes
como se fossem cobertores de lã ou álcool, escapando totalmente para o passado,
os dias antigos repletos de fogo-e-água de nossa amizade. Nós formávamos uma
equipe sensacional.
Tinha tanta certeza de que ela pousou com segurança.
Faz quatro dias que escrevi algo pela última vez, há uma razão simples para
tanto: falta de papel. Quando não vieram me buscar no primeiro dia, suspeitei e
passei a manhã inteira dormindo, como um feriado. O cobertor mudou minha
vida. Ao final do segundo dia, fiquei com muita fome e um tanto cansada de
ficar sentada em absoluta escuridão. Então, aquelas fotos. Já haviam me
mostrado a cabine traseira destruída do Ly sander de Maddie, mas estas eram
novas, ampliações da cabine do piloto.
Oh, Maddie.
Maddie.
Aquele foi o último momento de paz de meu feriado. Além disso, andaram
interrogando de novo aquela garota francesa. Fiquei deitada com meu nariz
pressionado à fenda abaixo da porta — chorei, e aquele é o único local onde há
alguma luz — e reconheci seus pés quando a arrastaram por lá (ela tem pés
bastante bonitos e está sempre descalça).
Não teria dormido bem depois daquelas fotos de qualquer modo, mas já
citei que meu quarto fica ao lado da suíte que eles usam para entrevistas, etc.?
Teria que ser totalmente surda para dormir, mesmo que estivesse numa cama de
penas.
Na manhã seguinte, um trio de soldados me pôs correntes — correntes! —
e me arrastou para abaixo do porão onde, tinha certeza, iriam me dissecar. Mas
aquilo acabou sendo a cozinha, literalmente a cozinha deste hotel profanado, que
é onde preparam nossa deliciosa sopa cinza de repolho (não assam pão aqui,
quando temos pão, são pontas amanhecidas rejeitadas de outro lugar).
Aparentemente, a diarista foi despedida: ela esfregava as panelas, varria o chão
de pó de serragem — espalhando essa poeira menos bolorenta pelo lugar —,
trazia carvão e madeira, esvaziava e lavava todos os baldes de dejetos dos
prisioneiros, e descascava batatas para a sopa dos oficiais da Gestapo (gosto de
imaginar que fazia as últimas duas tarefas sem lavar as mãos). Mais
precisamente, ela foi detida e mandada para a prisão, não esta, obviamente, por
ter roubado alguns repolhos. Em todo o caso, ontem e antes de ontem,
precisavam de mais alguém para fazer todas essas tarefas difíceis, enquanto não
achassem outro jumento para ficar em seu lugar.
Quem melhor para tal trabalho que uma oficial de voo de Operações
Especiais ociosa? As correntes eram um lembrete que sou prisioneira, não
empregada. Em especial, um lembrete para o cozinheiro e seus subordinados,
creio, mas ele era uma besta tão imunda que não teria notado se eu fosse
arrastada pelo próprio Führer, desde que pudesse afagar meus seios.
E eu permiti que o fizesse. Por comida, poderiam supor, mas não!
(Embora o bode velho tenha deixado, generosamente, que eu me deleitasse com
as sobras quando terminava de descascar as batatas. Não tive que descascar nada
eu mesma, já que sabiamente não me dariam uma faca.) Como um viciado em
ópio, faço qualquer coisa por mais papel.
O sótão do Château de Bordeaux é um viveiro de coisas estranhas. Bastante
assustador. Há alguns quartos (aqueles com freezers e fornos a gás), que
provavelmente usam para experimentos horríveis, mas na maioria estas adegas
estão vazias por não serem seguras e, geralmente, por serem escuras demais
para atividades produtivas. Tudo que é necessário para abastecimento no hotel
ainda está lá embaixo: enormes potes de café, panelas de cobre do tamanho de
banheiras, latões (vazios) de leite, garrafas de vinho e vidros de geleia vazios
empilhados, até uma fileira de aventais gordurosos empoeirados azuis ainda
pendurados em um corredor. Há muitos elevadores de serviço, aparadores para
transportar bandejas para cima, além de um grande para carregar engradados e
coisas da rua principal, e foi explorando um dos menores (pensando em escapa,
se pudesse me espremer dentro dele) que descobri o papel: pilhas e pilhas de
cartões limpos para receitas, jogados no aparador, para não atrapalhar.
Pensei em Sara Crewe em A Princesinha, fingindo ser uma prisioneira na
Bastilha, para fazer seu serviço de copeira mais tolerável. E sabem de uma
coisa... não consegui fazê-lo. Qual é a vantagem de fingir que estou na Bastilha?
Passei os dois últimos dias acorrentada, no porão, escravizada por um monstro.
Ariadne no labirinto do Minotauro? (Desejaria ter pensado nessa antes.) Mas
estava escravizada demais para fingir qualquer coisa.
Então, consegui pegar os cartões de receita em troca de ser apalpada e
limitei a agressão, sugerindo ser o brinquedinho pessoal de von Linden e dizendo
que Hauptsturmführer não iria gostar se o cozinheiro me deflorasse.
Senhor! Como escolher entre um inquisidor da Gestapo e um cozinheiro da
prisão?
É claro que não tinha permissão de levar o papel ao meu quarto (para o
caso de rasgá-lo em tiras e trançá-lo em uma corda para me enforcar, suponho),
então tive que esperar um pouco no grande salão externo, enquanto von Linden
estivesse ocupado com outra pessoa. Imagine-me encolhida em um canto, com
ferros nos pulsos e pernas, agarrando uma braçada de cartões em branco,
tentando não notar o que faziam com os dedos das mãos e dos pés de Jacques,
com pedaços de metal quente e pinças.
Após uma hora ou tanto deste melodrama, v.L. fez uma pausa e deu uma
volta para tagarelar comigo. Disse-lhe em minha melhor voz aristocrática gelada
de desdém como deve ser insignificante o império do Terceiro Reich por não
poder se dar ao luxo de dar papel para descobrir coisas de informantes como eu,
e mencionei que a besta imunda da cozinha e seus asseclas estão todos
desmoralizados sobre a situação da guerra (colapso da Itália, cidades e fábricas
alemãs destruídas por bombas, todos esperando uma invasão dos Aliados naquele
ano, razão pela qual a Sra. Jacques e eu estaríamos aqui, tentando apressar a
referida invasão). Von Linden queria saber se eu já lera Na pior em Paris e
Londres, de Orwell.
Espero não tê-lo gratificado de novo por arfar. Nossa! Suponho que deixei
escapar que gosto de Orwell. No que estava pensando?
Então, tivemos uma discussão memorável sobre o socialismo de Orwell.
Ele (v.L.) desaprova (obviamente, já que Orwell passou cinco meses lutando
contra os fascistas idiotas na Espanha em 1937), e eu (que nem sempre concordo
com Orwell por diferentes razões) disse que acreditava que minha experiência
como ajudante de cozinha não correspondia exatamente à de Orwell, se era isso
que v.L. queria dizer, embora tenhamos nos encontrado trabalhando em porões
de hotel franceses similares por salários similares (o de Orwell, um tanto maior
que o meu, já que recordo que lhe davam algumas garrafas de vinho além de
cascas cruas de batatas). Finalmente, von Linden se apossou de meus cartões de
receitas, minhas correntes foram removidas e fui jogada de volta à minha cela.
Foi uma noite muito surreal.
Sonhei que voltara ao início, que eles me interrogavam sem parar, um
efeito colateral de ter que assisti-los em ação com os outros prisioneiros. A
previsão do que irão lhe fazer é tão repugnante em um sonho quanto na vida real.
Naquela semana de interrogatório — após me deixar esfomeada no escuro
por quase um mês, quando finalmente passou para uma tarefa mais intrincada de
obter informações de mim —, von Linden não me olhou uma vez sequer.
Lembro-me que andou de um lado para outro, mas era como se fizesse um
cálculo complicado de cabeça. Havia muitos assistentes enluvados à mão para
lidar com a bagunça. Jamais pareceu lhes dizer o que fazer; suponho que deve ter
acenado ou apontado. Era como ser transformada em um projeto técnico. O
horror e a humilhação não estavam nos momentos em que eu era despida até a
intimidade e vagarosamente feita em pedaços, mas sim no fato de parecer que
ninguém se importava. Não estavam fazendo isso por diversão; não era por
luxúria, prazer ou vingança; não estavam me oprimindo, como Engel faz; nem
estavam bravos comigo. Os jovens soldados de von Linden desempenhavam suas
tarefas, de modo tão indiferente e preciso, como se desmontassem um rádio,
com von Linden desempenhando seu papel de engenheiro-chefe, dirigindo,
testando e desligando a energia, sem a menor paixão.
Seu aparelho de rádio não treme, não chora, não amaldiçoa, nem implora
por água, nem vomita e nem limpa o nariz nos cabelos, quando seus cabos estão
em curto-circuito e são cortados, fritos e amarrados juntos para trás. Ele só fica
lá, estoicamente, sendo um rádio. Não se importa se é deixado atado a uma
cadeira por três dias, sentado sobre os próprios dejetos, com um trilho de ferro
amarrado ereto contra suas costas para não poder se inclinar.
Von Linden não era nem um pouco mais humano ao me atormentar sobre
Orwell, na noite anterior, do que quando me incomodava sobre os malditos
códigos há duas semanas. Ainda não passo de um aparelho de rádio para ele.
Mas agora sou um aparelho bastante especial, que ele gosta de remendar no
tempo livre, que ele pode, secretamente, sintonizar na BBC.
Bom, passaram-se quatro dias, três dos quais foram mental e/ou
fisicamente exaustivos, e eu perdi o fio da meada. Não tenho meus receituários
médicos para olhar, ou mesmo Engel para relembrar onde parei. Suponho que
ela tenha outras tarefas além de mim, talvez até ganhe uma folga de vez em
quando. Hoje, o bestial Thibaut está aqui com outro homem, daí eu escrever
loucamente qualquer bobagem antiga, para não atrair atenção. Odeio Thibaut.
Não tenho exatamente medo dele, como do cozinheiro ou do Hauptsturmführer,
mas — que droga! —, desprezo Thibaut; suponho que ele me despreze, vira-
casacas que somos. Acho que é mais cruel que von Linden, diverte-se mais, não
tendo, porém, o talento e o compromisso de v. L. Desde que eu escreva, Thibaut
me deixa em paz. Gostaria apenas que ele não amarrasse os cordões tão
apertados.
Esqueci onde devo ir e também estou um pouco em pânico em relação ao
tempo. É o nono dia desde que comecei e v. L. disse que eu disporia de duas
semanas. Não sei se isso inclui os últimos quatro dias desperdiçados mas, nesse
ritmo, não chegarei a uma conclusão (acho que todos sabemos que não olharei
aquela lista estúpida de novo).
Esta tarde, implorarei por outra semana, em alemão. Quando as pessoas
são mais formais e educadas, ele fica mais cortês. Tenho certeza de que parte da
razão de ser tratada como uma maluca tão perigosa, tirando a mordida que dei
naquele policial que me prendeu, é por sempre ser tão bocuda e mal-humorada.
Tiveram outro oficial britânico aqui certa vez, um aviador inglês, cara excelente
e fino, que embora tenha sido mantido sob guarda, sempre teve permissão para
andar por aí com as mãos livres. (Aposto que não tinha minha reputação de
artista de escapada amadora. E não consigo fazer nada contra meu mau humor.)
Não, vou olhar aquela lista novamente. Talvez ela me dê uma ideia de
onde retomar a história. Além de Thibaut e seu colega terem que correr e
encontrá-la, o que será divertido.
AERONAVES ALEATÓRIAS
Maddie subiu antes. Arrastou-se para a frente pela fuselagem (ex-aeronave civil
de passageiros, tomada pela RAF, como o Puss Moth de Dy mpna) e sentou no
assento da esquerda, o do piloto. Ficou lá explorando a coleção de medidores e
instrumentos. Surpreendeu-se ao ver quantos eram os rostos amigáveis e
familiares dos indicadores que conhecia: conta-giros, indicador de velocidade do
ar, altímetro — e quando tomou posse dos controles de voo e sentiu os ailerons e
o elevador respondendo de modo confiável ao seu comando, por um momento
pensou que choraria muito. Então olhou por sobre o ombro e viu seus passageiros
subindo atrás dela. Dy mpna deslizou sua elegância no assento da direita ao lado
de Maddie, e esta se recompôs. Em sua honra, uma tempestade aleatória
salpicou os painéis da cabine com enormes gotas por cerca de dez segundos.
Então a chuva estancou de chofre, como uma rajada de metralhadora.
Pensou: “Por que uma moça como você precisa de um brinquedo grande
como este?”.
Maddie riu alto e disse a Dy mpna — Conduza-me pelas verificações.
— O que é tão engraçado?
— Este é o maior de todos os brinquedos.
— Teremos maiores ainda em breve — assegurou Dy mpna.
Para Maddie pareceu ser o último dia de aula, como o início das férias de
verão.
— Dois tanques de combustível em cada asa — explicou Dy mpna. — Dois
medidores de pressão de óleo, duas alavancas de acelerador. Mas só um controle
de mistura, ajuste-o para normal para começar. A tripulação de solo toma conta
das bombas de partida. (Estou inventando isso. Vocês entendem.)
Maddie taxiou nesse aeródromo familiar e rugiu pela pista esburacada
tantas vezes na sua imaginação, que parecia já ter feito isso antes; ou era como
se sonhasse agora. O Anson saltou ao ar em uma golfada de vento de proa.
Maddie lutou com a nave por pouco tempo, endireitou o leme, sentiu a
velocidade aumentar com o progresso laborioso do girar de manivela do trem de
pouso de Dy mpna e o arrasto extra caiu. As asas se ergueram e abaixaram ao
forte vento como uma lancha cavalgando ondas. Era bom pilotar um avião com
asas baixas, com a vista desbloqueada, infinita do céu, ou, naquela ocasião, das
nuvens baixas.
— Ei, escocesinha! — Ordenou Dy mpna, gritando mais alto que o motor.
— Pare de tagarelar e me dê uma mão.
A escocesa soluçante rastejou em direção à cabine, mantendo-se baixa,
perto do piso da nave para evitar olhar para fora. Maddie deu uma espiada sobre
o ombro, percebeu que sua amiga batalhava corajosamente contra algum
demônio.
— Se está com medo, faça algo — gritou Maddie, sendo irônica.
A escocesa, pálida e determinada, esticou-se ao lado do assento do piloto e
pegou a manivela do trem de pouso. — Meu medo real — soluçou a escocesa,
dando uma volta na manivela —, não é a altura — outra volta —, mas ter enjoo.
— Fazer algo deve ajudar — berrou o ianque de trás, apreciando a vista à
frente dele por razões diferentes do resto delas.
— Olhar o horizonte ajuda — berrou Maddie, com seus próprios olhos
focados no local distante, onde a maltratada terra cinzenta se encontrava com a
turbulenta nuvem cinza. Conversar era realmente impossível. A maior parte do
ser de Maddie estava absorvida em pilotar o Anson oscilante. Mas uma porção
mínima de sua mente se entristecia que o primeiro voo da amiga não era num
calmo anoitecer de verão com a luz dourada sobre as verdejantes Pennines.
Maddie pousou o Anson ao vento, com um soco, e Dy mpna manteve as
mãos longe, deixando Maddie fazê-lo. O ianque disse que foi um baita pouso, o
que era um elogio. Mais tarde, a escocesa trêmula rangia os dentes na pista,
enquanto reabasteciam a nave, e a tripulação de solo de Branston tagarelava com
os pilotos de traslado. Maddie se postou ao lado, não perto o suficiente para tocar,
nada tão infantil, mas oferecendo apoio silencioso.
Com o piloto de voo de traslado ianque a menos, a tripulação partiu de volta
a Maidsend. A luz solar intermitente, baixa no horizonte, brilhava pelas nuvens
pesadas no oeste e Maddie, bastante desesperada para melhorar a experiência
para sua passageira em suplício, conseguiu subir um pouco mais alto, onde o
vento era mais forte, menos tempestuoso. (Aos pilotos de voo de traslado era
vetado voar acima dos 5.000 pés. Engel terá que fazer a conversão métrica, sinto
muito.)
Droga de vento cruzado, xingou Maddie para si, enquanto se movia
lentamente para casa.
— Ainda com enjoo? — Berrou Dy mpna para a infeliz escocesa. —
Venha sentar na frente.
A escocesa, enfraquecida, podia ser provocada com facilidade (como
sabem). Dy mpna se esgueirou para fora do assento e a escocesa rastejou para
lá.
Maddie deu uma olhada na amiga, sorriu e apertou a mão bem-cuidada
que agarrava a beirada do assento do copiloto. Ela forçou a mão a pegar os
controles de voo.
— Segure isso — berrou. — Veja como estamos inclinados contra o sol?
Há um forte vento cruzado, por isso temos que ir de lado. Como se velejássemos.
Aponta-se o avião para o lado. Entendeu?
A escocesa acenou com a cabeça, o rosto pálido, queixo duro, olhos
brilhando.
— Vê? — Maddie ergueu as mãos para o alto. — Você está no controle.
Está pilotando o avião. A Escocesa Voadora.
A Escocesa Voadora chiou novamente.
— Não se agarre a ele, apenas segure-o suavemente, aí, muito bem!
Sorriram uma para a outra por um momento. Então, voltaram os olhos
para o céu.
— Dy mpna! — Exclamou Maddie. — Olhe, veja o sol!
Estava verde.
Pura verdade: a borda do sol poente, tudo o que podiam ver dele, ficara
verde. Estava imprensado entre nódoas de névoa baixa e nuvem alta escura e
apenas ao longo da borda superior da neblina havia esse losango brilhante de
verde flamejante, como licor Chartreuse com luz por trás dele. Maddie nunca
vira nada parecido.
— Meu Deus — sussurrou Dy mpna sobre esse efeito, mas ninguém a
ouviu. Pôs uma mão no ombro de cada garota e os apertou forte.
— Pilote o avião, Maddie — comandou com a voz rouca, um lembrete de
instrutor.
— Sim!
Maddie pilotou, mas também observou a borda verde do sol, por um longo
e glorioso meio-minuto açoitado pelo vento. Duraram trinta segundos, os raios
verdes rompendo a nuvem no horizonte. Então, a luz se apagou na névoa
novamente e as três foram cegadas nas trevas monótonas de uma tarde chuvosa
de outono.
— O que foi isso? Dy mpna, o que era? Um teste? Uma nova bomba? O
quê...?
Dy mpna relaxou o aperto nos ombros.
— É chamado de clarão verde — explicou. — É só uma miragem, um
truque da luz. Nada relacionado com a guerra. — Deixou escapar um suspiro de
prazer. — Oh! Meu pai o viu uma vez acampando no Kilimanjaro, há anos. Volte
ao trabalho, escocesa, o trem de pouso precisa ser baixado. Preciso voltar ao
banco do instrutor para me certificar que Brodatt pousará com segurança.
Já em solo, Dy mpna pôs para fora as duas novatas e decolou novamente, sem ter
descido em terra em Maidsend, com pressa de voltar à sua base antes de
escurecer ou de o tempo fechar (pilotos do ATA podem autorizar seus próprios
voos).
Queenie, voltando a si, pegou a mão de Maddie e a apertou com força.
Caminhou de volta, atravessando a pista, sem a largar. Maddie fechou os olhos e
tornou a voar na pálida luz verde etérea. Sabia que jamais a esqueceria.
Sinto muito. Isto não tem absolutamente nenhuma relação com o Táxi Aéreo.
Mas foi esse voo que alavancou Maddie para o ATA. Ela foi liberada para
eles pela WAAF, não cedida, procedimento um pouco incomum na época,
embora agissem assim mais tarde na guerra; incomum pois o ATA é uma
organização civil e a WAAF, militar. Mas Maddie estivera na lista de espera do
ATA desde sua criação e ter Dy mpna ao lado a colocou em vantagem sobre
outros candidatos talvez igualmente bons. As mulheres na lista de espera eram
muito mais qualificadas que os homens, já que eles não precisavam esperar.
Também o voo noturno de Maddie em Oakway e os pousos com neblina a
fizeram especial (noite e névoa, brrr, embora inofensivos, fico arrepiada).
Homens com sua experiência agora pilotavam bombardeiros. O ATA precisava
dela.
Eles voam sem rádio ou ajudantes de navegação. Têm mapas, mas não
têm autorização de marcar balões ou novos aeródromos neles, caso os percam
ou alguém os encontre. Maddie fez um treinamento ao entrar, no início de 1941,
e um instrutor lhe disse: — Você não precisa de mapa. Sobrevoe apenas esta
galeria o tempo que leva para fumar dois cigarros. Então vire e siga a próxima
galeria durante outro cigarro. Pode-se voar sem as mãos e acender um cigarro
no meio do voo facilmente se o avião estiver ajustado corretamente. LDC,
Localização de Direção por Cigarro.
Na mesma época em que Maddie entrou para o Air Transport Auxiliary,
sua amiga, a radiotelegrafista, foi cedida para o SOE, o Departamento Executivo
de Operações Especiais. Maddie desconhecia isso. Após Maddie deixar
Maidsend, elas trocaram cartas por um tempo. Logo as cartas de Queenie
começaram a chegar de um endereço não divulgado, cheias de marcas pretas de
censura, como se viessem de um soldado no norte da África. Então, Queenie lhe
pediu para escrever para sua casa, com o impressionantemente simples (e
palindrômico!) endereço de Craig Castle, Castle Craig (Aberdeenshire). Mas ela
não estava em casa. O propósito era apenas de retransmissão. Assim, não se
viram a maior parte daquele ano, exceto:
1) Quando Queenie apareceu de repente, durante uma pausa da Blitz de
Manchester, e elas passaram três noites úmidas e chuvosas queimando gasolina
do mercado negro enquanto rodaram nas Pennines para cima e para baixo, na
Silent Superb de Maddie.
2) Quando um dos dez maiores medos de Queenie se materializou e seu
irmão favorito Jamie, piloto de bombardeiro (o Jamie real) e tripulação foram
abatidos. Jamie passou uma noite flutuando no Mar do Norte e depois lhe
amputaram quatro dedos da mão e todos os dos pés. Maddie foi visitá-lo quando
ele estava no hospital. Ela nunca o vira antes, talvez não fosse o melhor momento
de conhecê-lo, mas Queenie mandou-lhe um telegrama, o segundo que recebera
na vida, pedindo-lhe que o visitasse, e Maddie foi. Talvez não fosse o melhor
momento para ver Queenie também.
3) Quando Queenie foi enviada para Oakway para treinamento de
paraquedismo. Naquela ocasião, não tinham permissão de conversar.
Isso deveria ser uma seção separada, os saltos de paraquedas da SOE, mas
eu não cheguei lá ainda e, agora, von Linden acabou de entrar e eu mesma terei
que traduzir o que escrevi, já que Engel não está aqui.
Estou só. Oh, Deus. Tentei desamarrar os nós de Thibaut, mas não consigo
alcançá-los com as duas mãos. Estava traduzindo as anotações de hoje para von
Linden, os cotovelos na mesa e a cabeça entre as mãos, sem ousar olhá-lo. Já
havia lhe pedido mais tempo, e ele dissera que consideraria depois de ouvir o
material de hoje. E sei que hoje não lhe dei nada. Nada além dos eventos das
últimas duas semanas, o que ele já sabe, e o clarão verde. Cristo, todo-poderoso.
Depois de chegar à parte em que o cozinheiro me apalpa — tão constrangedor,
mas se tivesse pulado esta parte e v. L. descobrisse mais tarde, eu teria pagado
por isso com sangue — ele se aproximou e se postou ao meu lado. Tive que
erguer o olhar. Quando o fiz, ele tomou um punhado de cabelo e afastou-o de
meu pescoço por um momento.
Ele nunca sorri ou franze as sobrancelhas, nada do gênero. Pude sentir meu
rosto pegando fogo. Ora, porque escrevi daquela forma sarcástica e obscena
sobre escolher entre o cozinheiro e o inquisidor? Não poderia dizer o que ele
pensou. Gentilmente, esfregou meu cabelo entre os dedos.
Então, disse uma palavra. É a mesma em inglês, francês e alemão.
Querosene.
E me deixou aqui, com a porta fechada.
Gostaria de escrever algo heroico e inspirado, antes de arder em chamas,
mas sou burra demais e estou doente de medo para pensar em algo. Não consigo
nem pensar em um desafio memorável de alguém para repetir. Pergunto-me o
que William Wallace disse quando o amarravam aos cavalos que o rasgariam
em pedaços. Tudo o que consigo pensar é em Nelson dizendo: — Beije-me,
Hardy .
Ormaie 17.XI.43 JB-S
TRABALHO INSEGURO
Engel pensa que traduzo as notas horríveis de von Linden mas, sorrateiramente,
uso alguns cartões de receitas meus, pois passei na frente dela.
Ela pode ser uma fonte perfeita de informações quando está a fim. É por
ralhar tanto comigo enquanto eu trabalhava duro que ela ficou para trás. Ela me
diz que, se eu tiver sorte, serei enviada para um lugar chamado Ravensbrück
quando terminarem o que querem comigo aqui. É um campo de concentração só
para mulheres, um campo de trabalhos e prisão. Talvez a diarista que roubou os
repolhos tenha ido para lá. Basicamente é uma sentença de morte: o deixam
passar fome até não conseguir trabalhar e então, quando ficar fraco demais para
deslocar escombros para repor as estradas explodidas por nossos bombardeiros
Aliados, o enforcam. (Sou ideal para deslocar escombros, tenho experiência
prévia da pista em Maidsend.) Se não te mandam quebrar rochas, tem que
incinerar os corpos dos companheiros após serem enforcados.
Se não tiver sorte, isto é, se meu relatório não for satisfatório no tempo
dado, serei mandada para um lugar chamado Natzweiler-Struthof. Este é um
campo menor e mais especializado, o ponto de desaparecimento dos prisioneiros
Nacht und Nebel, na maioria homens. Às vezes mandam mulheres como
espécimes vivos para experimentos médicos. Não sou homem, mas sou
designada como Nacht und Nebel.
Oh, Deus.
Se for muito sortuda, isto é, se for esperta, serei fuzilada. Aqui, em breve.
Engel não me contou; eu mesma pensei isso. Desisti de esperar que a RAF
exploda este lugar em pedacinhos.
Quero atualizar minha lista das “dez coisas das quais tenho medo”.
1) Frio. (Troquei meu medo do escuro pelo de Maddie de sentir frio. Não
me importo com o escuro agora, especialmente se estiver silencioso. Fica tedioso
às vezes.)
2) Adormecer no meio do trabalho.
3) Meu irmão favorito ser bombardeado.
4) Querosene. A mera palavra basta para me deixar em frangalhos, algo
que todos sabem e se aproveitam com grande efeito.
5) SS-Hauptsturmführer Amadeus von Linden. De fato, deveria constar no
topo desta lista (ele me cega de medo), mas segui a relação pela ordem original,
então ele substituiu o porteiro da faculdade.
6) Perder meu suéter. Suponho que possa constar sob o item Frio, mas é
algo que temo em separado.
7) Ser mandada para Natzweiler-Struthof.
8) Ser enviada de volta à Inglaterra e ter que reportar “O que fiz na
França”.
9) Não conseguir terminar minha história.
10) Também de terminá-la.
Perdi o medo de envelhecer. Na verdade, não consigo acreditar ter dito
algo tão bobo. Tão infantil. Tão ofensivo e arrogante.
Mas, principalmente, algo tão idiota. Desejo desesperadamente
envelhecer.
Todos estão animados com a visita da locutora americana. Minha entrevista será
feita no escritório de von Linden, onde quer que seja. Fui levada para visitar o
local hoje para ficar prevenida e não desmaiar de surpresa ao vê-lo pela
primeira vez perante a entrevistadora (fingir que todas as minhas “entrevistas”
ocorrem sob o lustre de cristal veneziano em seu covil aconchegante com painéis
de madeira. Faz de conta que fico sentada toda tarde à bela escrivaninha de
marchetaria do século 18. Faz de conta que peço à cacatua de estimação na
gaiola de bambu para soprar palavras pouco familiares em alemão quando
emperro.)
(Ou talvez não. A prestativa cacatua pode parecer um pouco de exagero.)
Não estou escrevendo lá agora; estou em meu armário de vassouras vazio,
inclinada sobre a mesa de aço tubular com os tornozelos presos à cadeira, com o
SS-Scharführer Thibaut e seu colega cujo nome não me disseram respirando em
meu cangote.
Escreverei sobre a Escócia. Nunca estive lá com Maddie, mas sinto como
se tivesse ido.
Não sei o que ela pilotava quando ficou presa em Deeside, perto de
Aberdeen. Ela não levava só Ly sanders e não transportava muitas pessoas no
primeiro ano, então provavelmente não era um Anson. Vamos dizer que fosse
um Spitfire, só por diversão, o mais glamouroso e amado avião bombardeiro.
Mesmo os pilotos da Luftwaffe deixariam arrancar seus dentes traseiros com um
par de fios se lhes dessem um Spitfire para pilotar por uma hora. Vamos dizer
que em novembro de 1941, Maddie estivesse levando um Spitfire para esse
campo de pouso escocês de onde partiriam para defender os navios do Mar do
Norte, ou talvez para fotografar os aeródromos da Noruega, ocupados pela
Luftwaffe.
Nossos aviões de reconhecimento têm tonalidade de camuflagem entre
malva e salmão, para se confundir com as nuvens. Digamos, então, que Maddie
pilotava um Spitfire rosa, mas não lá no azul, no alto, como os pilotos de caça.
Dirigia com cuidado, seguindo a costa até os largos vales escoceses, pois as
nuvens estavam baixas. Encontrava-se três mil pés acima do nível do mar, mas
entre Tay e Dee, as montanhas Cairngorm sobem mais que isso. Maddie estava
sozinha, cuidadosa e feliz, voando baixo sobre as Highlands cobertas de neve, nas
belas asas afinadas, ensurdecida pelo motor Merlin, navegando em voo cego.
Geada e nevoeiro cobriam os vales. A névoa se acumulava em almofadas
nas dobras dos montes; cumes distantes ofuscavam em tons róseos e brancos sob
os raios do sol baixo que não tocava as asas do Spitfire. O haar, nevoeiro costeiro
do Mar do Norte, se avolumava. Estava tão frio que o ar úmido cristalizava
dentro do capô de plexiglas, aparentando neve na cabine.
Maddie pousou em Deeside pouco antes do ocaso. Mas não era pôr do sol;
havia penumbra cinzenta ficando azul, e ela teria que passar a noite em uma
cama extra desfeita e sem graça no quarto de hóspedes do alojamento de
oficiais, ou encontrar uma pensão em Aberdeen. Ou passar metade da noite em
um trem sem aquecimento, com as janelas vedadas e talvez chegar de volta a
Manchester às duas da manhã. Sem vontade de encarar a solidão da
acomodação espartana do aeródromo ou uma senhoria de rosto pétreo severo
em Aberdeen, que não aceitaria seus cupons de racionamento por uma refeição
noturna não encomendada, Maddie optou pelo trem.
Caminhou até a estação do ramal ferroviário em Deeside. Não havia
mapas de rotas nas paredes, mas um sinal estilo Alice no País das Maravilhas
comandava: “Se souber onde está, favor contar aos outros”. Não havia luzes na
sala de espera porque apareceriam quando se abrisse a porta. Uma luz fraca de
banqueiro ardia atrás da cabinezinha do vendedor de bilhetes.
Maddie se endireitou um pouco. As garotas do ATA levavam um verniz de
propaganda nos jornais e esperava-se que demonstrassem certos padrões de
postura. Descobriu, porém, que as pessoas nem sempre reconheciam ou
entendiam seu uniforme marinho com as asas douradas do ATA, e para Maddie,
a Escócia era tão estrangeira quanto a França.
— Há algum trem que passe em breve?
— Há sim — concordou o bilheteiro, tão enigmático quanto os cartazes na
plataforma.
— Quando?
— Em dez minutos. É, em dez minutos.
— Vai para Aberdeen?
— Oh, não, para Aberdeen, não. O próximo trem é o do ramal para Castle
Craig.
Para facilitar, traduzo a fala do bilheteiro do dórico de Aberdeen. Maddie,
não sendo ela mesma fluente no dórico, não tinha certeza se havia escutado
certo.
— Craig Castle?
— Castle Craig — este espectro de funcionário da ferrovia repetiu
lacônico. — Só de ida a Castle Craig, senhorita?
— Não, não! — Respondeu Maddie, sensata e, num acesso de pura
insanidade causada, sem dúvida, pela solidão, fome e fadiga, acrescentou: —
Não é só de ida, preciso voltar. Ida e volta, por favor. Terceira classe, de ida e
volta, a Castle Craig.
Meia hora mais tarde: — “Ora, o que fui fazer? — Pensou Maddie consigo
mesma, com o antigo e gelado trem de dois vagões balançando e rastejando por
uma série de estações escuras e anônimas, levando-a cada vez mais longe, aos
sopés assombrados das Highlands escocesas.
A cabine do vagão ferroviário era mal iluminada por uma lâmpada azul no
alto e não era aquecida; não havia outros passageiros com Maddie.
— Quando passa o próximo trem de volta? — Disse ao bilheteiro.
— O último é daqui a duas horas.
— Há algum antes desse?
— O último é daqui a duas horas — repetiu, nada prestativo.
(Alguns de nós ainda não perdoaram os ingleses pela Batalha de Culloden,
a última em solo britânico, em 1746. Imagine o que diremos sobre Adolf Hitler
daqui a duzentos anos.)
Maddie desceu do trem em Castle Craig. Não tinha bagagem além da
máscara de gás e a bolsa de voo, com uma saia que deveria vestir quando não
pilotava, mas que não conseguira trocar, seus mapas, cartas de piloto e régua de
cálculo circular para computar a velocidade do vento. Havia ainda uma escova
de dentes e sua barra de chocolate de 50 gramas, do voo passado. Lembrou
como quase chorou de inveja da descrição de Dy mpna de ter que passar a noite
na traseira de um Fox Moth e quase congelar até a morte. Ficou pensando se
congelaria antes que o trem, do qual tinha acabado de descer, finalmente voltasse
a Deeside em duas horas.
Aqui devo lembrar que minha família há muito se estabeleceu nos mais
altos escalões da aristocracia britânica. Lembrarão que Maddie é neta de um
comerciante imigrante. Ela e eu jamais teríamos nos encontrado em tempos de
paz. Talvez houvesse uma chance se eu decidisse comprar uma motocicleta em
Stockport e, quem sabe, ela me atendesse. Se eu não tivesse sido uma ótima
radiotelegrafista promovida tão rápido, não nos tornaríamos amigas mesmo em
tempos de guerra, pois oficiais britânicos não se misturam com as classes mais
baixas.
(Não acredito nisso, que não teríamos nos tornado amigas de algum modo,
que uma bomba que não explodiu não teria explodido e despedaçado as duas na
mesma cratera, ou que o próprio Deus não teria vindo e batido nossas cabeças
em um lampejo de luz verde. Mas seria improvável.)
De qualquer forma, receios crescentes de Maddie sobre esta mal
planejada viagem de trem em especial se basearam principalmente na certeza
de que não podia simplesmente bater na porta de um castelo de Laird e pedir
alojamento, ou até mesmo uma xícara de chá, enquanto esperava o trem de
volta. Era apenas Maddie Brodatt e não uma descendente de Mary, rainha da
Escócia, ou Macbeth.
Mas ela não levou em conta a guerra que, segundo ouvi muita gente boa
dizer, está nivelando o sistema de classes britânicas. Nivelando talvez seja uma
palavra forte demais, mas nos misturando um pouco, com certeza.
Maddie foi a única passageira a descer em Castle Craig, e depois de vacilar
na plataforma por cinco minutos, o chefe da estação saiu para cumprimentá-la
pessoalmente.
— Você é amiga do jovem Jamie, lá da Casa Grande, não é?
Por um momento, Maddie ficou surpresa demais para responder.
— Ele ficará feliz em ter companhia ajuizada, com certeza, sozinho
naquele castelo com os jovens malandros de Glasgow.
— Sozinho? — Resmungou Maddie.
— Sim, a Senhora está fora, em Aberdeen, por três dias, com o Serviço
Voluntário de Senhoras, empacotando meias e cigarros para enviar aos nossos
rapazes em combate no deserto. É só o jovem Jamie com os jovens evacuados
de guerra. A Senhora acolheu oito deles, os últimos da fila; ninguém mais os
queria, os rapazinhos sujos, com lêndeas e o nariz escorrendo. Os pais trabalham
todos em navios, bombas caindo noite e dia, os jovens nunca estiveram fora das
habitações em suas vidas. A Senhora disse que criara seis crianças próprias,
sendo cinco rapazes. Oito filhos alheios não seriam muito diferentes. Mas ela
viajou e deixou o jovem Jamie fazendo chá com suas pobres mãos mutiladas...
O coração de Maddie disparou com a ideia de ajudar Jamie a preparar chá
para oito evacuados de Glasgow.
— Dá para andar até lá?
— Dá, uns oitocentos metros pela avenida principal até o portão, então um
quilômetro e meio pela alameda.
Maddie agradeceu, e ele ergueu seu quepe para ela.
— Como sabe que sou amiga de Jamie? — Quis saber.
— Suas botas — disse o chefe de estação. — Todos vocês, caras da RAF,
usam os mesmos modelos. Nunca vi o jovem Jamie tirar os seus. Gostaria de ter
um par.
Maddie caminhou contra o vento no escuro até o Craig Castle, rindo como
uma tonta, mas aliviada e ansiosa.
“Sou um cara da RAF!”, pensou e riu alto no escuro.
O Craig Castle é pequeno, isto é, comparado com os castelos de Edinburgh
ou Stirling; ou o Balmoral, onde o rei mora no verão; ou Glamis, onde vive a
família da rainha. Mas é um castelo respeitável: tem partes com quase seiscentos
anos, um poço próprio para o caso de cerco, porões que podem ser usados como
calabouços ou adega e quatro escadas diferentes, intermináveis, em espiral. Nem
todos os quartos, em diferentes andares, se conectam. Há uma sala perdida atrás
de uma parede vedada (e ainda uma janela faltando no lado de fora e uma
chaminé extra, então sabemos que o quarto ficava lá). Tem salas de armas e de
troféus, de bilhar e para fumar, duas bibliotecas, inúmeros lavatórios, salas de
estar, etc. Agora, a maior parte está coberta por lençóis para proteger da poeira,
pois todos os moradores estão fora, engajados na guerra, inclusive os
funcionários.
Quando Maddie chegou, parecia deserto, escuro, é claro, mas ela bateu
forte a aldraba da porta principal e, finalmente, um dos desmazelados evacuados
de Glasgow, besuntado de ovo do canto esquerdo da boca até a orelha esquerda,
lhe abriu. Carregava uma vela e um candelabro de latão.
— Que rapidez, Jack! — Ironizou Maddie.
— Meu nome é Jock — retorquiu o rapaz.
— Interrompi seu chá?
Jock respondeu ansioso, mutilando as sílabas do sotaque de Glasgow. Se
tivesse falado alemão, Maddie teria entendido a mesma coisa.
Ele queria tocar suas asas de ouro. Teve que apontá-las para que ela
entendesse.
Ela permitiu que o fizesse.
— Venha, entre — disse firme e radiante, como se ela tivesse passado em
um teste. Fechou a maciça porta de carvalho e ferro e Maddie o seguiu para o
labirinto onde nasci.
Emergiram na cozinha, abaixo da escada, com quatro pias, três fornos e
bocas de fogão suficientes para cozinhar para cinquenta convidados, uma mesa
de pinho grande para acomodar todos os funcionários, se eles estivessem lá. Ao
redor da mesa havia sete jovens com idades entre seis e doze anos, sendo que
Jock parecia ser o mais velho. Todos usavam botas com tachas, calças curtas
(economia de tecido) e malhas escolares remendadas em vários estados de má
conservação. Com o rosto sujo de ovo, eles estavam comendo palitos de torrada
com uma velocidade incrível. Em pé ao lado do grande fogão vitoriano,
presidindo um borbulhante caldeirão de ferro, estava o honorável filho caçula do
senhor das terras do Craig Castle, Jamie, com aparência típica do herói das
Highlands, usando um kilt desbotado de tartan Hunting Stewart, meias três-
quartos tricotadas à mão e suéter de piloto da RAF tricotado à máquina. Suas
botas combinavam perfeitamente com as de Maddie.
— Três minutos, quem já foi? — Anunciou ele, virando uma extraordinária
ampulheta de bronze dourado e erguendo um ovo cozido com pinças de prata
para açúcar.
As mãos mutiladas, com dois dedos e um polegar em cada, eram hábeis e
rápidas. Ele cheirou o ar. — Ei, Tam, vire essa torrada antes que queime! —
Gritou, então se virou e viu Maddie.
Ela não o teria reconhecido como Jamie. Hoje ele estava rosado e
saudável, nada igual ao inválido enlutado de rosto acinzentado que vira tombado,
enfaixado e indiferente em uma cadeira em Bath. Mas jamais duvidaria que
fosse o irmão de sua melhor amiga. Mesmo cabelo loiro elegante, mesma
constituição esguia, mesmos traços atraentes com um leve toque de loucura por
trás dos olhos brilhantes.
Ele bateu continência. O efeito foi incrível. Todos os sete jovens (e Jock) o
imitaram com elegância, saltando em pé, empurrando as cadeiras para trás.
— Segunda Oficial Brodatt do Air Transport Auxiliary — apresentou ele.
Os rapazes disseram seus nomes como uma fila de cadetes: Hamish, Angus,
Mungo, Rabbie, Tam, Wullie, Ross e Jock.
— A tropa do Castle Craig — disse Jamie. — Gostaria de partilhar ovos
cozidos conosco, Segunda Oficial Brodatt?
Maddie tinha direito a um ovo por semana. Em geral, o doava para a avó
para que assasse algo, ou para as frituras do café de domingo e, de qualquer
modo, muitas vezes perdia os quitutes.
— Tem galinha à beça por aí — contou Hamish, quando ela sentou com os
garotos. — Comemos todos os ovos que achamos.
— Procurá-los os mantêm ocupados — explicou Jamie.
Maddie cortou o topo de seu ovo com a colher. A gema quente fulgurante
era como o sol de verão brilhando pelas nuvens, o primeiro narciso na neve, uma
moeda de ouro embrulhada em um lenço branco de seda. Mergulhou a colher
nela e a lambeu.
— Vocês, rapazes — disse devagar, observando os rostos sujos — foram
evacuados para um castelo mágico.
— É verdade, senhorita — disparou Jock, esquecendo que ela era uma
oficial, no dialeto de Glasgow.
— Fale devagar — comandou Jamie.
Em vez disso, ele falou mais alto. Maddie entendeu a essência. — Há um
fantasma que fica no alto da escada da torre. Você sente frio se passar por ele
por acidente.
— Eu o vi — confidenciou Angus, orgulhoso.
— Nãnãnã, num viu — zombou Wullie, com profundo desprezo. — E vucê
dórmi con’ursinhu. Não é fantasma.
Eles se engajaram em uma discussão incompreensível sobre o fantasma.
Jamie sentou na frente de Maddie, e eles sorriram um para o outro.
— Estou em minoria absoluta — comentou Maddie.
— Eu também — concordou Jamie.
Ele vivia na cozinha e na menor das duas bibliotecas. A tropa do Craig Castle
ficava a maior parte do tempo fora. À noite, dormiam três deles em cada uma
das camas ancestrais de dossel. Os rapazinhos estavam felizes em se amontoar,
pois faziam igual nas suas casas. Assim, economizavam lençóis e deixavam Ross
e Jock sozinhos (Ross era o irmão caçula de Jock). Jamie os fez se lavarem e
escovarem os dentes no estilo militar (ou escolar), nas quatro pias da cozinha,
dois por pia, muito eficiente. Então, ele literalmente os fez marchar para a cama,
instalando Maddie em sua toca da raposa, na biblioteca, a caminho, para onde
voltou vinte minutos mais tarde, trazendo um bule de café fervendo.
— É café de verdade — avisou ele. — Da Jamaica. Mamãe o reserva para
ocasiões especiais, mas está começando a perder o gosto. — Ele afundou em
uma das poltronas de couro rachado em frente à grade da lareira com um
suspiro. — Como chegou até aqui, Maddie Brodatt?
— Segunda à direita e sempre em frente até o amanhecer — respondeu de
imediato. Parecia mesmo a Terra do Nunca.
— Caramba, é tão óbvio que eu seja Peter Pan?
Maddie riu. — Os Meninos Perdidos te entregaram.
Jamie observou suas mãos. — Mamãe mantém as janelas abertas em
todos os quartos enquanto estamos fora, como a Sra. Darling, para o caso de
voltarmos voando quando ela menos espera. — Ele encheu uma xícara de café
para Maddie. — Minha janela está fechada agora. Não estou pilotando no
momento.
Ele falou sem amargura.
Maddie indagou algo que quisera perguntar quando o encontrou pela
primeira vez, mas não tivera coragem.
— Como conseguiu salvar as mãos?
— Enfiava os dedos na boca — respondeu prontamente. — Trocava de
mãos a cada trinta segundos se tanto. Não consegui enfiar mais de três dedos por
vez e pensei que era melhor me concentrar naqueles que me fariam mais falta.
Meus irmãos mais velhos e a irmã caçula começaram a me chamar de The
Pobble Who Has No Toes [23], que é um poema muito bobo de Edward Lear. —
Ele bebericou o café. — Ter algo no que me concentrar provavelmente salvou
mais que as minhas mãos. O meu navegador, que caiu comigo, simplesmente
desistiu, apenas meia hora depois de estarmos na água. Simplesmente se deixou
levar. Não queria pensar naquilo.
— Você vai voltar?
Ele hesitou um pouco, mas quando falou, foi com determinação, como se
tivesse um quebra-cabeça para resolver. — Meu médico diz que eles podem não
me querer na tripulação de um bombardeiro. Mas, vocês têm um camarada com
um braço voando no ATA, não têm? Pensei que pudessem me aceitar. Aviadores
Traumatizados Antigos, não é como os chamam?
— Não a mim — disse Maddie. — Sou uma das Aviadoras em Terror
Ativo.
Jamie riu. — Terror, você? Que lorota!
— Não gosto de artilharia — confidenciou Maddie. — Algum dia, atirarão
em mim no ar e cairei em chamas só por estar morrendo de medo de pilotar um
avião.
Jamie não riu.
— Deve ser horrível — lamentou Maddie baixinho. — Voltou a voar desde
então?
Ele abanou a cabeça. — Mas eu consigo.
Pelo que ela viu naquela noite, pensou que ele provavelmente poderia.
— Quantas horas você tem?
— Centenas — respondeu ele. — Mais da metade delas à noite. A maioria
delas em Blenheims. Era o que pilotava sempre quando era operacional.
— Em quais modelos você treinou?
— Em Ansons. Primeiro nos Ly sanders.
Ele a observava atentamente por sobre o café, como se fosse uma
entrevista e esperasse que o emprego fosse dele. É claro que não era da conta
dela e que ela nem tinha autoridade. Mas Maddie pousara Ly sanders tantas vezes
naquele campo remoto de Tarefas Especiais da RAF, passando até uma noite no
chalé particular coberto de hera do Esquadrão da Lua em um pequeno bosque à
beira do aeródromo normal (não havia outro lugar para alojá-la e fora
cuidadosamente segregada dos outros visitantes). Tinha alguma ideia das
dificuldades que aquele esquadrão peculiar tinha para encontrar e manter pilotos.
Eram necessárias centenas de horas de voo e francês fluente e, embora só
pudessem pegar voluntários, era uma operação tão secreta que não lhes era
permitido recrutar ativamente qualquer pessoa.
Maddie tinha uma regra para conceder favores, que chamava o Princípio
da Carona ao Aeródromo. Era muito simples. Se alguém precisa chegar a um
campo e você pode levá-lo até lá, carregando-o em um Anson ou em uma
motocicleta, carroça ou nas costas, deve sempre levá-lo. Pois algum dia você
também precisará de uma carona até um campo de pouso. Alguém diferente o
levará, então o favor acaba sendo repassado e não devolvido.
Agora, falando com Jamie, Maddie pensou em todas as pequenas coisas
que Dy mpna Wy thenshawe fizera ou dissera por Maddie, coisas que não
custaram nada a Dy mpna, mas que mudaram a vida de Maddie. Ela sabia que
jamais poderia compensar Dy mpna; mas agora, de acordo com o Princípio da
Carona ao Aeródromo, tinha chance de repassar favores que mudam vidas.
— Você deve pedir ao seu O. C. para pilotar para as Tarefas Especiais —
disse a Jamie. — Acredito que tenha boas chances de se juntar a eles.
— Tarefas Especiais? — Repetiu Jamie, assim como Maddie repetira a
Theo Ly ons há alguns meses.
— Eles pilotam em missões secretas — explicou Maddie. — Operações
com pistas curtas, pousos noturnos. Ly sanders e às vezes Hudsons. Não é um
esquadrão grande. Seja um voluntário para as Tarefas Especiais da RAF e, se
precisar de referência, peça para falar com...
O nome que deu a Jamie era o pseudônimo do oficial da inteligência que
me recrutou.
Foi provavelmente a coisa mais ousada que ela já fizera. Maddie só podia
desconfiar o que ele era. Mas lembrara seu nome, ou melhor, aquele que ele
usou ao lhe pagar um uísque no Green Man, e ela o tinha visto mais de uma vez
no aeródromo secreto (e ele pensava ser tão inteligente). Muito civis estranhos
iam e vinham daquele campo, mas Maddie não via muitos e quando reconheceu
o que ela vira, ficou impressionada com a coincidência singular.
(Oficial de Inteligência Inglesa terrivelmente maquiavélico brincando de
Deus.)
Jamie repetiu o nome em voz alta para memorizar e se debruçou para a
frente para ver Maddie mais de perto à luz da lareira da biblioteca.
— De onde diabos você teve esse tipo de informação?
— “Conversa descuidada custa vidas” — respondeu, séria, e o The Pobble
Who Has No Toes riu, pois isso lhe lembrou tanto sua irmã caçula. Isto é, sua irmã
mais nova. (Quero dizer, eu.)
Como adoraria ficar na biblioteca do Craig Castle com ele a noite inteira.
Mais tarde, Maddie dormiu em minha cama (mamãe sempre deixa nossas
camas feitas, só por precaução...). Estava frio com a janela aberta mas, como a
mamãe e a Sra. Darling, Maddie deixou a janela como a encontrou, também só
por precaução... Gostaria de me satisfazer e escrever sobre meu quarto, mas
preciso parar logo para que von Linden possa me preparar para essa entrevista
de rádio de amanhã. De qualquer modo, meu quarto em casa, no Craig Castle,
Castle Craig, não tem nada a ver com a guerra.
Essa porcaria de entrevista de rádio. Só mentiras, mentiras e droga de
mentiras.
Ormaie 20.XI.43 JB-S
Supõe-se que eu use este tempo para anotar algo sobre a entrevista de rádio de
ontem — para auxiliar em caso da transmissão real não combinar com o que v.
L. lembra dela. Eu teria escrito a respeito dela de qualquer modo, mas
CARAMBA, QUANDO CONSEGUIREI ACABAR MINHA GRANDE
DISSERTAÇÃO DE TRAIÇÃO?
Realmente se esforçaram em melhorar minha aparência, como se fosse
uma debutante a ser apresentada ao rei da Inglaterra de novo. Foi decidido (não
por mim) que meu amado suéter me fazia parecer magra e pálida demais, além
de estar um bocado rasgado. Então lavaram e passaram minha blusa e me
devolveram temporariamente a echarpe de seda cinza. Fiquei boquiaberta ao
descobrir que ainda a tinham; suponho que faça parte de meu arquivo e que
ainda procuram um código não revelado no tecido.
Deixaram que arrumasse o cabelo, mas foi difícil concordar como prendê-
lo, pois ninguém confiava em mim com grampos. No final, liberaram o uso de
TOCOS DE LÁPIS. MEU DEUS, eles são bonitos. Permitiram que eu fizesse
sozinha o penteado, pois: A) Engel não conseguiu fazer o cabelo parar e B) ela
não escondia os lápis tão bem quanto eu. E mesmo depois de ensopar as pontas
dos dedos em querosene por uma hora (quem suspeitaria que querosene tivesse
tantos usos?), não consegui me livrar das manchas de tinta embaixo das unhas.
Mas isso só dá mais credibilidade à história da estenógrafa, creio eu. Depois
disso, por minhas mãos federem a querosene, deixaram-me ainda usar um belo
sabonetinho cremoso americano que flutuava na pia quando eu o soltava. De
onde veio aquilo? (Além dos óbvios “Estados Unidos”.) Parecia sabonete de
hotel, mas a embalagem era inglesa e não poderia ser deste hotel.
C d M, le Château des Mystères.
Engel fez minhas unhas. Não pude fazer eu mesma para não apunhalar
alguém com a lixa. Ela foi tão cruel quanto podia sem arrancar sangue de
verdade (conseguiu me fazer chorar). Tirando isso, é uma manicure perfeita.
Tenho certeza que, abaixo da máscara de Mädchen Teutônica que mostra para a
Gestapo, esconde-se um talento de moda.
Instalaram-me à mesa de marchetaria com alguns documentos falsos
inofensivos para trabalhar: encontrar as melhores conexões entre as ferrovias
francesas e os horários de ônibus e fazer uma lista deles em alemão. Quando
trouxeram a locutora, levantei-me com um sorriso artificial e cruzei o antigo
tapete persa para saudá-la, como se fizesse o papel de secretária na noite de
estreia de Álibi, de Agatha Christie.
— Georgia Penn — apresentou-se a locutora, estendendo-me a mão. Ela
parece uns trinta centímetros mais alta que eu e anda com uma bengala, pois
manca muito. Da idade de von Linden, é grande, simpática e fala alto; bem, é
americana. Trabalhou na Espanha durante a Guerra Civil como correspondente
estrangeira e foi muito maltratada pelos republicanos, daí a inclinação pró-
fascista. Normalmente mora em Paris e faz um show de rádio chamado “Não há
lugar como o lar”, cheio de melodias jive, receitas de tortas e dicas
desencorajadoras, do tipo: “se você estiver alocado em um encouraçado no
Mediterrâneo, sua garota está te traindo nos EUA”. Esse lixo é transmitido sem
parar para induzir saudades nos soldados americanos. Aparentemente os ianques
ouvem qualquer coisa se incluir música decente. A BBC é séria demais para eles.
Apertei a mão dessa mulher traiçoeira e disse, calma, em français pour que
l’Hauptsturmführer, que não fala inglês, puisse nous comprendre[24]: —
Desculpe, não posso lhe dizer o meu nome.
Ela ergueu os olhos para von Linden, postado atenciosamente ao seu lado.
— Pourquoi? — ela falou olhando para ele. Ela é até mais alta que von
Linden, e seu francês tem o mesmo sotaque fanhoso de vogais americanas
quanto seu inglês. — Por que não posso saber seu nome?
Ela me olhou de volta, de cima de sua altura colossal. Ajustei minha
echarpe e assumi a pose casual de uma santa cravada de flechas, mãos unidas
atrás das costas, um pé virado para fora e o outro com o joelho um pouco
dobrado, a cabeça inclinada para um lado.
— Para minha própria proteção — eu disse —, não quero meu nome
divulgado.
Que DISPARATE! Suponho que poderia ter dito: — Devo desaparecer na
Noite e na Névoa.
Não sei o que entenderia disso. Não me permitiram nem lhe dizer qual
ramo do exército eu sirvo.
Von Linden me deu uma cadeira também, ao lado da Srta. Penn, longe da
mesa onde trabalhei. Engel ficou rondando, solícita. A Srta. Penn ofereceu um
cigarro a von Linden, que acenou com desdém, afastando-o.
Posso fumar? — Perguntou ela, e quando ele ergueu os ombros, educado,
ela pegou um para ela mesma e ofereceu outro para mim. Aposto que Engel
queria um.
Respondi: — Merci, mille fois[25] — Ele não disse nada. O mein
Hauptsturmführer! Seu covarde!
Pronta para acender os cigarros, anunciou em francês rápido e simples: —
Não quero perder tempo ouvindo propaganda. É o meu trabalho e sei o que faço.
Serei franca com você, busco a verdade. Je cherche la vérité.
— Seu sotaque é assustador também em francês. Repetiria isso em inglês?
Ela o fez, sem se insultar, muito séria, através de uma nuvem de fumaça.
— Busco a verdade.
Maravilha que von Linden deixou-me aceitar o cigarro, senão não sei
como teria conseguido disfarçar que cada um de nós estava lidando com seu
próprio MALDITO PACOTE DE MENTIRAS.
— Verdade — repeti, finalmente, em inglês.
— Verdade — concordou ela.
Engel veio correndo ao meu auxílio com um pires (não havia cinzeiros). Eu
consumira o cigarro inteiro, até a bituca, em cinco ou seis longas tragadas,
compondo-me para responder.
— Verity, verdade — disse em inglês e exalei todas as últimas moléculas
de nicotina e oxigênio de dentro de mim. Então ofeguei: — A verdade é filha do
tempo, não da autoridade. — E: — Isso acima de tudo, para o teu próprio eu ser
verdadeiro. — Falei sem sentido, confesso. — Verity, verdade! Sou a alma da
verdade. — Ri tão loucamente então, que o Hauptsturmführer teve que limpar a
garganta para me lembrar de me controlar. — Sou o espírito da verdade —
repeti. — Je suis l’ésprit de vérité.
Em meio à fumaça de cigarro, Georgia Penn, muito gentil, entregou-me o
que sobrou do próprio cigarro.
— Bem, graças a Deus por isso — disse, em tom maternal. — Então posso
confiar que responderá honestamente — disse, erguendo a vista para von Linden.
— Sabe como chamam este lugar?
Ergui as sobrancelhas e encolhi os ombros.
— Le Château des Bourreaux — contou ela.
Ri alto demais de novo, cruzei as pernas e examinei a parte interna dos
pulsos.
(É um trocadilho: Châteu de Bordeaux, Château des Bourreaux — Castelo
Bordeaux, Castelo dos Açougueiros.)
— Não, não ouvira isso — respondi. E honestamente, não sabia, talvez por
estar tão isolada a maior parte do tempo. Mostra como sou distraída e que não
pensei nisso eu mesma. — Bem, como pode ver, ainda estou inteira.
Ela realmente olhou com atenção para mim por um segundo — um
segundo apenas. Alisei minha saia para baixo, sobre o joelho. Então pareceu
tratar de negócios, tirou bloco e caneta enquanto um funcionário pálido da
Gestapo, que aparentava doze anos, servia conhaque (CONHAQUE!) para nós
três (NÓS TRÊS — v. L., G. P. e EU, não Engel) de um decantador de cristal do
tamanho de minha cabeça.
Então fiquei tão desconfiada de todos na sala que não conseguia me
lembrar o que deveria dizer. Álibi, Álibi, é tudo o que eu conseguia pensar. Isso é
diferente, não sei o que está acontecendo, ele quer me pegar desprevenida, é um
truque novo. A sala tem escutas, por que acenderam a lareira e não o lustre, e o
que a cacatua falante tem a ver com isso?
Espere, espere, espere! O que mais há para conseguir de mim? Estou
DANDO À GESTAPO TUDO O QUE SEI. Venho fazendo isso há semanas.
Componha-se, garota, você é uma Wallace e uma Stuart!
Nesse momento, propositadamente apaguei o cigarro na palma da minha
mão. Ninguém notou.
Para o inferno com a verdade, disse a mim mesma ferozmente. Quero
mais uma semana. Quero a minha semana e vou tê-la.
Perguntei se poderíamos falar em inglês para a entrevista, o que parecia
mais natural com uma norte-americana; com Engel lá para traduzir, o
Hauptsturmführer não se importava. Então dependia de mim, realmente,
encenar um belo show.
Ele não queria que contasse sobre os códigos que passara a ele. Certamente
também não poderia falar sobre as, bem, circunstâncias estressantes em que
desabei e os entreguei; tampouco que os onze aparelhos de rádio no Ly sander de
Maddie foram todos destruídos no incêndio ao cairmos. (Eles me mostraram as
fotos durante o interrogatório. As ampliações da cabine do piloto vieram mais
tarde. Acho que os mencionei aqui, mas não vou descrevê-los.) Não entendo
totalmente a lógica do que poderia ou não contar à locutora americana, já que, se
ela quisesse, poderia facilmente descobrir de qualquer um em Ormaie sobre os
aparelhos de rádio destruídos. Mas talvez ninguém tenha contado à Inteligência
Britânica, e a Gestapo ainda está brincando do jogo do rádio, das Funkspiel,
tentando usar meus códigos e frequências comprometidas em um de seus rádios
capturados anteriormente.
(Suponho que deveria escrever sobre essas fotos, mas não consegui,
literalmente, pois foi durante aqueles dias em que o papel acabou. Agora,
tampouco escreverei.)
Contei que era uma operadora de rádio, saltei de paraquedas em roupas
civis para não chamar a atenção e fui apanhada por uma confusão cultural;
tagarelamos um pouco sobre a dificuldade de ser estrangeiro e tentar se assimilar
no cotidiano francês. Engel assentiu sábia, concordando, não enquanto me ouvia,
mas ao repetir isso a von Linden.
Oh, que estranha é esta guerra, mirabile dictu[26], o pequeno aparelho de
rádio escocês, isto é, a operadora, ainda alimenta pequenos e desagradáveis
curtos-circuitos escondidos, obtidos durante seu interrogatório selvagem e
desumano, mas consegue manter uma cara séria sentada sob o lustre veneziano
com a Penn americana e os alemães Engel e von Linden, compartilhando
conhaque e reclamando dos franceses!
A encenação estava causando uma boa impressão – todos parecíamos
concordar.
Penn comentou que o inglês de Engel deveria ser do meio-oeste
americano, o que nos deixou sem fala por um longo momento. Engel então
confessou que estudou na Universidade de Chicago por um ano (estudava
QUÍMICA. Acho que jamais encontrei ALGUÉM com tanto talento
desperdiçado). Penn tentou fazê-la jogar “Quem é a celebridade”, mas a única
coisa que tinham em comum era Henry Ford, a quem Engel encontrou em um
jantar de caridade. Os contatos americanos de Engel eram muito respeitáveis e
pró-Alemanha, os de Penn, menos. Elas não estiveram em Chicago na mesma
época; Penn vive na Europa desde o início dos anos 30.
Fräulein Anna Engel, M d M, Mädchen des Mystères[27].
Olhamos para minha tabela de horários de ônibus traduzida e admiramos a
caneta tinteiro Montblanc de v. L. que usei. Penn indagou se eu estava
preocupada com o meu futuro “julgamento”.
— É uma formalidade. — Não consegui deixar de ser brutal a esse
respeito. — Serei fuzilada. — Afinal de contas, ela pediu honestidade. — Sou
uma emissária militar capturada em território inimigo mascarada de civil. Conto
como espiã. A Convenção de Genebra não me protege.
Ela ficou silenciosa por um momento.
— Há uma guerra em curso — acrescentei, para lembrá-la.
— Sim. — Ela rabiscou algumas observações no bloco. — Bem. Você é
muito corajosa.
Que IDIOTICE!
— Você pode falar em nome dos outros prisioneiros aqui?
— Não nos vemos muito. — Tive que me esquivar dessa. — Ou não nos
falamos muito. — Eu os vejo com muita frequência. — Você dará uma volta?
Ela acenou com a cabeça. — Parece muito bom. Roupa de cama limpa
em todos os quartos. Um pouco espartano.
— Bem aquecido também — acrescentei, venenosamente. — Costumava
ser um hotel. Não há calabouços apropriados, nem umidade, e nem ninguém
sofrendo de artrite.
Devem tê-la levado para ver os quartos que usam para os enfermeiros,
talvez até plantado alguns prisioneiros falsos. A Gestapo usa o térreo e dois
mezaninos como alojamento e escritórios, tudo mantido em boas condições. Os
prisioneiros de verdade estão nos três andares superiores. É mais difícil escapar
quando se está no mínimo a doze metros de altura.
Penn pareceu satisfeita. Deu a von Linden um sorrisinho e disse: — Ich
danke Ihnen, eu lhe agradeço — séria e formal, e continuou em francês para lhe
dizer como estava grata pela oportunidade especial e incomum. Suponho que o
entrevistará também, em separado.
Então, debruçou-se para perto de mim e perguntou, reservada: — Posso te
conseguir algo? Te mandar alguma coisa, algo pequeno? Toalhinhas higiênicas?
Contei que tinha parado.
Bem, na verdade não, mas eles não a deixariam fazer isso de qualquer
modo. Ou deixariam? Não sei. De acordo com a Convenção de Genebra, é
permitido enviar coisas úteis a prisioneiros de guerra: cigarros, escovas de dentes,
bolos de fruta com serras dentro. Mas, como acabei de enfatizar, a Convenção de
Genebra não se aplica a mim. Nacht und Nebel, noite e névoa. Brrr. Tanto quanto
Georgia Penn sabe, não tenho nome. Para quem endereçaria o pacote?
— Você não está...? — Ela quis saber.
Foi uma conversa extraordinária, se pensar a respeito, nós duas falando em
código. Mas não código militar, não o da Inteligência ou Resistência, apenas o
feminino.
— Você não foi...?
Tenho certeza de que Engel conseguiu completar as lacunas:
— Posso te enviar toalhas (higiênicas)?
— Não, obrigada, parei (de sangrar).
— Não está (grávida)? Você não foi (violentada)?
Violentada. O que fará se eu tiver sido?
De qualquer modo, tecnicamente falando, não fui violentada.
Não, só parei.
Não fiquei menstruada desde que saí da Inglaterra. Acho que meu corpo
meramente se fechou durante aquelas primeiras três semanas. Agora, só
desempenha funções básicas. Sabe perfeitamente bem que jamais será chamado
para propósitos reprodutivos. Sou um aparelho sem fio.
Penn encolheu os ombros, a boca se curvou, cética, as sobrancelhas
erguidas. Seus maneirismos são o que imaginaríamos ser os de uma esposa de
um fazendeiro pioneiro. — Você não parece tão saudável — observou ela.
Aparento ter acabado de sair de uma clínica e estar para perder uma longa
luta contra a tuberculose. A fome e a falta de sono deixam marcas visíveis, SEUS
IDIOTAS.
— Não vejo a luz do sol há seis semanas. — Eu disse — Às vezes, o clima
também parece com o lá de casa.
— Com certeza é bom — disse, pausadamente. — Bom ver que tratam tão
bem os prisioneiros aqui.
De repente, de uma só vez, despejou todo seu conhaque, intocado, o cálice
inteiro, no meu.
Entornei tudo feito marinheiro, antes que alguém pudesse tirar de mim, e
passei a tarde inteira enjoada.
Sabem o que ele fez a noite passada, quero dizer, von Linden? Veio e se postou à
porta de minha cela após terminar seu trabalho e perguntou se li Goethe. Ele
vinha remoendo esta ideia, que posso “comprar” tempo em troca de partes da
alma e se perguntou se me comparava a Fausto. Nada como um debate arcano
literário com seu mestre tirano enquanto passa o tempo que leva à sua execução.
Quando saiu, disse-lhe: “Je vous souhaite une bonne nuit”, desejo-lhe uma
boa noite; não porque desejasse, mas porque é o que o oficial alemão diz aos seus
inflexíveis resistentes passivos franceses toda noite em Le Silence de la Mer,
aquele tratado de desafio gaulês e espírito literário da Resistência Francesa. Uma
cópia me foi dada por uma francesa com a qual treinei logo após ter sido trazida
de volta do campo no fim do ano passado. Pensei que von Linden pudesse tê-lo
lido também, por ser tão do tipo “conheça seu inimigo” (além de ser erudito).
Mas parece que ele não reconheceu a citação.
Engel me contou o que ele fazia antes da guerra. Era reitor de uma escola
de meninos bem ricos em Berlim.
Um diretor!
E ainda tem uma filha.
Ela está a salvo em uma escola na Suíça, a neutra Suíça, onde os
bombardeiros Aliados não fazem ataques aéreos noturnos. Posso assegurar com
certeza que ela não frequenta a minha escola. A minha escola fechou pouco
antes do início da guerra, quando a maioria dos alunos ingleses e franceses teve
que sair de lá, razão de eu ter ido para a universidade um pouco cedo.
Von Linden tem uma filha que é um pouco mais nova que eu. Vejo agora
por que ele assume um enfoque clinicamente distante do seu trabalho.
Assim mesmo, não tenho certeza de que tenha uma alma. Qualquer Fritz
com seu equipamento de casamento intacto pode gerar uma filha. E há muitos
diretores de escola sádicos por aí.
Oh, meu Deus? Por que repito sempre o mesmo erro? TENHO O
CÉREBRO DE UMA GALINHA! ELE LERÁ TUDO O QUE ESCREVI.
Ormaie 21.XI.43 JB-S
Deus, que confusão. Terei que interromper aqui até parar de chorar, ou ficará
tudo borrado e ilegível.
Desculpem, desculpem, desculpem!
Ormaie 22.XI.43 JB-S
Primeiro, foi como ele dissera, houve pouca mudança na vida de Maddie. Por
seis semanas, ela nada ouviu. Então, duas vezes por semana havia liberações
marcadas “S”, trazendo seu próprio codinome especial — apenas um alerta para
que soubesse que estava “operacional”. Mas a única diferença real do trajeto de
aerotáxi normal era que os caras que ela apanhava obviamente não eram pilotos.
Depois disso, houve voos especiais que aconteciam regularmente, mas não
com frequência. A cada seis semanas, aproximadamente. Eram todos tediosos.
Para o transporte aéreo, Maddie foi alocada de volta aos aviões pequenos de
treinamento e ex-civis, os Tiger Moths com a cabina aberta e um Puss Moth ou
dois. Além dos pousos noturnos ocasionais, não havia muito na pilotagem em si
que Maddie considerasse desafiador.
Um voo de Ly sander foi memorável, pois seu passageiro viajou com dois
guardas. Há uma divisória blindada que separa o piloto do Ly sander dos
passageiros; pode-se mandar bilhetes, café ou beijos por uma abertura do
tamanho de uma página, que pode ser fechada de modo que ninguém possa
atirar nele. Não que atirar no piloto o leve a qualquer lugar mais rápido, a não ser
para baixo, em um Ly sander, já que não conseguirá pegar os controles.
Maddie estava separada com segurança do possível assassino, se fosse um.
Mais tarde, ela nunca teria certeza se aquele passageiro viajara como prisioneiro,
sob guarda, ou alguém valioso, sob proteção. De qualquer modo, devem ter
ficado muito apertados, três homens crescidos na traseira de um Ly sander.
Então, por fim, fui eu.
Maddie foi interrompida no meio de um chocolate quente na hora de
dormir, muito aconchegante, em casa com a avó e o avô, em Stockport. Seu
oficial de Operações ligou e pediu que pilotasse para outro campo de pouso
naquela noite, pegasse alguém e o levasse para outro local, tudo a ser feito tão
rápido quanto possível. Diriam para onde ir quando chegasse a Oakway, mas não
por telefone.
Era setembro, há um ano, uma noite maravilhosa, gloriosa, clara, sem
vento, um dos melhores climas que Maddie já vira. Mal precisou pilotar o
pequeno Puss Moth, só apontá-lo para o sul, seguindo as colinas escurecidas. Um
maravilhosamente grande quarto crescente de bombardeiro se erguia quando
chegou no campo da coleta e Maddie aterrissou pouco antes de o esquadrão local
decolar. Ela taxiou até a cabana de Operações conforme os Lancasters novos em
folha saíam. O acanhado Puss Moth estremeceu ao vento ao passarem, como
galinha do pântano entre uma revoada de garças-reais cinzas, cada uma com três
vezes seu comprimento de asas, quatro vezes mais motores, pesados com o
combustível da noite e a carga de explosivos, levando destruição para as fábricas
de Essen e os pátios ferroviários. Maddie levou seu pequenino avião até a praça
de manobra em frente à cabana de Operações e desengatou o motor, esperando.
Disseram-lhe que não desligasse o motor.
Os Lancasters rugiram ao passar. Maddie observou com o nariz colado ao
para-brisas e, por um segundo, não notou a porta do passageiro sendo aberta. A
equipe de solo, quepes enterrados e rosto coberto na sombra das asas, ajudou o
passageiro a entrar e afivelar o cinto de segurança. Não havia bagagem, além da
indispensável máscara de gás em seu embornal e, como de costume, não
disseram a Maddie o nome do passageiro especial. Ela viu a silhueta de um
quepe da WAAF pontudo e sentiu o passageiro muito tenso, retesado de agitação,
mas nunca ocorreu a Maddie que pudesse conhecer a pessoa. Como os
motoristas do SOE, fora instruída a não fazer perguntas. Acima do rosnar do
motor ela gritou as instruções de saída de emergência e a localização do kit de
primeiros socorros.
Já no ar, Maddie não entabulou conversa; jamais o fazia com passageiros
especiais. Tampouco assinalou que a esplêndida vista negra e, por vezes,
prateada, estava abaixo, ao luar, pois sabia que parte da razão dessa pessoa estar
sendo levada de avião ao destino de noite era que ninguém pudesse adivinhar
aonde ia. O passageiro arfou quando Maddie, muito profissional, desencaixou a
pistola Verey da lateral de seu assento.
— Não se preocupe — gritou. — É apenas um sinalizador! Não tenho um
rádio. O sinalizador avisa que estamos aqui, se eles não nos ouvirem, e assim eles
acendem as luzes para nós.
Mas Maddie não precisou dispará-lo, pois após circular por um ou dois
minutos, a pista se iluminou, e Maddie acendeu as luzes de aterrissagem.
Foi um pouso muito certeiro. Mas não até que a nave viesse a parar
completamente e o motor fosse desligado, o passageiro a surpreendeu ao se
debruçar e dar-lhe um rápido beijo na bochecha.
— Grata. Você é maravilhosa!
A equipe de solo já abrira a porta do passageiro.
— Deveria ter-me dito que era você! — Maddie gritou enquanto sua amiga
se recompunha para desaparecer na noite.
— Não queria te surpreender no ar! — Queenie automaticamente
verificou se o cabelo ainda estava no lugar e com um de seus saltos de gazela
pulou do avião para o concreto. — Não estou acostumada a voar e nunca tive que
ir a lugar algum à noite. Desculpe!
Inclinou-se um momento para a cabine; Maddie pôde ver várias figuras
acenando e deliberando atrás dela. Eram quase duas horas da manhã.
— Deseje-me boa sorte — implorou Queenie. — É a minha primeira
tarefa.
— Boa sorte!
— Vou te ver ao terminar. Você me levará para casa.
Queenie desapareceu cruzando a pista, circundada pelos assistentes.
Deram a Maddie um pequeno quarto particular no Chalé cada vez mais
familiar. Era estranho não saber o que acontecia. Ela logo cochilou e foi quase
instantaneamente acordada pelos Ly sanders operacionais noturnos retornando da
França com o butim de aviadores americanos abatidos, ministros franceses
caçados, um engradado de champanhe e dezesseis vidros de Chanel nº 5.
Maddie não saberia sobre o perfume não fosse que na manhã seguinte
todos estavam bem alegres, talvez devido ao café da manhã com champanhe
(por ser escalada para nova decolagem após o amanhecer, Maddie
prudentemente não tomou nada). Queenie estava afetada como um gato e
radiante pelo sucesso. Parecia que acabara de ganhar uma medalha de ouro nos
Jogos Olímpicos. O líder de esquadrão deu um vidro do aroma francês a cada
mulher que então estivesse no aeródromo, incluindo a Garota de Terra que
apareceu na sua bicicleta com uma cesta com três dúzias de ovos não alocados e
seis quartilhos de leite para o café de “Recepção à Liberdade”.
Liberdade, oh, liberdade. Mesmo com a escassez, os apagões, as bombas e
as regras, a rotina tão enfadonha e tediosa na maioria do tempo, ao cruzar o
Canal da Mancha, você estava livre. Tão simples e surpreendente que ninguém
na França viva sem medo, sem suspeita. Não me refiro ao medo honesto de uma
morte no fogo; refiro-me ao insidioso, desmoralizante medo da denúncia, traição,
crueldade, de ser silenciado. Ou de não ser capaz de confiar no vizinho ou na
garota que traz os ovos. Cerca de trinta e três quilômetros apenas de Dover. O
que preferia ter: uma oferta ilimitada de Chanel no 5 ou a liberdade?
Realmente! Que pergunta boba!
Alcancei um ponto neste relato onde, inevitavelmente, terei que falar de
mim antes de Ormaie. E não quero.
Quero apenas continuar a falar de pilotar ao luar. Sonhei que voava com
Maddie, nos cinco minutos ou no pouco tempo em que houve silêncio ao lado e
realmente adormeci. Em meu sonho, a lua estava cheia, mas era verde, verde
brilhante, e eu não parava de pensar: “Estamos à luz de refletores!”. Mas, é
claro, os refletores são brancos, não verdes — verde químico, não cítrico. Era
como a luz no licor Chartreuse, clarão verde; fiquei imaginando: como escapei?
Não consegui me lembrar como saí de Ormaie. Mas não importava, estava
segura, a caminho de casa no Puss Moth de Maddie, com ela ao lado, voando
confiante e o céu estava calmo, enluarado com um verde bonito.
Deus, estou cansada. Dei realmente um tiro no próprio pé, sendo forçada
agora a me arrepender. Fui posta de volta para trabalhar sempre que não tiverem
pessoal, para me manter sob vigilância. Não consigo decidir se isso é bom ou
ruim, já que não sou contra o infinito suprimento de papel, mas também
confisquei minha sopa de repolho da noite e tampouco dormi muito ultimamente.
(Espero que DESISTAM daquela pobre garota francesa. Ela jamais lhes contará
qualquer coisa.)
O que aconteceu foi que, quando me trouxeram esta manhã, a pobre
Fräulein Engel estava ocupada, sentada à mesa, de costas para a porta,
numerando meus vários cartões de receita, e eu quase a matei de susto bradando
com a voz profunda e forte de comando e disciplina: — Achtung[28], Anna
Engel! Heil Hitler! — Ela saltou em pé e se pôs em saudação que deve quase ter
lhe deslocado o ombro. Nunca a vi com o pescoço tão pálido. Recuperou-se
quase que de imediato e me estapeou tão forte que me derrubou. Quando Thibaut
me ergueu, ela tornou a me bater, só pelo prazer de fazê-lo. Au, au, au, meu
queixo dói. Suponho que não planejem outra falsa entrevista.
Não consigo me decidir se vale a pena. Foi um momento verdadeiramente
hilário, mas tudo que parece que consegui foi uma colisão totalmente inesperada
entre Engel e Thibaut.
Eu os chamei de Laurel e Hardy ? Quis dizer malditos Romeu e Julieta. Isso
é flerte à moda do pessoal da Gestapo.
Ela: — Oh, você é tão forte e viril, M’sieur Thibaut; os nós que você faz são
tão seguros.
Ele: — Isso não é nada. Veja, apertei tanto que não consegue desamarrá-
los. Tente.
Ela: — Verdade, não consigo! Oh, aperte mais ainda!
Ele: — Chérie, seu desejo é uma ordem.
São os meus tornozelos, não os dela, que ele amarra tão apertado e com
tanto charme masculino.
Ela: — Terei que lhe chamar amanhã de manhã, também, para fazer isto
em mim.
Ele: — Você deve cruzar as cordas, assim, e amarrá-las atrás...
Eu: — Ai! Ai!
Ela: — Cale-se e escreva, sua notável merdinha escocesa.
Bem, ela não usou essas palavras exatamente. Mas vocês entendem.
Aconteceu algo. Eles apressaram o ritmo um pouco, não só comigo. Estão
implacáveis com os prisioneiros da Resistência. Talvez ocorrerá uma inspeção?
Visita do misterioso chefe de von Linden, o temido SS-Sturmbannführer Ferber?
(Imagino chifres e uma cauda bipartida.) Talvez ele esteja fiscalizando o
trabalho de von Linden aqui; isso explicaria por que v. L. tem que colocar aquelas
anotações em ordem. Para parecer bem.
Tentando desesperadamente manter meus pensamentos em uma ordem
narrativa. Estou muito cansada (devo ser melodramática em relação a isso?),
muito fraca de fome, de fato não sei se estou fraca por causa da fome, mas estou
com muita fome e tontura (não me deram mais aspirina desde o episódio do
conhaque). Talvez Engel tenha causado uma concussão em mim. Vou listar
algumas coisas para tentar seguir para o passo seguinte.
Voos com Maddie.
O tempo em Glasgow estava tão horrível naquele dia que ninguém decolou
e todos ficaram presos lá. Peguei o trem de volta, mas Maddie teve que esperar
uma brecha nas nuvens. E ainda tive que voltar para a droga de Glasgow, em:
Era mais comum eu pegar um trem para os compromissos que voar. E Maddie
transportava outras pessoas além de mim que, com certeza, não faziam o mesmo
trabalho que eu. Mas aqueles voos que listei são os que contam. Quinze voos em
seis meses. Maddie levava o sigilo mais a sério que eu, nunca tinha certeza do
quanto ela adivinhava. (Acabou sendo que não era muito. Apenas ela levava
aquilo realmente a sério. Afinal, ela começou como uma assistente das Tarefas
Especiais.)
Naquela noite, em abril passado, tivemos que voltar para aquele
aeródromo, o secreto, que o Esquadrão da Lua usa para a França. Agora, Jamie
estava alocado lá. Maddie estava às claras com eles, e assim foi por algum
tempo, confiavam nela, a aceitavam e a convidaram para a ceia naquela noite.
Sem ceia para a pobre Queenie, que foi imediatamente arrebatada pela multidão
usual (minha comissão de recepção consistia apenas de três pessoas, incluindo
meu admirador, o sargento de polícia da RAF, que trabalha também como
guarda de segurança, e o chefe de fritura de salsichas no Chalé, mas parece uma
multidão quando todos são maiores que você e não é possível saber onde estão te
levando). Queenie tinha uma pequena valise de viagem, que ela deixou com
Maddie, e por experiência Maddie sabia que não veria a amiga de novo até a
manhã seguinte. Maddie foi para a ceia com os pilotos.
Não era algo que fizesse com frequência, sabem, uma vez por estação,
talvez, e era especial porque Jamie estava lá. Na verdade, ele estava para sair
em uma missão, deixar e apanhar alguém naquela noite: uma “operação dupla
de Ly sander” como chamavam quando dois pilotos dirigiam dois aviões para o
mesmo campo. Havia um terceiro avião decolando com eles, aproveitando a lua,
mas não era tecnicamente operacional: um novo membro do esquadrão estava
fazendo seu primeiro voo de treinamento de cruzar o país para a França. Ele se
separou dos outros sobre o Canal. Entraria voando sozinho por um tempo na
França, então voltaria sem pousar.
Este jovem — vamos chamá-lo de Michael (em honra ao mais jovem dos
Darlings em Peter Pan!) — estava bastante nervoso com suas habilidades de
navegação. Como Jamie, fora piloto de bombardeiro antes e sempre teve um
navegador ao lado, dizendo aonde ir, e ainda pilotara seu primeiro Ly sander há
um mês. Seus colegas o compreendiam bem, por terem passado por isso
também. Maddie não compartilhava do sentimento.
— Você andou praticando nos Lizzies por um mês! — Ela disse, com
desdém. — Cruzes, quanto tempo isso leva? Os instrumentos são os mesmos, quer
seja um bombardeiro de mergulho Barracuda ou um Tiger Moth acabado, e os
flaps são automáticos! Fácil, fácil.
Todos a olharam com uma CARA.
— Vá você pilotar até a França, então — disse Michael.
— Eu iria, se me deixassem — disse ela, com inveja (esquecendo a
artilharia antiaérea e noturna).
— Eu sei o que fazerrrr — Jamie, o Pobble Who Has No Toes arrastou a
fala, para soar como um escocês. — Leve a mocinha com você.
Maddie sentiu como se tivesse sido atingida por um relâmpago. Erguendo o
olhar, viu a tênue e familiar loucura brilhar nos olhos de Jamie. Sabia que era
melhor ficar quieta — ou o Pobble ganharia por ela, ou ela não poderia ir.
Os outros riram e discutiram rapidamente. O agente da SOE inglês que
seria levado naquela noite desaprovou. Os pilotos do Esquadrão da Lua, por
necessidade um bando de lunáticos irrefletidos, levaram ao líder como uma
proposta. Ele ficou claramente dividido, mas principalmente porque Michael
deveria voar sozinho naquela noite.
— Ela não ajudará a pilotar o avião estando na traseira do Ly sander, não
é?
— Ela poderia lhe dizer o que fazer. Mantenha-o na linha se ele sair do
curso.
Jamie empurrou o prato vazio para longe e se recostou na cadeira, as mãos
atrás da cabeça, e deu um assobio baixo.
— Fiuuu! Vocês estão sugerindo que ela é um piloto superiorrr ao nosso
Michael?
Todos olharam para Maddie, sentada, quieta, em seu uniforme civil,
parecendo muito elegante e oficial com as asas e listas douradas (na época já era
Primeira Oficial). A única pessoa cujos olhos ela ousou encarar eram os do
agente que seria transportado naquela noite. Ele sacudia a cabeça desaprovando,
derrotado, como que dizendo: — Se é necessário, meus lábios estão selados.
— Não tenho dúvida alguma que ela é melhor piloto — disse o líder do
esquadrão.
— Então por que, cargas-d’água, ela faz traslados de Tiger Moths
avariados, nesse caso? Ligue ao Oficial da Inteligência Maquiavélico Inglês e
consiga uma permissão — sugeriu Jamie.
— Não conta como minha travessia do país — sugeriu Michael, ansioso. —
Preciso da prática.
— Se não é um voo operacional — esclareceu o líder do esquadrão — não
há necessidade de ligar para a Inteligência. Eu assumo a responsabilidade.
Maddie vencera. Ela mal podia acreditar em sua sorte.
— Não quero que saibam disso fora desta sala — alertou o líder do
esquadrão, e todos aparentaram inocência e indiferença. Maddie andou ombro a
ombro com o agente do SOE quando saíram para subir no avião que aguardava.
A equipe de solo lhe lançou olhares engraçados.
— Michael, precisando de novo de ajuda com a navegação? — Disse um
deles gentilmente, oferecendo-lhe a perna de degrau para entrar atrás no avião.
No íntimo, Maddie pensou que Michael teve sorte como um menino com
geleia no rosto todo, com seu mapa cuidadosamente marcado com cada canhão
antiaéreo e pontinhos de navegação por todo o caminho até o centro da França e
de volta.
Ela não tinha um mapa seu, sentada atrás, mas uma vista absolutamente
fabulosa dos dois lados e para trás, algo que não costuma ter, e a oportunidade de
desfrutar disso. Tinha uma tarefa também, a de prestar atenção nos caças
noturnos. Não estava longe das aldeias escurecidas do sul da Inglaterra, antes de
chegar à costa. A enorme lua dourada tornava as luzes azuis nas pontas das asas
dos Ly sanders operacionais à frente deles difíceis de distinguir das estrelas,
balançando e piscando dentro e fora da linha de visão de Maddie, mas ela sabia
onde estava. Aquele rio, essa pedreira, o estuário nos cintilantes marcos
familiares noturnos. Então, a beleza brilhante e inacreditável do Canal da
Mancha, um tecido lamê infinito cintilante de prata e azul. Maddie podia ver as
silhuetas negras de um comboio de navios abaixo dela. Perguntou-se quanto
tempo a Luftwaffe levaria para encontrá-los.
— Oi, Michael — chamou Maddie pelo interfone. — Não deve seguir
muito para o interior da França! Você deve mudar de direção aqui e seguir mais
para o sul sozinho, não é?
Ouviu muitos palavrões vindos da frente, antes de o piloto se recompor e
reajustar o curso. Então ouviu um acanhado: — Obrigado, colega!
Obrigado, colega. Maddie se encheu de orgulho e prazer. Sou um deles —
pensou. Estou a caminho da França. Posso também ser operacional.
Lá no fundo, ela tinha dois medos, mostrando suas garras: 1) que pudessem
atirar neles e 2) corte marcial. Mas ela sabia que a rota de Michael fora
planejada com cuidado para evitar artilharia e campos de pouso e que o
momento mais perigoso fora, provavelmente, ao cruzarem o comboio de navios.
Se voltassem em segurança, não haveria necessidade de corte marcial. Se não
voltassem em segurança, bem, é provável que a corte marcial tampouco seria
um grande problema nesse caso.
Agora sobrevoavam as fantasmagóricas rochas brancas da Normandia. As
voltas do Sena brilhavam feito um grande carretel de malha prateada ao lado da
ponta da asa. Maddie arfou com a inesperada beleza do rio e de imediato sentiu
lágrimas infantis escorrerem, não só por sua ilha sitiada, mas por toda Europa.
Como tudo pôde ter ficado tão terrível e completamente desvendado?
Não havia luzes acima da França; estava tão enegrecida quanto a Grã-
Bretanha. Todas as luzes da Europa foram apagadas.
— O que é isso? — Interrogou surpresa pelo intercomunicador.
Michael viu ao mesmo tempo e virou bruscamente, afastando-se.
Começou a circular, primeiro um pouco rápido demais, depois com controle
firme do manche. Abaixo e à frente deles, iluminado feito parque de diversões
medonho, havia um retângulo de luz branca ofuscante profanando a paisagem
outrora obscurecida.
— Isso está onde deveria ficar o último ponto de referência! — Avisou
Michael.
— Que ponto de referência que nada! Será um campo de pouso? Está mais
que operacional, e como está!
— Não — disse o piloto devagar, circulando de novo para ver melhor. —
Não, acho que é um campo de prisioneiros. Veja a iluminação ao redor da cerca
de perímetro. Para apanhar qualquer um que tente escapar.
— Você está no lugar certo? — Indagou Maddie, em dúvida.
— Diga você! — Mas ele disse isso com confiança. Ele preencheu o
espaço com seu mapa repleto de marcações e passou o mapa para trás, pela
abertura no anteparo, seguido por uma lanterna elétrica de bolso. — Mantenha-o
coberto — alertou. — Deveria haver um campo de pouso a cerca de trinta
quilômetros a leste. Venho tentando passar longe dele. Com certeza não preciso
de uma escolta.
Maddie estudou o mapa por baixo da tenda que fez com sua túnica. Pelo
que conseguiu ver, Michael seguia o caminho corretamente. A cerca brilhante da
prisão estava perto de uma ponte de ferrovia sobre um rio, que deveria ser o
ponto de referência da volta. Maddie desligou a lanterna e olhou pela janela, a
visão noturna prejudicada por tentar ler o mapa. Mas podia dizer que havia
virado de volta.
— Não precisou de minha ajuda, no final — disse ela, devolvendo a
lanterna e o mapa.
— Teria brincado de “Siga o mestre”, atrás do Jamie, até chegar a Paris,
se não tivesse me lembrado que deveria virar.
— Ele não está indo para Paris, está?
— Ele não terá que pairar sobre a Torre Eiffel, mas terá que apanhar uns
agentes parisienses — contou Michael, com inveja. — Terá que pousar bem fora
da cidade. Ainda estou muito feliz por você ter vindo junto — disse ele com a voz
mais sóbria. — Aquela prisão me deu um susto. Estava tão seguro de estar no
lugar certo e então...
— Você estava no lugar certo — avisou Maddie.
— Estou muito feliz por ter vindo — repetiu Michael.
Disse isso uma terceira vez ao pousarem, duas horas após, de volta à
Inglaterra. O líder de esquadrão sorriu aliviado e acenou com tolerância ao
recebê-los de volta. — Encontrou o caminho direitinho?
— Fácil, fácil, se não contarmos com a parte onde o ponto de referência
acabou sendo uma droga de uma prisão!
O líder de esquadrão riu.
— Eu diria que você encontrou o caminho. Aquilo sempre surpreende pela
primeira vez. Entretanto, prova que chegou lá; ou teve ajuda?
— Ele se virou sozinho — disse Maddie sinceramente. — Não posso deixar
de agradecer por deixar que eu fosse junto.
— Abril em Paris, hein?
— Quase tão bom quanto. — Maddie ansiava por Paris aprisionada,
inacessível, remota.
— Não este ano. Talvez no próximo!
Michael foi para cama assobiando. Maddie caminhou pelo Chalé escuro
com a melodia na cabeça. Após um momento, ela a reconheceu: The Last Time I
Saw Paris.
INTERROGATÓRIO
— Diga qual é sua missão — ordenei. — Diga quais são seus contatos e vou
filtrar o que passar para os ingleses. Diga para mim, e você terá confessado para
sua compatriota e não terá dado nada ao inimigo. — (Sou uma descarada) —
Diga, e talvez eu o perdoe por ter ameaçado me matar.
O comportamento dele, então, foi realmente constrangedor, e eu o beijei
no topo da cabeça em bênção quando ele terminou. Homenzinho miserável e
odioso.
Então eu pedi ajuda. Mas com desdém e resignação, não com medo.
Belo espetáculo, minha cara. Puxa, você tem nervos de aço, não tem? Um
magnífico espetáculo, de primeira classe.
Não revelei o quanto ele tinha me machucado, e eles não pensaram em
verificar. Foram os nervos de aço daquela noite que me levaram à França há seis
semanas.
Esqueci de arrumar meus cabelos de volta ao normal quando troquei de
roupa — não uso meu uniforme da WAAF para interrogatórios. O cabelo foi um
pequeno erro. Eles levaram os nervos de aço em consideração, mas não o
pequeno erro. Não notaram que ele me machucou e não notaram que cometo
pequenos erros fatais de vez em quando.
Mas Maddie notou as duas coisas.
— Venha se aquecer — disse ela.
Queenie apagou seu cigarro e desligou a luz. Não deitou em sua própria
cama, porém; ela subiu ao lado de Maddie. Maddie envolveu os braços
cuidadosamente nos ombros machucados, porque sua amiga agora tremia toda.
Antes ela não tremia.
— Não é um trabalho agradável — Queenie sussurrou. — Não é como o
seu emprego, sem culpa.
— Não sou inocente — disse Maddie. — Cada bombardeiro que transporto
entra em ação e mata pessoas. Civis. Pessoas como minha avó e meu avô.
Crianças. Só porque não faço isso por conta própria não significa que não seja
responsável. Eu transportei você.
— Uma bomba loira — disse Queenie, e deu risinhos de sua própria piada.
Então começou a chorar.
Maddie a segurou com delicadeza, achando que a soltaria quando a amiga
parasse de chorar. Mas ela chorou por tanto tempo que Maddie caiu no sono
primeiro. Então, ela nunca a soltou.
Oh, Deus, estou tão cansada. Eles me mantiveram nisso a noite toda. É a
terceira noite em que não durmo nada. Pouco demais, de qualquer forma. Não
reconheço nenhuma das pessoas que me vigiam; Thibaut e Engel estão todos
envolvidos em suas pensões e von Linden está ocupado atormentando aquela
garota francesa gritona.
Gosto de escrever sobre Maddie. Gosto de relembrar. Gosto de construir,
concentrar, elaborar a história, reunir as lembranças, mas estou tão cansada. Não
consigo produzir mais nada hoje à noite. Sempre que pareço parar, para me
alongar, pegar outra folha de papel, esfregar os olhos, esse bastardo de merda
que me vigia toca minha nuca com o cigarro. Só estou escrevendo isto porque
assim ele não me queima. Ele não sabe ler inglês (ou escocês) e desde que eu
continue cobrindo página após página com linhas de Tam o’Shanter[31], ele não
me machuca. Não posso continuar para sempre, mas sei muita coisa do Robert
Burns de cor.
Burns, Burns para impedir as queimaduras.
Me decapite ou me enforque, isso nunca vai me aterrorizar...
VOU QUEIMAR AUCHINDOON antes de a vida me deixar
Queimando queimando queimando queimando
Oh Deus, aquelas fotos.
queimando
Maddie.
Maddie.
Ormaie 23.XI.43 JB-S
O próprio von Linden deu um fim aos procedimentos da noite passada. Veio de
supetão como a Carga da Brigada Ligeira e recolheu as páginas, enquanto eu
caía de cara na mesa em uma poça de tinta com os olhos fechados.
— Deus todo-poderoso, Weiser, você é idiota? Ela não vai produzir nada
que valha a leitura enquanto estiver nesse estado. Olhe! Isto é verso. Versos ruins
ingleses. Páginas e páginas disso! — O Fritz filisteu se pôs a amassar tudo que
pude lembrar de “Tam o’Shanter” em bolas de papel. Acho que ele lê mais
inglês do que deixa transparecer se reconhece Burns como inglês. — Queime
este lixo. Já recebo mais que o suficiente de porcarias irrelevantes dela sem você
incentivar! Dê água para ela e leve-a para o quarto. E livre-se desse cigarro
imundo. Vamos falar sobre aquilo amanhã.
O que foi a maior explosão emocional que já vi nele, mas acho que ele
também está exausto.
Oh, sim, e ENGEL anda CHORANDO. Seus olhos estão bem
avermelhados e ela fica esfregando o nariz, que também está vermelho. Fico
imaginando o que seria capaz de deixar a Guarda-Feminina-em-Serviço Fräulein
Engel cair no choro durante o trabalho.
Após aquela entrevista desastrosa em abril passado (não foi desastrosa para a
Inteligência, suponho, mas deixou Eva Seiler um pouco prejudicada), o contato
de interpretação de Berlim recebeu uma semana de folga para refletir sobre seu
trabalho e se queria continuar com ele. Em outras palavras, Queenie teve a
oportunidade de se recolher graciosamente. Ela passou a semana no castelo
Craig com sua mãe, a sofredora Sra. Darling (por assim dizer). A pobre senhora
nunca soube o que nenhum de seus seis filhos faziam de fato, ou quando eles
chegavam ou partiam, e não ficou muito contente com as marcas escuras na
pálida pele céltica de sua filha de ossos finos.
— Piratas — disse Queenie. — Fui amarrada ao mastro pelo Capitão
Gancho.
— Quando essa guerra horrível acabar — disse a mãe — quero saber
absolutamente cada mínimo detalhe!
— Absolutamente cada mínimo detalhe de meu trabalho está sob o Ato
Secreto Oficial, e serei jogada na prisão para o resto da vida se um dia contar
algo sobre isso — Queenie contou à mãe. — Então pare de perguntar.
Ross, o mais novo dos evacuados de Glasgow, entreouviu essa conversa —
felizmente Queenie não deu à mãe nenhum detalhe (conversas descuidadas
custam vidas, etc.) — mas a bela operadora de rádio, de aparência oficial,
tornou-se quase uma deusa idolatrada entre os moradores irregulares do castelo
Craig depois disso: — Ela foi aprisionada por piratas!
(Eu amo esses jovens pequeninos, amo mesmo. Com suas bobagens e
tudo.)
Também durante aquela semana, a elegante e querida babá francesa de
Queenie, companhia constante da mãe, em um impulso de compaixão maternal,
começou a tricotar um pulôver para Queenie. Com a limitação de materiais,
devido à escassez e ao racionamento, ela usou uma linda lã cor de pôr do sol, que
desfiou de um terno feito para ela pela modista mais cara de Ormaie em 1912.
Menciono aqui a chegada de meu suéter porque penso nele como parte da
derrocada, como se minha pobre babá afetuosa fosse um tipo de Madame
Defarge, tricotando meu destino inexoravelmente nos pontos dessa peça de roupa
de lã nobremente posta à prova. Não se parece muito com aparato militar, mas
já esteve na ativa e tem as manchas de sangue para provar. Além disso, é quente
e cheio de estilo. Pelo menos carrega a lembrança de estilo. Acima de tudo, é
quente.
Ao final da minha semana de reflexão decidi que, assim como meu dúbio
ancestral Macbeth, eu já estava com os pés tão afundados no sangue figurativo
que não havia muita razão para recuar; além disso, eu amava ser Eva Seiler. Eu
adorava a atuação, a simulação e a confidencialidade daquilo, e ficava
lisonjeada com minha própria importância. De vez em quando, eu tirava
informações muito úteis de meus “clientes”: localização de campos de pouso.
Tipos de aeronaves. Códigos. Coisas assim.
De qualquer maneira, depois daquela entrevista de abril, todos, inclusive
Eva, concordaram que ela precisava de uma mudança de cenário. Talvez
algumas semanas no continente, onde poderia usar seu sangue frio, múltiplos
idiomas e habilidades de operadora de rádio em um uso muito solicitado na
França ocupada por nazistas.
Pareceu uma boa ideia na época.
Você sabia — e provavelmente sabe mesmo — que em território inimigo a
expectativa de vida de um w/op, ou W/T como dizem no SOE, é de apenas seis
semanas? Esse é o tempo usual que seu equipamento de radiogoniometria leva
para encontrar a localização de um aparelho de rádio escondido. O resto de um
circuito de Resistência, a rede de contatos e mensageiros, esconder-se nas
sombras, desviando-se de explosivos, carregando mensagens que não podem ser
confiadas ao carteiro, mudando-se todo dia, nunca se encontrando no mesmo
lugar duas vezes. No centro do círculo, imóvel e vulnerável, o operador de rádio
repousa no meio de uma pilha de equipamento complicado de deslocar e difícil
de esconder, emaranhado em uma rede fixa de estatística e códigos, irradiando
sinais de rádio elétricos e barulhentos que atraem seus rastreadores como
anúncios de neon.
Hoje faz seis semanas desde que vim parar aqui. Imagino que seja uma
vida bem longa para uma operadora de radiotelegrafia, embora meu sucesso em
sobreviver por tanto tempo teria tido mais peso caso eu tivesse conseguido
instalar um rádio antes de ser pega. Agora estou realmente vivendo com o tempo
marcado. Não há muito mais a dizer.
Mesmo assim, Fräulein Engel provavelmente gostará de ouvir sobre o voo
operacional de Maddie para a França. Imagino que alguém será mandado à
corte marcial por isso. Não sei quem.
O líder do esquadrão de Tarefas Especiais deveria me levar. O Esquadrão
da Lua estava sofrendo um pouco no fim de setembro. Depois de um verão
muito bem-sucedido, com uma dúzia de voos por mês, o dobro de agentes
liberados e dezenas de refugiados recolhidos, algumas lesões e incidentes haviam
limitado seus pilotos de Ly sander a quatro, e um deles estava tão gripado que
nem conseguia levantar (estavam todos exaustos). Dá para prever no que isso vai
dar.
Para mim, a preparação durou meses. Outro curso de paraquedas, seguido
por um exercício de campo elaborado em que tive que perambular por uma
cidade verdadeira (e desconhecida, eles me mandaram para Birmingham para
fazer isso), deixando mensagens cifradas para contatos que não conhecia e
combinando recolhimentos clandestinos de pacotes falsos. O maior perigo é um
policial notar suas atividades suspeitas e o prender — e neste caso, é bem difícil
convencer suas próprias autoridades que você não está trabalhando para o
inimigo.
Em seguida, havia arranjos específicos relativos à minha própria tarefa —
desmontar e montar cada um desses malditos rádios uma dezena de vezes;
verificar se minhas roupas não poderiam ser associadas à Inglaterra, arrancando
as etiquetas de todas as peças íntimas (é por isso que o pulôver é um traje ideal,
totalmente anônimo e feito de materiais obtidos no local). Aprender metros e
metros de códigos, e você sabe (bem demais) que o código de rádio é associado
a poemas para que seja mais fácil de memorizar. Eu meio que esperava que von
Linden fizesse seus decifradores de código tentarem decodificar “Tam
o’Shanter” para eu poder rir deles. Mas ele conhece minhas jogadas.
Então tive que passar pelo pior tipo de treinamento para eles terem certeza
que contei minha história direito. Tiveram muita dificuldade em simular um
interrogatório comigo. A maioria das pessoas acha desconcertante ser acordado
no meio da noite e ser arrastado para o interrogatório, mas eu simplesmente não
conseguia levar isso a sério. Eu conhecia a rotina bem demais. Após cerca de
cinco minutos estávamos brigando a respeito de algum detalhe do protocolo ou
então algo me fazia cair no riso. Ao chegar ao extremo, eles me vendaram e
seguraram um revólver carregado atrás da minha cabeça por quase seis horas.
Foi sinistro e desgastante, acabei ficando um pouco trêmula. (Todos ficamos.
Não foi divertido.) Mas mesmo assim não fiquei com medo em nenhum
momento. Você sabia que ficaria bem no final. Havia muitas pessoas envolvidas
porque era necessário trocar sempre de guarda e meu comandante se recusava a
me dizer quem eram elas. Para protegê-las, sabe? Duas semanas depois, mostrei
a ele uma lista com suspeitos que se revelou 90% correta. Lancei olhares
fulminantes a todos por alguns dias e na semana seguinte cada um dos homens
que estava em serviço naquela noite me pagou uma bebida. As mulheres eram
mais difíceis de descobrir, mas eu poderia ter aberto uma lojinha de mercado
negro com os chocolates e cigarros que elas me deram de fininho. A culpa é
uma arma maravilhosa.
Então, mentalmente preparada, havia malas para fazer — cigarros (para
presentes e subornos), cupons de roupas (falsificados e/ou roubados), cartões de
racionamento, dois milhões de francos em notas de pouco valor (agora
confiscados — eu realmente fico mal ao pensar nisso), pistola, bússola, cérebro.
E então era só esperar pela lua. Na verdade eu era muito boa em ser chamada à
ação sem aviso prévio; estava acostumada com isso (e com aprender poesia de
cor). Mas o fato de esperar, esperar, esperar pela lua, mordiscando as cutículas e
observando a lua mordiscar o céu, era um grande desafio. Você fica sentada ao
lado do telefone a manhã toda e pula de susto quando ele toca; então, quando
acontece de haver muita neblina sobre o Canal ou o exército alemão estar
vigiando o fazendeiro, dono do campo onde você deveria aterrissar, você é
dispensada pelo resto do dia. Aí não há nada a fazer além de imaginar se aguenta
ficar sentada em um cinema enfumaçado assistindo a Coronel Blimp — Vida e
morte[32] pela sexta vez, ou se estará em apuros ao fazer isso, já que o Primeiro-
Ministro desaprova o filme e, secretamente, você gosta de Anton Walbrook como
o nobre comandante alemão (e tem quase certeza que seu comandante sabe
disso). Bem quando você decidiu — Quem liga para o Primeiro-Ministro? — e
está na expectativa de passar outra tarde sonhadora com Anton Walbrook, o
telefone toca de novo e você está em ação.
Coloquei os sapatos certos? Você se pergunta freneticamente, e maldição,
onde deixei meus dois milhões de francos?
Maddie, maldita sortuda, não teve que passar por nada disso. Maddie apenas
pegou o bilhete de voo na cabine da Oakway Operations como sempre, sorriu ao
ver o “S” e o destino “Buscot da RAF”. Isso significava que dividiria uma xícara
de chá com sua melhor amiga em algum momento das vinte e quatro horas
seguintes, e saiu do Puss Moth com sua máscara de gás e a bolsa de voo. Era
rotina. É incrível pensar em como aquele era um dia comum para ela, para
começar.
Ainda estava claro quando chegamos às Tarefas Especiais da RAF. O
surgimento da lua ocorria cedo, às seis e meia, por aí, e devido ao horário de
verão duplo tínhamos que esperar escurecer. Jamie — indicativo de chamada
John — estaria voando naquela noite, e Michael. Os indicativos de chamada são
todos de Peter Pan, é claro. Essa missão noturna em especial se chamava
Operação Sirius, o que parece apropriado. — Segunda estrela à direita e então
direto, até amanhecer.
É horrível contar isso assim, não é? Como se não soubéssemos o fim. Como
se pudesse haver outro final. É como assistir a Romeu bebendo o veneno. Toda
vez que vê aquilo você acredita que a namorada dele pode acordar e detê-lo.
Toda vez você quer gritar: — Seu idiota, espere só um minuto —, e ela abrirá os
olhos! — Ei, você, sua imbecil, abra os olhos, acorde! Não morra desta vez! —
Mas eles sempre morrem.
OPERAÇÃO SIRIUS
Fico imaginando quantas pilhas de papel como a minha estão espalhadas pela
Europa, o único testamento de nossas vozes silenciadas, enterradas em arquivos,
baús e caixas de papelão enquanto desaparecemos... enquanto desaparecemos na
noite e na névoa?
Assumindo que você não incinere todos os meus registros quando acabar
de ler, o que eu adoraria captar e prender aqui, para a eternidade no âmbar, é o
quanto foi empolgante vir para cá. Eu, saltando pelo concreto assim que saí do
Puss Moth, no ar refrescante de outubro com cheiro de folhas queimadas e
escape de motor, pensando: — França, França! Ormaie de novo, finalmente! —
Todo o castelo Craig havia chorado por Ormaie quando o exército alemão a
invadiu há três anos, todos nós estivemos aqui antes, visitando la famille de ma
grandmère, e agora os olmos foram todos derrubados para lenha e barricadas, as
fontes secas, exceto a que usam para dar de beber aos cavalos e apagar fogos, o
jardim de rosas em memória ao meu tio-avô na Place des Hirondelles foi todo
escavado, e a praça está cheia de veículos blindados. Quando cheguei aqui havia
uma fileira de homens mortos apodrecendo pendurados em uma sacada do Hôtel
de Ville, a prefeitura. A maldade da vida cotidiana daqui é indescritível, e se isso
é civilização, então está além da capacidade de meu cérebro minúsculo imaginar
a maldade de um lugar como Natzweiler-Struthof.
Você sabe, falo alemão porque adoro alemão. O que um diploma de
literatura alemã me traria de bom? Eu lia porque adorava. Deutschland, das Land
der Ditcher und Denker, terra dos poetas e pensadores. E agora nunca vou sequer
ver a Alemanha, a não ser que me mandem para Ravensbrück — nunca
conhecerei Berlim, ou Colônia, ou Dresden, ou a Floresta Negra, o vale do Reno,
o Danúbio azul. Odeio você, Adolf Hitler, seu homenzinho egoísta monstruoso,
mantendo a Alemanha só para você. VOCÊ ESTRAGA TUDO.
Droga. Não pretendia me desviar desse jeito. Quero lembrar...
Como após o jantar, meu admirador, o policial-sargento-cozinheiro, fez
café de verdade para nós. Como Jamie e Maddie se deitaram sobre o tapete
diante da lareira no salão, abaixo dos olhares fixos de vidro das raposas e perdizes
empalhadas, a elegante cabeça loira de Jamie e os cachos negros bagunçados de
Maddie, inclinados juntos e curvados em conspiração sobre o mapa de Jamie,
totalmente contra todas as regras, discutindo a rota até Ormaie. Como nós todos
nos reunimos em volta do rádio para ouvir nosso próprio código anunciado na
BBC — “Tous les enfants, sauf un, grandissent” —, e a mensagem aleatória que
dizia a nosso comitê de recepção na França quem esperar naquela noite. É o
primeiro trecho de Peter Pan: todas as crianças, exceto uma, crescem. Esperem
pelos rapazes de sempre com uma exceção, hoje há uma moça pequenina vindo
junto.
Como todos nós ficamos sentados, tremendo nas espreguiçadeiras no
jardim do The Cottage, observando o sol se pôr.
Como todos nos assustamos quando o telefone tocou.
Era a esposa do líder do esquadrão. Peter — este não é seu nome
verdadeiro, Engel, sua idiota. Peter tinha encontrado sua mulher no almoço, deu-
lhe uma carona até a estação de trem e quase imediatamente após deixá-la se
envolveu em um acidente de carro confuso em que quebrou metade de suas
costelas e ficou completamente inconsciente pela maior parte da tarde. Sua
esposa não tinha ouvido falar disso antes porque estava em um trem com três
horas de atraso depois de ser afastado para um desvio para dar prioridade a um
trem das tropas. De qualquer modo, Peter não voaria para a França naquela
noite.
Confesso que foi ideia minha encontrar um substituto.
Após o sargento desligar, houve bastante tumulto enquanto todos
murmuraram de espanto, preocupação e decepção. Ficamos todos soltando
ocasionais muxoxos a noite toda por causa do atraso de Peter, mas nunca ocorreu
a ninguém que ele não apareceria antes da decolagem. Agora estava escuro, o
anúncio da BBC tinha sido feito, os comitês de recepção da França estavam
esperando e os Ly sanders estavam lá fora com seus tanques de longa distância
repletos de combustível e suas cabines traseiras cheias de armas e rádios. E
balançando-se sobre seus saltos chatos, repleta de café, de nervos e de códigos,
estava Eva Seiler, o contato de interpretação de Berlim com Londres, prestes a se
insinuar no submundo alemão de Ormaie.
— Maddie pode pilotar o avião.
Ela tem presença, Eva Seiler, ou seja lá quem ela pensava ser naquela
noite, e as pessoas prestavam atenção nela. Nem sempre concordavam, mas ela
exigia atenção.
Jamie riu. Jamie, doce Jamie, o adorável irmão do contato de
interpretação, o irmão Pobble sem dedos do pé, riu e disse com força: — Não.
— Por que não?
— Porque... não! Ignore a violação do regulamento, ela nem sequer foi
testada...
— Em um Ly sander? — O contato disse com desdém.
— Voo noturno...
— Ela consegue sem rádio ou sem mapa!
— Eu não voo sem mapa — Maddie corrigiu com prudência, jogando com
as cartas próximas ao peito. — É contra as regras.
— Bem, não temos o destino ou os obstáculos marcados na maior parte do
tempo, o que é quase a mesma coisa.
— Ela não voou para a França à noite — Jamie argumentou e mordeu o
lábio.
— Você a fez voar para a França — disse sua irmã.
Jamie olhou para Maddie. Michael e a divina oficial das Operações
Especiais que estava lá para supervisionar a bagagem de Queenie, o sargento de
polícia da RAF e os outros agentes que voariam naquela noite observaram com
interesse.
Jamie jogou seu trunfo.
— Não há ninguém para autorizar o voo.
— Ligue para o maldito maquiavélico Oficial da Inteligência Inglesa.
— Ele não tem a autoridade do Ministro da Aeronáutica.
A Primeira Oficial do ATA Brodatt finalmente agiu e o derrotou com
calma.
— Se é um voo de traslado — disse ela —, posso autorizá-lo eu mesma.
Deixe-me usar o telefone.
Ela ligou para seu comandante para avisá-lo que lhe pediram para levar
um de seus passageiros usuais das Tarefas Especiais da RAF a uma “localização
não revelada”. E ele deu autorização para partir.
Ormaie 24.XI.43 JB-S
Desta vez sei exatamente onde eu estava, onde parei. Sei exatamente onde
estávamos. Onde Maddie estava.
Pela enésima vez, quatro pessoas diferentes verificaram os livros de
racionamento, paraquedas e papéis. Eles informaram Maddie, disseram quem
ela recolheria na viagem de volta, verificaram os mapas e as rotas, deram-lhe
um indicativo de chamada para usar no rádio até chegar à França (Wendy,
naturalmente). O sargento de polícia tentou lhe dar um revólver. Todos os pilotos
das Tarefas Especiais portavam pistolas quando voavam para a França, ele disse,
só por precaução. Mas ela não aceitou.
— Não sou da RAF — disse Maddie. — Sou civil. É uma violação do
acordo internacional armar civis.
Então, em vez disso, ele lhe deu uma caneta, chamada Eterpen, uma coisa
realmente maravilhosa, sem tinta melequenta para trocar e com secagem
instantânea. Disse que encomendaram trinta mil delas para a RAF usar no ar
(para cálculos de navegação) e um oficial da RAF agradecido, contrabandeado
recentemente da França, deu uma das amostras para Peter, que a deu ao
sargento, e que finalmente a deu para Maddie. O sargento disse para ela passá-la
adiante quando completasse sua missão com sucesso. Ele gosta muito de nós.
Maddie ficou imensamente grata pela caneta. (Não entendi na época por
que ela a agradava tanto — o suprimento infinito de tinta de secagem rápida —,
mas agora entendo.) Ela também gostou da ideia de passá-la adiante como um
presente após uma operação bem-sucedida, uma variação do princípio da carona
ao Aeródromo. Ela confessou com um sussurro à sua passageira: — Não saberia
o que fazer com um revólver, de qualquer modo. — O que não era inteiramente
verdade, já que em suas segunda e terceira viagens ao castelo Craig, Jamie a
levou para caçar e ela tinha capturado não um, mas dois faisões, com a calibre
20 de Queenie. Mas Maddie era — é? Era, certo, era. Maddie era do tipo
modesta.
— Pronta para treinar umas aterrissagens? — Maddie disse à passageira,
como quem não quer nada, como se Ormaie fosse um destino tão comum quanto
Oakway. — Acenderam as luzes de simulação no campo de treinamento. Não
costumo pousar muito na pista iluminada à noite, então vamos dar um pulo lá
antes de zarpar.
— Tudo bem — a passageira concordou. Era impossível para as duas não
estarem exultantes, uma delas a caminho da França, a outra pilotando o avião.
Tudo estava a bordo exceto Queenie, e então o sargento ofereceu a mão para ela
subir a escada até a cabine traseira.
— Espere, espere!
Ela se atirou em Maddie. Maddie ficou bem surpresa. Por um momento
elas se agarraram como sobreviventes de um naufrágio.
— Vamos! — Maddie disse. — Vive la France!
Uma invasão aliada de duas.
Maddie fez três pousos perfeitos e precisos na pista iluminada, e então seu
estômago começou a importuná-la para não perder a lua da mesma maneira que
às vezes a importunava para não perder o bom tempo sobre os Pennines. Ela
determinou seu curso para a França.
Balões de barragem de Southampton flutuavam refletindo o luar como
fantasmas de elefantes e hipopótamos. Maddie atravessou o Solent prateado e a
ilha de Wight. Então estava acima do Canal dividido pela guerra. O ronco do
motor misturado ao da sua passageira cantarolando pelo interfone: — “The last
time I saw Paris”.
— Você está alegre demais — Maddie repreendeu com severidade. —
Aja com seriedade!
— Eles nos mandam sorrir o tempo todo — disse Queenie. — Está no
manual do instrutor do SOE. Pessoas que riem e cantarolam não parecem estar
planejando um contra-ataque. Se você anda por aí parecendo preocupada,
alguém vai começar a se perguntar por que você está com essa cara.
Maddie não respondeu, e após meia hora sobrevoando a eternidade serena,
suave, prateada e negra do Canal da Mancha, Queenie perguntou de repente: —
Você está preocupada com o quê?
— Está cheio de nuvens em Caen — disse Maddie — e há luz nas nuvens.
— O que quer dizer com luz?
— Luz piscante. Rosada. Podem ser raios. Podem ser tiros. Pode ser um
esquadrão de bombas em chamas. Vou mudar um pouco o curso e desviar disso.
Isso era brincadeira. Luz nas nuvens, quem se importa? Vamos mudar de
rumo. Éramos turistas. A rota alternativa de Maddie sobre o litoral da Normandia
ia direto ao Monte St. Michel, a cidadela insular gloriosa ao luar, lançando longas
sombras lunares sobre a maré alta em uma baía que brilhava como mercúrio
derramado. Luzes de busca varriam o céu, mas não encontraram o Ly sander de
barriga cinzenta. Maddie determinou um novo rumo para Angers.
— Temos menos de uma hora nesse ritmo — Maddie disse à sua
passageira. — Você ainda está sorrindo?
— Como uma idiota.
Depois daquilo, é difícil de acreditar, mas foi um voo aborrecido por algum
tempo. O interior francês não era tão fantástico ao luar quanto o Canal da
Mancha, e após um longo tempo olhando para o breu indistinguível, Queenie caiu
no sono com confiança, encolhida entre as caixas de papelão e os fios embolados
no chão da cabine traseira, com a cabeça sobre seu paraquedas. Era quase como
dormir na sala do motor de Ladderal Mill — muito barulhenta, mas
surpreendentemente rítmica. Ela tinha sido testada até a exaustão nas últimas
semanas e agora já passara muito da meia-noite.
Acordou quando seu corpo relaxado foi esmurrado subitamente contra a
parte de trás da fuselagem junto com todos os onze engradados. Ela não estava
machucada nem mesmo assustada, mas muito desorientada. Sua mente
subconsciente mantinha o eco reverberante de um baita estrondo, que foi na
verdade o que a acordou, e não o golpe. Luz reluzente laranja margeava as
janelas da cabine traseira. Bem quando percebeu que o Ly sander descia na
direção da terra em um mergulho vertiginoso, o aumento da gravidade a
nocauteou novamente. E quando despertou pela segunda vez, alguns instantes
depois, estava escuro e o motor ainda pulsava de maneira confiável, e ela estava
empilhada com desconforto no meio da bagagem derrubada.
— Está me ouvindo? Você está bem? — Veio a voz frenética de Maddie
pelo interfone. — Oh, droga, aí vem mais um... — E uma linda bola branca de
fogo arqueou sobre a capota de Perspex. Não fez barulho nenhum e iluminou a
cabine lindamente. Holofote, holofote. A visão noturna de Maddie estava
instantaneamente prejudicada de novo.
— Pilote o avião, Maddie — ela murmurava para si. — Pilote o avião.
Pense nela há três anos, uma molenga chorando de medo sob o fogo.
Pense nela agora, pilotando uma aeronave ferida em meio aos tiros
desconhecidos e à escuridão de uma zona de guerra. Sua melhor amiga,
desenroscando-se na parte de trás do avião, tremeu de medo e de amor. Ela
sabia que Maddie a entregaria em segurança ou morreria tentando.
Maddie batalhava com o manche de comando como se ele estivesse vivo.
Nos breves lampejos fosfóreos, seus pulsos tensos estavam pálidos de esforço.
Ela suspirou de alívio quando sentiu a pequena mão de sua passageira apertando
seu ombro através do buraco do anteparo blindado.
— O que está acontecendo? — disse Queenie.
— Malditas armas antiaviões de Angers. A cauda foi atingida. Acho que foi
artilharia antiaérea, e não um caça noturno, ou estaríamos mortas. Não temos
nenhuma chance contra um Messerschmitt 110.
— Achei que estávamos caindo.
— Aquilo fui eu acelerando para baixo para apagar o fogo — disse
Maddie, séria. — Você mergulha o mais rápido possível até o vento apagá-lo.
Como assoprar uma vela! Mas o controle do estabilizador horizontal do avião foi
desconectado ou algo assim. É...
Maddie rangeu os dentes. — Estamos no rumo. Ainda estamos inteiros.
Perdemos um pouco de altura demais naquele mergulho, mas tudo que o maldito
avião quer fazer agora é subir, então, bem, isso não é problema. Porém, se
subirmos demais, os Fritz podem conseguir nos ver no radar. O avião ainda pode
voar, por pouco, e fizemos um tempo tão bom que nem estamos atrasadas. Só
que acho que você precisa saber que vai ser, hã, meio difícil para eu pousar.
Então talvez você precise saltar de paraquedas de novo.
— E você?
— Bem, talvez eu também, acho.
Maddie nunca havia treinado pular de um avião, apenas pousar aviões
quebrados incontáveis vezes. E tinha, de fato, aterrissado aviões avariados em
várias ocasiões — e as duas garotas sabiam que, se isso acontece mil vezes,
Maddie morreria em todas elas com as mãos nos controles de voo em vez de
confiar em um mergulho cego na escuridão.
Especialmente porque, como a maioria dos aviadores britânicos de
combate, ela falava apenas o francês escolar mais básico e não tinha nenhuma
boa identidade falsa à qual recorrer na França ocupada pelos nazistas.
— Posso deixar você e tentar voar para casa — Maddie disse ao acaso,
palavras de esperança pronunciadas entre dentes cerrados.
— Deixe-me ajudar! Diga algo para eu fazer!
— Procure o local de pouso. Temos menos de meia hora. Eles vão lançar
um sinal de luz quando nos ouvirem, Q em Morse. É longo-longo-curto-longo.
A mãozinha não soltou.
— É melhor você colocar o paraquedas — Maddie lembrou a sua
passageira. — E verifique se tem todo seu equipamento.
Houve muitos estrondos e xingamentos na cabine traseira por um tempo.
Após alguns minutos, Maddie perguntou com um suspiro de riso medroso: — O
que está fazendo?
— Prendendo tudo. Sou responsável por este lote quer eu o veja amanhã de
manhã ou não. Se pularmos, não quero ser estrangulada em fios elétricos. E se eu
tiver que pular antes de você tentar pousar, não quero de jeito nenhum isso se
arrastando atrás de mim e me atingindo a cabeça.
Maddie não disse nada. Ela espiava a escuridão e pilotava o avião. Queenie
segurou seu ombro de novo.
— Devemos estar perto — Maddie disse finalmente. Sua voz, levemente
distorcida pelo interfone chiando, estava neutra. Não havia nada de alívio nem de
medo em seu tom. — Descendo a 700 pés agora, certo? Procure por aquelas
luzes.
Aqueles últimos quinze minutos foram os mais longos. Os braços de
Maddie doíam e as mãos estavam adormecidas. Era como deter uma avalanche.
Ela não tinha olhado o mapa na última meia hora e pilotava apenas pela
memória, pela bússola e pelas estrelas.
— Eba, estamos no lugar certo! — Disse ela, de repente. — Vê a
confluência daqueles dois rios? Vamos pousar bem no centro. — Ela tremeu de
empolgação. A mão pequena e confortadora que segurava seu ombro a soltou de
repente.
— Ali.
Queenie apontou. Como ela o localizou pela abertura do tamanho de uma
folha de papel no anteparo era um mistério, mas ela havia visto o sinal, um pouco
à esquerda delas. Lampejos claros e brilhantes em sequências fixas: Q de Queen,
longo, longo, curto, longo.
— Está certo? — Queenie quis saber ansiosa.
— Sim. Sim!
As duas soltaram gritos espontâneos.
— Não posso deixar de dar uma resposta! — Maddie falou, ofegante. —
Você tem uma lanterna?
— No meu kit. Espere, qual é a letra para a resposta?
— L de Love. Ponto-traço-ponto-ponto, curto-longo-curto-curto. Você tem
que fazer certinho ou não vão iluminar para nós...
— Vou acertar, sua boba — Queenie a lembrou com carinho. — Posso
fazer o código Morse até dormindo. Lembra? Sou uma operadora de rádio.
Ormaie 25.XI.43 JB-S
Hauptsturmführer von Linden diz que nunca conheceu uma pessoa educada tão
desbocada quanto eu. Sem dúvida, foi demasiado estúpido da minha parte trazer
o nome de sua filha à briga que tivemos na noite passada. Nesta manhã deverei
ter a boca esfregada com carbólico — não o SABÃO carbólico, usado nas
escolas, mas o ÁCIDO carbólico de verdade, o fenol, que é a mesma substância
das injeções letais em Natzweiler-Struthof (segundo Engel, minha fonte sempre
presente de detalhes nazistas). Ela o diluiu em álcool, usando luvas para fazer a
mistura, já que é incrivelmente cáustico. Mas não chega perto de mim com ele
porque sabe que vou lutar com ela e ele se espalhará por toda parte. Mesmo com
os braços amarrados atrás de mim (eles não estão, óbvio), eu teria uma boa
chance de espalhá-lo por toda parte. Estou na esperança de que toda a situação se
dissipe se a adiarmos por tempo suficiente, e acho que ela também.
A briga começou com a pobre garota francesa (acho que ela é a única
outra prisioneira feminina aqui), que eles interrogam com teimosia e persistência
dia e noite, a semana toda, e ela, com tanta teimosia e persistência quanto eles,
recusa-se a responder suas perguntas. Na noite passada, ela ficou chorando alto
por horas, entre gritos de agonia de cortar o coração. Cheguei a arrancar
chumaços do meu cabelo (ele está bem quebradiço), enquanto tentava suportar
seus gritos. Em algum ponto, bem no meio da noite, desisti — ela não, mas eu
sim.
Levantei e comecei a gritar com toda a força dos pulmões (en français
pour que la résistante malheureuse puisse me comprendre[34]):
— MINTA! Minta para eles, sua vaca estúpida! Diga qualquer coisa!
Deixe de ser uma maldita mártir e MINTA!
E comecei a lutar insanamente contra o toco de ferro onde a maçaneta de
porcelana da porta costumava ficar (antes de eu a soltar e atirar na cabeça de
Thibaut), o que é inútil, porque é claro que a maçaneta da porta e as ferragens ao
redor eram puramente decorativas e todos os cadeados e barras estavam presos
do lado de fora.
— MINTA! MINTA PARA ELES!
Ah, consegui um resultado inesperado. Alguém veio e abriu os cadeados
tão repentinamente que caí pela porta, e eles me ergueram e me seguraram
piscando com as luzes subitamente fortes, enquanto eu tentava não olhar para a
pobre garota.
E ali estava von Linden, em roupas civis, frio e sereno como um lago
ondulado recém-congelado, sentado em uma nuvem de fumaça acre como o
próprio Lúcifer (ninguém fuma quando ele está por perto. Não sei e não quero
saber o que estavam queimando). Ele não falou nada, apenas acenou, e então me
levaram até ele e me jogaram de joelhos.
Ele deixou eu me amedrontar por alguns minutos.
Então:
— Tem conselhos para sua companheira prisioneira? Não tenho certeza se
ela sabe que você se dirige a ela. Diga de novo.
Sacudi a cabeça, sem saber direito qual era o maldito jogo dele dessa vez.
— Vá ao lado dela, olhe na cara dela, fale com ela. Fale claramente para
todos nós ouvirmos.
Joguei o jogo dele. Sempre jogo. É minha fraqueza, a falha em minha
armadura.
Coloquei o rosto ao lado do dela, como se estivéssemos sussurrando. Tão
perto que deve ter parecido íntimo, mas perto demais para que nos olhássemos
de fato. Engoli em seco e repeti com clareza:
— Salve-se. Minta para eles.
Era ela que costumava assobiar “Scotland the Brave” quando cheguei aqui.
Ela não conseguiu assobiar na noite passada. É de espantar que eles achassem
que ela pudesse até falar, depois do que fizeram com sua boca. Mas ela tentou
cuspir em mim mesmo assim.
— Ela não gostou muito do seu conselho — disse von Linden. — Diga-lhe
de novo.
— MINTA! — Gritei para ela.
Depois de um tempo ela conseguiu me responder. Rouca e áspera, sua voz
rangendo de dor, para que todos pudessem ouvi-la.
— Mentir para eles? — Ela resmungou. — É isso que você faz?
Fiquei ali presa. Talvez fosse uma armadilha que ele preparou para mim
de propósito. Tudo ficou muito silencioso por um longo tempo (provavelmente
não tanto quanto pareceu), e finalmente von Linden ordenou com desinteresse:
— Responda a pergunta dela.
Foi então que perdi a cabeça.
— Seu maldito hipócrita — rugi para von Linden com imprudência (ele
talvez não soubesse o que a palavra significava em francês, mas mesmo assim,
não era uma coisa inteligente a dizer). — Você nunca mente? O que diabos você
faz? O que conta para a sua filha? Quando ela pergunta sobre seu trabalho, que
verdade a adorável Isolde recebe de você?
Ele ficou pálido como papel. Mas calmo, apesar de tudo.
— Carbólico.
Todos olharam para ele sem muita certeza.
— Ela tem a língua mais suja de todas as mulheres da França. Queimem a
boca para limpá-la.
Lutei. Eles me seguravam enquanto debatiam sobre a dosagem correta,
porque ele não deixou claro se realmente queria me matar com a substância ou
não. A garota francesa fechou os olhos e descansou, tirando vantagem da
mudança de foco para longe dela. Eles pegaram as garrafas e luvas. De repente
a sala se transformou em uma clínica. O que era realmente assustador era que
nenhum deles parecia saber o que estava fazendo.
— Olhe para mim! — Guinchei. — Olhe para mim, Amadeus von Linden,
seu hipócrita sádico, e assista a este momento! Você não está me interrogando,
esse não é seu trabalho, não sou uma agente inimiga vomitando códigos de rádio!
Sou apenas uma escocesa nojenta gritando insultos para sua filha! Então
aproveite e assista! Pense na Isolde! Pense na Isolde e assista!
Ele os deteve.
Ele não podia fazer isso.
Engasguei de alívio, ofegando.
— Amanhã — ele disse. — Depois que ela comer. Fräulein Engel sabe
como preparar o fenol.
— Covarde! Covarde! — Solucei em fúria histérica. — Faça agora! Faça
você mesmo!
— Tirem-na daqui.
Havia papel e lápis deixados para mim como sempre nesta manhã, a água para
beber esperava ao lado do fenol e do álcool, e Fräulein Engel batia as unhas dos
dedos com impaciência do outro lado da mesa como sempre faz enquanto espera
que eu lhe entregue algo para ler. Ela está aguardando avidamente para ver o
que escrevi, eu sei, já que não explicaram para ela o que fiz de fato na noite
passada para merecer uma punição tão cruel. Von Linden deve estar dormindo
(ele pode ser desumano, mas não é sobre-humano). Oh, Deus. Não há muito
mais o que escrever. O que ele espera que eu conclua? O fim da história não é
um tanto óbvio? Quero terminá-la, mas odeio pensar nisso.
A senhorita E. conseguiu furtar um pouco de gelo para a minha água. Ele
terá derretido quando chegar a hora de lavar a boca mais imunda da França, mas
foi uma ideia gentil.
Aquele horrível trio de guardas acabou de vir buscar alguém. Engel está
conversando com eles em tom irritado pouco além do alcance de minha audição,
do outro lado da porta. Eles não pareciam estar com luvas, então talvez não
estejam aqui para administrar o fenol. Por favor, Deus. Oh, por que sou tão
grossa e insensata? Aconteça o que acontecer agora, temo não ser capaz de
terminar quase tanto quanto temo...
Tenho quinze minutos.
A esgotada garota francesa e eu fomos levadas juntas através das celas
para um pequeno pátio de pedra que devia ter sido a lavanderia do hotel. Ela
orgulhosa e mancando com seus belos pés descalços horríveis, com feridas
abertas, e o rosto pálido inchado com feridas, ignorando-me. Fomos amarradas
uma na outra, pulso com pulso. Naquele pequeno espaço de pedra aberto para o
céu, eles haviam erigido uma guilhotina. É a forma usual que executam uma
mulher espiã em Berlim.
Tínhamos que esperar enquanto eles preparavam isto e aquilo. Deixavam
um portão aberto para a rua abaixo para chocar e entreter os transeuntes,
hasteavam a lâmina e cordas nos lugares, etc. Não sei como a mecânica disso
funciona. Ela foi usada recentemente, com sangue ainda na lâmina. Ficamos
amarradas juntas em silêncio, e eu pensei, eles me farão assistir. Eles a matarão
primeiro e me farão assistir. Depois vão me matar.
Eu sabia que ela também sabia, mas é claro que não ia olhar nem falar
comigo, embora os dorsos de nossas mãos se tocassem.
Cinco minutos.
Disse meu nome a ela. Ela não respondeu.
Eles cortaram as cordas que nos prendiam. Eles a puxaram para frente e
eu assisti. Não desviei o olhar do rosto dela. Era tudo o que eu podia fazer.
Ela gritou para mim logo antes de eles a empurrarem ali, em posição, de
joelhos.
— Meu nome é Marie.
Não consigo acreditar que ainda estou viva; fui trazida de volta a esta mesma
mesa e forçada a pegar o lápis de novo. Só que é von Linden que está sentado do
outro lado da mesa, não E. ou T. Ele está de olho em mim, como lhe pedi para
fazer.
Quando esfrego os olhos, minhas mãos se afastam do rosto com o sangue
de Marie ainda rubro e fresco nos nós de meus dedos.
Perguntei a v. L. se eu podia escrever isso antes de continuar o trabalho do
dia. Ele disse que eu me prendo demais aos detalhes do que me acontece aqui.
Um registro interessante, mas não direto. Ele me permite apenas quinze minutos
para isso e está cronometrando.
Tenho um minuto sobrando. Gostaria de ter contado mais, feito justiça a
ela, dado a ela algo mais significativo que meu nome sem valor.
Após meu fiasco na noite passada, acho que eles a mataram por nenhum
motivo além de me assustar para confessar que menti para eles. É minha culpa
que ela esteja morta. Um dos meus maiores medos realizados.
Mas eu não menti.
Von Linden agora diz para mim: — Pare.
Ele se inclina para trás, observando-me com frieza. O fenol ainda está pousado lá
onde Engel deixou, mas não acho que irão usá-lo. Eu disse para ele me vigiar, e
ele está vigiando.
— Escreva, pequena Scheherazade[35] — diz. É uma ordem. — Conte
sobre seus últimos minutos no ar. Termine sua história.
O sangue de Marie mancha minha mão, figurativa e literalmente. Tenho
que terminar agora.
Você sabe que Mary, rainha da Escócia (cuja avó, aliás, era francesa, como a
minha; assim como a mãe dela), Mary , rainha da Escócia, tinha um cachorrinho,
um sky e terrier, que era fiel a ela. Instantes após Mary ser decapitada, as pessoas
que observavam viram sua saia se mexer e acharam que o corpo sem cabeça
estava tentando se levantar. Mas o movimento na verdade era seu cão, que ela
carregou até o cadafalso com ela, escondido na saia. Acredita-se que Mary
Stuart enfrentou sua execução com graça e coragem (ela vestia uma camisa
escarlate para sugerir que estava sendo martirizada). Mas não acho que ela teria
sido tão corajosa se não estivesse, em segredo, segurando com firmeza seu sky e
terrier, sentindo o pelo sedoso e quente dele contra sua pele trêmula.
Permitiram-me usar os últimos três dias para reler tudo que escrevi e
revisar. Isso faz sentido e é quase uma boa história.
Fräulein Engel ficará desapontada, no entanto, por não ter um final de
verdade. Sinto muito. Ela também viu as fotos; não há por que elaborar algo
esperançoso e desafiador se devo contar a verdade. Mas seja honesta você
mesma, Anna Engel, você não preferiria que Maddie batalhasse duro, como os
americanos dizem, e voltasse a salvo para a Inglaterra? Porque esse seria o final
feliz, o fim certo para uma história de aventuras para garotas.
Este monte de papel não fica muito bem empilhado, são páginas e páginas
de diferentes larguras, comprimentos e espessuras. Gosto da partitura para flauta
em que tive que escrever no final. Fui cuidadosa com ela. Claro que precisei usar
os dois lados e escrever sobre a música, mas fiz com bastante leveza, a lápis,
entre as notas, porque alguém talvez queira tocá-la novamente um dia. Não
Esther Lévi, de quem era aquela música, cujo nome classicamente bíblico e
hebraico está escrito com cuidado no topo de cada página; não sou idiota o
suficiente para achar que ela verá esta música de novo, seja ela quem for. Mas
talvez outra pessoa. Quando os bombardeios cessarem.
Quando a maré virar. E ela vai virar.
Uma coisa que notei, relendo a história, que nem mesmo
Hauptsturmführer von Linden reparou, é que não coloquei meu próprio nome em
nada que escrevi nas últimas três semanas. Vocês todos sabem meu nome, mas
não, eu acho, meu nome completo, então vou escrevê-lo em toda sua glória
pretensiosa. Eu costumava gostar de escrever meu nome completo quando era
pequena. Como você verá, era uma conquista e tanto para uma criança:
Julia Lindsay MacKenzie Wallace Beaufort-Stuart
É isso o que está escrito em meus documentos reais, que você não tem.
Meu nome é ele próprio um desafio contra o Führer, um nome muito mais
heroico que mereço, e eu ainda gosto de escrevê-lo, então vou escrever de novo,
do modo como o faço em meus cartões de dança:
Mas nunca penso em mim como Lady Julia. Penso em mim como Julie.
Não sou escocesa. Não sou Eva. Não sou Queenie. Já atendi pelos três, mas
nunca me apresentei por esses nomes. E como detestei ser Oficial de Voo
Beaufort-Stuart nestas últimas sete semanas! É assim que Hauptsturmführer von
Linden normalmente me chama, tão educado e formal: — Agora, Oficial de
Voo Beaufort-Stuart, você foi muito cooperativa hoje, então se já teve o bastante
para beber, vamos começar o terceiro conjunto de códigos. Por favor, seja
precisa, Oficial de Voo Beaufort-Stuart, ninguém quer ter que cravar esse
atiçador de brasas quente e vermelho através de seu olho. Alguém pode, por
favor, lavar a calcinha borrada da oficial de Voo Beaufort-Stuart antes de ela ser
levada de volta para o quarto?
Então mesmo sendo meu nome, também não penso em mim como Oficial
de Voo Beaufort-Stuart, não mais que como Scheherazade, o outro nome que ele
me deu.
Meu nome é Julie.
É assim que meus irmãos me chamam, como Maddie sempre me
chamou, e é assim que eu me chamo. É esse o nome que eu disse para Marie.
Oh, Deus, se eu parar de escrever agora eles vão levar estes papéis
embora, todos eles, os cartões amarelados de receitas e as folhas de receitas
médicas e os papéis de carta em relevo do Château de Bordeaux e o de música
para flauta, e eu não terei mais nada além de esperar pelo julgamento de von
Linden. Mary Stuart tinha seu sky e terrier. Que conforto levarei comigo na
minha execução? Qual o conforto para qualquer um de nós, Marie, Maddie, a
ajudante de cozinha ladra de repolho, a garota da flauta, o médico judeu,
sozinhos na guilhotina, no ar ou nos vagões de carga sufocantes?
E por quê? Por quê?
Tudo o que fiz foi comprar tempo para mim, o tempo de escrever isto. Não
disse nada de útil para ninguém. Apenas contei uma história.
Mas eu contei a verdade. Não é irônico? Eles me mandaram porque sou
muito boa para contar mentiras. Mas eu contei a verdade.
Venho até me lembrando de algumas últimas palavras famosas eletrizantes
que tenho guardado para o fim. São de Edith Cavell, a enfermeira britânica que
contrabandeou duzentos soldados Aliados para fora da Bélgica no último lote, a
guerra de 1914-1918, e que foi pega e fuzilada por traição. Seu monumento
feioso fica não muito longe da Trafalgar Square e eu reparei nele, não
bombardeado, mas enterrado em sacos de areia, quando estive em Londres pela
última vez (The last time I saw London). Algumas de suas últimas palavras estão
gravadas no pedestal da estátua:
“Patriotismo não é suficiente — não devo ter ódio ou rancor por ninguém.”
Ela SEMPRE tinha uma pomba sobre a cabeça, mesmo sob os sacos de
areia, e acho que o único motivo porque ela consegue não sentir qualquer ódio
por esses ratos voadores é porque está morta há vinte e cinco anos e não sabe que
eles estão lá.
Acho que suas últimas palavras na verdade foram: “Estou feliz em morrer
por meu país”. Não posso dizer que acredito honestamente nessa bobajada
piedosa. Beije-me, Hardy. A verdade é, eu gosto mais de “Beije-me, Hardy ”.
Essas são belas últimas palavras. Nelson foi sincero ao dizer isso. Edith Cavell
estava enganando a si mesma. Nelson estava sendo honesto.
Eu também.
Terminei agora, então vou apenas ficar aqui escrevendo isso de novo e de
novo até não conseguir mais ficar acordada ou alguém descobrir o que estou
fazendo e me tirar a caneta. Eu contei a verdade.
Eu contei a verdade. Eu contei a verdade. Eu contei a verdade. Eu contei a
verdade. Eu contei a verdade. Eu contei a verdade. Eu contei a verdade. Eu
contei a verdade. Eu contei a verdade. Eu contei a verdade. Eu contei a verdade.
Eu contei a verdade. Eu contei a verdade. Eu contei a verdade. Eu contei a
verdade. Eu contei a verdade. Eu contei a verdade. Eu contei a verdade. Eu
contei a verdade. Eu contei a verdade. Eu contei a verdade. Eu contei a verdade.
Eu contei a verdade. Eu contei a verdade. Eu contei
O.HdV.A. 1872 B. N 4 CdB
SS-Sturmbannführer N. J. Ferber
Ormaie
30 de novembro de 1943
NOTAS DE ACIDENTE
Agora que penso a respeito, o cabo de ajuste do estabilizador horizontal deve ter
arrebentado durante a recuperação do mergulho ou eu não teria conseguido
mergulhar.
Essa ideia me deu arrepios, pois é.
Certo. Onde estávamos? Presas na subida e ainda sem nenhum controle do leme.
Pressão/ temperaturas do motor e nível de combustível aceitáveis, então
continuamos para o destino, que (com ajuda da passageira) não tive problema
em localizar. Mas na chegada, a descida foi muito difícil e fiquei preocupada
com aterrissagem; concordamos que a passageira devia pular na pista, pois tem
treinamento apropriado e tinha mais chance de sobreviver a um salto de
paraquedas do que a uma queda com tanque de combustível pela metade e carga
de 250 quilos de explosivos 808 e fio detonador.
Já tinha tentado duas voltas sobre o campo antes da saída da passageira e
foi muito cansativo, então fiquei voando por meia hora para queimar combustível
antes de uma tentativa final de aterrissar. A pista provisória permanecia
iluminada, então concluí que ainda esperavam por mim — era possível que
minha passageira tivesse descido com segurança e informado o comitê de
recepção sobre o dano ao avião. Manter o nível do voo continuou sendo
desafiador e no final tentei uma descida.
Não sei ao certo como consegui. Pura obstinação, acho. O leme não me
deixava glissar e, mesmo em velocidade baixa, com flaps abaixados e nenhuma
energia, o maldito queria manter o nariz erguido. Não consegui soltar para
acender a luz de aterrissagem, a cauda escura caiu antes e pulou em pé de novo
— gostaria de ter visto isso do chão. Todo o estabilizador horizontal se partiu e o
pobre Lizzie parou com o fundo da fuselagem preso no solo macio no canto mais
distante do campo, perto de onde os rios se encontram, o avião inteiro apontando
para o céu como uma pedra ereta. Pensei na queda do Puss Moth de Dy mpna lá
em Highdown Rise, só que ao contrário. Só entendi o que aconteceu depois,
quando o manche me atingiu no estômago e tirou todo ar de mim ao mesmo
tempo em que a parte de trás da minha cabeça arremeteu-se contra o
revestimento blindado do anteparo. Acordei presa pelas costas na cabine, olhando
para as estrelas e imaginando quanto tempo tinha antes da explosão.
Não estou conseguindo fazer com que isso se pareça com um relatório de
acidente, droga. Pelo menos estou registrando enquanto lembro.
Tinha desligado a ignição e o combustível antes de pousar, seguindo o
Manual do Piloto e Ordens Permanentes para aterrissagens forçadas, então
estava tudo quieto, alguns rangidos e roncos, mas nada mais. Foi quando três
homens de nosso comitê de recepção, um deles inglês (um agente do SOE, o
organizador deste circuito, codinome Paul), abriram a cobertura e me puxaram
da cabine de ponta-cabeça. Nós quatro caímos no chão em um grande monte.
Estas foram minhas primeiras palavras em solo francês:
— Desculpe, desculpe, eu sinto muito!
Muitas e muitas vezes, pensando no azarado par de refugiados que deveria
ser transportado de volta à Inglaterra em minha viagem de retorno. Além disso,
lembrei-me de dizer em francês: — Je suis désolée! — Oh, que desastre.
Eles me ajudaram a sentar e tentaram limpar a lama de mim.
— Você deve ser nossa Verity — o organizador do SOE Paul disse em
inglês.
— Não sou a Verity !
Isso não era informação útil, mas foi o que me escapou.
Confusão e caos e uma arma apontada para a minha cabeça. Sinto muito
dizer que a arma era demais para mim depois de meu primeiro acidente
relatável, em um avião que eu provavelmente não deveria estar pilotando, e caí
em prantos.
— Não é Verity ! Quem diabos é você?
— Kitty hawk — solucei. — Codinome Kitty hawk. Primeira Oficial, Air
Transport Auxiliary .
— Kitty hawk! Meu Deus! — Exclamou o agente inglês. — Você me levou
para Tarefas Especiais da RAF na noite em que vim para a França! — Paul
explicou sobre mim em francês para seus companheiros e voltou-se para me
dizer: — Estávamos esperando o Peter!
— Ele sofreu uma colisão de carro nesta tarde. Eu não devia...
Ela cobriu minha boca com uma grande mão enlameada e ordenou:
— Não diga nada que a possa comprometer.
Comecei a chorar de novo.
— O que aconteceu? — Ele quis saber.
— Fogo antiaéreo em Angers — solucei. Essa era minha reação normal e
apropriada a armas e bombas vindo uma hora e meia depois do normal. — Pôs
fogo na cauda e desconectou o cabo do estabilizador horizontal e acho que um
dos cabos do leme também. Tive que mergulhar para apagar o fogo, nocauteei a
pobre Ju... Verity lá atrás, e tive que pilotar o avião com tanta força na última
parte da viagem que não pude olhar para o mapa.
E mais soluços, soluços, soluços, totalmente vergonhoso.
— Você foi atingida?
Todos ficaram atônitos. Não porque fui atingida, descobri mais tarde, mas
porque consegui não cair em chamas sobre Angers e entreguei, a salvo, os 250
quilos de explosivos 808 para eles. Eles foram extremamente simpáticos comigo
desde então, todos eles. Na verdade não mereço isso. Há apenas uma razão para
não ter caído em chamas em Angers, e é porque eu sabia que tinha Julie atrás de
mim. Nunca teria a presença de espírito de apagar o fogo se não estivesse
tentando salvar a vida dela.
— Receio que terei que destruir seu avião — Paul disse em seguida.
Não entendi o que ele queria dizer de primeira, já que achava que fiz um
trabalho brilhante em destruí-lo eu mesma.
— Não poderemos usar este campo de novo — ele disse. — Uma pena. No
entanto...
Eles tinham atirado em um sentinela alemão.
Eu realmente não devia estar escrevendo isso.
Não me importo. Vou queimar depois. Não consigo pensar direito a não ser
que eu escreva.
Eles atiraram em um sentinela alemão. Ele chegou de bicicleta no
momento errado, enquanto eles montavam a pista provisória. Ele ficou lá por um
tempo observando e, como descobriram, anotando tudo. Quando o localizaram,
ele pedalou o mais rápido possível e eles não conseguiam persegui-lo a pé ou
pegar suas bicicletas a tempo para alcançá-lo, então o agente inglês atirou nele.
Simplesmente assim. Eles estavam felizes em terem conquistado uma bicicleta,
mas horrorizados por ter um corpo do qual se livrar.
O Lizzie destroçado, com a piloto viva, foi uma dádiva de Deus. Eles
teriam que destruir o avião de qualquer forma, para fazer parecer uma queda
em vez de um pouso planejado. Então, instalaram o patrulheiro morto na cabine
de piloto vestido com minha túnica e calça do ATA, acredite se quiser. Tiveram
que rasgar a calça até as costuras laterais para vesti-la no pobre homem e
mesmo assim não conseguiram prender, ele era muito maior que eu. Isso tudo
levou um tempo, e eu não ajudei muito, sentada toda atordoada no canto do
campo vestindo apenas combinação e calcinha sob o suéter e o sobretudo
emprestados. Mitraillette, que me deu seu pulôver, devia estar congelando com
apenas aquela blusa de babados sob o casaco. Também pegaram minhas botas e
estou de coração despedaçado por elas! Mas, além de minha bolsa de voo, todo
meu equipamento britânico de piloto teve que ser destruído, capacete,
paraquedas, tudo. Até a máscara de gás. Não sentirei falta disso. Tudo que ela
fazia era ocupar espaço, pendurada inutilmente sobre meu ombro em sua
mochila como um albatroz cáqui sem asas pelas últimas quatro horas. Acho que
só a usei nos treinos.
Agora eu queria ter feito aquele curso de datilografia. Seria bom saber
estenografia. Consegui encaixar isso em três páginas do meu Manual do Piloto na
letra mais nanica de todas. Não seria ruim se fosse impossível de ler.
Preparar o avião para explodir em chamas levou um longo tempo e muita
correria ao luar. Suponho que eles sejam organizados, mas eu não fazia muita
ideia do que estava acontecendo e não era útil nem necessária a essa altura.
Também estava ficando com uma dor de cabeça de rachar, ansiosa a respeito de
Julie, imaginando por que eles não botavam fogo na droga do avião e pronto. A
verdade é que eles tinham um monte de equipamento de que queriam se livrar,
além do cadáver condenatório: meia dúzia de aparelhos de rádio inúteis que eles
desmontaram em partes, além de uns obsoletos que ninguém queria mais. Eles
mandaram alguém buscá-los no esconderijo, partiram nas bicicletas e voltaram
com carrinhos de mão. O celeiro que usaram para esconder essas coisas é onde
estou agora. O fazendeiro, dono deste lugar, abandonou um velho gramofone
sem o tubo, uma máquina de escrever quebrada em um estojo de papelão e uma
incubadora de pintinhos cheia de pedaços de fios curtos demais para conectar
qualquer coisa, para fazer parecer que o avião estava carregando uma carga
lotada de aparelhos de rádio! Mitraillette, a filha mais velha do fazendeiro, que
era a única outra garota ali além de mim, estava muito contente em encher o
avião de tralha.
— Onze rádios! — Ficava murmurando para si e rindo. — Onze rádios! —
Onze aparelhos de rádio sem fio. É uma piada porque é muito improvável
mandarmos onze aparelhos de uma vez. Cada aparelho está ligado ao seu
operador, e cada operador é equipado com código, cristais e frequências
distintos.
Isso vai confundir os alemães quando examinarem os destroços.
Os 250 quilos de explosivos 808 foram arrastados em uma carroça puxada
por cavalos. Levou tempo para achar tudo porque algumas das caixas haviam
caído da fuselagem danificada e da cabine traseira, que Julie deixou aberta, é
claro. Ela fez um ótimo trabalho amarrando a maior parte da carga. Foi tudo
feito ao luar porque ninguém ousava usar luz — havia um toque de recolher
cedo, então todos estavam ficando extremamente nervosos. Eu tinha aterrissado
depois da uma da manhã e levou cerca de uma hora para organizar a destruição
do Lizzie.
Não posso dizer que me sinto completamente segura nas mãos da
Resistência, mas eles certamente são habilidosos. Assim que os rádios e os rádios
de mentira foram empilhados e o alemão morto preso em seu lugar, eles
simplesmente abriram os tanques de combustível — o avião estava quase na
vertical e o combustível saiu escorrendo — e usaram um pouco de explosivo e
fio detonador para acendê-lo. Moleza. Foi uma fogueira muito alegre.
Deviam ser quase três da manhã quando corremos para longe do campo
enquanto o Ly sander de Peter explodia em chamas. Tive que subir em um dos
carrinhos de mão já que agora não tinha calça nem sapatos. Eles me
esconderam debaixo dos mesmos sacos que usaram para encobrir os rádios,
fedendo a cebola e vacas. Então me carregaram por uma série de escadas
improvisadas até um palheiro acima de outro palheiro no celeiro, onde estou
agora. É um espaço escondido, logo abaixo do topo do telhado. Posso sentar se
me posicionar bem abaixo do topo. Ainda não comecei a me sentir
claustrofóbica. Acho que passo mesmo a maior parte da vida confinada em
espaços apertados. Há bastante espaço para me esticar se eu deitar. Finja que é a
traseira de um Fox Moth, é tão frio quanto. Muito desconfortável para me lavar
— toda água em panelas sujas que têm que ser carregadas para cima e para
baixo nas escadas.
Não consigo pensar no que mais há para contar sobre a queda. Fui vestida,
alimentada e abrigada muito generosamente, considerando que todos serão
fuzilados se eu for descoberta. Sou um risco enorme, um perigo para mim
mesma e todos ao meu redor, provavelmente a única mulher piloto Aliada
derrubada fora da Rússia. Vi os panfletos. Dez mil francos de recompensa pela
captura da tripulação de voo ou da paraquedista, ou “mais sob certas
circunstâncias”. Certas circunstâncias provavelmente incluem uma garota que
pode dar à Luftwaffe a posição do Esquadrão da Lua da RAF.
Isso me aterroriza. Se eu nunca contar meu verdadeiro nome, talvez
ninguém note, mas, além disso tudo, sou judia. É verdade que fui ao liceu da
igreja da Inglaterra, nossa dieta não é nem um pouco kosher, nem mesmo em
feriados, e o vovô é o único de nós que vai à sinagoga. Mas ainda sou uma
Brodatt. Não acho que Hitler vai me poupar por não ter deus.
Melhor não pensar nisso.
Não me preocupei com nada no primeiro momento. Dormi direto por mais
de 24 horas, o que foi bom porque naquele dia a fazenda estava simplesmente
fervilhando de soldados alemães. O local da queda foi isolado por dois dias
enquanto eles tiravam fotos de todo ângulo possível, inclusive do ar, e
vasculhavam os destroços. Ainda está isolado, mas parece que tiveram
dificuldades em expulsar os abutres de sempre, os garotinhos em busca de
suvenires da RAF! Um hobby muito mais perigoso na França do que em casa.
Ainda estou toda dolorida. Não da queda, mas de segurar a droga do avião
em nível de voo durante a hora final inteira. Todos os músculos estão em chamas
pelos braços, das pontas dos dedos aos ombros e até mesmo nas costas. Sinto-me
como se tivesse lutado contra tigres. Não me importo em poder relaxar, na
verdade. Nunca me sinto realmente descansada, mesmo em meus dias de folga.
Eu poderia dormir por uma semana.
Começando a cabecear novamente agora. A luz entra através das ripas
presas com arame de galinheiro para manter pombas para fora. A plataforma
deste sótão fica a meio caminho das tábuas — se você suspeitasse e as contasse,
veria mais tábuas do lado de fora do que dentro. É um esconderijo inteligente,
mas não infalível. Antes de cair no sono de novo vou construir algum lugar para
esconder estas anotações idiotas. Se alguém ler isto, a corte marcial será o menor
dos meus problemas.
Queria que Julie aparecesse.
Passei toda a tarde (quinta, 14 de outubro) no piso de arame do celeiro
aprendendo a atirar com um revólver Colt .32. Que divertido. Mitraillette e alguns
de seus companheiros ficaram de guarda, Paul disponibilizou as aulas e a arma,
que pertence ao seu kit do SOE. Mas ele tem uma maior, Colt .38, de um
carregamento de armas. Todos acham que eu preciso de uma, pois não tenho
mais nada para me proteger — nenhum documento e muito pouco francês. Para
Paul sou apenas outra agente do SOE a ser treinada rapidamente. Não estou certa
como isso aconteceu, mas de qualquer forma estou aprendendo a ser proficiente
no sistema “Toque Duplo” do SOE. Você atira duas vezes, rapidamente, cada vez
que mira para nunca ter que levar nenhum prisioneiro. Sou uma atiradora
razoável. Acho que eu até consideraria um desafio bem satisfatório se não fosse
pelo barulho — e as mãos errantes de Paul. Lembro-me dele agora, daquele voo
de traslado na Inglaterra. A mão dele na minha coxa NO AR. Argh. Mitraillette
diz que não é só comigo, ele faz isso com toda mulher abaixo dos 40 que chega
perto o suficiente para ele tocar. Não sei como Julie consegue lidar com coisas
assim, e até incentivar isso, como parte de seu trabalho. Suponho que ela seja
mais ousada que eu, nisso e em tudo.
Mitraillette, ao que parece, não é o nome real da garota da Resistência. Ela
riu da minha idiotice de achar que era. É seu codinome. Ela me contou os dois, já
que é esquisito ouvir seu pai gritando seu nome verdadeiro logo abaixo de minha
janela encoberta quando ela deve ir alimentar as galinhas — é uma fazenda de
aves. Não vou escrever seu nome real. Mitraillette significa “submetralhadora”.
Combina com ela.
Maman, a mãe dela, é da Alsácia e todos os filhos falam alemão
fluentemente. Há uma irmã mais nova que eles chamam de La Cadette, acho
que significa “a caçula”. O irmão mais velho é oficial da Gestapo — um francês
verdadeiro que foi aceito como subalterno no quartel-general da Gestapo em
Ormaie. A família, incluindo Maman, despreza a colaboração nazista do garoto,
mas todos o bajulam e o paparicam quando ele está de visita. Parece que os
colaboracionistas são detestados com tanta violência em Ormaie que qualquer
um atiraria neles, até cidadãos comuns sem nenhuma conexão com a
Resistência, e ele tem que se manter de cabeça baixa. Acho que seu nome
verdadeiro é Etienne. Ele não sabe, mas está bem seguro. Ele é um ótimo
disfarce para o envolvimento da própria família com a Resistência e há ordens
para mantê-lo vivo.
Mitraillette passou mais de duas horas conversando comigo na noite
passada, aqui no escuro do sótão. O inglês dela é tão ruim quanto o meu francês,
mas embora a gente insista em misturar completamente as duas línguas, nos
entendemos muito bem. Ficamos observando a estrada enquanto eles
transportavam parte do explosivo. Ela tem um apito de madeira que imita o som
de um pássaro para avisar as pessoas embaixo caso ela veja luzes descendo a
colina. Desde que cheguei, o explosivo ficou não-muito-bem-escondido, sob
fardos de feno no chão do celeiro. A construção tem no mínimo trezentos anos,
provavelmente mais, com suas paredes de taipa no estilo enxaimel como
Wy thenshawe Hall, e se alguém derrubar um fósforo ou cigarro, o lugar todo vai
explodir como o Vesúvio. Não vou conseguir escapar de jeito nenhum. Procuro
não pensar nisso.
Também tento não me preocupar com Julie. Sei que anteontem ela
encontrou seu primeiro contato. Não sei onde nem quem, minha informação é
toda de terceira mão, mas é um alívio enorme saber que ela aterrissou em
segurança! Pelo que entendi, o comitê de recepção que preparou o campo de
pouso não tem conexão com os contatos pré-arranjados de Julie em Ormaie —
mais precisamente, são todos membros diferentes do mesmo circuito. Deve
funcionar como uma corrida de revezamento com Julie na posse do bastão, mas
ela perdeu o primeiro trecho da corrida, a conexão neste ponto. Provavelmente
por ter descido em lugar errado no escuro.
Devo me acostumar a chamá-la de Verity. Todo mundo se refere a ela
assim. O circuito dela se chama Damask, em homenagem a seu membro mais
venerável, que tem 83 anos e cultiva rosas — eles costumam nomear circuitos
com base em algum ofício. Não me disseram o nome do cultivador de rosas.
Ninguém usa, nem mesmo sabe, nomes verdadeiros. Eu não gostaria de revelar
o de Julie por acidente.
Sua tarefa é tão secreta, que seu primeiro contato não sabia que ela e os
equipamentos tinham chegado até ela mesma contar. Embora ele estivesse
ciente da queda de um Ly sander fora de Ormaie, não estava certo que ela tinha
sobrevivido até encontrá-la, e quando eles se falaram, nenhum dos dois sabia que
os explosivos também tinham aterrissado a salvo. Mas a notícia que se espalha
pelo circuito é que JulieVerity e os explosivos estão aqui. Próxima parada: a
prefeitura. Ela deve conseguir acesso aos arquivos da cidade e procurar os
desenhos originais do arquiteto do antigo prédio de hotel que a Gestapo de
Ormaie usa como quartel-general. Entretanto, ela não será capaz de fazer isso
até resolver o problema com a identidade.
Estamos quebrando a cabeça para descobrir como fazer isso. Mitraillette
está proibida de falar diretamente com o contato de JulieVerity, então deve
achar outra pessoa para entregar a mensagem. Eles mantêm suas tarefas e
nomes muito bem dissociados. E não queremos entregar os papéis de Verity
“Katharina Habitch” para ninguém além de Verity, ou seja, a própria Katharina.
Mitraillette vai tentar combinar para V buscá-los em uma das cachettes da
Resistência, suas caixas secretas de cartas. Isso significa que temos que passar a
mensagem de alguma maneira.
Digo “nós” como se eu fosse fazer algo dramático para ajudar, algo além
de ficar aqui sentada soprando os dedos para aquecê-los, na esperança de que
ninguém me encontre!
A operação é seguir em frente como planejado: eles têm o equipamento,
eles têm Verity, os contatos estão todos no lugar. Com um pouco de cuidado e
planejamento será a sede da Gestapo de Ormaie que explodirá como o Vesúvio,
e não este celeiro. Se ao menos Käthe Habitch não estivesse operando atrás de
linhas inimigas, por assim dizer, com documentos britânicos da Kitty hawk!
Estou começando a achar que foi uma de suas ideias menos inteligentes se
chamar Kitty Hawk em alemão. Muito meigo, mas não muito prático. Embora,
para ser justa, ela não esperava que eu viesse junto.
Desmontei o revólver de Paul e o montei de novo sete vezes. Não é tão
interessante quanto um motor de rádio.
Outro Ly sander desceu.
Inacreditável mas verdadeiro. Esse passou através da artilharia antiaérea e
chegou como planejado, uma moleza, a cerca de 110 quilômetros daqui, em 18
de outubro, segunda. Infelizmente o campo de pouso se transformou em um mar
de lama porque não houve nada além de chuva, chuva, chuva na última semana,
por toda a França, eu acho. O comitê de recepção lá no campo levou cinco horas
tentando desatolar o avião da lama. Eles engataram um par de touros a ele, pois
estava enlameado demais até para usar um trator, mas finalmente tiveram que
desistir porque estava quase amanhecendo. Então, destruíram outro avião e há
outro piloto das Tarefas Especiais preso aqui.
Digo outro, mas claro que não sou realmente das Tarefas Especiais. Há
algum conforto em não ser a única... Egoísta e sórdido da minha parte, eu sei,
mas não consigo evitar.
Houve conversas sobre tentar me tirar daqui naquele avião. Eles iam me
espremer com as duas pessoas que eu deveria ter transportado de volta à
Inglaterra naquele voo. Eu teria que sentar no chão, mas o SOE e o ATA estão
loucos para me ter em casa e me querem fora daqui. Não deu certo. Várias
coisas precisam ser organizadas e reorganizadas e, então, dão errado no último
minuto. Cada mensagem para Londres tem que ser codificada cuidadosamente e
entregue de bicicleta a um telégrafo escondido a dezesseis quilômetros daqui. A
mensagem talvez não seja enviada imediatamente, porque alguém mexeu na
folha na fechadura ou no cílio dobrado no bilhete deixado para o transportador, e
então eles têm que esperar três dias para se certificar que não estão sendo
vigiados. A chuva está horrível, com nuvens a mil pés e visibilidade próxima a
zero nos vales dos rios onde a névoa se acumula. Ninguém pode pousar aqui de
qualquer jeito. Não há nenhum campo mais próximo que Tours, a oitenta
quilômetros, para substituir aquele que eu arruinei.
Eles chamam um campo arruinado de brûlé, queimado. Que nem o meu.
Eles terão que enviar um Hudson para coletar todos nós, já que não há
espaço em um Ly sander. E isso significa esperar a lama secar.
Droga! Nunca fiquei tão molhada e infeliz por tanto tempo. É como viver
em uma barraca sem luz, sem calor. Eles empilham as colchas de penas de
ganso e de pele de carneiro perto de mim, mas a chuva outonal é constante, cinza
e pesada, impedindo as pessoas de fazer qualquer coisa, mesmo aquelas que não
estiverem presas em um espacinho encolhido sob o beiral. Estive lá embaixo
algumas vezes, eles tentam me servir uma refeição na casa da fazenda todos os
dias para me aquecer e quebrar a monotonia. Não escrevo nada aqui há uma
semana, pois meus dedos estão começando a ficar com perniose[36], é sempre
tão gelado. Preciso das luvas sem dedos que fiz do livro de modelos que a vovó
me deu, com as abas que viram para trás para você poder usar os dedos.
Essenciais para as Forças era o título do livro. Se eu soubesse o quanto aquelas
luvas seriam essenciais agora, eu nunca as teria tirado da minha bolsa de voo,
exceto para vesti-las. Diferentemente da máscara de gás insolente.
Queria ser escritora, ter as palavras certas para descrever a rica mistura de
medo e tédio que tenho vivido nos últimos dez dias, e que fica zanzando
indefinidamente na minha frente. Deve ser mais ou menos como ficar na prisão,
esperando ser condenada. Não exatamente aguardando por uma execução,
porque não sou desprovida de esperança, mas a possibilidade de que vai acabar
em morte está lá. É real.
Nesse meio-tempo meus dias são mais maçantes que a vida de uma
menina no moinho carregando peso, nada para fazer além de sugar os dedos
frios, como Jamie no mar do Norte, e me preocupar. Não sou acostumada a isso.
Sempre estou em ação, trabalhando em algo. Não sei como ocupar minha mente
sem que todo meu ser esteja ocupado. As outras garotas da Maidsend ficavam
roncando, tricotando ou fazendo as unhas quando a chuva caía com uma
visibilidade tão imprestável que ninguém podia voar. Tricotar nunca era o
suficiente. Ficava tão entediada com isso, não consigo me concentrar em nada
maior que meias ou luvas. Eu sempre acabava surrupiando uma bicicleta para ir
explorar.
Lembro-me da aventura de bicicleta, quando contei a Julie todos os meus
medos, que parecem tão triviais agora. O terror breve e repentino de bombas
explodindo não é igual ao medo interminável e que faz gelar os ossos de ser
descoberta e capturada. Ele nunca se vai. Não há alívio, nunca a possibilidade de
uma sirene anunciar que a barra está limpa. Você sempre se sente mal por
dentro, sabendo que o pior pode ocorrer a qualquer momento.
Eu disse que tinha medo do frio. É verdade que o frio é desconfortável,
mas... não é algo para se temer, não é? Quais são as dez coisas que me assustam
agora?
1) FOGO.
Não é frio nem escuridão. Ainda há uma grande pilha de explosivos 808
escondida sob os fardos de feno no chão deste celeiro. O cheiro, às vezes, é
esmagador. É como marzipã. Simplesmente não consigo esquecer que está lá. Se
um sentinela alemão enfiar o nariz aqui não sei como não vai senti-lo.
Isso me faz sonhar que estou eternamente enrolando cobertura para bolos
de frutas, acredite se quiser.
2) Bombas caindo sobre minha avó e meu avô. Isso não mudou.
3) Bombas caindo sobre Jamie. Na verdade eu me preocupo bem mais
com Jamie agora que conheço melhor aquilo contra o qual ele luta.
4) Item novo na lista: os campos de concentração nazistas. Não conheço
nenhum dos nomes, não sei onde ficam, suponho que não estive prestando
atenção. Eles nunca foram muito reais. Vovô urrando histórias sinistras no
Guardian não os tornou reais. Mas saber que tenho grandes chances de acabar
em um é mais assustador que qualquer notícia de jornal. Se eles me pegarem e
não atirarem direto, vão prender uma estrela amarela em mim e me enviar de
navio para um desses lugares horríveis, e ninguém nunca vai saber o que
aconteceu comigo.
5) CORTE MARCIAL
Estou tentando me lembrar de outros medos que contei a Julie. A maioria
dos que falamos naquele primeiro dia, na cantina, era tão idiota. Envelhecer!
Tenho vergonha de pensar nisso. As coisas que contei a ela na nossa aventura de
bicicleta eram melhores. Cães. Ah, lembrei de outro.
6) Paul. Tive que expulsá-lo daqui com uma arma. Era, claro, a própria
arma dele, a que ele me deu e me ensinou a usar. Talvez eu tenha sido dramática
demais ao puxar a arma para ele. Mas ele subiu no meu sótão, sozinho em plena
luz do dia, sem que ninguém da família soubesse que ele estava aqui, o que é
bem alarmante por si só. Eles são tão cuidadosos em manter controle de quem
vem e vai, e precisam confiar nele. Acho que tudo que ele queria era um beijo e
um abraço. Ele recuou parecendo muito magoado e me deixou sentindo culpada,
suja e hipócrita, tudo junto.
Fiquei terrivelmente mais assustada depois, quando pensei nisso, do que na
hora que aconteceu. Se ele, ou qualquer um, tentasse se forçar para cima de
mim, eu não teria como fugir. Não poderia chamar ajuda. Teria que aguentar
sem luta, e em silêncio, ou arriscaria me revelar para os nazistas.
Passei a noite toda acordada em pânico com a droga da arma de Paul na
mão, o ouvido atento pressionado contra o alçapão, esperando ele voltar e tentar
de novo sob o manto da escuridão. Como se ele não tivesse coisas melhores para
fazer sob o manto da escuridão! Finalmente adormeci e sonhei que havia um
soldado alemão esmurrando o alçapão. Quando ele o arrombou, atirei no rosto
dele. Acordei ofegante de horror, então adormeci e tive o mesmo sonho de novo
e de novo, pelo menos três vezes em seguida. Cada vez eu pensava: foi um sonho
antes, mas AGORA é real.
Quando Mitraillette apareceu para me trazer o desjejum racionado de pão,
cebolas e seu horrível café falso, desabafei toda a história sórdida. Em inglês,
claro. Ao terminar caí em lágrimas. Ela foi solidária, mas confusa. Não sei o
quanto entendeu e acho que não há nada que ela possa fazer a respeito disso de
qualquer jeito.
“Em inglês, claro” me leva ao medo número 7: ser inglesa. Acho que
contei a Julie que tinha medo de colocar o uniforme errado e de as pessoas rirem
do meu sotaque, e acho que de certa forma ainda me preocupo com essas coisas,
com mais motivos. Minhas roupas! As de Mitraillette não servem em mim na
cintura e quadris. Tenho que usar um vestido de sua mãe, fora de moda e
austero, algo em que nenhuma garota da minha geração gostaria de ser vista. O
pulôver de Mitraillette serve, e fiquei com um casaco de lã muitas vezes
remendado que pertencera ao irmão dela, mas a combinação dessas roupas
quentes por cima do vestido deselegante é estranha demais. O traje é completado
por tamancos de madeira, como os que o jardineiro da vovó usa em casa. Não
há esperança de me vestir melhor a não ser que gastemos os cupons de roupas de
Julie. Não me importo em não ter estilo, mas obviamente estou desfilando com
uma coleção estranha de descartes e, se for vista assim, as pessoas vão estranhar.
E meu sotaque! Bem.
Mitraillette fala que pode dizer pela MANEIRA COMO ANDO que não sou
de Ormaie. Se eu caminhasse até a loja da esquina vestida no auge da moda e
não soltasse uma palavra para ninguém, ainda trairia a mim e a todos ao meu
redor. Estou com tanto medo de deixá-los na mão.
Ah, sim, deixar as pessoas na mão. Esse próximo item é medo ou culpa?
Parece um pedaço de granito preso nas engrenagens de meu cérebro, deixando-
as em carne viva. Deixar as pessoas na mão. Uma grande lista circular de
fracassos e preocupação. E se eu for pega e revelar a localização do Esquadrão
da Lua da RAF? Já decepcionei cada um daqueles pilotos de Ly sander, que
gostavam de mim e me incentivaram tanto que foram estúpidos o suficiente para
me deixar levar um de seus aviões para a França. A executiva de Operações
Especiais também confiou em mim, sem mencionar os refugiados que eu
deveria recolher aqui. Sou um fracasso colossal em relação à minha viagem de
traslado do ATA, fiz besteira, estou indefinidamente fora de ação e temo trair
meus anfitriões por acidente, sendo descoberta na propriedade deles ou sendo
capturada e entregando-os sob pressão. Não acho que conseguiria manter
qualquer segredo da Gestapo se eles começassem a trabalhar em mim. Ah,
socorro — aqui estou eu de novo, de volta à localização do Esquadrão da Lua e
da Gestapo.
Tudo leva à Gestapo de Ormaie. Bem, eles podem ser o medo número 9.
A polícia secreta nazista, outra coisa que me deixa mal só de pensar. Estou quase
certa de que a sede da Gestapo de Ormaie será minha primeira parada caso eu
seja descoberta e mandada para a prisão, não importa qual.
A não ser que o quartel-general da Gestapo de Ormaie exploda em
pedacinhos primeiro. Mas não parece provável que isso aconteça logo. Faz dez
dias que chegamos aqui. Parte da razão de não ter escrito desde a semana
passada é porque não quero pôr no papel o que estou prestes a escrever, não
quero dar nenhum tipo de realidade a esse feio “talvez”. Além disso, se eu me
permitisse escrever nesta semana teria apenas desperdiçado metade do papel,
listando possibilidades e imaginando. Já faz tempo demais. É uma tortura, pura
tortura, esperar por notícias, por qualquer coisa.
Julie desapareceu.
É verdade que ela realizou seu primeiro encontro, na terça, 12 de outubro,
um dia depois de chegarmos aqui. Mas depois ela simplesmente desapareceu
como se nunca tivesse colocado os pés na França. Hoje é dia 21. Está sumida há
mais de uma semana.
Agora entendo por que a mãe dela faz o papel de Sra. Darling e deixa a
janela aberta nos quartos dos filhos quando eles estão fora. Se você fingir que
eles vão voltar, há esperança. Não acho que há coisa pior no mundo que não
saber o que aconteceu com seu filho, não saber nunca.
Aqui, isso acontece o tempo todo. As pessoas simplesmente somem, às
vezes, famílias inteiras. Ninguém nunca mais ouve falar delas. Desaparecem.
Pilotos alvejados, é claro, marinheiros atingidos por torpedos, é claro, isso é de se
esperar. Mas aqui na França isso acontece com pessoas comuns também. A casa
vizinha simplesmente aparece vazia uma manhã, ou o funcionário dos correios
não vem para o trabalho, ou seu amigo ou professor não comparece à aula.
Suponho que houvesse uma época, há alguns anos, em que existia a chance de
eles terem fugido para a Espanha ou para a Suíça. Mesmo agora, há uma
pequena esperança de que Julie tenha se escondido, até algum perigo
desconhecido passar, mas o mais frequente é que os rostos desaparecidos tenham
sido sugados pelos mecanismos da máquina mortal nazista, como um quero-
quero azarado batendo na hélice de um bombardeiro Lancaster. Não sobra nada
além de penas flutuando no rastro do avião, como se aquelas asas quentes e o
coração pulsante nunca tivessem existido.
Não há registro público das prisões. Elas acontecem todos os dias. Muitas
vezes as pessoas desviam o olhar se há uma briga na rua, para evitar entrar em
confusão.
Julie desapareceu.
Fico chocada ao escrever isto, ao ver isto aqui na margem de meu Manual
do Piloto ATA, ao lado de “De Havilland Mosquito — falha no motor após
decolagem”. Mas é verdade. Ela desapareceu. Ela pode até estar morta.
Tenho medo de ser pega. Tenho pavor de que Julie esteja morta. Mas de
todas as coisas, não há nada que me aterrorize mais que a grande chance — a
quase certeza — de que Julie é uma prisioneira da Gestapo de Ormaie.
Minha espinha formigou ao escrever isso e fico arrepiada de novo ao ler as
palavras que acabei de escrever.
Devo parar. Esta tinta é fantástica, ela não borra nem quando você chora
sobre ela.
Verity , Verity , devo me lembrar de chamá-la de Verity . Droga.
Eles não conseguem avançar, nenhum contato interno ainda. Com Julie
fora de cena, tudo está parado. Ela deveria ser o elo central dessa operação, a
informante, a tradutora que fala alemão se movimentando entre a prefeitura e o
quartel-general da Gestapo. Mitraillette não pode fazer isso porque ela é do local,
é suspeito demais. Agora todo o circuito Damask está no limite, temendo que a
captura de Julie os traia.
Quero dizer, que a própria Julie os traia. Delatando-os sob pressão. Quanto
mais longo o silêncio, maior a certeza de que ela foi capturada.
Enquanto isso, continuam tentando fazer algo em relação a mim. Já se
passaram mais de duas semanas. Nada mudou.
Tiraram uma foto minha. Levará um tempo até os negativos serem
revelados. Foi difícil combinar com o fotógrafo de confiança, que está ocupado
em muitas frentes. A maior parte da negociação não me envolveu. Mais uma
vez, eles se esforçaram muito por minha causa e pude ver o quanto a Maman de
Mitraillette estava nervosa em ter eu, o fotógrafo e Paul reunidos em sua sala de
estar.
A ideia é refazer a carte d’identité falsa de Verity para transformar
Kitty hawk — ou seja, eu — em Käthe, ou seja, Katharina Habicht. Eu me
tornaria a prima quieta e não muito esperta da Alsácia, cujos pais foram
bombardeados e que veio até aqui para cuidarem dela ao mesmo tempo em que
ela ajuda nos serviços da fazenda. É arriscado por inúmeros motivos, e o pior
deles é que sempre há a possibilidade de que, se Julie foi pega, ela pode já ter
comprometido o nome. Conversamos muito sobre isso — Mitraillette, Maman e
Papa, eu como consultora-chefe e Paul como tradutor. Se os nazistas pegaram
Verity, temos que concluir que: 1) eles também pegaram a licença de piloto e o
cartão do Registro Nacional de Margaret Brodatt e já sabem MEU nome
verdadeiro, e 2) Julie contou-lhes seu nome verdadeiro, porque como oficial
alistada sob a Convenção de Genebra é isso que deve fazer e é a melhor chance
que tem de ser tratada decentemente como prisioneira de guerra. Não achamos
que ela revelaria o nome na carte d’identité forjada, Katharina Habicht. Paul não
acha provável que perguntem, e mesmo que o façam, ela poderia dizer qualquer
coisa e eles nem saberiam a diferença. Ela poderia inventar um nome. E
inventaria. Ou talvez entregar Eva Seiler para eles.
Mas o verdadeiro motivo para ela não contar sobre Käthe Habicht é que
essa seria a única identidade que restaria para mim, caso eu tivesse pousado em
segurança.
O fotógrafo também trabalha para o inimigo. Pilotos britânicos verdadeiros
que sobrevoam a Europa levam algumas fotos em seu kit de emergência, caso
sejam atingidos e precisem de um documento falso. Mas minhas fotografias
estão sendo tiradas por um fotógrafo francês empregado oficialmente pela
Gestapo! Um de seus outros trabalhos é elaborar fotos ampliadas de meu
acidente. Ele trouxe algumas das cópias para nós. Impossível descrever o misto
de emoção e medo ao observá-lo soltar o fecho de barbante da pasta de papelão
e então puxar o papel reluzente, destinado à escrivaninha do capitão da Gestapo
em Ormaie. É como sentir o golpe dos primeiros dedos sombrios de ar frio
tocando suas asas, quando a nuvem de tempestade que você está tentando
ultrapassar começa a lhe alcançar. Estou perto assim da Gestapo de Ormaie. E o
fotógrafo pode me entregar com as fotos.
Ele me avisou em inglês:
— Não é bonito de se ver.
O mais perturbador era imaginar que podia ser eu. Aquele cadáver
terrivelmente carbonizado estava vestindo minhas roupas, osso e couro fundidos
em uma cabine estilhaçada no meu lugar. As asas do ATA ainda traçavam um
contorno pálido no caos afundado do esterno. Havia um detalhe surpreendente
nas asas fantasmagóricas, apenas nas asas — não dava para saber se era
necessariamente um brasão do ATA.
Não gostei. Por que focar na insígnia do piloto... Por quê?
— Para que isso? — Eu mal conseguia me virar em francês. — O que eles
farão com essas fotos?
— Há um piloto inglês mantido em Ormaie — o fotógrafo explicou. —
Eles querem mostrar essas fotos, fazer perguntas sobre elas.
Eles derrubaram um bombardeiro britânico nesta semana. Quando o clima
está bom temos enxames de aeronaves Aliadas voando todas as noites, e algumas
também de dia. Acho que paramos de bombardear a Itália desde a invasão
Aliada no mês passado, mas agora que a Itália declarou guerra à Alemanha, as
coisas estão esquentando pra valer. Estamos longe demais de Ormaie para ouvir
as sirenes a não ser que o vento esteja na direção correta. Mas dá para ver o céu
se iluminando quando os artilheiros no solo disparam nos aviões que passam.
Lá estava eu agarrando a foto em close de minhas asas queimadas,
tentando entendê-la. É a foto menos horrível do piloto falso, mas é a que me
perturbou mais. Finalmente ergui o olhar para Paul.
— O que um cara capturado de um esquadrão de bombardeiros vai saber
sobre um avião de reconhecimento destruído?
Ele deu de ombros.
— Responda você. Você é a piloto.
A folha de papel brilhante tremeu em minha mão.
Parei logo com aquilo. Pilote o avião, Maddie.
— Você acha que o aviador inglês capturado pode ser Verity ?
Paul deu de ombros de novo.
— Ela não é aviadora.
— E não é inglesa — acrescentei.
— Mas provavelmente está com sua licença de piloto inglesa e o cartão do
Registro Nacional — ressaltou Paul, com calma. — Não há fotografia na sua
identidade britânica, certo? Você é civil. Então mesmo se souberem seu nome
não vão saber a sua aparência. Diga-me, Kitty hawk, você acha que essas fotos
são bem convincentes? Você se reconheceria? Outra pessoa reconheceria?
Aquele cadáver derretido mal era reconhecível como um ser humano.
Mas aquelas asas do ATA... Ah, não quero que Julie veja essas fotos e digam que
ela está olhando para mim.
Porque ela conhece o avião. Não há como negar que é o mesmo avião, as
marcas ainda são visíveis, R 3892. Simplesmente não consigo pensar nisso, Julie
na prisão, tendo que olhar para essas fotos.
Eu disse para Paul: — Pergunte ao fotógrafo quanto tempo ele pode
protelar a entrega das fotos.
O fotógrafo me entendeu sem precisar de tradução.
— Eu espero — respondeu. — O capitão da Gestapo vai esperar. As fotos
não estavam boas quando as tirei, não estavam nítidas o suficiente e precisam ser
refeitas. Vai levar bastante tempo. O inglês deve contar outras coisas ao capitão.
Ele não verá as fotos do piloto ainda. Podemos entregar essas outras para
começar...
Ele tirou mais folhas brilhantes da pasta e entregou uma para mim. Era o
interior da cabine traseira, ocupada pelos restos fuliginosos dos “onze rádios” e
dos onze “aparelhos de telegrafia”.
Engasguei com o riso. Monstruoso de minha parte, eu sei, mas é uma foto
BRILHANTE, totalmente convincente. É a melhor coisa que vi nas últimas duas
semanas. Se eles capturaram Julie e lhe mostraram esta foto, será uma bênção.
Ela vai inventar operador e destino para cada um desses rádios falsos, e as
frequências e códigos deles. Ela vai levá-los a um beco sem saída.
— Oui, mais oui, oh, sim! — Gaguejei, um pouco histérica demais, e todos
franziram a testa para mim. Devolvi as duas fotos, a que vai quebrar o coração
de Julie e a que pode salvá-la. — Entregue para eles.
— Bom... — disse o fotógrafo, frio e neutro. — Bom, vai ser menos
problemático para mim se algumas das fotos forem produzidas a tempo. — Estou
tão... mortificada pelos riscos que todos assumem, as vidas duplas que levam,
como eles dão de ombros e continuam trabalhando. — Agora vamos tirar sua
foto, Mademoiselle Kitty hawk.
Maman fez um estardalhaço à minha volta e tentou deixar meus cabelos
bonitos. Inútil. O fotógrafo tirou três fotos e começou a rir.
— Seu sorriso está grande demais, mam’selle — disse. — Na França, nós
não gostamos desses cartões de identidade. Seu rosto deve ficar... neutro, oui?
Neutro. Como os suíços!
Então todos nós rimos, um pouco nervosos, e acho que acabei lançando um
olhar zangado. Tento mesmo sorrir para todos, é uma das poucas coisas que sei
sobre se disfarçar em território ocupado pelo inimigo. Isso e como disparar um
revólver usando o “toque duplo”.
Não posso nem dizer o quanto odeio Paul.
O fotógrafo também me trouxe uma calça de escalada forrada de lã que
pertencia à sua esposa, boa, bem-feita e não muito usada, que ele me deu depois
de deixar o equipamento de lado. Fiquei tão surpresa e agradecida que comecei a
chorar de novo. O pobre homem entendeu da maneira errada e se desculpou por
não trazer um vestido mais bonito! Maman caiu sobre mim, enxugando minhas
lágrimas com o avental com uma mão, mostrando-me o quanto a calça era
quente e grossa como a outra. Ela se preocupa muito comigo.
Paul se virou para o fotógrafo e fez um comentário em um tom de
camaradagem, como se estivessem compartilhando uma cerveja num pub. Mas
ele falou em inglês para eu poder entender, e ninguém mais entenderia exceto o
fotógrafo.
— Kitty hawk não se incomoda com calças. O que ela tem entre as pernas
ela não usa mesmo.
Odeio ele.
Sei que ele é o organizador, a pedra angular deste circuito da Resistência.
Sei que minha vida depende dele. Sei que posso confiar nele para me tirar daqui.
Mesmo assim eu o odeio.
O fotógrafo deu uma risada envergonhada para Paul, de homem para homem,
uma piadinha atrevida, e me lançou um olhar de soslaio para ver se ouvi aquilo.
Mas claro que eu estava chorando no grande abraço de fazendeira francesa de
Maman e parecia não ter ouvido. Fingi que não ouvi, porque era mais importante
agradecer apropriadamente ao fotógrafo que enfrentar Paul.
ODEIO ELE.
Depois que o fotógrafo saiu tive que ir a mais uma sessão de treino de tiro
com Paul. Ele AINDA não mantém as mãos quietas, mesmo depois de ser
alertado sob a mira da arma, mesmo com Mitraillette assistindo. Ele não as deixa
vagar, mas as coloca no seu braço ou ombro por tempo demais. Ele deve saber o
quanto eu gostaria de estourar seus miolos com sua própria arma. Mas ele
claramente vibra com o perigo, e apesar de meus sonhos violentos, não tenho isso
dentro de mim. Imagino que ele também saiba disso.
No último fim de semana de cada mês, Maman tem permissão para matar uma
galinha especialmente autorizada para poder fazer o jantar de domingo para
meia dúzia de oficiais da Gestapo. Como Etienne é daqui, sua família é obrigada
a receber seus superiores com certa regularidade, e é claro que os nazistas
sabem que a comida é melhor na fazenda do que na cidade. Passei todas as três
horas da última visita deles agarrando minha Colt .32 com tanta firmeza que
quatro dias depois minha mão ainda está rígida. Olhando de soslaio pelas tábuas
da parede do celeiro eu podia discernir apenas o capô de seu Mercedes-Benz
reluzente, onde eles o deixaram estacionado no pátio, e tive um vislumbre da
barra do longo casaco de couro do capitão, que ficou preso no para-lama quando
eles entraram.
Foi La Cadette, a irmã menor, que me contou sobre a visita. La Cadette na
verdade se chama Amélie. Parece meio tolo não escrever os nomes da família
agora, já que os nazistas os conhecem tão bem. Mas passei a pensar nos Thibaut
simplesmente como Maman e Papa. E não consigo pensar em Mitraillette como
Gabrielle-Thérèse, assim como não consigo ver Julie como Katharina. A família
deixa Amélie conduzir a conversa quando os nazistas ocupam sua cozinha. Ela
parece ter a cabeça oca mas encanta totalmente os visitantes com seu alemão
alsaciano fluente. Todos gostam dela.
Eles tentam tornar essa visita mensal informal, todos vestindo roupas civis,
embora todos tratem o capitão da Gestapo como se ele fosse o rei da Inglaterra.
Mitraillette e sua irmã concordam que ele é totalmente assustador: calmo e de
fala suave, que nunca diz nada sem pensar. Tem aproximadamente a idade de
Papa Thibaut, o fazendeiro. Todos os subordinados vivem com medo dele. O
capitão não demonstra preferências, mas gosta de conversar com Amélie e traz
algum presente para ela sempre que vem. Dessa vez foi uma caixa de fósforos
com o escudo do hotel que tomaram como escritório em relevo, C d B, Château
de Bordeaux. Amélie o deu para mim. Foi gentil da parte dela, mas não desejo
atear fogo em nada aqui!
Eles começam com bebidas. Os homens ficam todos em pé na cozinha
bebericando conhaque, La Cadette servindo, Mitraillette fica sentada
desconfortável com a moça alemã carrancuda que é arrastada para todo lugar
como secretária/criada/escrava do capitão; ela também é a motorista. Não bebe
conhaque com os homens, pois suas mãos estão ocupadas segurando a pasta de
arquivos do capitão, suas luvas e chapéu, durante toda a conversa fiada.
Hoje o irmão, Etienne, tinha um galo grande e feio na testa, sobre o olho
esquerdo, bem recente, um machucado roxo com um corte no centro, ainda
inchado. La Cadette ficou paparicando o irmão com compaixão, mas Maman e
Mitraillette foram mais contidas. Elas não ousaram perguntar como ele se
machucou, bem, sua irmãzinha ousou, mas ele não contaria. Ele também ficou
bem envergonhado com a atenção, o rebuliço feito diante de seu chefe, dois
colegas e também da outra garota.
Então La Cadette se vira para o capitão e pergunta: — O Etienne passa todo
o dia brigando com as pessoas? É como se ele estivesse de volta à escola!
— Seu irmão é muito bem-comportado — o capitão responde. — Mas de
vez em quando um prisioneiro perverso nos lembra o quanto o trabalho policial
pode ser perigoso.
— Seu trabalho também é perigoso?
— Não — ele responde suavemente. — Tenho um trabalho de escritório.
Tudo o que faço é falar com as pessoas.
— Prisioneiros perversos — ela assinala.
— É por isso que tenho seu irmão para me proteger.
A essa altura a secretária escrava ri bem, bem baixinho por trás da mão,
fingindo pigarrear e fazendo um aceno discreto para a cabeça machucada de
Etienne. E ela murmura para Mitraillette a seu lado:
— Foi uma mulher que fez isso.
— Ele mereceu? — Mitraillette sussurrou em resposta.
A secretária dá de ombros.
É um INFERNO não saber o que aconteceu ou o que está acontecendo com Julie.
Mais de três semanas agora, já em novembro. Silêncio completo. Ela poderia
estar até no lado oculto da lua. É incrível como são frágeis os fios em que você
começa a prender suas esperanças.
Eles não interrogam muitas mulheres em Ormaie. Geralmente as mandam
direto para a prisão em Paris, acho. Sei que meu coração realmente parou por
um segundo quando ouvi isso, e novamente quando eu escrevi.
“Foi uma mulher que fez isso.”
Não sei se estou decepcionada ou aliviada. Passei a maior parte de ontem
(domingo, 7 de novembro) tentando sair da França, e agora estou de volta aqui no
mesmo celeiro, exausta mas cheia de adrenalina, consigo escrever porque já
está clareando, e Paul me deu um tablete de Benzedrina ontem à noite para me
manter de pé.
Estou feliz em ter essas anotações de volta. Deixei-as aqui para não as ter
comigo se fosse pega durante a trilha de setenta e cinco quilômetros até o campo
de pouso. Claro que, como disse um milhão de vezes, eu não deveria fazer as
malditas anotações em primeiro lugar, mas acho que vou levá-las comigo da
próxima vez. Eu me senti quase como se estivesse me partindo ao meio ao deixá-
las aqui, e é um ato de traição perder meu Manual do Piloto.
Fui levada no porta-malas de um pequeno automóvel pertencente a um
amigo de Papa Thibaut, um Citroën Rosalie, motor de quatro cilindros, com pelo
menos dez anos de idade, funcionando apenas com uma mistura nojenta de
alcatrão de hulha e etanol de beterraba. O pobre motor odeia isso, engasgando e
cuspindo por todo o caminho e suponho que tive sorte em não asfixiar com o
escapamento. Papa Thibaut tem sua própria van para fazer entregas na fazenda,
mas tanto o veículo como o seu motorista são regulados com tanto cuidado que
não ousam usá-los para atividades da Resistência. Na viagem de ontem, uma
tarde de domingo, havia nada menos que seis postos de checagem pelos quais
passar, mais que um a cada quinze quilômetros. Eles nem sempre sabem onde os
postos de checagem estarão, e seria bom descobrir para podermos evitá-los a
caminho de casa após o toque de recolher. Eu estava na parte de trás com uma
cesta de piquenique de vime e também algumas galinhas — galinhas poedeiras
— que estavam sendo levadas legitimamente para outra fazenda. A confusão
feita pelas galinhas nos postos de checagem é inacreditável. Diferentemente de
mim, elas tinham seus próprios documentos.
Mas eram uma distração muito inteligente. Logo que alguém abria o porta-
malas, o que acontecia em metade dos postos, as galinhas começavam a se
agitar muito, como... bem, como galinhas! A dificuldade para mim, curvada no
fundo do porta-malas sob sacos vazios de alimentos, não era tentar evitar uma
parada cardíaca cada vez que alguém nos examinava, mas manter o controle
para não me revelar com uma risada histérica.
Levou séculos para chegarmos ao campo de pouso. Estava escurecendo
quando chegamos, sem as galinhas, deixadas em seu destino final. Tive que
esperar em meu esconderijo por quase uma hora enquanto a transação das
galinhas era concluída, mas eles guardaram um sanduíche e um gole de
conhaque para mim. Então, fomos para o campo, o terreno meio inclinado, mas
nada muito ruim, infelizmente alguns fios de eletricidade nas cercanias, não
gostei da aparência deles, e o piloto que não pousou aqui também não — já vou
chegar nisso...
Além de mim e das galinhas, nosso carro incluía o motorista amigo de
Papa Thibaut, o próprio Papa Thibaut para dar autenticidade à venda das
galinhas, Amélie e Mitraillette para justificar o piquenique de domingo, e Paul
pelo conhecimento geral e execução do plano. Paul sentou-se entre as garotas
durante todo o percurso com Amélie ronronando em seu ombro. Ela é ótima
atriz, La Cadette. Debaixo do banco de trás eles esconderam algumas Stens, a
submetralhadora xará de Mitraillette, e um rádio. O campo ficava logo no final
de uma estrada de terra, três portões de madeira para abrir e fechar no caminho,
com nossos guardas já postados em cada portão. Todos chegaram de bicicletas,
agora escondidas nos arbustos das laterais. Alguns dos ciclistas vieram em dupla
para que, quando os passageiros do avião fossem embora, não houvesse
bicicletas adicionais para levar. A tripulação de solo local ligou nosso rádio
conectando-o à bateria do pobre Rosalie e prendendo a antena a uma árvore que
também escondia convenientemente o carro de cima. A recepção estava
decente no começo, mas o vento ganhou força depois e ficou cada vez mais
difícil ouvir algo.
Reunimo-nos ao redor do equipamento quando a BBC entrou no ar, dois ou
três de nós com um fone de ouvido...
ICI LONDRES
Digo a Amélie para não pensar nisso. Repito o mesmo para mim. Mas, então,
digo a mim que devo pensar nisso. É REAL. Está acontecendo AGORA.
O que Jamie disse está me dando pesadelos. Se Julie não estiver morta, se
ela ainda não estiver morta, está contando comigo. Está me chamando,
sussurrando meu nome para si no escuro. O que posso fazer? Mal posso dormir.
Ando em círculos todas as noites tentando pensar numa saída. O QUE posso
fazer?
Encontrei um supercampo, bem longe daqui, entretanto. Foi durante um passeio
de bicicleta, o dia todo com M., sexta, 12 de novembro. É incrível como é difícil
achar um campo de pouso decente para o SOE. É tudo tão igual, fazenda após
fazenda, igrejas em toda encruzilhada e um forno comunitário de pão em toda
vila. Os campos são tão planos que você pode aterrissar de tudo em qualquer
lugar. Mas nunca há bons marcos noturnos ou qualquer tipo de cobertura para
uma equipe de recepção. Deve ser fantástico voar em tempos de paz.
Estou na França há cinco semanas.
Minhas pernas estão mais fortes do que nunca. Andei de bicicleta por uns
bons cem quilômetros duas vezes nesta semana: uma para o campo e mais uma
vez, dois dias depois, para levar Paul para vê-lo. Ele precisa que seu operador de
rádio mande um avião da RAF tirar fotos para a aprovação do Esquadrão da Lua.
Entre as maratonas de bicicleta passo a maior parte do tempo cuidando de
galinhas, aprendendo a conectar pequenos dispositivos explosivos e tentando ao
máximo não gritar feito uma louca, de repente, devido ao nervosismo.
A locutora Georgia Penn recebeu um “não” do chefe da Gestapo desta
região — um homem poderoso e terrível, chamado Ferber, parece... ele é o
chefe do capitão de Ormaie. Penn nos informou que planeja ignorar essa recusa
e tentar novamente indo direto ao capitão. Ela vai antedatar seu pedido, amarrá-
los em sua própria burocracia, sem que a mão direita saiba o que a esquerda está
fazendo. Uma mulher maravilhosa, mas totalmente louca, na minha opinião, e
espero que sua mão direita saiba o que a esquerda está fazendo.
Outro resgate de Ly sander está previsto para a noite de amanhã, terça, 16
de novembro, no mesmo campo infestado de postes próximo a Tours. O clima é
imprevisível, mas é nossa última chance antes de perdermos a lua de novembro.
Talvez eu volte para casa sem meu conhecimento em munição ser testado.
Não, ainda estou aqui. Droga de Rosalie.
Não posso culpar o pobre carro, acho, mas não gosto de acusar o motorista
de estúpido e bem-intencionado.
Ah, estou cansada. A lua subiu às dez na noite passada, então o avião não
chegaria até as duas da manhã. Paul veio me buscar após o toque de recolher e
fomos de bicicleta encontrar o carro, ele pedalando e eu atrás dele sobre uma
barra encravada no metal. Tive que me agarrar nele por oito quilômetros para
não cair. Aposto que ele adorou. O carro se atrasou para o encontro. O motorista
teve que evitar uma patrulha inesperada. Paul e eu ficamos meia hora tremendo
e batendo os pés perto da vala de drenagem onde escondemos a bicicleta. Não
sei se alguma vez meus dedos dos pés já ficaram tão frios, ali na lama gelada, no
meio de novembro, com tamancos de madeira... pensei muito em Jamie boiando
no mar do Norte. Estava quase chorando quando o carro chegou.
Havia apenas três de nós nessa viagem perigosa nos dois sentidos, eu não
queria arrastar Papa Thibaut nessa. Seu amigo, dono do carro, partiu em
velocidade máxima, a toda, em fuga, como sempre sem luzes, exceto pela
estreita lua minguante em ascensão. O Rosalie realmente não queria fugir a toda
e representava todo seu drama tísico costumeiro sempre que chegávamos a uma
subida, ofegando e tossindo como uma heroína de Dickens à beira da morte, e
finalmente parou. O motor ainda tossia um pouco, mas o carro apenas parou.
Simplesmente não conseguia subir a colina. O afogador estava cheio, mas os
cilindros patinavam de modo patético como se estivéssemos tentando fazer o
coitado funcionar à base de nada além de ar.
— Seu afogador não está funcionando — eu disse do banco traseiro.
Claro que o motorista não me entendeu, e eu não sabia como dizer
afogador em francês, nem Paul. É le starter, que não é o mesmo que o starter
que pode acionar seu motor em inglês. Seguiu-se uma confusão inacreditável.
Paul tentou traduzir desesperadamente, e o motorista se recusava a aceitar
conselhos de uma mocinha, ou seja qual for a palavra francesa para mocinha;
estou certa que a tradução direta em qualquer língua é próxima a “cabeça oca”,
que é como me chamam sempre que imaginam que não serei capaz de fazer
algo, como pilotar um avião, carregar uma arma, fazer uma bomba, consertar
um carro, etc. Então perdemos quinze minutos discutindo.
Finalmente, como ficou óbvio que o afogador não estava funcionando, o
motorista o sacudiu com violência suficiente para que algo voltasse ao lugar, e
após alguns sons mais saudáveis de tosse, o Rosalie relutante partiu novamente.
Toda essa rotina foi repetida detalhe por detalhe mais três vezes. QUATRO
VEZES NO TOTAL. O carro parou, eu disse que o afogador não estava
funcionando, Paul tentou traduzir sem sucesso, todos discutimos por quinze
minutos, o amigo de Papa Thibaut sacudiu a alavanca do afogador por um tempo
até que o Rosalie recuperasse a vida e rodasse de novo.
Tínhamos perdido uma hora, uma hora inteira, e eu estava furiosa. O
motorista francês também, cansado de receber gritos em inglês de uma mocinha
mais nova que sua própria filha. Toda vez que o carro funcionava, Paul estendia
a mão para trás e dava um aperto reconfortante em meu joelho, até eu
finalmente bater nele e mandar manter suas mãos sujas para si. Portanto,
mesmo com o carro em movimento, estávamos todos rosnando uns para os
outros como gatos de rua.
Eu não estava mais com medo de ser pega pelos nazistas ou preocupada
em chegar tarde demais para ser recolhida pelo Ly sander — ambas as opções
cada vez mais prováveis quanto maior o tempo na estrada. Estava irritada como
uma vespa porque sabia o que estava errado com o carro, e eles não me
deixavam fazer nada a respeito.
Quando o carro parou pela quinta vez passei por cima de Paul e saí.
— Não seja idiota, Kitty hawk — disse ele entre os dentes.
— Vou ANDAR até o campo — retruquei. — Sei as coordenadas e tenho
uma bússola. Vou ANDAR até lá e se estiver atrasada demais para encontrar o
avião vou ANDAR de volta a Ormaie, mas se você tentar me colocar nesse
carro francês, MAIS UMA VEZ, você vai ter que fazer o francês idiota que está
dirigindo abrir o motor para eu consertar o afogador AGORA.
— Meu Deus, não temos tempo para isso, já estamos atrasados uma hora e
meia...
— ABRA O MOTOR OU VOU ABRI-LO A TIROS.
Eu não falava a sério. Mas era uma ameaça inspirada, principalmente
porque me deu a ideia de erguer meu Colt .32 para a cabeça do motorista e fazê-
lo sair do carro.
Ele nem desligou a ignição, o motor ainda ofegava quando erguemos o
painel lateral do capô com o abridor de latas do canivete suíço de Etienne. Tudo
estava preto como piche abaixo dele. O motorista xingou e reclamou, mas Paul
murmurou palavras reconfortantes para ele em francês, já que eu não podia
mais ser detida. Mandei um deles segurar uma lanterna para mim enquanto o
outro fazia uma tenda com o casaco para esconder a luz. Oh, o parafuso que
prendia o cabo ao afogador tinha se soltado — provavelmente devido aos
malditos sacolejos — e a aba que deveria se fechar sobre a entrada de ar do
carburador não vedava direito. Tudo o que tive que fazer foi prender melhor o
parafuso com minha chave de fenda portátil furtada dos nazistas.
Fechei a tampa do motor, inclinei-me na porta do motorista, liguei o
afogador, e o motor rugiu de volta à vida como um zoológico repleto de leões
felizes.
Então, voltei ao meu lugar comportado no assento traseiro e não disse mais
nada até chegarmos ao campo, meia hora depois de o avião ter partido. A maior
parte do comitê de recepção também se fora, apenas alguns deles ainda
esperavam que aparecêssemos caso algo horrível tivesse acontecido conosco.
Eu estava irritada demais dessa vez para pensar em Dorothy no final de O
Mágico de Oz. Dei um chute tão forte no para-choque dianteiro de Rosalie que fiz
uma marca nele com meu tamanco de madeira. Todos ficaram chocados.
Aparentemente minha reputação era de ser quieta e chorona. Em uma palavra,
eles acham que sou molenga.
Paul explicou novamente:
— Eles não podiam esperar, está tão tarde que será dia quando eles
voltarem à Inglaterra. Eles não podiam arriscar serem pegos sobre a França à luz
do dia.
Então me senti egoísta, mandona e vil, e tentei me desculpar ao amigo de
Papa Thibaut, em meu francês porcaria, por ter amassado seu para-choque.
— Não, não, sou eu que devo agradecer você, mademoiselle — disse ele
em francês — você consertou meu afogador! — E abriu a porta para mim
galantemente. Nenhum sinal de que ele tinha desperdiçado mais uma noite
arriscando a vida por uma estrangeira ingrata que nunca seria capaz de pagá-lo.
Era o princípio da carona ao aeródromo levado ao extremo.
— Merci beaucoup, je suis désolée, muito obrigada, sinto muito — parece
que estou sempre dizendo isso.
Um dos membros do comitê de recepção enfiou a cabeça no carro depois
de mim.
— O aviador escocês pediu para dar isso a você.
Jamie me deixou suas botas.
Fiel à minha reputação de molenga, chorei durante a maior parte do
caminho até Ormaie, mas pelo menos meus pés estavam aquecidos.
Penn a encontrou. Georgia Penn A ENCONTROU! Julie desapareceu em 13 de
outubro e Penn falou com ela ontem, 19 de novembro. QUASE SEIS SEMANAS.
Não reconheço mais minhas emoções. Não há algo como pura alegria ou
dor. É horror e alívio misturado com pânico e gratidão. Julie está viva, ainda está
em Ormaie, inteira, com seu modo combativo costumeiro, cada fio elegante de
cabelo em seu lugar a cinco centímetros da gola, está até conseguindo fazer as
malditas unhas, sei lá como.
Mas ela é uma prisioneira. Eles a pegaram quase imediatamente. Ela olhou
para o lado errado antes de atravessar a rua. Típico de Julie. Oh, não sei se dou
risada ou choro. Estou tão cansada de chorar o tempo todo, mas chateada demais
para rir. Se tivesse a identidade certa com ela quando a interrogaram pela
primeira vez, talvez ela tivesse se safado. Ela não tinha chance sem o documento.
A Srta. Penn perguntou se podia entrevistar alguém que falasse inglês, e
elas puderam conversar cara a cara, sob vigilância, e Penn testou Julie pelo
codinome. Não lhe contaram o nome verdadeiro de Julie. Não sei qual foi a
justificativa para isso. Penn saiu bem convencida de que todo o cenário da
entrevista era uma farsa completa e que Julie estava sendo mantida sob rédea
curta. Invisível, mas presente. Acho que Julie sabia que se ela saísse da linha eles
silenciariam Penn também. Sei que ela nunca arriscaria isso. Ela nem ousou ir
contra as ordens e tentar dizer seu nome. Toda informação foi transmitida em
sugestões e palavras-código. O capitão e a garota escrava estavam lá, além de
mais um ou dois guardas, e todos ficaram sentados bebendo conhaque — exceto
a garota escrava, é claro! — no escritório superluxuoso do capitão onde Julie está
trabalhando temporariamente como tradutora. Então, na verdade, ela está
fazendo o que deveria fazer!
Nenhum nome dado, nenhum serviço ou posição militar revelado. Ela se
apresentou a Penn como radiotelegrafista. Disse aos nazistas que é operadora de
telégrafo. LOUCURA — não é por isso que ela está aqui, e agora eles fazem o
maior esforço para tirar códigos dela. Penn não tinha dúvidas de que
conseguiram códigos dela, devem ser obsoletos ou inventados, mas
definitivamente algo com que eles podem tentar trabalhar. Penn acha que é
exatamente por isso que disse ser uma radiotelegrafista — eles chamam de W/T
ou w/op no SOE, telegrafista: para ela poder passar códigos. É mais comum para
uma garota do SOE chegar à França como mensageira, mas se Julie dissesse que
era mensageira eles a teriam importunado sobre seu circuito. É mais fácil trair
um código obsoleto, suponho, que pessoas vivas, de verdade. E é a mais pura
verdade em relação ao treinamento original de Julie e sua comissão WAAF, e
está relacionado com as fotos que eles tiraram do local da queda, que certamente
mostraram para ela a essa altura. Enquanto estiverem concentrados nas
atividades de telegrafia inexistentes dela, eles não vão perguntar sobre a
Operação Exploda-a-Sede-da-Gestapo-de-Ormaie, ou seja lá qual for o nome.
Mostraram a Penn apenas alguns dos escritórios administrativos e um
dormitório vazio com quatro camas arrumadas. Não houve nenhum contato com
outros prisioneiros e nenhum sinal das condições em que são mantidos. Julie deu
algumas pistas. Ela disse...
Ela...
Julie estava...
— DROGA. Pilote o avião, Maddie.
RELATÓRIO DE ACIDENTE
Não sei como consegui continuar. Você simplesmente segue. Você precisa,
então você vai.
A ideia original, quando esperávamos ter vinte e quatro pessoas a mais
para movimentar e esconder, era transportá-los para a margem oposta onde eles
se separariam em grupos menores de dois ou três. Então dividiríamos nossa
própria equipe para guiá-los pelo mato até vários galpões e estábulos de vacas
para passar a noite, antes da tarefa mais complexa de contrabandeá-los a salvo
para fora da França através dos Pireneus ou do Canal da Mancha. Mas agora
tínhamos apenas cinco prisioneiros para esconder e só havia restado sete de nós,
então havia espaço para todos em uma viagem única até a vila na margem do
rio. Mitraillette decidiu nos manter todos juntos. Acho que nunca notei, tão
absorta em meus próprios medos e preocupações, mas ela era a segunda no
comando de Paul.
Não sei se conseguiríamos sem ela. Estávamos todos tão atordoados. Mas
ela nos conduziu como um demônio. — Vite! Vite! Rápido! — Ordens
sussurradas com decisão e em voz baixa, barcos colocados de volta nos suportes,
remos largados, tudo cuidadosamente seco com os lençóis para cobrir, que
depois escondemos embaixo de tábuas do piso. Você pode trabalhar atordoado.
Se alguém lhe der um trabalho que não exige pensar, você pode executá-lo
automaticamente, mesmo com o coração despedaçado. Mitraillette pensou em
tudo. Talvez já tenha feito isso antes? Esfregamos os remos e cascos levemente
com punhados de palha velha dos estábulos, deixando uma fina camada de pó
sobre tudo. Os cinco homens do ônibus prisional trabalhavam em silêncio e de
boa vontade ao nosso lado, ansiosos para ajudar. A casa de barcos estava perfeita
quando saímos, parecia não ser usada há anos.
Em seguida a equipe de busca nazista chegou e passamos uma hora
deitados na lama na margem do rio, escondidos nos juncos como Moisés,
esperando eles partirem. Eu podia ouvir a conversa deles com o zelador. Ele
voltou depois para trancar a casa de barcos e nos deu um sinal de que o caminho
estava livre. Agora havia soldados nazistas postados na entrada da frente, portanto
não buscaríamos o Rosalie em breve. Mas o zelador achava que era seguro
algumas bicicletas saírem pela trilha do rio, na margem oposta. A benzedrina foi
passada por todos. Tiramos uma das canoas mais uma vez e transportamos duas
das bicicletas, dois de nós, e dois dos prisioneiros fugitivos pelo rio e os
acompanhamos pela névoa.
A essa altura, um dos rapazes sobreviventes do ônibus não aguentou mais e
ficou paralisado, trêmulo. Mitraillette hesitou.
— Nous sommes faits — ela disse. — Já tivemos o suficiente.
Deitamos nos estábulos com as bicicletas. Não era o lugar mais seguro do
mundo.
Imagino qual seria agora o lugar mais seguro do mundo. Mesmo os países
neutros, Suécia e Suíça, estão cercados. A Irlanda, parada, continua dividida. Eles
têm que marcar a parte neutra com a palavra IRLANDA escrita em grandes
letras vermelhas de pedras caiadas, na esperança de que os alemães não joguem
bombas lá, pensando que é o lado britânico da fronteira norte. Eu vi do ar. Talvez
a América do Sul.
Ainda estávamos bem despertos quando a luz surgiu. Eu estava sentada
com os braços em volta dos joelhos, lado a lado com um dos homens que
escapou quando atirei em suas correntes. Os que estavam acorrentados tinham
que ficar conosco, porque tinham que se livrar dos grilhões nos tornozelos antes
de ir para qualquer lugar.
— Como eles pegaram você? O que você fez? — Disse, esquecendo-me
que ele era francês. No entanto, ele respondeu em inglês.
— Exatamente o que você fez — ele disse com amargura. — Explodi uma
ponte e falhei em deter o exército alemão.
— Por que eles simplesmente não atiraram em você?
Ele sorriu. Todos os dentes superiores haviam sido quebrados com
selvageria.
— O que você acha, gosse anglaise, jovem inglesa? Eles não podem
interrogar você se o matarem.
— Por que só alguns de vocês estavam acorrentados?
— Só fazem isso com os considerados perigosos. — Ele ainda sorria. Acho
que tinha motivos para estar otimista, ele recebeu uma segunda chance para a
vida, para a esperança. Uma chance pequena, mas melhor do que a que tinha
doze horas atrás. — Eles o acorrentam se acham que você é perigoso. A garota
com os braços amarrados para trás, você viu? Ela não era perigosa, ela era uma
collaboratrice, uma colaboradora. — Ele cuspiu na palha em desintegração.
Meu coração em pedaços se congelou. Eu sentia como se tivesse engolido
cacos de gelo.
— Pare — eu disse. — Tais-toi. CALE-SE.
Ele não me ouviu, ou não me levou a sério, e continuou implacavelmente:
— Melhor morta, aquela lá. Você a viu, mesmo deitada na estrada ontem à noite,
flertando com os guardas em alemão? Como os braços dela estavam amarrados,
alguém teria que ajudá-la, no caminho até onde estavam nos levando, a se
alimentar. Ela teria que oferecer favores aos guardas para convencê-los a fazer
isso. Nenhum de nós ajudaria.
Eu também sou perigosa, às vezes.
Naquela manhã eu era uma mina antipessoal, uma bomba borboleta,
inteira e tiquetaqueando, e esse homem tocou o fuso.
Não me lembro exatamente o que aconteceu. De tê-lo atacado. Mas a pele
dos nós dos meus dedos está rasgada no lugar onde meu pulso foi de encontro aos
dentes quebrados dele. Mitraillette diz que eles acharam que eu ia tentar arrancar
os olhos daquele homem com os dedos.
Eu me lembro de três pessoas me segurando e de gritar para ele: — Você
não a ajudaria a COMER E BEBER? ELA FARIA ISSO POR VOCÊ!
Então, em pânico, porque eu estava fazendo muito barulho, eles sentaram
em cima de mim novamente. Mas assim que me soltaram, joguei-me em cima
dele de novo.
— EU O LIBERTEI! Você ainda estaria ACORRENTADO e preso em um
vagão de carga fedido COMO UMA VACA se não fosse por mim! Você não
ajudaria outro prisioneiro a COMER E BEBER?
— Käthe, Käthe! — Mitraillette, chorando, tentou segurar meu rosto nas
mãos para me consolar e me calar. — Käthe, arrête, pare, pare! Tu dois, você
precisa! Espere, attends...
Ela ergueu uma caneca de estanho de café frio misturado com conhaque
na minha boca e me ajudou. Me ajudou a beber.
Aquela foi a primeira vez que ela me nocauteou. Leva trinta minutos para
a droga funcionar. Acho que tive sorte de eles não me baterem na cabeça com
uma bicicleta para acelerar as coisas.
Ainda não terminei de ler. Mal comecei. Tem centenas de páginas, metade em
pedacinhos de cartão. Maman Thibaut fica me fazendo mais café e as meninas
estão de vigilância na estrada e na rua de trás. Não consigo parar. Não sei se há
alguma urgência ou não, Engel talvez precise dos papéis de volta, porque há um
número de aparência oficial marcado no final com tinta vermelha, e uma ordem
de execução horrível em papel da Gestapo anexado pelo terrível Nikolaus Ferber.
Não é uma ordem, quero dizer, apenas uma recomendação, segundo a tradução
de Engel. Mas acho que ela estava a caminho de ser obedecida quando
detivemos o ônibus.
Posso dizer quando Julie estava chorando. Não só porque ela conta, mas porque a
escrita fica toda manchada e o papel enruga. Suas lágrimas, secas nessas
páginas, estão misturadas com as minhas, tornando-as úmidas novamente. Chorei
tanto por causa disso que estou começando a me sentir idiota. Eles mostraram
mesmo aquelas fotos malditas a ela. E ela lhes deu mesmo aqueles códigos —
onze conjuntos de poemas, senhas e frequências codificados. Onze conjuntos de
códigos, falsos, UM PARA CADA UM DE NOSSOS RÁDIOS FALSOS, um para
cada um dos onze rádios que plantamos no Ly sander destruído. Aquelas fotos
foram uma bênção. Ela poderia ter dito tanta coisa, ela sabia TANTO, e tudo o
que lhes deu foi um monte de códigos falsos.
Ela nem sequer contou meu codinome, embora eles devam ter perguntado.
Ela nunca contou o nome de Käthe Habicht, que poderia ter me entregado. Ela
nunca contou NADA.
Nomes nomes nomes. Como ela consegue? Cattercup — Stratfield —
SWINLEY??? Newbery College? Como ela consegue? Ela faz parecer que é tão
duro para ela passar a informação, e é tudo pura invenção de sua cabeça. Ela
nunca contou NADA. Acho que ela não deu o nome correto de nenhum
aeródromo em toda Grã-Bretanha, exceto Maidsend e Buscot, que, claro, eram
seus postos. Eles poderiam ter verificado essa informação facilmente. É tudo tão
próximo da verdade e tão descarado, sua identificação do avião é bem boa,
considerando o estardalhaço que ela faz sobre isso. Isso me faz lembrar do
primeiro dia em que a encontrei, dando essas direções em alemão. Tão tranquila
e resoluta, com tanta autoridade, de repente ela realmente era uma
radiotelegrafista, uma operadora de rádio alemã, ela era tão boa em fingir.
Quando eu pedi para ela ser Jamie, como ela se transformou de repente em
Jamie!
Sua confissão está cheia de erros. Fiz meu treinamento da Guarda Aérea
Civil em Barton, não Oakway, e a linha de pista na assim chamada Oakway é
elétrica e não a gás. Não voei para o castelo Craig na primeira vez em um
Spitfire, claro que era um BEAUFORT e ela sabia disso muito bem! Embora eu
tenha feito traslados de Spitfires para Deeside. Acho que ela realmente não
queria chamar atenção para nenhum nome verdadeiro. Ela chamou o líder do
esquadrão de Maidsend da RAF de Creighton e ela sabia perfeitamente que o
nome correto é Leland North. Creighton é o coronel em Kim. Eu sei, porque Julie
me fez ler — parte dele, tenho certeza, como um alerta de como nós duas
estávamos sendo preparadas para a máquina de guerra por aquele maldito oficial
da inteligência maquiavélico, cujo nome ela também conhecia muito bem.
Não me lembro nada da história da irmã de sua avó atirando no marido.
Claro que Julie teria que falsificar muito de nossas conversas para manter tudo
fluindo, nenhuma delas está exatamente como me recordo. No geral, está tudo lá
e eu reconheço, só acho que ela nunca me contou aquela história. Não tenho
nenhuma lembrança dela.
É estranho e insuportável. É como se ela estivesse tentando me dizer o que
queria que eu fizesse. Mas não tinha como ela saber o que ia acontecer, ou nem
mesmo que eu ia ler essas anotações. Ela achava que eu estava morta. Então isso
não devia ser direcionado para mim, mas então, por que contar?
O que é estranho nisso tudo é que, embora esteja cheio de bobagens, no
geral é verdade, Julie contou nossa história, minha e dela, nossa amizade, com
tanta sinceridade. Somos nós. Tivemos até o mesmo sonho ao mesmo tempo.
Como pudemos ter o mesmo sonho ao mesmo tempo? Como algo tão
maravilhoso e misterioso pode ser verdade? Mas é.
E isso, ainda mais maravilhoso e misterioso, também é verdade: quando
leio isso, o que Julie escreveu, ela volta à vida instantaneamente, inteira e intacta.
Com suas palavras em minha mente, ela é tão real quanto eu. Gloriosamente
travessa, incrivelmente charmosa, cheia de bobagens livrescas e linguagem
chula, corajosa e generosa. Ela está bem aqui. Com medo e exausta, sozinha,
mas lutando. Voando sob o luar prateado em um avião que não pode ser
aterrissado, preso na subida — viva, viva, VIVA.
C d B= Château de Bordeaux
H d V= Hôtel de Ville (prefeitura)
O.HdV.A. 1872 C. Nº 4 CdB
O= Ormaie? ... talvez
A/Anais, Arquivos?
C/Caixa
1872, pode ser o ano, ou arquivos 1872, caixa nº 4
ENTENDI
ARQUIVOS DA PREFEITURA DE ORMAIE DE 1872, CAIXA Nº 4,
CHÂTEAU DE BORDEAUX
Nós os pegamos. NÓS OS PEGAMOS.
Nossas celas são apenas quartos de hotel, mas somos presos como a
realeza. Além disso, há cães.
Na maioria estas adegas estão vazias por não serem seguras.
Há muitos elevadores de serviço, aparadores para levar bandejas para
cima, além de um grande para carregar engradados e coisas da rua principal.
Tem mais — eu sei que tem mais — Engel sublinhou todas as instruções de
vermelho — e vermelho é a cor dela, Julie disse. As páginas estão numeradas e
datadas em vermelho também. Julie mencionou que Engel teve que numerar as
páginas. Elas criaram isso entre elas, Julie Beaufort-Stuart e Anna Engel, e o
deram para eu usá-lo. O código não está em ordem, mas não precisa. Não é de
admirar que ela estivesse tão determinada a terminar...
Argh, tem TANTO PAPEL AQUI.
Aqui está...
Podemos entrar pelos porões, na frente e atrás. Há uma entrada na ruela abaixo
nos fundos e um elevador de carga na rua da frente. Os porões não são seguros e
eles usam os quartos como celas. Durante ataques aéreos, o lugar todo era
deixado desprotegido, exceto pelos cachorros. Teremos até duas horas. Podemos
desligar os fusíveis, desativar o gerador e encher os elevadores de comida de
explosivos 808 quando sairmos.
Julie incluiu a história de sua tia-avó porque achou que talvez tivéssemos
que explodir o local com ela dentro. Que talvez não houvesse outra maneira. E
queria que fizéssemos de qualquer jeito.
Mas não teremos que deixar nenhum dos prisioneiros lá dentro. Podemos
arrombar os quartos com pés de cabra e barras de metal para tirar todos de lá.
Os números de aparência oficial no final em tinta vermelha são uma
REFERÊNCIA AO ARQUIVO DA CIDADE. Devem ser as PLANTAS DO
ARQUITETO do Château de Bordeaux. Teremos um mapa do prédio.
Estamos chegando lá. Ainda somos uma equipe sensacional.
SOE LONDRES—W/T MSG, RASCUNHO PARA CODIFICAÇÃO
LAMENTO INFORMAR QUE SEU ORGANIZADOR CODINOME PAUL DO CIRCUITO
DAMASK E OFICIAL DE VOO JULIA BEAUFORT-STUART FORAM MORTOS EM AÇÃO
1 DEZ. 1943 PT PEDIDO DE VOO OPERACIONAL RAF NA FRANÇA SOBRE ORMAIE
NESTA LUA CHEIA SÁB. 11 DEZ. PARA CRIAR DISTRAÇÃO PERMITINDO
OPERAÇÃO VERITY
La Cadette recolheu os desenhos. Parece que qualquer um pode vasculhar os
arquivos da Prefeitura de Ormaie. É como um desprezo nazista pelo país
ocupado levado ao extremo, como se eles quisessem que os moradores locais
entrassem e saqueassem seu próprio patrimônio para que ninguém mais
precisasse se preocupar. Você é revistado ao entrar no prédio, claro, mas não na
saída, e eles nem olharam a identidade de Amélie. Ela disse que estava
trabalhando em um projeto escolar, fácil assim. Ela deveria dizer que estava
verificando um limite da fazenda Thibaut, mas quando viu como seria fácil
entrar e sair, criou uma história mais simples no ato. Ela é tão esperta.
Ela levou vinte minutos durante o intervalo de jantar da escola e deixou as
páginas para eu buscar, para que não fosse pega com elas por aí.
Provavelmente foi um erro pedir para ela deixá-las na cachette de Engel.
Penso nela como minha, mas é de Engel. Além disso, acho que devemos evitar
usar cafés. Gostaria de ter sido treinada para isso. No final, não fez diferença,
mas ah, como meu estômago se revirou quando entrei e vi Engel sentada à mesa.
Comecei a ir em direção a outra mesa, com meu sorriso falso idiota — faz
com que eu me sinta um zumbi nesta semana — mas ela acenou abruptamente.
— Salut, Käthe. — Ela deu um tapinha na cadeira ao seu lado. Quando me
sentei ela apagou o cigarro, acendeu outros dois e me ofereceu um. De alguma
maneira essa foi a coisa mais apavorante que já fiz, tocar com meus próprios
lábios esse cigarro que havia tocado os lábios de Anna Engel um segundo antes.
Eu sinto que a conheço tão intimamente, após ler a confissão de Julie. Ela deve
sentir o mesmo em relação a mim, embora eu ache que não a assusto tanto.
— Et ton amie, ça va? — Ela perguntou casualmente — Como está sua
amiga?
Desviei o olhar, engoli em seco, não consegui manter o sorriso falso. Dei
um trago no cigarro e engasguei, não fumava há um tempo e nunca aqueles
cigarros franceses. Após um ou dois minutos ela entendeu que aquilo que eu não
dizia não era um final feliz.
Ela xingou suavemente em francês, uma única palavra violenta de
decepção. Então parou e perguntou:
— Elle est morte?
Assenti. Sim, ela está morta.
— Viens — disse Engel, afastando a cadeira para trás. — Allons. Viens
marcher avec moi, j’ai des choses à te dire. — Se ela estivesse prestes a me
arrastar para a prisão, não acho que eu poderia ter recusado: — Vamos andar,
preciso te contar umas coisas? — Nenhuma escolha.
Levantei novamente na nuvem de fumo de Engel, nem tinha pedido nada,
pois sempre me apavora ter que falar francês com estranhos. Engel deu um
tapinha no grosso maço de papéis dobrado ao lado de seu cinzeiro, lembrando-
me. Eu o peguei e enfiei no bolso do casaco junto com a identidade de Käthe.
Era o meio da tarde, as ruas não muito cheias, e Engel passou para o inglês
quase direto, voltando ao francês apenas quando passávamos por alguém. É
muito estranho falar com ela em inglês. Ela soa como uma ianque. O sotaque é
americano e ela é bem fluente. Acho que Penn disse que ela frequentou a
universidade em Chicago.
Viramos a esquina da rua de trás e chegamos a Place des Hirondelles, a
praça da prefeitura, repleta de veículos blindados e sentinelas com cara de tédio.
— Tenho quase uma hora — disse Engel. — Meu intervalo para jantar.
Mas não aqui.
Concordei e a segui. Ela ficou falando o tempo todo, devíamos parecer
totalmente normais, duas amigas dando um passeio e fumando. Ela não usa
uniforme, é apenas uma funcionária, nem sequer tem uma posição.
Caminhamos pelo calçamento diante da prefeitura.
— Ela estava atravessando a rua, bem aqui, e olhou para o lado errado. —
Engel soprou uma forte nuvem de fumaça. — Que lugar idiota para se cometer
um erro desses, bem no meio de La Place des Hirondelles! Sempre tem alguém
de vigia aqui, a prefeitura de um lado e a Gestapo do outro.
— Foi a van dos Thibaut, não foi? — Eu disse com tristeza. — A van que
quase a atropelou, uma van francesa cheia de galinhas francesas, foi isso que ela
disse, nas primeiras páginas que escreveu.
— Não sei. A van já tinha ido embora quando cheguei aqui. Estou certa
que o motorista não queria se envolver em uma prisão. Toda Ormaie olha para o
outro lado quando há um espancamento na Place des Hirondelles, outro judeu
tirado do esconderijo ou algum idiota jogando esterco nas janelas do escritório.
Ela ergueu o olhar para as janelas agredidas, nenhum cadáver pendurado
lá nesta semana, graças a Deus.
— Ela foi uma lutadora e tanto, sua amiga — disse Engel. — Ela mordeu
um policial. Eles me fizeram vir e pôr clorofórmio nela, para nocauteá-la, sabe?
Havia quatro soldados que a seguravam quando cheguei correndo pela praça
com o clorofórmio, e ela ainda lutava. Ela também tentou me morder. Quando o
gás finalmente a dominou foi como ver uma luz se apagando...
— Eu sei. Eu sei.
Estávamos fora da praça agora. Viramos para olhar uma para a outra
exatamente no mesmo instante. Seus olhos são fantásticos.
— Transformamos este lugar em uma verdadeira merda — ela disse. —
Havia rosas naquela praça quando fui enviada aqui pela primeira vez. Agora não
há nada além de lama e caminhões. Penso nela toda vez que atravesso aquelas
pedras, três vezes por dia. Odeio isso. — Ela desviou o olhar. — Vamos.
Podemos caminhar ao longo do rio por cerca de meio quilômetro. Já esteve lá?
— Não.
— Ainda é bonito.
Ela acendeu outro cigarro. Era seu terceiro em cerca de cinco minutos.
Nem imagino como ela consegue comprar tudo isso ou mesmo onde ela os
adquire, já que mulheres não podem mais comprar cigarros em Ormaie.
— Já dei clorofórmio a outras pessoas antes. É algo que eles esperam de
mim, parte do meu trabalho. Sou química, estudei farmácia nos Estados Unidos,
mas nunca me desprezei tanto quanto naquele dia, ela era tão pequena e...
Ela tropeçou nas palavras e tive que morder o interior das bochechas para
me impedir de chorar.
— Tão forte, tão bela, era como quebrar as asas de um falcão, cobrir uma
fonte límpida com tijolos, desenterrar rosas para ter espaço para estacionar um
tanque. Inútil e feio. Ela era simplesmente cheia de vida e ousadia num
momento, e no instante seguinte não era nada além de uma casca sem sentidos
com a cara na sarjeta...
— EU SEI — disse.
Ela me observou com curiosidade, franzindo a testa, vasculhando meu
rosto com seus olhos afiados e claros.
— Sabe mesmo?
— Ela era minha melhor amiga — retruquei entre os dentes.
Anna Engel assentiu.
— Eu sei. Agh, você deve me odiar.
— Não. Não, sinto muito. Diga-me. Por favor.
— Aqui está o rio — disse Anna, e atravessamos outra rua. Havia uma
grade por toda a margem do rio e nos apoiamos nela. No passado, existiam aqui
olmos ladeando as duas margens do Poitou e agora não há nada além de tocos,
porque ao longo dos últimos três anos foram todos cortados para virar lenha. Mas
ela estava certa, a fileira de casas históricas na margem oposta ainda é bonita.
Anna respirou fundo e falou novamente.
— Quando ela desmaiou, eu a virei para ver se estava armada, e ela estava
segurando a echarpe de seda enrolada na mão. Ela devia estar agarrando-a
durante toda a luta, e quando perdeu a consciência, seus dedos afrouxaram. Eu
não devia revistá-la direito, isso é trabalho de outra pessoa, mas me perguntei o
que ela protegia com tanta obstinação no punho fechado — uma pílula de
suicídio, talvez — e ergui a echarpe de sua mão aberta...
Ela levantou a própria palma contra a grade, demonstrando.
— Em sua mão havia um borrão de tinta. Na echarpe havia a impressão
perfeitamente inversa de um número de referência de arquivo da prefeitura de
Ormaie. Ela escreveu o número na mão e tentou esfregar com a echarpe quando
foi pega.
— Eu cuspi na echarpe, como se fosse por desprezo, sabe? E a amassei em
uma bola, que empurrei de volta na mão dela. Mas, esfreguei a seda úmida com
força contra a sua mão para borrar os números e fechei seus dedos moles ao
redor dela. Assim, tudo o que descobriram foi um pedaço de tecido manchado de
tinta, e ninguém nunca perguntou sobre ele porque ela estava preenchendo
formulários no escritório de racionamento logo antes de ser pega, sob o pretexto
de uma tarefa para uma avó idosa inventada, e os dedos estavam cobertos de
tinta de qualquer maneira.
Uma revoada de pombos esperançosos pousou na calçada ao redor de
nossos pés. Sempre me admiro com a maneira como eles voam e pousam, sem
pular ou se espatifar. Ninguém os ensina, eles o fazem instintivamente. Ratos
voadores, mas como pousam esteticamente.
— Como você sabia para que ela queria o número? — Eu disse finalmente.
— Ela me contou — disse Anna.
— Não.
— Ela me revelou. No final, depois de ter acabado. Ela estava escrevendo
coisas sem sentido. Peguei a caneta para detê-la, e ela deixou sem nem resistir.
Estava cansada. Nós a cansamos. Ela olhava para mim sem esperança, agora
não haveria mais desculpas, nem mais adiamentos. As ordens de Ferber
deveriam estar envoltas em segredo, mas nós duas sabíamos o que ele diria para
von Linden fazer com ela. Para onde a enviariam.
Anna bateu o dorso da mão levemente contra a grade para dar ênfase e
demonstrou com seu cigarro, segurando-o como se fosse uma caneta.
— Na minha própria mão escrevi: 72 B4 CdB.
Ela deu uma tragada no cigarro-caneta, endireitando-se, e começou a me
contar:
— Ela era a única que conseguia ver. Antes que a tinta secasse, fechei os
dedos e borrei as letras em uma mancha ilegível. Recolhi as páginas que ela tinha
terminado e as misturei. Então, ela disse: “é meu”. Eu sabia que ela não estava
falando do monte de papéis e cartões soltos que eu estava empilhando. Ela falava
sobre o número do arquivo que anotei na mão. Então perguntei qual era a
utilidade daquilo para ela e ela respondeu: “nenhuma, não mais. Mas se eu
pudesse...”. Lembro que perguntei com calma o que ela faria com aquilo ou o
que eu deveria fazer. Ela estreitou os olhos como um rato encurralado e disse:
“ponha fogo nisso e exploda esse lugar. Isso seria o melhor a fazer”. Segurei sua
pilha de papel contra o peito. As instruções dela. Ela ergueu o olhar para mim de
modo desafiador e acusador, sabe? “Anna, o anjo vingador”, disse ela e em
seguida riu de mim. Ela riu e disse, “bem, o problema é seu agora”.
Anna jogou o cigarro acabado no Poitou e acendeu outro.
— Você devia ir para casa, Käthe — disse de repente. — Essa garota
inglesa que vende motocicletas para judeus, essa Maddie Brodatt, ela a colocará
em apuros. Você deveria voltar para sua casa na Alsácia amanhã, se puder, e
deixar Maddie por conta própria.
Tirar Käthe de cena antes que algo aconteça, faz sentido. Será bem mais
seguro para os Thibaut. Embora eu odeie voltar a me esconder. Amanhã à noite
voltarei ao sótão do celeiro, e agora está ainda mais frio lá que em outubro.
— E você? — Eu quis saber.
— Vou voltar a Berlim. Candidatei-me a uma transferência há umas
semanas, quando começamos a interrogá-la e àquela garota francesa patética.
Deus. — Ela estremeceu, fumando furiosamente. — Que trabalhos de merda
eles me dão. Ravensbrück e Ormaie. Pelo menos quando eu encomendava
remédios para Natzweiler eu não precisava ver o que faziam com eles. De
qualquer forma, ficarei aqui só até o Natal.
— Talvez você esteja mais segura aqui. Estamos bombardeando Berlim —
eu disse. — Estamos bombardeando há quase duas semanas.
— Eu sei — respondeu ela. — Também escutamos a BBC. A Blitz de
Berlim. Bem, provavelmente nós merecemos.
— Não acho que ninguém mereça, na verdade.
Ela se virou repentinamente e me encarou de modo severo com aqueles
olhos claros e de um verde vítreo.
— Exceto o Castelo dos Assassinos, certo?
— O que você acha? — Falei com raiva.
Ela deu de ombros e se virou para retornar à Place des Hirondelles. Seu
tempo estava acabando.
Sabe quem ela me lembrou? Isso é loucura. Ela parecia Eva Seiler.
Não Julie normal, não muito, mas Julie quando estava brava. Pensei nela
me contando a história de seu interrogatório falso no treinamento do SOE, em
clara violação do Ato Secreto Oficial, a única vez que consigo me lembrar dela
fumando feito doida, como Engel, e xingando como um estivador. “E seis horas
depois eu sabia que não podia aguentar mais, mas eu estaria condenada se
desistisse e dissesse meu nome. Então, fingi desmaiar e todos entraram em
pânico e foram correndo atrás de um médico. Malditos bastardos de merda.”
Engel e eu não conversamos muito no caminho de volta. Ela me ofereceu
outro cigarro, e eu tive um momento de rebelião.
— Você nunca deu nenhum a Julie.
— Nunca dei nenhum a Julie! — Engel soltou uma risada atônita. — Eu dei
a ela metade do meu salário em cigarros, aquela pequena selvagem escocesa
gananciosa! Ela quase me levou à falência. Fumou o equivalente a seus cinco
anos de carreira como piloto!
— Ela nunca disse! Sequer insinuou! Nenhuma vez!
— O que você acha que aconteceria com ela — Engel disse com frieza —
se ela tivesse escrito isso? O que aconteceria comigo?
Ela estendeu o cigarro oferecido.
Eu aceitei.
Caminhamos em silêncio por um tempo, duas amigas fumando juntas.
Sim, certo, senhorita.
— Como você conseguiu a história de Julie? — Falei de repente.
— A senhoria de von Linden pegou para mim. Ele a mantinha na
escrivaninha do quarto, e enquanto ele estava fora, ela jogou tudo em uma sacola
de roupas para lavar. Disse-lhe que usou para acender o fogo da cozinha —
parece mesmo uma pilha de lixo, todos aqueles malditos cartões de receita e os
formulários rabiscados.
— Ele acreditou nisso? — Eu disse, surpresa.
Ela deu de ombros.
— Não tinha escolha. A senhoria sofrerá por isso: leite e ovos ficaram
limitados estritamente a seus inquilinos e a família inteira está sob toque de
recolher na própria casa, eles não podem sentar-se à noite, têm que ir para cama
logo após o jantar. Ela tem que lavar toda a louça da noite anterior de manhã,
antes de preparar o café para os hóspedes. As crianças foram todas amarradas.
— Oh, NÃO! — Exclamei.
— Foi leve o castigo. As crianças poderiam ter sido levadas embora. Ou a
mulher mandada para a prisão. Mas von Linden tem um pequeno fraco por
crianças.
Eu havia deixado minha bicicleta em uma rua que levava à praça. Assim
que segurei o guidão, Anna colocou a mão sobre a minha. Ela empurrou algo
pesado, frio e fino na minha mão.
É uma chave.
— Eles me pediram para levar um pouco de sabonete para esfregar nela
quando ela fez aquela entrevista — disse Anna. — Algo cheiroso e agradável. Eu
tinha um pouco que consegui nos Estados Unidos, sabe como às vezes guardamos
algumas coisas; consegui fazer uma impressão da chave para a porta de serviço
dos fundos. Esta é nova. Acho que você tem tudo o que precisa agora.
Apertei sua mão com força.
— Danke, Anna.
— Se cuide, Käthe.
Naquele momento, como se ela o tivesse convocado ao falar seu nome, o
próprio Amadeus von Linden virou a esquina, andando na direção da Place des
Hirondelles.
— Guten Tag , Fräulein Engel — ele disse cordialmente, e ela soltou o
cigarro, o amassou com o pé, endireitou as costas e a gola do casaco, tudo em
uma onda de pânico ensaiada. Também derrubei o cigarro, parecia a coisa certa
a fazer. Ela lhe disse algo sobre mim — ela segurou meu braço rapidamente,
como se fossemos velhas amigas, e a ouvi dizer o nome de Käthe e dos Thibaut.
Estava me apresentando, provavelmente. Ele estendeu a mão.
Fiquei absolutamente congelada por cerca de cinco segundos.
— Hauptsturmführer von Linden — Anna me incitou com seriedade.
Coloquei a chave no bolso do casaco com as plantas do arquiteto e minha
identidade forjada.
— Hauptsturmführer von Linden — repeti, e apertei sua mão, sorrindo
feito uma maluca.
Nunca tive um inimigo mortal. Nem sequer sabia o que isso significava.
Algo tirado de Sherlock Holmes ou de Shakespeare. Como podia todo meu ser,
toda minha vida até este ponto, se comparar com um homem em um combate
mortal?
Ele ficou olhando através de mim, distraído com seus próprios problemas
colossais. Nunca lhe ocorreu que eu podia contar as coordenadas secretas do
aeródromo do Esquadrão da Lua, ou dar os nomes de meia dúzia de agentes da
Resistência aqui na sua própria cidade, ou que planejava explodir toda a sua
administração em cinco dias. Nunca percebeu que eu era sua inimiga em todos
os sentidos, sua adversária. Sou tudo contra o que ele está lutando, sou britânica e
judia, no ATA sou uma mulher que faz trabalho de homem e recebe pagamento
de homem, e minha obrigação é entregar aviões que destruirão seu regime. Ele
nunca imaginou que eu sabia o que ele fez: que observou e tomou notas, enquanto
minha melhor amiga estava de roupa de baixo, amarrada a uma cadeira, e
queimavam buracos em seus pulsos e garganta... e que eu sabia que ele ordenara
isso, que eu sabia que, apesar de suas hesitações, ele seguiu ordens como um
covarde e a mandou embora para ser usada como cobaia de experiências até seu
coração falhar. Nunca pensou que agora ele olhava para sua mestra, para a
única pessoa no mundo que segurava seu destino bem entre as mãos. Eu, em
roupas de segunda mão remendadas, cabelo maltratado e sorriso idiota. E que
meu ódio por ele é puro, negro e impiedoso. E que não acredito em Deus, mas se
acreditasse, seria o Deus de Moisés, feroz, exigente e EM BUSCA DE
VINGANÇA e...
Não interessa se sinto pena dele ou não. Era o trabalho de Julie e agora é o meu.
Ele disse algo educado para mim, com o rosto neutro. Olhei para Anna,
que acenou uma vez com a cabeça.
— Ja, mein Hauptsturmführer — respondi entre os dentes. Anna me deu
um chute certeiro no tornozelo e se intrometeu para dar uma desculpa no meu
lugar. Coloquei a mão no bolso e senti o estalo do papel grosso de setenta anos e o
peso da nova chave na costura da lã puída.
Eles acenaram com a cabeça para mim e partiram juntos. Pobre Anna.
Gostei muito dela.
Käthe retornou à Alsácia e eu estou esperando pela lua de novo. Tudo em seu
lugar e com a confirmação da passagem de um bombardeiro para sábado à
noite. Independentemente do sucesso da Op. Verity, vão enviar um Ly sander
para me buscar, no campo que encontrei, no domingo ou na segunda, tudo isso se
o clima permitir e, é claro, se pudermos recuperar o Rosalie. Está muito difícil
dormir e quando consigo só tenho pesadelos sobre pilotar aviões em chamas com
afogadores defeituosos, ser forçada a cortar a garganta de Julie com o canivete
de Etienne, etc. Se eu acordo berrando três vezes por noite não faz muito sentido
tentar me esconder. Estou voando sozinha.
Queimando queimando queimando queimando
Decapite-me ou me enforque
Isso nunca vai me aterrorizar
Vou queimar Auchindoon
Antes de a vida me deixar
RELATÓRIO DE ACIDENTE Nº 2
Ouvi um carro estacionar, então talvez logo estejam vindo me buscar, mas quero
terminar de contar sobre a saída da França, que provavelmente também me fará
chorar... que novidade.
Até comecei a choramingar só de ouvir a mensagem de rádio que avisava
que iam me buscar naquela noite: “Depois de um tempo, todas as crianças
contam a verdade” — em francês é Assez bientôt, tous les enfants disent la vérité.
Estou certa de que colocaram a palavra vérité de propósito, mas eles não podiam
saber que isso me faria lembrar da última página que Julie escreveu: “Eu contei
a verdade, várias vezes”.
Toda a rotina se tornou familiar agora, como um sonho recorrente. Campo
escuro, lampejos de luz, asas de Ly sander contra a lua. Só que fica cada vez
mais frio. Sem lama dessa vez, apesar da chuva da semana passada. O chão
solidamente congelado. Aterrissagem supersuave, o avião não quicou nenhuma
vez. Gosto de pensar que, em parte, foi devido à minha excelente seleção de
campo. Foi executada a troca de mercadorias e passageiros em apenas quinze
minutos. É assim que deve ser.
Meu artilheiro de retaguarda jamaicano já havia subido a bordo, e eu
estava com uma mão na escada para segui-lo quando o piloto gritou para mim:
— EI, KITTYHAWK! Você vai pilotar para nos tirar daqui?
Quem poderia ser além de Jamie Beaufort-Stuart?
— Venha, troque de lugar comigo — ele gritou. — Você pilotou para
chegar aqui, você pode pilotar para casa.
Não acredito que ele fez a oferta e muito menos que aceitei. Tudo tão
errado. Eu deveria ser testada de novo após a queda, no mínimo.
— Mas você nem queria que eu pilotasse PARA CÁ no começo! —
Balbuciei.
— Eu me preocupava com você na França, não com sua pilotagem! Já era
ruim que uma de vocês fosse, imagina perder AS DUAS. De qualquer maneira,
se formos atingidos, você é melhor em aterrissagem forçada que eu...
— Corte marcial, eles vão nos mandar para a corte marcial...
— Bobagem, você é CIVIL! Você não corre risco de ir para a corte
marcial desde que saiu da WAAF em 1941. O pior que o ATA pode fazer é lhe
dispensar, e vão fazer isso de qualquer maneira se forem fazer. SUBA AQUI!
O motor estava em ponto morto. Ele estava com o freio solto e havia
espaço suficiente apenas para trocarmos de lugar assim que ele pulou para a
beira da cabine. Nem tive que ajustar o assento porque somos exatamente da
mesma altura. Ele me deu seu capacete de piloto.
Não pude aguentar. Contei a ele.
— Eu a matei. Atirei nela.
— O quê?
— Fui eu. Atirei na Julie.
Por um momento parecia que nada mais importava ou tinha algum
significado no mundo todo. Tudo o que restava era eu no assento do piloto
daquele Ly sander e Jamie empoleirado na borda da cabine com a mão na
cobertura deslizante, sem ruídos além do rugido ocioso do motor, sem luz em
nenhum lugar além das três pequenas iluminações na pista e a lua refletida nos
mostradores. Finalmente Jamie fez uma pergunta breve:
— Foi intencional?
— Sim. Ela me pediu... eu não podia... não podia deixá-la na mão.
Após outro longo momento, Jamie disse abruptamente:
— Não comece a chorar, Kitty hawk! Com corte marcial ou não, você tem
que pilotar o avião agora, porque eu não confio em mim, não depois dessa
confissão. — Ele conseguiu se desvencilhar da beira da cabine e se balançou
ligeiramente do suporte da asa até a escada de acesso para os fundos. Eu o
observei subir na cabine de trás e depois de um tempo o ouvi se apresentando a
meu amigo jamaicano.
PILOTE O AVIÃO, MADDIE
Fechei a cobertura e comecei a realizar as familiares verificações pré-voo.
Então, logo que comecei a aumentar a potência, uma mão pousou em meu
ombro. Simplesmente assim, sem dizer nada. Ele simplesmente pôs a mão
através do anteparo, exatamente como ela fez, e apertou meu ombro. Ele tem
dedos muito fortes.
E ele manteve a mão lá por todo o caminho, mesmo quando estava lendo o
mapa e me dando as direções.
Portanto não estou voando sozinha agora, afinal.
Estou ficando sem papel. Este caderno de Etienne está quase cheio. Mas
tenho uma ideia do que fazer com tudo isso.
Com isso em mente, não acho que vou revelar o nome do oficial da
inteligência maquiavélico. Julie não disse que ele se apresentou com um número
na entrevista dela? Ele se apresentou como ele mesmo nessa tarde. Mas é
estranho escrever sobre isso sem usar um nome. John Balliol, talvez, um bom
nome irônico, o pobre rei escocês William Wallace perdeu a vida o defendendo.
Sir John Balliol. Estou ficando boa nisso. Talvez eu devesse me juntar à Executiva
de Operações Especiais afinal.
Oh, Maddiezinha, NEM EM UM MILHÃO DE ANOS.
Minha entrevista com John Balliol teve que ser na sala de interrogatório.
Acho que eles passam instruções ali além de fazer interrogatórios, mas é assim
que todos a chamam. Tinha que ser lá, não é, porque tinha que ser feito direito. O
Sargento Silvey me buscou. Sei que Silvey tem um fraco por mim, sempre teve,
e acho que ele está de coração quebrado por causa de Julie, mas ele foi bastante
rígido e formal ao me escoltar até a entrevista — estranho, sabe? Ele não gostava
de ter que fazer isso. Ele também não gostava que eu estivesse presa. Discutiu
sobre isso com o líder do esquadrão. Não importa, no final tudo se resume ao
protocolo, e a verdade é que eu não deveria ter pego aquele avião para a França
em primeiro lugar.
Então fui guiada até a sala de interrogatório sob escolta, e quando entrei
fiquei vergonhosamente ciente de como estive sempre maltrapilha, como uma
evacuada de Glasgow! Ainda vestia a calça de escalada da mulher do fotógrafo
francês, o casaco esfarrapado de Etienne Thibaut e as botas de Jamie. Ou seja,
as mesmas roupas que usei na semana passada, em boa parte dos últimos dois
meses e, por sinal, as mesmas roupas que usei quando explodi o centro da cidade
de Ormaie em cinzas. Sem artifícios femininos em que me apoiar, entrei na sala
de pedra caiada com o coração batendo louco contra as costelas como um
mecanismo de detonação. A sala estava exatamente igual a da primeira vez que
nos encontramos lá, há quase dois anos: duas cadeiras duras próximas ao
aquecedor elétrico, bule de chá coberto com tricô sobre a escrivaninha. Não
cheirava como a sala de interrogatório em Ormaie, mas era impossível não
pensar nela.
— Receio que isso possa levar algum tempo — Balliol disse se desculpando
e estendeu a mão para mim. — Espero que tenha conseguido dormir um pouco
na noite passada.
Ele estava sem óculos. Deve ser por isso que me pegou desprevenida, pois
ele parecia uma pessoa comum. E então a maneira como estendeu a mão para
mim. Eu estava instantaneamente em Ormaie de novo, na rua de pedras com a
chave nova e as plantas antigas no bolso e o coração cheio de ódio e vingança. Eu
apertei sua mão e disse com raiva:
— Ja, mein Hauptsturmführer.
Ele pareceu bastante assustado e tenho certeza de que fiquei vermelha
como um tomate. OH MADDIE, BELA MANEIRA DE COMEÇAR.
— Desculpe, desculpe! — Ofeguei. — Je suis désolée... — Inacreditável,
ainda estou tentando falar francês com as pessoas.
— Ainda não deixou totalmente as trincheiras, não é? — Ele comentou
baixinho. Com dedos leves nas minhas costas ele me conduziu a uma das
cadeiras. — Chá, Silvey — ele ordenou, e o Sargento Silvey serviu em silêncio e
saiu.
Os óculos de Balliol estavam sobre a escrivaninha. Ele os colocou e se
apoiou na borda da escrivaninha, segurando a xícara de chá no pires; suas mãos
estavam tão firmes que tive que colocar minha xícara no chão — não podia ter
porcelana fina tremendo no colo enquanto ele ficava lá me fixando com aqueles
olhos enormes ampliados. Caramba, Julie gostava bastante dele. Não consigo
imaginar por quê. Ele me apavora.
— Está com medo do quê, Maddie? — Disse em voz baixa. Nada daquela
besteira de “oficial de voo Beaufort-Stuart”.
Não vou dizer isso de novo. Não há mais ninguém para quem preciso dizer.
Essa foi a última vez...
— Eu matei Julie. Verity , quero dizer. Eu mesma atirei nela.
Ele pousou sua xícara na escrivaninha com um tinido e me encarou.
— Como?
— Tenho medo de ser condenada por assassinato.
Desviei o olhar dele, para o dreno no piso. Foi nesse lugar que o espião
alemão tentou estrangular Eva Seiler. Estremeci, estremeci de verdade, ao
perceber isso. Nunca tinha visto hematomas tão horríveis em toda a minha vida,
antes ou depois. Julie foi torturada nessa sala.
Quando voltei a olhar para Balliol, ele ainda se apoiava na escrivaninha,
com os ombros caídos, os óculos empurrados para trás na cabeça, apertando o
nariz com os dedos como se tivesse uma enxaqueca.
— Tenho medo de ser enforcada — acrescentei, com tristeza.
— Meu Deus, garota — ele exclamou, e baixou os óculos de volta aos
olhos. — Você vai ter que me contar o que aconteceu. Confesso que você me
assustou, mas como não estou usando minha peruca de juiz no momento, vamos
lá.
— Eles a estavam transportando em um ônibus cheio de prisioneiros para
um dos campos de concentração, e tentamos impedi-los...
Ele interrompeu com pesar:
— O assassinato precisa vir primeiro? Volte um pouco. — Ele me observou
com um franzir de testa ansioso. — Mea culpa, me desculpe. Escolha infeliz de
palavras. Você não disse que foi assassinato, disse? Você só receia que os outros
possam ver dessa forma… Possivelmente um erro ou um acidente. Bem,
continue, minha filha. Comece do começo, quando aterrissou na França.
Contei tudo, bem, quase tudo. Tem uma coisa que não contei, e essa coisa é
a enorme pilha de papel que venho carregando na minha bolsa de voo, tudo o que
Julie escreveu, tudo o que escrevi, todos seus pedaços de papel do hotel, partituras
e meu Manual do Piloto e o caderno de Etienne. Não lhe contei que havia um
registro escrito.
Estou surpresa em como me tornei uma boa mentirosa. Ou não uma
mentirosa exatamente, pois não menti para ele. A história que lhe entreguei não é
como um pulôver cheio de furos, com pontos caídos que vão se desfazer
facilmente quando começar a cutucá-los. Foi algo como — pule um, costure um,
passe por cima do ponto. Entre Penn e Engel havia informação suficiente para
não precisar mencionar que estava com a confissão escrita de Julie no meu
quarto. Porque de jeito nenhum vou entregá-la a um arquivista em Londres. É
minha.
E minhas próprias anotações, bem, preciso delas para fazer um relatório
adequado para o Comitê de Acidente.
Levou muito tempo, o relato. O Sargento Silvey nos trouxe outro bule de
chá e depois outro. No final, Balliol me assegurou baixinho:
— Não vão te enforcar.
— Mas eu sou responsável.
— Não mais que eu. — Ele desviou o olhar. — Torturada e enviada para
ser usada como cobaia de laboratório, meu Deus. Aquela moça simpática e
inteligente. Eu também posso... sou um desgraçado. Não, não vão te enforcar.
Ele soltou um suspiro longo e trêmulo.
— “Morta em ação” foi o que o primeiro contato nos disse, e o veredicto
“morta em ação” deve continuar — ele disse com firmeza. — Ela foi morta em
ação de acordo com seu relato, e considerando o número de pessoas que
morreram com tiros naquela noite, não acho que precisamos dar os detalhes de
quem atirou em quem. Sua história não deve sair deste prédio. Você não contou a
ninguém daqui o que aconteceu, contou?
— Contei ao irmão dela — disse. — E de qualquer jeito, você grampeou
esta sala. As pessoas ouvem através das janelas da cozinha. Isso vai vazar.
Ele me observou pensativo, balançando a cabeça.
— Tem algo sobre nós que você não saiba, Kitty hawk? Vamos guardar seu
segredo e você guarda os nossos. “Conversas descuidadas custam vidas.”
Na França custam mesmo. Não é tão engraçado quanto parece.
— Olhe, Maddie, vamos parar por meia hora, receio que haja um montão
de detalhes que tenho que lhe perguntar, que nós ainda nem tocamos, e acho que
perdi meu controle.
Ele puxou um lenço de seda com bolinhas, virou para o lado de novo e
assoou o nariz. Quando olhou para mim novamente, ofereceu a mão para eu me
levantar.
— Além disso, acho que você precisa de um cochilo.
O que Julie disse sobre mim? Sou treinada para reagir positivamente a
ordens de pessoas com autoridade. Voltei ao meu quarto, caí no sono por vinte
minutos e sonhei que Julie me ensinava a dançar foxtrote na cozinha do castelo
Craig. Claro que ela me mostrou como dançar, embora tenha sido em uma das
festas de Maidsend e não na cozinha do castelo, mas o sonho parecia tão real que
quando acordei, no início, não pude entender onde eu estava. E então foi como
ser chutada na cabeça pela desolação mais uma vez.
Exceto que agora, em vez de The Last Time I Saw Paris, eu tinha Dream a
Little Dream of Me presa na cabeça tocando repetidamente, que era o que a
banda tocava quando estávamos dançando em Maidsend. Não ligo nem um
pouco, estou tão cansada de The Last Time I Saw Paris. Se eu ouvir qualquer das
canções tocada em um lugar público com certeza vou começar a berrar
imediatamente.
Então, em seguida, eu e Balliol tivemos outra sessão, que foi um pouco
mais técnica, eu tendo que lembrar nomes e números que eu não sabia que sabia,
codinomes para cada agente da Resistência que me foi apresentado, com Balliol
registrando-os nas anotações em seu pequeno caderno de pelica, e a localização
de armas, suprimentos ou cachettes que eu soubesse. Chegou uma hora em que
eu estava inclinada com os cotovelos nos joelhos, e puxava o cabelo até as raízes
doerem, tentando chegar a um mapa preciso de coordenadas para o celeiro dos
Thibaut e a garagem da dama das rosas. Ocorreu-me que estava sentada lá,
arrancando o cabelo daquele jeito pelos últimos vinte minutos, e de repente fiquei
irritada.
Ergui a cabeça com um gesto brusco e perguntei furiosa:
— Por quê? Por que você se importa se consigo tirar as coordenadas da
minha cabeça? Posso inventar coordenadas do mesmo jeito que Julie inventava
códigos! Me dê um mapa e vou apontar para você, você não precisa que eu faça
isso! O que você realmente quer, seu maldito maquiavélico BASTARDO?
Ele ficou em silêncio por um minuto.
— Me pediram para testá-la um pouco — ele finalmente confessou. —
Aumentar a pressão, ver como você reage. Não tenho muita certeza do que fazer
com você, honestamente. O Ministro da Aeronáutica quer tirar sua licença e a
Executiva de Operações Especiais quer recomendá-la para uma Medalha
George. Eles gostariam que você ficasse com eles.
NEM EM UM MILHÃO DE ANOS.
Mas, mas. Meu sucesso como agente não oficial do SOE vai anular meu
voo à França como piloto não oficial da RAF. Não vou ganhar uma medalha, e
não quero ou mereço uma de jeito nenhum, mas também não vou perder minha
licença, quero dizer, pode-se dizer que eu já a perdi, mas eles vão revogá-la. Não
vão tirá-la de mim. Não vão nem tirar meu emprego. Oh, essa é uma boa razão
para chorar, lágrimas de alívio. Vão me deixar voar de novo. Terei que me
apresentar ao Comitê de Acidentes, mas será apenas a respeito do acidente em
si, como se eu mesma fosse do Esquadrão da Lua, colidindo meu próprio avião.
Não vou ser punida com nada mais.
E o Air Transport Auxiliary vai fazer traslados de aviões para a França, aí
vem a invasão. Não falta muito, na primavera. Vou voltar. Sei que vou voltar.
Estou exausta. Exceto pelo cochilo e por algumas horas depois que
chegamos, não durmo desde domingo à noite, e é terça-feira agora. Mais uma
coisa, no entanto, antes de dormir...
Balliol me deu uma cópia de uma mensagem que acabaram de receber e
decodificar do operador de radiotelegrafia de Damask.
26 de dezembro de 1943
Jamie entregou suas cartas — a sua e a de Julie, e eu as li. Elas vão ficar
aqui e ficarão seguras — o Ato Secreto Oficial não terá muita consequência em
uma casa que absorve segredos como umidade. Algumas folhas de receitas
culinárias e receituários médicos a mais, jogados no meio do conteúdo
acumulado de nossas duas bibliotecas, com certeza passarão despercebidos.
Quero contar o que Jamie disse quando me deu essas páginas:
“Maddie fez a coisa certa”.
Eu também digo isso.
Por favor, venha me ver, querida Maddie, assim que deixarem. Os
garotinhos estão todos perturbados com as notícias e você lhes fará bem. Talvez
eles também lhe façam bem. Eles são meu único consolo no momento, e tenho
estado terrivelmente ocupada tentando fazer um Natal “feliz” para eles. Ross e
Jock acabaram de perder os dois pais no bombardeio, então talvez eles fiquem
comigo quando a guerra acabar.
Eu também gostaria de “ficar” com você, se você deixar. Quero dizer, no
meu coração e como a melhor amiga da minha única filha. Seria como perder
duas filhas se você nos deixar agora.
Por favor, volte logo. A janela está sempre aberta.
Voe em segurança.
Com amor,
Esmé
P.S. Obrigada pela Eterpen. É extraordinária, nenhuma palavra desta carta ficou
borrada. Ninguém nunca saberá quantas lágrimas derramei enquanto escrevia
isto!
Fui sincera ao desejar que voe em segurança. E fui sincera ao pedir que
volte logo.
Questionamento da autora
Como alguém já disse, “Meus relatórios são muito ruins”. Tenho a obrigação
legal de escrever este posfácio, assim como tenho a obrigação legal de garantir
que este livro não viola o Ato Secreto Oficial. Isto pretende ser uma nota
histórica, e é doloroso para mim admitir que Codinome Verity é ficção — que
Julia Beaufort-Stuart e Maddie Brodatt, na verdade, não são pessoas reais, apenas
produtos de meu cérebro obcecado por aventuras.
Mas vou tentar. Este livro começou apenas como um retrato de uma garota
piloto do Air Transport Auxiliary. Sendo eu mesma mulher e piloto, queria
explorar as possibilidades que estariam abertas para mim durante a Segunda
Guerra Mundial. Já escrevera uma história de guerra sobre uma garota piloto
(“Something Worth Doing”, na Firebirds Soaring, editada por Shary n
November), mas queria escrever algo mais longo, com detalhes mais precisos e,
acima de tudo, plausíveis.
Comecei a pesquisa, na esperança de conseguir ideias para o enredo, e li
The Forgotten Pilots, de Lettice Curtis. É a história definitiva do Air Transport
Auxiliary e foi escrita por uma mulher, então pareceu certo e natural que minha
piloto ATA fosse uma mulher. Mas a história do ATA saiu de controle quando
(por acidente, enquanto preparava o jantar) me deparei com a base de Codinome
Verity e acrescentei uma agente da Special Operations Executive.
Seguiu-se mais leitura — tudo bem, eu podia ter uma piloto E uma espiã, e
ambas seriam garotas. E ainda seria plausível. Porque havia mulheres nessas
tarefas. Não havia muitas. Mas elas eram reais. Elas trabalhavam, sofriam e
lutavam tanto quanto qualquer homem. Muitas morreram.
Tenha em mente que apesar de minha busca quase exaustiva por exatidão
histórica, este livro não foi feito para ser um bom relato histórico, mas sim uma
boa história. Então há um grande salto de fé ficcional que o leitor tem que me
conceder, que é o voo de Maddie à França. As mulheres do ATA não podiam
sobrevoar a Europa até bem depois da invasão da Normandia, quando o território
ocupado pelos alemães voltou com segurança às mãos dos Aliados. (Quando
Maddie é chamada de “única mulher piloto Aliada derrubada fora da Rússia” é
uma referência às mulheres russas que eram pilotos de combate durante a
guerra.) Trabalhei muito para construir uma cadeia de eventos verossímil que
levasse à viagem do Ly sander de Maddie à França. O trunfo dela na realidade é
meu trunfo, o fato que ela pode autorizar o próprio voo.
Também inventei (como certa narradora pouco confiável) todos os nomes
próprios. A maioria deles, de qualquer jeito. Meus motivos são que é uma
maneira fácil de evitar incongruências históricas. Por exemplo, Oakway é
Ringway (atualmente Aeroporto de Manchester) levemente disfarçado; mas
diferente de Oakway, Ringway não tinha nenhum esquadrão no local no inverno
de 1940. Maidsend é um composto de muitos aeródromos de Kent. A cidade
francesa de Ormaie não existe, mas é livremente baseada em Poitiers.
No início de minha pesquisa também planejava dizer aqui que inventei os
trabalhos específicos de interrogador do SOE e piloto de táxi do SOE. Mas
acontece que havia uma piloto do ATA americano, Betty Lussier, que fez mais
ou menos os dois trabalhos em épocas diferentes durante a guerra (embora ela
trabalhasse para o OSS, os americanos, e não para o SOE). Sempre que descubro
a história de vida de outra mulher piloto ou agente da Resistência durante a
guerra, penso: não dá para inventar essas pessoas.
Eu adoraria repassar meu livro página por página e documentar de onde
vem cada mínimo detalhe: como descobri que se pode usar querosene para diluir
a tinta, ou que enfermeiras aprendizes usam pontas de caneta para fazer exames
de sangue ou ainda onde vi pela primeira vez um receituário judeu. É óbvio que
não posso explicar cada mínimo detalhe, mas como papel e tinta são a base deste
romance, vamos falar sobre a CANETA ESFEROGRÁFICA! Seria muito difícil
manter todos meus personagens ficcionais abastecidos com tinta e seria
conveniente dar canetas esferográficas para eles. Então pensei que devia
verificar para ter certeza de que canetas esferográficas existiam em 1943.
Descobri que existiam, mas com limitações. A caneta esferográfica foi
inventada por László Bíró, jornalista húngaro que voou para a Argentina para
escapar da ocupação alemã da Europa. Em 1943 ele licenciou sua invenção para
a RAF, e as primeiras canetas esferográficas foram fabricadas em Reading,
Inglaterra, pela fábrica de aviões Miles, para fornecer aos pilotos um suprimento
duradouro de tinta! Tive que usar uma amostra em Codinome Verity — as
canetas ainda não estavam no mercado. Mas era plausível. Isso é tudo que peço
— que meus detalhes sejam plausíveis. E adorei que a caneta esferográfica
tenha sido fabricada para a RAF. Quem diria?
Há uma história verdadeira, como essa, por trás de cada detalhe ou
episódio do livro. Acho que foi em um dos livros Horrible History, de Terry
Deary, que aprendi sobre o agente do SOE pego ao olhar para o lado errado
antes de atravessar uma rua francesa. Eu mesma quase fui morta ao cometer o
mesmo erro. Também passei algumas tardes árduas tirando pedras de uma pista.
Até as avarias do Ly sander e do Citroën Rosalie são baseadas na realidade. The
Green Man é um pub de verdade, se conseguir encontrá-lo. Não inventei nem o
nome dele. Mas agora ele mudou de nome.
Sei que deve haver erros e imprecisões espalhados por todo o livro, mas
peço uma pequena licença poética por eles. Alguns são conscientes, outros não.
O codinome “Verity ” do título é o mais óbvio para mim. Pelo que sei, agentes
femininas do SOE na França tinham, todas, nomes franceses femininos como
codinomes, e Verity é um nome inglês. Mas é fácil traduzi-lo como vérité — a
palavra francesa para “verdade” — e alguns dos codinomes de operadores de
telegrafia são tão aleatórios (“enfermeira”, por exemplo), que decidi ficar com
ele. Outro bom exemplo é o uso do termo Nacht und Nebel, que se refere à
política nazista de fazer certos prisioneiros políticos desaparecem como na “noite
e névoa”. O termo era tão secreto que é muito improvável que Julie o tivesse
ouvido. No entanto, prisioneiros do campo de concentração Ravensbrück sabiam
que ele era chamado de “NN” e no fim de 1944 eles também sabiam o que
significava. As últimas palavras de Nelson também são assunto de um debate
considerável. Mas independentemente do que ele disse, Hardy o beijou. Onde
falho em precisão, espero compensar em plausibilidade.
Muitas pessoas me ajudaram a tornar este livro completo e perfeito, e
todas merecem enormes agradecimentos. Entre os heróis não mencionados há
um trio alistado de consultores de cultura e língua, escocês, francês e alemão:
Iona O’Connor, Marie-Christine Graham e Katja Kasri, que se entregaram ao
trabalho pedido com o entusiasmo de voluntários da guerra. Meu marido, Tim
Gatland, foi meu consultor técnico e de voo (como sempre); e Terry Charman,
do Museu de Guerra Imperial de Londres, revisou o manuscrito para verificar a
precisão histórica. Jonathan Habicht, da Coleção Shuttleworth, me deu permissão
para conhecer de perto um Ly sander e um Anson. Tori Ty rrell e Miriam Roberts
foram primeiras leitoras indispensáveis, e foi Tori quem sugeriu os títulos das
seções, que, embora óbvios, me escaparam no começo. Minha filha, Sara,
sugeriu algumas das reviravoltas mais angustiantes. O livro não existiria se não
fosse pela querida Shary n November, editora sênior na Viking Children’s Books,
que originalmente me pediu para escrevê-lo; e sob a orquestração de minha
agente, Ginger Clark, as equipes editoriais lideradas por Stella Paskins na Egmont
UK, Catherine Onder na Disney •Hy perion Books e Amy Black na Doubleday
Canada conduziram Codinome Verity à sua forma final.
Também sinto que devo agradecer discretamente a uma porção de pessoas
não citadas cujas vidas estão entrelaçadas à minha e que me influenciaram pelos
anos: amigos, família, professores e colegas — alemães, franceses, poloneses,
americanos, japoneses, escoceses, ingleses (judeus e cristãos) — que durante o
conflito global da Segunda Guerra Mundial foram combatentes da Resistência,
artistas das unidades de camuflagem, pilotos combatentes da RAF, pilotos de
transporte da USAF, crianças evacuadas, prisioneiros em campos de
concentração nos Estados Unidos e na Alemanha, refugiados escondidos,
Juventude Hitlerista, WAAC, soldados e prisioneiros de guerra. NÃO VAMOS
NOS ESQUECER.
Breve bibliografia
(não inclui mapas de estradas, mapas de fuga, anotações de pilotos, listas de
gírias da RAF, etc.)
Livros:
Curtis, Lettice. The Forgotten Pilots: A Story of the Air Transport Auxiliary 1939-
45. Olney, Reino Unido: Nelson & Saunders, 1985. Publicado pela primeira vez
em 1971 pela Go To Foulis.
Whittell, Giles. Spitfire Women of World War II. Londres: Harper-Press, 2007.
Filme:
Ferry Pilot. Londres: Trustees of the Imperial War Museum, 2004 (Crown Film
Unit, 1941).
Exposição de museu:
Grandma Flew Spitfires: The Air Transport Auxiliary Exhibition and Study
Centre, Maidenhead Heritage Centre, 18 Park Street, Maidenhead,
Berkshire. http://www.atamuseum.org
Livros:
Binney, Marcus. The Women Who Lived for Danger: The Women Agents of SOE
in the Second World War. Londres: Hodder & Stoughton, 2002.
Escott, Bery l E. Mission Improbable: A Salute to the RAF Women of SOE in
Wartime France. Sparkford, Reino Unido: Patrick Stephens, 1991.
Helm, Sarah. A Life in Secrets: The Story of Vera Atkins and the Lost Agents of
SOE. Londres: Little, Brown, 2005.
Now It Can Be Told. Londres: Imperial War Museum, 2007 (RAF Film Production
Unit, 1946).
Arnold, Gwen. Radar Days: Wartime Memoir of a WAAF RDF Operator . West
Sussex, Reino Unido: Woodfield Publishing, 2000.
Escott, Bery l E. The WAAF. Shire Publications, 2001.
Caskie, Donald. The Tartan Pimpernel. Edimburgo: Berlinn, 2006 (Publicado pela
primeira vez em 1960 pela Fontana.)
Knaggs, Bill. The Easy Trip: The Loss of 106 Squadron Lancaster LL 975
Pommeréval 24/25th June 1944. Perth, Escócia: Perth & Kinross Libraries, 2001.
http://www.vam.ac.uk/images/image/13026-popup.html
( D e Essentials for the Forces, copiado pelo Victoria and Albert Museum,
Londres, sob “1940s Patterns to Knit”
em http://www.vam.ac.uk/images/image/13069-popup.html)
NOTAS
Elizabeth Wein nasceu em Nova York, nos Estados Unidos, em 1964, mas se
mudou para a Inglaterra com apenas 3 anos. Atualmente, vive na Escócia com
seu marido e dois filhos. PhD em folclore pela Universidade da Pennsy lvania,
ela tem paixão por aviões pequenos e adora voar, ou melhor, pilotar – ela tem
licença desde 2003. Sozinha, já pilotou muito pelo leste da Escócia e, junto com
seu marido, também piloto, já atravessou céus norte-americanos, de Kalamazzo
(em Michigan) a New Hampshire (na Nova Inglaterra).
www.editoraid.com.br