O Fisiocratismo A Partir de Dois Documentos
O Fisiocratismo A Partir de Dois Documentos
O Fisiocratismo A Partir de Dois Documentos
Realizado por:
Imagem: Mapa de Orleães e Burges, Civitates Orbis Terrarum (organizado por Georg
Braun, desenhado pelo flamengo Joris Hoefnagel)
Resumo: A presente investigação centra-se da análise dos dois textos que compõem o
documento 43 (Teorias Económicas no século XVIII) para estudar a escola fisiocrática.
Estudamos cinco dos principais princípios enunciados pelo seu mais reconhecido
representante, François Quesnay (1694-1774) e igualmente as observações críticas de A.
R. J. Turgot (1727-1781) às orientações dos fisiocratas expressas numa carta de 1766.
Para tal apresentaremos um quadro completo de todo o meio envolvente e atinente ao
século XVIII.
Abstract: We propose, on the current paper to study physiocracy and its key
representatives. For this matter we will work on two texts. On the one hand, an excerpt
of the main principles prescribed by François Quesnay (1694-1774) and on the other
hand the reviews by R. J. Turgot (1727-1781) on the rules followed by these physiocrats
presented on a letter of 1766. We will also produce a full picture of Europe in the
eighteenth century to help connect the ideology to the world in which it was born.
Parte I: Introdução……………………………………………………………….2
Parte II: O Mundo Onde Nascem as Novas Ideias – A Europa dos séculos XVI a
XVIII………………………………………………………………………………...5
fisiocratas…...................................................................29
1
PARTE I
INTRODUÇÃO
Berço de toda a economia política futura, hoje consolidada na ciência social a que
chamamos economia, será neste século e na França do Antigo Regime que se começará
a lançar as bases. As ideias, forma de observar os fenómenos e actividade económica, os
seus agentes e os métodos de investigação fazem desta escola de pensamento uma
precursora. Mais do que as regras ou teorias que preconizam é a sua visão que marca e
influenciará a posteridade. A pertinência no estudo dos fisiocratas franceses, que aqui
pretendemos apresentar através de duas fontes primárias, torna-se, a nosso ver, ainda
maior quando relacionada com a sociedade, mundo, sistema em que se inseriam estes
homens. Até que ponto as condições existentes geraram quem sobre elas pensou e que
impacto tiveram estes pensadores na resolução das conjunturas geradas pelas condições
existentes?
2
e causas que os variados autores vão escolhendo para explicar a ocorrência deste
fenómeno e os obriga a remontar ao mundo que a precedeu. Não só em monografias
históricas mas também em obras de economia, sociologia, política, história da filosofia
encontramos matéria e informação relevante e tocante ao nosso objecto de estudo.
Concretize-se, então, a bibliografia que generalizadamente nos acabamos de referir.
Relevámos a análise jurídica e institucional de Jacques Ellul, os estudos da França rural
tratados em artigos esparsos, com destaque para o trabalho de Marc Bloch, a pesquisa
da sociedade e economia francesa pré-industrial compilados por Fernand Braudel e
Ernest Labrousse. A comparação com a Inglaterra recorrerá a obras de História
Universal e História da Inglaterra (económica e histórico-política). A reflexão a fazer
sobre as ideias económicas e com especial destaque dos fisiocratas compreendidos no
período temporal em análise será suportada em obras de história do pensamento
económico e economia política de Henri Denis e a de Soares Martínez. Biografias sobre
as personagens de destaque (de Quesnay a Turgot) ou excertos de obras que abordam o
mundo e os cento e cinquenta anos que antecederam a Revolução Francesa farão
também parte do nosso suporte bibliográfico.
A sua estrutura reparte-se em seis grandes partes. O primeiro grupo, iniciado por esta
introdução, expõe os assuntos de que se falará e, através do silêncio, do que nos
absteremos. É igualmente composta por uma contextualização teórica, económica e
histórica da envolvência que remete para o tema central – a segunda parte. A evolução
do pensamento económico, as críticas ao mercantilismo e as novas ideias, as peugadas
seguidas e deixadas por estes homens. No terceiro grupo as vidas, obras e teorias dos
fisiocratas iniciam o capítulo. A análise textual aos documentos servirá de fio condutor
e ilustrará, como modelo, as conclusões dos mesmos. Para quem se dirige, que almeja,
de que prisma se coloca para analisar, que mensagem veicula, qual natureza dos textos
serão as principais questões. Numa conclusão trataremos do contexto específico e dos
3
tópicos ou ideias-chave que dominaram este trabalho. Por fim, num quinto e sexto
grupo, respectivamente, apresentaremos o inventário bibliográfico e os anexos
fundamentais, barras mestras de suporte ao nosso esforço.
4
PARTE II
CAPÍTULO I
5
remessas auríferas e argentárias recebe o nome de bulionismo 1 . O seu alcance foi
limitado e os resultados inoperantes.
No caso francês, que se torna mais oportuno focar, como não havia acesso directo a
metais preciosos do Novo Mundo, os gauleses só os poderiam obter incrementando as
relações económicas que atraíssem os mesmos. Para esse efeito a Coroa vai procurar
desenvolver produtos de fácil exportação. Interessava sobretudo exportar bens que
concentrassem elevados valores (caros) mas de volume e peso relativamente reduzidos2.
Por isso se incentiva e se desenvolvem as indústrias de luxo (sedas, tapeçarias, loiças,
perfumes) subsidiados e até mesmo explorados directamente pelo poder político.
1
Baseado no inglês bullion, isto é, a barra metálica.
2
Cf. MARTÍNEZ, Economia Política, pp. 168
3
É-lhe atribuída a citação «A lavoura e o pastoreio são os dois seios da França». Também durante a sua
vigência fundaram-se têxteis e alargou-se a rede de estradas; mandou conformemente abrir canais.
6
Nos prelúdios do século XVIII há um desenvolvimento de França e Inglaterra que
procuram e desenvolverem novas actividades financeiras e de especulação que mais
adiante nos debruçaremos. A ideia é clara – a necessidade de financiamento das
actividades além-mar e dos recorrentes envolvimentos nos conflitos armados que vão
brotando. A Inglaterra segue uma forte política proteccionista, fomentando as
manufacturas, analogamente ao modelo francês, apoiando-se no seu crescente império
colonial.
CAPÍTULO II
AS CRÍTICAS AO MERCANTILISMO
No século XVIII esta visão política será grandemente criticada por pensadores
económicos liberais. Impregnados de novas ideias, os homens cultos deste século
reconhecem que a ordem social não pode ser um estado meramente arbitrário, tem de
obedecer a regras que transcendem o capricho humano (não excluindo estes homens que
pudessem até ser imutáveis). A moeda é somente um instrumento de circulação e não o
único meio de acumulação da riqueza de uma nação. Aí se rejeitava o metalismo, uma
das colunas basilares do edifício mercantilista. Estas críticas embrionadas pela escola
fisiocrática serão aclamados por economistas do séc. XIX, como David Ricardo ou J.-B.
Say. Também o comércio externo só de si não seria garante da riqueza; nem se
poderiam manter saldos comerciais positivos perenemente até porque se todos
seguissem políticas proteccionistas isso implicaria a impossibilidade lógica de outros
manterem saldos negativos por longos períodos. Atente-se que estas críticas serão por
sua vez atacadas.
4
Lugar-tenente-geral do bailiado de Rouen, ganha notoriedade com a sua obra Memorial de França
(1707) que discute problemas e questões financeiras, a reforma de impostos que considerava injustos.
Esta obra é proibida por decisão do Conselho do Rei e o seu autor exila-se em Auvergne. Publica ainda
7
pelos fisiocratas, como iremos ver – a modificação da talha, suprimindo as isenções de
privilegiados; a defesa de um imposto sobre todos os bens, a supressão da sisa, imposto
indirecto sobre a venda dos vinhos e direitos aduaneiros (internos e externos). É o
desenvolvimento da procura de produtos agrícolas e não de produtos industriais que se
deve assegurar primacialmente. Os mercantilistas, por seu lado, pretendem o
desenvolvimento da exportação de produtos manufacturados como meio de fazer entrar
metal precioso enquanto se restringe fortemente a venda ao estrangeiro de géneros
alimentares, essenciais à vida5.
Outro homem que terá porventura contribuído para a escola fisiocrata terá sido Richard
Cantillion6. Escreve em francês a sua obra Essai sur le nature du commerce en général
(1775), publicada cerca de 50 anos depois de ter sido escrita. Aí, inspirado pelo
seiscentista William Petty que postulava que o valor das coisas vem da quantidade de
trabalho empregue na sua feitura, vai avaliar este valor pela quantidade de terra utilizada
(deriva portanto não só do trabalho mas também da terra).
Podíamos da mesma forma referir outros nomes de relevo porém correríamos o risco
de fugir ao escopo deste trabalho. Como se pode ver estas duas décadas foram de grande
permeabilidade das ideias destes senhores.
vários escritos acervados sob o título Testamento Político do Marechal de Vauban (1717). De relevo para
o nosso caso de estudo, como contribuição para o movimento fisiocrata, importa apontar, tanto pela
sua vertente contestatária à política fiscal como pela agenda económica destacar o seu Tratado dos
Cereais e Dissertação sobre a Natureza das Riquezas, do Dinheiro e dos Tributos. Cf. História do
Pensamento Económico, pp. 147
5
Ver DENIS, História do Pensamento Económico, pp 258 e seguintes
6
Richard Cantillion (1680?-1734) foi um pensador económico franco-irlandês. A sua opus magnum veio
a influenciar a economia política subsequente sendo considerado por alguns como fundador ideológico
dessa disciplina. Apesar de se saber pouco da sua vida, sabemos que foi um bem-sucedido comerciante
e banqueiro
8
CAPÍTULO III
A ideia que então viciará todo o sistema concebido por Quesnay, de que a indústria e
comércio são actividades estéreis constitui o segundo grande ataque à doutrina dirigista
e metalista. A riqueza de uma nação não se regula pela massa de moeda mas fundeia-se
na terra.
CAPÍTULO IV
9
imprecisos. No entanto, a informação existente (registos paroquiais) é suficiente para
podermos estimar tendências e as controversas causas8. A tabela em anexo9, retirada do
do livro British economique growth 1688-1959: Trends and Structure mostra-nos que a
população anglo-saxónica evoluiu de 5.8 milhões para 9.1 milhões. Há uma estagnação
na primeira metade do século e depois explode. Este facto pode-se explicar pela queda
da mortalidade.
8
Ver KABAKKUK, H. J., English population in the Eighteenth Century
9
Ver nota de rodapé nº 7
10
Idem, ibidem, pp 62. A estatística que aqui transcrevemos acerca da evolução do produto da
agricultura inglesa trata-se de uma previsão. Os dados completos sobre as explorações, pessoas
empregadas ou outros só se podem fazer fidedignamente a partir de meados do século XIX
11
«Como num filme em câmara lenta pode-se observar na vida agrícola de Inglaterra, a acção das forças
de mercado. As vantagens da divisão do trabalho e princípios de custos comparativos estavam escritos
em cada detalhe da paisagem. Se os campos eram abertos ou fechados dependia da geografia do
campo, na natureza do subsolo, tipo de cultura e distância dos centros de consumo. O sistema aberto
não era adequado para países montanhosos ou para a pastorícia». Cf. SMELLIE, K. B., Great Britain since
1688. A Modern History, pp 8-10
10
CAPÍTULO V
12
Cf. ELULL, J, Histoires des Instituitions, vol. 4, pp 119
11
exploração agrária difunde-se por toda a Europa apresentando laivos diferentes
consoante a nação. Na França houve um desaparecimento progressivo das obrigações
colectivas que existiam e o abandono lento do pousio pela cultura de forragens.
Focamos agora a nossa atenção nas estruturas sociais. Regra geral, houve um
crescimento populacional e das cidades. A demografia é estacionária sob Luís XIV. A
partir de 1720 há um salto demográfico aumentando a população num quarto de século
de 30 a 40% 14 . A sociedade permanece fortemente hierarquizada enquadrada numa
teologia e ideário mental. Esta rigidez impede a mobilidade social espontânea e
contrasta com o caso inglês ou holandês. A nobreza tradicional e o alto clero conservam
muito mais largamente a sua condição de privilegiados que em Inglaterra. A servidão,
13
BLOCH, Marc, História Rural Francesa, pp 393 e seguintes
14
Idem, ibidem, pp 195
12
que tem contornos muito diferentes dos da Europa Central e de Leste, sente-se no
pagamento da dízima eclesiástica e dos direitos senhoriais por parte do campesinato
(referimo-nos tanto às contribuições em espécie ou como sob a forma de corveias).
CAPÍTULO VI
15
Idem, ibidem, pp. 122 e seguintes
16
O exercício do poder monárquico não era limitado por outros indivíduos, grupos ou instituições do
reino. Este facto não significa todavia que fosse um exercício despótico, existindo na concepção francesa
13
da sua corte, a curia regis, evoluindo para um sistema mais complexo e que permitia
escapar mais facilmente a um férreo controlo pessoal. Os trabalhos faziam-se através do
seu conselho. A sua autoridade judicial é delegada num conjunto de juizes numa
hierarquia de tribunais, os chamados tribunais soberanos, grandes instituições legais. O
Parlamento de Paris é um exemplo.
Já Luís XIV havia tomado algumas medidas de emergência. Lançam-se dois impostos,
a capitação de 1695 e a dízima de 1710 que tinham de ser pagos igualmente pelos
súbditos privilegiados e não privilegiados, evidência dos cofres exaustos que era
necessário rapidamente encher. No entanto, imposições temporárias para satisfazer
necessidades de guerra, na constante política externa expansionista deste rei, não
constituíam de maneira alguma solução permanente dos dilemas financeiros que o
governo francês vai passar a enfrentar cronicamente. É interessante verificar que a
necessidade levou à quebra desse princípio de imunidade da nobreza à tributação
directa. Motivado pelas vicissitudes da nova centúria, a nobreza podia estar liberta da
taille17 e imposto do sal mas passa a ser tributada directamente (apesar de em regime
muito desigual quando comparada com o Terceiro Estado).
Após a morte de Luís XIV (1715) e até o seu bisneto assumir a maioridade em 1723, o
governo esteve sob a tutela de Filipe, duque de Orleães. O regente tentou inverter a
situação financeira sendo atraído pelas ousadas ideias económicas de John Law18. O
escocês cria o Banque Générale, parcialmente com fundos estatais e emitindo notas
bancárias que se esperava que espalhassem pelo reino e animassem a actividade
económica. Liga-se ao grande empreendimento nacional, a companhia comercial que
em seguida funda, onde todos poderiam investir e recolher lucros oriundos de actividade
colonial. O projecto aparenta inspirar-se no bem sucedido exemplo do Banco de
Inglaterra (1694) cujo papel na obtenção de fundos de guerra para a aliança anti-
francesa durante a Guerra da Sucessão em Espanha foi fulcral. Porém o Banque de Law
a nítida distinção entre absolutismo e despotismo, isto é, a diferença das bases onde o rei baseava o seu
poder: o apoio e respeito das leis, costumes e de Deus.
17
Ou talha, imposto (directo) de derrama
18
John Law (1671-1729) – economista escocês escolhido pelo duque de Orleães para Controlador geral
das finanças de França. Nessa qualidade funda um banco privado em França contando ¾ desse valor em
notas governamentais, ou seja, fundando o primeiro banco central daquele reino. Foi responsável pela
bolha da Companhia do Mississipi e consequente caos financeiro.
14
vai falir em 1720. Caindo numa espiral especulativa, tal como a Mania das Tulipas
(Holanda, década de 1630) ou a coeva bolha da Companhia dos Mares do Sul inglesa19
(Inglaterra, 1720) acaba por destruir a confiança e culminar na bancarrota. Enquanto os
investidores ingleses podem pressionar e defender até determinada extensão os seus
investimentos através da Câmara dos Comuns, o sistema absolutista francês, bem menos
contrabalançado, deixou os investidores numa situação de plena desconfiança. Esta
situação revelar-se-á um grande entrave à criação, adesão e sucesso de futuros
empreendimentos financeiros que alavancassem a projecção comercial dessa potência.
No final da regência podemos observar, portanto, a manutenção de problemas
financeiros e fiscais.
Nas primeiras duas décadas da maioridade de Luís XVI o governo é colocado nas
mãos do seu antigo tutor, o cardeal Fleury, cuja tendência para a sua política externa foi
afastar a França de guerras dispendiosas e geradoras de dívidas avultadas. Pratica uma
política liberal face aos comerciantes e a presença francesa floresce nas Antilhas, Índias
e Luisiana. À data da morte do cardeal o reino vai-se ingerir na Guerra da Sucessão
Austríaca (1743-8). Para a financiar o Intendente geral das finanças Marchault
d´Arnouville introduz um imposto (em 1749), a vigésima20. Segue-se um conflito, com
o alto clero cioso dos seus direitos e mordomias. Aliás este tipo de reacções das elites
privilegiadas passará a ser uma constante nas múltiplas tentativas que se vão
empreendendo ao longo de todo este século para reformar e salvar um sistema que se
mostra cada vez mais anacrónico. A assembleia-geral do clero obtém a isenção da sua
ordem. A feroz oposição que germinou deve-se ao facto de este imposto ter sido criado
em tempo de paz e portanto difícil de suportar em precedentes de jurisprudência. De
novo se introduz uma segunda vigésima no início da Guerra dos Sete Anos (1756) e
terceira em 1760 mantendo-se a segunda permanente mas a última será levantada.
19
Criada em 1711 a Companhia dos Mares do Sul obtém cedo lucros enormes chegando a obter a
gestão da dívida pública. O valor das acções multiplica-se, lançam-se numa base especulativa noutros
negócios afundando-se depois do pico num estrondoso craque.
20
Este imposto incidia em 5% de todos os rendimentos sejam oriundos de propriedade, comércio, ou
outros e independentemente da ordem.
15
escritores economistas franceses, mote do presente trabalho, acreditavam ser a
agricultura a chave da riqueza das nações. Teremos hipótese de explorar as teorias por
eles preconizadas num capítulo adiante. No entanto, a prática não surtiu o que a teoria
prometia. Os preços dos cereais aumentaram quando os produtores de excedentes
procuraram limitar a oferta e vender ao maior preço. Seguiram-se surtos de
levantamentos públicos com acusações da incapacidade do rei de prover alimentação ao
povo. Foi posta fim à experiencia em 1770.
Não termina aqui a influência fisiocrática, já que nos inícios do reinado de Luís XVI,
em 1774-6, Turgot, simpatizante e amigo de vários fisiocratas foi nomeado e
empossado Intendente geral das Finanças. Volta a introduzir o comércio livre dos
cereais mas esta decisão vai coincidir com ma colheita e voltam a verificar-se graves
surtos de violência no centro e norte da França (Guerra da Farinha 21 ). Pretendia
igualmente instituir o imposto único sobre as terras, organizado por meio de
assembleias representativas de proprietários que substituiria todos os impostos
existentes. A oposição causada por estas propostas leva à sua demissão em 1776 sendo
substituído por Necker22.
A última grande tentativa para reformar o regime financeiro desactualizado que afligia
a França veio pela mão de Charles de Calonne (1783). O controlador geral das finanças
pretende introduzir um imposto pago em géneros para todos os proprietários de terras
independentemente da sua condição. Este substitui a vigésima combinado com a
redução de outros impostos directos. Ainda pretende desmantelar as barreiras
alfandegárias internas e uma vez mais introduzir o comércio livre de cereais. Encontra
dificuldades de cooperação e pretende reunir uma Assembleia (apenas) de Notáveis,
seculares e religiosos. Nesta década turbulenta reúne-se com os grupos privilegiados em
vez dos Estados Gerais (não convocados desde 1614). Tenta convencê-los, reintroduz a
proposta de Turgot de uma série de assembleias de proprietários (hierarquizando-se do
21
Refere-se à onda de tumultos populares que se levantaram de Abril a Maio de 1775 no Norte e Centro
de França. A causa mais iminente terá sido o aumento do preço dos cereais, com repercussão nos
preços do pão. Estes violentos conflitos manifestam a crise política e social que o regime ia sentindo.
Pode ter contribuído para o aumento dos preços o édito de Turgot (13 de Setembro de 1774) cuja
liberalização deste mercado levou a que produtores açambarcassem os produtos da lavoura fazendo
subir os preços.
22
Banqueiro suíço que procurará reformar e estender a fiscalidade francesa (agravando-se as finanças
através do apoio aos independentistas das colónias americanas na mão da Coroa britânica).
16
nível paroquial a provincial). Sem conseguir progressos acaba demitido pelo rei em
1787.
CAPÍTULO VII
Durante o século XVIII a França foi o guia cultural da Europa. O francês era a língua
mais falada entre as elites cultas e era a língua internacional da diplomacia. Os czares da
Rússia, os reis da Prússia, Espanha e Portugal tal como numerosos príncipes germânicos
e italianos construíam cópias de Versalhes. Joalheiros franceses, escultores e pintores
eram importados ou modelo para copiar e base da fundação de academias (como em
Berlim ou Viena). Talvez o maior impacto sobre os espíritos europeus provenha dos
escritores do Iluminismo francês. Um grupo heterogéneo de filósofos que defendiam a
razão como o melhor guia do homem na organização social e política. Precedidos pelas
descobertas científicas do século anterior, sobre a natureza do homem, do universo e
cepticismo em relação aos dogmas da Igreja (e Estado) as suas ideias tiveram grande
difusão e importância neste papel cimeiro francês. Fazendo uso próprio da razão seria
possível descobrir as leis que governam o mundo. O homem deveria então concentrar-se
em melhorar o seu modo de vida.
17
anacrónicos ou mesmo híbridos. O Iluminismo, enquanto pensamento teórico,
pressionará este sistema. As exigências racionais da mente humana deveriam moldar as
sociedades e a vontade individual como fundamento da vida social. Combina-se o
racionalismo e o reconhecimento de uma ordem natural que se orientaria no sentido de
assegurar a felicidade dos homens. Esta, divina ou não, resultaria do complexo de leis
que constituiriam um código comum, superior às flutuações do tempo e às variações
geográficas, cujos preceitos se imporiam à razão humana. A razão seria o veículo dessa
ordem e portanto o meio de a cumprir.
Esta concepção embora não respeitante só ao domínio dos problemas económicos teve
aí a maior influência na respectiva revisão. Em termos intelectuais para que se
impusesse a ideia de que há mecanismos naturais que governam o conjunto da vida
económica seria mister romper com as concepções do mercantilismo que postula a
necessária e constante intervenção estatal para o enriquecimento da nação23. Portanto o
passo seguinte será a afirmação da liberdade das trocas como condição necessária e
suficiente da ordem económica, passo este que será pedra angular da escola fisiocrática
que emergirá no Setecentos. É, portanto, baseado neste esquema teórico que estes
homens assentaram as suas construções em torno dos fenómenos económicos.
23
Aqui evocamos a contribuição (paradigmática do pensamento que se vem desenvolvendo) para o
futuro pensamento da ciência económica, da pena de John Locke consubstanciado nas suas análises nas
Considerações sobre o Abaixamento do Juro e a Elevação do Valor da Moeda (1691) onde defende a
ideia de que existe uma taxa natural do juro do dinheiro, não sujeita directamente à acção de medidas
legislativas, mas de uma formação de preços no mercado em função da oferta e procura. A influência é
clara em Smith, Malthus, Ricardo para evocar os de maior nomeada. Aqui já existe o gérmen da ideia de
que existem leis naturais, à semelhança da física, que governam a esfera económica.
18
PARTE III
CAPÍTULO I
O termo que mais tarde designará os pensadores fisiocráticos provém das palavras
gregas “physio” e “kratia”, isto é, poder da natureza.
24
Colaborador de Turgot, deputado durante a Revolução, emigra para os Estados Unidos da América.
Produziu obras de valor de fisiocracia e a própria designação deste pensamento económico.
25
Magistrado, situa a Economia na dependência do Direito Natural
26
Marquês de Mirabeau, pai do tribuno revolucionário, pensador e escritor cujas obras foram
consideradas de nomeada
19
CAPÍTULO II
27
Cf. MARTINEZ, Economia Política, pp. 189: «Poderá estranhar-se que os proprietários não tenham sido
incluídos na classe estéril. Mas, para os fisiocratas, a classe dos proprietários é constituída por aqueles
que tornam possível a utilização da terra por parte dos agricultores. Os respectivos direitos, sobre a
terra e sobre parte dos rendimentos produzidos, foram sempre julgados pelos fisiocratas em perfeita
conformidade com a natureza das coisas e sociedades»
20
pertencer a esta corrente partilha ainda bastantes das suas ideias como teremos hipótese
de analisar. Por fim, outro fisiocrata, Bertin, seria ministro de Luís XVI.
28
A economia auto regula-se sendo desnecessário e até perniciosa a intervenção governamental na
economia. Este conceito, de maior relevância, vai marcar indelevelmente todo o pensamento
económico que se vai produzindo
29
O termo mercantilista foi cunhado por Adam Smith que designa precisamente as práticas políticas e
económicas aqui descritas e com auge nos séculos XVI e XVII europeus.
30
Ver o aprofundamento que demos na Parte I, Capítulos II e III
31
A título de curiosidade enuncie-se o conto de Voltaire “L´Homme aux Quarante Écus” onde a sátira a
este “exagero” conta a vida de um agricultor contribuinte miserável contraposto à prosperidade de um
comerciante especulador isento.
21
liberdade de fixação de preços, este mecanismo permitiria aos agricultores transferir o
peso do imposto para os restantes sectores. Esta distribuição do encargo seria ainda
mais igualitária – até porque todos consomem produtos agrícolas. Ademais, à luz desta
lógica, o imposto único sobre a agricultura ainda tinha a vantagem de simplificar a
tributação. O único entrave/advertência a este encargo ocorreria se em condições
adversas para a venda de produtos agrícolas os agricultores que pagam esse imposto
correrem o risco de suportar efectivamente maior tributação.
32
O primeiro na reelaboração/comparação do seu modelo com o Tableau Économique de Quesnay em
O Capital (1867) e o segundo na sua descrição em History of Economic Analysis (1954)
22
CAPÍTULO III
A obra económica do médico inicia-se em 1756, quando produz o seu primeiro estudo
económico, o artigo «rendeiros» na Enciclopédia. Denota uma vontade de basear a sua
opinião em números, debruçando-se sobre os problemas da exploração da França rural
33
Ver DENIS, História do Pensamento Económico, pp. 161-2
34
Cf. KUNTZ, Quesnay, pp.125: Extrato das economias reais do Sr. De Sully: «Num governo onde todas
as ordens de cidadãos têm luzes bastantes para conhecer evidentemente e para demonstrar com
segurança a ordem legítima mais vantajosa ao príncipe e à nação, encontraríamos um déspota que
empreendesse, com apoio das forças militares do Estado, fazer manifestamente o mal pelo mal?»
23
(opina que deverão as terras ser trabalhadas por um rendeiro ao invés do sistema
comum, a meias e utilizar o cavalo ao invés do boi na lavra). Dois anos depois publica o
seu famigerado Quadro Económico35, tornando-se de facto chefe reconhecido de fila
dos filósofos economistas ou fisiocratas. Para a História ficou também reputado como
expoente da corrente fisiocrata e pela sua associação a este trabalho de grande
importância.
O Quadro Económico36 publicado pela imprensa do rei é uma folha com um conjunto
de linhas ziguezagueantes e acompanhado por sumários esclarecimentos. A análise da
vida económica tem um carácter claramente mecânico e matemático. As despesas
alimentam a produção e esta colmata as despesas. Neste fluxo e refluxo Quesnay e
depois mais tarde com a colaboração de Mirabeau (no livro conjunto Filosofia Rural ou
Economia Geral e Política da Agricultura de 1763) explana o resultado benquisto pela
ordem natural e anatematiza qualquer intervenção estranha a esta harmonia, num
esquema que representa uma anatomização da vida económica. Este gráfico
acompanhado de algumas anotações avivou diversas reacções. Assim se comprova nas
duas cartas que escreve ao mesmo Mirabeau, seu correligionário, a explicitar e
responder a algumas questões37.
Não só na França irá Quesnay e depois os seus seguidores basear a sua análise mas
irão estabelecer um quadro comparativo. Utilizam por diversas vezes o caso inglês,
35
No original Tableau Économique. Publicado em 1758 será reeditado e traduzido múltiplas vezes. É um
escrito breve, onde se representam quadros numéricos, a distribuição da riqueza numa sociedade e se
materializa a essência do pensamento fisiocrata. Ver KUNTZ, Quesnay, pp. 187-191
36
Para melhor visualização consulte-se a ilustração em anexo [ANEXO III]
37
Quesnay, F., Carta a Mirabeau sobre o Quadro Económico; Segunda Carta a Mirabeau sobre o Quadro
Económico in KUNTZ, R., François Quesnay: Economia, pp. 112-117
24
onde a liberdade de comércio cerealífero e agropecuária prosperavam e o fervilhar de
ideias era constante. «Na Inglaterra a condição do arrendatário é de muita riqueza e de
muita consideração, uma situação singularmente protegida pelo governo. Lá, o
cultivador valoriza abertamente suas riquezas, sem temer que seu ganho atraia a ruína
por imposições arbitrárias e indeterminadas38».
Há lugar para especular até que ponto a sua formação e vida como médico inferiu na
sua idealização do corpo e funcionamento da economia como um organismo vivo.
Nos seus restantes trabalhos que tivemos hipótese de ler39, não só se limita a descrever
o funcionamento da economia e condições de equilíbrio mas interessa-se na descoberta
das causas da prosperidade das nações seguindo uma longa tradição que continuará. Tal
como será para Adam Smith, a economia política deve ser prezada pelas suas
consequências na orientação da vida social. Entre 1756-8 trata em alguns ensaios
escritos de questões atinentes estritamente à agricultura, impostos e demografia.
Posteriormente passa à generalização ordenando as suas ideias num retrato total da
economia. De 1758-66 concebe mais cinco versões do seu Quadro Económico e vê as
suas ideias ganharem adesão com diversos discípulos a prosseguirem e divulgarem o
seu trabalho. Um dos intervenientes na carta em análise na segunda parte do documento
43, em estudo, Dupont de Nemours, foi dos seus apologistas mais importantes. A partir
de 1766 com o sistema teórico já bem consolidado apenas se farão alguns acrescentos
políticos na sua aplicação. No fim da sua vida ainda se dedica a estudos matemáticos
mas sem implicações relevantes.
Anne Robert Jacques Turgot, barão de l´Aulne, nasce em 1727 em Paris. Filho do
prévôt dos mercadores de Paris (cargo administrativo que hoje equivaleríamos a
Presidente de Câmara) e pertencente a uma antiga família normanda faz estudos para a
vida eclesiástica (que não seguirá) e pela Sorbonne. Magistrado com fama de
integridade, terá sido vítima de numerosas intrigas, imbuído no espírito do Iluminismo e
38
Cf. idem, ibidem, pp. 85 e seg.
39
Nomeadamente Evidência, “Arrendatários” (ensaio da Enciclopédia, 1756), Homens, Tableau
Économique, Extrato das economias do Sr. De Sully, O Direito Natural, Resposta à memória do Sr. H.
sobre as vantagens da indústria e do comércio sobre a fecundidade da pretensa classe estéril, etc.,
Máximas gerais do governo económico de um reino agrícola in idem, ibidem, pp. 42-188
25
fisiocracia. Nos salões que frequenta na capital depara-se com as novas ideias da escola
fisiocrata amigando alguns dos seus mais ilustres representantes. Conhece Voltaire
numa viagem que faz ao leste do reino e à Suíça que será dos seus principais defensores.
Foi considerado o último dos reformadores que tentou alterar o rumo em que a França
inevitavelmente se encaminhava40.
40
A generalidade das obras que consultamos e páginas de sítios da internet parecem unânimes em
associar aos esforços reformistas de Turgot o último período de tentativas sérias de salvar o status quo.
Podemos citar, a título de exemplo, a opinião conforme in GRIMBERG, História Universal. O espírito das
luzes. As lutas europeias, vol. 14, pp. 55-56
26
b) Análise textual e enquadramento na teoria
O artigo III enuncia «que o soberano e a nação jamais percam de vista que a terra é a
única fonte de riquezas e que a agricultura é que as multiplica». Ora aqui está a ideia
central de todo o pensamento. Como apresentamos no subcapítulo teórico supra, a terra
é a única produtora de riqueza. Daí se assegura a segurança material da população mas
também só daqui se pode ampliar o comércio, animar a indústria. Toda a prosperidade
da economia (e portanto do reino) emana e depende da agricultura.
No ponto seguinte (IV) defende o médico que a propriedade dos bens territoriais e
riquezas mobiliárias devem ser asseguradas aos seus legítimos donos porque só assim se
fundamenta a ordem económica da sociedade. Além de afirmar o princípio da
propriedade privada é defendido também que este deve ser exercido e respeitado para o
bem e saúde da economia. É este o fundamento deste “direito natural” tal como o
defendeu Locke e defende Hume. A não garantia deste direito impediria que quem
acumulasse riqueza fundiária e a tornasse produtiva logo a abandonasse sem ter
qualquer incentivo para investir ou até mesmo produzir. Será portanto a segurança a
assegurar o bem-estar do rendimento de uma nação desde o campo à cidade. A
desigualdade era condição para a riqueza colectiva de uma nação. Ora, por outro lado,
sem essa certeza da propriedade, reinaria o inculto dos campos. A propriedade emana
pois da valorização do trabalho, determinante para legitimar a posse de propriedade
privada. Frisamos que se não, nem proprietários nem arrendatários teriam incentivo a
investir, valorizar e cultivar a área agrícola, ausente este direito. Caberia então ao poder
27
soberano e só a ele assegurar essa posse mas também de essa propriedade de ter direito
sobre a partilha dos seus frutos.
28
liberdade da concorrência». O levantamento de entraves internos também está incluído
nesta política de inteira liberdade da circulação de bens. Seria o mais rendoso à nação e
Estado liberalizar, assim beneficiar o sector agro-pecuário e assim fortalecer toda a
robustez económica do reino. Este ideal de liberalização económica será um dos
baluartes da escola clássica e reutilizado em teorias económicas desde a Inglaterra
vitoriana aos dias de hoje.
41
O excerto da carta em anexo encontra-se no original francês. Não encontrámos uma versão
portuguesa. Pela sua extensão e para permitir o entendimento ao leitor que não domine a
língua francesa passamos a transcrever uma tradução livre nossa: “Por vezes acho que vós não
destes a importância suficiente aos vossos princípios, que, sempre guiados pela acção seguida
pelo nosso doutor, sempre apoiados na análise profunda que ele fez da formação, circulação e
reprodução do rendimento, não vos servistes bastante do principio menos abstracto, mas
talvez mais luminoso, mais fecundo ou pelo menos mais acutilante pela sua simplicidade e pela
sua abrangência sem excepção: o princípio da concorrência e liberdade das trocas comerciais,
consequência imediata do direito de propriedade e da faculdade exclusiva que cada indivíduo
tem de conhecer os seus interesses melhor do que os outros. Este único princípio havia
conduzido M. de Gournay, a partir do seu contador aos mesmos resultados práticos aos quais
chegou o nosso doutor, ao falar do arado. Sentir-me-ia honrado para toda a vida de ter sido o
discípulo de um e do outro… Eu vejo-vos, por falta de desenvolvimento do conjunto das
consequências destes dois princípios e de os ter posto em marcha, andar, como se costuma
dizer, em torno das questões. Vós hesitastes, no artigo do preço do pão, propusestes uma
reforma das tarifas e não fostes à raiz, ao abuso de existirem corporações de padeiros,
estatutos, de taxar os géneros alimentares em todas as cidades do reino. Vós estais tão
ocupado na vossa animosidade contra a indústria, divertis-vos tanto a provar-lhe que ela é
estéril (questão que resulta de um mal-entendido, dado que foi apresentada com vista a picar a
vaidade dos grandes industriais, enquanto, bem entendido, ela não lhe apresenta senão
vantagens) que vos esqueceis de atacar todos os miseráveis entraves de toda a espécie que
estão presos a esta indústria em todos os ramos: monopólios das corporações, aprendizagens,
ofícios [compagnonnages], estatutos, regulamentos manufactureiros, casas alfandegárias,
inspectores; todas estas iníquas e risíveis instituições, sobre as quais M. de Gournay tinha
criticado sem rodeios, aparecem impunemente em todas as vossas gazetas, onde imbecis
inspectores imputam a queda do comércio à inobservância dos regulamentos. Vós sois os
protectores da indústria e do comércio e tendes falta de habilidade em exibir os seus inimigos.
Esta pobre classe remunerada, à qual vos agradou dar o nome de estéril, porque não produz
nenhum rendimento e porque os valores que ela produz, estando dependentes por inteiro da
reentrada de rendimentos e da subsistência dos seus agentes, não são transmissíveis, nem
disponíveis – esta classe e as honestas gentes que a compõem, crendo que lhes disputam a
honra de ser cidadãos úteis, indignam-se desta humilhação injuriosa e esforçar-se-ão por
29
escreveu ao seu amigo e fisiocrata Dupont de Nemours. A carta data de 1766, sendo
Turgot ainda Intendente de Limoges. A epístola foi-nos apresentada no original francês
retirada de Dupont de Nemours et l´école physiocratique, de G. Shelle, Paris, 1888, pp.
74-75 ; citado dos Textes et Documents d´Histoire Moderne, de M. Devèze e R. Marx,
Paris, 1967, pp. 304-305 [ANEXO V].
Antes de mais permitimo-nos a escrever uma nota prévia. Em Paris Turgot frequenta
diversos salões, destacando-se o de Mme. de Graffigny. É neste contexto que conhece os
líderes da escola fisiocrática, dos quais importa referir Quesnay, Vincent de Gournay e
de Nemours. Em 1743 e 1756 acompanha o intendente do comércio, V. de Gounay
durante as suas inspecções pelas províncias, estreitando relações com o segundo. O
intendente de Gournay, referido na carta, foi um discípulo do fisiocratismo de Quesnay,
radical defensor do “lassez faire, laissez passez” (expressão que lhe é atribuída)
extensível a toda a actividade económica e política fiscal. Não deixou muitos escritos
mas a sua influência sobre os pensadores políticos desta altura foi importante sendo
responsável pela divulgação dos trabalhos de Richard Cantillion. O principal contributo
que deixará ao seu amigo Turgot será a sua animosidade contra as regulamentações
governamentais do comércio que culpa de o embaraçar severamente.
Escreve o futuro Intendente geral das Finanças de Luís XVI: «Vós, fisiocratas não
destes a importância suficiente aos vossos princípios, que, guiados pela acção seguida
pelo nosso doutor (…) não vos servistes bastante do princípio menos abstracto, talvez
provar que são muito produtivas e, por consequência, há motivos de lhes impor a capitação, o
cadastro completo e o vigésimo da indústria…”
30
mais luminoso (…) e pela sua abrangência sem excepção: o princípio de concorrência e
liberdade de trocas comerciais». A mais importante contribuição do fisiocratismo parece
ter passado para o segundo plano para os mesmos fisiocratas. Turgot pensa no princípio
da livre concorrência como portador de duas vantagens. A obediência a leis inerentes à
natureza regularia os mercados, arranjando as quantidades e preços óptimos a ser
transaccionados. A produção aumentaria estimulada por um mercado livre e produtores
desamarrados de grilhões governamentais que só constrangem a ordem natural. Preza o
contributo desta escola de pensamento, pela «análise profunda que ele [Quesnay] fez da
formação, circulação e reprodução do rendimento» – teorização inovadora indispensável
à construção de todo o edifício do pensamento económico.
As “luzes” que também alcançam este homem levam-no a suportar as suas conclusões
com o recurso à razão: a capacidade individual e o respeito dos “direitos naturais”
(especialmente à propriedade) são a condição sine qua non do sucesso das suas teorias
económicas.
A segunda acusação nasce da crítica ao desprezo daquilo que hoje chamamos sector
secundário: «vós estais tão ocupado na vossa animosidade contra a indústria, diverti-vos
31
tanto a provar-lhe que ela é estéril (…) que vos esqueceis de atacar todos os miseráveis
entraves de toda a espécie». Turgot é, na verdade um defensor da classe estéril.
Ultrapassa a visão estritamente fisiocrática de que o único produtor de rendimento é a
agricultura e todos os outros ramos da economia apenas a servem ou se servem dela. Vê
na indústria um meio de assegurar o desenvolvimento, prover os mercados, enriquecer o
Estado e fomentar o comércio como apoio à economia e à projecção internacional do
reino. Vê nas críticas fisiocráticas a simples cegueira e animosidade contra os grandes
industriais. A indústria deve ser valorizada como geradora de uma mais-valia e por isso
ser taxada. Opõe-se ainda ao princípio fiscal enunciado por Quesnay (do imposto único
sobre a terra). Pelo menos apresenta-se longe da visão ortodoxa. Duas eram as
principais contingências do futuro ministro a esta política fiscal: por um lado, num
contexto económico, a impossibilidade de realizar poupanças nas despesas do Estado
que por si só seriam possíveis e por outro lado, num contexto institucional a grande
resistência de discutir nas assembleias propostas que pouco interesse ou possibilidade
tinham de passar. Também lembremos que este tipo de reformas estruturais precisam de
tempo a surtir efeito numa conjuntura que exigia uma inversão rápida da situação. A
impaciência da opinião pública e do rei urgia portanto outro tipo de soluções que
fossem quase milagrosas ditando o seu fim.
O autor enumera ainda uma série de entraves que batalhará aquando ministro do rei na
segunda metade da década de 70. Em primeiro lugar, o «monopólio das corporações,
aprendizagens/ofícios [compagnonnages]». Este tipo de instituições laborais que se
generaliza a partir de 1719 designa a agremiação de indivíduos em situação profissional
para protecção dos seus membros e actividade. Com raízes na Idade Média, evoca um
grupo mais ou menos fechado e anti-concorrência que recorrendo à protecção mútua,
educação e transmissão de conhecimentos entre os seus membros poderia representar
uma força de paralisação. No Oitocentos tornam-se fortes na mobilização e organização
dos trabalhadores, chegando a controlar a contratação de uma cidade onde estabelece
“interdições aos negócios” (interdictions de boutiques) a mestres recalcitrantes. Por
vezes vai colocar cidades inteiras sob a privação de contratar, ameaçando-a assim de
falência generalizada. Ao mesmo tempo a sua divisão e rivalidade é enorme levando a
rixas entre os membros de diferentes instituições mutualistas. Apenas após a Revolução
Francesa, em 1791, se inicia o verdadeiro caminho para a desagregação destes
organismos pelo decreto d´Allarde. Por outro lado, Turgot vai-se insurgir contra os
32
regulamentos manufactureiros, a acção das casas alfandegárias e dos inspectores.
Considera-os parte de uma política iníqua, obsoleta e que apenas coagula o sangue da
economia francesa. Estes inspectores são ainda defendidos no artido de de Nemours e
acusação as dificuldades industriais da inobservância dos regulamentos ao invés de se
aperceberem de que eles serão relevantes responsáveis.
Em 1775, ano da coroação de Luís XVI, de Nemours escreverá a Turgot uma obra
sobre as suas Memórias (sobre as municipalidades a estabelecer em França). Em Abril-
Maio o insucesso da liberalização do mercado cerealífero origina uma escassez e
carestia conduzindo à chamada guerra da Farinha. Em Janeiro-Fevereiro de 1776 Turgot
abole as corporações e substitui a corveia por um imposto in natura. A 12 de Maio
chega por fim a desgraça do então Intendente geral das Finanças. É demitido42.
Esta carta remetida por Turgot é clara evidência de que não faz parte da escola, embora
lhe esteja próximo; tanto pessoal como ideologicamente.
42
Ver FURET, F, La Revolution. De Turgot à Jules Ferry (1770-1880), pp. 21-55
33
PARTE IV
CONCLUSÃO
43
Apontado pelos contemporâneos da revolução de 1789 e pela historiografia clássica moderna como
um dos mais evidentes indícios do desajuste da organização burocrática francesa num mundo de novas
exigências.
44
Intendentes com características institucionais e funções administrativas, judiciais equivalentes aos
sheriffs ingleses.
34
A nova ciência económica, sob as ideias dos filósofos economistas, afirma-se
evidentemente contra a política preconizada pelos mercantilistas e contra a sua
afirmação do papel essencial desempenhado pelo comércio externo como meio de atrair
o ouro e a prata. Uma autêntica escola difundirá as ideias concebidas pelo seu mestre,
François Quesnay, por intermédio de uma série de publicações periódicas.
Porém, à data da revolução a fisiocracia já não se encontra tão em voga. Após a morte
de Quesnay no mesmo ano em que Turgot chega ao posto de Intendente geral das
Finanças, em 1774, o marquês de Mirabeau assume a figura central desta escola mas
pouco impacto terá e pouco se falará deles. Exceptue-se, claro a análise de Adam Smith
no seu livro Inquérito sobre a Riqueza das Nações. Apenas com os estudos do processo
de reprodução marxista se volta a desenterrar as ideias destes pensadores. A burguesia
industrial e mercantil, neste século XVIII e seguinte, fortalecida passará a concordar
com a agenda liberal fisiocrática, crendo-se entravada pela intervenção do Estado e
pelas inúmeras regulamentações económicas e sociais do Antigo Regime45.
45
Cf. VOVELLE, A revolução francesa 1789-1799, pp. 15-24
35
alcançar a melhor constituição política 46 . As finanças devem ser extremamente
simplificadas, a defesa nacional assegurada por voluntários pagos e não por um sistema
de milícias e recrutamento atentatórios da liberdade; a perseguição da religião e
costumes deve ser minimizada, a justiça só deve intervir quando solicitada por um
particular. Neste sistema onde o governo nada deve fazer, o sistema político a vigorar
acabava por ser indiferente desde que respeitasse esta premissa.
46
Conta-se a história de que um dia o delfim de França numa queixa ao médico do rei de que seria difícil
desempenhar o encargo real, Quesnay respondeu-lhe que não achava. Perplexo o jovem herdeiro
perguntou: «Que faríeis então, se fosseis rei?». «Senhor», responde Quesnay, «não faria nada». Cf.
DENIS, História do Pensamento Económico, pp. 180.
36
relações económicas são mecânicas e a história um mero conjunto de histórias47. Outra
conclusão perigosa será, crendo que as leis económicas são universalmente válidas, se
deverá obedecer e respeitar aos efeitos que estas produzem por mais aberrantes que
sejam.
47
Dois argumentos que podemos apontar para suportar este nosso ponto, podem ser os dois trabalhos
de Quesnay: Análise do Governo dos Incas do Peru (1767) e Despotismo da China (s.d.). Aqui, entre duas
sociedades organizadas em culturas milenaristas pode-se ilustrar quanto, para a ciência económica, é
independente da história.
37
PARTE V
INVENTÁRIO BIBLIOGRÁFICO
BLOCH, Marc
“La Historia Rural Francesa: caracteres originales”, Barcelona, Crítica,
1978
DENIS, H
“História do Pensamento Económico”, Livros Horizonte, 1990
ELLUL, Jacques
“Histoire des Instituitions. XVIe-XVIIIe siècle”, Volume 4, 8ª ed., Paris,
Presses Universitaires de France, 1984
FURET, François
“La Révolution. De Turgot à Jules Ferry (1770-1880)”, [s.n], 1990
HABAKKUK, H.J
“English population in the Eighteenth Century”, Economic History Review,
Dezembro 1953
38
KUNTZ, Rolf,
“François Quesnay. Economia”, São Paulo, Ática, 1984
MARTÍNEZ, Soares
“Economia Política”, Capítulo IV – A Evolução do Pensamento e dos
Factos Económicos, Almedina, 11ª ed., Coimbra, 2012
SHENNAN, J. H.
“A França antes da revolução”, Lisboa, Gradiva, 1989
SMELLIE, K. B.
Great Britain since 1688. A Modern History, University of Michigan
Press, Abril 2012
VOVELLE, Michel
“A revolução francesa. 1789-1799”, Edições 70, Junho de 2007
39
PARTE VI
ANEXOS
Ano Efeméride
1694 Nasce François Quesnay perto de
Versalhes, a 4 de Junho.
1700 Maior país europeu, possui cerca de 20
milhões de habitantes.
1702-13 Guerra da Sucessão de Espanha. Luís
XIV satisfaz a ambição de colocar o
seu neto no trono espanhol (Filipe V).
1709 Inverno severo em França, com fomes
1715-23 Morte de Luís XIV e regência de
Filipe, duque de Orleães.
1717 Início das operações de John Law com
a aquisição da Companhia do
Mississipi.
1718-20 Guerra da Quádrupla Aliança.
1720 Bancarrota em França. Peste em
Toulon e Marselha.
1726-43 O cardeal Fleury, antigo tutor de Luís
XV torna-se a eminência parda deste
rei até à data da sua morte.
1727 Nasce a 10 de Maio Jacques Turgot,
em Paris.
1731 Vaga de enclosures em Inglaterra.
1740 Guerra da Sucessão na Áustria.
40
1749 Criação do imposto da vintena em
França.
1751 Publicação do primeiro volume da
Enciclopédia.
1756 Eclosão da Guerra dos Sete Anos.
1758 Quadro Económico de François
Quesnay.
1761 Encerramento dos colégios jesuítas em
França. Novo Pacto Família para
aplacar o crescente poderio marítimo
inglês.
1768 Cultura da batata em França.
1774 Morte de F. Quesnay. Luís XVI é rei
de França.
1774-76 Turgot enquanto Intendente-Geral das
Finanças defende uma agenda próxima
dos fisiocratas
1788 Luís XVI convoca os Estados Gerais
para o ano seguinte
1789 O Terceiro Estado proclama a
“Assembleia Nacional” e em Julho a
Bastilha é tomada – início da
Revolução Francesa
41
ANEXO II – Evolução demográfica na Inglaterra (Reino Unido) ao longo do
século XVIII. Quadro retirado de
42
ANEXO III – Ilustração da Tabela Económica original, publicada por Quesnay
em 1759
43
ANEXO IV – Primeira parte do documento 43 Teorias Económicas do séc.
XVIII: O Fisiocratismo: os príncipios de Quesnay
44
ANEXO V – Segunda parte do documento 43 Teorias Económicas do séc. XVIII:
Observações críticas de Turgot à orientação dos fisiocratas
45