Livro Filosofia e Filosofias - Aluno
Livro Filosofia e Filosofias - Aluno
Livro Filosofia e Filosofias - Aluno
MD5:153653B3A847BDAF7B8FC4DDEA8882F9
Sistema Atlas - conversor DOCX linearizado PNLD2018 - Copyright © 2017 Editorial 5
Filosofia e
filosofias
EXISTÊNCIA E SENTIDOS
Filosofia | Ensino Médio | Volume único
1ª edição
Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos,
eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.
EDITORA RESPONSÁVE
Rejane Dias
EDITORA ASSISTENTE
Cecília Martins
ASSISTENTE EDITORIAL
Rafaela Lamas
PREPARAÇÃO DE TEXTO
Lúcia Assumpção
PESQUISA ICONOGRÁFICA
Juvenal Savian Filho
Ludymilla Duarte
Luísa Araujo
ILUSTRAÇÕES E CARICATURAS
Mirella Spinelli
REVISÃO
Aline Sobreira
Carla Neves
Lívia Martins
Maria Theresa Tavares
Renata Silveira
Roberta Martins
Tiago Garcias
DIAGRAMAÇÃO
Diogo Droschi
Guilherme Fagundes
Larissa Mazzoni
Tamara Lacerda
Waldênia Alvarenga
Belo Horizonte
Rua Carlos Turner, 420
Silveira . 31140-520
Belo Horizonte . MG
Tel.: (55 31) 3465 4500
São Paulo Av. Paulista, 2.073,
Conjunto Nacional, Horsa I
23º andar . Conj. 2301 .
Cerqueira César . 01311-940
São Paulo . SP
Tel.: (55 11) 3034 4468
Rio de Janeiro
Rua Debret, 23, sala 401
Centro . 20030-080
Rio de Janeiro . RJ
Tel.: (55 21) 3179 1975
www.grupoautentica.com.br
Página 3
Caros estudantes,
Bem-vindos ao livro Filosofia e filosofias: existência e sentidos.
Meu desejo é construir junto com vocês alguns modos de vivermos experiências filosóficas
diversificadas e intensas!
Se este é o primeiro contato de vocês com a Filosofia, o livro permitirá dar os primeiros passos e
entrar no mundo fascinante em que o pensamento se pensa a si mesmo. Se vocês já têm contato
com a reflexão filosófica, encontrarão aqui caminhos para ir mais longe.
Tudo neste livro foi elaborado com cuidado para oferecer possibilidades de compreender
filosoficamente a nós mesmos, aos outros e ao mundo na companhia de diferentes filósofas e
filósofos, esses nossos amigos mais velhos!
A Unidade 1 abre as portas da Filosofia aos que não a conhecem e convida os que já a conhecem a
atravessá-las com olhar renovado. A Unidade 2 é uma coleção de temas bastante significativos em
nossa vida cotidiana e que aqui são tratados filosoficamente. Por essa razão, ela é maior do que as
Unidades 1 e 3. A Unidade 3, por sua vez, organiza de modo didático alguns elementos que
aparecem nas Unidades 1 e 2 e contribui para o estudo sistemático da história do pensamento
filosófico.
Seja individualmente, seja com seus companheiros de escola, vocês poderão ler este livro de
maneira linear, quer dizer, indo do começo ao fim. Mas também poderão explorar os capítulos fora
da ordem em que se encontram, pois eles são autoexplicativos. Além disso, caso desejem uma
abordagem histórica tradicional (partindo da Antiguidade, passando pela Idade Média, pelo
Renascimento e pela Modernidade, até chegar aos nossos dias), os capítulos 5, 6 e 7 da Unidade 2
permitem um estudo desse tipo, por meio da reflexão filosófica sobre o amor. Mesmo esses
capítulos podem ser estudados separadamente; mas, em conjunto, eles formam uma unidade
dentro da Unidade 2.
O livro contém ainda uma grande quantidade de textos escritos por filósofas e filósofos, além de
recursos culturais (documentos científicos, filmes, obras literárias, pinturas, músicas etc.) dos quais
nascem as reflexões aqui apresentadas ou que podem ser tomados como ocasião para continuar a
filosofar. Os títulos que acompanham os textos filosóficos nem sempre foram dados pelos
pensadores que os escreveram, mas foram elaborados por mim, a fim de chamar a atenção para os
pontos centrais de cada construção textual.
O que proponho é que filosofemos juntos, quer dizer, que pratiquemos juntos atos filosóficos em
torno de assuntos diversos, procurando desenvolver o hábito da Filosofia ou do filosofar. Vocês
perceberão que a atividade filosófica vai muito além da formação escolar, porque envolve muitos –
senão todos – aspectos da nossa vida. No entanto, a escola continua sendo um lugar privilegiado
para praticar a Filosofia, pois nela temos a possibilidade de nos beneficiar da companhia de nossos
professores, amigos, colegas e todos os membros que compõem o ambiente formativo.
Espero que vocês aproveitem ao máximo a minha proposta e tenham o desejo de ir além deste livro,
encontrando os próprios filósofos e filósofas por meio de suas obras, indicadas na bibliografia final,
e obtendo muito prazer com a atividade de pensar sobre o próprio pensamento.
Acesse:
Página 4
Sumário
Apresentação
UNIDADE 1
Portas para a Filosofia
1. Desconstruir para compreender 10
1. A porta da existência 10
2. A porta dos saberes 16
3. O que é Filosofia? 30
1. O que leva alguém a filosofar? 30
2. Filosofia e razão 33
3. Uma definição de Filosofia 35
UNIDADE 2
Temas tratados filosoficamente
1. O sentido da existência 72
1. Sentido e significado 73
2. Não é possível falar sobre o sentido da existência 75
3. É possível falar sobre o sentido da existência 77
4. A existência não tem sentido; é absurda 84
2. A felicidade 90
1. Do prazer à felicidade 90
2. A felicidade e o conjunto dos prazeres 94
3. A felicidade como atividade e plenitude 101
Dissertação de problematização 106
3. A amizade 108
1. A amizade como jogo de espelhos 110
2. A amizade como atividade 112
Símbolo que remete a páginas do Manual do Professor em que são oferecidos materiais de apoio
didático-pedagógico.
Sensibilização para o estudo do tema com base em experiências cotidianas e recursos culturais (dados
científicos, filmes, músicas, depoimentos etc.).
Textos filosóficos que orientam a reflexão de cada capítulo. Os títulos são dados por este livro, a fim de
chamar a atenção para o tema central de cada texto.
Informações sobre a vida e a obra dos filósofos, com o objetivo de situá-los no tempo e no espaço.
Ao longo de todo o livro indicam-se vários links filosóficos e culturais. Você pode consultá-los de seu
computador ou de seu smartphone lendo os códigos ópticos.
p. 407
Página 7
Remissão a conteúdos tratados em outra página (você pode ir à página indicada e encontrar
informações de esclarecimento e/ou de aprofundamento).
Indicação de conceitos bastante empregados pelos filósofos e em um sentido o mais geral possível.
Sugestões de filmes, obras literárias e sites que podem ser explorados com base no conteúdo estudado
no capítulo.
Completam ainda este livro um Índice analítico, com os termos e nomes mais recorrentes, e uma
Bibliografia com referências às obras filosóficas citadas no decorrer do livro. O Índice permite
localizar facilmente termos e nomes; a Bibliografia é um convite para que você supere este livro e vá
direto às fontes das quais ele surgiu: as obras dos próprios filósofos e filósofas.
Exercícios complementares de redação, reflexão e análise filosófico-cultural.
Página 8
UNIDADE
Filosofia
1 Portas para a
YOMKA/SHUTTERSTOCK.COM
Desconstruir não significa destruir, mas analisar, decompor, desmontar, a fim de compreender o modo como
algo é construído.
P ara atravessar as duas portas da Filosofia que vamos apresentar aqui, precisamos identificá-
las, conhecê-las e saber como elas se abrem. Em outras palavras, precisamos compreendê-las.
Uma forma de fazer isso é desconstruí-las, quer dizer, desmontá-las para ver como funcionam. Não
significa destruí-las. É como se fizéssemos um caminho de trás para frente, assim como um
marceneiro separa tábua por tábua de uma porta para saber como essas tábuas, juntas, formam a
porta; ou como um técnico que desmonta um celular peça por peça para conhecer o mecanismo de
seu funcionamento.
1 A porta da existência
Algumas pessoas chegam à Filosofia fazendo a seguinte pergunta:
Mesmo que você nunca tenha feito essa pergunta, pode entender alguns dos seus significados, pois
ela costuma desdobrar-se em outras questões mais cotidianas:
1) Por que ir à escola todos os dias, durante vários anos?
2) Por que trabalhar durante anos e anos em nossa vida?
3) Por que nos preocupamos tanto com o amor?
4) Por que preciso cuidar do meu corpo?
5) Por que não tenho o corpo que eu gostaria de ter?
6) Por que tenho de ser como meus amigos?
7) Por que há ricos e pobres no mundo?
Página 11
1) Vamos à escola para nos preparar para a vida e para entrar no mundo do trabalho.
2) Trabalhamos para ter um lugar na Sociedade e comprar o que desejamos.
3) Preocupamo-nos com o amor porque só assim não ficaremos sozinhos.
4) Devemos cuidar do corpo para ter beleza e saúde.
5) Não tenho o corpo que queria porque sou assim ou porque também não me cuido muito.
6) Sou como meus amigos porque somos parecidos e nos sentimos bem com nosso jeito de ser.
7) Há ricos e pobres porque o mundo é injusto e porque alguns não trabalham muito.
É claro que outras respostas poderiam ser dadas, mas essas bastam para termos uma amostra de
como podemos começar a filosofar com base nelas.
Observando as perguntas 1-4 e suas respectivas respostas, vemos que as pessoas procuram
explicações para o objetivo ou a finalidade de nossa existência. Então, a pergunta Por que existimos?
seria a mesma que Existimos para quê?
Chegamos, assim, a um primeiro dado interessante: a pergunta Por que existimos? pode ser
respondida tanto da perspectiva da finalidade (Existimos para...) como da causa (Existimos por
causa de...).
Para continuar nosso caminho, vamos ler uma fábula contada pelo poeta persa Rumi (Jalal ad-Din
Muhammad Rumi), que viveu de 1207 a 1273. Ícone: Texto filosófico
Os quatro mendigos
Rumi
Quatro mendigos receberam uma moeda de um passante:
– Com essa moeda, vocês podem satisfazer sua vontade. Para vocês, cada palavra é uma fonte de
conflito. Mas, para mim, cada palavra é um guia para a união. Vocês todos, sem perceber, querem a
mesma coisa: uva!
RUMI. Le Mesnevi: 150 contes soufis. Paris: Albin Michel, 1988. p. 56-57. (O Mesnevi: 150 contos sufis. Tradução nossa.)
REPRODUÇÃO
Rumi, desenho anônimo no livro Collection of poems of Molavi (Penguin Books, 1980).
O ponto central do conto está, como diz Rumi, nas palavras que um sábio diria se estivesse presente
na cena, uma vez que tais palavras mostram o porquê da falta de compreensão entre os mendigos:
eles não se entendem porque cada um, mesmo querendo ser compreendido pelos outros, adota um
modo problemático de falar. Se os quatro sabiam empregar uma língua comum, por que, então, ao
se referir à uva, cada qual usava a palavra da sua língua materna, e não a palavra da língua comum?
Além disso, ao não entender o que cada um tinha dito, por que os outros não pediram explicações?
Por que discordavam sem realmente entender?
Página 12
MIRELLA SPINELLI
Projetando a moral desse conto à busca do sentido da existência, podemos já perceber uma das
maneiras de operar da Filosofia. Ela procura saber, antes de tudo, se falamos ou não da mesma
coisa quando damos diferentes respostas para esse sentido.
Assim, mais do que oferecer respostas definitivas, a Filosofia busca esclarecer o significado ou o
sentido daquilo que está por trás das respostas e das próprias perguntas. No que se refere ao
sentido da existência, a primeira tarefa filosófica é perguntar: Do que se fala quando se fala do
sentido da existência? É da causa? É da finalidade? É de outra coisa? É de um significado que a
existência tem em si mesma ou de um significado que é construído pelos próprios seres humanos?
Esse procedimento filosófico vale para todos os assuntos que são tratados filosoficamente. Ele
consiste em desconstruir as perguntas e as respostas; trata-se de desmontá-las, a fim de entender
tudo o que as compõe.
Para tornar mais claro esse procedimento, retomemos as perguntas e as respostas que levantamos
acima como componentes da pergunta maior sobre o porquê de existirmos.
A respeito das próprias perguntas, já esclarecemos que elas buscam conhecer a finalidade e a causa
das várias situações. Agora, visando à desconstrução, vamos nos concentrar na resposta dada à
pergunta sobre o porquê de ir à escola todos os dias:
Vamos à escola para nos preparar para a vida e entrar no mundo do trabalho.
A resposta afirma que o sentido dos estudos é preparar-nos para a vida e para a entrada no mundo
do trabalho. Nela, há pelo menos três ideias: a finalidade da escola é preparar-nos para a vida e para
o trabalho; a causa de irmos à escola é nosso desejo de nos preparar para a vida e para o trabalho;
quando vamos à escola, preparamo-nos de fato para a vida e para o trabalho.
Se aceitarmos essa resposta, significará que entendemos a escola em função da vida e do trabalho.
Ora, o que são a vida e o trabalho?
Há diferentes significados tanto para a vida como para o trabalho. Vamos nos concentrar no modo
geral como as pessoas falam de ambos. O trabalho costuma ser associado às profissões exercidas
pelos adultos. Isso permite entender também como as pessoas, em geral, falam da vida: ela significa
trabalhar, descansar, amar, sofrer etc., tal como fazem os adultos. Parece, portanto, haver um
sentido bastante claro para a resposta que analisamos: a escola prepara os estudantes para
reproduzir o que fazem os adultos.
Mas esse sentido permite perguntar: a vida e o trabalho dos adultos são a única possibilidade que
temos em nosso horizonte? Devemos ser como eles são?
Ao refletir sobre essa outra maneira de entender a vida escolar, observamos que cada estudante
tem capacidades a serem despertadas e desenvolvidas sem necessariamente visar à repetição pura
e simples do
Página 13
que fazem os adultos. Estudar Língua Portuguesa, Literatura, História ou Matemática pode ser uma
atividade cuja finalidade é o próprio aprendizado ou o desenvolvimento das capacidades
intelectuais e afetivas dos estudantes. Alguém poderia retrucar, dizendo que História é inútil para
quem pretende trabalhar em um hospital ou que Matemática só serve para quem vai trabalhar com
números. A pobreza desse pensamento é evidente, pois desvaloriza o aprendizado por si mesmo,
privilegiando apenas os resultados práticos, como se o ser humano devesse apenas repetir as
funções já existentes.
Podemos também perguntar se, do ponto de vista histórico, a opinião que associa a escola à vida
adulta e às profissões dos adultos é uma opinião adequada. Afinal, vemos muitas pessoas que
terminam sua formação escolar sem estar preparadas para a “vida” ou para o “trabalho”, dado que o
mundo adulto nem sempre lhes oferece espaço para trabalhar e as mantém à margem da Sociedade.
Ir à escola, portanto, não significa necessariamente uma garantia para “entrar na vida e no
trabalho”! Além disso, ir à escola já é vida! Por que, então, dar a entender que a escola prepara “para
a” vida? Os estudantes já não vivem?
Essa problematização revela como é construída a resposta dada à pergunta. Ela a desconstrói, quer
dizer, ela a desmonta e faz vir à tona o que está por trás dessa forma de pensar.
Nesse espírito, podemos também desconstruir a resposta que vê na escola o lugar e a experiência
de um desenvolvimento pessoal, a fim de entender o que essa resposta contém e observar se ela é
coerente.
Essa segunda resposta para a mesma pergunta sobre o sentido de ir à escola afirma que tal sentido
é desenvolver nossas capacidades de conhecer e criar relações.
É uma resposta com um grau de generalidade maior do que o grau da primeira resposta, quer dizer,
não entra em detalhes assim como fazia a primeira resposta, ao se referir à vida e ao trabalho.
LIGHTSPRING/SHUTTERSTOCK.COM
Ao mesmo tempo que os estudantes precisam de modelos que os inspirem, é questionável pensar que a
educação é apenas uma preparação para entrar nas engrenagens do mundo adulto.
Página 14
A desconstrução e a intersubjetividade
No século XX, ela ficou associada especialmente à obra do filósofo franco-argelino Jacques Derrida
(Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 114) e do filósofo alemão Martin Heidegger (Ícone:
Conteúdo tratado em outra página p. 235).
Heidegger empregava o termo alemão Destruktion, que não significa necessariamente “destruição”
(Zerstörung), mas o trabalho de revelar como um pensamento é construído. Em língua francesa, foi
proposto o termo déconstruction para traduzir a Destruktion de Heidegger, correspondendo, em
português, adesconstrução. Um dos responsáveis por essa tradução foi Derrida, que assumiu como
prática fundamental de sua filosofia a atividade de decompor (desconstruir, desmontar) as
diferentes formas de pensamento, trazendo à luz aquilo que permanece oculto ou pressuposto
(Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 44) nessas mesmas formas.
O sentido da desconstrução nas filosofias de Heidegger e Derrida é mais amplo e mais rico do que
aqui apresentamos. No entanto, os elementos que destacamos na obra desses dois filósofos já são
suficientes para entendermos a desconstrução como prática filosófica e para nos fixarmos no
aspecto da desmontagem que visa à compreensão. Dessa perspectiva, a desconstrução se mostra
uma atividade muito antiga em Filosofia. Na Idade Média, grande parte dos filósofos iniciava sua
reflexão filosófica pela análise das opiniões dos pensadores de quem eles discordavam. Pedro
Abelardo (1079-1142), por exemplo, praticava a Filosofia em dois momentos: um momento que, em
latim, chamava-se pars destruens (parte desconstruidora, podendo ser também destruidora quando
terminava na recusa de algum pensamento) e um momento chamado de pars construens (parte
construidora, ou seja, exposição do pensamento do próprio Abelardo).
Mesmo sem adotar um vocabulário como esse, filósofos antigos já praticavam algo semelhante à
desconstrução, sobretudo depois dos sofistas (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 83), de
Sócrates (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 157) e de Platão (Ícone: Conteúdo tratado em
outra página p. 82), que construíam suas filosofias tomando por ponto de partida a análise ou a
desconstrução de pensamentos que circulavam em sua época. Aliás, alguns filósofos gregos já
usavam a palavra análise no sentido em que aqui falamos da desconstrução. Essa palavra
significava “decomposição” ou mesmo “dissolução”, assim como ainda hoje se fala que um químico
faz uma análise (uma divisão, decomposição ou dissolução) de substâncias compostas. Em
contrapartida, os gregos também falavam de síntese, termo que, em nosso livro, corresponde à
reconstrução ou à recomposição do que foi decomposto ou desconstruído (ver o próximo capítulo
desta Unidade).
Uma forma de apontar para a semelhança na prática da desconstrução nesses diferentes autores
consiste em pensar na intersubjetividade. Com essa palavra, alguns pensadores defendem que
pensamentos, opiniões e visões de mundo são sempre construídos por comparação com o que
outras pessoas pensam. Em outras palavras, ninguém constrói um pensamento olhando
simplesmente para a realidade; o olhar é sempre influenciado pelo que outras pessoas já viram e
exprimiram. Assim, toda forma de pensar nasce do encontro de pessoas concretas e da comparação
entre os pensamentos que elas formulam. Pensar, ter opinião ou formar uma visão de mundo são
atividades praticadas entre sujeitos, quer dizer, entre indivíduos e grupos; daí o nome
intersubjetividade (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 351).
Nesse sentido, desconstruir significa iniciar a reflexão pela análise do modo como os pensamentos,
as opiniões e as visões de mundo são montados por aqueles com quem dialogamos. Por
conseguinte, o melhor debate filosófico não se dá apenas pela comparação de conclusões (os
pensamentos já montados), mas pela comparação da estrutura ou montagem que leva a essas
conclusões.
Carlos Neto/Schutterstock.com
Desconstruir é tornar explícito tudo o que compõe e estrutura um pensamento. O estilo de alguns trabalhos do
arquiteto canadense, naturalizado norteamericano, Frank Gehry (1929-) lembra a atividade da desconstrução
filosófica, pois deixa à vista a armação que sustenta suas criações e as torna atraentes.
Página 15
Aliás, em se tratando de “capacidades de conhecer e de criar relações”, essa segunda resposta inclui
a primeira, pois a preparação para a vida e para o trabalho pode ser entendida como o
desenvolvimento de duas capacidades. Permanecendo no âmbito mais geral, a segunda resposta
parte do pressuposto de que temos capacidades a desenvolver, especialmente a de criar relações; e
a escola seria um meio de desenvolver tais capacidades.
Ao analisar os elementos que compõem essa resposta, ninguém duvidará que realmente temos
capacidades (de conhecer, de estabelecer relações, de ter sentimentos sociais como o da amizade,
da partilha, do desafio, da defesa etc.). Os seres humanos são seres que pensam sobre o mundo e
sobre si mesmos, relacionando-se com o conjunto de tudo o que há no mundo, especialmente os
outros seres humanos. Parece coerente, portanto, entender a escola como uma experiência do
desenvolvimento de capacidades.
Essa concepção, porém, é insuficiente para afirmar que a escola sempre desenvolve nossas
capacidades, dado que muitas escolas só visam à repetição do que fazem os adultos. Elas
desenvolvem apenas as capacidades necessárias para introduzi-los nas formas de vida social
organizadas segundo interesses específicos (principalmente econômicos).
Além disso, também parece inadequado pensar que só podemos desenvolver nossas capacidades
por meio da escola. Há muitas outras maneiras de os seres humanos se desenvolverem; e a escola é
apenas uma delas.
No entanto, exatamente pelo fato de a segunda resposta ser construída com um alcance mais geral
do que a primeira, ela se mostra uma boa resposta, uma vez que insiste nas capacidades dos
estudantes. O fato de algumas escolas se concentrarem em apenas algumas dessas capacidades e o
fato de as pessoas poderem se desenvolver também fora da escola não diminuem a coerência do
pensamento que considera a escola como experiência de desenvolvimento pessoal.
A desconstrução da segunda resposta revela, então, que ela é bem construída e que seu sentido é
bem justificado. O processo de desconstrução, nesse caso, já é também um processo de
reconstrução, visto ser possível assumir como nossa própria visão essa mesma que desmontamos
para compreender. No caso da primeira resposta (preparação para a vida e o trabalho), a
desconstrução leva a abandoná-la por causa de suas fragilidades. Mas a desconstrução da segunda
resposta permite reconstruí-la e aceitá-la.
EXERCÍCIO A
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 421
O procedimento de desconstrução pode ser aplicado às outras questões que fizemos quando
desmembramos a pergunta principal sobre o sentido da existência. Em grupos e sob a
orientação de seu(sua) professor(a), escolha uma daquelas questões e a respectiva resposta
que já levantamos nos exemplos (sobre o trabalho, o amor, o corpo, a amizade e a existência de
ricos e pobres). Desconstrua a resposta e, em seguida, diga se o seu grupo concorda com ela ou
discorda dela. Não se esqueça de justificar a posição tomada pelo seu grupo!
Com efeito, cultivando os mais diferentes saberes (as ciências, as artes, as religiões), podemos
chegar a algumas perguntas que os próprios saberes são incapazes de responder. A Filosofia, então,
pode orientar a formulação dessas perguntas e mesmo a busca de respostas.
Falaremos de saber, aqui, em um sentido bastante amplo, como sinônimo de todo conjunto de
conhecimentos que permitem a cada pessoa construir sua visão do mundo. Conhecimento, por sua
vez, também tem aqui um sentido amplo. Refere-se a todo tipo de informação que é construída em
debate com uma comunidade de interlocutores e que é justificada nesse mesmo debate.
1
Somente assim podemos tratar áreas tão distintas como as ciências, as artes e as religiões como
“saberes”. O saber ocorre de fato quando as pessoas tomam posse de um conjunto de informações
registradas em livros, artigos, obras (de arte, por exemplo) ou outros meios de registro e dão vida a
essas informações, concretizam aquilo que está registrado. Sem pessoas não há saber; há somente
livros e obras em bibliotecas, museus e laboratórios, à espera de serem acionados.
O que conduz à Filosofia é o fato de que, na prática dos diferentes saberes, surgem algumas
perguntas específicas a que os saberes mesmos não respondem. Formular essas perguntas e
procurar respondê-las é cruzar a porta da reflexão filosófica.
REPRODUÇÃO
As ideias de alguém podem ser debatidas. Podemos também discordar delas. No entanto, a pessoa cujo
pensamento analisamos sempre merece respeito. É o que se espera dos filósofos, que buscam compreender
honestamente o nosso modo de viver e de pensar.
Consideremos um exemplo vindo das ciências: conforme uma das imagens mais comuns do
conhecimento científico, costuma-se acreditar que ele consiste em um conhecimento seguro sobre
“fatos”, quer dizer, sobre acontecimentos do mundo. As ciências produziriam “retratos” do mundo
(retratos dos fatos) e não faria sentido duvidar do que elas dizem. Suas afirmações teriam sempre
um significado claro e produziriam um conhecimento seguro.
No entanto, essa imagem do conhecimento científico pode ser desconstruída. Um caso bastante
adequado para ser tomado como exemplo provém da Física e refere-se ao que ficou conhecido
como a lei da gravidade ou lei da atração universal. No modo como ela é mais conhecida, essa lei foi
formulada por Isaac Newton (1643-1727) com base em suas próprias observações e em seu
conhecimento do trabalho de outros cientistas e filósofos, principalmente Galileu Galilei (1564-
1642) e Johannes Kepler (1571-1630).
Isaac Newton procurava explicar o fato de que os corpos ou as realidades físicas interagem entre si,
causando atração mútua sob o efeito de sua massa . 2
Ícone: Glossário
2Massa: o que Newton chama de massa pode ser resumido como a quantidade de matéria de um corpo. A
matéria, por sua vez, seria aquilo que compõe todos os corpos ou realidades físicas.
exerce sobre nós, impedindo-nos de flutuar. A essa atração chamamos gravidade. Podemos também
evocar outros fenômenos naturais, como as marés, a órbita dos planetas em torno do Sol e mesmo a
esfericidade dos corpos celestes. Pode-se dizer que, em grande escala, a gravitação determina a
3
estrutura do Universo; todos os corpos obedecem a essa lei, a lei da gravitação universal, que pode
ser assim formulada: “Dois corpos atraem-se com forças de mesmo valor, proporcionais à massa
desses corpos e inversamente proporcionais ao quadrado da distância que os separa”.
Esse procedimento leva, então, a tratar a gravitação como um fato. Ela é um acontecimento que
pode ser observado e explicado com base em outros fatos. Além disso, a gravitação tem um modo
regular de ocorrer.
No entanto, desde o início do século XX, a Ciência deu outra explicação para o mesmo fato, ou seja,
para a mesma gravitação ou gravidade observada no mundo.
Com efeito, Albert Einstein (1879-1955) percebeu que, em sua explicação, Isaac Newton acreditava
que os corpos possuem uma velocidade absoluta, ou seja, encontram-se “realmente” em repouso ou
“realmente” em movimento. Por isso, segundo Newton, a velocidade de um corpo só pode ser
medida em relação à velocidade de outro corpo, assim como sua posição só pode ser medida em
relação à posição de outro corpo. Independentemente da distância, dá-se a interação dos corpos
(gravitação) em uma velocidade instantânea.
Einstein pergunta sobre o que significa o advérbio realmente. Sua base também era um fato: a
velocidade da luz. Ele explicava que a luz move-se mais rapidamente do que qualquer outra coisa,
porque não tem massa. Além disso, no seu dizer, todo corpo tem aumento de massa quando
aumenta sua velocidade, pois aumento de velocidade significa aumento de energia. Isso é mais
facilmente compreensível se tratarmos de velocidades elevadas em vez de velocidades baixas, como
aquelas às quais estamos acostumados.
Velocidades baixas são, por exemplo, 80 km/h, 90 km/h, 110 km/h e 120 km/h. As duas primeiras
(80 ou 90 km/h) são limites de velocidade para ônibus em estradas brasileiras. Como muitos de nós
já tomaram ônibus, é mais fácil ter uma noção dessa velocidade. As duas últimas (110 ou 120 km/h)
são limites para carros de pequeno porte nas estradas. Também compreendemos essas velocidades.
Uma velocidade alta, no sentido em que fala Einstein, é, por exemplo, 1.666 km/h. É a velocidade
aproximada com que a Terra faz um giro inteiro em torno de si mesma. Poderíamos dizer que
entendemos essa velocidade, de certo modo, porque sabemos que a Terra leva 24 horas (um dia)
para dar esse giro. Na verdade, porém, não temos experiência direta do que significam 1.666 km/h.
A revisão da lei da gravidade de Newton feita por Einstein só pode ser confirmada nos casos das
velocidades altas, o que torna difícil entender essa revisão. No caso das velocidades baixas,
continuamos a aceitar a lei de Newton, por ser facilmente observada em nossa experiência direta.
No entanto, o fato de ser difícil compreender os detalhes da visão de Einstein não nos impede de
entender sua revisão da lei de Newton: só falamos de velocidade instantânea porque enfatizamos o
espaço e a força dos corpos; se considerarmos também o tempo, como fez Einstein, ou o espaço-
tempo, como ele dizia, entenderemos que não é fácil acreditar que os corpos estão “realmente” em
movimento ou em repouso. O movimento e o repouso são relativos à fonte do movimento e a quem
observa o mesmo movimento.
VectoriX/Shutterstock.com
A realidade corresponde realmente ao que percebemos dela e ao que pensamos sobre ela?
Por isso Einstein dirá ainda que a gravitação funciona por ondas, em vez de uma trajetória
retilínea . Para compreender melhor, tente imaginar
4
Ícone: Glossário
que espaço e tempo são inseparáveis e formam uma unidade. Se segurarmos uma toalha de mesa
bem reta e pusermos uma bola sobre ela, a ponto de evitar qualquer variação, a bola ficará em
repouso; só se moverá se outra coisa a mover. Segundo Einstein, entretanto, essa imagem não
corresponde ao Universo. Tudo no Universo se encontra numa posição relativa, como se
pegássemos uma toalha de mesa com uma bola no centro, formando um campo de influência sobre
tudo o que for posto sobre essa toalha. Entre as pontas da toalha e o centro há, portanto, um trajeto
não retilíneo, mas curvo, de modo que tudo o que pusermos sobre essa toalha será atraído pelo seu
centro. Assim, em vez de simplesmente tratar a gravitação como força, Einstein irá considerá-la
como a curva criada pelo espaço-tempo, produzida pela distribuição da energia e variável segundo
a posição do observador.
Outro exercício de imaginação pode ajudar-nos aqui: suponhamos que o Sol deixe de existir. Se ele é
a fonte da nossa órbita (o movimento mais ou menos circular dos planetas), quanto tempo passaria
até que a Terra saísse de órbita? De acordo com a visão de Newton, já que a velocidade da
gravitação é instantânea, sairíamos imediatamente de órbita. Porém, de acordo com a visão de
Einstein, visto que a luz do Sol demora cerca de oito minutos para chegar até nós e visto que a
gravitação opera por ondas cuja velocidade máxima é a da luz, demoraríamos então até cerca de
oito minutos para sair de órbita.
No âmbito das grandes velocidades, portanto, a teoria de Newton mostra-se inadequada, mas
continua válida para explicar pequenas velocidades e campos de gravitação fraca. A teoria de
Einstein, englobando a de Newton, não a anula; apenas mostra-se mais completa.
MYSID/WIKIMEDIA COMMONS
Representação imaginativa do que significa dizer, segundo Einstein, que a gravitação opera por ondas.
A maioria dos cientistas, porém, não se preocupa exatamente com questões desse tipo. Eles partem
do princípio de que há leis naturais e procuram encontrá-las, a fim de explicar os fatos. Quando os
cientistas e interessados em Ciência começam a levantar questões como essas, eles se tornam
filósofos. Há uma área da Filosofia chamada, aliás, de Filosofia da Ciência. Seu objetivo é justamente
Página 19
refletir sobre a prática científica e todas as ideias, crenças e métodos com que a Ciência opera sem
necessariamente refletir sobre eles. Em outras palavras, os filósofos da Ciência desconstroem os
conhecimentos científicos, a fim de conhecer melhor o seu sentido.
Esses são apenas alguns exemplos de perguntas que caracterizam a curiosidade filosófica nascida
com o conhecimento científico. Tal curiosidade surge também diante de outros saberes. Diante de
manifestações artísticas, pode-se perguntar: o que é arte? O que é beleza? Por que as obras de arte
costumam ter preços elevados? Diante de práticas religiosas, podem surgir questões como: quem
ou o que é Deus? Como saber que a experiência religiosa não é uma fantasia? O que leva alguém a
considerar sagrado um livro que foi escrito por seres humanos?
Quando os praticantes dos saberes (cientistas, artistas, religiosos e interessados em geral pelos
saberes) dão atenção a tal curiosidade, começam a filosofar. Cruzam a porta que leva dos saberes à
Filosofia.
EXERCÍCIO B
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 421
Considerando que nas artes e nas religiões a Filosofia pode operar uma desconstrução a fim de
esclarecer o que essas práticas envolvem, reúna-se em grupo sob orientação de seu(sua)
professor(a). Cada grupo deve refletir e levantar perguntas sobre a arte e a religião,
semelhantes às que foram levantadas neste capítulo a respeito do conhecimento científico.
Vocês podem partir de perguntas muito concretas, na forma se... então...? Alguns exemplos: Se
a arte está relacionada à beleza, então toda arte é bela? Se a religião fala de Deus, então as
religiões sabem quem é ele? Para montar essas perguntas, vocês devem partir de sua
experiência cotidiana, daquilo que vocês observam na prática artística e religiosa. Tomem
como inspiração as imagens e legendas ao lado.
Marcel Duchamp (1887- 1968), Fonte, 1917, instalação. Exposição da Sociedade de Artistas Independentes,
Nova York. Enviado a uma exposição de arte, o objeto de Duchamp “não é” mais uma peça sanitária; torna-se
um convite à reflexão.
RURSUS/WIKIMEDIA COMMONS
Símbolos de algumas religiões, desenho anônimo. Primeira linha: cristianismo, judaísmo, hinduísmo. Segunda
linha: islamismo, budismo, xintoísmo. Terceira linha: sikh dharma (siquismo), religião bahá’i, jainismo.
Página 20
CAPÍTULO
AINDA MELHOR
2 RECONSTRUIR PARA COMPREENDER
KATE RIEDLSPERGER
Grafite de artista anônimo(a) na Rua José Paulino, São Paulo, durante a época de Natal, 2013.
Dessa perspectiva, a Filosofia mostra ser mais do que uma simples atividade de fazer perguntas. Ela
pode fazer propostas para exprimir o modo como percebemos o mundo e a nós mesmos.
Para visualizar melhor o que isso significa, retomemos a imagem da capa deste livro. Nela, aparece
uma pergunta que pode ser respondida pelas ciências humanas, especialmente a Sociologia, a
História e a Antropologia. Muitos filósofos, porém, também ofereceram respostas para esse tipo de
pergunta, sem repetir, no entanto, o que dizem as ciências humanas.
Essa imagem é um grafite. Alguns talvez digam que ela é uma pichação. Quem a chama de pichação
pode querer dar a ela um sentido negativo, defendendo que escrever em lugares públicos é um ato
de vandalismo.
Olhando porém com mais atenção, percebemos que a imagem não é uma simples inscrição, feita de
qualquer jeito e com o objetivo de sujar o espaço público. Ao contrário, o(a) autor(a) pensou na
forma como iria escrever, usou letras bem desenhadas, em harmonia, e introduziu a imagem de
uma pessoa com uma bomba de spray. A imagem parece até um espelho: o(a) próprio(a) autor(a)
reflete-se na imagem. Trata-se de um gesto, portanto, de expressão de si mesmo, chamando para
um diálogo.
A imagem foi construída na parede externa de uma banca de jornal. Talvez o(a) proprietário(a) da
banca tenha autorizado o grafite. Na parede está carimbada a frase “Proibido colar cartazes”. Mas
o(a) artista riscou a palavra “Proibido”, deixando apenas “Colar cartazes”, em um convite à
manifestação artística.
Você deve ter notado que passamos a usar as palavras artista e arte. Fizemos de propósito, pois a
inscrição da imagem não é banal; tem elaboração e revela a busca por uma expressão bela.
A propósito, a técnica de escrever com beleza em paredes públicas é tão antiga quanto a
Humanidade. O uso da palavra grafite (termo que vem do italiano graffiti, plural de graffito), além
de designar o mineral do qual se fazem bastões para escrever, passou a designar os desenhos e as
inscrições em superfícies usadas como meios de comunicação. Há registros de grafites muito
antigos, como os do sítio arqueológico de Alta, na Noruega (com cerca de 6.200 anos), ou os da
cidade de Pompeia, na Itália, que foi incendiada no ano 79, por uma erupção do Vesúvio.
À esquerda: grafite no sítio arqueológico de Alta (Noruega), aproximadamente do ano 4200 a.C. À direita:
grafite nas ruínas de Pompeia (Itália), cidade incendiada no ano 79.
Essas informações já nos permitem um primeiro exercício filosófico: qual a fronteira entre o
vandalismo e a expressão artística?
Segundo a lei, vandalismo é todo ato que destrói ou ataca bens públicos ou particulares. De fato, não
é adequado fazer pichação e agredir bens públicos e particulares. Porém, não é vandalismo o ato
que põe
Página 22
as pessoas em relação a coisas belas, sem prejudicar o meio social. Não é difícil perceber a diferença
entre manifestação artística e vandalismo.
EQROY/SHUTTERSTOCK.COM
Pichação na Fonte Monumental, Praça Júlio Mesquita, São Paulo, 2011. A diferença entre o grafite e a pichação
(vandalismo) está no fato de a pichação não ter valor estético e agredir o patrimônio público.
Podemos pensar, então, que o(a) artista da frase da banca de jornal não quis atacar a propriedade
de alguém; ao contrário, quis registrar com beleza a sua experiência do mundo, convidando os
passantes a refletir com ele(a).
Esclarecido que essa frase não é um ato de vandalismo, podemos agora analisar seu conteúdo. Ela
está escrita em espanhol e pode ser traduzida em português da seguinte maneira:
Há pelo menos duas palavras que mais interessam aqui: objetos e substância. Se entendermos bem a
palavra substância, poderemos entender a expressão substância do mundo e a própria pergunta se
os “objetos” são a “substância do mundo”.
Ao falar de substância, um dos primeiros sentidos que vêm à mente é um sentido químico:
substância é aquilo de que alguma coisa é feita (como as substâncias de um bolo, ou seja, farinha,
ovo, açúcar, fermento e leite, ou como as substâncias de um prédio: cimento, água, ferro etc.).
O uso filosófico, porém, identifica outros significados para a palavra substância. Baseando-se em
nosso vocabulário cotidiano, a Filosofia também emprega o significado químico (o material de que
alguma coisa é feita), mas identifica pelo menos dois outros significados: substância é tudo o que
existe (uma coisa, uma emoção, uma imagem, um pensamento etc.); e substância é ainda aquilo que
tem sentido para nós (porque captamos esse sentido ou porque o construímos). De acordo com o
significado de coisa, podemos dizer, por exemplo, que “Esta árvore é uma substância”, “Minha
alegria é uma substância” etc. (elas existem e solicitam um ato de compreensão de nossa parte). Já
de acordo com o significado de aquilo que tem sentido para nós, podemos dizer: “A substância
dessa árvore é o fato de ela ser uma planta” ou “A substância da minha alegria é o fato de ela ser
uma emoção”. Passa-se, então, daquilo que as coisas são em si mesmas para aquilo que elas são
“para nós”, quer dizer, o sentido que identificamos nelas ou que damos a elas.
Ainda de acordo com o significado de “sentido das coisas para nós”, a palavra substância, em
Filosofia,
Página 23
tem um sinônimo: essência, palavra que aponta para o que há de mais importante nas coisas
mesmas e sem o que elas deixam de ser o que são. Por exemplo, não importa se a árvore é grande
ou pequena, marrom, verde ou amarela; o que importa é o seu “ser árvore”. Se ela tivesse um “ser
pedra”, não seria árvore. Então, para a árvore, o “ser árvore” é sua essência ou substância. Na
História da Filosofia reservou-se aos poucos a palavra essência para designar o ser das coisas e
substância para designar as coisas mesmas (incluindo o seu “ser algo”, mais as características
secundárias, como a cor, o local etc., no caso da árvore; ou, no caso da alegria, o seu “ser emoção”
com as características secundárias da intensidade, do motivo etc.).
O significado de essência gerou ainda a possibilidade de falar daquilo que nós identificamos como o
mais importante em algo. Nessa direção, a essência ou a substância não seria o que realmente
fornece o sentido de cada coisa, mas o sentido que nós damos a elas ou o que elas significam para
nós. É o caso de quando alguém diz “O futebol é a essência da minha vida” ou “A essência da vida é o
amor”. Esse sentido está ligado à finalidade (“minha vida existe para o amor ou para o futebol”).
Com esses diferentes significados em mente, podemos entender a frase do(a) artista que pintou o
grafite como “Os objetos são tudo o que há no mundo?”, ou “Os objetos são aquilo que dão o ser do
mundo?”, ou ainda “Os objetos são a finalidade de nossa existência no mundo?”.
Quanto à palavra objeto, ela também tem diferentes significados. O primeiro deles é o de coisas
físicas (objetos são as cadeiras, as árvores, os livros etc.). Mas, em Filosofia, objeto pode significar
ainda tudo aquilo em que pensamos. Dessa perspectiva, objeto pode ser uma cadeira, mas também
a minha alegria, a minha dor, o meu pensamento etc. (sempre enquanto eu penso em cada uma
dessas experiências). Aqui, porém, não parece possível pensar que o(a) autor(a) do grafite tinha em
mente esses dois significados de objeto. É o contexto que nos permite saber com qual significado
ele(a) operava.
Para poder decidir sobre qual significado se trata no caso do grafite, é importante saber que ele foi
feito na parede de uma banca de jornal em uma das esquinas da Rua José Paulino, em São Paulo, no
período de Natal de 2013, precisamente na primeira semana de dezembro. A Rua José Paulino
encontra-se numa região da capital paulista onde se concentram muitas lojas, principalmente de
roupas com preços acessíveis. Durante o ano todo há muito movimento na região. Ônibus fretados
chegam com compradores vindos de várias partes do Brasil, porque muitas pessoas revendem as
roupas em suas cidades. Aos sábados pela manhã, o ano inteiro, a região vira um formigueiro
humano. Na época de Natal, o movimento é três vezes maior.
Para termos uma ideia do que isso significa, a União dos Lojistas da Rua 25 de Março e Adjacências
(Univinco) afirmou que todo ano cerca de 400 mil pessoas circulam aos sábados pela região da Rua
José Paulino. Na época de Natal, esse número sobe para 1 milhão e 200 mil pessoas, o que equivale
a dois terços da população de Recife e de Porto Alegre, ou a um pouco menos da metade da
população de Brasília, ou, ainda, ao dobro da população de Cuiabá.
O fato de ter escrito em espanhol não é um acaso. Já é bem sabido que no bairro do Bom Retiro, na
capital paulista, há trabalhadores estrangeiros, principalmente bolivianos e paraguaios, que são
contratados por ateliês de costura clandestinos e tratados em regime de semiescravidão. A maioria
desses trabalhadores vive em condições péssimas, trabalha mais de 10 horas por dia, com salários
baixíssimos, alimentação insuficiente, moradia desumana e sem nenhuma assistência médica.
Alguns desses trabalhadores tentam escapar da exploração e voltar a seus países, mas não
conseguem, porque seus patrões, muitas vezes, prendem seus documentos, de modo que eles nem
sequer podem viajar. Só recuperam seus documentos depois de trabalhar para pagar a “acolhida”
que receberam em São Paulo.
O(a) artista, então, pode ser um(a) estrangeiro(a) ou mesmo um(a) brasileiro(a) que escreveu em
espanhol para denunciar a condição dos trabalhadores explorados.
Diante da ansiedade do consumo e das pessoas que acreditam na compra como meio de obter uma
vida feliz, entendemos o grafite. O grito do(a) artista
Página 24
denuncia o horror de uma vida que despreza alguns e enche outros com mercadorias. Elas são a
parte mais importante do mundo? A vida humana merece ser organizada em torno da compra
interminável de coisas? O mundo só existe para que as pessoas vivam na busca insaciável por
produtos sempre novos e diferentes? É justo que, para o consumo de alguns, outros sejam
explorados?
© Ministério do Trabalho
Nos últimos anos, dezenas de oficinas de costura clandestinas foram fechadas em São Paulo pela Polícia
Federal, por empregarem imigrantes bolivianos e paraguaios, entre outros, em regime de trabalho
semiescravo.
Ao levantar essas questões, começamos a adotar uma postura filosófica, pois, mesmo sem dar uma
resposta definitiva para o sentido do mundo, já podemos saber como é problemático depositar
nossas esperanças no consumo de coisas. Esse consumo promete uma vida feliz, mas produz
grandes infelicidades, seja pela busca insaciável que o consumo desperta nas pessoas, seja pela
exploração de outros seres humanos. A Filosofia, desse ponto de vista, também aponta respostas.
Podemos ir mais longe com essa reflexão e ver que a mentalidade do consumo se espalha em outras
áreas da vida humana. Isso quer dizer que, mesmo em experiências nas quais não há compra e
venda, comportamo-nos como se estivéssemos diante de mercadorias. Por exemplo, muitas pessoas
têm grandes dificuldades para encontrar amigos ou mesmo entrar em relações amorosas, visto que
só querem ficar perto de pessoas com características predefinidas (de corpo e de personalidade),
como se fossem objetos comprados. São incapazes de ver os outros tal como são e de se abrir à
possibilidade de conhecê-los realmente e estabelecer vínculos com eles. Evitam decepções, assim
como esperam das boas mercadorias. Avaliam as pessoas segundo padrões físicos e
comportamentais e as selecionam como se fossem coisas de consumo.
Esse costume ou essa mentalidade se espalha por outras áreas de nossa vida (os sentimentos, as
emoções, as relações) quando tomamos as coisas, situações e pessoas como instrumentos para
nossa satisfação, avaliando-as em função de sua utilidade, qualidade, sofisticação etc. Numa palavra,
assim como buscamos mercadorias que nos satisfaçam, assim também tratamos as situações e as
pessoas sem prestar atenção no que elas realmente são. Olhamos para elas como mercadorias.
Um filósofo de grande influência refletiu exatamente sobre o poder de sedução das mercadorias e
procurou entender o mecanismo dessa sedução.
Página 25
Trata-se de Karl Marx (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 221), que viveu no século XIX e
que formulou aquilo que considerava ser o fetiche da mercadoria. Ícone: Texto filosófico
1
O fetiche da mercadoria
Karl Marx
É evidente que o ser humano, por meio de sua atividade, modifica as formas das matérias naturais
de um modo que lhe é útil. A forma da madeira, por exemplo, é modificada quando dela se faz uma
mesa. Não obstante , a mesa continua sendo madeira, uma coisa ordinária palpável. Mas, logo que
2 3
ela aparece como mercadoria, ela se transforma numa coisa fisicamente metafísica . Além de se pôr 4
com os pés no chão, ela se põe sobre a cabeça perante todas as outras mercadorias e desenvolve de
sua cabeça de madeira cismas muito mais estranhas do que se ela começasse a dançar por sua
5
própria iniciativa.
O caráter místico da mercadoria não provém, portanto, de seu valor de uso. Ele não provém,
6
tampouco, do conteúdo das determinações de valor. Pois, primeiro, por mais que se diferenciem os
trabalhos úteis ou atividades produtivas, é uma verdade fisiológica que eles são funções do
organismo humano e que cada uma dessas funções, qualquer que seja seu conteúdo ou forma, é
essencialmente dispêndio de cérebro, nervos, músculos, sentidos etc. Segundo, quanto ao que serve
7
interessar ao ser humano, embora não igualmente nos diferentes estágios de desenvolvimento.
Finalmente, tão logo os humanos trabalham uns para os outros de alguma maneira, seu trabalho
adquire também uma forma social.
De onde provém, então, o caráter enigmático do produto do trabalho, tão logo ele assume a forma
9
da mercadoria? Evidentemente, dessa forma mesmo. A igualdade dos trabalhos humanos assume a
forma material de igual objetividade de valor dos produtos de trabalho; a medida do dispêndio de
força de trabalho humano, por meio da sua duração, assume a forma da grandeza de valor dos
produtos de trabalho; finalmente, as relações entre os produtores, em que aquelas características
sociais de seus trabalhos são ativadas, assumem a forma de uma relação social entre os produtos de
trabalho.
O [caráter] misterioso da forma da mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela
reflete, para os seres humanos, as características sociais do seu trabalho como características
objetivas dos próprios produtos de trabalho, como propriedades naturais sociais dessas coisas; e,
por isso, também reflete uma relação existente fora deles, entre objetos.
MARX, Karl. O capital. Tradução Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Nova Cultural, 1996. Livro I, Seção I, Capítulo 1, § 4. p.
197-198. (Coleção Os Economistas.)
Ícone: Glossário
3 Ordinário: comum.
4 Metafísica: que tem um sentido invisível e captável apenas pela inteligência, não pelos cinco sentidos.
6 Místico: misterioso.
7 Dispêndio: gasto.
Marx confirma o uso humano das coisas falando de uma “verdade fisiológica”, isto é, relativa ao
funcionamento do próprio organismo humano: quando alguém realiza um trabalho tendo em vista
uma utilidade (produção), usa seu corpo e gasta seu cérebro, nervos e músculos. Alguns trabalhos
terão mais qualidades do que outros, dependendo do modo como são feitos, e não apenas da
quantidade de esforço físico. Tudo isso pode ser medido pelo tempo empregado para produzir algo.
Ícone: Glossário
1 Fetiche: valor mágico.
Página 26
Os trabalhadores, por sua vez, também passam a ver a si mesmos de maneira diferente, avaliando-
se uns aos outros com base na avaliação das coisas produzidas. Isso quer dizer que o valor dado às
coisas produzidas passa a ser tomado, pelos produtores (os trabalhadores), como critério para
avaliar as relações entre os próprios produtores. Por exemplo, se uma coisa é mais valorizada
(porque demandou mais tempo, foi feita com mais qualidade etc.), então quem a fez passa a ser
visto de maneira diferente do que quem fez uma coisa menos valorizada. Os trabalhadores deixam
de ser vistos como seres que realizam atividades fisiológicas e passam a ser vistos em função de
valores sociais (valores dados pela inter-relação entre eles, com base no valor das coisas).
Assim, quando as coisas produzidas passam a ser comparadas e avaliadas, elas recebem valor de
acordo com as relações dos próprios seres humanos. O modo de vê-las como mercadorias faz
acontecer, no entanto, uma inversão extremamente forte: os seres humanos não prestam atenção
no fato de que são as relações humanas de produção que dão valor às coisas e acabam achando que
as próprias coisas têm valor por si mesmas. Em outras palavras, quando alguém vê uma
mercadoria, não identifica o processo de trabalho que a produziu (que é a mesma atividade
fisiológica de qualquer trabalho), pois se deixa seduzir pelo modo como a coisa é socialmente
valorizada, sem, contudo, prestar atenção no processo social que cria o valor.
OLLY/SHUTTERSTOCK.COM
BRANISLAVPUDAR/SHUTTERSTOCK.COM
À esquerda: trabalho artesão. À direita: linha de produção industrial. Um dos efeitos do fetiche da mercadoria é
a perda da percepção do trabalho humano implicado em cada produto.
Resumindo, o que dá valor de mercadoria aos produtos, segundo Marx, são as relações sociais, mas
esse fato é escondido pela sedução que os produtos exercem sobre nós quando nos fazem crer que
seu valor depende das características dos próprios produtos. Por exemplo, quando compramos um
telefone celular, não o avaliamos apenas pela utilidade de facilitar a comunicação. Se pensássemos
na utilidade, todos os celulares teriam o mesmo valor, pois todos são resultado do trabalho
humano. Em vez disso, ficamos fascinados pelo modo como socialmente se fala de cada aparelho:
um é mais sofisticado, outro é mais bonito, outro é mais eficiente, outro tem mais recursos etc.
Essas características parecem pertencer aos próprios aparelhos, em vez de serem identificadas com
o modo como os valorizamos. Somos incapazes de entender que tais características dependem do
modo como socialmente falamos delas. Deixamos de perguntar por que todos os aparelhos não têm
as mesmas características... Por que alguns são bons e outros, ruins? Como é possível vender um
aparelho ruim? Isso tudo independe dos aparelhos; seu valor é dado pelo modo como as pessoas
são levadas a encará-los. É como se elas ficassem “enfeitiçadas”, prestando atenção apenas nas
mercadorias sem ver a atividade humana que dá o real valor delas.
Esse exemplo mostra como a reflexão filosófica pode ser propositiva, isto é, pode fazer propostas de
análise e leitura do mundo, oferecendo também respostas, além de fazer perguntas.
Independentemente de concordarmos ou não com Karl Marx, podemos observar que ele pretendia,
em linhas gerais, dizer que cabe ao ser humano a atividade de dar sentido à sua própria vida. Essa é
uma forma de ir além da simples atividade de desconstruir os pensamentos e as ações humanas,
chegando também a respostas. Em outras palavras, Marx desconstrói o modo como as mercadorias
seduzem as pessoas e constrói uma
Página 27
explicação para o mecanismo que leva as pessoas a tomar as mercadorias como fonte de sentido
para a existência. Baseando-se em dados que hoje são explorados pela Sociologia, o filósofo alemão
mostrou como a interpretação da substância do mundo depende das próprias pessoas e das
relações sociais.
Assim, à pergunta feita pelo grafite da Rua José Paulino, uma resposta marxista consistiria em
afirmar que os objetos não são necessariamente a substância do mundo, embora, na vida atual, as
pessoas sejam levadas a crer que eles o são. Cabe a elas definir o sentido que pretendem dar às suas
vidas.
A Filosofia, assim, não se detém apenas em desconstruir; ela pode também construir. Ela não é
como a centopeia da fábula chinesa, que, confundida por uma pergunta complicada, ficou sem
movimento. Ícone: Texto filosófico
A centopeia confusa
A centopeia ficou tão perturbada pela questão do sapo, que entrou imediatamente em seu buraco
para refletir. Porém, mesmo esquentando seu cérebro, não encontrava qualquer resposta.
Depois de muito questionar, a centopeia não conseguiu mais pôr suas patas em movimento. Não se
movendo, ficou presa em seu buraco e morreu de fome.
PIQUEMAL, Michel. Les philo-fables. Paris: Albin Michel, 2003. p. 38. (As filofábulas. Tradução nossa.)
Diante da pergunta pelo sentido da existência, por exemplo, a Filosofia poderia paralisar-se ao
constatar que se trata de um questionamento muito difícil de responder. Ela poderia fazer apenas a
análise da pergunta. Mas ela vai além disso e não “morre de fome” como a centopeia, visto que tem
condições de explicar pelo menos o que significa falar de sentido e de existência. Ela pode avaliar
certas respostas, defender algumas e abandonar outras ou mesmo recusar todas. Ela pode até
tentar defender que o sentido da existência é não ter sentido... Em resumo, ela não é uma centopeia
confusa!
Neste momento, talvez você tenha as seguintes perguntas em mente: O que é, afinal, a existência? E
o que é o sentido?
REPRODUÇÃO/THE MAURITSHUIS, HAIA, HOLANADA
Pieter Claesz (1597-1660), Vanitas (Vaidade), óleo sobre tela, 1630. Segundo vários filósofos, a morte é uma
das únicas certezas da vida humana. O seu acontecimento é algo que se impõe a todos. Por isso, seu primeiro
sentido é encontrado na Natureza e não depende de nós: trata-se do fim da vida. No entanto, o ser humano é
também capaz de produzir sentido para a morte, concebendo-a, por exemplo, como fim total da existência,
como transformação, como passagem para outra vida etc.
Perguntas como essas são profundamente filosóficas. Todo o conjunto deste livro pode ser visto
como uma tentativa de responder a essas duas perguntas.
Por enquanto, basta-nos saber que entendemos por existência o fato de estarmos no mundo e de
nos relacionarmos com todos os outros seres (os outros seres humanos, os outros animais, os
vegetais, os minerais). Quanto ao sentido, ele corresponde, de modo geral, ao que as coisas, pessoas,
acontecimentos, pensamentos, sentimentos, emoções e ações significam para nós.
Página 28
Ao falar de “sentido da existência”, a reflexão filosófica pode analisar o que significa falar de
“sentido”, de “existência” e de “sentido da existência”. Ela desconstrói a montagem que correlaciona
essas ideias e, ao mesmo tempo, conclui, por exemplo, que os seres humanos são os responsáveis
pelo sentido que eles acreditam captar em tudo.
FABRICE BOULAND
Your Love (Seu amor), sem data, grafite em muro de São Tomé das Letras (MG). O sentido do modo como
vivemos o amor é algo que depende de nós.
Outro filósofo pode ser tomado aqui como testemunha do trabalho propositivo ou construtivo da
Filosofia: trata-se de Epicteto, que viveu entre os anos 50 e 125, autor da obra Manual, um conjunto
de reflexões com o objetivo de apresentar caminhos para alcançar a sabedoria e a vida feliz. Ícone:
Texto filosófico
Epicteto
Há coisas que dependem de nós; há também as que não dependem.
O que depende de nós são nossos pensamentos, nossas tendências, nossos desejos, nossas
aversões . Numa palavra, todos os acontecimentos que nos pertencem.
10
O que não depende de nós são nosso corpo, a riqueza, a celebridade, o poder. Numa palavra, todos
os acontecimentos que não nos pertencem.
As coisas que dependem de nós são livres por natureza, sem impedimento, sem entraves. Aquelas
que não dependem de nós são inconstantes , submetidas a outras leis, podem ocorrer ou não
11
Lembre-se, então, de que, se você tomar por livre aquilo que por natureza é submetido a leis, e se
você considerar como seu aquilo que é alheio, então ficará paralisado, com medo, perturbado e
dependerá dos seres divinos e dos outros seres humanos. Mas, se você considerar como seu
somente aquilo que de fato é seu, e como alheio aquilo que de fato é alheio, ninguém poderá nunca
constranger você, ninguém paralisará você. Você não dependerá de ninguém, não acusará ninguém,
não fará nada a contragosto. Ninguém perturbará você. Você não terá inimigo, porque não sofrerá
nada de prejudicial.
EPICTETO. Manuel. Tradução E. Cattin. Paris: Flammarion, 1997. p. 207. (Manual. Tradução nossa para o português.)
Ícone: Glossário
12 Alheio: aquilo que não nos pertence, mas pertence a outra pessoa ou a outra coisa.
Se o texto de Karl Marx insistia em um aspecto da existência cujo sentido depende de nossa
construção, o texto de Epicteto insiste que há aspectos
Página 29
que não dependem de nós e cujo sentido é dado independentemente de nós. Em comum entre os
dois filósofos está o esforço por se basear na observação da vida e na sua experiência, procurando
exprimir-se em pensamentos que convençam por argumentos compreensíveis racionalmente.
Ícone: Texto filosófico
Note que Epicteto não recorre à sua autoridade de sábio para convencer os leitores, mas levanta
razões que os convençam, motivos cuja força está em se apresentar de um modo que todo ser
humano disposto a entendê-los em sua montagem própria pode avaliá-los e aceitá-los ou recusá-los
com base em uma análise racional. Por isso, seu texto é um exemplo da atividade típica da Filosofia.
Especificamente, o texto de Epicteto insiste que, assim como o sentido de algumas coisas depende
de nossa construção, o sentido de outras é encontrado por nós; já é dado por si mesmo,
independentemente de nossa participação. Na busca da felicidade, essa distinção é de grande
importância, segundo Epicteto, pois tentar mudar o que não depende de nós é uma fonte de
sofrimento. Mais sábio seria investir nossas forças na determinação do que depende de nós.
De todo modo, cada um à sua maneira, tanto Epicteto como Karl Marx são exemplos de pensadores
que concretizam a atividade filosófica como produção ou descoberta de sentido.
EXERCÍCIO A
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 425
1. Reflita sobre o modo como Karl Marx explicou o funcionamento da relação humana com as
mercadorias e argumente se você considera essa explicação adequada para exprimir a sua
experiência de vida. Dê exemplos que confirmem sua resposta.
2. Por que o texto de Epicteto pode ser considerado um exemplo da atividade construtiva típica
da Filosofia?
Ícone: Dica de filmes Dica de filme para você assistir tendo em mente o que trabalhamos neste
capítulo
Documentário que retrata uma sala de aula com alunos de diferentes níveis (desde a alfabetização até o final
do Ensino Fundamental). Como se trata de um vilarejo com poucos recursos e com uma pequena população, a
sala de aula é a mesma; e as crianças são organizadas por grupos de diferentes níveis. O filme levanta a
possibilidade de pensar que a posse de coisas e o consumo de mercadorias talvez não sejam a única fonte de
sentido para a vida humana.
LEEMAGE/GETTYIMAGES
Boécio prisioneiro, a Dama Filosofia e as Musas do Teatro e da Poesia (séc. XV, iluminura em manuscrito do
livro A consolacão da Filosofia).
Biblioteca Nacional da França, Paris. A Filosofia, na forma de uma senhora elegante, aparece ao filósofo e
senador romano Boécio (475-525) e o consola, pois ele se encontrava injustamente na prisão, no fim da vida,
vítima da maldade dos líderes humanos.
Nos Capítulos 1 e 2, vimos que a Filosofia opera uma desconstrução de pensamentos e visões de
mundo, analisando a estrutura ou o modo como eles são montados. Vimos também que ela pode ser
uma construção quando constata a coerência de pensamentos e os defende, ou quando ela mesma
elabora respostas para questões que interessam aos seres humanos. Dessa perspectiva, a Filosofia
pode ser mesmo entendida como uma construção de sentido para a existência.
Com base nesses elementos, parece possível propor uma resposta para a pergunta sobre o que é a
Filosofia. Seria possível afirmar que a Filosofia é uma prática de desconstrução de pensamentos e
de visões de mundo, podendo chegar, além disso, a oferecer construções de sentido conscientes.
Essa resposta, porém, é frágil, pois outros saberes também podem desconstruir e construir,
chegando a propostas de sentido para a existência. Busquemos, então, aspectos que permitam
entender de maneira mais segura o que é a Filosofia.
Já vimos nos Capítulos 1 e 2 que a curiosidade despertada pelo sentido da existência e pela prática
dos saberes é uma ocasião para filosofar. Os filósofos percebem, por um lado, os sentidos mais
evidentes que as pessoas conferem a seus pensamentos e ações, e, por outro lado, os sentidos
Página 31
É como se tudo tivesse camadas de sentido, assim como em uma rocha sedimentar, cuja idade
podemos conhecer se analisarmos as várias camadas que a compõem. Uma pessoa distraída pode
ver uma rocha sem perceber que ela é feita de camadas, principalmente se a olhar de cima. Já uma
pessoa mais atenta pode constatar essas camadas e observá-las com cuidado. Um geólogo, por sua
vez, analisa essas camadas e calcula a idade da rocha. Assim também os filósofos não se contentam
com o primeiro sentido que grande parte das pessoas identifica nas coisas, pessoas e ações; eles
procuram saber se há sentidos menos aparentes e nos quais nem todos prestam atenção.
LEENE/SHUTTERSTOCK.COM
Dito de outra maneira, os filósofos deixam-se admirar com a existência de tudo. Vão além do olhar
acostumado com as coisas, pessoas, pensamentos, acontecimentos, sentimentos, emoções e ações,
buscando sempre entender os vários sentidos de tudo. Vivem, portanto, uma mistura de admiração
e de insatisfação, como dizia Aristóteles (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 103), filósofo
grego que viveu entre 384 e 322 a.C.
No início de um de seus livros (que recebeu o nome de Metafísica), Aristóteles registra a observação
de que todos os seres humanos naturalmente desejam ter conhecimento, pois essa atividade lhes dá
prazer. Isso se comprova pela satisfação sentida no conhecimento obtido por meio dos cinco
sentidos, especialmente a visão (que oferece mais informações sobre o mundo).
Aristóteles
Foi pela admiração que os humanos começaram a filosofar, tanto no princípio como agora. De
início, ficaram perplexos diante das dificuldades mais simples; depois, avançaram pouco a pouco e
1
enunciaram problemas a respeito das dificuldades mais complexas, como os fenômenos da Lua, do
2
Sol e das estrelas, assim como a gênese do Universo. Ora, quem é tomado de perplexidade e
3
admiração percebe que não sabe [...]. Portanto, como filosofavam para fugir da ignorância, é
evidente que buscavam o conhecimento por si mesmo, a fim unicamente de saber, e não com uma
finalidade utilitária. [...] Nós não buscamos o conhecimento com o objetivo de ter qualquer outra
vantagem; mas, assim como declaramos livre quem existe para si mesmo e não pertence a outro,
assim também cultivamos esse conhecimento como o único livre, pois só ele tem em si mesmo o seu
próprio objetivo.
ARISTÓTELES. Metafísica. Tradução Leonel Vallandro. Porto Alegre: Globo, 1969. p. 40.
Ícone: Glossário
3 Gênese: origem.
que grande parte das pessoas dá para seu próprio modo de ser, para os acontecimentos e para as
coisas.
Além disso, mesmo quando a admiração leva a obter respostas sólidas e coerentes, os filósofos
descobrem que uma resposta pode ser ocasião para encontrar conhecimentos mais complexos ou
níveis mais profundos de sentido. A admiração, portanto, vem acompanhada de insatisfação.
A melancolia, porém, não é sinal de doença, tristeza ou depressão, como nosso vocabulário pode
dar a entender. Pelo contrário, ela corresponde a uma sensibilidade intensa e a uma atenção
especial às mais diferentes experiências humanas. Ela é como um sentir prazer em permanecer
descontente.
Se a atividade filosófica nasce da admiração e da melancolia (insatisfação), ela busca, então, uma
vida mais satisfatória, mais consciente e mais livre.
Numa palavra, é possível dizer que a Filosofia, nascendo da admiração e da melancolia, pretende
melhorar a vida humana. O filósofo Platão (428-348 a.C.) (Ícone: Conteúdo tratado em outra página
p. 82) bem exprimiu essa contribuição ao afirmar que a Filosofia serve-se dos saberes humanos a
fim de beneficiar o próprio ser humano.
Essa ideia platônica permanece até hoje na compreensão que muitos filósofos têm de si mesmos.
Baruch Espinosa (1632-1677), por exemplo, considerava a Filosofia o meio mais apropriado para
obter liberdade. Immanuel Kant (1724-1804) apontava para a luz que a Filosofia lança sobre a vida
humana, esclarecendo o que é possível e o que não é possível conhecer. Jean-Paul Sartre (1905-
1980), por sua vez, falava abertamente da capacidade transformadora da Filosofia. A propósito,
mesmo quando alguns filósofos desenvolvem visões menos otimistas sobre a prática filosófica,
continuam a ver nela uma atividade que beneficia os seres humanos. Um caso muito curioso nessa
direção é o de Ludwig Wittgenstein (1889-1951), para quem a Filosofia deve libertar o ser humano
da própria Filosofia.
Com efeito, segundo Wittgenstein, os filósofos, ao longo da História, passaram a empregar palavras
e expressões cujos significados ficaram cada vez menos compreensíveis (por exemplo: ser, essência,
sentido da existência etc.). Libertar-se da própria Filosofia significaria realizar uma terapia para
curar o ser humano das cãibras mentais que muitas vezes os filósofos produzem.
Melancolia
P ara pensar, por um lado, sobre o modo como hoje a palavra melancolia é associada a uma
emoção triste, embora ela não seja propriamente um sinal de tristeza, e, por outro lado, no sentido
original de sensibilidade e visão esclarecida das coisas, sugerimos que você assista ao filme
Melancolia, de Lars von Trier (Dinamarca, 2011).
O filme apresenta a vida de algumas pessoas nos dias que antecedem a colisão do planeta chamado
Melancolia contra a Terra. A jovem Justine, considerada triste e problemática, pretende casar-se
com Michael e recebe o apoio de sua irmã, Claire, que organiza uma festa.
O diretor inverte os olhares a que estamos habituados. Observe as atitudes da personagem “triste e
problemática” e compare com as da personagem “saudável” no momento em que o planeta se
aproxima da Terra.
DIVULGAÇÃO/CALIFÓRNIA FILMES
Página 33
EXERCÍCIO A
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 427
Responda à pergunta O que leva a filosofar?. Use em sua resposta as ideias de admiração,
melancolia e benefício humano.
2 Filosofia e razão
A característica central da atividade filosófica, desde seu nascimento até nossos dias, é o uso da
razão, capacidade de investigar o sentido dos diferentes componentes da existência e de também
produzir sentido.
Uma das maneiras mais indicadas para entendermos o que é a razão ou a capacidade racional
consiste em observar como um dos primeiros filósofos a concebeu. Trata-se de Sócrates, que viveu
entre 470 e 399 a.C. e desenvolveu um pensamento tão significativo, a ponto de ele ser conhecido
como “pai da Filosofia”.
Sócrates viveu na cidade grega de Atenas. Sabemos poucos detalhes de sua vida. Diz-se que seu pai
era entalhador de pedras, e sua mãe, parteira. Profundamente envolvido com a vida da cidade,
Sócrates conhecia também os debates dos pensadores que o antecederam. Não escreveu nenhuma
obra; sua atividade filosófica era marcada pelo diálogo direto com as pessoas. A maior parte do que
sabemos sobre seu pensamento está registrada nas obras de seu discípulo Platão.
Graças a Platão, sabemos que Sócrates (p. 157) considerava a Filosofia uma prática radicalmente
ética, isto é, voltada para melhorar a vida humana. Ele mesmo se considerava um “parteiro de
almas”, ou seja, alguém que fazia nascer uma consciência mais viva e mais livre.
Como Sócrates sempre adotava a postura de fazer perguntas, nunca começando por respostas, mas
levantando dúvidas sobre o que os outros diziam, sua maneira de filosofar recebeu o nome de
elenchos, em grego, que significa “questionamento”. O sentido desse método, tal como praticado por
Sócrates, era o de um teste que levava a perceber se era sólido aquilo em que acreditavam as
pessoas. O ambiente desse debate ou o clima de diálogo em que os participantes visam convencer
uns aos outros recebeu o nome de ironia. Hoje, essa palavra pode parecer negativa, porque a
associamos muitas vezes com deboche. Se, porém, prestarmos mais atenção em outros usos,
veremos que essa palavra é ainda hoje usada em um sentido socrático: por exemplo, quando somos
desestabilizados por algum acontecimento, falamos de “ironia do destino”; ou, quando duas pessoas
que não se gostam entre si e se juntam em alguma atividade, ficamos surpresos ao ver que um
interesse comum as reuniu, fazendo-as passar por cima de suas diferenças. Dizemos, então: “Ironia
do destino!”. A ironia serve, aqui, para mostrar que não sabemos tudo a respeito das coisas sobre as
quais acreditamos já saber tudo...
Da mesma maneira, Sócrates, em suas conversas, mostrava a seus interlocutores, passo por passo,
que eles não sabiam tudo (ou não sabiam nada!) sobre os assuntos que acreditavam conhecer.
Sócrates tinha mesmo prazer em conversar com as pessoas que se apresentavam como
“especialistas”, para mostrar que elas não conheciam seus assuntos. Por exemplo, ele apreciava
conversar sobre a guerra e a coragem com um general; sobre a poesia com um poeta; sobre a justiça
e o bem público com um político. Ao final, ele mostrava que esses especialistas não conheciam bem
o que diziam, ao passo que ele, reconhecendo-se como um perguntador e alguém que não sabe,
sabia mais do que eles: sabendo que não sabia sobre esses assuntos, ele sabia algo mais certo do que
aqueles que, acreditando conhecer, não tinham consciência das falhas de seus pensamentos. Daí
vem a frase socrática que ficou famosa para sempre: Sei que nada sei!
Sócrates, contudo, seguia adiante a partir dessa “ignorância”. Nos escritos de Platão, encontramos
dois exemplos claros para entender a atividade socrática. São dois problemas que levam a visões
mais adequadas:
Opinião corrente: no aprendizado de qualquer assunto novo, acreditamos aprender porque não
sabemos nada sobre esse assunto; se dissermos que já sabemos algo sobre o assunto, então ele não
será novo.
Página 34
Jacques-Louis David (1748- 1825), A morte de Sócrates, 1787, óleo sobre tela. Sócrates produziu sua filosofia
oralmente. O estilo do diálogo e do contato direto com o interlocutor era de grande importância para sua
atividade, que visava à construção do conhecimento por meio do encontro de pessoas. Por sua “filosofia na
vida”, Sócrates foi condenado à morte, tendo de tomar veneno (cicuta). Costuma-se dizer que, mesmo no
último momento de sua vida, ele ainda se dirigiu aos que o ouviam. Seu discípulo Platão registrou o discurso
final de Sócrates no livro Apologia de Sócrates.
Exemplo: quando alguém nos explica o sentido de uma palavra que não conhecemos, precisamos
conhecer pelo menos o sentido das outras palavras usadas para o aprendizado da palavra nova. É
relacionando o sentido dessas palavras que podemos entender a palavra nova.
Opinião corrente: nunca é bom sofrer injustiça, pois toda injustiça prejudica o injustiçado.
Pergunta socrática: o que pensar quando temos de decidir entre praticar a injustiça ou sofrer a
injustiça? Se tivermos de escolher, é melhor sofrer a injustiça do que praticá-la. Afinal, se todos
concordam que a injustiça não é algo bom, será pior ainda praticá-la, pois reforçaremos algo que
consideramos ruim. Tendo de escolher entre praticá-la ou sofrê-la, sofrê-la será melhor, porque
evitará que façamos algo ruim. Os prejuízos que podemos sofrer serão acompanhados de algo bom:
o fato de termos evitado a prática de algo ruim. Então, há um modo de dizer que a injustiça é boa:
quando a sofremos, mas não a praticamos.
Exemplo: estou numa guerra e preciso decidir se defendo minha vida sabendo que, para isso, terei
de matar uma família inteira, cujos pais podem atirar em mim. Mas também sei que nessa família há
crianças pequenas completamente inocentes. Devo então decidir se aceito morrer para não ter de
matar crianças inocentes ou se mato a família inteira, inclusive as crianças. Se eu considerar que
matar crianças inocentes é uma injustiça maior do que a injustiça da minha morte sem defesa,
posso optar por morrer, vendo nessa injustiça um lado positivo.
Revisão socrática: a injustiça pode ser boa se for melhor do que praticar outra injustiça.
O que chamamos aqui de revisão socrática traduz conclusões a que o próprio Sócrates chegou.
Vemos, então, que sua reconhecida ignorância não era simples falta de conhecimento, mas sinal de
descontentamento ou insatisfação com as opiniões correntes, em busca de respostas mais
adequadas.
Sócrates examina tudo e procura justificações, com base na experiência comum, para aceitar ou
recusar pensamentos, opiniões e visões de mundo. Ao analisar os mais variados assuntos, Sócrates
via
Página 35
que as coisas têm um modo de ser e que, pelo pensamento, podemos reproduzir esse modo de ser
das coisas. Então, o pensamento mais adequado, para ele, é aquele que capta e exprime bem esse
modo de ser. Trata-se da atividade da razão, que, em grego, chamava-se lógos. Captar o lógos de
tudo e exprimi-lo de modo que todos os interlocutores possam avaliar se essa expressão é
adequada ou não (quer dizer, se a expressão corresponde realmente ao que se observa no mundo)
era a tarefa da Filosofia segundo Sócrates.
Aqui se revela, então, uma característica da Filosofia como “filha” de Sócrates: ela é uma atividade
racional ou um exercício da razão, capacidade de entender os vários componentes da existência e
de falar sobre eles de modo justificado, permitindo que nossos interlocutores, baseando-se também
na mesma capacidade, possam avaliar se nossas afirmações sobre o mundo correspondem de fato
ao modo como o mundo é experimentado. Não nos esqueçamos de que “mundo”, aqui, refere-se a
nossas vivências pessoais e sociais, às relações interpessoais, aos sentimentos, às emoções, à
Natureza.
EXERCÍCIO B
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 427
Descreva a atividade socrática e o modo como ela permite entender o que é a razão.
Sem dúvida, a atividade da razão marca o que há de comum na pesquisa científica e na atividade
filosófica, assim como está presente na justificação dos outros saberes. No entanto, o que
caracteriza a Filosofia é o fato de ela ser, em primeiro lugar, uma investigação sobre o próprio
pensamento ou o modo como se constroem as “leituras” que fazemos do mundo (incluindo a
“leitura” de nós mesmos).
Assim, a Filosofia pratica a razão de modo diferente das ciências, pois, em vez de se concentrar em
explicar o mundo, ela procura conhecer, acima de tudo, o modo como as diferentes explicações são
feitas. Quando termina, porém, em construções de sentido, ela ainda difere do comportamento geral
dos outros saberes, uma vez que tem a consciência de que suas construções não são “retratos” do
mundo, mas possibilidades de iluminar a existência, sem a pretensão de oferecer respostas
definitivas e únicas. Essa prática racional em que o próprio pensamento é tomado como alvo de
investigação chama-se reflexão (a razão reflete sobre si mesma, volta-se para sua própria
atividade).
Outras definições de Filosofia são possíveis, porque, na realidade, existe mais de uma Filosofia: há
uma constelação de filosofias, no plural. Há mesmo quem afirme haver tantas filosofias quantos são
os filósofos. Há ainda quem use a imagem das filosofias como ilhas espalhadas no oceano da razão.
Algumas dessas ilhas nem sequer se aproximam; outras são vizinhas. Todas, porém, são ligadas
pelas águas da razão.
No entanto, se considerarmos que o ser humano, em suas múltiplas relações com os outros seres,
especialmente com outros seres humanos, ocupa o centro da preocupação filosófica; e se
considerarmos que o ser humano, visto em suas múltiplas relações, pode ser chamado de ser
mergulhado na existência; então parece possível afirmar que todas as filosofias são ligadas pela
preocupação com diferentes aspectos dessa mesma existência e pelo procedimento racional de
reflexão sobre o pensamento. A unidade da Filosofia ou da atitude filosófica, por trás das diferentes
filosofias, estaria em fazer o pensamento pensar a si mesmo em sua ação de se referir à realidade. A
Filosofia seria, assim, pensamento do pensamento; e mesmo aquelas filosofias que parecem
“distantes” da realidade revelam preocupação com ela justamente ao se entenderem como
reflexões sobre o pensamento. Por exemplo, a Filosofia da Matemática ou a Filosofia da Lógica
continuam a existir como busca de reflexões coerentes e adequadas sobre aspectos da existência,
nascendo do prazer que a atividade do conhecimento oferece por si mesma.
Página 36
Aristóteles (384-322 a.C.), por exemplo, falava de pensamento do pensamento para se referir ao ser
divino. No seu entender, o ser divino é tão perfeito que só se ocupa com seu próprio pensamento,
pois ele seria pensamento puro, sem matéria ou nada de físico.
Plotino (204-270), por sua vez, afirmava que o ser divino ou o Uno (p. 289) é uma realidade que,
justamente por ser divina, está além de todo pensamento. O pensamento do pensamento
corresponderia ao intelecto, realidade que é menos divina do que a sua fonte (o Uno), mas sem
conter, ainda, a materialidade do mundo físico.
Auguste Rodin (1840-1917), O pensador, 1903, escultura de bronze. Museu Rodin, Paris (França).
Exposição diante do Caixa Forum Madrid (2009).
Há uma fábula que pode oferecer uma compreensão por imagens daquilo que pretendemos dizer
sobre a variedade de filosofias e a unidade da postura filosófica ou da Filosofia. Ela foi registrada
pelo poeta persa Rumi. Ícone: Texto filosófico
O elefante de Bagdá
Rumi
Alguns viajantes da Índia levaram um elefante para Bagdá e o instalaram em um local escuro. A
população, desejosa de saber com o que parecia esse animal, correu para o local em que ele havia
sido instalado. Mas como estava escuro, as pessoas não conseguiam vê-lo. Começaram, então, a
tocá-lo com as mãos.
– Ele se parece mais com um leque ou um desses instrumentos que usamos para fazer vento.
– Não! Isso que se chama de elefante é como uma grande coluna. Cada qual seguia descrevendo o
elefante à sua maneira, seguindo a parte do corpo que era tocada.
Se eles tivessem uma vela ou uma lâmpada, veriam melhor, mas isso não quer dizer que eles
concordariam entre si. Afinal, nossos olhos nos enganam tanto quanto a ponta dos dedos...
PIQUEMAL, Michel. Les Philo-fables. Paris: Albin Michel, 2003. p. 97-98. (As filofábulas. Tradução nossa.)
Página 37
O final da fábula é polêmico, pois acaba defendendo que tanto os dedos como os olhos sempre nos
enganam. Isso poderia levar à ideia de que as filosofias sempre erram. Não precisamos chegar a
essa conclusão, pois ela é tão exagerada quanto seria pensar que as filosofias sempre acertam. É
muito interessante na fábula o risco do engano. Esse risco não leva a concluir que todos se enganam
sempre, mas a insistir para que todos se perguntem honestamente: “estou enganado ou tenho uma
visão adequada?”. A visão depende da experiência de cada um; e as diferentes filosofias também
nascem das diversas possibilidades de olhar para a experiência de nós mesmos e do mundo.
Além disso, é desnecessário ver a existência como uma coisa única, assim como o elefante. Se a
nossa existência é o que fazemos dela, é legítimo pensar que cada indivíduo dá um rosto novo para
o modo humano de existir. Como o elefante, a existência é a condição ou o estado comum de todos
os indivíduos. Todos somos companheiros de jornada e as filosofias podem torná-la mais
satisfatória.
EXERCÍCIO C
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 427
Explique as partes que compõem a definição de Filosofia proposta aqui (reflexão, pensamento,
elaboração de sentido, existência) e mostre a diferença do procedimento filosófico com relação
ao procedimento dos outros saberes.
Dicas de filmes para você assistir tendo em mente o que trabalhamos neste capítulo
Filme de animação que apresenta a vida de um garoto que vive em uma cidade isolada e decide, certo dia, sair
em busca de seu pai. Com um olhar inocente, o filme levanta os temas do sentido da existência, da globalização,
da economia como motor do mundo e da perda dos valores éticos.
A árvore da vida (The Life Tree), direção Terrence Malick, 2011, EUA.
Jack é o mais velho dos três filhos criados de modo rígido pelo casal O’Brien. Certo dia, Jack, que vivia um forte
sentimento de culpa, sai pelo mundo porque reconhece em si mesmo algumas características semelhantes às
de seu pai, a quem ele reprovava claramente.
Reconstrução clássica da vida de Sócrates, com base nas informações fornecidas pelos diálogos escritos por
Platão.
Na natureza selvagem (Into the Wild), direção Sean Penn, 2008, EUA.
Depois de se formar na universidade, o jovem Christopher decide sair dos Estados Unidos e viajar sem destino.
Depois de dois anos na estrada, estabelece como destino o Alasca. O filme põe no centro da atenção a pergunta
pelo que distingue a Natureza e o mundo construído pelos seres humanos.
História de uma família norte-americana aparentemente feliz, mas corroída pela falta de diálogo e de
compreensão mútua. O tema do conflito entre a materialidade da vida e o seu sentido é o centro da narrativa.
FOTO: DIGITAL IMAGE, THE MUSEUM OF MODERN ART, NEW YORK/SCALA, FLORENCE © KOSUTH, JOSEPH/AUTVIS, BRASIL, 2016.
Joseph Kosuth (1945-), Uma e três cadeiras, 1965. Há três cadeiras na obra de Kosuth: uma na fotografia, outra
em “carne e osso” e outra na definição dada pelo dicionário (verbete chair, em inglês). Ao chamar a atenção
para o que nos faz pensar em uma cadeira (a imagem, o objeto ou a ideia), o artista norte-americano põe no
centro da arte a linguagem humana e as inúmeras variações que a capacidade linguística pode assumir ao
exprimir as experiências dos indivíduos e grupos.
O s filósofos procuram convencer seus interlocutores tanto quanto qualquer outra pessoa deseja
convencer seus interlocutores ao se pronunciar sobre algo.
Ao comunicarmos, queremos ser levados a sério. Esperamos que os outros concordem conosco ou,
pelo menos, entendam os motivos que justificam nosso pensamento. Em outras palavras,
procuramos convencê-los ou praticamos tentativas de convencimento. Os outros podem até
discordar de nós, mas desejamos que eles, no mínimo, convençam-se de que temos boas razões
para adotar nossa posição.
A fim de convencer, vários meios podem ser usados. Podemos envolver as pessoas pela emoção;
podemos tentar deixar as emoções de lado e ativar apenas a razão; ou podemos ainda tentar
combinar emoções e razão. A finalidade é convencer; os meios para isso são os recursos de que os
seres humanos dispõem: fundamentalmente suas emoções e sua razão.
Diferentes casos de tentativa de convencimento pela emoção e pela razão vêm do cinema, da
literatura, da música, da escultura etc. Os artistas, de modo geral, envolvem as pessoas pelas suas
emoções e despertam pensamentos novos que contribuem para enriquecer suas maneiras de ver o
mundo. Ao produzir um filme ou uma peça de teatro, por exemplo, os diretores levam as pessoas a
se identificar com o que é apresentado ou a rejeitá-lo. Despertam alegria, amor, raiva, medo,
admiração, desprezo etc., e levam as pessoas, por essas experiências emocionais, a aceitar ou a
recusar aquilo que lhes é proposto.
No filme brasileiro Central do Brasil, há uma cena muito emocionante que ilustra a possibilidade de
convencer pela ativação da emoção e do pensamento. Trata-se da cena em que as personagens Dora
(Fernanda Montenegro) e Josué (Vinícius de Oliveira) estão sentadas em uma mureta de cimento,
Página 39
completamente sem esperança, porque acabavam de ser deixados na estrada pelo caminhoneiro
que lhes tinha dado carona. Pela tristeza da cena, o diretor leva os espectadores a se convencer da
bondade existente no íntimo de Dora, pois, mesmo no desespero, ela não abandona Josué nem
desiste de seu objetivo: levá-lo até seus irmãos, uma vez que sua mãe havia morrido. Dora, que
tinha alguns defeitos e praticava atos questionáveis, podia ter decidido voltar para sua cidade e
“lavar as mãos” sobre o destino do garoto Josué. No entanto, ela foi capaz de tomar uma decisão
melhor e continuar viagem. O diretor do filme leva, assim, os espectadores a refletir sobre o lado
bom de Dora e a reconhecer o valor de sua atitude.
Esse duplo caráter do convencimento exclusivo pelas emoções também pode ser observado todos
os dias nos programas de televisão: se despertam amor, levam a amar; mas, se despertam ódio,
levam a odiar; se despertam emoções de compaixão, podem levar à compreensão e à aceitação das
pessoas; mas, se despertam desejos de vingança, podem levar à destruição dos outros, à ignorância
e à violência. Também podem fazer que as pessoas amem alguém desonesto e odeiem alguém
honesto... A esse respeito, ocorreu um caso bastante grave no Brasil, em 1994: os pais de algumas
crianças matriculadas na Escola Base, em São Paulo, começaram a dizer que a proprietária e os
funcionários da escola abusavam sexualmente dos alunos. Vários programas de televisão não
esperaram o trabalho da Justiça e passaram a considerar culpados tanto os funcionários como a
proprietária. Mostravam imagens em que eles saíam da delegacia, dando a entender que eram
criminosos; faziam comentários cheios de raiva e incentivavam a população da Zona Sul da cidade
de São Paulo a fazer justiça com as próprias mãos. A raiva despertada foi tão grande, que vários
moradores da região da escola bateram nos funcionários e depredaram suas casas. Os juízes do
caso perceberam que as acusações não se sustentavam. Vinte anos depois das agressões, as redes
de televisão foram condenadas a pagar indenizações milionárias aos acusados, mas, como eles
dizem, nem todo o dinheiro do mundo poderá devolver a parte de suas vidas que foi destruída pela
ignorância e pela violência daqueles que os perseguiram.
Para não ficar expostos às variações do convencimento por meio exclusivamente da emoção, os
filósofos procuram enfatizar o papel da razão. Em outras palavras, chamam sempre a atenção para
o modo como o pensamento é construído em sua atividade de produzir sentidos para a existência.
NELSON ALMEIDA
Casa depredada em 1994, pertencente a funcionário da antiga Escola Base (São Paulo).
Página 40
Sendo uma atividade baseada na defesa de pensamentos justificados por meio de explicações que
todos podem entender e avaliar, a argumentação filosófica procura basear-se em um método
racional. Tal atividade pode ser entendida como o próprio método racional. A palavra método tem
origem no termo grego methodos, que significa um caminho que se percorre. Por indicar um
caminho, a palavra método ampliou seu significado para o modo como um saber se constrói em sua
busca de encontrar conclusões.
O fato, porém, de a Filosofia operar com um método racional não significa que ela dispensa as
emoções. Pelo contrário, muitos filósofos também acionam as emoções de seus ouvintes ou leitores,
mas o fazem de um modo que as emoções sejam acompanhadas de reflexão ou de pensamento.
Aliás, desde suas origens, o pensamento filosófico foi expresso na forma do que hoje se costuma
chamar de Literatura. Platão (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 82) foi um dos maiores
exemplos ao recorrer a narrativas da mitologia grega como forma de exprimir não apenas a beleza
dos mitos, mas também a beleza do pensamento que, no seu dizer, atingia a verdade de maneira
objetiva. Mais próximo a nós, outro grande exemplo de pensador que produziu um pensamento
filosófico de forma literária foi Jean-Paul
Sartre (1905-1980). Em alguns de seus livros, ele seguiu um método “exclusivamente racional”,
tentando adotar apenas raciocínios objetivos como forma de convencer. Em outros, porém,
procurou acionar também as emoções dos leitores, fazendo-os sentir, cada um em sua experiência
íntima, aquilo sobre o que eles eram convidados a refletir. Por exemplo, no romance A náusea,
Sartre leva os leitores a experimentar a existência, ou melhor, o que significa o ato de existir. Ele
escreve em primeira pessoa, dando vida à personagem Antoine Roquentin.
Roquentin era um jovem de cerca de 35 anos e escrevia um diário para narrar suas vivências na
fase em que decidiu deixar o trabalho, a fim de escrever um livro sobre uma personagem do século
XVIII. Roquentin sentiu a necessidade de escrever o diário porque percebeu que sua relação com as
coisas e as pessoas estava mudando. Ele queria descobrir o porquê. Não suportava mais a vida de
sua cidade e estava perdendo até o interesse pelo livro que escrevia. É então que ele vive a
experiência vertiginosa que lemos no livro A náusea. Ícone: Texto filosófico
1
Ícone: Glossário 1 Vertiginoso: algo que causa vertigem, que faz perder o autocontrole.
A vertigem da existência
Jean-Paul Sartre
Eu estava agora há pouco na praça. A raiz da castanheira adentrava na terra, chegando embaixo de
meu banco. Sequer me lembro de que era uma raiz. As palavras haviam desfalecido e, com elas, a2
significação das coisas, seu manual de instrução, as frágeis referências que os humanos desenharam
na face delas. Eu estava sentado sozinho, diante daquela massa escura e cheia de nós, inteiramente
bruta e que me causava medo. De repente, tive uma iluminação. Isso me fez perder o fôlego. Nunca
antes eu havia sentido o que quer dizer existir. Eu era como os outros, como aqueles que caminham
à beira-mar com roupas leves de primavera. Assim como eles, eu dizia: “o mar é verde”; “aquele
ponto branco, lá no alto, é uma gaivota”. Mas, eu não sentia que isso existia ou que a gaivota era
uma “gaivota existente”. Geralmente, a existência esconde-se. Ela está aí, à nossa volta, em nós; nós
somos a existência; não podemos dizer nem duas palavras sem falar dela, mas, no fim das contas,
não a tocamos. [...] E eis que, de repente, tudo estava diante de mim, claro como a luz do dia: a
existência de repente deixou cair seu véu. Ela perdeu seu semblante inofensivo de categoria
3 4 5
abstrata : era a massa mesma das coisas; a tal raiz estava modelada na existência. Melhor ainda, a
6
raiz, as grades da praça, o banco, as gramas finas do jardim, tudo isso tinha desfalecido; a
diversidade das coisas, sua individualidade, não passava de uma aparência, um verniz. Esse verniz
tinha derretido; só restavam massas monstruosas e moles, em desordem, nuas; numa assustadora e
obscena nudez.
7
SARTRE, Jean-Paul. La nausée. Paris: Gallimard, 1938, p. 110. (A náusea. Tradução nossa.)
Note como Sartre, pelo tipo de palavras que escolhe e pelo ritmo que dá a elas, procura despertar
nos leitores a mesma experiência que teve Roquentin: a de entender a existência por meio do
“desentendimento”, da quebra do costume de pensar as coisas classificadas segundo categorias que
criamos para dividi-las em grupos. Ao perceber que todas as coisas são unidas pelo fato de
existirem, Roquentin se dá conta de que ele mesmo é mais uma coisa entre as outras coisas; divide
com elas o pertencimento a essa “massa” que é a existência. Vem daí o seu espanto ou a sua
vertigem, a sua perda de controle da compreensão da existência. Como dizia Sartre, essa
experiência faz “perder o fôlego”, pois, quando “acordamos” para o que significa estar no mundo,
tomamos um susto, deixamos de lado a inocência infantil e entramos em uma vida adulta,
consciente, sem ilusões, mas também dotada de maior liberdade e capacidade de interferir no
próprio destino. Ao despertar nos leitores uma experiência de desorientação e desconforto, Sartre
os faz conjuntamente refletir sobre a mesma existência como algo que vivemos e no qual não
prestamos atenção.
Dessa perspectiva, Sartre é um exemplo de como o pensamento filosófico se une ao que hoje se
chama de expressão literária e pode acionar, a um só tempo, razão e emoção. A literatura, aliás, é
também uma forma de unir razão e emoção, motivo pelo qual é muito comum encontrar
pensamento filosófico na obra de autores classificados como “literários”.
A Literatura tem um campo de interesse maior do que o da Filosofia, pois, enquanto a Filosofia
concentra-se no pensamento sobre o pensamento em sua atividade de procurar ou elaborar
sentidos para a existência, a Literatura explora tais sentidos nos seus mais variados aspectos, e não
apenas em relação ao pensamento sobre o pensamento. Já mencionamos, nos capítulos anteriores,
o poeta persa Rumi, em cuja obra há muitos dados filosóficos. Agora, apenas para citar alguns
autores temporalmente mais próximos a nós, podemos evocar Søren Kierkegaard (1813- 1855),
Fiodor Dostoievski (1821-1881), Machado de Assis (1839-1908), João Guimarães Rosa (1908-
1967), Albert Camus (1913-1960), Iris Murdoch (1919-1999), Clarice Lispector (1920-1977),
Sylvia Plath (1932- 1963), Raduan Nassar (1935-), entre tantos outros.
Algo parecido ocorre com as outras formas de arte, como a pintura, a escultura, a música etc. Elas
podem ser filosóficas na medida em que despertam experiências que convidam à reflexão do
pensamento sobre si mesmo em sua busca de produção de sentidos para a existência.
Outros estilos filosóficos, porém, concentram-se “exclusivamente” no aspecto racional, sem ênfase
nas emoções, e seguem um método composto por tentativas de justificar aquilo que dizem ou
escrevem sobre a realidade e a experiência humana partindo de informações iniciais (e em alguma
medida bem conhecidas) e articulando-as com o objetivo de obter conclusões. Cada tentativa
recebe o nome de argumento ou também raciocínio. Seria mesmo possível pensar que até os
filósofos que unem o trabalho da razão à ativação das emoções terminam por defender argumentos,
uma vez que o elemento reflexivo que eles apresentam em suas elaborações pode ser expresso na
forma de argumentos. Dessa perspectiva, é também possível unir de modo bastante geral as
diferentes formas filosóficas de trabalho argumentativo em um método que costuma ser chamado
de método discursivo, isto é, que busca convencer por meio da construção de pensamentos sobre a
realidade e a experiência humana, pensamentos esses bem estruturados apenas com argumentos
ou com argumentos e ativação das emoções. Além disso, é possível dividir o método discursivo,
também de modo bastante geral, em método silogístico e método dialético, como veremos a seguir.
Houve alguns filósofos, porém, que decidiram não escrever seus pensamentos. Dizemos que são
pensadores ágrafos, quer dizer, “sem escrita”. Sua própria vida constituía o melhor “discurso” ou a
melhor maneira de convencer. O mais conhecido deles foi Sócrates (469-399 a.C.), considerado “o”
filósofo por Platão. Mas também Diógenes de Sinope (402-323 a.C.), também conhecido como
Diógenes, o Cão, por criticar a vida artificial construída pelos seres humanos e por defender que
eles seriam mais felizes se aprendessem as “virtudes” dos cães.
Outra forma de convencer que também compõe o método filosófico consiste em não recorrer
propriamente a discursos ou construções de pensamentos, mas em decompor aquilo que
8
chamamos de realidade ou de experiência, até chegar a elementos sobre os quais não há dúvida, ou
seja, que não podem ser objetos de interpretações variadas, mas que são pressupostos em toda
interpretação. A esse método costuma-se chamar de método intuitivo.
E m nosso modo cotidiano de falar, o termo cinismo designa a atitude de quem é falso ou de quem
dá a impressão de agir por um motivo, quando, na verdade, age por razões ocultas...
O adjetivo cínico, aliás, vem do termo cão (kyon, kynos em grego), porque os filósofos cínicos
ficaram associados à imagem desse animal. Conta-se que eles se reuniam em um local conhecido
pelo nome de Cão Rápido. Eles também podiam ter sempre junto de si um cão, animal dócil com
quem o acaricia, insistente com quem não o alimenta e bravo com quem ele não aprecia. Conta-se
também que esses filósofos viviam como cães, indiferentes às convenções sociais (diz uma lenda
que eles defecavam e se masturbavam em público).
À parte o aspecto lendário, os cínicos criticavam, de fato, os costumes sociais. Conta-se também que
Platão chegava a elogiar a inteligência de Diógenes, comparando-o com Sócrates, embora
completasse, dizendo ser ele um “Sócrates louco”. Diógenes acreditava que as leis e os costumes só
afastam os seres humanos da Natureza. Ria de tudo e de todos. Certo dia (ainda segundo a lenda),
tentando falar de coisas importantes e vendo que ninguém lhe dava ouvidos, Diógenes se pôs a piar
como um pássaro, o que fez as pessoas juntar-se em torno dele. Ele então passou a insultá-las,
dizendo que elas gostavam de ouvir coisas sem importância e eram indiferentes às coisas sérias.
Aos que sofriam com sonhos, Diógenes perguntava: “Vocês não se importam com o que acontece
quando estão acordados, mas se inquietam com coisas imaginárias que aparecem nos sonhos?”.
Sabemos poucas coisas sobre os cínicos; basicamente, eles defendiam um retorno à vida natural e
uma sabedoria cotidiana despreocupada. Por trás das histórias engraçadas que narram a rixa de
Diógenes com Platão talvez apareçam alguns elementos mais consistentes de seu pensamento.
Diz-se que, um dia, Diógenes comia figos quando encontrou Platão. Disse: “Pode pegar”. Platão
pegou e comeu. Diógenes riu, dizendo: “Eu disse que podia pegar; não disse que podia comer!”. Essa
anedota é só risível. A próxima é mais interessante do ponto de vista filosófico: como Platão
pretendia identificar os gêneros ou as formas gerais que organizam tudo o que existe no mundo, ele
teria dado um dia a seguinte definição de ser humano: “bípede sem penas”. Diógenes, então, jogou
um galo depenado no meio dos alunos de Platão e disse: “Eis o homem de Platão”. Dizem que Platão
completou a definição: “bípede sem penas, com unhas retas e largas”. Diógenes saiu, então, pelas
ruas, com uma lanterna, em plena luz do dia, gritando: “Procuro o homem”. Ele queria dizer que
procurava o homem descrito por Platão, ou seja, “o” homem definido universalmente. Talvez, no
dizer de Diógenes, “o” homem não será nunca encontrado, pois só há indivíduos ou tipos singulares
de homens.
Parece que os atenienses tinham uma afeição especial por Diógenes. Ele vivia em um barril,
mostrando que não precisava de tudo o que as pessoas acreditam precisar para viver. Certo dia, um
Página 43
rapaz quebrou esse barril por gozação. As pessoas condenaram o ato do rapaz e ofereceram outro
barril ao filósofo.
Hoje não é fácil, para nós, entender o sentido antigo da palavra cínico, principalmente porque a
associamos com falta de sinceridade. Mas não é esse o cinismo de Diógenes, pois ele não negociava
sua liberdade e sua integridade. Um caso mais recente, ocorrido na França entre os anos 1950 e
1960, talvez possa ser tomado como exemplo moderno de cinismo no sentido de Diógenes. Trata-se
do comportamento de André Dupont (1911-1999), que adotou o nome Mouna Aguigui, que não
significa nada de preciso. Seu novo nome parece um jogo de palavras francesas como moumouna
(palavra carinhosa que se pode usar para um gato) e gaga (louco). Ele andava só de bicicleta ou a
pé, usando sempre um chapéu com pequenos sinos pendurados e um casaco cheio de adesivos.
Escrevia em folhas de couve; registrava discursos políticos e debochava deles. Nas eleições, Mouna
sempre se candidatava, mas na qualidade de “não candidato”. Denunciava o “caca-pipi-talismo”,
outro jogo de palavras, com caca (merda), pipi (xixi) e capitalismo. Seu lema era: “Os tempos são
duros... Viva o mole!”. Alguns políticos de esquerda diziam: “Mouna é folclore!”, mas ele respondia:
“Vocês preferem o cloro?”. O cloro era uma alusão ao gás lacrimogênio que os policiais franceses
usavam para reprimir as manifestações estudantis.
Mouna Aguigui ironiza os participantes do Prêmio Goncourt (premiação literária francesa) e é reprimido pela
força policial.
1 Método discursivo
A razão ou a construção e expressão racional do pensamento significam a elaboração de um
discurso (interno – da pessoa consigo mesma – ou externo – da pessoa com outros interlocutores),
tomando por base um conjunto de afirmações e negações que podem ser justificadas e avaliadas
por todos os indivíduos e grupos que conhecem as “regras” seguidas na construção desse mesmo
discurso.
O termo regra é tomado aqui em um sentido bastante amplo e remete aos modos de justificar as
articulações ou as correlações entre as afirmações e negações de cada discurso. Não é uma regra
matemática, como se a inteligência humana funcionasse ao modo dos computadores, quer dizer,
sem a possibilidade de improvisar e de ter criatividade. Em vez disso, o termo regra, aqui, refere-se
a algo como a regra seguida em um jogo: ela pode mudar se os jogadores estiverem de acordo.
Assim, o funcionamento da razão é um processo em que suas regras são compreensíveis para todos
aqueles que se dispõem a entrar na atividade de construir e avaliar um discurso.
Grande parte dos filósofos adotam o método discursivo, pois procuram convencer por meio da
construção de um discurso construído segundo regras que se concentram apenas em afirmações e
negações que podem ser avaliadas por todos os “jogadores” desse discurso ou por meio da
construção de um discurso como esse e pela ativação das emoções.
Página 44
Neste capítulo, procuraremos apresentar o método discursivo pondo-o em prática, e não por meio
de explicações teóricas sobre ele. Assim, se o método discursivo pode ser reduzido ao uso de
argumentos, o primeiro passo necessário para compreendê-lo é dar atenção à atividade de
reconhecer argumentos.
Nos argumentos ou raciocínios, tudo o que é apresentado como justificativa recebe o nome de
premissa ou antecedente. Trata-se do ponto de partida (ou dos pontos de partida) que leva à
conclusão, que, por sua vez, chama-se apenas conclusão ou também consequente.
Para bem analisar um argumento, convém identificar a premissa ou as premissas e ver se há uma
conexão com a conclusão. Em geral, os pensamentos são feitos de maneira compacta, quer dizer,
não apresentam necessariamente todos os momentos que os compõem. Pela análise, contudo, esses
momentos podem ser trazidos à tona. Quando uma ou mais premissas não são claras, mas tomadas
como certas, dá-se a elas o nome de pressuposto.
Observa-se que a conclusão está na primeira parte da frase e que sua justificativa está na segunda
parte. As duas partes são ligadas pela conjunção porque. Assim, o que é expresso depois de porque
equivale à premissa que dá base para afirmar o que é dito antes (a conclusão). Além disso, essa
premissa se fundamenta em duas outras premissas não declaradas (pressupostos): a de que “todo
ser humano merece respeito” e a de que “cometer um crime não faz alguém deixar de ser humano”.
Veja:
Você pode observar que o raciocínio está bem montado, porque parte de um dado geral (todo ser
humano merece respeito) e mostra que, mesmo no caso de alguém cometer um crime, esse alguém
é um caso particular que pertence ao dado geral. O fato de cometer um crime não o torna menos
humano; portanto, também merece respeito.
Outro exemplo:
Como esta porção de água não chegou a 100 °C, ela não ferveu.
Observe que agora a justificativa aparece no início da frase e é introduzida pela conjunção como. A
conclusão aparece no final.
Esse raciocínio tem outro ponto de partida: o fato de que toda porção de água ferve quando chega a
100 °C. Podemos dizer, então, que o pressuposto desse raciocínio é “toda porção de água que ferve
chegou a 100 °C”.
Para estabelecer esse ponto de partida (pressuposto), baseamo-nos na observação de que várias
porções de água ferveram a 100 °C; então, temos base razoável para crer que toda porção de água
que ferve chegou a 100 °C. Do mesmo modo, temos base para afirmar que, com base na observação,
se uma porção de água não ferveu, é porque ela não atingiu 100 °C. A crença expressa pelo
pressuposto desse raciocínio não corresponde, no entanto, a uma certeza definitiva, pois a
observação das porções de água não garante que todas as porções de água que fervem sempre se
comportarão da mesma maneira (pode aparecer uma porção que ferva sem chegar a 100 °C ou só
passando de 100 °C).
Há, porém, uma diferença entre os dois exemplos. Trata-se de uma diferença que vai além da
simples montagem dos raciocínios e que envolve a necessidade de refletir sobre o que leva a
considerar uma conclusão verdadeira: no primeiro exemplo, baseamo-nos em uma afirmação que já
é tomada como verdadeira e que, por isso mesmo, leva necessariamente a considerar verdadeira a
conclusão; no segundo, baseamo-nos em experiências particulares que permitem considerar
razoável a conclusão, não necessariamente sempre verdadeira.
Essa diferença aponta para um dado de grande importância em Filosofia: o melhor debate de ideias
se dá na escolha das premissas e dos pressupostos (os pontos de partida) dos argumentos
utilizados. Embora seja natural que nosso maior interesse se concentre nas conclusões dos
raciocínios, o que permite realmente tomar uma posição sobre tais conclusões é a análise do modo
como elas são justificadas, isto é, o modo como as premissas e os pressupostos são escolhidos e
articulados para fundamentar a conclusão.
No caso do primeiro exemplo, para haver um real debate ou mesmo para discordar da conclusão, é
necessário discordar das premissas. Seria preciso mostrar que estão errados os pressupostos
segundo os quais “todo ser humano merece respeito” e “cometer um crime não faz alguém deixar
de ser humano”. Caso se aceite que essas premissas são verdadeiras, deve-se aceitar
necessariamente que a conclusão também é verdadeira. Outra possibilidade para recusar a
conclusão seria mostrar que o argumento está mal montado, como veremos adiante. Mas isso não
ocorre com o nosso exemplo.
No segundo exemplo, para poder debater ou discordar, seria necessário mostrar que há
experiências particulares diferentes daquelas usadas na passagem das premissas à conclusão. Seria
preciso encontrar alguma porção de água que não ferve a 100 °C para poder dizer que não é
razoável concluir que toda porção de água ferve a 100 °C.
Vejamos outro exemplo de como os melhores debates podem se dar no nível dos pressupostos e
das premissas:
Sou o Carlos e tenho 17 anos. Outro dia, durante o intervalo, estávamos conversando sobre a
eutanásia . A Kátia disse que era contra, porque, assim como não conseguimos criar a vida, também
9
não temos direito de tirá-la. Deveríamos aliviar o sofrimento dos doentes, mas nunca abreviar a
vida deles. O Maicon disse que era a favor, porque a eutanásia era um sinal de compaixão pelos
doentes, sobretudo quando estes a solicitam livremente. Fiquei confuso e estou me perguntando até
agora: se não abreviarmos a vida dos doentes, estaremos agindo sem compaixão? E, se quisermos
ter compaixão, temos de praticar a eutanásia? Para piorar, nosso professor de Biologia não
conseguiu resolver nossa questão...
SAVIAN FILHO, J. Argumentação: a ferramenta do filosofar. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2015. p. 22-25.
Ícone: Glossário 9 Eutanásia: ato médico de provocar a morte de alguém, de maneira rápida e sem dor.
A angústia do Carlos é legítima, pois ele procura entender com clareza o assunto. Entretanto,
mistura as premissas e os pressupostos dos dois raciocínios, sem perceber como eles são muito
diferentes e difíceis de combinar. Para ficar de um lado ou do outro, era preciso aderir às premissas
e aos pressupostos de cada um. Por sua vez, alguém só pode dar essa adesão quando se baseia em
sua própria experiência, em sua história de vida, suas maneiras de pensar e de sentir etc.
Também não cabia ao professor de Biologia resolver esse impasse, pois o que estava em discussão
era algo que ia além do simples dinamismo biológico; envolvia posições existenciais, éticas, ligadas
ao sentido da vida humana. Nesse campo, a palavra cabia mais aos filósofos do que aos biólogos.
Caso o professor de Biologia de Carlos quisesse esclarecer o dilema, ele teria de assumir uma
atitude filosófica.
A confusão de Carlos vem do fato de que ele mistura as conclusões, como se fosse possível
considerá-las ao mesmo tempo e isoladamente. Mais do que se concentrar nas conclusões, ele
deveria analisar as premissas: o que leva Kátia a dizer que não temos o direito de tirar a vida de
ninguém? Faz sentido sustentar uma ideia como essa? E o que leva Maicon a dizer que a eutanásia
representa um ato de compaixão e respeito pela liberdade? Se pôr fim à vida é visto como um ato
ruim, por que chamá-lo de compaixão?
É discutindo esses pontos de partida (premissas e pressupostos) que Carlos poderia alcançar uma
compreensão melhor do tema. Ele poderia, inclusive, chegar à conclusão de que talvez o debate
estivesse malfeito só com essas duas opiniões. Em todo caso, é nesse momento do argumento que
podem ocorrer os melhores debates.
EXERCÍCIO A
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 429
1. Posso dizer que sou amigo de Cláudia, porque temos os mesmos gostos.
3. Este político é corrupto; aquele também; aquele outro também; portanto, todo político é
corrupto.
5. A dipirona baixou a febre da minha vizinha; então ela também deve baixar a minha febre.
Se a natureza humana estivesse feita de tal modo que aquilo que os seres humanos mais
desejassem fosse aquilo que é mais útil, não seria preciso nenhuma arte para a concórdia e a
lealdade. Mas, porque a natureza humana é, manifestamente, constituída de modo bem
diferente, o Estado tem necessariamente de ser instituído de tal maneira que todos, tanto os
que governam como os que são governados, queiram ou não, façam aquilo que interessa à
salvação comum, isto é, que todos sejam levados, espontaneamente ou à força ou por
necessidade, a viver segundo o que prescreve a razão.
ESPINOSA, B. Tratado político. Tradução Diogo Pires Aurélio. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 48.
Como certas funções do Estado servem ao interesse de todos, temos o dever de aceitar de bom
grado o que o Estado impõe em relação a essas funções. (Exemplo: regulamentação do
trânsito). Quanto ao resto, é necessário sofrer o Estado como uma necessidade, mas não
10
aceitá-lo dentro de nós. [...] Devemos recusar reconhecer as recompensas (podemos felizmente
recusar as recompensas e até as punições), utilizar ao máximo todas as liberdades que o
Estado nos deixa (é muito raro os cidadãos ousarem abusar de todos os direitos reais).
Também temos o direito de usurpar , contra a lei, as liberdades que o Estado não nos deixa,
11
desde que isso valha a pena. Temos o dever, quando as circunstâncias nos permitem escolher
entre vários regimes, de escolher o menos ruim. O Estado menos ruim é aquele em que somos
menos limitados pelo Estado e aquele no qual os simples cidadãos têm maior poder de
controle [...]. Temos o dever de trabalhar pela transformação da organização social: aumento
do bem-estar material e instrução técnica e teórica das massas.
WEIL, Simone. Aulas de filosofia. Tradução Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 1991, p. 150.
Ícone: Glossário
O filósofo Aristóteles (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 103) chamava de silogismo ao
raciocínio ou argumento. Em grego, syllogismós significa “conexão de ideias”, “articulação de
razões”. Pelo termo silogismo, então, passou-se a designar toda unidade básica de raciocínio,
envolvendo ideias e premissas até chegar a uma conclusão.
Serge Antigny (1947-), Silogismo, sem data, fotografismo. O artista chama de fotografismo a técnica de criar um
banco de imagens fotográficas, um fundo produzido com montagem de diferentes fotos e uma junção em
primeiro plano, alterando a forma das imagens de base. Na série Silogismo, as duas primeiras imagens
resultam na terceira, que, embora revele elementos das outras duas, oculta alguns elementos delas e manifesta
outra forma de ver o que nelas estava presente.
Costuma-se também dar o nome de dedução ao silogismo. Ao lado da dedução, muitos pensadores,
ao longo da História da Filosofia, passaram também a nomear outros tipos de argumento: a indução
e a analogia. Ambas são consideradas argumentos, porque também estabelecem relações entre
premissas e conclusões. É justamente o modo como se passa das premissas à conclusão (o modo
como se procura garantir a verdade da conclusão com base na verdade das premissas) que permite
diferenciar entre a dedução, a indução e a analogia.
Esquematicamente, estes são os tipos de argumentos aceitos em geral como método discursivo:
Na dedução, se as premissas forem tomadas como verdadeiras, então a conclusão será
necessariamente verdadeira (desde que o raciocínio esteja bem montado). A verdade das premissas
garante necessariamente a verdade da conclusão. É o caso do exemplo de alguém que comete um
crime e merece respeito
Página 48
Silogismo válido
Todo ser humano tem sensibilidade.
Sócrates é um ser humano.
Então, Sócrates tem sensibilidade.
Mas a verdade das premissas pode ser articulada de modo que não garanta a verdade da conclusão.
Quando isso ocorre, não há uma dedução, mas apenas a aparência de dedução. Observe o seguinte
exemplo:
Silogismo inválido
Todo ser humano tem sensibilidade.
Sócrates tem sensibilidade.
Então, Sócrates é um ser humano.
A conclusão do segundo exemplo pode ser verdadeira, mas não é garantida pelo modo como as
premissas se relacionam (elas estão mal articuladas). Veja que a segunda premissa não se articula
necessariamente com a primeira; afinal, Sócrates pode ter sensibilidade e ser um cachorro ou um
gato. Nada garante que ele é ser humano só porque tem sensibilidade. A verdade da conclusão,
portanto, independe da verdade das premissas; e, no caso desse exemplo, não há uma dedução
válida.
Na analogia, procede-se por comparação entre situações diferentes que permitem uma
aproximação por terem um ponto comum. Quando esse procedimento é declarado, fala-se
propriamente de analogia; quando ele é implícito, chama-se metáfora. A analogia e a metáfora
podem se aplicar ao significado das palavras e à construção de raciocínios.
Leo Blanchette/Shutterstock.com
Projeção em 3D do que seria um avião baseado nos desenhos de Leonardo da Vinci (1462-1519). O modelo de Da
Vinci é claramente construído por analogia com a anatomia dos pássaros.
No caso das palavras, diz-se, por exemplo, que um alimento é “saudável”. Trata-se de uma analogia
com a saúde humana, porque “ter saúde” ou “ser saudável” é algo específico dos seres humanos;
mas, se os alimentos contribuem para a saúde humana, diz-se por comparação que eles são
“saudáveis”. Algo parecido ocorre quando se diz, em um exame de urina, que ela é “saudável”; ou,
em uma análise do nível de poluição, afirma-se que o ar é ou não “saudável”. Já quando dizemos que
“nossos amigos são nossa vida”, temos uma metáfora, uma vez que os amigos não têm nada de
explicitamente comum com o dinamismo biológico a que se chama vida; alguém pode estar vivo e
não ter amigos. Essa metáfora significa que valorizamos os nossos amigos como valorizamos a
nossa própria vida. Também afirmamos, por exemplo, que “Essa pessoa não tem um pingo de
vergonha” ou pedimos “Coloque, por favor, uma lágrima de leite em meu café”.
Página 49
metáfora são bastante comuns na argumentação dos pensadores que adotam formas literárias de
expressão e em literatos que tratam de temas filosóficos. Mas elas podem ser empregadas mesmo
no interior de um raciocínio dito “objetivo”, ou seja, com um sentido determinado de modo direto.
Observe os seguintes exemplos:
O cientista Benjamin Franklin (1706-1790) entendia o raio como uma descarga elétrica. Observando,
então, que, quando há uma descarga elétrica as faíscas são atraídas por coisas pontiagudas , ele
13
pensou que os raios também seriam atraídos por coisas pontiagudas. Com base nessa comparação,
inventou o para-raios.
Segundo o filósofo Voltaire (1694-1778), o Universo é tão perfeito que leva a pensar na existência de
um criador divino, assim como um relógio não pode existir sem um relojoeiro.
Ícone: Glossário
Por fim, o argumento de autoridade consiste em recorrer ao fato de alguém ser especialista em
algum assunto para convencer quanto ao crédito que a sua palavra merece. Mais do que analisar
suas premissas e observar se elas justificam realmente a conclusão, nós nos baseamos no
reconhecimento público de sua autoridade. É o que ocorre, por exemplo, quando confiamos na
palavra dos médicos e dizemos: “Você está mal porque o médico disse isso”. Esse procedimento
também ocorre quando se afirma algo como: “Se Aristóteles disse que todo ser humano é racional,
então você é racional”.
O argumento de autoridade pode ser legítimo nos casos em que há um reconhecimento público da
especialidade de quem é tomado como fonte ou base de uma conclusão. Mesmo nesse caso, porém,
ele é frágil, pois a verdade da conclusão não é defendida com base nas premissas do raciocínio, mas
na autoridade pessoal de alguém. Por exemplo, em um texto filosófico, um pensador pode partir da
definição dada por outro pensador e construir seu raciocínio sobre ela; ou, em um texto científico,
um cientista pode lembrar o trabalho de outro cientista e iniciar uma argumentação a partir dele. É
como se esse pensador ou esse cientista, ao remeter à autoridade de alguém, assumisse
publicamente que concorda com as conclusões desse alguém e remetesse a um estudo de tais
conclusões. Assim, o argumento de autoridade só é realmente legítimo quando os participantes de
um diálogo conhecem as razões pelas quais alguém é tomado como fundamento de uma conclusão.
Em contrapartida, se não há tal reconhecimento público, tem-se um emprego abusivo do argumento
de autoridade: uma falácia da força ou falácia do argumento de autoridade (Ícone: Conteúdo tratado
em outra página p. 59).
Esquematizando, temos:
CAMILA CAETANO/ASCOM-UFG - 2015
Rosane da Silva Borges, professora da Universidade Estadual de Londrina, discorre sobre a intolerância no
Brasil, durante congresso na Universidade Federal de Goiás, em 2015. A relação ensino-aprendizagem baseia-
se em um bom uso do argumento de autoridade, pois os estudantes confiam no preparo de seus professores
para formá-los.
Página 50
EXERCÍCIO B
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 431
Nos seguintes argumentos, identifique seus tipos (dedução, indução, analogia e argumento de
autoridade), suas premissas e suas conclusões:
2. O remédio x fez duas mil pessoas melhorarem do estômago. Então, o remédio x faz bem para
o estômago.
3. Se todo chá é diurético, então este chá preto ajudará o funcionamento dos meus rins.
4. Suspeitando que a substância x podia combinar com a substância y, o químico decidiu testar
a combinação. Verificando que a combinação deu certo uma vez, testou mais vezes a mesma
combinação. Concluiu que a substância x combina com a substância y.
5. Segundo os historiadores, os vikings tiveram uma passagem pela América do Norte muito
antes do descobrimento do continente americano.
6. Assim como um relógio é sinal de que há um relojoeiro, também o mundo é um sinal de que
há um criador.
O raciocínio dedutivo é amplamente usado em Filosofia, visto que permite chegar a conclusões nem
sempre visíveis quando se olha apenas para as premissas. Alguns pensadores chegam mesmo a
afirmar que é a dedução que faz avançar o conhecimento. Com efeito, por meio da dedução é
possível tirar conclusões sem precisar recorrer a todo instante a experiências particulares, como
ocorre na indução. Uma vez formadas as premissas (por qualquer um dos tipos de raciocínios), a
dedução permite passar delas a novas conclusões.
Aristóteles ficou conhecido como o organizador da Lógica, área da Filosofia responsável por
investigar os elementos que dão base para avaliar a correção de um pensamento. Depois dele,
muitos outros filósofos se dedicaram à reflexão sobre esses elementos. Alguns chegaram mesmo a
criticar a lógica aristotélica e a propor outras lógicas. No entanto, o trabalho de Aristóteles continua
sendo uma referência para introduzir no conhecimento da dedução e é por isso que nos
dedicaremos, aqui, a algumas de suas ideias centrais.
De modo resumido, pode-se dizer que Aristóteles identificava três operações do conhecimento
humano: a formação de ideias ou conceitos, a formação de juízos e a formação de raciocínios.
As ideias ou conceitos são as unidades básicas de significado com as quais operamos para pensar e
exprimir nossos pensamentos. Por exemplo, pensamos ideias ou conceitos como gato, árvore, carro,
pessoa, cadeira, Deus, criança, água, terra etc. Cada ideia é expressa por um termo ou uma
expressão. Por exemplo, em vez de falar de pessoa, posso falar de ser humano: mesmo composta por
duas palavras (ser e humano), essa expressão aponta para uma única ideia; por isso, ser humano é
um termo.
Os termos podem ser empregados em sentido universal ou particular, em função dos seus usos. O
uso universal de um termo é aquele que pretende abarcar todos os seres que pertencem ao
conjunto designado por ele. Por exemplo, fala-se em sentido universal quando se diz o ser humano
ou todo ser humano. O uso é particular quando se refere a apenas um ou alguns dos seres que
pertencem ao conjunto designado pelo termo. É o caso, por exemplo, de quando se fala algum ser
humano ou este ser humano.
Por sua vez, o juízo (ou julgamento) corresponde a uma correlação de ideias. É uma segunda
operação do pensamento, porque consiste em unir ideias ou em separá-las. Quando se unem ideias,
diz-se que o juízo é afirmativo. Por exemplo: o ser humano é mamífero (une-se a ideia de ser
humano com a ideia de mamífero). Mas, quando se separam ideias, o juízo é negativo. Por exemplo:
o ser humano não é ovíparo (isso significa que a ideia de ser humano exclui a ideia de ovíparo).
14
Ícone: Glossário 14 Ovíparo: animal que põe ovos e se reproduz por meio deles.
É no juízo ou na segunda operação do pensamento que se pode falar de verdade ou falsidade, pois,
segundo Aristóteles, o juízo é o momento em que
Página 51
retratamos bem ou mal a realidade. Se o juízo une ideias de coisas que são realmente unidas na
realidade, então ele é verdadeiro. Se ele une ideias de coisas que não são realmente unidas na
realidade, então ele é falso. Por sua vez, se o juízo separa ideias de coisas que são realmente
separadas na realidade, então ele é verdadeiro. Se, porém, ele separa ideias de coisas que não são
realmente separadas na realidade, então ele é falso.
Além disso, em função do sentido universal ou particular em que os termos são tomados, os juízos
também são universais ou particulares.
Veja os exemplos:
Por fim, o raciocínio ou silogismo é uma correlação de juízos. É a terceira operação do pensamento,
pela qual se articulam afirmações ou negações (juízos) a fim de chegar a outras afirmações ou
negações que se apresentam, então, como justificadas. Os juízos que servem para justificar a
conclusão são as premissas e os pressupostos.
Em matéria de raciocínio, não se costuma dizer que ele é verdadeiro ou falso, mas que ele é válido
ou inválido, pois a verdade ou a falsidade de algo deve ser estabelecida no momento da elaboração
dos juízos. Uma vez elaborados e organizados como premissas e conclusões, os juízos constituem
raciocínios; e cabe à análise lógica, nesse nível, observar se a montagem desses raciocínios é bem-
feita ou não. Observe, por exemplo, os três raciocínios abaixo:
Você pode ter estranhado os exemplos. Talvez sua tendência fosse dizer rapidamente que o
segundo raciocínio está “errado” e que o terceiro está “correto”. No entanto, do ponto de vista
lógico (segundo as regras que estudaremos adiante), o segundo está “correto”, quer dizer, está
montado corretamente, ao passo que o terceiro está montado incorretamente. Embora todos os
juízos do segundo exemplo sejam falsos, o raciocínio articula de maneira satisfatória as ideias
veiculadas pelos juízos. Já no terceiro exemplo, embora todos os juízos sejam verdadeiros, a
articulação entre as ideias está mal feita. Nada garante que Sócrates (p. 157) seja um ser humano só
porque ele é mamífero.
A elaboração de ideias e a formulação de juízos e raciocínios, para que tenham sentido, seguem três
regras fundamentais, segundo Aristóteles:
(1) o princípio de identidade: só faz sentido falar de alguma coisa dizendo o que ela realmente é;
seria sem sentido olhar para uma rosa e dizer que ela não é uma rosa, e sim um pássaro;
(2) o princípio de não contradição: só faz sentido falar de alguma coisa respeitando o fato de que
ela não pode ser o contrário de si mesma ao mesmo tempo e sob a mesma perspectiva. Por
exemplo, se eu disser que esta rosa que vejo agora é vermelha e não é vermelha ao mesmo tempo,
digo algo que impede a compreensão racional. Posso até dizer que essa rosa é vermelha agora e
será não vermelha (desbotada ou pálida) no futuro. Mas, se ela é vermelha agora, não faz sentido
dizer que ela é também “não vermelha”;
(3) o princípio do terceiro excluído: só faz sentido fazer um juízo respeitando o fato de que o
sujeito desse juízo só pode ser expresso em dois estados, sem uma terceira possibilidade. Por
exemplo, “ou uma rosa é vermelha ou não é vermelha”, “ou uma rosa está viva ou não está viva”.
Não faria sentido articular dois estados em um juízo e pretender atribuir ao sujeito um “terceiro
estado” (como se a rosa, sendo vermelha ou não vermelha, pudesse ser também “vermelha e não
vermelha ao mesmo tempo”, ou, sendo viva ou não viva, pudesse ser “viva e não viva ao mesmo
tempo”). Daí se excluir um terceiro ponto com relação aos dois estipulados no juízo.
Aristóteles distinguia, ainda, entre o silogismo categórico e o silogismo dialético. A diferença entre
ambos está na escolha das premissas para a montagem do silogismo. No silogismo categórico, as
premissas contêm dados categoricamente verdadeiros, quer dizer, evidentes ou já provados
anteriormente. No silogismo dialético, as premissas contêm dados prováveis.
O modo aristotélico de se referir aos silogismos dialéticos deu margem para que alguns pensadores
os considerassem formas menos rigorosas de obter conclusões verdadeiras, uma vez que eles se
baseariam apenas em dados prováveis. Retomaremos essa temática adiante, ao estudarmos
especificamente o raciocínio dialético. Por enquanto, vamos nos deter nos silogismos categóricos,
aqueles que relacionam tão bem a verdade das premissas a ponto de levarem necessariamente à
verdade das conclusões.
Com base nos trabalhos de Aristóteles, alguns filósofos posteriores resumiram em oito regras o
procedimento que um silogismo categórico deve seguir para ser válido. Para compreendê-las,
precisamos ainda conhecer três outras noções lógicas: a de termo médio, a de extensão e a de
premissa fraca.
O termo médio é aquele que articula as premissas. Pode-se falar também de termo maior (aquele
que incluirá o outro termo que aparece na outra premissa) e termo menor (que será incluído no
maior). O termo que os correlaciona é o médio.
Extensão, por sua vez, é o conjunto de elementos aos quais se refere uma ideia. A extensão é a
universalidade ou a particularidade no uso dos termos.
Por premissa fraca entende-se aquela que é particular ou negativa.
Vejamos as regras:
Exemplos:
Observe que, no silogismo inválido, há quatro termos (quatro ideias), pois a palavra cão é tomada
em dois sentidos diferentes: o animal (cão) e a
Página 53
constelação (Cão). O termo cão é corretamente o termo médio do primeiro silogismo, mas, no
segundo silogismo, rigorosamente falando, não há termo médio, pois, se Cão significa outra coisa do
que cão, então são dois termos diferentes e não há articulação nenhuma entre as duas premissas.
Se o termo médio aparecer na conclusão, não haverá argumento dedutivo, mas apenas repetição do
que já foi dito nas premissas.
Exemplos:
O termo médio desse silogismo é ser humano. Ele apenas articula as premissas e permite passar à
conclusão.
O termo médio, aqui, aparece na conclusão. Isso não quer dizer que a conclusão seja “errada”,
“falsa”. Mas não há um procedimento dedutivo. Então, não se pode dizer que a conclusão se
fundamenta logicamente nas premissas. Só há uma somatória de informações e nenhum
procedimento de fato silogístico.
3. Os termos da conclusão não podem ter extensão maior do que têm nas premissas.
Se os termos da conclusão tiverem extensão maior, cai-se em um erro grave, pois as premissas
baseiam-se em um número particular de elementos e a conclusão vai além do que esses elementos
permitem. Para ser válido, um raciocínio deve respeitar o sentido universal ou particular dos
termos nas premissas. Se eles forem universais nas premissas, terão de ser universais ou
particulares na conclusão. Um termo particular nas premissas não poderá nunca ser universal na
conclusão.
Exemplos:
Observe que o termo sul-americano está tomado em sentido universal na primeira premissa (ele se
refere a todo o conjunto dos sul-americanos e inclui esse conjunto no dos seres humanos), mas é
tomado em sentido particular na segunda premissa (porque, nessa premissa, ele se refere apenas
aos brasileiros). O termo ser humano é usado em sentido particular na primeira premissa (porque
se refere apenas aos sul-americanos, e não a todos os seres humanos) e particular na conclusão
(porque se refere apenas aos brasileiros). Quanto ao termo brasileiro, ele é universal na segunda
premissa e universal na conclusão. A regra 3 é, portanto, respeitada.
4. O termo médio deve ser tomado ao menos uma vez em sentido universal.
Exemplos:
Note que o termo médio é ser vivo. Na primeira premissa ele é tomado em sentido particular
(porque se refere apenas aos seres vivos que são animais, e não a todos os seres vivos), mas na
segunda premissa ele aparece em sentido universal (todo ser vivo). Pelo seu uso na segunda
premissa, ele articula as ideias das duas premissas e garante logicamente a conclusão.
O raciocínio é claramente inválido, pois o termo médio (ser vivo) é tomado nas duas vezes em
sentido particular (na primeira premissa, ele se refere apenas aos seres vivos que são animais; na
segunda premissa, apenas aos seres vivos que se movimentam). Ele não articula, portanto, as duas
premissas. No modo como elas estão construídas, nada poderia ser concluído.
Exemplos:
Se o exemplo de silogismo inválido acima for tomado como válido, contraria-se o princípio de
identidade e o próprio funcionamento dos juízos afirmativos (que unem ideias), pois, sendo a raiva
uma emoção, e sendo toda emoção algo natural, não faria sentido dizer que a raiva não é natural.
Em outras palavras, pensar dessa maneira corresponderia a uma tentativa de conceber a raiva
como não sendo aquilo que ela é.
Exemplos:
Observe que as conclusões dos dois exemplos são idênticas. No entanto, a conclusão do primeiro é
bem sustentada pelas premissas, ao passo que a conclusão do segundo não tem sustentação.
O erro do segundo exemplo é muito comum em nossas maneiras cotidianas de pensar e falar. Ele
resulta da falta de atenção que leva a pensar: se alguns cães não mordem, outros mordem; e, se
todo cão é mamífero, então parece possível concluir que alguns mamíferos mordem. Ocorre, porém,
que fazer uma negação não significa ter base para se pronunciar sobre o contrário dessa negação.
Assim, o fato de afirmar que alguns cães não mordem não dá base para afirmar com certeza que
alguns cães mordem. Dito de outra maneira: se um grupo de cães é observado e mostra que eles não
mordem, isso não quer dizer que outros grupos de cães mordem. Pode ser que eles também não
mordam...
O segundo exemplo dado acima é, portanto, inválido, pois não respeita a premissa fraca (a segunda
premissa). Se respeitasse, a conclusão seria também fraca (uma negação é mais “fraca” ou menos
vinculante do que uma afirmação, assim como uma frase particular é mais fraca do que uma frase
15
universal). O primeiro exemplo respeita a regra 6, pois a conclusão segue a premissa fraca (segunda
premissa, que contém uma frase particular). Já o segundo, embora siga a premissa particular, não
segue a negação nela contida.
Talvez sua tendência fosse considerar óbvio que nenhuma máquina é imortal, mas simplesmente
não há conexão nas duas frases. Veja como nossa compreensão fica mais clara com um exemplo
particular:
O fato de Pedro não ter qualquer semelhança com André e de André não ter qualquer semelhança
com João não dá base para dizer que Pedro não tem semelhança com João (nem que tem alguma
semelhança).
Duas premissas particulares contrariam a regra 4, quer dizer, não apresentam o termo médio ao
menos uma vez em sentido universal. Por isso, não há conexão alguma entre as ideias que elas
exprimem.
Exemplos:
Não podemos negar que é forte o desejo de concluir que “alguns cidadãos são corruptos”, mas, no
modo como o raciocínio está montado, nada permite tirar essa conclusão, pois as duas premissas
não se articulam. Elas dizem apenas que alguns cidadãos são políticos e que alguns políticos são
corruptos, sem garantir racionalmente que as duas premissas se refiram aos mesmos cidadãos e
aos mesmos políticos.
Você certamente percebe que, em nossa vida cotidiana, não fazemos raciocínios sempre com três
termos explícitos e duas premissas bem declaradas. O mesmo ocorre com os textos filosóficos e
outros textos. Por exemplo, o escritor Sêneca, que viveu entre os anos 4 a.C. e 65 d.C., em sua obra
Medeia, oferece um bom exemplo de dedução com uma premissa inteira subentendida. Essa
premissa é pressuposta, como dissemos no início do capítulo. Na obra, a personagem Medeia é
casada com Jasão e se revolta contra sua vida oprimida, chegando a matar os próprios filhos. Para
provar que Jasão era o culpado dos crimes de Medeia, diz Sêneca que aquele a quem o crime é útil é
culpado do mesmo crime.
Sabendo que o crime deve ser atribuído a Jasão, tudo se passa como se Medeia dissesse:
Muitas vezes, a conclusão de um silogismo torna-se premissa de outro silogismo. É preciso separá-
los e observar se estão bem conectados. Por exemplo, podemos dizer: Aquilo que não pode ser
dissolvido é indestrutível. O plástico, portanto, fica para sempre na Natureza. Veja:
Há certo exagero em dizer que o plástico fica para “sempre” na Natureza. Para discordar dessa
conclusão, é preciso interferir nas premissas. Se, porém, elas são aceitas como verdadeiras, tal
conclusão também será aceita como verdadeira em função dos dois raciocínios, pois eles cumprem
perfeitamente as oito regras básicas da dedução.
No uso cotidiano do raciocínio dedutivo, constatamos também que algumas deduções são montadas
de forma que a conclusão seja obtida sobre a base de mais de duas premissas: o predicado da
primeira premissa se torna o sujeito da segunda, o predicado da segunda se torna o sujeito da
terceira e assim sucessivamente, até a conclusão. A partir do trabalho de Aristóteles, chama-se de
sorites esse procedimento (em grego, sorites significa uma grande quantidade ou “um monte”):
No século XVI, o lógico Rudolph Göckel (também conhecido como Goclênio) propôs uma forma
invertida do sorites aristotélico, indo do termo mais extenso ao menos extenso:
Também se chama de sorites um raciocínio que não tem solução porque não oferece um critério
Página 56
claro de compreensão. Por exemplo, se dissermos que duas pessoas não são uma multidão, mas que
mil pessoas são uma multidão, como será possível perceber que um grupo de pessoas já é uma
multidão, e não mais um simples grupo? Diante de situações como essa, são os interlocutores que
devem entrar em um acordo para “decidir” o critério a ser adotado em cada situação.
Além das deduções ou dos silogismos simples, há outro tipo de silogismo de grande uso nas mais
diferentes formas de pensamento: o silogismo hipotético, que se subdivide em silogismo
condicional, silogismo disjuntivo, silogismo conjuntivo e dilema.
O silogismo hipotético, como seu nome indica, opera com uma hipótese ou uma condição.
Chama-se de silogismo condicional aquele cuja primeira premissa apresenta a forma clássica da
hipótese: Se algo ocorre, então outro algo ocorre (Se x, então y). Por exemplo:
O funcionamento desses dois tipos de silogismo é bastante simples: quando há uma condição e ela é
atendida (posta), é válido afirmar a conclusão; quando há uma condição e a conclusão é negada
(tolhida ou barrada), é válido negar também a condição.
Afirmar uma conclusão, no entanto, não permite afirmar a condição. Por sua vez, negar a condição
não permite obter a negação da conclusão. Veja:
Pense: se a luz é um resultado do dia, isso não quer dizer que a luz só resulte do dia; a luz pode ter
outras causas. Assim também, se o dia resulta em luz, o fato de não ser dia não quer dizer que não
pode haver luz (ela pode ter outra causa).
O silogismo disjuntivo também opera com hipóteses, mas em outro formato: a primeira premissa
contém a forma de uma alternativa (ou... ou...), enquanto a segunda premissa afirma ou nega uma
ou mais alternativas, de modo a obter ou a negação ou a afirmação da outra alternativa. O sentido
da partícula ou, aqui, é um sentido de exclusão. Lembre-se que ou também pode introduzir um
sinônimo (como quando dizemos, por exemplo, “a Humanidade ou o conjunto dos seres humanos”).
Em silogismos dessa forma, uma alternativa será sempre verdadeira e a outra, falsa. Por exemplo:
Ao contrário do silogismo disjuntivo, o silogismo conjuntivo afirma, em uma das premissas, que um
mesmo sujeito não pode possuir dois predicados ao mesmo tempo. A outra premissa, por sua vez,
afirma um dos predicados (ela une o sujeito a um dos predicados, daí o nome de silogismo
conjuntivo) de modo que o outro seja necessariamente negado na conclusão. Veja:
O silogismo conjuntivo tem outra característica: mesmo que uma das premissas negue um dos
predicados, não será possível afirmar necessariamente
Página 57
o outro. O silogismo fica simplesmente sem conclusão. Trata-se de um fato diferente do que ocorre
com o silogismo disjuntivo, pois, neste, negar uma alternativa permite obter a outra. Mas, no
silogismo conjuntivo, negar um elemento deixa a possibilidade de o outro também não ocorrer.
Assim, se o ser humano é alguém que, servindo a Deus, não serve ao dinheiro, e se esta pessoa não
serve ao dinheiro, não quer dizer que ela sirva a Deus. Ela pode servir a si mesma, à Ciência, ao
esporte etc.
Por fim, o dilema é um tipo de silogismo que também lida com alternativas e hipóteses, mas é
montado de um modo em que as premissas não podem ser discutidas e evitam todo tipo de
discordância sobre a conclusão. Qualquer alternativa que seja afirmada leva à afirmação também da
outra. O dilema equivale, então, a um silogismo disjuntivo em que, por causa de uma premissa que
guia todo o raciocínio, é necessário obter uma das alternativas afirmando a outra. No limite, é um
raciocínio cuja conclusão também obriga a aceitar as alternativas dadas pelas premissas. Por
exemplo:
Um paciente não foi atendido no Pronto Socorro exatamente no momento em que você era o médico
de plantão. Ora, se você era o médico que devia receber o paciente no Pronto Socorro, ou você estava
lá e não o recebeu ou você não estava lá quando deveria estar e, por isso, também não o recebeu. Se
você estava lá e não o recebeu, faltou com seu dever. Se você não estava lá, também faltou com seu
dever, pois o plantão era seu. Em qualquer dos dois casos, você deve ser responsabilizado por não ter
recebido o paciente.
Diante de um dilema como esse, não há o que discutir. O raciocínio serve apenas para mostrar todas
as possibilidades de pensamento sobre a situação, de modo a concluir por algo que não pode ser
interpretado de outra maneira.
Há, porém, um mau uso do dilema, constituindo a falácia do falso dilema (Ícone: Conteúdo tratado
em outra página p. 60), tal como veremos adiante.
EXERCÍCIO C
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 431
2. Alguns cidadãos são homens; alguns homens são covardes. Portanto, alguns cidadãos são
covardes.
3. Se você tivesse lido o livro, teria aprendido. Como você não aprendeu, é porque não leu o
livro.
4. Se você tivesse lido o livro, teria aprendido. Como você não leu o livro, não aprendeu.
5. Todas as pessoas alegres são seres que riem. Todas as hienas são seres que riem. Então,
todas as pessoas alegres são hienas.
6. Nenhum problema me afeta. Nenhum riso me afeta. Logo, problemas são risos.
7. Alguns cidadãos são bons. Todos os humanos são cidadãos. Portanto, todos os cidadãos são
humanos.
8. Ou os cidadãos lutam pela liberdade ou aceitam ser dominados. Como os cidadãos não lutam
pela liberdade, então aceitam ser dominados.
9. Ou os cidadãos lutam pela liberdade ou aceitam ser dominados. Como os cidadãos lutam pela
liberdade, então não aceitam ser dominados.
10. O cidadão é alguém que ou luta pela liberdade ou aceita ser dominado. Como o cidadão não
luta pela liberdade, então aceita ser dominado.
11. O cidadão é alguém que ou luta pela liberdade ou aceita ser dominado. Como o cidadão luta
pela liberdade, então não aceita ser dominado.
12. Sua função como bombeiro era acionar o alarme. O alarme não foi acionado porque ou você
soube do incêndio e não o acionou ou porque não soube do incêndio (quando deveria saber) e
também não o acionou. A responsabilidade pelo não acionamento do alarme é sua.
Página 58
Falácias e paralogismos são elaborações que têm a aparência de raciocínios válidos, mas contêm
problemas que levam a uma conclusão não justificada racionalmente.
Aqui, para simplificar o vocabulário, falaremos apenas de falácias. Elas podem adotar a aparência
de qualquer um dos tipos de raciocínio (dedutivo, indutivo etc.).
Na Idade Média, muita atenção foi dada às falácias. Alguns pensadores as classificaram em dois
grupos: falácias de forma e falácias de matéria.
Falácias de forma
As falácias de forma ou falácias formais são todas as elaborações que se apresentam como
raciocínios válidos, mas contrariam alguma das oito regras do silogismo (caso tenham a forma da
dedução) ou são induções, analogias e argumentos de autoridade mal feitos.
Consiste em usar termos equívocos (termos que contêm mais de um significado, contrariando a
regra 1):
Ícone: Raciocínio inválido Toda manga é comestível. A camisa tem manga. Então a parte da camisa é
comestível.
Ícone: Raciocínio inválido Um ser livre é aquele que não precisa obedecer a nada. O ser humano é um
ser livre. Logo, o ser humano é um ser que não precisa obedecer a nada.
O primeiro exemplo é tão simples que não precisamos de esforço para constatar sua invalidade. O
segundo exemplo, porém, requer mais atenção, pois o termo livre é tomado em dois sentidos
diferentes: ninguém concordará que o “ser livre” típico do ser humano significa “não precisar
obedecer a nada”, posto que a liberdade humana inclui coisas que não dependem das pessoas e às
quais elas devem obedecer (a começar pelo funcionamento de seu próprio organismo, por
exemplo).
Ícone: Raciocínio inválido Quatro e dois são seis. Portanto, quatro são seis; e dois também são seis.
Ícone: Raciocínio inválido Todo construtor de castelos deve pagar impostos. João faz castelos no ar.
Então, João deve pagar impostos.
Trata-se de deixar uma brecha para interpretar de maneiras diferentes o sentido do que é
formulado.
Ícone: Raciocínio inválido Não podemos culpar o fotógrafo porque ele tirou fotos de cenas que não
foram reveladas.
Observe que essa frase pode referir-se às fotos que não foram reveladas como também a cenas que
não foram reveladas.
Podemos entender melhor os efeitos ruins do uso da falácia da ambiguidade se imaginarmos que a
frase do exemplo tenha sido escrita por um advogado em um processo penal. Talvez a intenção do
advogado fosse dizer que o fotógrafo é inocente porque as fotos não foram reveladas. Porém, se o
juiz interpretar que o fotógrafo tirou fotos de cenas não reveladas (cenas secretas), poderá
condenar o fotógrafo. Caso o juiz tenha boa vontade e perceba a ambiguidade da má redação do
advogado, poderá pedir esclarecimentos que lhe permitam julgar com justiça. Mas, caso ele não
perceba a ambiguidade
Página 59
ou caso não tenha boa vontade, pode simplesmente tomar uma decisão que não será
necessariamente a mais justa.
D. Falácia da tautologia
A tautologia consiste em exprimir a mesma ideia de formas diferentes. Ela pode ter um uso positivo
em Filosofia e em outras maneiras de falar de nossa experiência, mas, quando serve para justificar
um raciocínio, dando a impressão de que ideias novas são articuladas, ocorre uma falácia. Observe:
Ícone: Raciocínio inválido Um Estado é uma nação politicamente organizada. Ora, o Brasil é um
Estado.
Logo, o Brasil é uma nação politicamente organizada.
Não há problema de conteúdo nessa elaboração; e a conclusão é verdadeira, visto que, de fato, o
Brasil é uma nação politicamente organizada. No entanto, nada se diz na conclusão que já não tenha
sido dito nas premissas. Há, na verdade, um problema de forma, pois a primeira premissa apenas
define o Estado (o sujeito é idêntico ao predicado: uma tautologia); por sua vez, na segunda
premissa, diz-se que o Brasil é um Estado; e, na conclusão, só se repete a segunda premissa, porque
se retoma a definição de Estado. Em resumo, essa elaboração só tem dois termos, contrariando a
regra 1, que exige três termos para a dedução.
E. Falácia do consequente
Consiste em usar o procedimento do silogismo condicional para afirmar a condição por meio da
afirmação do consequente ou para negar o consequente por meio da negação da condição:
Falácias de matéria
As falácias de matéria costumam ser raciocínios formalmente válidos, mas com problemas ligados
ao conteúdo.
Em vez de justificar um pensamento tratando diretamente dos seus elementos, a falácia leva a
concentrar a atenção em outras coisas. É o caso de advogados que, em vez de provar a inocência de
seus clientes mostrando que eles não são os responsáveis pelos crimes de que são acusados,
passam a dizer que eles são bons filhos, bons maridos, bons trabalhadores, vítimas da Sociedade e
assim por diante. Outro exemplo:
Ícone: Raciocínio inválido Pablo Escobar é assassino. Mas também dá dinheiro aos pobres e tenta
melhorar a estrutura política de seu país. Ora, quem ajuda os pobres e luta para melhorar a estrutura
política merece ser premiado. Então, Pablo Escobar merece ser premiado, e não condenado por seus
assassinatos.
Ícone: Raciocínio inválido Se a Ana explicou esse fato e se é ela que estudou Química, você não pode
questionar o que ela diz.
Ícone: Raciocínio inválido Nossa única saída é obedecer ao governador, porque ele é a autoridade no
Estado.
Muito comum no modo cotidiano de pensar e falar, a petição de princípio significa partir daquilo
que justamente se pretende provar. Vem daí o nome de petição de princípio, já que o argumento
permanece aberto, pedindo um princípio que o prove.
Ícone: Raciocínio inválido É bom ser honesto porque ser honesto é bom.
Ícone: Raciocínio inválido Poder dizer tudo o que pensamos é algo que faz bem à Sociedade. Afinal, a
Sociedade é melhor quando as pessoas podem dizer tudo o que pensam.
Ícone: Raciocínio inválido Machado de Assis é mais importante do que José de Alencar, pois Machado
de Assis é mais valorizado pelas pessoas que têm o hábito da leitura.
I. Falácia do círculo vicioso A falácia do círculo vicioso é uma dupla petição de princípio. Consiste
em tomar duas frases e pretender
Página 60
provar uma pela outra. O pensamento gira em torno de si mesmo. Por exemplo:
Ícone: Raciocínio inválido É pela razão humana que se prova que Deus existe.
A razão humana foi dada por Deus.
Então, Deus existe.
Ícone: Raciocínio inválido É pela razão humana que se prova que Deus não existe.
A razão humana não vem de Deus.
Então, Deus não existe.
Ícone: Raciocínio inválido A burocracia é uma estrutura necessária para o país, pois ela produz e
guarda documentos que são importantes. Sem a burocracia, então, o país não pode funcionar.
Observe que os três exemplos são circulares: giram em volta de si mesmos e não permitem
encontrar um ponto para avaliar a validade dos raciocínios. Em outras palavras, as premissas já
contêm aquilo que pretendem obter como conclusão. Não se raciocina, portanto; apenas se faz uma
repetição de ideias, com ares de pensamento justificado.
Consiste em simplesmente tomar o que acontece antes e considerá-lo como causa do que vem
depois. É chamada de falácia do post hoc propter hoc ou falácia do post hoc ergo propter hoc: em
latim, essa expressão significa “veio depois disso, então aconteceu por causa disso”. Exemplos:
Ícone: Raciocínio inválido Em geral, depois que um cometa aparece no céu, acontecem coisas boas e
ruins na Terra: amores, encontros, amizades, misérias, guerras, pestes. Então, isso tudo acontece
porque o cometa aparece no céu.
Confio na Astrologia porque meu astrólogo, no Ano Novo, disse que os astros iam fazer as coisas
melhorarem e elas de fato melhoraram.
Ícone: Raciocínio inválido Este chá é muito bom, porque eu estava muito resfriado e melhorei depois
que o tomei.
Ícone: Raciocínio inválido Continuo doente. Certamente é porque tomei o remédio que o médico
receitou.
Ícone: Raciocínio inválido Meu vizinho concluiu que os ricos empobreceram porque os pobres
melhoraram de vida; afinal, como ele diz, foi quando os pobres passaram a melhorar que os ricos
começaram a piorar.
Ícone: Raciocínio inválido A opinião de Maria não conta, porque ela é uma ex-presidiária.
Ícone: Raciocínio inválido As ideias de Antônio sobre a ecologia devem ser desconsideradas, porque
ele já poluiu demais o meio ambiente.
Como você é de oposição, sua proposta não merece crédito.
Ocorre quando um pensamento adquire a forma de dilema, mas é mal montado e tem a aparência
de que não pode ser resolvido. Exemplo:
Ícone: Raciocínio inválido Para administrar o país, é preciso ser honesto ou desonesto. Não é bom ser
honesto, pois isso desagradará algumas pessoas. Mas também não é bom ser desonesto, pois isso
desagradará outras. Como é impossível não ser honesto ou desonesto, então é melhor que ninguém
administre o país.
Você certamente percebe a fragilidade de uma elaboração como essa. Ela pode ser resolvida pela
reformulação das premissas, pois elas não correspondem ao que, em geral, as pessoas governadas
pensam sobre a honestidade de seus governantes, ou seja, não correspondem ao que alguém atento
diria. Assim, se as premissas forem trocadas por É bom ser honesto mesmo que isso desagrade
algumas pessoas e por Não é bom ser desonesto, pois isso desagrada um número ainda maior de
pessoas, então
Página 61
Ícone: Raciocínio válido Para administrar o país, é preciso ser honesto ou desonesto. É bom ser
honesto, mesmo que isso desagrade algumas pessoas. Não é bom ser desonesto, pois isso desagrada um
número ainda maior de pessoas. Então, para administrar o país, é melhor ser honesto.
EXERCÍCIO D
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 432
1. Meu adversário político tem uma opinião diferente da minha sobre o currículo do Ensino
Fundamental. Também pudera... Esse foi o único nível que ele conseguiu terminar...
2. Essa mulher não entende nada de Informática, mas precisamos dar o emprego a ela, porque
o outro candidato é homem. Mesmo que ele seja um bom conhecedor do assunto, não
queremos ser machistas.
3. É natural que existam ricos e pobres no mundo, porque isso sempre existiu.
5. Rato tem quatro letras. Rato come queijo. Quatro letras comem queijo.
6. Se você mantiver sua opinião, haverá consequências, porque quem pode pensar aqui sou eu!
7. Se o som é vibração e se a luz é vibração, então som e luz são a mesma coisa.
8. Sou mais inteligente do que as outras pessoas, porque não reflito sobre questões que não são
realmente questões.
9. A felicidade é o bem de uma pessoa. Portanto, a felicidade geral é o bem de todas as pessoas.
10. Esse produto vende mais porque está sempre fresco; e justamente sempre fica fresco
porque vende mais.
Aristóteles (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 103) chamava de silogismo dialético o
silogismo cujas premissas são apenas prováveis e não necessariamente verdadeiras. As premissas
podiam, no seu dizer, ser escolhidas em função de quem construía o discurso, porque não tratavam
de dados evidentes que obrigassem a chegar à verdade também evidente de algum assunto.
No entanto, o uso do raciocínio dialético é historicamente mais amplo do que o modo como
Aristóteles o resumiu, quer dizer, como um silogismo ou uma dedução. O raciocínio dialético não
precisa seguir necessariamente as regras do silogismo para ser válido, pois sua forma pode ser
diferente do esquema básico de duas premissas, três termos (com um médio) e uma conclusão.
Costuma-se apresentar o raciocínio dialético, de modo geral, como um raciocínio que opera por
contradição. Ele se dá exatamente no encontro e na confrontação de duas ou mais posições, prática
que deu origem ao termo dialética, que, por sua vez, provém do verbo grego dialégesthai, “dialogar”,
“contrapor”.
Tomando-se uma expressão usada pelo matemático Euclides de Alexandria (séc. IV a.C.), costuma-
se dizer que o procedimento dialético básico consiste no raciocínio por redução ao impossível:
toma-se uma hipótese e se mostra a conclusão que dela decorre; em seguida, mostra-se que essa
conclusão é inaceitável; por conseguinte, obtém-se que a hipótese inicial deve ser rejeitada. Em
alguns casos, dá-se um passo adiante, mostrando-se que é verdadeiro exatamente o contrário do
que dizia a hipótese inicial. Esse último passo nem sempre é adequado, pois o contrário da hipótese
inicial pode ser tão falso como a própria hipótese. Dessa perspectiva, contradizer algo não significa
necessariamente chegar a uma verdade (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 210).
Seja como for, o núcleo do raciocínio dialético está em operar por comparação e contradição de
hipóteses. Trata-se de um procedimento tão antigo quanto a própria Filosofia, tendo sido
empregado claramente pelos seguidores de Pitágoras de Samos (570-495 a.C.), por Heráclito de
Éfeso (535-475 a.C.), Parmênides de Eleia (530-460 a.C.), Zenão de Eleia (490-430 a.C.), Sócrates
(Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 157), Platão (Ícone: Conteúdo tratado em outra página
p. 82), entre muitos outros.
No livro Mênon, escrito em forma de diálogo, Platão dá um exemplo claro de raciocínio dialético. Ele
faz a personagem Sócrates investigar se é correto afirmar que as pessoas virtuosas (pessoas que
têm
Página 62
um bom hábito) podem ensinar a virtude (um bom hábito) a seus filhos. Em resumo, Platão monta o
seguinte raciocínio:
Se os pais podem ensinar a virtude a seus filhos, então os filhos de Péricles, figura pública conhecida
por sua virtude, devem ser virtuosos. No entanto, sabe-se que os filhos de Péricles não foram virtuosos.
Então, não é correto afirmar que os pais podem ensinar a virtude.
Platão visava, com esse raciocínio, mostrar que a virtude é algo mais complexo do que um simples
hábito que pode ser ensinado. Ele não pensava exatamente que ela não pudesse ser ensinada, mas
também não acreditava que o fato de simplesmente ensiná-la a alguém bastava para que esse
alguém se tornasse virtuoso. Então, a fim de descartar ou refutar essa hipótese (a de que a virtude é
algo que depende apenas de ensinamento), ele monta seu raciocínio assumindo a hipótese simples
de que a virtude pode ser ensinada e tira dela uma conclusão impossível ou absurda. Fazendo isso,
leva o interlocutor a não concordar com a hipótese.
Conforme o exemplo de Platão, no método dialético, inicia-se, de certa maneira, pela conclusão que
se deseja garantir (seja como verdadeira, seja como falsa), escolhendo-se bem as hipóteses
(premissas) que se pretende refutar ou confirmar. As hipóteses confirmadas, nesse sentido,
tornam-se também conclusões.
No livro Teeteto, também escrito em forma de diálogo, Platão dá um exemplo ainda mais radical:
inicialmente, ele faz a personagem de nome Teeteto concordar que era falsa a hipótese do pensador
Protágoras, para quem a verdade da ciência é uma simples invenção ou uma convenção humana,
sem nenhuma significação objetiva (independente da vontade das pessoas). Em seguida, fazendo
um movimento na direção contrária, leva Teeteto a concordar que a hipótese de Protágoras é
verdadeira. Diante da contradição, seríamos tentados a pensar que Platão tomou partido e
defendeu finalmente a hipótese que lhe parecia verdadeira. No entanto, ele não faz isso. Termina o
debate por uma aporia, ou seja, uma situação com duas hipóteses que tanto podem ser aceitas como
refutadas, sem nenhuma solução no horizonte.
A atitude platônica de não dar uma solução para a situação contraditória do Teeteto põe os leitores
diante de um dado: era possível tanto defender que a verdade da ciência é uma convenção como
que ela é mais do que uma convenção. Platão apontava, assim, para a necessidade de chegar a outro
horizonte de compreensão, para além da oposição “convenção ou não convenção”. Ele convidava a
identificar elementos de convenção e elementos que não dependem dos acordos estabelecidos
entre os humanos. Essa prática lhe permitiu consagrar a concepção da dialética como um método
filosófico que vai além da mera articulação de frases sem erro ou contradição, pois ela envolve a
possibilidade de identificar elementos verdadeiros em posições opostas, movendo a encontrar
resultados que unem esses elementos e respeitam a complexidade do assunto.
Em outras obras, Platão deu um sentido diferente à dialética, considerando-a um método capaz de
chegar a verdades por meio de um contraponto entre posições, quer dizer, de uma separação de
posições, confrontando-as até chegar a um acordo ou um desacordo (que se tornam, por sua vez,
outra posição). Chegando a acordos, a dialética, segundo Platão, permite revelar a estrutura
discreta que organiza o pensamento e a realidade, composta de Ideias, Formas ou Essências (Ícone:
Conteúdo tratado em outra página p. 150).
DEAGOSTINI/GETTY IMAGES
Luca della Robbia (1400-1482), Aristóteles e Platão em debate, 1437-1439, alto-relevo. Museo del Duomo,
Florença (Itália).
Página 63
As sete artes liberais, 1180, iluminura no livro Hortus deliciarum (Jardim das delícias), de Herrad de Landsberg
(1130-1195). As sete artes liberais eram as disciplinas do currículo de estudos organizado a partir do século VI
e presente durante toda a Idade Média. A Dialética aparece à direita, entre a Retórica e a Música.
EXERCÍCIO E
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 433
Nos textos abaixo, identifique o tema central e resuma o procedimento empregado pelos
autores a fim de obter suas conclusões:
Sócrates – Quando alguma coisa é amada, não se trata de um efeito que é produzido? Não há
algo que recebe uma ação?
Eutífron – Incontestavelmente.
Sócrates – Não é por algo ser amado que aqueles que o amam têm amor por ele, mas é porque
estes têm amor que ele é amado.
algo amado por todos os deuses, de acordo com o que você mesmo diz?
Ícone: Glossário 16 Piedoso: quem pratica a piedade, virtude do respeito pelas coisas sagradas.
Eutífron – Sim.
Sócrates – Esse algo é amado por ser piedoso? Ou por alguma outra razão?
Sócrates – Assim, é por ser ele piedoso que ele é amado; e não é por ser amado que ele é
piedoso.
Sócrates – Mas, por outro lado, as coisas que são agradáveis aos deuses são agradáveis pelo
fato de serem amadas por eles.
Sócrates – Então, aquilo que é agradável aos deuses não é idêntico ao que é piedoso; e o que é
Página 64
piedoso não se confunde com o que é agradável aos deuses, como você diz. São duas coisas
diferentes.
Sócrates – Pela seguinte razão: o que é piedoso é amado pelo fato de ser piedoso, como
acabamos de concordar, e não é piedoso por ser amado. Não é verdade?
Eutífron – É verdade.
Sócrates – Ao passo que uma coisa amada pelos deuses é amada simplesmente porque eles a
amam; não é essa própria coisa a causa de ser amada, mas o amor dos deuses.
Sócrates – Suponhamos agora que, ao contrário, uma coisa amada pelos deuses e algo piedoso
fossem uma só coisa. Nesse caso, se o que é piedoso fosse amado pelo fato de ser piedoso,
também a coisa amada pelos deuses seria amada pelo fato de ser amada. Por outro lado, se a
coisa amada pelos deuses fosse amada pelo fato de ser amada, aquilo que é piedoso seria
piedoso porque seria amado pelos deuses. Ora, você vê que não é isso que ocorre, porque as
duas coisas são totalmente diferentes: uma só é amada porque outros a amam; a outra é amada
pelo fato de ser amável em si mesma. Assim, você, Eutífron, tendo sido solicitado por mim a
definir o que é piedoso, parece não querer revelar o que é essencial no piedoso, mas apenas
concentrar-se em algo secundário, o fato de que o que é piedoso é amado por todos os deuses.
Deixe de desconversar, por favor, e, voltando ao ponto de partida, diga-me em que consiste
propriamente o que é piedoso, sem se desviar pela afirmação de que o piedoso é amado pelos
deuses ou exposto a algo do tipo. Não é esse ponto que devemos discutir. Aplique-se somente a
me fazer compreender o que é essencial para entender o piedoso e distingui-lo do ímpio . 17
Eutífron – Na verdade, Sócrates, eu não sei mais dizer o que eu penso. Todas as nossas frases
parecem girar em torno de nós; nenhuma delas aceita parar de girar.
Sócrates – Isso quer dizer que suas afirmações, Eutífron, parecem obras de Dédalo, nosso
ancestral . Se elas fossem realmente minhas, e se fosse eu quem as colocou de pé, então você
18
poderia dizer, rindo de mim, que as imagens que eu fabrico com minhas palavras, sendo da
mesma família, escapam de nós e não querem parar no lugar em que as colocamos. Mas, como
se trata de hipóteses que você mesmo formulou, é preciso encontrar outro motivo para rir.
Afinal, é verdade que elas não querem parar, como você mesmo reconhece.
Eutífron – Desculpe-me, Sócrates, mas acho que o riso se aplica bem ao nosso debate. Essa
necessidade de girar em torno de nós mesmos e escapar não é algo que eu pus nas minhas
hipóteses. É você que parece ser um Dédalo. Afinal, se dependesse de mim, as afirmações
ficariam paradas em seu lugar.
Sócrates – Nesse caso, meu amigo, eu sou muito mais esperto do que Dédalo em sua arte, pois
ele dava a capacidade de escapar apenas às suas próprias obras; eu, em vez disso, dou a mesma
capacidade não apenas às minhas palavras, mas também às palavras dos outros. O que há de
mais notável em meu talento é que eu o ponho em prática mesmo sem querer. Afinal, eu
também gostaria de fazer raciocínios sempre estáveis e sólidos; isso eu desejaria muito mais
do que os tesouros de Tântalo acrescentados à arte de Dédalo. Mas, deixemos de brincadeira.
19
PLATÃO. Eutyphron. Tradução Maurice Croiset. Paris: Belles Lettres, 1920. p. 196-199.
(Eutífron. Tradução nossa para o português.)
Ícone: Glossário 17 Ímpio: quem não tem respeito pelas coisas sagradas; injusto.
18Ancestral: antepassado. Sendo filho de um escultor, Sócrates se declara um descendente de Dédalo, patrono dos
escultores, pois, segundo a lenda, teria sido ele o inventor da escultura e da arquitetura.
19Tântalo: personagem mítica que era amada pelos deuses e desfrutava de seus banquetes até que, depois de
traí-los, foi condenada ao sofrimento e à pobreza.
Página 65
[Contra o nosso pensamento, alguns dizem] que o ato do pecado é acompanhado de certo
prazer que aumenta o próprio pecado, como acontece no ato sexual ou no ato de comer [frutas
que foram roubadas]. Mas essa objeção só deixaria de ser absurda se pudessem nos
20
convencer de que o prazer carnal é em si mesmo um pecado e que só poderíamos ter prazer
carnal quando pecamos. Se fosse assim, as pessoas casadas estariam no pecado quando têm
prazer carnal; e quem achasse que uma fruta é saborosa também pecaria. [...] Então, até Deus
seria culpado, ele que é o criador tanto dos alimentos como dos corpos [...]; afinal, como ele nos
daria alimentos para comer se fosse impossível comer sem pecar? [...] Teria ele mentido para
nós, fazendo que o homem se unisse a uma mulher e que comêssemos comidas deliciosas, tal
como ocorreu sem pecado desde o primeiro dia de nossa criação no Paraíso, para que depois
ele nos acusasse de pecado sem termos ultrapassado o limite da autorização que ele mesmo
nos deu? [...] No entanto, há quem ainda faça a seguinte objeção: o ato sexual dos esposos e o
consumo de alimentos saborosos são permitidos desde que não haja prazer. Respondo que, se
for assim, aquilo que é autorizado é totalmente impossível e que a autorização mesma é
absurda, pois aquilo que ela autoriza é simplesmente irrealizável. [...] Para mim, a resposta é
evidente: o prazer da carne está de acordo com a vida natural; não é um pecado. Também não é
um pecado sentir o prazer que pertence radicalmente ao ato da carne.
PEDRO ABELARDO. Ethica seu liber qui dicitur Nosce te ipsum. In: Peter Abelard’s Ethics. Edição D. E.
Luscombe. Oxford: Clarendon, 2002. p. 16-22. (Ética ou livro chamado Conhece-te a ti mesmo. Tradução nossa
para o português.)
A opinião [de grande parte das pessoas] se prende rigidamente à oposição entre o verdadeiro e
o falso. [...] O botão desaparece no desabrochar da flor; e pode-se dizer que é refutado pela 21
flor. Igualmente, a flor se explica por meio do fruto como um falso existir da planta; e o fruto
surge em lugar da flor como verdade da planta. Essas formas não apenas se distinguem, mas se
repelem como incompatíveis entre si. Mas a sua natureza fluida as torna, ao mesmo tempo,
22 23 24
momentos da unidade orgânica na qual não somente não entram em conflito, mas uma existe
25
tão necessariamente quanto a outra; e é essa igual necessidade que unicamente constitui a vida
do todo.
HEGEL, G. W. F. A fenomenologia do espírito. Tradução Henrique C. Lima Vaz. In: Hegel. São Paulo: Abril
Cultural, 1989. v. 1, p. 10. (Coleção Os Pensadores.)
22 Repelir: afastar.
23 Incompatível: que não pode ser combinado; que não pode existir ao mesmo tempo que outra coisa.
25 Orgânico: algo vivo; conjunto de partes relacionadas entre si, formando um todo vivo.
2 Método intuitivo
Vimos que o método discursivo dá uma série de passos para chegar à verdade sobre um assunto.
Mesmo no raciocínio dialético, no qual o pensador praticamente já sabe a conclusão que pretende
obter e escolhe as premissas que a justificam, o procedimento é indireto, quer dizer, passa por
etapas até chegar ao seu objeto.
O termo objeto, aqui, não significa uma coisa que está fisicamente na Natureza e que podemos tocar,
manusear etc. Em Filosofia, de modo geral, objeto significa, além das coisas físicas, todo conteúdo
captado pelo pensamento. Tal significado se entende pela raiz da palavra latina que deu origem a
objeto: objectum, ou seja, “aquilo que está posto diante de nós” (não necessariamente na nossa
frente, mas diante de nossa percepção, que pode ser física ou apenas mental). Então, se uma coisa
física pode ser chamada
Página 66
de objeto, também uma emoção, um raciocínio matemático, um pensamento, uma ideia, uma
recordação (realidades que não podem ser “tocadas”) são igualmente objetos (conteúdos do
pensamento).
Por isso, costuma-se dizer que o método discursivo chega aos poucos ao seu objeto; dá passos até
ele. Já o método intuitivo começa diretamente pelo objeto; começa pelo que se põe no horizonte de
nossa percepção. O método intuitivo não “constrói” seu objeto, mas o analisa, decompõe,
“desconstrói”, até descobrir os elementos que formam o objeto e sobre os quais não resta dúvida.
A fim de reunir os diferentes procedimentos que partem do próprio objeto, falaremos aqui, de
modo geral, de método intuitivo. Essa expressão se baseia no termo intuição, nome que se dá à
relação direta com o objeto. O termo intuição, por sua vez, origina-se do verbo latino intuo, que
significa “ver”, “estar diante de...”. Podemos observar, assim, que intuição significa mais do que
“pressentimento” ou “instinto”, como muitas vezes entendemos em nosso modo cotidiano de
pensar e falar. Esse modo nasce justamente do uso filosófico que indica um tipo de compreensão
imediata, sem intermediários, direta.
Por conseguinte, a fim de retratar os possíveis sentidos da intuição, costuma-se falar de intuição
sensível, ligada ao que é captado diretamente por meio dos cinco sentidos, e de intuição intelectual,
referente ao que é percebido diretamente pela inteligência humana. Por exemplo, ao ver e
diferenciar uma árvore e um ser humano, tem-se uma intuição sensível. O mesmo ocorre quando
“vemos” a maciez da poltrona em que nossas costas estão apoiadas ou quando “vemos” a doçura de
uma bala em nossa boca. Já quando entendemos imediatamente a frase “O dobro é maior do que
suas metades” ou “Uma coisa não pode ser e não ser o que ela é ao mesmo tempo”, temos uma
intuição intelectual.
Observamos, por esses exemplos, que a visão é tomada como metáfora; afinal, ninguém “vê”
fisicamente a maciez da poltrona ou a doçura da bala, nem a verdade da frase sobre o dobro ou
sobre o ser e não ser algo ao mesmo tempo. Como a visão é o sentido que oferece mais informações
sobre as coisas, usamos a metáfora da visão para indicar essa operação em que, sem raciocínios
(sem discursos), percebemos algo diretamente; percebemos a “presença” do objeto (do conteúdo
que se põe diante de nosso pensamento).
Se prestarmos atenção no exemplo que acabamos de dar a respeito da intuição da frase “Uma coisa
não pode ser e não ser o que ela é ao mesmo tempo”, constataremos que ela corresponde ao
princípio de não contradição, que já apresentamos ao tratar dos princípios que orientam a lógica da
dedução, no método discursivo. Essa correspondência mostra que os métodos intuitivo e discursivo
não se opõem nem se excluem necessariamente. São diferentes e podem ser combinados em uma
mesma filosofia. Aliás, o filósofo Aristóteles, organizador da lógica silogística, defendia que o
princípio de não contradição é evidente ou compreensível (“visível”) tão logo se apresente à
inteligência humana.
LYF1/SHUTTERSTOCK.COM
Relógio de pêndulo. Quando observamos um relógio, não constatamos o tempo, pois o tempo medido pelo
relógio corresponde às divisões que nós estabelecemos por convenção para medir o movimento da realidade.
A real percepção do tempo depende do modo como cada pessoa conecta-se com a realidade. Em uma viagem,
por exemplo, uma pessoa que se distrai com a paisagem não vê o tempo passar. Já uma pessoa que fica mal-
humorada com a demora considera o tempo longo demais. Ou ainda, coisas “passadas” continuam vivas em
nós; se estão vivas, são presentes. O verdadeiro tempo, então, é o do relógio ou o que se vive interiormente, na
intuição do agora?
Outro exemplo bastante forte de uso do método intuitivo foi dado pelo filósofo Henri Bergson
(1859- 1941), mais próximo a nós no tempo. Bergson chegou a defender que a intuição é o
verdadeiro método filosófico, pois “colhe” ou “capta” a realidade tal como ela é.
Segundo Bergson, há uma diferença entre a atividade cognitiva que separa a realidade em partes e a
atividade intuitiva que “vê” ou constata a realidade nela mesma. Os cientistas, por exemplo, e
mesmo todas as pessoas em sua vida cotidiana costumam olhar para as coisas da realidade e
considerá-las como
Página 67
unidades que podem ser entendidas, controladas, melhoradas, administradas. Os filósofos, em vez
disso, dão-se conta, segundo Bergson, de que as coisas tomadas separadamente não são realmente
“vistas” naquilo que elas são: manifestações de um todo unido em constante movimento, em
constante criação e recriação, num fluxo ou numa corrente semelhante à correnteza de um rio. Em
nossa atitude cotidiana e na atitude científica, as coisas parecem paradas, pois estamos
acostumados a isolá-las para melhor administrá-las. No entanto, se confiássemos em nossa “visão”
direta e se não pensássemos no melhor modo de administrar as coisas, perceberíamos que elas
estão todas unidas por um fundo misterioso que as une intimamente, como as gotas que compõem
a água do rio. O pensamento, assim, separa o que é unido na realidade. O papel da Filosofia, de
acordo com Bergson, estaria em ir além da atividade do próprio pensamento, ultrapassando as
identidades estáticas ou paradas que damos às coisas, a fim de chegar ao movimento que “vemos”
mas não enxergamos.
O pensamento torna-se, então, o objeto evidente do qual pode partir a Filosofia, segundo o filósofo
francês. Ele esclarece a evidência do pensamento, porque a decompõe na possibilidade do engano;
e, a partir dessa evidência, ele reconstrói a Filosofia. Poderíamos responder que a evidência da qual
Descartes parte não é exatamente a do pensamento, mas a da possibilidade da dúvida. No entanto,
Descartes responderia que justamente a possibilidade da dúvida é já a evidência do pensamento; é
a manifestação do objeto ou a sua intuição.
Sem mencionar os inúmeros pensadores que associaram o método intuitivo ao método discursivo,
poderíamos citar apenas alguns que deram ênfase ao método intuitivo: Johann Gottlieb Fichte
(1762-1814), Maine de Biran (1766-1824), Friedrich Schelling (1775- 1854), Arthur Schopenhauer
(1788-1860), Wilhelm Dilthey (1833-1911), Edmund Husserl (1859-1938), entre tantos outros.
EXERCÍCIO F
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 433
Nos textos abaixo, identifique qual a temática central e qual intuição funda a análise de cada
pensador:
uma posição única do ponteiro e do pêndulo, pois não resta nada das posições passadas.
Dentro de mim, no entanto, percorro um processo de organização ou de penetração mútua
entre os fatos; e esse processo constitui a verdadeira duração. É porque eu duro dessa maneira
que eu represento para mim mesmo aquilo que chamo de variações passadas do pêndulo
exatamente no
Página 68
momento em que percebo a sua variação atual. Mas, façamos o exercício de suprimir por um 28
instante o “eu” que pensa essas variações consideradas sucessivas. Só haverá uma variação do
pêndulo, uma única posição mesma desse pêndulo; portanto, não haverá duração. Façamos
agora o exercício de suprimir o pêndulo e suas variações. Só restará a duração variada do “eu”,
sem momentos exteriores entre si; não haverá relação com números. Assim, em nosso “eu”, há
sucessão sem exterioridade recíproca. Fora do “eu” há exterioridade recíproca sem sucessão:
há exterioridade recíproca porque a variação presente é radicalmente diferente da variação
anterior que não existe mais; e há ausência de sucessão porque a sucessão existe somente para
um espectador consciente que rememora o passado e justapõe as duas variações ou os seus
29
símbolos em um espaço auxiliar. Ora, entre a sucessão sem exterioridade e a exterioridade sem
sucessão produz-se uma espécie de troca, muito parecida ao que os físicos chamam de
endosmose . [...] Por essa razão, vemos como é equivocada a ideia de que há uma duração
30
interna sem variações, que seria parecida com o que acontece no espaço, onde os momentos
idênticos seguiriam uns aos outros, sem se penetrar.
BERGSON, H. Essai sur les données immédiates de la conscience. Paris: PUF, 1970. p. 80-81. (Ensaio sobre os
dados imediatos da consciência. Tradução nossa.)
Ícone: Glossário
26Pêndulo: peso ligado por um fio ou por uma fina barra de ferro ao mecanismo de um relógio e que se
movimenta da esquerda para a direita e vice-versa, pela força da gravidade, movimentando o mecanismo.
Bergson se referia a um relógio antigo, movido por pêndulo.
27 Simultaneidade: característica de coisas ou eventos que acontecem conjuntamente (ao mesmo tempo).
30Endosmose: acontecimento físico em que aparece uma dupla corrente ou dois fluxos entre líquidos ou gases
capazes de se misturar através de uma película ou de uma fronteira cheia de poros. Bergson aponta para a
penetração ou a contaminação entre o que é temporal e o que é espacial.
O que é o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; mas, se eu quiser explicar a alguém que me
pergunta, já não sei. No entanto, digo isto com confiança: sei que se nada passasse, não haveria
o tempo passado; e, se nada adviesse, não haveria o tempo futuro; e, se não houvesse nada,
também não haveria o tempo presente. [...] Se há acontecimentos futuros e passados, quero
saber onde estão. Se ainda não é possível saber isso, sei, no entanto, que, lá onde quer que eles
estejam, eles são presentes, não são nem futuros nem passados. Afinal, se os acontecimentos
futuros lá estão como futuros, então ainda não estão propriamente lá onde estão [pois são
futuros]; e, se os acontecimentos passados estão como passados lá onde estão, então também
não estão lá onde estão [pois são passados]. Em vez disso, onde quer que eles estejam e o que
quer que sejam, só podem estar como presentes. Quando acontecimentos passados são
narrados como acontecimentos verdadeiros, aquilo que se busca na memória não são os
acontecimentos passados mesmos, mas as palavras foram concebidas com base nas imagens
desses acontecimentos passados: por meio dos nossos sentidos, os acontecimentos passados
deixaram em nosso espírito algo como um rastro. Mesmo a minha infância, que já não existe
mais, está no tempo passado, que também já não existe mais; porém, quando me lembro da
minha infância e a narro, vejo a sua imagem no tempo presente, porque ainda está na minha
memória. Confesso que ignoro por enquanto [...] se ocorre algo semelhante quando se preveem
acontecimentos futuros. Mas isto eu sei: em geral premeditamos nossas ações futuras e essa
premeditação é presente, mesmo que a ação que premeditamos ainda não exista, porque é
futura. [...] Algo agora me é claro e explícito: não há acontecimentos futuros nem passados; é só
inadequadamente que falamos de três tempos, o passado, o presente e o futuro. Em vez disso,
seria mais adequado dizer que os três tempos que há são estes: o presente dos acontecimentos
passados; o presente dos acontecimentos presentes; o presente dos acontecimentos futuros.
Há na minha alma – e não vejo onde eles possam ocorrer senão na minha alma – estas três
[possibilidades]: a memória presente de acontecimentos passados; a visão presente dos
acontecimentos presentes; e a espera presente de acontecimentos futuros.
AGOSTINHO DE HIPONA. Confessions. XI, 14, 17; 18, 23; 20, 26. Ed. Pierre de Labriolle. Paris: Belles Lettres,
1961. p. 308-314. Livros IX-XIII. (Confissões. Tradução nossa para o português, com base no texto latino.)
Página 69
de uma substância . Isso quer dizer que a consciência seria marcada pela ligação de dois polos
32
distintos: de um lado haveria a substância e, de outro, o modo ou o atributo. Mas com certeza a
consciência não manifesta nada desse tipo. Quando digo “eu” e dou testemunho de minha
própria existência, sou para mim mesmo não uma coisa ou um objeto cuja existência eu afirmo
e ao qual ligo o pensamento, mas sou um sujeito que se reconhece e afirma para si mesmo sua
existência na medida em que se percebe interiormente ou pensa. [...] A fórmula “eu sou uma
coisa pensante” leva a uma contradição com o fato primitivo [da percepção interior] [...]. Mas
também não seria correto concluir que a consciência se limita a uma coisa única. [...] Tudo o
que há na consciência é sempre uma relação . 33
MAINE DE BIRAN. Essai sur les fondements de la psychologie. Paris: PUF, 1932. p. 126-127. (Ensaio sobre os
fundamentos da psicologia. Tradução nossa.)
Relação: para Maine de Biran, essa relação se dá entre a consciência e algo que resiste a ela, quer dizer, que se
33
mostra como algo não produzido por ela, mas que se impõe a ela.
Lógica, de Abílio Rodrigues, WMF Martins Fontes, 2011 (Coleção Filosofias: o prazer do pensar).
A dialética, de Alexandre O. T. Carrasco, WMF Martins Fontes, 2016 (Coleção Filosofias: o prazer do pensar).
Estudo da consciência e da memória, com ênfase nas filosofias de Bergson e Deleuze. O modo como Bergson
analisa o uso instrumental da linguagem permite conhecer o sentido de seu método intuitivo.
Acesse:
Arte & Matemática, TV Cultura. (Disponível em <http://www2.tvcul tura.com.br/artemate matica>. Acesso em:
19 dez. 2015.) O belo site interativo produzido pela TV Cultura apresenta temas que integraram a história da
reflexão filosófica sobre o pensamento e seus métodos (tais como harmonia, simetria, ordem, ritmo, caos etc.).
O labirinto do fauno (El laberinto del fauno), direção Guillermo del Toro, 2006, Espanha/ México.
Ofélia, garota de 10 anos, muda de casa com sua mãe, que havia casado com um oficial importante da Guerra
Civil Espanhola. Na mansão, Ofélia descobre um labirinto e passa a ter uma série de vivências intensas. Assista
ao filme com a seguinte pergunta em mente: “Tudo o que vive Ofélia não passa de ilusão?”. Este filme é uma
excelente obra sobre o valor e a eficácia da metáfora.
Acesse:
Um livro ilustrado de maus argumentos, de Ali Almossawi, tradução Diogo Lindner, Jaspers Collings, 2014.
(Disponível em: <https://bookofbadarguments.com/pt-br>. Acesso em: 05 maio 2016).
A Unidade 2 é uma coleção de temas que retratam diversas faces de nossa experiência
cotidiana e que aqui são tratados filosoficamente. Tratá-los filosoficamente significa estudá-los da
perspectiva da atenção filosófica ou do pensamento sobre o pensamento.
Somos convidados a praticar atos filosóficos com base nos temas aqui propostos. Esses atos vão
desde a experiência da pergunta pelo sentido da existência até a reflexão sobre o que significa
conhecer, passando por aspectos existenciais bastante intensos como a busca da felicidade; a
vivência da amizade, da sexualidade e do amor; a inserção na vida social, na Natureza e na Cultura;
a liberdade; a prática ética e política; a experiência estética e artística e a experiência religiosa.
Os capítulos estão organizados de acordo com o grau de exigência decorrente dos próprios temas;
por isso, eles vão do mais simples ao mais complexo. No entanto, são todos autoexplicativos e
podem ser estudados separadamente, bem como fora da ordem em que se encontram. Ao mesmo
tempo, os Capítulos 5, 6 e 7, embora independentes, foram escritos para permitir um estudo
filosófico linear do ponto de vista histórico, pois, concentrando-se no modo como filósofas e
filósofos trataram do tema do amor, eles percorrem caminhos da Antiguidade, da Idade Média, do
Renascimento, da Modernidade e da Contemporaneidade.
UNIDADE
filosoficamente
2 Temas tratados
1 O sentido da existência
2 A felicidade
3 A amizade
4 Sexualidade e força vital
5 Desejo e amor
6 Do amor de amigo ao amor sagrado
7 Do amor cortês ao amor hoje
8 Sociedade, indivíduo e liberdade
9 Natureza, Cultura e pessoa
10 Política e Poder
11 A prática ética
12 Experiência estética e experiência artística
13 A experiência religiosa
14 O conhecimento
Página 72
WICHAN/SHUTTERSTOCK.COM
Por que passamos nossa vida a desejar formas melhores de viver e a buscar maneiras de nos sentirmos
realizados?
P or que existimos?
Muitos de nós, em algum momento, fazemos essa pergunta. Talvez você já a tenha feito...
Ela pode se desdobrar em outras, como: de onde vem o ser humano e para onde ele vai? Existimos
para ser felizes? Para sofrer? Existimos porque Deus quer? Ou existimos porque somos obra do
acaso?
O diretor de cinema norte-americano Roger Nygard (1962-) viajou pelo planeta e levou essas
interrogações a pessoas muito diferentes, registrando as respostas no documentário A natureza da
existência (The Nature of Existence, Walking Shadows Produções, 2010).
Como o próprio Nygard explica, ele nasceu em uma família evangélica. Portanto, em sua casa,
falava-se de um sentido religioso para a existência. Ele mesmo era indiferente a esse assunto; e,
quando criança, frequentava a igreja apenas porque seus pais o levavam. Até sentia certo prazer
com isso, porque a família fazia um lanche especial depois da cerimônia. Nygard passava, então,
todo o tempo do culto a contar os minutos e a sonhar com as panquecas quentinhas que viriam na
sequência...
Tudo mudou em sua maneira de ver a realidade quando Nygard tinha 13 anos e foi surpreendido
pela morte de seu pai. A vida parecia não ter sentido nenhum. Mais tarde, com 39 anos, Nygard
ficou chocado com outro acontecimento absurdo: o ataque de 11 de setembro de 2001 às Torres
Gêmeas de Nova York. A morte de tantas pessoas inocentes só confirmava sua impressão de que a
vida era absurda.
Nygard decidiu, então, sair pelo planeta e perguntar às mais diferentes pessoas o que elas
pensavam sobre o sentido da existência. Algumas falavam
Página 73
de Deus; outras diziam que somos “poeira cósmica”. Para outras, ainda, existimos para nos divertir,
amar, trabalhar, praticar esportes etc. Por fim, havia quem afirmasse não ter o menor interesse
nesse tipo de pergunta; preferiam “simplesmente viver”. Mas Nygard notou que todos os
entrevistados tinham alguns pensamentos em comum: apreciavam o amor, a paz e o prazer, mesmo
o pequeno prazer de comer umas boas panquecas...
Nygard entrevistou tanto pessoas simples como grandes personalidades públicas. Entre estas, Sri
Sri Ravi Shankar, da Fundação Arte de Viver; Richard Dawkins, biólogo evolucionista ateu; Leonard
Susskind, físico e cocriador da Teoria das Cordas; Rob Adonis, lutador de luta livre; e o diretor de
cinema Irvin Kershner, de filmes como Star Wars V e Robocop.
Dispondo de respostas bastante variadas, Roger Nygard declara: “Depois de encontrar tantos
especialistas e gurus , uma nova parte de mim despertou com cada pessoa que conheci. Quanto
1
mais eu aprendia sobre elas, mais gostava delas e menos crítico eu ficava. Tornei-me menos
temeroso de nossas diferenças. Percebi o quanto somos parecidos. Todos querem amor, paz e
2
algumas respostas que ajudem a vida a ser mais fácil. Só queremos chegar às panquecas”. E conclui:
“Enquanto estivermos aqui, como devemos continuar a viver nossas vidas? Por que fomos
colocados neste planeta? Para nos esforçarmos, sofrermos e termos êxito apenas para morrer? [...]
A única coisa garantida é este momento, aqui e agora. Como eu irei vivê-lo? Continuarei buscando;
pois você e eu estamos numa jornada ; e quando pararmos de aprender e crescer, começaremos a
3
morrer”.
Acesse:
Essas afirmações de Roger Nygard estão gravadas entre os minutos 1:29:42 e 1:30:36 do
documentário. A versão integral do documentário com legendas em português pode ser vista
gratuitamente na plataforma Internet Archive (Disponível em:
<https://archive.org/details/Natureza. da.Existencia>. Acesso em: 27 dez. 2015.).
Ícone: Glossário 1 Guru: guia religioso; mentor; conselheiro. No hinduísmo, o termo guru designa um líder
espiritual.
A Filosofia tem muito a dizer sobre o tema do sentido da existência. Porém, ela não oferece apenas
mais uma opinião; menos ainda uma resposta definitiva. Em vez disso, a Filosofia desconstrói
visões já existentes, a fim de compreendê-las e de contribuir para eventualmente aceitá-las,
melhorá-las ou mesmo abandoná-las.
1 Sentido e significado
Em nosso modo cotidiano de pensar e falar, costumamos chamar de sentido o “significado” de
alguma coisa. Por exemplo, ao ver as placas de trânsito abaixo, podemos perguntar pelo “sentido”
delas.
Olhando para elas, percebemos o que elas exprimem. A primeira é facilmente compreendida
quando identificamos o desenho de uma buzina e vemos a marca \ sobre ela. Estamos acostumados
a entender essa marca como sinal de proibição. Então, os elementos que compõem a placa são
rapidamente interpretados e concluímos que é proibido buzinar. Entendemos também que estamos
em uma região onde é necessário evitar o barulho (por exemplo, perto de um hospital).
A segunda e a terceira placas podem apresentar certa dificuldade se não conhecemos as regras de
seu uso no trânsito. No caso da segunda, já sabemos que a marca \ representa proibição. Resta
saber o que significa E. Ao entendermos que ela significa “Estacionar”, concluímos que é proibido
estacionar naquele local.
REPRODUÇÃO
Placas de trânsito (Código Nacional de Trânsito). Acima, à esquerda: “Proibido buzinar”. Acima, à direita:
“Proibido estacionar”. Abaixo, à esquerda: “Dê a preferência”.
Página 74
Compreendemos também que há uma razão para não estacionar ali. Por exemplo, pode haver uma
garagem, pode ser uma rua de grande circulação (onde carros estacionados dificultam o tráfego).
Quanto à placa com o triângulo de cabeça para baixo (a base em cima), precisamos saber que, ao
ver esse símbolo, devemos esperar passar o carro que já está no caminho onde desejamos entrar
(uma rua, uma rotatória). É como se estivéssemos na ponta estreita do triângulo e nos dirigíssemos
para a sua abertura, vendo, porém, que essa abertura tem um limite (a base do triângulo): esse
limite representa o fato de não podermos entrar de qualquer jeito na abertura; devemos observar
se algum carro já está no caminho e dar a ele a preferência de continuar seu trajeto; só podemos
continuar depois dele. Entendemos facilmente também o porquê ou o sentido dessa placa: ela
resolve a dificuldade de saber qual dos carros deve avançar quando se encontram ao mesmo tempo
em um determinado local; evita-se que essa decisão seja tomada pelos próprios motoristas, pois
isso seria muito arriscado.
O exemplo tomado do uso das placas permite melhorar nossa maneira cotidiana de falar de
significado e de sentido. Quando sabemos o que significam os elementos de um símbolo,
entendemos o significado desse símbolo (ao ver uma buzina cortada, entendemos que é proibido
buzinar; e assim por diante). Além disso, somos capazes de também entender algo maior do que o
próprio símbolo: o seu sentido (sua razão, seu porquê). Assim, ao ver a buzina cortada, concluímos
que lá talvez haja um hospital (o hospital é o porquê da placa); ao ver o E cortado, compreendemos
que a existência de uma garagem é a razão para não estacionar; ao ver o triângulo invertido,
sabemos que o seu sentido é o fato de aquele local poder gerar dúvida nos motoristas e expô-los ao
risco de acidente.
O significado, então, é o conteúdo básico da identidade de algo. Vemos um animal que tem quatro
patas, late e balança o rabo e entendemos o seu significado: é um ser que pertence à espécie dos
cachorros; não é um gato nem um cavalo. Se nos deparamos com algo que não conhecemos,
precisamos de tempo e explicações para compreendê-lo; necessitamos associar um significado a
ele. Se um extraterrestre aparecesse diante de nós, precisaríamos de referências (conteúdos de
significado) para poder identificá-lo; ou, se nunca estudamos Química, necessitamos de explicações
para entender que a fórmula H O representa a água.
2
O sentido, por sua vez, é um conjunto de significados que, tomados justamente em conjunto,
exprimem uma ideia mais ampla. Por exemplo, no uso das placas, os desenhos da buzina (sinal de
barulho) e da barra \ (sinal de proibição) já fazem pensar no significado de “proibido barulho”, mas
esses desenhos também conduzem o pensamento para além deles mesmos, permitindo entender
algo mais amplo, como é a existência de um hospital nas redondezas. O sentido, então, é mais do
que um simples significado; é um conjunto de significados que, correlacionados, permitem produzir
outra ideia. Por isso, o sentido refere-se ao que os seres humanos produzem como explicação de
suas ações, pensamentos, emoções, sentimentos.
Porém, também podemos olhar de um modo diferente para o aglomerado de tudo o que existe e
perguntar se há um porquê para esse aglomerado. Em outras palavras, podemos olhar para o
conjunto de tudo o que existe e pensar que um motivo talvez os tenha feito existir e os mantém na
existência. Perguntar por esse porquê, motivo ou razão significa perguntar pelo sentido da
existência.
Falar de sentido da existência não é uma tarefa simples. Diferentemente do significado da existência
(facilmente captável pelo modo como somos acostumados a entender o conjunto das coisas), o
sentido da existência é algo que não se observa diretamente, mas requer um esforço de
interpretação e de justificativa dessa mesma interpretação.
Falar do sentido de algo equivale a falar de, pelo menos, duas coisas: a origem e a finalidade. A
origem consiste no de onde vem algo, sua procedência ou começo; a finalidade, por sua vez, indica o
para onde algo vai, aquilo que ele busca alcançar. Tratando da existência e considerando que ela é a
nossa estada no “mundo”, em relação com tudo e todos que nos cercam, torna-se visível a
dificuldade de falar de sua origem. Afinal, não temos nenhuma experiência dessa origem; não
podemos observá-la.
Página 75
Diante dessa inescapável dificuldade e da saudável dúvida que torna o pensamento humano mais
consciente de seus limites, seria excessivamente temerária qualquer afirmação filosófica sobre a
4
origem da existência. Assim, com a consciência de que a atividade filosófica requer argumentos
compreensíveis e avaliáveis por seus interlocutores, os filósofos percebem que, no tocante à
interpretação da origem da existência, é grande o risco de repetir crenças não justificadas (tanto
religiosas como científicas). Ora, adotar crenças não justificadas é uma atitude radicalmente
antifilosófica. Daí o extremo cuidado da maioria dos pensadores ao pronunciar-se sobre a origem
da existência.
EXERCÍCIO A
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 436
Um tratamento adequado ao tema da finalidade requereria saber o que é a existência como um todo,
além de alguma observação que funcionasse como critério para orientar a compreensão de sua
5
finalidade. Sem poder observar o que é a existência “como um todo”, também não podemos saber a
sua finalidade. Seria um autoengano querer dar uma resposta adequada para tal problemática; e
6
qualquer resposta não passará de opinião pessoal, sem valor racional (filosófico ou científico).
Pode-se associar essa postura filosófica ao pensamento do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein
(Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 76). Na obra intitulada Tractatus logico-philosophicus,
ele toma posição a respeito do que considerava falsos problemas. Seu ponto de partida é a
consideração de que só podem ser compreensíveis as frases que traduzem, por meio de palavras e
de relações entre elas, as coisas observadas no “mundo” e as relações observadas entre as próprias
coisas. Se o “todo” da existência e a sua finalidade não podem ser observados, qualquer frase a esse
respeito não será compreensível. Ícone: Texto filosófico
Ludwig Wittgenstein
O mundo é a totalidade dos fatos. [...]
O que é o caso, o fato, é a existência de estados de coisas.
O estado de coisas é uma ligação de objetos (coisas). [...]
O nome substitui, na proposição, o objeto.
O pensamento é a proposição com sentido.
A totalidade das proposições é a linguagem.
Os limites de minha linguagem significam os limites de meu mundo.
O sentido do mundo deve estar fora dele. No mundo, tudo é como é e tudo acontece como acontece.
[...]
A solução do enigma da vida no espaço e no tempo está fora do espaço e do tempo. [...]
Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logicophilosophicus. Tradução Luiz H. Lopes dos Santos. São Paulo: EdUSP, 1994. p. 275-281
(proposições 1.11, 2, 2.01, 3.22, 4, 4.001, 5.6, 6.41, 6.4312, 7).
Ícone: Glossário 4 Temerário: que não percebe a gravidade de algo; imprudente; inconsequente.
5 Critério: algo que serve de medida ou parâmetro para avaliar alguma coisa.
Wittgenstein não afirma que fora do “mundo” há um sentido. Se ele o afirmasse, não respeitaria sua
própria visão e produziria uma “cãibra” mental, pretendendo pronunciar-se sobre algo que não
corresponde a nenhuma coisa exprimível pela linguagem. Mas, ao falar de um “fora” do “mundo”,
Wittgenstein também não pretende negar que o “mundo” tenha algum sentido. Se o negasse,
produziria outra “cãibra”, porque também se pronunciaria sobre algo que simplesmente não faz
parte da descrição do “mundo”. Tais cãibras nascem quando se pretende tratar como parte do
“mundo” ou da linguagem aquilo que está fora deles.
Sem cair nessa armadilha, Wittgenstein não se compromete com um lado de “fora” da linguagem ou
do “mundo”. Afirmar que o sentido do “mundo” está “fora” dele significa indicar que algo como um
“sentido do mundo” (sua finalidade e mesmo sua origem) simplesmente não pode ser pensado com
nossa aparelhagem mental e linguística. Mais coerente, então, é calar-se sobre aquilo de que não se
pode falar (frase 10).
Ludwig Wittgenstein
O mundo é a totalidade dos fatos. [...]
O que é o caso, o fato, é a existência de estados de coisas.
O estado de coisas é uma ligação de objetos (coisas). [...]
O nome substitui, na proposição, o objeto.
O pensamento é a proposição com sentido.
A totalidade das proposições é a linguagem.
Os limites de minha linguagem significam os limites de meu mundo.
O sentido do mundo deve estar fora dele.
No mundo, tudo é como é e tudo acontece como acontece. [...]
A solução do enigma da vida no espaço e no tempo está fora do espaço e do tempo. [...]
Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logicophilosophicus. Tradução Luiz H. Lopes dos Santos. São Paulo: EdUSP, 1994. p. 275-281
(proposições 1.11, 2, 2.01, 3.22, 4, 4.001, 5.6, 6.41, 6.4312, 7).
Wittgenstein reconhece a importância extrema, para a vida humana, de preocupações como essas
(o sentido da existência, além de outras que também não remetem a nada de observável
diretamente, como é o caso da Ética ou da arte); elas só não dizem respeito ao conhecimento
racional.
Em outro momento de sua atividade filosófica, Wittgenstein altera aspectos importantes da sua
primeira concepção de linguagem e de “mundo”. Escrevendo
Página 77
a obra Investigações filosóficas, ele admite diferentes usos das palavras e não as considera mais
como representações ou “etiquetas” que se colam às coisas do “mundo”. Os diferentes usos
funcionam como jogos de linguagem (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 347) e são
definidos segundo as regras conhecidas pelos próprios jogadores.
Círculo de Viena
É como foi denominado um grupo de filósofos reunidos na Universidade de Viena de 1922 a 1936,
sob a coordenação de Moritz Schlick (1882- 1936). O programa filosófico central do círculo ficou
conhecido como positivismo lógico, ou empirismo lógico, e buscava defender uma visão do
conhecimento segundo os procedimentos da Física, entendendo a Filosofia como atividade de
esclarecimento lógico das afirmações científicas, éticas e estéticas e como denúncia de discursos
sem sentido racional (aqueles que não se referem diretamente a elementos do mundo físico). Entre
os pensadores mais conhecidos que frequentaram o Círculo de Viena estão Kurt Gödel (1906-
1978), Carl Hempel (1905- 1997), Alfred Tarski (1901-1983) e Willard Quine (1908-2000).
EXERCÍCIO B
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 437
1. O que leva alguns filósofos a considerar falsa a pergunta pelo sentido da existência?
Mesmo que estejamos sonhando ou que o que chamamos de existência não passe de um delírio
pessoal e coletivo, não há dúvida de que esse “sonho” ou “delírio” possui um conjunto de
significados e pode conduzir a um sentido.
É pela análise dos significados contidos no próprio ato de existir que filósofos como o quebequense
Jean Grondin (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 78) defendem a possibilidade de falar do
sentido da existência entendido como finalidade. O ato de existir já tem por si mesmo um
significado: existir significa tender a continuar existindo. Ampliado para o conjunto do que
conhecemos e concebido em termos de finalidade, esse significado permite ser expresso como um
sentido: tudo existe porque visa sua conservação.
Jean Grondin
O sentido é algo que sentimos e que, por isso, existe “independentemente” de nós. Eis alguns
exemplos: o sentido de uma corrente ou das águas de um rio, o sentido do vento, o sentido do grito
de um bebê, o sentido no qual se dirigem em conjunto as coisas (o crescimento de uma planta, a
evolução de uma doença). Minha primeira evidência é que esse sentido, que poderíamos chamar de
sentido de direção, não é construído por nós (afinal, ninguém inventou o sentido do rio); minha
segunda evidência é que esse sentido pode “ser sentido” (para saber o que significa “sentir o
sentido”, basta entrar em um rio, em um vendaval, sentir o cheiro de um alimento ou ouvir um grito
de dor). Nos dois casos, fala-se de “sentido”; nossos cinco sentidos são nossas capacidades de sentir
o sentido; o “sentido sentido” é a direção ou a finalidade das coisas mesmas. Nesse nível elementar,
o sentido não depende, de modo algum, das nossas construções. A prova está em que nós, os
humanos, não somos os únicos a sentir esse sentido. Os animais são perfeitamente capazes de senti-
lo. Um animal “sente” se alguma coisa o ameaça, mas também sente quando alguma coisa é
“sensata”: isto é comestível; este é um bom lugar para repousar; um bom parceiro etc. Toda vida é,
assim, guiada por uma expectativa de sentido, embora essa expectativa possa ser decepcionada.
GRONDIN, Jean. À l’écoute du sens. Quebec: Bellarmin, 2011. p. 77- 78. (À escuta do sentido. Tradução nossa.)
Note que o texto de Jean Grondin começa pela conclusão, quer dizer, pela ideia que ele procura
justificar: o sentido é algo que sentimos e que, por isso, existe independentemente de nós. Na
sequência, o autor dá exemplos de sua ideia (mencionamos
Página 78
o sentido ou a direção das águas do rio e do vento, bem como do sentido do grito de um bebê, cuja
direção é a pessoa que o alimenta e protege). A esse “sentido que se sente” Grondin chama de
sentido de direção. Sua primeira evidência é o fato de que não somos nós que inventamos a direção
das coisas (do rio e do vento, do grito do bebê), mas essa direção se impõe a nós.
Uma evidência é algo de que não se pode duvidar e cujo contrário é absurdo. Para poder concordar
ou discordar do texto de Jean Grondin, a evidência do sentido de direção é o ponto sobre o qual
mais precisamos refletir. É o ponto de partida de Grondin. Podemos, então, fazer a seguinte
pergunta: nós realmente observamos que a direção do rio ou do choro do bebê é algo de que não se
pode duvidar? Sem cair no absurdo, é possível conceber o contrário disso que se apresenta a nós
como a direção do rio ou do choro do bebê? É muito difícil discordar de Grondin e considerar
possível duvidar da direção do rio, do vento e do choro do bebê ou ainda imaginar como válido o
contrário dessa direção. Ela é, portanto, uma evidência; e o pensamento de Grondin a esse respeito
mostra-se bem justificado. É coerente com nossa experiência do “mundo” dizer que há uma direção
em tudo o que existe.
DVANDE/SHUTTERSTOCK.COM
A correnteza de um rio, segundo Jean Grondin, indica a direção de um sentido que não depende de nós.
Um segundo aspecto do ponto de partida do autor, chamado por ele de segunda evidência, está em
dizer que o sentido de direção pode ser simplesmente “sentido”, isto é, captado por meio dos cinco
sentidos, sem a necessidade de argumento, reflexão ou discussão. Para constatar isso, basta
observar que, mesmo sem refletir, as pessoas percebem o que significa entrar em um rio ou em um
vendaval, ouvir um grito de dor ou sentir
Página 79
o aroma de um alimento. Pelos cinco sentidos, percebemos, então, a direção ou a finalidade das
coisas, “sentido sentido”, “sentido percebido pelos sentidos”, “direção ou finalidade sentida”.
É proposital a relação que o autor estabelece entre os cinco sentidos, o sentido de direção e o
sentido percebido. Todo esse vocabulário é do campo do sentir, não do refletir, do calcular ou do
construir interpretações. A essa altura do texto, Grondin recupera sua ideia inicial e a reapresenta
como conclusão: o sentido não depende de nossas construções racionais, mas é percebido
imediatamente. Por fim, Grondin extrai uma segunda conclusão, ampliando a primeira: todo ser
vivo é guiado por uma expectativa, a preparação e a espera do encontro do sentido.
Pode-se dizer que o sentido identificado por Jean Grondin como a finalidade da existência é
imanente (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 80) a ela mesma. O filósofo não aponta para
um nível externo à existência nem se baseia em uma teoria sobre ela. Em sua análise, o ato de
existir é o que revela sua própria finalidade ou o seu sentido.
Outros filósofos identificam um sentido transcendente (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p.
80) na existência, um horizonte de realização que vai além do próprio ato de existir. Trata-se de
uma reflexão que exige cuidado redobrado, pois, para que a afirmação de um sentido transcendente
seja adequada, requer-se que ela também se enraíze na imanência da experiência do ato de existir.
Do contrário, corre-se o risco de projetar opiniões, ideias ou teorias na existência, em vez de ouvir a
ela mesma.
Alguns filósofos trataram a imanência e a transcendência como duas alternativas excludentes, quer
dizer, impossíveis de serem combinadas. O “mundo” seria explicável por si mesmo e tornaria
desnecessário apontar para alguma dimensão maior do que ele. É o caso da posição filosófica
conhecida como materialismo: a matéria de que são feitas todas as coisas é concebida como algo
dinâmico, portador de suas próprias possibilidades de desenvolvimento, sem a necessidade de
pensar em algo diferente dela para explicar o “mundo”. Ela daria o seu sentido imanente tanto como
finalidade (o desenvolvimento da matéria é o seu próprio objetivo) quanto como origem (tudo
provém da matéria).
O filósofo francês Paul-Henry Thiry, também conhecido como Barão de Holbach (Ícone: Conteúdo
tratado em outra página p. 80), é um exemplo de filósofo materialista. No seu entender, o
dinamismo da matéria (movimento) se realiza sem nenhuma causa externa a ela mesma, ao mesmo
tempo que a finalidade de tudo é realizar esse dinamismo. Ícone: Texto filosófico
Barão de Holbach
A observação iluminada pela reflexão deve convencer-nos de que tudo na Natureza está em um
movimento interminável [...]. Mas de onde a Natureza recebeu seu movimento? Dela mesma, pois
ela é o grande todo, fora do qual nada pode existir. Diremos que o movimento é um modo de ser
que decorre necessariamente da essência da matéria; que ela se move por sua própria energia; que
seus movimentos são decorrentes das forças que são inerentes à própria matéria; que a variedade
7
de seus movimentos e dos acontecimentos que deles resultam vem da diversidade das
propriedades, das qualidades, das combinações que se encontram originalmente nas diferentes
matérias primitivas das quais a Natureza é o conjunto.
D’HOLBACH. Système de la Nature. Paris: Fayard, 1988. p. 24-26. (O sistema da natureza. Tradução nossa.)
Outros filósofos, ainda, perceberam que a observação do “mundo” colhe dados que se mostram
incompreensíveis quando o olhar reflexivo se limita ao próprio “mundo”. Por exemplo, é possível
afirmar que
Página 80
há valores que se revelam no “mundo”, mas não se reduzem a ele. Valores são avaliações. Perceber
valores no “mundo” significa olhar para as coisas e não parar apenas na estrutura física delas, mas
captar ao mesmo tempo o que é que elas valem em si mesmas. Assim, ao olhar para o “mundo”,
podemos não apenas ver coisas, mas avaliá-las como coisas belas, boas, justas etc.
Independentemente do conteúdo ou do contorno cultural que se dê à ideia de beleza, de bondade
ou de justiça, beleza, bondade e justiça são tomadas como sentidos gerais que as coisas têm nelas
próprias. Mesmo os outros animais percebem valores nas coisas, identificando-as, por exemplo,
como desejáveis, ameaçadoras, atraentes, repulsivas etc. Esses valores parecem objetivos, pois não
dependem de invenção (haveria uma ordem objetiva de valores). Alguns filósofos concebem, assim,
uma dimensão que, mesmo agindo no “mundo”, vai além dele e o supera. Identificam, portanto, um
sentido transcendente, mas não tratam a transcendência e a imanência como alternativas
excludentes, pois a transcendência se deixa perceber por meio de experiências vividas na
imanência do “mundo”.
Mansouri Idrissi Sidi Mohammed (1962-), sem título, 2013, óleo sobre tela. Galeria Artabus [s.l.]. Obra
apresentada na exposição Imanência e Transcendência, Casablanca, Marrocos, 2013.
Imanência e Transcendência
Imanência – característica de algo que, ao ser explicado, permanece no mesmo nível de realidade
considerado, sem apontar para além desse nível. Exemplos:
Ao fazer os humanos arcarem com as consequências de seus atos, a vida revela uma justiça imanente.
O sentido do fluxo da existência é imanente ao próprio fluxo.
O filósofo grego Platão (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 82), por exemplo, observava
que, embora os seres humanos reconheçam coisas belas no “mundo”, não faz sentido dizer que a
Beleza é apenas o conjunto de coisas belas. A Beleza é mais do que esse conjunto; vai além dele; é o
que dá o seu sentido. Afinal, tudo no “mundo” surge, desenvolve-se e morre; também as coisas belas
passam por esse processo. No entanto, o desaparecimento das coisas belas não faz desaparecer a
experiência da Beleza. Pelo contrário, outras coisas belas continuam a surgir. Para falar de modo
coerente sobre o “mundo”, Platão concluía que era necessário ir além do dinamismo da matéria e
apontar para uma dimensão que age na matéria e a supera. A Beleza, assim, mais do que uma
característica imanente às coisas belas, deve ser entendida como algo transcendente que faz as
coisas serem belas, sendo maior do que elas e independente delas.
O mesmo ocorre com as coisas verdadeiras e a Verdade, as coisas boas e a Bondade, as coisas
numeradas e os Números. A essa dimensão transcendente Platão chamou de Ideia, Essência ou
Forma (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 150).
Página 81
Como tudo o que existe visa obter a máxima realização de si, Platão concluía que a finalidade de
tudo é imitar as Ideias, é se tornar como elas tanto quanto é possível no “mundo” material.
À objeção de que as Ideias, Essências ou Formas não são realidades observáveis no “mundo”, o
8
pensamento platônico responderia que é o “mundo” mesmo que aponta para elas. Essa dimensão
transcendente seria até mais compreensível do que a matéria; afinal, não há experiência direta de
algo ao que se possa dar o nome de matéria, mas apenas experiência de coisas materiais singulares.
Falar, então, de matéria significa usar um conceito, uma elaboração mental com o fim de apontar
para uma dimensão imanente que, assim como as Ideias, também não é diretamente perceptível.
Platão
Tenta seguir-me, se fores capaz: quem corretamente se encaminha para esse fim [essa formação]
deve começar, quando jovem, por dirigir-se aos belos corpos; e, em primeiro lugar, se o seu
dirigente o dirige corretamente, deve amar um só corpo e gerar belos discursos. Depois, deve
compreender que a beleza em qualquer corpo é irmã da beleza que está em qualquer outro [corpo]
e que, se se deve procurar o belo na Forma, seria muita tolice não considerar uma só e mesma
Beleza em todos os corpos.
Ao entender isso, [quem está em formação] deve fazer-se amante de todos os belos corpos e largar
o amor violento de um [corpo] só após desprezá-lo e considerá-lo mesquinho . 9
Depois disso, [quem está em formação] deve considerar mais preciosa do que a beleza do corpo a
beleza que está nas almas, de modo que, mesmo se alguém de uma alma gentil tenha todavia um
escasso encanto, contente-se [quem está em formação], ame e se interesse [por esse alguém]; e
produza e procure discursos tais que tornem melhores os jovens, para que então seja obrigado a
contemplar o belo nos ofícios e nas leis e a ver assim que ele mesmo [que está em formação] tem
um parentesco comum; e julgue enfim de pouca monta o belo no corpo. 10
Depois dos ofícios, é para as ciências que é preciso transportar [quem está em formação], a fim de
11
que veja também a beleza das ciências e, olhando para o belo já há muito, sem mais amar como um
doméstico a beleza individual de um criançola , de um homem ou de um só costume, não seja ele,
12 13
nessa escravidão, miserável e um mesquinho discursador; mas, voltado ao vasto oceano do belo e
contemplando-o, produza muitos discursos belos e magníficos e reflexões, em inesgotável amor à
sabedoria, até que aí robustecido e crescido, contemple ele uma certa ciência, única, tal que o seu
14
Tenta agora prestar-me a máxima atenção possível. Aquele que, nas coisas do amor, tiver sido
orientado até esse ponto, contemplando seguida e corretamente o que é belo, já chegando ao ápice 16
dos graus do amor, súbito perceberá algo de maravilhosamente belo em sua natureza, aquilo
17
mesmo, ó Sócrates, a que tendiam todas as penas anteriores: [...] aparecer-lhe-á [o Belo ou a
18
Beleza], aquilo que é por si mesmo, consigo mesmo, sendo sempre uniforme, enquanto tudo o mais
que é belo dele participa, de um modo tal que, enquanto tudo mais que é belo nasce e perece, em
nada [o Belo ou a Beleza] fica maior ou menor, nem nada sofre.
PLATÃO. O banquete. Tradução José Cavalcante de Souza. São Paulo: Abril, 1987. p. 41-42. (Coleção Os Pensadores.)
10 Monta: importância.
11O termo ciências, aqui, refere-se a conhecimentos seguros, justificados racionalmente, e não às ciências em
sentido moderno.
12 Doméstico: escravo.
14 Robustecido: fortalecido.
18 Penas: esforços.
Mantendo grande semelhança com o procedimento platônico, mas introduzindo nele uma diferença
radical, pensadores religiosos defendem que o
Página 82
sentido da existência ou a sua finalidade é conhecer a Deus. A semelhança com Platão reside em
apontar para uma dimensão transcendente que esclarece o “mundo”; a diferença, por sua vez, está
em pensar que essa dimensão transcendente é “alguém”, um ser com o qual se pode estabelecer
uma relação de amizade e amor recíproco (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 167).
Nasceu e viveu em Atenas, na Grécia, foi aluno de Sócrates e professor de Aristóteles. Além da
reflexão de seu mestre, Platão conheceu em profundidade o pensamento dos primeiros filósofos
(conhecidos como pré-socráticos) e dos Sofistas (p. 83). Foi com base nessa formação que ele
elaborou o núcleo de sua filosofia, conhecido como Teoria das Formas ou Ideias. Platão escreveu
numerosas obras, todas em forma de diálogo, pois esse estilo concretizava o método filosófico que
ele aprendera com seu mestre e assumira também como seu: o método dialético. Entre os diálogos
platônicos mais conhecidos na História da Filosofia estão Apologia de Sócrates (sobre a Filosofia e
sobre o julgamento de seu mestre, que foi condenado à morte), Protágoras (sobre os sofistas),
Crátilo (sobre a linguagem), O Banquete (sobre o amor), A República (sobre a justiça, a Filosofia, a
dialética e as Ideias), Sofista (sobre o ser).
Nasceu em Abdera e é geralmente conhecido pela relação com seu mestre Leucipo. Restaram
poucas informações históricas sobre ambos. Sabe-se, no entanto, que eles concebiam o Universo ou
o “mundo” como um conjunto de átomos e de vazio. Embora haja muitas semelhanças entre a ideia
de átomo de Demócrito e a concepção moderna (unidades que compõem os corpos), para
Demócrito o átomo significa aquilo que não pode ser dividido. Ele chega a esse conceito imaginando
que, se pudéssemos dividir a matéria ao máximo, chegaríamos a “pedaços” muitos pequenos,
separados pelo vazio (uma ausência de átomo, porém uma ausência que permite a “colagem” de
átomos; algo, portanto, que existe e que tem uma função). A Natureza faz, então, que os átomos se
unam e produzam corpos por colagens e descolagens de átomos.
Essa postura pode ser chamada de filosofia religiosa, pois os pensadores baseiam-se na experiência
de fé (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 308) para justificar a afirmação de que a
finalidade última da existência é o encontro com Deus. Ao longo da História da Filosofia, muitos são
os pensadores que adotaram tal postura. Enraizados na imanência da experiência de fé, apontavam
para a transcendência divina e esforçaram-se para preservá-la como uma dimensão que, embora
possa ser captada e expressa pelo pensamento, permanece inesgotável como um mistério que pode
ser sempre mais conhecido. Hoje, no entanto, percebe-se uma fragilidade na forma como algumas
pessoas religiosas apresentam o ser divino, principalmente quando entram em debates científicos.
Muitas vezes sem perceber, adotam procedimentos fundados na imanência e não preservam a
transcendência divina; falam de Deus como se ele fosse uma peça no “quebra-cabeça” da Natureza e
perdem de vista a necessidade de tratá-lo como algo que supera o “mundo”. Algo semelhante ocorre
com cientistas e filósofos que, tanto para afirmar como para negar a existência de Deus, o tratam
como uma parte do “mundo” ou um dado científico que deve ser defendido ou refutado . É 19
razoável debater e justificar a crença em Deus ou a negação dessa crença; mas é um equívoco
20
realizar tal debate de modo a reduzir Deus a algo que se pode explicar, assim como se explicam as
outras coisas do “mundo”.
Um caso explícito desse equívoco é a discussão religiosa que ficou conhecida, de modo geral, como
debate criacionismo versus evolucionismo. Esquecendo-se do sentido como finalidade e
concentrando-se no sentido como origem, põem-se, de um lado, religiosos que defendem a criação
do “mundo” e dos seres humanos a partir de um primeiro casal e, de outro lado, cientistas
evolucionistas que negam a existência de Deus com base em teorias como a da explosão inicial, ou
Big Bang, e do surgimento da vida humana a partir do desenvolvimento dos primatas.
Os representantes desse debate ignoram, porém, que o tema da origem do “mundo” escapa a toda
possibilidade de prova definitiva e permanece sempre sob a possibilidade da dúvida.
Do lado científico, é exagerada a afirmação de que o “mundo” começou por acaso, pois o acaso não
pode ser comprovado. O sentido do acaso é sempre uma interpretação de sinais (significados)
encontrados na Natureza; não é um significado direto, quer dizer, não é algo que independe da
construção humana. Além disso, afirmar que o “mundo” não teve um começo (sempre existiu)
também não impede de pensar que um ser transcendente pode ter desejado que o “mundo” tivesse
sempre existido. Do lado religioso, por sua vez, crer que Deus criou o “mundo” não exclui que ele
pode ter se servido dos meios conhecidos pela Ciência para fazer o “mundo” ser tal como é. Os
livros religiosos (Bíblia judaica, Bíblia cristã, Alcorão etc.) não são obras científicas, mas registros
de visões de fé cujo objetivo é identificar em Deus o sentido de tudo o que existe. Ora, se Deus é
transcendente, ele pode ter feito com que o “mundo” começasse a existir ou que existisse desde
sempre.
Sofistas
Foram filósofos gregos do tempo de Sócrates, responsáveis por introduzir aspectos originais na
reflexão filosófica, principalmente temas de ética: diante das diferenças de costumes dos outros
povos, eles questionavam o sentido das virtudes gregas e perguntavam “o que é uma virtude?”. Por
adotarem certa postura relativista, além de cobrarem por seus ensinamentos, receberam o título
pejorativo de “especialistas do pensamento” (“sofistas”, do grego sóphos, “sábio”), e não
propriamente de “filósofos”. Entre os mais conhecidos deles estão Górgias (485-380 a.C.) e
Protágoras (490-415 a.C.).
A finalidade da Bíblia não é transmitir uma mensagem científica, mas espiritual. Os autores
religiosos são certamente pensadores religiosos. É muito comum também serem poetas, mas nunca
se arvoram em cientistas. Se procurarmos na Bíblia a verdade científica, de maneira alguma a
21
encontraremos, simplesmente porque ela não está lá. Por isso, a criação do Universo, por exemplo,
é descrita na Bíblia segundo as opiniões da época em que apareceu a narrativa da criação, sem valor
científico.
A melhor prova disso é que há na Bíblia dois relatos contraditórios da criação! Num deles, tudo vem
da água: no início, nada existia além de uma enorme massa de água; e Deus, depois de separar as
águas do firmamento e as águas da terra, separou de novo esta última, para fazer aparecer a terra
firme (capítulo 1 do Gênesis). No outro relato, ao contrário, tudo vem da terra: no começo, havia
apenas a terra seca e estéril ; foi só depois que Deus fez jorrar água (capítulo 2 do Gênesis). O autor
22
que reuniu numa única narrativa esses dois textos não foi enganado por seu aspecto contraditório.
Se os justapôs , foi porque, para ele, esse aspecto “científico” era apenas acessório ; era um modo
23 24
de se exprimir.
A Bíblia não procura explicar como funciona o Universo. Esse é o papel específico da pesquisa
científica. Ela procura responder às seguintes questões: por que o Universo existe? Por que
aconteceu essa evolução? Por que existe o ser humano? As narrativas bíblicas não querem dar um
ensinamento científico para satisfazer nossa curiosidade. Elas querem fazer refletir sobre o
essencial: nossa condição humana diante de Deus, nossas trágicas divisões, nosso confronto com
uma Natureza que às vezes é hostil e, finalmente, o sentido de uma História da qual somos, ao
25
MORIN, Dominique. Para falar de Deus. Tradução Nadyr Salles Penteado. São Paulo: Loyola, 1993. p. 52-54.
EXERCÍCIO C
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 437
2. Por que, segundo Jean Grondin, o comportamento dos animais seria uma prova de que o
sentido da existência não é uma construção humana?
4. Falar de algo transcendente significa falar necessariamente de algo que está fora do
“mundo”?
Essa “piada” pode piorar quando os humanos conseguem satisfazer seus desejos e percebem que
não ganham nada de extraordinário com isso. Ficam apenas satisfeitos por um tempo e logo em
seguida voltam a entediar-se, ou seja, a encher-se de tédio, essa sensação de não ter nada que
estimule e dê gosto pela vida.
A vanidade da existência 26
Arthur Schopenhauer
A vida humana deve ser algum tipo de equívoco. A verdade disso ficará suficientemente óbvia se
lembrarmos que o ser humano é composto de carências e necessidades difíceis de satisfazer.
Mesmo que sejam satisfeitas, tudo o que o ser humano obtém é uma situação de vida sem dor,
quando não resta nada para ele, a não ser um mergulho no tédio. Essa é uma prova direta de que a
existência não tem valor real em si mesma. Aliás, o que é o tédio senão o sentimento do vazio da
vida? Se a vida possuísse algum valor nela mesma (e desejar a vida é a verdadeira essência de nosso
ser), então não deveria haver tédio; a mera existência nos satisfaria e nós não desejaríamos mais
nada. Em vez disso, não temos prazer na existência, exceto quando lutamos por alguma coisa: a
distância e as dificuldades para atingir nosso objetivo nos fazem pensar que esse objetivo irá nos
satisfazer. Trata-se de uma ilusão que se esvazia quando alcançamos o que buscamos. [...] Mesmo o
prazer físico não passa de luta e desejo, mas termina no momento em que seu objetivo é alcançado.
Quando não estamos ocupados por uma ou outra dessas coisas, mas nos concentramos na
existência mesma, a sua natureza vã e inútil toma conta de nós. Isso é o que chamamos de tédio.
SCHOPENHAUER, Arthur. The vanity of existence. In: Essays. Edição e tradução T. Bailey Saunders. Nova York: A. L. Burt, 1902. p.
397-398. (A vanidade da existência. Tradução nossa.)
Ícone: Glossário 26 Vanidade: característica daquilo que não tem valor; que é vão, vazio.
prestam atenção no próprio ato de existir, percebem que ele é vazio, sem valor por si mesmo .
O escritor francês Albert Camus ilustra bem a revolta contra a falta de coerência na vida. Ícone:
Texto filosófico
Albert Camus
O protesto contra o mal [...] é significativo. Revoltante em si não é o sofrimento da criança, mas o
fato de que esse sofrimento não seja justificado. Afinal, a dor, o exílio e o confinamento são às vezes
aceitos quando ditados pela medicina ou pelo bom senso. Aos olhos do revoltado, o que falta à dor
do mundo, assim como aos seus instantes de felicidade, é um princípio de explicação.
CAMUS, Albert. O homem revoltado. Tradução Valérie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 1999. p. 125.
Há uma profunda verdade no homem revoltado descrito por Albert Camus: a falta de explicação
objetiva tanto para o sofrimento como para a felicidade. A revolta, no entanto, também pode ser
entendida como um desejo de que a vida fosse melhor. Concentrando-se nesse desejo, o filósofo
judeu-alemão Hans Jonas elaborou um pensamento que convida a assumir o caráter absurdo da
vida e a transformá-lo em ocasião para os próprios seres humanos se tornarem melhores. O
absurdo teria um lado bom: mostrar que, em vez de esperar pela intervenção de um ser
transcendente (milagres, graças), cabe aos seres humanos desenvolver a responsabilidade por si
mesmos e pelo “mundo”, aceitando como imutável apenas aquilo que realmente não podem mudar.
Em outras palavras, trata-se de não esperar de Deus (ou de qualquer outra dimensão
transcendente) mudanças que cabem aos seres humanos e de também não culpá-lo pela falta de
mudanças. Em seu livro O Conceito de Deus depois de Auschwitz, Hans Jonas usa uma imagem de
grande força: Deus, ao criar o “mundo”, deu tudo o que podia dar; agora ele suporta em silêncio as
consequências de ter criado o “mundo”, principalmente os resultados da liberdade humana.
Foi um filósofo alemão. No seu dizer, o ser humano, ao tomar consciência de si mesmo, descobre-se
como ser de vontade, tal como a Natureza em geral, pois tudo busca sua própria conservação. Obras
mais conhecidas: O mundo como vontade e representação, de 1819, e Parerga e Paralipomena, de
1851.
Foi um filósofo alemão de origem judaica. Alerta à ascensão do nazismo, afasta-se decididamente de
toda forma de pensamento ideal e volta-se para a reflexão sobre as bases do ser em sentido
biológico. A dependência humana com relação aos ecossistemas permite-lhe lançar as bases para
uma nova ética, a “ética da responsabilidade”. Principais obras: O fenômeno da vida e O princípio da
responsabilidade.
Albert Camus (1913-1960)
Foi um escritor e filósofo francês nascido na Argélia. O sofrimento pela fome, a miséria, as guerras e
as injustiças foram temas de grande importância em seu pensamento. Obras mais conhecidas: O
estrangeiro, romance de 1942, e O homem revoltado, ensaio filosófico de 1951.
Página 86
Elie Wiesel (1928-), escritor e filósofo judeu, nascido na Romênia e naturalizado norte-americano,
reflete sobre o silêncio de Deus diante dos campos de concentração nazistas. Em 1943, quando
tinha 15 anos, Elie foi deportado com sua família para Auschwitz, onde perderia os pais e as três
irmãs. Algum tempo depois da liberação em 1945, Elie narra sua experiência no livro A noite. Uma
das cenas por ele descrita é bastante impressionante e profundamente motivadora de uma reflexão
sobre a liberdade humana e a responsabilidade. Ícone: Texto filosófico
Deus enforcado
Elie Wiesel
Havia no campo de concentração um garoto, um pipel, como eram chamados [os meninos usados
para satisfazer as necessidades sexuais dos Kapos ]. Um dia, quando voltávamos do trabalho, vimos
27
três forcas armadas no local onde nos reuníamos quando era feita a Chamada. Fizeram a Chamada.
Os SS à nossa volta; as metralhadoras apontadas: cerimônia tradicional. Três condenados estavam
28
acorrentados e, entre eles, o pequeno pipel. O chefe do campo leu o veredicto . Todos os olhares 29
estavam fixos sobre o menino. Ele estava lívido , quase calmo, mordendo os lábios e coberto pela
30
sombra da forca. Os três condenados subiram ao mesmo tempo nas cadeiras. O pescoço dos três foi
introduzido nas cordas.
– Onde está o bom Deus, onde está? – perguntou alguém atrás de mim.
Os dois adultos já não viviam. Mas a terceira corda se movia: o menino era tão leve que ainda estava
vivo. Por mais de meia hora, ele ficou assim, lutando entre a vida e a morte, agonizando diante de
nossos olhos. E devíamos olhá-lo bem de frente.
WIESEL, Elie. La nuit. Paris: Éditions de Minuit, 1958. p. 102-105. (A noite. Tradução nossa.)
28SS: abreviação da palavra alemã Schutzstaffel (Tropa de Proteção), organização ligada ao partido nazista
para pôr em prática os ideais do partido.
30 Lívido: pálido.
EXERCÍCIO D
Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 437
1. Segundo Arthur Schopenhauer, qual é a prova direta de que a existência não tem valor real
em si mesma?
4. Faça um exercício de meditação (reflexão silenciosa sobre a sua própria vida) e procure
perceber se você já experimentou o sentimento de revolta. O que motivou esse sentimento?
Como você o viveu? Ele interferiu em seu modo de ver a vida?
Página 87
EXERCÍCIOS COMPLEMENTARES
Como forma de rever o conteúdo deste capítulo e articular os principais elementos nele
trabalhados, componha uma redação de síntese filosófica (p. 138), tendo por título: É possível falar
filosoficamente do sentido da existência? Você pode se basear no caminho percorrido neste capítulo.
Propomos sete passos:
2 - Explique por que a Filosofia não oferece apenas mais uma opinião.
4 - Apresente a postura filosófica que não aceita a possibilidade de falar adequadamente de sentido
para a existência.
6 - Apresente a postura filosófica que afirma a falta de sentido para a existência e a considera
absurda.
7 - Tome uma posição pessoal, aproximando-se de uma das três posturas apresentadas ou mesmo
assumindo uma delas. Justifique-se, esclarecendo suas motivações.
2 Pesquisa
Você talvez tenha notado que, neste capítulo, sempre pusemos aspas na palavra mundo (salvo nos
textos dos filósofos). As aspas indicam que esse termo não tem o significado óbvio que costuma ter
em nosso modo cotidiano de falar. Com o auxílio de seus professores de Língua Portuguesa e de
Filosofia, faça um levantamento dos sentidos do uso de aspas em nossa língua e reflita se esse uso é
realmente útil em uma redação. Pergunte-se se você costuma dar mais atenção a um termo que
aparece entre aspas. Na sequência, pesquise pelo menos dois sentidos em que os filósofos falaram
de “mundo”.
3 Atividade interdisciplinar
Para melhorar sua compreensão das ideias filosóficas apresentadas neste capítulo, é interessante
conhecer melhor os dados vindos de outras áreas do saber e tomados como base na reflexão
filosófica sobre a origem e a finalidade da existência. Sob a orientação de seu(sua) professor(a) de
Filosofia, convide seus professores de Biologia, de Física e de Química para uma aula conjunta em
que vocês possam refletir sobre os seguintes aspectos:
1 - Aula de Biologia: com base em pesquisas genéticas, comparem a visão de cientistas que
consideram os genes como “programados” e negam a liberdade humana com a visão de cientistas
que, mesmo identificando “programações” nos genes, não negam a liberdade humana; por exemplo,
vocês podem estudar as ideias de Richard Dawkins e Rupert Sheldrake;
2 - Aula de Física: com base na teoria do Big Bang, comparem a visão de cientistas que aceitam
essa teoria como forma de negar a existência de um ser divino e a visão de cientistas que, mesmo
aceitando essa teoria, não veem nela uma forma de negar a existência do ser divino; por exemplo,
vocês podem estudar as ideias de Stephen Hawking e de Owen Gingerich;
3 - Aula de Química: com base na teoria de que os compostos orgânicos podem resultar também
de elementos não orgânicos, comparem a visão de cientistas que consideram a “matéria” como
dotada de um dinamismo próprio (sem a necessidade de nenhum fator diferente da própria
matéria) com a visão de cientistas para os quais o dinamismo da matéria não pode ser explicado
apenas com base na própria matéria; por exemplo, vocês podem estudar o trabalho de Jöns Jacob
Berzelius e de James Tour.
4 Leitura complementar
Leia o seguinte texto em que o escultor Auguste Rodin (1840-1917) trata da arte e do sentido da
existência:
Página 88
Existência e arte
Auguste Rodin
Felizmente, as obras de arte não estão entre as coisas úteis, quer dizer, entre aquelas que servem
para nos alimentar, nos vestir, nos proteger; numa palavra, para satisfazer nossas necessidades
físicas. Bem ao contrário, as obras de arte nos arrancam da escravidão da vida prática e nos abrem
o mundo encantado da contemplação e do sonho. [...] A arte indica aos seres humanos a razão de
existir deles. Ela lhes revela o sentido da vida; ela ilumina os humanos em seu destino e, por
conseguinte, os orienta na existência.
RODIN, Ausguste.; GSELL, Paul. L’art: entretiens réunis. Paris: Grasset, 1911. p. 299, 301. (A arte: coletânea de entrevistas. Tradução
nossa.)
Camille Claudel (1864- 1943), Jeune fille à la gerbe (Jovem com um feixe de trigo), 1887, escultura em terracota.
Acesse:
Após ter lido o trecho de Rodin, passeie pelo site do Museu Rodin <http://www.musee-
rodin.fr/fr/collections/collections-du-musee>; Acesso em: 19 dez. 2015), sem a preocupação em
entender o que está escrito (em francês), mas apreciando as obras do artista. Basta clicar nas
imagens e avançar pelas páginas. Você encontrará também obras de Camille Claudel (1864- 1943),
cujo trabalho é tão significativo a ponto de alguns especialistas a considerarem mais importante do
que Rodin. À esquerda da página do site, na aba Collections, você pode escolher entre as esculturas,
os desenhos, as fotografias etc. Ao passear pelo site, reflita sobre o modo como Rodin afirma que a
arte pode revelar o sentido da existência e colaborar para orientar-se nela.
Ícone: Dica de filmes Dicas de filmes para você assistir tendo em mente o que trabalhamos
neste capítulo
Depois da morte da mãe, Ponette, que tem apenas quatro anos, passa a se perguntar o que é a vida. Ela espera
que a mãe volte a viver. Filme de profunda beleza, simplicidade e inteligência.
Ensina-me a viver (Harold and Maude), direção Hal Ashby, EUA, 1971.
Com bastante humor e sensibilidade, o filme apresenta a história de Harold, jovem que gostava de chocar os
adultos (principalmente sua mãe, mulher rica e um tanto incoerente) e decide se casar com Maude, de 79 anos.
O casamento não foi um gesto de brincadeira, como alguns pensavam. O tema do porquê de existir é o coração
do filme.
Documentário sobre o suicídio. É interessante notar que, ao refletir sobre o suicídio, o tema central é a vida.
Por que viver? Por que não viver?
Monty Python – o sentido da Vida (Monty Python – The Meaning of Life), direção Terry Jones, Inglaterra, 1983.
Comédia inteligente do grupo humorístico inglês Monty Python sobre fatos do cotidiano que permitem rir do
tema do sentido da existência. Abordam, por exemplo, as partes que algumas pessoas preferem em seus
corpos, o nascimento e o controle de natalidade, as diferenças caricaturais entre católicos e protestantes
ingleses, os efeitos da guerra e outros fatores.
Página 89
Onde existe amor, Deus aí está, de León Tolstói, tradução Victor E. Selin e Aurea G. T. Vasconcelos, Verus, 2001.
Embora o título possa dar a entender que o livro trata da fé em Deus, na verdade ele é um conjunto de cinco
belos contos em que Tolstói declara sua fé na existência.
Os últimos dias de Tolstói, Vários tradutores, Penguin & Companhia das Letras, 2011.
Coletânea de textos literários e filosóficos em que Tolstói analisa o tema do sentido da existência, a crença em
Deus, a arte e as ciências.
Uma das maiores obras de Clarice Lispector, escrita em 1977, este livro explora, entre outros temas, a relação
entre a vida e a morte, bem como o tema do sentido. Só se deve valorizar aquilo que tem sentido? O que parece
não ter sentido também não faz parte da vida? De que maneira se pode viver aquilo cujo sentido não é
compreensível, como a morte? Como morrer se não aprendemos isso?
Encarnando a figura de um defunto-escritor, Machado de Assis dá voz a Brás Cubas, que narra os fatos de sua
vida sem, no entanto, desejar revivê-la.
O psicólogo judeu Viktor E. Frankl narra a experiência de quem só conseguiu sobreviver ao campo de
concentração porque elaborava um sentido para todos os acontecimentos do cotidiano.
A existência e a morte, de Luís César Oliva, WMF Martins Fontes, 2012 (Coleção Filosofias: o prazer do pensar).
Estudo sobre a relação entre sentido da existência e morte, com base nos filósofos Sêneca, Pascal e Espinosa.
O escritor português reflete sobre as razões para afirmar e para negar a possibilidade de o ser divino ser
considerado fonte de sentido para a existência.
Acesse:
Reflexão sobre o sentido da vida, a morte, o sofrimento e o gosto de viver, de um ponto de vista ateu.
Sobre a construção do sentido – o pensar e o agir entre a vida e a filosofia, de Ricardo Timm de Souza,
Perspectiva, 2003.
O autor, que é professor de Filosofia na PUC do Rio Grande do Sul, convida os leitores a desenvolver a atitude
filosófica como construção de sentidos para o viver.
A busca do sentido – a linguagem em questão, de Jean-Claude Coquet, tradução Dilson Ferreira Cruz, WMF
Martins Fontes, 2013.
O autor explora a linguagem como o elemento que constitui a realidade humana, assim como a água é o
elemento dos peixes. É de dentro da linguagem que se entende a busca do sentido.
Conjunto de textos do filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard, com ênfase ao modo como sentimos a
existência e como podemos elaborar a melancolia, levando-a a sério. Situando-se entre Sócrates e Cristo,
Kierkegaard procura “falar no silêncio”, ir além e aquém da linguagem, até chegar ao amor mais apaixonado,
porém não egoísta.
CAPÍTULO 2 A FELICIDADE
FOTO: © THE STATE HERMITAGE MUSEUM, ST. PETERSBURG/VLADIMIR TEREBENIN © SUCCESSION H. MATISSE/AUTVIS, BRASIL, 2016.
Henri Matisse (1869-1954), La danse (A dança), 1910, óleo sobre tela. Os dançarinos de Matisse revelam
universalidade e singularidade: universal é o fato de sermos humanos; singular é o modo como concretizamos
o que há de universal. Assim, também a busca da felicidade parece universal, mas o que ela é e o modo como
pode ser vivida dependem das maneiras singulares como a entendemos.
C ertamente podemos afirmar que os seres humanos desejam ser felizes. Afinal, se ser feliz
significa sentir-se realizado, mesmo as pessoas que não acreditam na felicidade vivem o seu “não
acreditar na felicidade” como uma forma de se sentirem realizadas...
Resta saber, no entanto, o que permite a realização que recebe o nome de felicidade.
As opiniões variam muito. Para alguns, a felicidade é o amor; para outros, é o trabalho, comprar
coisas, divertir-se, vencer na vida, lucrar...
Em Filosofia, porém, mais do que oferecer apenas outra opinião sobre a felicidade, convém analisar
o sentido do que se oculta por trás desse nome. É assim que muitos filósofos concentraram-se em
um conteúdo comum a todas as concepções de felicidade: o prazer. Ser feliz é ter prazer; ter prazer
é sentir-se realizado. A experiência do prazer e sua relação com a realização pessoal podem ser,
então, chaves para abrir a porta do esclarecimento da felicidade.
1 Do prazer à felicidade
Um caminho possível para refletir sobre a relação entre felicidade e prazer consiste em considerar
a felicidade como o conjunto dos prazeres.
Essa concepção foi defendida, entre outros, por um grupo de filósofos antigos conhecidos como
cireneus (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 91). O escritor Diógenes Laércio (Ícone:
Conteúdo tratado em outra página p. 91), responsável por reunir e divulgar elementos das reflexões
filosóficas dos filósofos antigos, sintetizou a análise cirenaica, declarando que, de acordo com ela, a
felicidade consiste na soma dos prazeres. Em seu livro Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres
(também conhecido como Vidas dos filósofos mais ilustres da Antiguidade), Diógenes registra: Ícone:
Texto filosófico
Página 91
Os cireneus, ao falar do prazer, pensam no prazer corporal, que seria a finalidade dos seres
humanos; e não apenas a tranquilidade ou a ausência de dor [...]. No entanto, parece que os filósofos
cireneus distinguem entre a finalidade dos seres humanos e a felicidade: no dizer deles, a finalidade
são os prazeres separadamente, enquanto a felicidade é o conjunto de todos os prazeres, seja os que
já passaram como os que podemos ainda receber. Eles dizem que um prazer isolado é desejável por
si mesmo, ao passo que a felicidade não é desejável por si mesma, mas por causa dos prazeres
particulares que dela resultam.
Eles acrescentam que o sentimento nos prova que o prazer deve ser nossa finalidade, pois a
Natureza nos leva a isso desde a infância: sem pensar, nós nos deixamos levar pelo prazer; quando
possuímos o prazer, não desejamos outra coisa senão a satisfação dada por ele. Quanto à dor,
experimentamos naturalmente uma repugnância que nos leva a evitá-la.
1
DIÓGENES LAÉRCIO. Les vies des plus illustres philosophes de l’Antiquité. Tradução J. G. Chauffepié. Paris: Lefebvre & Charpentier,
1840. p. 91-92. (As vidas dos mais ilustres filósofos da Antiguidade. Tradução nossa para o português.)
Escola cirenaica
É o nome atribuído a um conjunto de filósofos cuja atuação se deu principalmente entre os anos
400 e 300 a.C. na cidade de Cirene, antiga colônia grega na região da atual Líbia. Foi fundada por
Aristipo (aproximadamente 435-356 a.C.), seu mais conhecido representante, que considerava o
prazer como bem supremo e maior objetivo da vida humana. Nada restou de seus escritos. É
conhecido pelos testemunhos de outros escritores, sobretudo Diógenes Laércio.
Foi um historiador e biógrafo dos filósofos antigos. Muito pouco se sabe sobre sua vida, tampouco
sobre sua origem. Pelos filósofos mais recentes citados em sua obra, estima-se que tenha vivido na
primeira metade do século III d.C. É conhecido pela obra Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres.
1. O alicerce ou o ponto de partida do pensamento dos cireneus está nas linhas 2 a 6: todos os seres
vivos procuram o prazer e fogem da dor. Os seres humanos, como caso específico dos seres vivos,
possuem duas emoções: o prazer e a dor;
2. Como o texto de Diógenes Laércio mistura as frases sem uma ordem direta, parece difícil
entender o papel da frase “todos os prazeres são iguais e nenhum é mais sensível do que outro”,
escrita já no início do texto (linhas 5 e 6), em meio às afirmações sobre a busca do prazer e a fuga da
dor. Mas, com um pouco mais de atenção, vê-se que essa frase é importante para o que vem logo na
sequência: afirmar que nenhum prazer é mais sensível do que outro significa dizer que todos os
prazeres são corporais, ou seja, são experimentados no corpo (são sensíveis). Então, não existiria
um prazer mais ligado ao corpo do que outro. Por essa razão, o prazer também não é uma simples
ausência de dor; é algo que se sente, ao passo que a ausência de dor não pode ser sentida (a
ausência significa que não há nada para ser sentido). O prazer, então, é uma sensação (uma
experiência sentida no corpo) agradável (satisfaz a alma). A dor, ao contrário, é uma sensação
violenta que oprime a alma. Assim, se a ausência de dor significa apenas não ter opressão da alma, o
prazer é mais do que uma simples ausência de dor; é uma experiência sensível que causa satisfação;
Página 92
À esquerda: detalhe de calendário de 1897 com uma gravura de Alfons Maria Mucha (1860-1939) em
propaganda de chocolate mexicano. Acima: José Luis López Galván (1985-), Vomitorium, 2011, óleo sobre tela.
O contraste entre ambas as imagens é flagrante. A propaganda de chocolate apela para sentimentos de leveza
(como os meses da primavera europeia retratada no calendário) e o prazer do paladar, ao passo que o
“vomitório” de López Galván exprime o horror que pode se tornar o ato de alimentar-se.
3. Se o prazer é, então, uma sensação agradável de satisfação, ele é desejado por si mesmo. Em
outras palavras, os seres humanos, em tudo, buscam o prazer: desde a infância, entregam-se a ele a
tal ponto que não precisam mais raciocinar para buscá-lo (linhas 16 a 18);
4. Esse raciocínio permitia aos cireneus diferenciar entre a finalidade buscada por todo ser humano
nos diferentes aspectos de sua vida (o prazer) e uma finalidade mais ampla, a de reunir os prazeres
separados (vividos nos diferentes aspectos da vida, tanto passados como presentes). Assim, ao
mesmo tempo que os seres humanos vivem prazeres separados, eles também podem viver o
conjunto desses prazeres, experimentando um novo prazer, o de viver a satisfação dada pelo
conjunto. A essa maneira de viver a satisfação com a soma dos prazeres os cireneus chamavam
felicidade;
5. Por fim, a comparação entre a dor e o prazer permite esclarecer melhor a felicidade: os seres
humanos vivem uma rejeição imediata da dor; tentam sempre evitá-la; o prazer, ao contrário, os
atrai; são movidos a buscá-lo. Como a felicidade é a soma dos prazeres, ela dependerá então da
busca ativa dos prazeres.
Da reflexão cirenaica pode-se extrair uma primeira concepção da felicidade: ela é a satisfação que
se busca como posse do conjunto dos prazeres.
Cerca de um século depois, o filósofo grego Epicuro (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p.
93) afirmará algo semelhante. Porém, insistirá na seguinte diferença: uma vida sem tranquilidade
não é boa, pois falta de tranquilidade significa falta de satisfação ou falta de prazer. É possível ter
satisfações; mas, como elas não duram, os seres humanos permanecem insatisfeitos. Tal
experiência leva a entender que outra experiência é possível, a da tranquilidade ou paz vivida no
corpo, como ausência de dor, e na alma, como ausência de perturbação.
A alma humana, segundo Epicuro, não significa uma “coisa” que está “dentro” do corpo (e que vai
para um paraíso ou para uma condenação depois da morte, como hoje muitos entendem). Ela é a
vida do corpo e permite aos humanos realizarem sua atividade específica, o pensamento. Por essa
razão, segundo Epicuro, a tranquilidade deve ser buscada em duas direções: como ausência de dor
no corpo e como paz da alma.
De acordo com a análise de Epicuro, os seres humanos possuem a capacidade de pensar, refletir e
decidir, bem como um movimento que leva à busca de satisfação (prazer). Esse movimento
independe do pensamento e da decisão; é um impulso que habita todos os indivíduos. A esse
impulso Epicuro chama de desejo ou paixão (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 264). No
entanto, embora o impulso de buscar satisfação brote nos indivíduos, cada um pode interferir no
modo como o vive.
Os desejos dividem-se, por sua vez, em úteis e inúteis, de acordo com sua contribuição efetiva para o
bem-estar do corpo e para a tranquilidade da alma. A felicidade, por fim, será a satisfação ou a
completude vivida no corpo e na alma. Será uma vida de prazer, mas não de qualquer prazer, e sim
do conjunto dos prazeres úteis.
Se o objetivo maior dos seres humanos é alcançar uma vida de satisfação completa, Epicuro
entende a felicidade, então, como a finalidade suprema da vida humana. Ele inverte a relação
estabelecida pelos cireneus entre a felicidade e o prazer, pois não concebe mais a felicidade como
simples conjunto de prazeres em vista do prazer obtido com o conjunto dos prazeres separados. Ele
a concebe como experiência de satisfação à qual serve o conjunto de prazeres. Em um sentido
básico, o prazer corresponde à satisfação de cada desejo isolado (como pensavam os cireneus);
porém, em um sentido mais amplo, o prazer é a própria felicidade como posse dos prazeres aliada à
tranquilidade da alma.
Página 93
Foi um filósofo grego do período helenístico. Nascido na ilha de Samos, Epicuro viajou por várias
cidades gregas antes de fundar, em 304 a.C., sua própria escola filosófica em Atenas, chamada de
Jardim. Exerceu grande influência não apenas por seus ensinamentos centrados na importância do
prazer, mas também por sua personalidade e por seu modo de vida. De suas obras, restaram apenas
três cartas que versam sobre a Natureza, sobre os meteoros e sobre a moral.
Epicuro acrescenta que, como ensinava Aristóteles (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p.
103), a prática da prudência (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 266) permite avaliar os
prazeres e identificar aqueles que proporcionam a felicidade (o bem-estar do corpo e da alma), pois
ela, a prudência, é o hábito de escolher o melhor encaminhamento dado a cada vivência particular
de prazer. Se os prazeres podem ser classificados como úteis ou inúteis, a sua correta avaliação
mostra-se indispensável para chegar à felicidade. Tal avaliação pode ser feita graças à prudência,
condição necessária e suficiente para a felicidade ou para o prazer em seu sentido mais amplo.
Em síntese, Epicuro concebe a felicidade como algo além da simples busca de prazer; trata-se de
uma vivência dos prazeres somada ao exercício de visar o melhor (prudência). A prudência leva à
felicidade; e a felicidade depende da prudência. Ícone: Texto filosófico
Prazer e Prudência
Epicuro
Quando dizemos que o prazer é a finalidade, não queremos falar dos “prazeres de quem é
dissoluto ” nem dos “prazeres que se encontram no mero desfrutar”, como creem aqueles que, por
3
De tudo isso, o princípio e o maior bem é a prudência. É por isso que a Filosofia é, no melhor
sentido, prudência, da qual nascem todas as outras virtudes: elas nos ensinam que não é possível
viver com prazer sem viver com prudência e que não é possível viver de modo bom e justo sem
viver com prazer, pois todas as virtudes são naturalmente associadas ao fato de viver com prazer; e
viver com prazer é inseparável das virtudes.
EPICURO. Lettre à Ménécée. In: Lettres, Maximes, Sentences. Tradução Jean-François Balaudé. Paris: Le Livre de Poche, 1994. p. 196-
197. (Carta a Meneceu. Tradução nossa para o português.)
Ícone: Glossário 3 Dissoluto: quem tem uma vida sem medida; que dissolve as regras.
Você provavelmente observou que Epicuro também menciona a Filosofia como sinônimo de
prudência. De fato, para ele, a Filosofia era uma forma de vida com prudência e, portanto, na
felicidade. Assim, prudência, felicidade e Filosofia seriam equivalentes.
Nos dias de hoje, quando se quer dar uma visão pejorativa sobre alguém que valoriza
2
excessivamente o prazer ou que pensa ser bom ter prazer pelo simples fato de ter prazer, chama-se
essa pessoa de hedonista (termo que vem de hedoné, “prazer” em grego).
Ícone: Glossário 2 Pejorativo: que diminui e dá uma visão negativa de alguém ou de alguma coisa.
Página 94
Fala-se até de epicurista como sinônimo de hedonista. Mas você já é capaz de perceber que ser
hedonista no sentido de Epicuro (valorizar o prazer) não significa ser hedonista no sentido
pejorativo! O hedonismo de Epicuro é ligado à atividade humana de avaliar o melhor para cada
situação. Essa atividade, a prudência, seria como uma “cola” que liga os prazeres e faz deles um
grande conjunto em vista da felicidade, satisfação obtida com os prazeres do corpo e a
tranquilidade da alma.
Condição – aquilo que permite a algo ocorrer. Exemplos: Ter a cidadania brasileira é condição para
votar. Só pode votar quem tem cidadania brasileira. Havendo uma recompensa, farei este esforço.
Condição necessária – condição indispensável para que algo ocorra: se x é condição necessária de
y, isso quer dizer que, sem x, não ocorre y; ou ainda, tudo o que é y é também x, embora nem tudo o
que é x seja também y. Exemplos:
Quem está no Brasil (y) também está necessariamente na América Latina (x).
Condição suficiente – condição para algo ocorrer; porém, essa condição não é indispensável para
que o mesmo algo ocorra (ele pode ocorrer por uma outra causa): x é condição suficiente de y
quando y ocorre em função de x, mas também pode ocorrer em função de outra causa; ou ainda,
tudo o que é x é também y, embora nem tudo o que é y seja também x). Exemplos:
Estar no Brasil (x) faz com que alguém esteja na América Latina (y).
Condição necessária e suficiente – caso em que a condição e seu efeito são equivalentes
(coincidência entre as duas condições, suficiente e necessária): y só ocorre se ocorrer x, mas x
também só ocorre se ocorrer y; ou ainda, todo x é y e todo y é x. Exemplos:
Alguém é solteiro (y) se não é casado nem tem união estável (x).
EXERCÍCIO A
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 439
1. Releia o texto de Diógenes Laércio e mostre o papel das frases abaixo na argumentação que
leva a considerar a felicidade como a soma de todos os prazeres: Os seres vivos procuram o
prazer e fogem da dor. O prazer deve ser nossa finalidade porque a Natureza nos leva a isso desde
a infância.
2. Por que a tranquilidade ou a ausência da dor não são a felicidade, segundo os cireneus?
3. Indique o aspecto em que Epicuro concorda com os cireneus e o ponto em que ele discorda
deles.
5. O que significa afirmar que, segundo Epicuro, a prudência é condição necessária e suficiente
para a felicidade?
Bentham e Mill procuravam um modo científico de tratar a felicidade como finalidade dos atos
humanos. Em outras palavras, buscavam adotar um critério fundado na razão e na experiência
sensível, assim como procedem as ciências, para analisar filosoficamente a felicidade.
Ambos praticamente repetem a ideia antiga de que a finalidade das ações humanas é produzir a
felicidade
Página 95
pelo prazer e pela ausência de dor; e, como critério científico para afirmar isso, propunham a
utilidade do prazer e da ausência de dor. Tudo aquilo que é desejado consiste em mais do que um
simples meio de alcançar a felicidade; é parte da felicidade mesma.
Foi um filósofo e jurista britânico do período iluminista, conhecido como um dos fundadores do
utilitarismo, pensamento ético que concebe todas as ações humanas em função de sua capacidade
de aumentar ou diminuir o prazer e a felicidade do maior número de pessoas. Obras mais
conhecidas: Uma introdução aos princípios da moral e da legislação (1789) e Teoria dos deveres ou A
ciência da moral, publicada postumamente em 1834.
Foi um filósofo britânico, filho do filósofo escocês radicado na Inglaterra James Mill. O pai foi um
seguidor das ideias de Jeremy Bentham, de quem Stuart recebeu influências diretas desde a sua
infância. Sua vasta e rígida educação o levou a desenvolver o utilitarismo. Obras mais conhecidas:
Princípios de economia política (1848), A liberdade (1859) e Utilitarismo (1861).
Um dos motivos utilitaristas para desfazer a inversão de Epicuro vem do fato de que a felicidade
está sempre ligada a momentos passageiros e a ocasiões bastante precisas. Dessa percepção, os
utilitaristas concluem que a felicidade não existe; o que existem são circunstâncias e momentos
felizes. Eles pretendem denunciar aquilo que consideravam um equívoco, o de falar de “a” felicidade
(como se ela fosse uma coisa ou um estado), quando, na verdade, o que existe é uma dispersão de
coisas isoladas e de momentos que dão satisfação aos indivíduos. Desse ponto de vista, os
utilitaristas diferem até mesmo dos cireneus.
A visão utilitarista pode ser mais bem entendida por meio de uma comparação com o seguinte
pensamento: não existe “a” Humanidade; só existem indivíduos humanos. Se só é possível observar
indivíduos, então não há base para dizer que o conjunto formado por eles constitui algo diferente
deles ou maior do que eles (“a” Humanidade como um universal [ p. 97]). Mesmo em afirmações
universais como “A Humanidade é responsável pela Terra”, isso não significaria que essa
responsabilidade é exercida por algum nível superior ao dos indivíduos, mas pelos próprios
indivíduos.
3. então, não se pode dizer que as vivências individuais do prazer têm ligação entre si nem que o
prazer sentido por um indivíduo tem relação com o prazer sentido por outro indivíduo;
4. porém, as afirmações 2 e 3 são incoerentes com 1 (“Todos os indivíduos buscam o prazer”), pois,
se por prazer se entende algo inteiramente individual (em si mesmo e no interior de cada
indivíduo), e se não há relação nem entre os prazeres
Página 96
vividos por alguém nem entre os prazeres vividos por diferentes indivíduos, então nada permite
afirmar que “todos os indivíduos buscam o prazer”, pois sequer seria possível entender se o que um
indivíduo chama de prazer corresponde ao que outro indivíduo também chama de prazer;
5. ocorre, no entanto, que os seres humanos compreendem o que querem dizer quando falam de
prazer; então a frase 1 é aceitável; mas, se ela é aceitável, as afirmações 2 e 3 precisam ser revistas.
Foi um filósofo inglês e frade franciscano, conhecido sobretudo por sua defesa da pobreza cristã e
por sua compreensão de que os conceitos não correspondem a realidades universais, mas apenas a
modos de referir-se a coisas singulares. Acentua a separação entre Filosofia e Teologia, bem como
entre poder religioso e poder civil. Sua insistência na necessidade de prova e demonstração
empírica para o conhecimento influenciou a aparição da ciência moderna. Obras mais conhecidas:
Suma de lógica e Brevilóquio sobre o principado tirânico.
Uma revisão desse tipo é o que farão os filósofos críticos do utilitarismo. Aceitando que é razoável
considerar o prazer como algo comum aos seres humanos e que diferentes experiências podem ser
nomeadas como prazer, os críticos do utilitarismo defenderão a possibilidade de identificar nos
indivíduos um impulso comum, o de buscar o prazer. Ora, se há um impulso, há também um alvo (a
direção do impulso); e, se o impulso é comum, o alvo também é comum.
Não se poderá, todavia, dizer que esse alvo é o próprio prazer ou o simples conjunto dos prazeres,
pois isso faria voltar à primeira dificuldade encontrada no utilitarismo (a insatisfação permanente
com o que satisfaz). O alvo precisará ser visto como algo maior do que o prazer ou o conjunto deles,
uma satisfação plena que pode ser alcançada inteiramente ou, pelo menos, em graus sempre
maiores. Tanto em um caso como em outro, a satisfação permanece como objetivo a ser atingido,
horizonte de realização completa (ou pelo menos cada vez maior), ao qual se dará também o nome
de felicidade.
Outro caso pode iluminar a compreensão desse ponto: os governantes de um país tomam certas
atitudes em nome do “país”, e não apenas de seus cidadãos considerados individualmente. Assim,
por exemplo, mesmo que uma parte da população seja contrária às relações diplomáticas com outro
país (que essa parcela da população não aprecia), os governantes legítimos estão autorizados a
estabelecer tais relações diplomáticas caso elas visem ao bem do conjunto de seus cidadãos,
inclusive dos que têm uma opinião contrária. Ou então, embora muitos indivíduos não acreditem
que as mudanças climáticas são causadas pela busca acelerada de progresso, os governantes dos
países (“líderes” da Humanidade) podem tomar decisões que desacelerem o progresso em nome do
bem do conjunto dos seres humanos ou “a” Humanidade. Ainda, um(a) médico(a) que olhe para
alguém doente e o veja apenas como uma somatória de partes físicas, deixando de prestar atenção
no “indivíduo” ou na “pessoa” do doente (realidade mais ampla do que suas partes físicas), corre o
risco de dar um remédio para o estômago e afetar os rins; para os rins e afetar o coração; para o
cérebro e afetar o funcionamento da mente; ou mesmo para todas as partes do corpo e afetar o
gosto de viver do doente.
Casos como esses revelam a possibilidade de pensar de maneira razoável em realidades universais
que, mesmo enraizadas nos elementos que as compõem, têm um sentido diferente e mais amplo do
que o sentido das partes ou da simples soma das partes (Ícone: Conteúdo tratado em outra página
p. 97).
Na crítica ao utilitarismo, a felicidade volta a ser concebida como algo universal e encarada como
maior do que a simples somatória dos prazeres e da ausência de dor. Dessa perspectiva, a frase bem
conhecida “Não existe felicidade, mas apenas momentos felizes” mostra-se problemática, pois reduz
a felicidade aos prazeres momentâneos. Ela é de fundo utilitarista e recebeu, no vocabulário
filosófico, o nome naturalismo: trata-se de uma visão que, ao conceber a felicidade, permanece no
nível das coisas cotidianas e das realidades físicas, imanentes ao mundo, sem nenhum caráter
transcendente (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 80 e 339).
Com efeito, o naturalismo adota como critério de pensamento a exigência de aceitar como
verdadeiro
Página 97
U m dos debates que mais recebeu atenção dos filósofos desde as origens da Filosofia (sobretudo
a partir dos séculos V a VI de nossa Era) até os nossos dias recebe o nome de problema dos
universais. Trata-se de investigar se os conceitos gerais existem por si mesmos, para além dos
indivíduos que eles designam (pelo menos, se eles podem ser pensados sem referência aos
indivíduos) ou se consistem em meras elaborações do pensamento para representar o conjunto dos
indivíduos (simples modos de falar deles).
Alguns filósofos contemporâneos dirão que esse tipo de preocupação é ilusória. Friedrich Nietzsche
(Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 172), por exemplo, no livro Crepúsculo dos ídolos, o vê
como resultado da ingenuidade de “crer na Gramática” (como se a vida seguisse regras universais
em vez de produzi-las). Outros filósofos considerarão que esse problema não é uma simples ilusão
nascida do uso da linguagem. Assim, o filósofo e sociólogo Herbert Marcuse (Ícone: Conteúdo
tratado em outra página p. 259), mesmo sem acreditar em regras ou essências, chega a afirmar, no
livro Homem unidimensional, que o problema dos universais está no núcleo mesmo do pensamento
filosófico, pois é a decisão a seu respeito que orienta o trabalho inteiro de cada pensador.
No caso de Herbert Marcuse, ele sabia que “realidades” como identidade, diferença, bem, além de
país, nação, lei e tantas outras, são construções históricas variáveis. Contudo, ele pergunta se não é
razoável defender que esses conceitos designam algo compreensível por si mesmo e mais amplo do
que os elementos designados por ele. Afinal, tais conceitos retratam experiências que os indivíduos,
tomados singularmente, não são capazes de originar.
BI, ADAGP, PARIS/SCALA, FLORENCE © PHOTOTHÈQUE R. MAGRITTE, MAGRITTE, RENÉ/ AUTVIS, BRASIL, 2016.
René Magritte (1898-1967), L’Apparition (A aparição), 1928, óleo sobre tela. Staatsgalerie Stuttgart
(Alemanha). Na tela de Magritte, o espectador se depara com formas universais que dão nomes a diferentes
conjuntos de coisas: horizon (horizonte), cheval (cavalo), fauteil (poltrona), fusil (fuzil), nuage (nuvem).
Eis o problema dos universais. No limite, ele consiste em procurar o sentido que atribuímos às
próprias realidades singulares: elas seriam totalmente distintas entre si ou revelariam
possibilidades comuns que as transcenderiam e as uniriam? Quando se pensa, por exemplo, em
gêneros e espécies de seres, o que permite unir tais seres em grupos? Uma simples convenção?
Características pertencentes a elas? Seria possível pensar os seres individuais como totalmente
diferentes e independentes entre si, como se uma gota d’água não tivesse nada em comum com
outra gota d’água? Mas, pensar em coisas singulares como totalmente diferentes seria possível?
Quando se fala de “coisa” e de “coisa singular”, já não se chegou a uma identidade que permite
diferenciá-las no modo de viver tal identidade? Seria possível pensar sem estabelecer relações de
identidade, alteridade e diferença (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 112)? Essas são
apenas algumas das questões que exemplificam o debate em torno da natureza dos conceitos gerais
(problema dos universais).
O problema dos universais remonta às origens da Filosofia, principalmente com Platão (Ícone:
Conteúdo tratado em outra página p. 82) e Aristóteles (p. 103). No seu livro Sofista, Platão revela-se
um afiado pensador da diferença, pois o que ele chama de identidade não é um ponto de partida
para sua filosofia, e sim o resultado do contraponto de diferenças. Contudo, foi na passagem do
século V ao VI de nossa Era que o problema foi formulado na maneira como o conhecemos. Ele se
deve ao trabalho do pensador romano Boécio (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 354),
que, ao comentar Platão e Aristóteles por meio da obra Isagoge, de Porfírio (séc. III), chama
declaradamente de gêneros e espécies os termos universais. Com base
Página 98
no comentário de Boécio e nos estudos de seu comentário feitos principalmente por Pedro
Abelardo e Guilherme de Ockham (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 96), o problema
chegou até os nossos dias com a seguinte formulação:
(1) eles existem em si mesmos (para além dos indivíduos)? Se sim, então:
(1.1) eles são corpóreos?;
(1.2) ou incorpóreos? Se são incorpóreos,
(1.2.1) eles estão unidos às coisas sensíveis?;
(1.2.2) ou são separados das coisas sensíveis?;
apenas aquilo que se observa fisicamente na Natureza. Os naturalistas dão, então, um último passo
e extraem uma regra geral, afirmando que “a felicidade é a soma dos prazeres físicos”. Ocorre,
porém, que esse passo é dificilmente justificável, uma vez que o mundo físico não fornece regras
gerais, apenas fatos particulares. Em outras palavras, só se observam acontecimentos particulares,
nunca regras gerais; então, regras gerais não podem ser comprovadas fisicamente, contrariando o
próprio pensamento naturalista. O naturalismo, assim, seria incompreensível para os próprios
naturalistas. Diante desse quadro, alguns filósofos procurarão falar da felicidade como algo que,
embora se manifeste na imanência do mundo físico, permanece transcendente a ele. Mesmo
presente na Natureza e com efeitos perceptíveis, a felicidade não parece reduzir-se apenas ao que é
observável fisicamente, mas superá-lo. Um exemplo desse tipo de tratamento é dado pelo filósofo
inglês George Edward Moore. No seu entender, a atitude naturalista erra ao basear-se apenas em
estados naturais, em particular, o prazer, para definir aquilo que causa satisfação (o Bem, segundo
Moore). Moore recupera, então, o modo antigo de falar do Bem como aquilo que produz satisfação
(sendo alvo do prazer, portanto) e que leva os humanos a valorizar certas coisas em detrimento de
outras. Ora, como os prazeres e a ausência de dor são coisas boas, entender o prazer e a ausência de
dor requer entender o que é o Bem.
Foi um filósofo francês, lógico e teólogo conhecido por formular a doutrina do conceitualismo: os
conceitos universais não são realidades em si mesmas, mas conceitos que existem na mente
humana como forma de referir-se às coisas. É um dos responsáveis pela concepção da consciência
individual como fonte do sentido ético de cada ação. Em sua obra História das minhas calamidades,
de 1131, Abelardo narra as dificuldades que viveu em decorrência de seu romance com Heloísa. Na
obra Lógica para principiantes, ele registra sua originalidade no tocante à compreensão do
conhecimento humano por meio de conceitos.
Foi um filósofo britânico que, ao lado de Bertrand Russell, exerceu uma significativa influência na
fundação da Filosofia Analítica no início do século XX. Moore é conhecido por sua atitude crítica e
questionadora da história da Filosofia, insistindo em técnicas de análise de afirmações do senso
comum e dos filósofos. Sua obra mais influente é Principia ethica (Princípios éticos), de 1903.
Para perceber esses momentos, releia o texto de Moore segundo a versão que vem na sequência,
obedecendo a ordem de cores: em primeiro lugar, o que
Página 99
está em fundo marrom-claro; em segundo, o que está em fundo rosa; em terceiro, o que está em
fundo cinza-escuro; em quarto, o que está em fundo cinza-claro; em quinto, o que está em fundo
azul-ciano. Observe que a conjunção porque está em vermelho, para mostrar que tipo de relação
Moore vê entre as duas frases que ele articula.
Se por Bem entendemos a qualidade que pertence a alguma coisa (como quando dizemos que uma
coisa é boa), então o Bem não pode ser definido (no sentido mais importante da palavra definição).
O sentido mais importante de definição está no fato de que uma definição declara quais são as
partes que invariavelmente compõem um todo. Nesse sentido, o Bem não tem definição, porque é
simples e não tem partes. Ele é um desses inúmeros conteúdos de pensamento impossíveis de
definir em si mesmos, pois são termos últimos com base nos quais todas as outras coisas definíveis
podem ser definidas. [...]
Consideremos o amarelo, por exemplo. Podemos tentar defini-lo, descrevendo seu equivalente
físico; podemos declarar quais vibrações luminosas precisam estimular o olho normal para que este
as perceba. Mas basta que elas brilhem por um momento para mostrar que suas vibrações
luminosas não são o que significamos quando falamos de amarelo. Elas não são o que nós
percebemos. Com efeito, nós nunca teríamos descoberto a existência delas se primeiro não
tivéssemos sido tocados pela explícita diferença de qualidade entre as diferentes cores. O máximo
que somos autorizados a dizer sobre essas vibrações é que elas são o que corresponde, no espaço,
ao amarelo que nós percebemos no ato de perceber. O erro presente nesse simples exemplo
costuma ser cometido quando se fala do Bem. Pode ser verdadeiro que todas as coisas que são boas
sejam também algo mais; mas isso só é verdadeiro tanto quanto é verdadeiro que todas as coisas
amarelas produzem um tipo de vibração na luz. E é um fato, na Ética, a tentativa de descobrir quais
são as outras propriedades que pertencem a todas as coisas que são boas. Mas muitos filósofos
pensaram que, ao indicar essas outras propriedades, definiam ao mesmo tempo o Bem; e que essas
outras propriedades, de fato, simplesmente não eram “outras”, mas absoluta e inteiramente o
mesmo que a Bondade.
Consideremos o amarelo, por exemplo. Podemos tentar defini-lo, descrevendo seu equivalente
físico; podemos declarar quais vibrações luminosas precisam estimular o olho normal para que este
as perceba. Mas basta que elas brilhem por um momento para mostrar que suas vibrações
luminosas não são o que significamos quando falamos de amarelo. Elas não são o que nós
percebemos. Com efeito, nós nunca teríamos descoberto a existência delas se primeiro não
tivéssemos sido tocados pela explícita diferença de qualidade entre as diferentes cores. O máximo
que somos autorizados a dizer sobre essas vibrações é que elas são o que corresponde, no espaço,
ao amarelo que nós percebemos no ato de perceber.
O erro presente nesse simples exemplo costuma ser cometido quando se fala do Bem. Pode ser
verdadeiro que todas as coisas que são boas sejam também algo mais; mas isso só é verdadeiro
tanto quanto é verdadeiro que todas as coisas amarelas produzem um tipo de vibração na luz. E é
um fato, na Ética, a tentativa de descobrir quais são as outras propriedades que pertencem a todas
as coisas que são boas. Mas muitos filósofos pensaram que, ao indicar essas outras propriedades,
definiam ao mesmo tempo o Bem; e que essas outras propriedades, de fato, simplesmente não eram
“outras”, mas absoluta e inteiramente o mesmo que a Bondade.
MOORE, George Edward. Principia ethica. Cambridge: Cambridge University Press, 1959. p. 9-10. (Princípios éticos. Tradução nossa.)
Página 100
Ao identificar cinco momentos do texto de Moore, observa-se que tais momentos não
correspondem à ordem temporal (tempo histórico) em que o autor escreveu seu texto, mas à
estrutura que ele adotou na articulação de suas ideias (tempo lógico). Observando as cores, você
pode constatar, por exemplo, que o primeiro momento lógico corresponde ao segundo momento
redacional e que a conclusão ou quinto momento lógico corresponde ao primeiro momento
redacional:
1º Momento (ponto de partida): Moore explica o que é uma definição, baseando-se no dado que,
quando definimos uma palavra, mostramos as partes ou as ideias que compõem essa palavra.
3º Momento: Moore dá um exemplo para ilustrar o contraponto e lembra que não temos como
definir o amarelo, pois não é possível analisá-lo (dividi-lo em partes).
5º Momento: o autor tira a conclusão de que, como o Bem serve para identificar as coisas boas, e
como ele não tem partes, não é possível defini-lo.
Aplicando a análise do Bem à análise dos prazeres e da ausência de dor, pode-se concluir, em
continuidade com Moore, que eles são bens particulares ou coisas boas, quer dizer, têm a qualidade
recebida do Bem (são valorizadas como manifestações do Bem). Por fim, chamando de felicidade o
conjunto de prazeres e a ausência de dor, pode-se concluir que a felicidade transcende os prazeres
e a ausência de dor, permanecendo como a fonte do sentido dessas experiências, assim como o Bem
transcende as coisas boas e é o que dá a bondade delas sem identificar-se totalmente com elas
mesmas. No limite, o Bem e a felicidade são o mesmo.
Essa análise permitirá a Moore rejeitar definitivamente a postura naturalista. No seu dizer, a frase
“O prazer é o Bem” só é compreensível se pensarmos que o prazer significa o gozo ou a satisfação
dos sentidos. A frase “O prazer é o Bem” poderia, então, ser trocada por “O gozo dos sentidos é o
Bem”.
Mas essa troca só seria justificável se a frase “O gozo dos sentidos é o Bem” fosse entendida como
“O gozo dos sentidos faz parte do Bem”, sem pretender que ela signifique “O Bem é o gozo dos
sentidos” (ou “O Bem é o conjunto dos gozos dos sentidos”), pois o Bem pode ser mais amplo do
que o gozo dos sentidos.
Imagine que alguém tome a frase “As árvores brasileiras fazem parte do Brasil” e a use para
concluir que “O Brasil é a soma das árvores brasileiras” ou “O Brasil é um conjunto de árvores”. É
evidente o equívoco desse raciocínio, pois o Brasil é muito mais do que suas árvores. Assim também
o equívoco utilitarista consiste em reduzir o Bem aos prazeres. Eles tomam uma tautologia (Ícone:
Conteúdo tratado em outra página p. 101) e a utilizam como forma de extrair uma conclusão não
garantida por essa tautologia.
REPRODUÇÃO/GALLERIA NAZIONALE D'ARTE MODERNA E COMTEMPORANEA, ROMA, ITÁLIA
Gustav Klimt (1862- 1918), Três idades da mulher, 1905, óleo sobre tela. Klimt, que era conhecido por sua
personalidade difícil, permite ver na imagem da criança no aconchego dos braços maternos um retrato das
bases da atividade de ser feliz: a confiança na existência (como a confiança em uma boa mãe) permite exercitar
a felicidade no momento presente, desfrutando dela, e preparar-se para o futuro.
Absoluto e relativo
Absoluto – algo que pode ser pensado por si só, sem precisar de nenhuma referência a outra coisa.
Exemplos: A justiça é o absoluto pelo qual se orientam nossas ações justas. Deus, se existe, deve ser
absoluto, pois todo o restante é relativo.
Relativo – algo que só pode ser pensado em referência a outra coisa. Por extensão, relativo é
também tudo o que depende do ponto de vista de quem o analisa. Exemplos:
O grau de bondade das coisas é relativo ao Bem. As opiniões são relativas a quem as pronuncia.
Página 101
P ara entender a tautologia, é preciso partir do fato de que certas frases podem ser verdadeiras
ou falsas; outras não podem ser consideradas verdadeiras nem falsas; enquanto outras, ainda, são
sempre verdadeiras.
Quando se diz, por exemplo, “Está chovendo!”, essa frase é verdadeira se realmente estiver
chovendo; ou é falsa se não estiver chovendo.
Porém, quando se diz “Seja um bom menino!”, essa frase não é verdadeira nem falsa, pois ela não
pretende retratar coisas do mundo; apenas dá um conselho.
Quando se diz, por fim, “Agora está chovendo ou não está chovendo”, essa frase, dita em seu
conjunto, é sempre verdadeira, pois a sua maneira de descrever a realidade é verdadeira em todas
as circunstâncias; afinal, segundo o que aprendemos com nossa experiência, só há duas
possibilidades: ou está chovendo ou não está chovendo. Enunciar essas duas possibilidades em uma
frase é enunciar algo sempre verdadeiro.
Frases como essa são tautologias, formulações bem-feitas para exprimir algo que já se sabe. O
pensamento, porém, não avança para novas conclusões; se ele avançar apenas com base em uma
tautologia, comete-se a falácia da tautologia (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 59).
Conta-se que um cantor, certa vez, disse à sua equipe: “Se não tivéssemos perdido uma hora e
quinze minutos com o atraso, já teríamos chegado há uma hora e quinze!”. Não fosse o nervosismo
do cantor, todos poderiam ter achado que ele queria provocar uma boa risada...
A análise do equívoco de converter a frase “O prazer é o Bem” em “O Bem é o prazer” mostra como
Moore preserva a identidade do Bem sem, no entanto, definir o Bem. A experiência humana
constata coisas que são boas, ou seja, qualificadas pelo Bem, mesmo que isso não signifique “ver” e
definir o Bem diretamente.
Trocando a palavra Bem por felicidade ou por bem supremo, pode-se dizer que, em continuidade
com o pensamento de Moore, a felicidade é o que qualifica os prazeres e a ausência de dor, dando-
lhes seu sentido. No entanto, ela é mais ampla do que a soma dos prazeres e da ausência de dor; é o
absoluto que atrai os seres humanos, movendo-os a buscar prazer e a evitar a dor em situações
particulares ou relativas (p. 100). Bem e felicidade seriam as duas faces da mesma moeda:
constituem o polo que magnetiza as ações humanas.
EXERCÍCIO B
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 440
4. Explique o que significa afirmar que Moore elabora uma filosofia da felicidade
transcendente.
3 A felicidade como atividade e plenitude
O modo geral de falar da felicidade revela a tendência de compreendê-la como um estado
psicológico (“sensação de bem-estar”) produzido pela posse de satisfações variadas. Muitos chegam
a pensar, aliás, que felicidade e alegria são equivalentes.
No entanto, a possibilidade de conceber um polo que atrai os seres humanos, movendo-os a buscá-
lo, abre caminho para entender a felicidade como atividade, e não como um estado. Trata-se de uma
forma de apontar para o caráter ativo na construção de uma vida feliz. Assim, mais do que uma
sensação de bem-estar, a felicidade consistiria em um modo de ser, a atividade de ser feliz.
Os epicuristas, por exemplo, chamaram atenção para a importância da prudência e concluíram que
a felicidade é a prática dessa virtude no uso dos prazeres. Eles retomavam, na verdade, o
pensamento de Aristóteles, que foi um dos primeiros a entender a felicidade como atividade. Ícone:
Texto filosófico
Observe que Aristóteles (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 103), nessa parte de seu livro
Ética nicomaqueia , define a felicidade como atividade segundo perfeita virtude. A compreensão da
5
Ícone: Glossário 5 O adjetivo nicomaqueia, presente no título de um dos livros de Aristóteles sobre Ética, refere-
se ao nome próprio Nicômaco, que pode ter sido o nome do filho de Aristóteles, a quem o filósofo teria dedicado
seu livro, ou um aluno que teria tomado anotações das aulas de Aristóteles sobre Ética, com base nas quais teria
surgido o livro.
Página 102
Aristóteles
A felicidade é certa atividade da alma segundo perfeita virtude. [...]
A parte não racional é dupla: a vegetativa em nada participa da razão, ao passo que a apetitiva e, 7
obediente, do modo como dizemos prestar atenção à razão do pai e dos amigos, mas não do modo
como dizemos ter razão na matemática. [...] Também a virtude é dividida segundo essa diferença,
pois dizemos que umas [virtudes] são intelectuais e outras, morais. [...] Sendo dupla a virtude – uma
intelectual, a outra moral –, a virtude intelectual tem gênese e aumento em grande parte pelo
10
ensino (por isso requer experiência e tempo), ao passo que a virtude moral resulta do hábito. [...]
Fica claro a partir disso que nenhuma virtude moral se engendra em nós por natureza, pois nada
11
do que existe por natureza habitua-se a ser diverso [do modo como é]. Por exemplo, a pedra, que
por natureza se move para baixo, não se habituaria a mover-se para cima, nem mesmo se alguém
tentasse habituá-la lançando-a milhares de vezes para cima; tampouco o fogo se habituaria a
mover-se para baixo, nem qualquer outro ser que é naturalmente de um modo se habituaria a ser
diferentemente. Por conseguinte, as virtudes não se engendram nem naturalmente nem contra a
natureza, mas, porque somos naturalmente aptos a recebê-las, aperfeiçoamo-nos pelo hábito. [...]
Os homens tornam-se construtores construindo casas e tornam-se citaristas tocando cítara. Assim 12
também, praticando atos justos, tornamo-nos justos; praticando atos temperantes, [tornamo-nos]
temperantes; praticando atos corajosos, corajosos. [...]
Ademais, é por meio das mesmas coisas que se engendra e se corrompe toda virtude, assim como a
arte: com efeito, do praticar a cítara surgem tanto os bons como os maus citaristas. Os construtores
e todos os demais artesãos analogamente: por construir bem, tornar-se-ão bons construtores; por
construir mal, maus construtores. Se não fosse assim, ninguém precisaria do mestre, mas todos
nasceriam bons ou maus. Assim também se passa com as virtudes: agindo nas transações entre os 13
homens, tornam-se uns justos; outros, injustos; agindo nas situações de perigo e habituando-se a
temer ou a ter confiança, tornam-se uns corajosos; outros, covardes. O mesmo ocorre no caso dos
apetites, assim como no das iras, pois se tornam uns temperantes e tolerantes; outros,
14
intemperantes e irascíveis , uns por persistirem a agir de um jeito nas mesmas situações, outros
15
ARISTÓTELES. Ethica Nicomachea I 13 – III 8: Tratado da virtude moral. Tradução Marco Zingano. São Paulo: Odysseus, 2008. p. 38-
42.
6 Acrático: quem não tem controle de si; quem, por falta de treinamento ético, não consegue resistir a um desejo.
7 Apetitivo: relativo ao apetite entendido como desejo, ímpeto para atingir um alvo.
13 Transação: negócio .
Para explicar a virtude, Aristóteles elabora uma concepção do ser humano como alguém dotado de
um corpo (sua constituição física) e uma alma (a dimensão da vitalidade que anima o corpo, da
capacidade de perceber as coisas por meio dos cinco sentidos, da
Página 103
Em outros trechos de sua obra, Aristóteles lembra que a boa ação é aquela que imita o exemplo da
pessoa prudente (considerada boa por sua comunidade). A felicidade, assim, relaciona-se
diretamente à prática da prudência. Ela é, portanto, uma atividade, e não algo que simplesmente se
“possui” ou se “sente”. Ser feliz, segundo Aristóteles, significa exercitar a felicidade; e, dessa
perspectiva, é mesmo possível ser feliz quando não se tem alegria ou outro estado imediato de
bem-estar. Trata-se de desenvolver as capacidades humanas do pensamento e da boa escolha,
principalmente pela prática da prudência.
Aristóteles enfatiza, assim, a qualidade que podemos imprimir em nossas vidas pelo modo como
cuidamos de nós mesmos, em vista da possibilidade de sermos sempre melhores em todos os
aspectos (físicos, afetivos, intelectuais e morais).
Em nossos dias, saber olhar para nós mesmos e refletir sobre a concepção de felicidade com que
operamos é um grande desafio. O excesso de trabalho e outras atividades, a corrida pela riqueza, a
sede do Poder, as relações humanas empobrecidas, as amizades superficiais, a pressa, o
consumismo e muitos outros fatores enchem-nos com preocupações que nos fazem desviar o olhar
de nós mesmos e considerar a felicidade como o sucesso em meio a essas mesmas preocupações. De
certo modo, vivemos em um naturalismo ético inquestionável; e a própria felicidade transformou-
se em uma obsessão, embora seu conteúdo seja tão pouco refletido.
Nós, que cruzamos as portas da Filosofia, temos, porém, condições de perguntar pelo que queremos
dizer quando falamos de felicidade.
JEAN JULLIEN
Ilustrações do jovem artista francês Jean Jullien para ironizar práticas contemporâneas que levam à solidão e
ao empobrecimento das relações de amizade, fundamentais para a felicidade. À esquerda: On Off (Ligado
desligado). Ao centro: For her (Para ela). À direita: Never Alone (Nunca sozinho). Técnica: impressão em jatos
de tinta.
Aristóteles (384 a.c.-322 a.c.)
Foi um filósofo grego nascido em Estagira, antiga cidade da Macedônia, hoje situada na Grécia. Foi
discípulo de Platão e formador de Alexandre da Macedônia. Em 335 a.C., fundou sua própria escola
em Atenas, o Liceu, adotando posições diferentes das de seu mestre Platão, principalmente no
tocante à Teoria das Ideias. Entre suas obras mais conhecidas estão a Ética nicomaqueia, a Física, o
De anima ou Tratado sobre a alma e Metafísica.
EXERCÍCIO C
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 441
EXERCÍCIOS COMPLEMENTARES
Acesse:
Leia, abaixo, a letra da música Ditadura da felicidade, da banda paraense Aeroplano, e reflita sobre o
modo como, em nossos dias, ao falar de felicidade, muitas pessoas não querem aceitar que o
sofrimento faz parte da existência. Você pode ouvir gratuitamente a canção no site:
<http://www.aeroplano. mus.br>. (Acesso em: 18 dez. 2015).
Acesse:
Ditadura da felicidade
Há várias semelhanças entre formas filosóficas gregas e formas de sabedorias orientais. Uma delas
está na relação que, em termos gregos, seria a relação entre prazer e prudência. No budismo, por
exemplo, enfatiza-se a busca de uma consciência de si que leve a dar aos prazeres o real valor que
eles têm. Pesquise sobre formas de sabedoria oriental (budismo, confucianismo, hinduísmo,
taoísmo etc.) e identifique semelhanças e diferenças entre elas e a filosofia grega no tocante ao tema
da felicidade. As páginas da Wikipédia referentes às tradições orientais são bastante razoáveis e
suficientes para a realização deste exercício.
Ícone: Dica de filmes Dicas de filmes para você assistir tendo em mente o que trabalhamos
neste capítulo
Acesse:
A felicidade não se compra (It’s a wonderful life), direção Frank Capra, EUA, 1946.
Clássico do cinema norte-americano centrado no tema da razão de viver. Em Bedford Falls, durante o Natal, a
personagem George Bailey pensa em suicidar-se, porque, mesmo tendo sempre ajudado a todos, entrou em
profundo desânimo ao ver os males provocados pelo poderoso Henry Potter, homem mais rico da região. Um
acontecimento extraordinário levará George a perguntar se sua vida não era feliz.
Era uma vez em Tóquio (Toquio monogatari), direção Yasujiro Ozu, Japão, 1953 (relançado em 2014).
Yasujiro Ozu é um dos mais importantes cineastas do século XX. Sua principal característica é captar a vida em
seu ritmo natural. Por isso, o filme Era uma vez em Tóquio é lento, diferente do excesso de
Página 105
movimento, cor e barulho de grande parte dos filmes a que estamos acostumados em geral. A narrativa é
profundamente comovente e faz o espectador pensar em que realmente consiste a felicidade. Trata-se da
história de um casal de idosos que viaja a Tóquio para visitar seus filhos. Os filhos, porém, recebem os pais com
indiferença, pois são ocupados demais com o trabalho e não têm tempo para os pais. Apenas a nora, que
perdeu o marido na guerra, dá um pouco de atenção aos dois idosos. A mãe fica doente e os filhos vão visitá-la
junto com a nora. Nesse momento, sentimentos complexos são revelados.
As neves do Kilimanjaro (Les neiges du Kilimandjaro), direção Robert Guédiguian, França, 2011.
O filme retrata um tema cotidiano bastante simples no centro das atenções: em geral, pensamos que uma vida
calma, bem-estruturada e sem problemas é considerada uma vida feliz; mas, como reagiríamos se algo
completamente inesperado acontecesse? A felicidade desapareceria? Diminuiria? Poderia transformar-se e
continuar? Michael, mesmo desempregado, leva uma vida feliz com sua esposa, Marie-Claire. Certo dia, os dois
são surpreendidos por um grupo de homens mascarados que roubam o dinheiro economizado para poder
conhecer o monte Kilimanjaro.
“Felicidade clandestina”, conto de Clarice Lispector publicado no livro que leva o mesmo título, Felicidade
clandestina, Rocco, 1998.
O conto narra uma história curiosa: uma garota sabe que um senhor possui um livro que lhe interessa e
manifesta seu desejo de lê-lo; a filha desse senhor, maldosa, propõe-se a emprestar o livro à menina, mas
sempre dá desculpas para não entrega-lo; finalmente ela entrega, mas então a menina, que finalmente tem o
livro em mãos, passa também a inventar desculpas para ficar mais tempo com ele. Com base nessa história
simples, Clarice Lispector explora com grande beleza o tema da felicidade e as razões pelas quais costumamos
dizer que “felicidade é boa, mas dura pouco”. A felicidade da menina parece clandestina, não legítima, quase
uma maldição, pois, preocupada se terá de devolver ou não o livro, ela quase se esquece de desfrutá-lo.
O mito de Sísifo, de Albert Camus, tradução Ari Roitman e Paulina Watch, Record, 2004.
O escritor francês Albert Camus publicou esse livro no ano de 1942, em plena Segunda Guerra Mundial,
período em que a vida, mais do que nunca, parecia absurda, com um aumento considerável do número de
suicídios. O horror da guerra fazia pensar que a vida é uma estupidez e que a racionalidade humana era uma
das coisas mais perversas da face da Terra. Camus retoma o mito grego em que Sísifo é punido pelos deuses e
condenado a empurrar sem cessar uma pedra até o alto de uma montanha, de onde ela tornava a rolar, fazendo
com que ele a empurrasse novamente. Se uma face do livro é o retrato do horror, a outra face está em sugerir
que o ato de viver talvez seja sua própria recompensa. No seu dinamismo próprio (e sem esperar dela o que
ela não pode dar), a vida pode ser razoável. Como dizia o filósofo japonês Shuzo Kuki (1888-1941), é preciso
imaginar Sísifo feliz. Em outras palavras, Sísifo encontrava sua felicidade no ato de cumprir o que podia e não
na significação dessa tarefa.
“A felicidade”, conto de Guy de Maupassant, publicado em Contos escolhidos, tradução Pedro Tamen, Dom
Quixote E-books, 2012.
Certa noite, virado para a ilha da Corsa e falando da felicidade, um velho senhor conta uma lembrança
particular que lhe ocorreu naquele momento: durante uma viagem à ilha, ele passou a noite na residência de
um casal de idosos; a mulher tinha sido rica antes do casamento e descreveu ao visitante a grande felicidade
que vivia ao lado de seu marido, um pobre oficial militar. O visitante se cala e pensa: “O que poderia eu dizer
diante de uma felicidade tão forte e tão simples?”
O Nome da Rosa, de Umberto Eco, tradução Aurora Bernardini Fornoni, Record, 2009.
Suspense em torno dos assassinatos cometidos em um mosteiro italiano medieval. O frade fransciscano
encontrava-se nesse mosteiro para um debate sobre heresias, mas acaba envolvendo-se com a investigação
dos assassinatos. O título do livro é uma referência a um exemplo que circulou na Idade Média para retratar o
problema dos universais, tendo sido usado especialmente por Pedro Abelardo: se todas as rosas do mundo
desaparecessem, os seres humanos continuariam capazes de pensar o que é uma rosa? O grande sucesso do
livro deu origem a uma versão cinematográfica, com o mesmo título e sob a direção de Jean-Jacques Annaud
(França, Itália e EUA, 1986).
Página 106
As virtudes morais, de Marco Zingano, WMF Martins Fontes, 2013 (Coleção Filosofias: o prazer do pensar).
O autor aborda o tema das virtudes morais, que é tão antigo quanto a própria Filosofia. Mas o faz de maneira
atualizada, pensando com elegância uma ética das virtudes diante dos impasses e propostas contemporâneas.
Altruísmo, amor e amizade também são estudados no livro, inclusive com exemplos do cinema.
A felicidade, de Mauricio Pagotto Marsola, WMF Martins Fontes, 2015 (Coleção Filosofias: o prazer do pensar).
Estudo baseado no pensamento antigo e em referências a filósofos modernos e contemporâneos, com uma
seleção de textos, atividades e dicas culturais.
A felicidade, desesperadamente, de André Comte-Sponville, tradução Eduardo Brandão, Martins Editora, 2015.
Revisitando autores clássicos, da Antiguidade aos tempos atuais, o autor concentra-se em três temas: por que
não somos felizes hoje ou as “armadilhas da esperança”; a crítica da esperança e a felicidade em ato; e sua
proposta de uma “sabedoria do desespero”, ou seja, uma sabedoria da felicidade, da ação e do amor.
A conquista da felicidade, de Bertrand Russell, tradução Luiz Cavalcanti de M. Guerra, Nova Fronteira, 2015.
O filósofo inglês oferece, neste livro, um conjunto de condições racionais que, no seu dizer, podem trazer uma
boa vida. Na contrapartida, reflete também filosoficamente sobre os obstáculos que costumamos criar à nossa
própria felicidade.
A felicidade paradoxal, de Gilles Lipovetsky, tradução Maria Lúcia Machado, Companhia das Letras, 2007.
No mundo atual, a busca por uma vida melhor tornou-se a verdadeira “religião” e é praticada pelo aumento
sempre progressivo do consumo de produtos e experiências. Curiosamente, porém, as pessoas se sentem
menos felizes...
A Filosofia e a felicidade, de Philippe van den Bosch, tradução Maria Ermantina Galvão, Martins Editora, 1998.
O autor escreve uma introdução à Filosofia por meio da questão da busca da felicidade e da consciência da
existência.
DISSERTAÇÃO DE PROBLEMATIZAÇÃO
Uma dissertação é uma redação que trata argumentativamente de um tema específico. Ela é
argumentativa porque justifica suas afirmações e negações com base em razões que os leitores
podem avaliar.
Por sua vez, uma dissertação de problematização procura tornar explícito(s) o(s) problema(s)
contido(s) em um tema ou em uma questão inicial. O tema ou a questão que podem ser
problematizados parecem, em geral, simples, mas contêm elementos que merecem ser refletidos
com mais atenção. Em outras palavras, merecem ser problematizados.
Trata-se de refletir sobre o que é defendido por uma afirmação ou por uma negação. É o momento
de recolher o maior número de dados possíveis contidos na tese.
Trata-se de procurar uma afirmação ou uma negação que sustente ideia(s) diferente(s) daquela
defendida na tese. Mas aqui deve haver um cuidado especial: a antítese não é uma tese
contraditória (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 210) em relação à primeira tese. Se a
tese e a antítese forem contraditórias, elas se excluirão.
Página 107
Nesse caso, não haverá problematização, mas uma relação de exclusão: ou a tese será verdadeira e a
antítese será falsa ou vice-versa. Por exemplo, não há o que problematizar entre duas frases como
“Todo ser humano quer ser feliz” e “Existe um ser humano que não quer ser feliz”, ou entre
“Nenhum ser humano é ave” e “Existe um ser humano ave”: uma dessas frases sempre será
verdadeira e a sua contradição sempre será falsa. No método dialético, a antítese deve trazer
elementos que permitam rever a tese, encontrando um modo de combinar-se com ela, sem a anular.
Trata-se de tentar compor uma conclusão que una elementos da tese com elementos da antítese,
mostrando que elas não se excluem, mas podem ser combinadas.
Em sua redação, você pode escrever três parágrafos, correspondentes aos três passos do método
dialético (tese, antítese, síntese). Esses três parágrafos podem corresponder ao que, em geral, se
chama de introdução, desenvolvimento e conclusão:
Introdução: exploração da tese. Você pode iniciar esse parágrafo com expressões como: É comum
observar a opinião segundo a qual..., Não é difícil encontrar quem pense que..., Muitos defendem
que...
Desenvolvimento: apresentação e exploração de uma antítese, mostrando como a tese pode ser
problematizada. Você pode iniciar esse parágrafo por uma das seguintes conjunções: Porém, Mas,
Contudo, Todavia, Entretanto, No entanto.
Conclusão: síntese que vale como uma recuperação da tese, combinando-a com elementos da
antítese. Você pode iniciar esse parágrafo com uma das seguintes conjunções e expressões: Assim,
Nesse sentido, Portanto, Tendo dito isso..., Com base nisso...
Com base na compreensão da felicidade como satisfação dos desejos, parece possível pensar que,
para ser feliz, é necessário satisfazer todos os desejos. Essa posição pressupõe que a felicidade só
existe se for plena. Ela não combinaria com nenhuma insatisfação. [TESE]
No entanto, observa-se que, na vida humana, é impossível satisfazer todos os desejos, pois muitos
deles não dependem dos próprios indivíduos. Por exemplo, pode-se desejar conhecer a Lua, mas
isso é praticamente irrealizável para os cidadãos comuns. Além disso, alguns desejos podem não ser
bons, tornando inconveniente buscar sua realização. Nada disso, porém, impede os indivíduos de
sentirem-se satisfeitos de modo geral, ainda que nem todos os seus desejos sejam atendidos.
[ANTÍTESE]
Assim, pode-se concluir que, embora a felicidade seja uma satisfação de desejos, é possível ser feliz
mesmo sem que todos os desejos sejam satisfeitos. A plenitude da felicidade não depende
necessariamente da plenitude de desejos realizados. [SÍNTESE]
CAPÍTULO 3 A AMIZADE
Pablo Picasso (1881- 1973), Duas mulheres correndo na praia (A corrida), 1922, guache. Museu Picasso Paris
(França). Chamam a atenção no quadro de Picasso o movimento e a vitalidade das duas amigas que correm na
praia. Os cabelos ao vento, as roupas soltas a ponto de mostrar os seios, o semblante alegre e as mãos dadas
retratam certa despreocupação, bem como o prazer da vida partilhada: cumplicidade, amor de amizade.
P ara refletir sobre a amizade, nada melhor do que dar a palavra a alguém que pode contar sobre
uma pessoa amiga. Vamos “ouvir” o que tem a dizer uma mulher muito especial: a escritora
brasileira Hilda Hilst (1930-2004), ao falar de sua amiga Lygia Fagundes Telles (1923-), também
escritora. Elas se conheceram em 1949, no salão de chá da antiga loja Mappin, em frente ao Teatro
Municipal de São Paulo. Hilda havia sido selecionada entre os estudantes da Faculdade de Direito
do Largo de São Francisco para saudar Lygia na ocasião do lançamento de seu livro de contos O
cacto vermelho.
Conheci Lygia quando eu tinha 19 anos e estava no segundo ano da Faculdade de Direito. Ela tinha
escrito um livro, O cacto vermelho, e fui escolhida para saudá-la. Então, teve um chá no Mappin, que
naquela época era deslumbrante. [...] Desde aí eu fiquei amiga demais da Lygia. [...]
Todo mundo fez tudo pra criar uma animosidade entre nós. Os nossos universos são parecidos,
1
mas se expressam de modos totalmente diferentes. Por exemplo, eu nunca entendi o que quer dizer
o ponto e vírgula. Eu perguntava pra Lygia; ela me explicava. Eu dizia: “Não entendo o ponto e
vírgula”. Tanto é que nunca na minha vida eu escrevi com ponto e vírgula. Nunca entendi. Acho uma
besteira. Pensava que não poderia escrever prosa porque não entendia o ponto e vírgula. Até que
depois de 20 anos eu resolvi escrever.
Eu falo tudo claro. A Lygia se encobre. Quando ela está comigo, por exemplo, a Lygia sozinha, ela é
ela. Mas ela tem um certo respeito pelo outro. Eu não tenho o menor respeito. Isto não é um defeito
da Lygia, é um defeito meu. Mas ela teve também uma vida muito mais difícil que a minha. O pai
dela era um jogador… Foi uma moça com a vida difícil. Eu sempre tive dinheiro e tal. Tudo isso é
complicado de dizer.
Nós não falamos sobre Literatura. É um assunto que nos irrita. Eu não falo porque gosto muito dela
e tenho uma amizade profunda, afetiva mesmo, por ela. A gente não conversa sobre Literatura. E
somos muito tristes, o tempo todo. [...] A gente tenta falar coisas agradáveis, mas não consegue. [...]
Ela sempre me disse que fica nua diante de mim. Eu também. Digo: “Lygia, eu estou péssima. Estou
doentíssima, acho que vou morrer, venha me ver, pelo amor de Deus!”. Quero demais morrer
segurando a mão da Lygia, porque sei que ela vai entender tudo nessa hora H. Ela vai dizer: “Hilda,
fica calma e tal, que é assim mesmo”. [...]
Ela é muito ativa, é uma mulher mais velha do que eu, mas muito mais ativa. Ela vai ao Rio de
Janeiro, corrige livros… Eu não quero corrigir livros nunca mais. [...]
Por ela, tenho uma coisa afetiva, doce, terna. [...] Eu compreendo o trabalho dela e ela compreende o
meu.
É uma coisa de pura ternura, de benquerença mesmo, que eu tenho pela Lygia. Eu sempre assusto a
Lygia, digo que estou morrendo pra ela aparecer aqui. Mas ela é uma mulher da cidade. Queria
muito que ela morasse perto de mim, me dando a mão naquela hora. Aqui é uma delícia . Agora, 2
tem os cachorros e tal. Quarenta no canil. Já pensou? A Lygia diz que é cachorreira, mas mora com
um gato. Ela quase não vem aqui. Às vezes até brigo com ela, de ciúmes da Nélida Piñon . [...] Ela faz 3
mais o estilo formal, social. Eu, de repente, arrebento tudo, quebro tudo, fica meio assustador,
porque a Lygia é muito discreta, sóbria. E a Nélida é mais arrumada. Não é que a Lygia gosta mais
da Nélida, mas é que ela dá mais certo com pessoas assim. Ela tem pavor de coisas escandalosas.
Mas a gente ri muito. Ela diz coisas incríveis. Um dia ligaram pra ela dizendo que um conhecido
nosso, meio distante, tinha acabado de morrer. Eu estava lá. Ela perguntou assim: “Mas, me diga
uma coisa, ele estava bem?”. Aí o cara disse: “Lygia, ele estava morto!”. Ela tinha distrações assim.
“Mas, como ele estava no caixão, ele estava bem?”. “Não, ele estava morto!”.
Aí eu tinha ataques de riso, porque não era isso que ela queria dizer, ela queria saber se ele estava
com uma parecença arrumada. [...] Ela quis saber se a parecença dele era normal ou de assustar.
4
Ela era distraída com essas coisas todas e eu ria muito. E outras coisas divertidíssimas. [...]
Eu sei que gosto muito dela, até o fim da vida eu vou gostar.
HILST, Hilda. Depoimento sobre Lygia Fagundes Telles. Cadernos de Literatura Brasileira: Instituto Moreira Salles, Rio de Janeiro;
São Paulo, v. 5, p. 22-23, 1998.
Ícone: Glossário 2 Hilda Hilst refere-se à chácara onde morava, perto de Campinas (SP), chamada Casa do Sol.
Algumas frases desse depoimento de Hilda Hilst são preciosas para refletir sobre o tema da
amizade.
Por exemplo, ao dizer que “Todo mundo faz tudo pra criar uma animosidade entre nós”, Hilda
aponta para a relação que pode continuar entre pessoas amigas mesmo quando surgem
dificuldades entre elas. A amizade pode ser “testada” e se fortalecer. Ao dizer essa frase, talvez
Hilda tivesse em mente alguns comentários feitos por críticos literários que viam uma diferença
enorme entre o seu estilo e o de Lygia Fagundes Telles. Se a escrita de Hilda era crua e chocava o
leitor, a de Lygia revelava equilíbrio e respeito: “Os nossos universos são parecidos, mas se
expressam de modos totalmente diferentes”. Nesse momento, a atenção dos leitores é despertada
para o tema da amizade: a diferença entre os estilos de Hilda e Lygia nunca as impediu de ter
universos semelhantes, quer dizer, de ver as coisas de maneira parecida.
Hilda rompe com padrões gramaticais cultos (o ponto e vírgula, por exemplo), enquanto Lygia os
respeita. Hilda fala tudo claro, a ponto de estudiosos a classificarem como escrachada e
pornográfica. Já Lygia se encobre, é discreta, não escreve de maneira chocante. Mas, quando as duas
estavam juntas, Lygia perdia o pudor, isto é, não se preocupava com a forma de dizer as coisas, com
as normas, mas era ela mesma, “nua”, porque confiava em Hilda e se sentia inteiramente à vontade
diante dela. Mais do que isso, Lygia sabia que Hilda a conhecia muito bem e que não precisava ser
discreta
Página 110
nem fazer rodeios diante dela. Isso não quer dizer que Hilda faltasse com o respeito, mas é verdade
que ela não fazia cerimônia e dizia tudo o que lhe vinha à cabeça. Quem conheceu Hilda Hilst
testemunha que ela era extremamente educada e fina, apesar de sempre dizer abertamente o que
pensava. Lygia mantinha certa distância das pessoas; Hilda não.
A relação entre Hilda e Lygia expõe o núcleo da experiência da amizade: os seres humanos têm
inúmeras diferenças de indivíduo para indivíduo; no entanto, são capazes de unir-se e de construir
juntos um novo sentido para sua existência.
Duas mulheres tão diferentes como Lygia e Hilda puderam unir-se em profundidade, partilhando
mesmo suas tristezas. Essa união levava a uma confiança intensa entre elas, a ponto de Hilda
sonhar em morrer segurando a mão de Lygia.
ambas.
As semelhanças mostram-se como o ponto de união dos amigos; e as diferenças contribuem para a
melhor percepção dessas semelhanças. Dessa perspectiva, amigos são pessoas que se amam porque
identificam pontos comuns entre si. Não se trata, obviamente, do amor erótico ou sexual, mas de
um amor praticamente familiar. Aliás, podemos até perguntar se há realmente amor entre os
membros de uma família quando não há amizade entre eles... É um amor que nasce quando as
semelhanças ficam claras e dão origem a uma relação de confiança. Como diz o ditado, nossos
amigos e amigas são “a família que escolhemos”.
Esse dado chamou a atenção de muitos filósofos. Para alguns deles, a amizade é como um “jogo de
espelhos”, pois as pessoas se veem refletidas nas outras e isso lhes agrada, uma vez que gostam de
seus aspectos positivos e têm prazer com eles. Assim, na presença dos amigos, as pessoas entram
em contato consigo mesmas.
Sem usar a expressão “jogo de espelhos”, o filósofo Marco Túlio Cícero (Ícone: Conteúdo tratado em
outra página p. 111) também entendia a pessoa amiga como um “outro eu”. Ícone: Texto filosófico
O amigo é outro eu
Todos amam a si mesmos não porque esperam uma recompensa do seu próprio amor, mas porque
são importantes para si mesmos; e a importância dada a si mesmo se conhece na amizade, quando
se encontra um verdadeiro amigo. O verdadeiro amigo é, então, um outro eu.
(porque o amor nasce junto com a vida, de modo que os animais procuram e desejam outros
animais do mesmo gênero, com os quais constituem grupos e se comportam com um desejo muito
parecido ao amor humano), quanto mais isso se dá na natureza do ser humano, que ama a si mesmo
e procura outro ser humano para unir suas almas de modo que elas se tornem como uma única
alma!
CÍCERO. De amicitia. Leipzig: Teubner, 1884. p. 48-49. (A amizade [Carta a Lélio]. Tradução nossa.)
O ponto de partida do raciocínio de Cícero para esclarecer o que é a amizade não se encontra
exatamente no começo do texto. O começo é uma afirmação para chamar a atenção dos leitores,
lembrando-lhes que as pessoas, em geral, consideram bom aquilo que traz algum proveito (linhas 1
a 3). Seguindo esse hábito, corre-se o risco de conceber a amizade apenas como uma relação
interesseira.
EVERETT COLLECTION/SHUTTERSTOCK.COM
A amizade é como um jogo de espelhos, pois nos vemos refletidos nos amigos e isso nos agrada.
Tal risco revela, no entanto, algo positivo de que Cícero não fala abertamente, mas que funciona
como pressuposto ou como premissa não explícita (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 44)
de seu raciocínio: os seres humanos são capazes de reconhecer o que é bom. A partir dessa base,
três momentos podem ser identificados no texto de Cícero:
Premissa A (pressuposto): os seres humanos são seres capazes de reconhecer o que é bom.
Premissa B (linhas 1-3): quem reconhece o que é bom pode “errar”, associando o bom apenas com o
proveitoso.
Conclusão 1 (não explícita): os seres humanos são seres que podem “errar”, associando o bom
apenas ao proveitoso.
Premissa C (linha 4): a amizade é desejada em si e por si (não em vista de algum proveito).
Conclusão 2 (linhas 3-5): quem escolhe amigos pelo critério do proveito não conhece a amizade
verdadeira.
Premissa D (linhas 6-7): todos os seres que são importantes para si mesmos amam a si mesmos (e
não um proveito que tiram de si mesmos).
Premissa E (linha 7): todos os seres humanos são importantes para si mesmos.
Conclusão 3 (linhas 6-7): portanto, todos os seres humanos amam a si mesmos.
Premissa F (linhas 7-9): o amigo é alguém que permite a outra pessoa conhecer a importância que
ela dá a si mesma.
Premissa G (pressuposto): o que se pensa de si mesmo é algo que somente a própria pessoa pode
saber.
Conclusão 4 (linhas 8-9): o amigo é alguém que possibilita à pessoa conhecer aquilo que ela pensa
sobre si mesma = o amigo é um outro eu (conclusão principal do raciocínio).
Se todo ser vivo animal é levado pela Natureza a amar a si mesmo e a procurar animais semelhantes
para viver em grupos, revelando um comportamento muito parecido com o dos seres humanos
(linhas 10-13), então há ainda mais razão para afirmar que os seres humanos (racionais e livres –
características pressupostas) buscam seus semelhantes para viver uma união de almas (linhas 13-
15).
Foi um filósofo, jurista, político, escritor e orador romano. É um dos introdutores da filosofia grega
em Roma e um dos principais responsáveis, junto com Sêneca e Boécio, pela criação de um
vocabulário filosófico em língua latina. Obras mais conhecidas: A República, As leis e A natureza dos
deuses.
O texto de Cícero é bastante claro ao concluir que quem encontra um verdadeiro amigo é alguém
que ama a si mesmo ao amar também o amigo. Isso, porém, não permite afirmar que quem ama a si
mesmo encontra necessariamente um amigo. Afinal, o amor de si mesmo pode ser vivido de
maneira inteiramente egoísta e centrado em si mesmo. Até em uma relação pode acontecer que
uma das pessoas não “veja” realmente a outra nem
Página 112
a ame, mas somente veja a si mesma e ame a si mesma, transformando a pessoa amiga em um
instrumento de seu amor egoísta, e não em alguém cujas semelhanças atraem em meio às
diferenças. Na atitude da amizade não autêntica, só as semelhanças interessam.
Identidade/Alteridade – Diferença/Semelhança
Identidade – característica específica de algo. Por extensão, é a relação de equivalência entre coisas
que têm exatamente as mesmas características. Exemplos:
A diferença entre os gêmeos idênticos está na separação de seus corpos e de suas personalidades.
Semelhança – relação que identifica pontos comuns em coisas não idênticas. Exemplos:
Apesar de a culinária do Sul ser diferente da culinária do Nordeste, elas são semelhantes no uso da
carne seca.
O amigo ou o “outro eu” não é um simples redobro da própria pessoa. Se fosse, a pessoa sequer
prestaria atenção nele, pois ele não lhe revelaria nada do que ela já não conhece. O amigo, ao
contrário, a revela a si mesma porque aquilo que ela é aparece mesclado com o que ela não é (as
diferenças).
Vendo, por exemplo, como a pessoa amiga reage a uma situação, somos levados a questionar sobre
o modo como também costumamos reagir a situações semelhantes. Talvez já estejamos
acostumados a ter a mesma reação, mas não damos atenção a ela. Se minha amiga ou meu amigo é
gentil com uma pessoa no ônibus, posso perceber que, em situações parecidas, também costumo
ser gentil ou reajo sem a menor gentileza. Essa vivência revela um lado meu ao qual, até então, eu
não tinha prestado atenção. A alteridade de minha amiga ou de meu amigo leva ao conhecimento da
identidade que construo para mim mesmo.
EXERCÍCIO A
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 445
1. O que significa dizer, do ponto de vista de Cícero, que o(a) amigo(a) é quem permite à pessoa
amar a si mesma?
2. Refaça o raciocínio que permitiu a Cícero concluir que o(a) amigo(a) é um outro eu.
4. Segundo o raciocínio ciceroniano, toda pessoa que ama a si mesma é alguém que encontra
necessariamente um(a) amigo(a)?
Aristóteles (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 103) foi um dos primeiros filósofos a
chamar atenção para essa maneira de conceber a amizade e influenciou significativamente o
pensamento de Cícero. Na Idade Média, ele continuou a ser a principal referência para pensar o
tema. Tomás
Página 113
A influência de Aristóteles na Idade Média não se exerceu, porém, como uma simples recepção. Os
filósofos medievais debatiam os dados recebidos e os comparavam com outras informações de sua
época. A atitude de debate explica por que, em sua reflexão, eles davam bastante importância às
formas de pensamento das quais eles mesmos discordavam. Tinham consciência de que o
pensamento, em grande medida, é construído por contraponto com ideias já defendidas por outros
pensadores. Além disso, o debate permitia-lhes testar suas próprias ideias, a fim de observar se elas
eram resistentes. A esse método de trabalho os medievais chamaram quaestio e disputatio
(“questão” e “debate”, em latim).
Especificamente quanto ao tema da amizade, Tomás de Aquino pergunta se o amor pode ser vivido
na forma da amizade e começa sua reflexão pela análise do pensamento que dava uma resposta
negativa a essa pergunta.
Tomás de Aquino
[Argumento contrário (objeção):] Parece que o amor não tem nada a ver com a amizade, [...], porque
[...] não há amizade sem reciprocidade , como diz Aristóteles. Ora, se Jesus diz “Amai vossos
7
inimigos” (Mateus, cap. 5, vers. 44), então deve haver amor até pelos inimigos, [caso em que não há
reciprocidade nem, portanto, amizade].
[Dado cultural contrário:] Mas, contra isso, está o que Jesus também diz em João 15: “Não vos
chamo servos, mas amigos”. Ora, Jesus disse essa frase por causa do seu amor [por nós]. Então, o
amor deve ser também uma forma de amizade.
[Posição de Tomás de Aquino:] Segundo o Filósofo , não é qualquer amor que significa amizade, mas
8
o amor com benevolência : amamos alguém com benevolência quando queremos o bem desse
9
alguém. Quando não buscamos o bem de alguém ou de alguma coisa que amamos, mas apenas o
bem que esse alguém ou essa coisa pode nos proporcionar, então não vivemos a amizade-amor. Por
exemplo, não temos o amor da amizade quando afirmamos “amar o vinho” ou “amar um cavalo” ou
qualquer outra coisa que amamos só pelo benefício que nos traz. Esse tipo de amor é o da
concupiscência ; e seria ridículo pensar que alguém tem amizade pelo vinho ou por um cavalo.
10
Porém, nem a própria benevolência basta para significar amizade, pois a amizade requer amor
mútuo: o amigo também é amigo de quem é seu amigo. Tal é a mútua benevolência que se
fundamenta sobre uma comunhão.
[Resposta ao argumento contrário inicial:] É preciso observar que se pode viver a amizade com
alguém de dois modos. Num primeiro modo, tem-se amizade com alguém diretamente por ele
mesmo: é a amizade do amigo. Mas, num outro modo, vive-se a amizade com alguém por causa de
outra pessoa; por exemplo, alguém que tem amizade com uma pessoa determinada também estima,
por causa dessa pessoa amiga, todos os outros que são ligados a ela, como seus filhos, seus
empregados ou quem quer que tenha vínculos com ela. Essa estima pode ser tão profunda que, por
causa da pessoa amiga, chega-se a amar aqueles que são ligados a ela, mesmo se eles nos ofendem
ou nos odeiam. É desse mesmo modo que a amizade é um amor que se estende mesmo aos
inimigos, aos quais estimamos por causa do amor que temos por Deus, pois é por ele que temos a
amizade-amor em primeiro lugar.
TOMÁS DE AQUINO. Summa theologiae. Roma: San Paolo, 1984. (Edição Leonina) (Suma teológica II-II, questão 23, artigo 1.
Tradução nossa.)
Tomás estrutura seu raciocínio da seguinte maneira: inicia pelo argumento contrário ao seu
(também conhecido como objeção); depois evoca um dado cultural que circulava em sua época e
contrariava o argumento contrário; na sequência, expõe sua própria reflexão; por fim, responde ao
argumento contrário com o qual começou.
Note que o problema inicial do qual parte Tomás de Aquino é montado de maneira simples e direta,
em cinco passos: (1) só há amizade se houver reciprocidade; (2) a Bíblia ensina que se deve amar os
inimigos; (3) mas inimigos não têm relação de reciprocidade com quem os ama (não correspondem
ao amor de quem os ama) e, justamente por isso, são o contrário dos amigos; (4) se é possível amar
sem ter amizade, então não há nenhuma relação entre amor e amizade; (5) mas, para contrariar
esse raciocínio, Tomás de Aquino lembra que a própria Bíblia diz que Jesus chama seus discípulos
de amigos (e não havia certeza absoluta de que seus discípulos correspondiam à sua amizade).
Jesus se considerava amigo deles porque os amava. Como Jesus representava para Tomás de
Aquino o modelo perfeito da vida humana, então o seu exemplo revelava a possibilidade de que a
amizade fosse pensada como uma forma de amor. Dada essa possibilidade, era preciso justificá-la
racionalmente (trabalho filosófico) e mostrar que a amizade pode ser entendida como amor.
A estratégia filosófica de Tomás de Aquino consistiu em observar que, além da reciprocidade (como
pensava Aristóteles), é a benevolência que caracteriza a amizade: é querer o bem da outra pessoa.
Esse querer o bem do outro é uma forma de amor; e o amor se tornará amizade quando ele for
correspondido, quando as duas pessoas amigas buscarem o bem uma da outra. Pode haver também
o amor de instrumentalização. Trata-se daquele que leva a amar algo em vista do bem que ele
proporciona. Essa forma de amor não é necessariamente ruim se não for dirigida a outro ser
humano (porque daí o transformaríamos em instrumento de nosso interesse e não o veríamos em
sua dignidade de ser humano), mas apenas às coisas de que o ser humano pode dispor em suas
11
Foi um filósofo francês nascido na Argélia. Seu pensamento teve grande repercussão na segunda
metade do século XX, principalmente pela criação do conceito de desconstrução (procedimento que
mostra como todo texto – seja oral, seja escrito – tem mais do que um único sentido inalterável). A
desconstrução, assim, não seria destruição, mas decomposição que descortina outros possíveis
significados. Obras mais conhecidas: Gramatologia (1967), Margens da Filosofia (1972) e A escritura
e a diferença (1978).
No entanto, embora Tomás de Aquino não afirme abertamente, permanece implícito em seu texto 12
que, se uma pessoa tem amor benevolente por alguém que não lhe corresponde,
Ícone: Glossário 11 Dignidade: característica do que tem valor pelo simples fato de existir, e não em função dos
resultados que produz.
há um sentimento de amizade por parte dessa pessoa. Do seu lado, vive-se a busca do bem de quem
ela ama, mesmo sem reciprocidade. Isso criaria uma contradição no texto de Tomás, pois ele afirma
que amizade é comunhão (amor recíproco). Como, então, seria possível pensar que uma pessoa
pode cultivar amizade por quem não deseja o seu bem?
Autorreferência
Nem toda autorreferência é negativa. Em Filosofia, Matemática, Linguística, Computação etc. alguns
conceitos são autorreferentes. Por exemplo, em Filosofia, os conceitos de consciência, existência, ser,
realidade, identidade etc. são tratados como autorreferentes por vários pensadores. É uma posição
discutível, embora se possa compreender que, por exemplo, é só tendo consciência que se entende
o que é a consciência; é só existindo que se pode entender o que é a existência; e assim por diante.
Um caso da Literatura é bastante ilustrativo aqui. O poeta francês Francis Ponge (1899-1988) inicia
o poema A fábula afirmando:
Pela palavra pela começa este texto cuja primeira linha diz a verdade
O filósofo Jacques Derrida (p. 114) comenta esses versos de Francis Ponge, declarando que a
expressão humana, por mais que tente remeter a coisas fora dela mesma a fim de justificar aquilo
que ela exprime, sempre procura trazer o interlocutor para dentro dela. Em outras palavras, o ato
de exprimir experiências (seja na Literatura, na Filosofia, na Matemática etc.) tenta trazer o seu
destinatário para dentro do seu discurso e espera dele o interesse por compreender a dinâmica
desse ato de expressão. No fundo, quem exprime algo espera sempre certa amizade de quem ouve.
Por isso, Derrida costumava afirmar que, no discurso, “a invenção se inventa inventando a narrativa
de sua invenção”. A expressão será sempre uma fábula, um evento da linguagem em que ocorrem, a
um só tempo, o mesmo e o outro.
REPRODUÇÃO/ BIBLIOTECA NACIONAL DA FRANÇA, PARIS
Teodoro Pelekanos (séc. XV), Serpente Ourobouros, séc. XV, iluminura em manuscrito. A serpente que devora a
própria cauda é tomada como símbolo de autorreferência.
A fim de resolver tal contradição, Tomás de Aquino lembra que é possível viver a amizade também
de maneira indireta, ou seja, amando alguém por causa do amor que se tem por uma
Página 116
terceira pessoa, uma pessoa conhecida em comum com quem não corresponde ao amor. No caso do
amor pelos inimigos, segundo Tomás, ele é possível aos que amam a Deus. Como Deus ama a todos
os seres humanos, quem o ama também pode amar até aqueles que não correspondem ao amor de
amizade.
A reflexão de Tomás fortalece, assim, a concepção aristotélica de amizade como atividade: para
viver a amizade, a pessoa deve trabalhar a si mesma e desenvolver a busca do bem de seus amigos.
A compreensão da amizade como algo que se pratica ou se constrói permite mesmo perguntar se o
amor cultivado pelos membros de uma família é autêntico quando não é o amor de amizade. Não
pode haver “amor instrumental” entre familiares?
Sim, pode! Para que haja amor de amizade, é necessário dar esse sentido a ele, o sentido da busca
recíproca do bem.
Hannah Arendt
Temos hoje o costume de ver a amizade apenas como um acontecimento da intimidade, na qual os
amigos abrem suas almas uns aos outros, sem levar em conta o mundo e suas exigências. [...] Fica
difícil, assim, compreender a importância política da amizade.
Quando lemos, por exemplo, em Aristóteles, que a philía ou o amor entre os cidadãos é uma das
13
condições fundamentais do bem-estar comum, temos a tendência de pensar que ele fala somente da
ausência de facções e de guerra civil no interior da Cidade. Mas, para os gregos, a essência da
14
amizade consistia no discurso. Para eles, somente um constante “falar em conjunto” unia os
cidadãos em uma pólis. Com o diálogo, manifesta-se a importância política da amizade e de sua
humanidade própria.
debatem constantemente sobre ele. Afinal, o mundo não é humano porque habitado por humanos,
assim como não fica humano só porque a voz humana nele ressoa, mas somente quando se torna
objeto de diálogo.
Por mais intensamente que as coisas do mundo nos afetem, por mais profundamente que elas
possam nos emocionar e nos estimular, elas só se tornam humanas para nós no momento em que
podemos debater sobre elas com nossos semelhantes. Tudo o que não pode ser tomado como
objeto de diálogo pode até ser sublime, horrível ou misterioso, pode até encontrar alguma voz
humana que o represente no mundo, mas não é verdadeiramente humano.
Nós humanizamos o que se passa no mundo e em nós quando falamos disso; e, nesse falar, nós
aprendemos a ser humanos.
ARENDT, Hannah. Vies politiques. Tradução Éric Adda et alii. Paris: Gallimard, 1974. p. 34-35. (Vidas políticas. Tradução nossa.)
13 Philía: também pode ser entendido como “amor entre amigos” ou simplesmente “amizade”.
em relações que só a ele mesmo interessam. Ora, olhar somente para si é algo que pode voltar-se
contra o próprio indivíduo, pois, sem “ver” os outros (sem percebê-los como indivíduos com quem
o mundo é construído em conjunto), o indivíduo não assume a responsabilidade que tem pelo seu
próprio mundo. Vive na ilusão de que, satisfazendo apenas suas necessidades particulares, poderá
ser feliz. O indivíduo, então, desumaniza-se, assim como o próprio mundo fica desumanizado, pois
se perde a consciência de que cabe ao ser humano dar um sentido propriamente humano às
pessoas, coisas, relações, emoções e assim por diante. As pessoas alienam-se, tornam-se separadas
(alienadas) de si mesmas.
A amizade, segundo Hannah Arendt, faz sair do labirinto da autorreferência ética, pois é uma
atividade cívica, típica da cidade, no sentido grego da pólis (p. 206). Ela tem, portanto, um sentido
político, uma vez que dá aos amigos a consciência de sua responsabilidade pela construção de si
mesmos e da cidade (pólis). Ícone: Texto filosófico
Hoje, porém, as pessoas vivem a amizade como um acontecimento da intimidade, quer dizer, da
vida particular, com sua busca de satisfação individual, sem prestar a devida atenção nas
consequências que essa prática traz para a vida de todos. Mas, por meio da reflexão filosófica,
muitas portas podem abrir-se a fim de ressignificar a amizade. Ao enfatizar o caráter político da
amizade, Hannah Arendt vai muito além da concepção de Política como atividade partidária: ela põe
em primeiro plano a possibilidade humana de dar forma ao mundo pelo discurso, essa atividade de
pensar o mundo e de falar sobre ele na inter-relação com os seres que assumem a responsabilidade
pelo sentido que lhe dão.
Se autores clássicos como Aristóteles, Cícero e Tomás de Aquino já haviam entendido a amizade
como atividade, a filósofa Hannah Arendt explica que tal atividade é aquela pela qual os seres
humanos se humanizam. Mais do que simplesmente hominizar-se (adquirir o aspecto humano físico
e psíquico), eles são chamados sobretudo a humanizar-se, a desenvolver suas possibilidades
tipicamente humanas: pensar, amar, escolher, construindo conscientemente a própria existência.
Foi uma filósofa alemã de origem judaica, bastante conhecida por suas reflexões em História da
Filosofia e em filosofia política. Investigou as bases da política moderna e da democracia
representativa, propondo alternativas por uma democracia direta. Graças a seu trabalho, surgiu o
conceito de totalitarismo (pensamento e prática que negam a autonomia dos indivíduos e das
sociedades, fortalecendo o poder de líderes e Estados que aparecem como únicos capazes de definir
o que é melhor para todos). Obras mais conhecidas: As origens do totalitarismo (1951), A condição
humana (1958), Da revolução (1963), A vida do espírito (1978).
EXERCÍCIO B
Ícone: Remissão ao Manual do Professorp. 445
1. Procure lembrar-se de alguma experiência vivida por você ou por alguém próximo, a fim de
confirmar que a amizade é uma atividade e um hábito que se constrói.
4. Como relacionar Política, discurso e amizade de acordo com o texto de Hannah Arendt?
5. Após ler o texto de Hannah Arendt, você considera correto afirmar que “o ser humano não
nasce humano, mas se humaniza”? Argumente.
EXERCÍCIOS COMPLEMENTARES
1 Recapitulação
Componha uma redação de síntese filosófica (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 138) para
apresentar as linhas de pensamento que estruturam este capítulo. Adote o seguinte título: “A
amizade como atividade”.
Sob a orientação de seu(sua) professor(a) de Filosofia, divida a classe em grupos de três ou mais
componentes. Cada grupo deve entrevistar os membros de outro grupo; e cada pessoa só pode ser
entrevistada uma vez. Eis as perguntas:
6. Você acredita que as redes sociais substituem a necessidade de encontrar as pessoas em carne e
osso?
Na sequência, cada grupo apresenta para a classe os resultados obtidos, mas sem dizer quem são os
autores das respostas. Apresentados os resultados, a palavra fica aberta para um diálogo amplo
sobre eles.
Ícone: Dica de filmes Dicas de filmes para você assistir tendo em mente o que trabalhamos
neste capítulo
Mário sofre de câncer, mas é cheio de vitalidade e sonha conhecer o deserto do Atacama, no Chile. Seu grande
amigo Eric decide levá-lo de carro, partindo de Recife e atravessando a Bolívia. Emocionante documentário em
que a amizade é o centro da narrativa, mas também a determinação e o aprendizado diante da morte.
Feliz Natal (Joyeux Noël), direção Christian Carion, Reino Unido/ França/Romênia/Bélgica/Alemanha, 2005.
É possível, ao menos por um momento, ser amigo do inimigo em nome de uma motivação comum? O filme
retrata uma história verídica, ocorrida no Natal de 1914, em plena Primeira Guerra Mundial. Nikolaus teve de
renunciar à sua carreira de tenor e deixar sua companheira Anna para lutar pela Alemanha em um front no
norte da França. O padre anglicano Palmer sai da Escócia rumo ao mesmo front, porque quis acompanhar seu
16
colega Jonathan. Também o tenente francês Audebert é convocado para lutar no mesmo lugar. Chega o Natal.
Cada um, em seu posto, recebe os presentes vindos de suas famílias. Mas algo completamente imprevisível
acontece.
O homem sem face (The Man Without a Face), direção Mel Gibson, EUA, 1993.
Justin McLeod é um antigo professor que vive sozinho e longe da cidade. Seu rosto é desfigurado por um
acidente de carro. Dez anos antes do acidente, ele havia sido condenado por homicídio culposo no caso de um
17
incêndio em que morreu um garoto. Correm suspeitas de que Justin é pedófilo. Ele decide isolar-se e diminuir
ao máximo o contato humano. Por sua vez, Charles, jovem atormentado pela separação dos pais, sonha em
entrar na Academia Militar e, depois de ser reprovado no primeiro exame, pede ajuda ao antigo professor
Justin.
17Homicídio culposo: caso em que uma pessoa mata outra sem ter a intenção de matar. Quando há intenção,
chama-se homicídio doloso.
Página 119
Tomates verdes fritos (Fried Green Tomatoes), direção Jon Avnet, EUA, 1991.
O filme apresenta um incrível cruzamento de histórias. Evelyn, dona de casa reprimida e deprimida, afoga suas
mágoas comendo doces, até conhecer Ninny, uma senhora de 83 anos que passa a morar na residência para
idosos onde vivia a tia do marido de Evelyn. Ninny encanta Evelyn com suas memórias repletas de vida, ação e
amizade.
Uma amizade sem fronteiras (Monsieur Ibrahim et les fleurs du Coran), direção François Dupeyron, França,
2003.
Ibrahim Denejii, muçulmano representado pelo grande ator Omar Sharif, é dono de uma pequena mercearia
em Paris. Quando Momo, um pobre garoto judeu de 13 anos, começa a frequentar a mercearia, uma amizade
tão improvável quanto sincera começa a nascer entre eles. Momo é abandonado pelo pai e Ibrahim decide
adotá-lo.
Dicas literárias
O pequeno príncipe, de Antoine de Saint- Exupéry, tradução Gabriel Perissé, Autêntica, 2015.
Obra-prima da literatura mundial. O tema da amizade é central e pode ser percebido em cada detalhe dos
diálogos do Pequeno Príncipe com a raposa.
O livro concentra-se na amizade dos componentes do grupo Os Karas. Relembrando-se de seus amigos ao ver
uma foto dos tempos da adolescência, Miguel pergunta-se como cada um deles tornou-se um Kara.
Capitães da areia, de Jorge Amado, Companhia das Letras, 2009.
Além da pobreza, do abandono e da vida completamente às margens das convenções sociais, o que haveria em
comum entre um grupo de meninos de rua como o esperto Pedro Bala, o devoto Pirulito, o enraivecido Sem-
Pernas, o malandro Gato e outros que viviam em um galpão abandonado na cidade de Salvador? Resposta
simples: a amizade, relação que lhes permitia sobreviver!
Coletânea de textos filosóficos sobre a amizade escritos por Platão, Aristóteles, Abelardo, Montaigne, Voltaire,
Kierkegaard, Nietzsche e Adorno, entre outros.
O amigo & O que é um dispositivo?, de Giorgio Agamben, tradução Vinícius Nicastro Honesko, Argos, 2014.
O texto O amigo, de Agamben, é uma reflexão sobre o modo como a amizade acompanha necessariamente a
vida humana, embora o mundo atual tenha criado tipos de vida em que relações como a de amizade foram
dissolvidas.
Os quatro amores, de C. S. Lewis, tradução Paulo Salles, WMF Martins Fontes, 2009.
O escritor C. S. Lewis, autor de As crônicas de Nárnia, distingue quatro amores: a Afeição, a Amizade, o amor-
Éros e o amor-Caridade, mostrando como todos eles se relacionam.
Em nosso modo cotidiano de pensar, associa-se muitas vezes a sexualidade apenas à atividade
sexual ou ao fato de as pessoas sentirem-se atraídas umas pelas outras, desejando unir-se
fisicamente.
No entanto, se observarmos com mais atenção, podemos perceber que a atração vivida entre as
pessoas nem sempre visa à união física, ou, então, visa a uma união física por meio da presença de
uma pessoa à outra, sem necessariamente haver relação sexual. Por exemplo, podemos sentir-nos
atraídos pelo modo de ser de alguém, suas características psicológicas, seu comportamento, seu
pensamento, sem que surja o desejo de um ato sexual.
Seria, então, necessário diferenciar dois tipos de atração? Ou seria possível pensar em uma única
atração, vivida em graus diferentes? Essas são apenas duas das perguntas que podemos fazer ao
procurar entender a sexualidade. Muitas outras surgem quando analisamos o modo geral como o
tema é tratado.
Por exemplo, circula com bastante frequência a ideia de que os seres humanos vivem a sexualidade
porque “são animais”; portanto, assim como ocorre com os outros animais, os humanos não
conseguiriam viver sem atividade sexual.
Algumas perguntas óbvias surgem, porém: não há pessoas que vivem e são felizes sem atividade
sexual? O que significa, então, sua “animalidade”? Se os animais, em sua maioria, desenvolvem a
atividade sexual em vista da reprodução; e se os humanos nem sempre praticam a atividade sexual
para reproduzir-se, por que, então, recorrer à “animalidade” humana para explicar a sexualidade?
Ou ainda, como associar a sexualidade apenas à atividade sexual (crendo que esse é
Página 121
Por outro lado, é inegável que, assim como ocorre com os animais, os seres humanos também
experimentam impulsos sexuais vindos de sua constituição física. Eles são tomados por esses
impulsos, embora possam interferir no modo de vivê-los. Podem segui-los completamente ou
podem controlá-los; podem escolher maneiras de segui-los e de dar novos sentidos a eles; podem
mesmo querer abafá-los.
Se já é difícil prever o que ocorrerá amanhã, mais difícil ainda é saber o que ocorrerá daqui a uma
semana.
Este filme é inadequado para uma criança de dez anos. Portanto, é também inadequado para uma de
seis anos.
Embora usado com muita frequência, o raciocínio a fortiori pode ser frágil e mesmo inválido. Para
ser válido, sua conclusão deve estar necessariamente contida em seus pontos de partida (suas
premissas). Declarar, por exemplo, “Se toda lei é uma convenção social, então toda convenção social
deve ser respeitada como lei” é um exagero, pois nem toda convenção social é lei. Basta pensar que
comemorar aniversários é uma convenção social, mas não tem força de lei.
Não há dúvida sobre o fato de que a fisiologia humana (o conjunto de funções orgânicas e processos
vitais) permite aos indivíduos obter satisfação por meio de seu aparelho reprodutor (os órgãos
sexuais). Nesse aspecto, os humanos têm tudo em comum com os outros animais.
No entanto, um dado de grande significação para refletir sobre a sexualidade está na diferença
entre o modo humano e o modo não humano de servir-se de seu aparelho reprodutor: os animais
não humanos, em sua maioria, acionam seu aparelho reprodutor apenas em vista da reprodução, ao
passo que os seres humanos podem acioná-lo para obter prazer, sem necessariamente pretender
reproduzir-se.
Mesmo entre as espécies não humanas há animais que podem servir-se de seu aparelho reprodutor
para obter satisfação, sem visar à reprodução. É o caso dos hominídeos (espécies animais
caracterizadas e nomeadas pela semelhança com os seres humanos: gorilas, chimpanzés e
orangotangos); e, mesmo entre aqueles que associam a atividade sexual com a reprodução, há os
que não a praticam de forma mecânica e repetitiva, como os golfinhos, por exemplo, conhecidos por
suas atividades de sedução e carinho. Assim, enquanto alguns animais reagem mecanicamente aos
estímulos, outros tornam mais sofisticada a maneira de obter satisfação com o sistema reprodutor.
Nos seres humanos isso se manifesta com mais clareza.
Não há dúvida de que o ser humano tem em comum com os outros animais a “animalidade” (o fato
de ser vivo, dispondo de um corpo dotado de diferentes capacidades). Todavia, o ser humano vive a
“animalidade” a seu modo, o modo propriamente humano em que a “animalidade” é unida à
racionalidade e à liberdade, e não de maneira idêntica aos animais irracionais. Aliás, sequer faz
sentido dizer que o modo de os animais viverem a “animalidade” é idêntico para todos eles.
Portanto, compreender a sexualidade humana em função do comportamento sexual dos animais
não humanos parece algo sem justificativa. Um raciocínio a fortiori legítimo levaria a afirmar que,
se mesmo entre os animais irracionais há alguns que vivem a prática sexual para além dos
interesses reprodutivos, tanto mais os humanos (dotados da capacidade de refletir e de escolher) a
separam da reprodução.
A filósofa judia-alemã Hannah Arendt (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 117) refletiu
sobre os equívocos da insistência em querer entender os seres humanos com base na observação
dos animais. Em seu livro Sobre a violência, Hannah Arendt estuda, como indica o título, o tema da
violência, mas oferece uma chave de compreensão preciosa para pensar, por analogia (Ícone:
Conteúdo tratado em outra página p. 48), a sexualidade humana em comparação com o
comportamento animal. Ícone: Texto filosófico
Hannah Arendt
Embora eu considere fascinante a maior parte do trabalho dos zoólogos, não consigo ver como se
pode aplicar esse trabalho ao nosso problema [da violência]. Para entender que o povo lutará por
seu espaço, só com muita dificuldade poderíamos falar do instinto de “territorialismo grupal” de
formigas, peixes e macacos; ou, para aprender que a superpopulação resulta em irritação e
agressividade, não precisaríamos de experiências com ratos. Um dia numa favela de uma grande
cidade já bastaria.
Fico espantada, e na maioria das vezes feliz, quando vejo que alguns animais comportam-se como
humanos, mas não entendo como isso poderia justificar ou condenar o comportamento humano.
Não consigo entender por que nos pedem para “reconhecer que o ser humano comporta-se
claramente como uma espécie grupal e territorialista”, em vez de dizer que são certas espécies
animais que se comportam claramente como os humanos. [...]
Por que nós, depois de termos libertado a psicologia animal de todos os antropomorfismos (se
conseguimos ou não, essa é outra questão), deveríamos agora tentar saber o quanto teromorfo é o 1
ser humano?
Além disso, se definimos que o ser humano faz parte do gênero animal, por que deveríamos pedir a
ele que adote padrões de comportamento de outras espécies animais? A resposta, infelizmente, é
simples: é mais fácil fazer experiências com animais [...]; não é bonito pôr seres humanos em jaulas.
ARENDT, Hannah. On violence. Nova York: Harcourt, Brage & World, 1969. p. 59-60. (Sobre a violência. Tradução nossa.)
Ícone: Glossário 1 Teromorfo: o que possui a forma de uma fera ou animal irracional de grande força.
Hannah Arendt, ao estudar a violência, problematiza uma ideia muito recorrente em sua época e
ainda nos dias de hoje: os seres humanos são violentos porque são animais que vivem em grupos e
defendem seu território.
No dizer de Hannah Arendt, porém, essa ideia é fabricada; não é um dado “natural”. Trata-se de
uma ideia ilegítima, pois entender os seres humanos como uma espécie dentro do gênero animal
não obriga a explicar totalmente a espécie humana apenas com base nas outras espécies animais.
Além disso, o pressuposto de que “animais violentos são em geral animais que vivem em grupos e
precisam de um território” é um pressuposto que se aplica a todos os animais incluídos no sujeito
(animais violentos), mas não se aplica a todos os animais incluídos no predicado (animais que
vivem em grupos e precisam de um território). Dito de outra maneira, se todos os animais violentos
são animais que vivem em grupo e precisam de
Página 123
um território, isso não quer dizer que todos os animais que vivem em grupo e precisam de um
território também são violentos. Pode ocorrer que haja animais que vivem em grupo e em um
território sem serem violentos.
O final do texto de Hannah Arendt permite ver até onde vai sua crítica à associação indevida entre
comportamentos humanos e comportamentos animais: os cientistas observam animais, pois é mais
fácil dominá-los, pondo-os em uma jaula. Muito mais difícil, porém, é observar seres humanos, pois,
além de não poderem ser postos em jaulas, eles têm a possibilidade de trapacear e iludir o
observador. Diante dessa dificuldade e da possibilidade do engano, alguns cientistas preferem
projetar nos seres humanos aquilo que observam nos animais. Essa prática, no entanto, é
claramente indevida para explicar tudo o que depende da liberdade humana. Ela é útil apenas para
aspectos fisiológicos.
Muitos cientistas, desde o século XIX, reagiram contra o costume de explicar os humanos com base
na observação de animais não humanos. Um deles foi o biólogo suíço Adolf Portmann (1897-1982),
cujo trabalho foi estudado por Hannah Arendt. No dizer de Portmann, observar semelhanças entre
o comportamento humano e o comportamento animal não preenche a lacuna entre o ser humano e
2
Hannah Arendt não esconde sua surpresa ao perguntar: se tantos pesquisadores já fizeram o difícil
trabalho de mostrar a incoerência de projetar características humanas nos animais
(antropormorfismos), então por que se deseja, agora, saber o quanto há de animal nos seres
humanos? No limite, é praticamente inevitável projetar características humanas nos animais e
“antropomorfizá-los”; afinal, só podemos falar do que conhecemos ao nosso modo, o modo humano.
Já o contrário é totalmente impossível. Nenhum humano é capaz de adotar o “ponto de vista
animal”, a fim de depois identificar a “animalidade” humana.
Essa prática (difícil de justificar) é, porém, muito comum, sobretudo da parte de quem defende uma
concepção mecanicista do ser humano (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 191 e 234). As
consequências se fazem sentir com clareza: na Medicina, por exemplo, há profissionais incapazes de
analisar os indivíduos em sua complexidade física, psíquica e intelectual; tratam as disfunções
sexuais como simples problemas físicos, com remédios para melhorar o funcionamento do aparelho
reprodutor e do cérebro. Ignoram, muitas vezes, os aspectos ligados ao desejo, ao pensamento, às
vivências sociais etc. “Tratar” a sexualidade passa a significar o “conserto” de uma das partes da
“máquina” humana.
O sucesso das imagens com animais “humanizados” se deve ao fato de que muitos comportamentos animais
lembram comportamentos humanos. Na verdade, como explica Hannah Arendt, interpretamos os animais com
base no que nós, humanos, vivenciamos.
EXERCÍCIO A
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 449
1. Explique por que é um raciocínio a fortiori não justificado dizer que, se o ser humano tem
uma base fisiológica semelhante à dos animais, então ele é levado a viver sua sexualidade
assim como os animais a vivem.
2. Mostre como Hannah Arendt serve-se da ideia de que os seres humanos lutam por espaço e
extrai afirmações sobre o que significa ser humano e ser animal.
3. Qual o significado do trabalho do biólogo suíço Adolf Portmann para o pensamento de Hannah
Arendt?
4. O que significa afirmar que o ser humano vive sua sexualidade como humano?
Página 124
2 A sexualidade e a Psicanálise
A percepção de que nada justifica a associação pura e simples entre o comportamento animal e a
sexualidade humana dá uma clara autonomia à reflexão filosófica perante as análises científicas.
Essa autonomia corresponde, na verdade, à liberdade da Filosofia diante das ciências, pois nada
leva a crer que os filósofos precisam simplesmente repetir o que dizem os cientistas apenas porque
esses são cientistas.
Não seria adequado, porém, concluir daí que a Filosofia não precisa ouvir os cientistas ou os
representantes dos outros saberes. Ela daria uma prova de irracionalidade se simplesmente os
ignorasse ou os contrariasse sem boas razões. Como reflexão crítica sobre o modo de pensar a
existência, a Filosofia mantém-se livre para analisar os procedimentos e as conclusões dos
diferentes saberes, ao mesmo tempo que se baseia neles e aceita seus resultados quando são bem
justificados.
A Psicanálise foi fundada por Sigmund Freud, médico austríaco de origem judia, que observava
como a personalidade dos indivíduos e grupos, formada pela história desses mesmos indivíduos e
grupos, pode ser fonte de saúde ou de falta de saúde. O corpo humano revela dimensões que vão
além da simples fisiologia, de modo que muitas dificuldades (doenças) podem ser tratadas por uma
atenção a tais dimensões, rumo a uma integração dos diferentes aspectos que compõem o ser
humano.
Especificamente falando da sexualidade, Freud logo percebeu que o prazer e a reprodução não
coincidem. De acordo com ele, é preciso até separar o conceito de “sexual” do conceito de “genital”,
pois o prazer sexual pode ser obtido por meio da estimulação de qualquer parte do corpo humano,
e não apenas dos órgãos genitais. Às vezes um aperto de mão ou um toque nos cabelos excita mais
do que a estimulação do aparelho reprodutor.
Freud contrariava não apenas a concepção científica que associava sexualidade e prazer genital,
mas principalmente a crença de que a sexualidade aparecia no ser humano apenas durante a
puberdade . Nesse ponto, a observação de Freud operou uma verdadeira revolução, pois ele
3
Ícone: Glossário 3 Puberdade: passagem da infância para a adolescência; ocorre, em geral, por volta dos 12
anos de idade.
Nasceu no território da atual República Checa, no seio de uma família judaica, e foi naturalizado
austríaco. Estudou Medicina e fundou a Psicanálise. Não foi propriamente um filósofo, apesar de
algumas de suas ideias terem influenciado um grande número de filósofos. Entre suas obras com
maior interesse filosófico estão: A interpretação dos sonhos, Além do princípio do prazer, O futuro de
uma ilusão e O mal-estar na civilização.
Com efeito, Freud iniciou seu trabalho como médico especialista do sistema nervoso (neurologista).
Entre seus pacientes, algumas mulheres eram diagnosticadas, na época, como portadoras de
neurose histérica, isto é, um grande sofrimento interior – da ordem da perturbação das ideias e das
emoções – que as pacientes manifestavam por meio de sintomas corporais, dramatizando a
expressão de suas emoções e chamando exageradamente a atenção com atitudes e gestos
desproporcionais; misturando a realidade com dados imaginários e não conseguindo distingui-los;
sentindo-se agredidas pelos outros mesmo quando não havia agressão; exagerando a importância
dos fatos etc.
Tais sintomas eram tratados, nos tempos de Freud, como meras perturbações neurológicas, quer
dizer, resultados de um mau funcionamento do sistema nervoso. Freud observava, porém, que
todas as suas pacientes classificadas como portadoras de neurose histérica diziam ter sido
seduzidas sexualmente quando crianças por alguém próximo a elas (o pai, a mãe, o avô, a babá ou
outra pessoa do círculo familiar) e que essa lembrança lhes causava sofrimento. Com
Página 125
base nessa queixa, Freud tentou entender a neurose histérica como o efeito da sedução sexual
vivida na infância. Ele se deu conta ainda de que algumas de suas pacientes não tinham sido
realmente seduzidas; elas viviam uma fantasia. Mas a fantasia não tornava menos forte o
sofrimento. Independentemente de a sedução ter acontecido ou não, havia a “lembrança” de uma
sedução sexual e isso levava a sofrer.
Pulsões, 2013, cena do espetáculo realizado pelo Centro Nacional das Artes do Circo, Châlon-en-Champagne
(França).
Freud conclui, então, que, se as pacientes tinham vivido a sedução realmente de maneira sexual ou
se tinham interpretado como sexual alguma outra atitude por parte dos adultos, isso mostrava que
elas viviam a sexualidade desde pequenas. Em vez de começar na puberdade, a sexualidade
caracterizaria o ser humano desde seu nascimento. Ela deixava, então, de ser entendida como
simples satisfação obtida com o estímulo dos órgãos genitais, despertada na puberdade, e passava a
ser concebida como modo humano de ser, em busca constante de satisfação e prazer, durante todas
as fases da existência.
Com o intuito de oferecer uma explicação científica da sexualidade, Freud descreve a busca de
satisfação e prazer em termos de pulsões ou impulsos que movem os indivíduos. Essa temática é
bastante complexa no conjunto das obras de Freud e os conceitos variam bastante. No entanto, é
possível resumi-la dizendo que, na fase intermediária de seu trabalho, Freud identifica a pulsão de
vida ou a tendência a conservar a existência e a dar vazão a tudo o que satisfaz, como a reprodução
da espécie, a realização de si, a melhoria dos comportamentos etc. Já na terceira fase de seu
pensamento, principalmente com a obra Além do princípio do prazer, de 1920, Freud contrapõe à
pulsão de vida a pulsão de morte ou o impulso de realizar completamente a busca de satisfação
pondo fim a ela e chegando a um repouso que só é possível na morte, a ausência de busca de
satisfação.
Por exemplo, a pulsão de vida leva a buscar alimento ou alguém que satisfaça amorosa e
sexualmente; já a pulsão de morte faz perceber, de algum modo, que esse alimento ou essa pessoa
representam uma ameaça e leva a defender-se contra eles, rejeitando-os (embora eles sejam
desejados). Em alguns casos considerados “anormais” ou “doentios”, a pulsão de morte ocorre
mesmo quando não há ameaça real e manifesta-se como tendência à autodestruição.
As pulsões não são visíveis em si mesmas, segundo Freud, nem mesmo conscientes. Elas só podem
ser identificadas pela atenção ao modo como o indivíduo tem pensamentos e emoções, bem como
ao seu modo de relacionar-se com os outros, com as atividades, com as coisas. São percebíveis,
portanto, pelos seus efeitos, o que revela, segundo Freud, que grande parte do que é o ser humano
permanece inconsciente. Essa “parte” inconsciente da vida individual, correspondente às pulsões, é
a “parte” dos desejos vividos pelo indivíduo. Ela fica inconsciente porque o indivíduo, em seu
desenvolvimento pessoal, é levado socialmente a reprimir seus desejos e a não vivê-los no modo
como eles aparecem, a fim de não perturbar a vida coletiva. No entanto, a repressão dos desejos não
os anula; apenas faz que eles sejam “esquecidos” ou permaneçam inconscientes. Como, porém, eles
não desaparecem (pois são formas da vitalidade mesma que habita cada indivíduo), terminam por
interferir no modo de viver do mesmo indivíduo, condicionando suas escolhas, suas emoções, seu
modo de agir, de pensar, de relacionar-se e assim por diante. Em casos graves (“doentios”), a
Psicanálise, segundo Freud, pode ajudar fazendo o indivíduo trazer à luz da consciência os motores
obscuros que o movem. Esse seria o primeiro passo para o indivíduo integrar de maneira
satisfatória tudo o que o compõe.
Essa interpretação leva Freud, então, a identificar no ser humano uma dimensão consciente (por ele
chamada de Ego ou Eu, experiência pela qual cada um pode sentir-se um indivíduo), uma dimensão
inconsciente (chamada de Isso ou Inconsciente) e uma dimensão de autocontrole, assimilada no
convívio familiar e social (chamada de Superego). O Inconsciente é chamado de Isso (ou Id, em
latim) porque é “isso”
Página 126
para o que se pode apenas apontar quando se observam seus efeitos, sem ser possível observá-lo
em si mesmo.
Cena do filme Hamlet, dirigido e protagonizado por Laurence Olivier, Inglaterra, 1948. A frase “Ser ou não ser:
eis a questão” (escrita por William Shakespeare, 1564-1616, autor da peça de teatro original Hamlet), seria, de
acordo com uma leitura psicanalítica, um dos melhores exemplos literários do equilíbrio produzido pela
oposição entre a pulsão de vida e a pulsão de morte.
A hipótese do Inconsciente é confirmada, segundo Freud, pelos sonhos humanos, pois eles ocorrem
justamente quando as pessoas estão relaxadas, ou seja, sem o controle social assumido pelo
Superego do indivíduo. Os desejos, então, manifestam-se livremente nos sonhos, sob a forma de
símbolos; e o conteúdo dos sonhos não significa exatamente aquilo que é sonhado, mas desejos
reprimidos. Aliás, muitas coisas que se manifestam nos sonhos estariam ligadas a desejos
reprimidos desde a infância, dado que reforça a concepção freudiana da sexualidade (ou a busca de
satisfação e prazer) como a condição da vida humana desde o nascimento.
Certamente um dos maiores interesses filosóficos pela teoria freudiana reside na possibilidade de
entender a sexualidade como vivência que, mesmo ligada à base fisiológica, não é determinada
inteiramente por ela, mas também pela interação social (familiar, cultural, histórica).
Interessa também, da perspectiva filosófica, notar que entre os praticantes da Psicanálise houve
diferenças consideráveis quanto à recepção da teoria freudiana. No limite, nenhum dos pensadores
psicanalistas discípulos de Freud apenas repetiu sua teoria; todos, ao escrever sobre os mesmos
assuntos do mestre, modificaram, complementaram, relativizaram ou mesmo abandonaram suas
explicações.
É importante ter consciência desse dado histórico, porque, em maior ou menor grau, diferentes
setores da reflexão humana adotaram a crença de que a Psicanálise teria pronunciado uma palavra
definitiva para compreender o ser humano. Ao dar-se conta de que mesmo as interpretações
psicanalíticas são relativas, a Filosofia conserva sua autonomia na compreensão da sexualidade.
O pediatra e psicanalista inglês Donald Winnicott (1896-1971) é um bom exemplo para conhecer
algumas diferenças consagradas no interior da Psicanálise. Especificamente no tocante à
compreensão da sexualidade, Winnicott manteve-se na linha aberta por Freud, mas chegou a
conclusões bastante distintas.
Winnicott preferia, como ele costumava dizer, uma concepção da vida humana baseada em critérios
“mais empíricos”, ou seja, baseados com mais clareza sobre fatos observáveis, evitando-se
interpretações que não pudessem ser comprovadas.
O próprio Freud, aliás, tinha consciência de que, em grande parte, sua teoria escapava ao rigor que a
concepção atual de ciência pretende. Seria muito difícil, por exemplo, querer provar a existência das
pulsões do mesmo modo como se prova a existência da força da gravidade. Isso não impede, porém,
de apresentar bons argumentos para aceitar a existência delas, principalmente recorrendo àquilo
que se interpreta como seus efeitos. Ademais, muito do que as ciências chamam de prova
corresponde, no limite, a interpretações da realidade, e não a constatações objetivas. Não é por
acaso que Freud ironizava, declarando no texto Novas conferências sobre a Psicanálise, de 1932, que
“a teoria das pulsões é a nossa mitologia”. Mitos não são meras fantasias, mas expressões
simbólicas de certezas adquiridas no cotidiano. Chamar a Psicanálise de mitologia significa ter
consciência de que o seu modo de proceder não “prova” suas interpretações ao modo da Física, da
Química etc., embora “prove” pelos efeitos observáveis na vida dos pacientes.
Donald Winnicott, por sua vez, ainda identificava uma lacuna quando Freud passava dos efeitos
observados na vida humana (as tendências a conservar a existência e a limitar a busca de
satisfação) à afirmação de pulsões interpretadas como “vida” e “morte” e concentradas no prazer
sexual. Baseando-se em sua experiência cotidiana com famílias (pois ele era pediatra), Winnicott
considerava mais defensável afirmar que, em vez da sexualidade, o motor da existência humana é a
4
e de interesse bondoso entre as pessoas. Essa necessidade é vivida em grau máximo pelas crianças,
mas também por jovens, adultos e idosos. Se os indivíduos mostram-se mais satisfeitos quando
vivem em comunicação e quando são respeitados em sua maneira única de ser, então parece mais
adequado, segundo Winnicott, considerar como motor da vida a busca de satisfazer a necessidade
de cuidado.
Winnicottt, no livro Natureza humana, esclarece que as crianças “saudáveis”, ou seja, crianças que
recebem o cuidado bondoso de que necessitam ou as boas condições para desenvolver-se, não
viveriam seu processo de amadurecimento de modo necessariamente sexual. É apenas quando elas
são privadas de cuidado ou sofrem de uma dificuldade de relação que elas vivem de modo sexual o
seu processo de crescimento. Assim, mesmo valorizando aquilo que Freud chamava de sexualidade
infantil, Winnicott defendia que o pai da Psicanálise poderia ter reservado essa expressão para falar
de um processo de sofrimento nas crianças, sem generalizá-lo como um modo de ser de todas elas.
A sexualidade, na vida infantil “saudável”, corresponde às possibilidades de desenvolvimento
inscritas na criança; ela é ativada com sentido sexual apenas em condições que não a respeitam
exatamente como criança.
Winnicott reconhecia instintos ou solicitações da natureza física, mas não via razões para
interpretá-los como uma busca de prazer por meio de escolhas sexuais. Na observação de
Winnicott, tais instintos não se manifestam de forma sexual nas crianças, pois até a idade de quatro
ou cinco anos, as crianças não têm ainda uma identidade sexual fixamente definida, uma vez que,
até essa idade, elas sequer se entendem como indivíduos ou como seres dotados de uma identidade
própria (alguém que pode dizer “eu”).
Com efeito, Winnicott constatava que até os quatro ou cinco anos, as crianças vivem em fusão com
5
suas “mães” (a mãe biológica ou outra pessoa que a acolhe e lhe oferece um cuidado bondoso total).
A criança pequena e a “mãe” são, então, uma só realidade; a “mãe” é a continuação da criança. A
separação de ambas inicia quando a criança passa a exercer sua imaginação e a associar-se com
outros elementos do seu ambiente acolhedor, começando a operar com relações que a levam a se
distinguir como um polo em meio a outros. Aprender a dizer “eu” (não como mera repetição da
palavra, mas como consciência de uma diferença individual) é, assim, um processo longo e delicado,
pois requer, por um lado, o acolhimento respeitoso praticado pela “mãe” ou pelo “ambiente”, e, por
outro lado, a necessidade de, aos poucos, “contrariar” a criança, mostrando-lhe, com bondade, que
ela se distingue dos outros e terá futuramente a responsabilidade de também respeitá-los.
Por sua vez, a orientação sexual da criança também é formada no processo de diferenciação que a
fez surgir como “eu” e por uma identificação com a pessoa boa que dela cuida. O aparecimento do
sentido sexual da vida é, portanto, demorado e não acompanha a criança desde seu nascimento.
Somente quando há dificuldades e sofrimentos é que a criança pequena vive em sentido sexual suas
relações com o ambiente.
Winnicott tem uma expressão curiosa para falar do dinamismo de formação da criança como
indivíduo, pois faz um trocadilho com a frase Penso, logo existo, do filósofo René Descartes (p. 191).
6
O lema de Winnicott era: Vejo que sou visto, logo existo. Ícone: Texto filosófico
Donald Winnicott
Quando eu vejo que sou visto, então existo.
WINNICOTT, Donald. The Mirrorrole of Mother and Familiy in Child’s Development. In: LOMAS, P. (Ed.). The Predicament of the
Family: a Psychoanalytical Symposium. Londres: Logan & Institute of Psycho-Analysis, 1967. p. 114. (A função de espelho exercida
pela mãe e pela família no desenvolvimento da criança. Tradução nossa.)
Winnicott desloca, então, a sexualidade do centro da existência humana e a situa como um de seus
aspectos. Embora central, a sexualidade não é o que estrutura a vida dos indivíduos, mas a
necessidade do encontro cuidadoso e bondoso entre pessoas.
EXERCÍCIO B
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 449
1. Descreva a observação que permitiu a Freud concluir pela vivência da sexualidade desde a
infância.
2. Quais as duas pulsões que, segundo Freud, seriam básicas no ser humano? Explique-as.
3 A força vital
Da parte dos filósofos, a reação à Psicanálise é bastante diversificada. Para uns, ela é a melhor
explicação do ser humano; para outros, ela é racionalmente frágil.
Um dos melhores exemplos desse trabalho vem do filósofo Maurice Merleau-Ponty. Ícone: Texto
filosófico
(1) Nas linhas 1-4, o autor afirma que as conclusões da Psicanálise são ambíguas, pois, de um lado,
elas declaram que a vida tem uma infraestrutura sexual (a sexualidade, portanto, seria um
dispositivo a serviço da vida); de outro, elas afirmam que a sexualidade integra a existência (como
se a existência ou a vida humana estivessem a serviço da sexualidade ou fossem iguais à
sexualidade).
(2) Para entender a sexualidade e ver se a ambiguidade psicanalítica pode ser resolvida, Merleau-
Ponty analisa a possibilidade de que a sexualidade seja o modo humano de existir no mundo tanto
da perspectiva do pertencimento ao mundo físico como da perspectiva das relações com outros
seres humanos.
(3) Nas linhas 5-8, o autor pergunta: (a) a existência inteira tem uma significação sexual?; (b) ou
todo fenômeno sexual tem uma significação existencial?
Anônimo, Gypsy girl from Zeugma (A jovem cigana de Zeugma), séc. V (aprox.), mosaico. Como em um mosaico
– que é composto de muitas e diferentes peças, formando uma imagem única –, a força vital é entendida como
um princípio que dá unidade aos diversos aspectos que compõem cada ser humano.
Página 129
Maurice Merleau-Ponty
A Psicanálise representa um duplo movimento de pensamento: por um lado, ela insiste na
infraestrutura sexual da vida; por outro, ela “incha” a noção de sexualidade a ponto de integrar a ela
toda a existência. Justamente por essa razão, suas conclusões permanecem ambíguas . 7
[Perguntamos:] Quando se generaliza a noção de sexualidade e se faz dela uma maneira de ser no
mundo físico e inter-humano, quer-se dizer que a existência inteira tem uma significação sexual ou
que todo fenômeno sexual tem uma significação existencial?
8
Na primeira hipótese, a existência seria uma abstração , um outro nome para designar a vida sexual.
9
Mas, como a vida sexual não pode mais ser circunscrita e como ela não é mais uma função
10
separada e definível pela causalidade própria a um aparelho orgânico, não há mais nenhum sentido
em dizer que a existência inteira se compreende pela vida sexual; ou, antes, essa proposição torna-
se uma tautologia . 11
Seria preciso dizer então, inversamente, que o fenômeno sexual é apenas uma expressão de nossa
maneira geral de projetar nosso ambiente? Mas a vida sexual não é um simples reflexo da
existência: uma vida eficaz, na ordem política e ideológica, por exemplo, pode acompanhar-se de
uma sexualidade deteriorada ; e ela pode até mesmo beneficiar-se dessa deterioração.
12
Inversamente, a vida sexual pode ter, em Casanova, por exemplo, um tipo de perfeição técnica que
não corresponde a um vigor particular do ser no mundo. Mesmo se o aparelho sexual é atravessado
pela corrente geral da vida, ele pode confiscá-la em seu benefício.
A vida se particulariza em correntes separadas. Ou as palavras não têm nenhum sentido, ou então a
vida sexual designa um setor de nossa vida que tem relações particulares com a existência do sexo.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Tradução Carlos Alberto R. Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p.
219-220.
Ícone: Glossário 7 Ambíguo: que tem vários sentidos, não permitindo saber com precisão o significado mais
adequado.
8Fenômeno: aquilo de que se tem consciência; aquilo que é percebido (literalmente: que “se mostra”). Por
exemplo, a cor do caderno é um fenômeno (vê-se a cor; tem-se consciência dela); o próprio caderno é um
fenômeno; a alegria é um fenômeno (sente-se a alegria; temse consciência dela); a fome é um fenômeno; a tristeza
etc.
9Abstração: algo que é destacado de um conjunto por nosso ato mental, mas que na realidade não existe
separadamente do conjunto. Também tem a conotação de uma ideia forçada ou de um nome mais ou menos
artificial para falar de algo concreto.
10 Circunscrito: aquilo que é delimitado; algo cujos limites são bem identificados.
12 Deteriorado: o que é de má qualidade; pode ser também o que é estragado, corrompido; atrofiado.
(4) Na hipótese (a), a existência ou a vida humana inteira (nosso pertencimento ao mundo e nossas
relações) seria sexual, quer dizer, teria um significado sexual. Porém:
4.1. Nas linhas 9-14, o autor mostra a incoerência dessa hipótese: só poderíamos dizer que a vida
humana inteira é sexual se conseguíssemos definir o que é o sexual; afinal, é só sabendo o que
significa o sexual que se pode atribuí-lo como um predicado à vida humana inteira.
4.2. Mas, na tentativa de definir o que é o sexual, como lembra Merleau-Ponty nas linhas 11-12, a
própria Psicanálise já reconheceu que ele não corresponde ao aparelho orgânico (corresponderia à
vida inteira dos indivíduos).
4.3. Se for assim, a vida humana inteira ou a existência serão sinônimas de algo sexual (linhas 9-10).
“Vida humana” ou “existência” seriam, então, uma abstração, uma tentativa intelectual de separar
coisas que não existem separadamente: falar-se-ia da existência ou da vida humana, separando-as
da sexualidade, apenas para entendê-las melhor, porque, na realidade, elas seriam a sexualidade.
4.4. No entanto, dizer isso significa construir um pensamento inadequado, porque não explica o que
buscava explicar, quer dizer, o que é a vida humana. Se a vida humana
Página 130
é a sexualidade, então a frase “A vida humana é sexual” equivaleria à frase “O sexual é sexual”.
Trata-se de uma tautologia (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 101); não se define o que é
o sexual ou a sexualidade, mas apenas se diz que o sexual é a vida e que a vida é o sexual (linhas 13-
14). Assim, segundo os critérios da própria Psicanálise, insistir que a vida humana inteira é sexual
equivale a não explicar o que é a vida humana.
(5) Resta a hipótese (b), segundo a qual todo fenômeno sexual tem uma significação existencial
(linhas 15-24), quer dizer, todo fenômeno sexual seria apenas uma expressão de nossa maneira
geral de projetar nosso ambiente (linhas 15-17). Em outras palavras, nossa sexualidade seria a
expressão de nossa maneira geral de existir; o sexual seria um reflexo de nosso modo de existir;
5.1. Nas linhas 17-24, porém, Merleau-Ponty procura mostrar que a vida sexual das pessoas nem
sempre reflete a vida geral delas. Ele fornece dois exemplos. Exemplo 1: uma pessoa pode ter uma
vida política eficaz e uma vida sexual deteriorada; exemplo 2: alguém pode ter uma atividade sexual
intensa, mas uma vida geral sem vigor especial, como teria sido o caso de Giacomo Casanova (Ícone:
Conteúdo tratado em outra página p. 131). Mesmo que a corrente geral da vida perpasse o aparelho
sexual, esse aparelho pode confiscar a corrente geral e usá-la em seu próprio benefício,
13
diminuindo o vigor dos outros aspectos da existência; e vice-versa, o sexual pode desenvolver-se
menos, sem prejuízo para os outros aspectos da existência.
(6) Nas linhas 25-27, Merleau-Ponty tira sua conclusão: a vida se particulariza em correntes
separadas. É mais coerente, portanto, entender a vida como um grande fluxo composto de várias
correntes; caso contrário, as palavras que usamos para exprimir a vida não têm sentido. Assim, a
sexualidade ou a vida sexual seria apenas um setor da vida humana, com relações claras com o
sexo; mas a sexualidade não seria “toda” a vida.
No texto de Merleau-Ponty, pode-se observar como ele emprega a expressão corrente geral da vida.
A existência humana, individual e social, seria como o fluxo de um rio, composto de muitos
elementos e diferentes correntes. A imagem do fluxo constante é muito usada em Filosofia e tem em
Heráclito de Éfeso e Edmund Husserl (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 353) dois dos
autores que mais a valorizaram. O grande rio da vida tem várias correntes: as sensações, as
emoções, os sentimentos, o pensamento, as relações com as coisas e as pessoas etc. A sexualidade
seria uma das correntes que compõem o rio da vida; e não o rio inteiro.
A filósofa judia-alemã Edith Stein (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 132) preferia
chamar a corrente da vida de força vital, pois, assim como empregada na Física, a ideia de força
designa uma interação entre duas coisas. A força resulta da ação de um objeto sobre outro.
Costuma-se dizer que, no mundo físico, a força é mecânica: ocorrendo as condições de influência
(força) entre os corpos, então os resultados dessa influência acontecem automaticamente.
Foi um filósofo pré-socrático grego, natural da região da Jônia (no oeste da atual Turquia). Heráclito
recebeu o apelido de “o obscuro” pelo estilo de sua escrita em frases curtas e enigmáticas. De sua
obra Sobre a Natureza só restaram fragmentos, citados por autores posteriores. Entendia a
Natureza como um constante fluxo de transformação, o devir, dado pela oposição e pela luta dos
contrários.
Página 131
G iacomo Girolamo Casanova (1725-1798) nasceu em Veneza e ficou conhecido como grande
sedutor e desafiador das práticas sociais. Filho de atores, Casanova entrou na carreira religiosa,
mas logo a abandonou em troca de uma vida de aventuras. Convencido de que mesmo o melhor
lugar do mundo sempre decepciona quando nos instalamos, Casanova percorreu a Europa e viveu
como tocador de violino, mágico, bibliotecário, contador, além de fazer grandes trapaças
financeiras... Das prisões passava às cortes dos soberanos, registrando suas memórias no livro
História da minha vida.
Casanova frequentou personalidades como Voltaire (p. 132), Rousseau (p. 132) e mesmo o papa
Clemente XIII (1693-1769), papa de 1758 a 1769. Casanova ficou conhecido como um egoísta
movido pela busca de prazer, desprezando os ingênuos e ridicularizando os costumes e as leis. Os
estudiosos de sua obra costumam afirmar que ele foi bastante objetivo em seus registros
autobiográficos, embora, ao retratar a si mesmo, oculte certos dados que o revelariam como alguém
que traiu a confiança dos que o acolhiam.
A sedução sexual era o forte de Casanova. Diz ele ter “conquistado” mais de cem mulheres. Muitas
de suas trapaças são por ele justificadas por necessidade econômica. Como ele mesmo afirma,
gastava seus dias a tentar ficar doente; mas depois passava outros dias a tentar reaver a saúde.
Junto dos prazeres vieram também muitas desgraças, mas, no seu dizer, assim como os prazeres
são passageiros, assim também as desgraças não duram para sempre.
REPRODUÇÃO/ACERVO PARTICULAR
A vantagem da noção de força vital é retratar a interação dos diferentes componentes da vida
humana, sem separá-los em partes estanques . Assim, é possível pensar em uma interação entre a
14
base física do ser humano com a parte emocional, sentimental, intelectual, relacional. Cada
indivíduo humano seria o conjunto das intensidades de sua própria força vital; seria um ponto em
que se concentra, aliás, a força que move tudo o que é vivo.
Em Psicanálise, a ideia de força nem sempre é apreciada, porque ela pode dar a impressão de uma
interação mecânica ou automática entre o corpo e a dimensão psicológica. Quer dizer, o corpo
poderia ser visto como o responsável pelo que se passa no psiquismo. Em Filosofia também se
requer cuidado no uso dessa ideia. Ela é válida, porém, se ficar claro que, mesmo havendo
influência do corpo no estado psicológico do indivíduo (e vice-versa), disso não decorre que a
influência ou a interação seja automática e mecânica. Cada ser humano pode modular sua força
15
É nessa direção que se encaminha o trabalho de Edith Stein. Ela identificava diferentes forças
Página 132
Os dois exemplos de Edith Stein têm por objetivo chamar a atenção para um dado inquestionável: o
ser humano é submetido a algumas leis físicas, mas pode vencer outras.
Adaptando o segundo exemplo de Edith Stein, é possível obter maior compreensão: se um animal
está percorrendo um caminho e se sente muito cansado, sua tendência é parar de caminhar. Só em
situações extremas de fome ou de necessidade de defesa ele insistirá em vencer o cansaço. Em
geral, porém, não insistirá, porque obedece à compulsão de parar. No caso do ser humano, o seu
querer pode fazê-lo vencer o cansaço por causa de um objetivo que ele fixa para si mesmo, ainda
que não se trate de algo indispensável para sua sobrevivência.
O fato de um ser humano conseguir vencer o cansaço por causa de um objetivo que não significa
uma recompensa para necessidades biológicas seria uma prova de que ele pode dispor de sua
constituição física e dar um novo sentido a ela, interferindo na intensidade de sua força vital. Essa
capacidade é chamada de espiritual por Edith Stein e pela fenomenologia. Trata-se da capacidade
humana de refletir e de escolher a melhor ação. Os termos espírito e espiritual não têm um
significado necessariamente religioso; indicam a possibilidade humana de ir além das compulsões
nascidas da dimensão física. Na verdade, a própria dimensão física, no caso do ser humano, já é
espiritual, já é qualificada pela força vital tipicamente humana (o espírito). Dessa perspectiva, o
pensamento de Edith Stein encontra-se com o de Hannah Arendt (que, aliás, estudou fenomenologia
alguns anos depois de Edith) ao insistir que, no ser humano, não se separa a “animalidade” de sua
“humanidade”; é como humano que ele é animal.
Foi um filósofo iluminista francês cujas ideias influenciaram muitos pensadores da Revolução
Francesa e da Revolução Americana. Defensor das liberdades civis, foi um crítico agudo e
espirituoso das monarquias absolutistas e da interferência do poder religioso na atividade política.
Obras mais conhecidas: Ensaio sobre os costumes, Cândido, Cartas filosóficas, Tratado sobre a
tolerância.
Edith Stein (1891-1942)
Foi uma filósofa e teóloga alemã de origem judaica, convertida à fé cristã quando estudou Filosofia.
Foi discípula e assistente de Edmund Husserl, pai da fenomenologia. Suas principais contribuições
foram o aprofundamento do conceito de empatia e a busca de fundamentação filosófica para a
Psicologia e as Ciências Humanas, além da construção de um pensamento que combinava a análise
da consciência com afirmações sobre o modo de ser das coisas do mundo. Obras mais conhecidas: O
problema da empatia, Contribuições para a fundamentação filosófica da Psicologia e das ciências do
espírito, Estrutura da pessoa humana e Ser finito e ser eterno. Edith Stein foi assassinada em
Auschwitz, vítima da violência nazista.
Aplicando essa reflexão à sexualidade, é possível entendê-la como uma das correntes que compõem
o rio da vida humana ou como uma das formas de
Página 133
investir a força vital. Em sua especificidade, ela é a concentração da força vital no exercício humano
de buscar satisfação e prazer por meio do sexo e de tudo o que se relaciona a ele, envolvendo
instintos e estímulos, mas também emoções, sentimentos e pensamento.
Edith Stein
O ser humano pertence a dois mundos: ele vive sob a lei da compulsão e sob a lei da liberdade.
16
Esses dois elementos, porém, não estão justapostos , mas se interpenetram de um modo bastante
17
singular. [...]
Se um indivíduo é atingido por uma bola, ele não cai necessariamente, como se fosse um corpo
inerte que recebe o choque de outro corpo de mesmo tamanho, mesmo peso etc. O indivíduo
18
humano pode evitar a bola ou, se tiver as devidas condições, resistir ao choque. Analisemos essa
segunda possibilidade. O indivíduo fica firme, para suportar o movimento que ameaça derrubá-lo; a
bola bate nele e cai por terra. Desenvolve-se, portanto, um processo material diferente do que
aconteceria se houvesse, em vez de esse indivíduo, um corpo puramente material. Se dois
indivíduos recebem um golpe de mesma força, pode ser que um caia e o outro fique de pé. [...] Pode
até acontecer que o “mais forte” caia e o que o “mais fraco” resista.
Fica claro que fatores muito diferentes agem aqui. A força do choque e a força da resistência
parecem semelhantes, [...] mas a diferença não pode ser medida. Para a força do corpo puramente
material, possuímos uma forma de medida em Física. No caso do ser humano, ao contrário, não
podemos saber se ele investiu toda a sua força ou só uma parte dela; em outras palavras, não é
possível exprimir sua força corporal como o produto de uma massa e de uma velocidade. Isso só
funcionaria se deixássemos de lado sua força vital e se o seu corpo fosse visto apenas como corpo,
de modo puramente mecânico. Ora, falar de força física no ser humano é justamente designar
alguma coisa de vital.
Essa força vital tem em comum com a força dos corpos puramente materiais o fato de que ela pode
se exprimir por movimento e resistência, [...] mas sua intensidade não é tal que possa ser medida.
Ela depende da constituição material do corpo, mas também das funções vitais; esses dois fatores
se encontram em uma relação funcional mútua.
A isso deve acrescentar-se o fato de que o ser humano é capaz de interferir na força de que dispõe e
de utilizá-la em maior ou menor intensidade. É precisamente nessa utilização da força que se
manifesta a maneira como o corpo é penetrado de espírito e como a ação espiritual livre exerce
influência sobre o mundo material. [...] A ligação entre o querer e a força que um indivíduo investe
não pode ser discernida de maneira exata. Se decido visitar um doente, essa ligação (entre o querer
e a força investida) pode ser vista: quero levar alegria ao doente, pois sei que minha visita o
agradaria, [...] mas, para fazer essa visita, devo percorrer um longo caminho. [...] Experimento um
peso em todo o corpo; cada passo é difícil e deve ser dado por um ato de vontade. Decido continuar
e chego ao meu objetivo, mesmo estando com muito cansaço.
STEIN, Edith. Der Aufbau der menschlichen Person. Friburgo na Brisgóvia: Herder, 2010. p. 98-100. (A estrutura da pessoa humana.
Tradução nossa.)
Ícone: Glossário 16 Compulsão: pressão da qual não se pode escapar; movimento irresistível.
EXERCÍCIO C
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 450
2. O que os exemplos dados por Merleau-Ponty em seu texto lhe permitem concluir?
3. Pela experiência pessoal, você vê motivos para concordar com Merleau-Ponty na análise da
sexualidade?
5. Por que a ideia física de força é apropriada ao uso filosófico que discute a força vital?
6. Qual o objetivo fundamental de Edith Stein com os exemplos dados em seu texto?
EXERCÍCIOS COMPLEMENTARES
Ao estudar este capítulo de nosso livro, você talvez concorde que, se a sexualidade está relacionada
com a realização humana, então, para ser vivida com o máximo prazer e para colaborar com a
harmonia de nossa vida, a sexualidade requer responsabilidade. Falar de responsabilidade, porém,
não significa ser “ultrapassado” ou “moralista”. Afinal, antes de perguntar pelo que é certo ou
errado, somos chamados pela vida a cuidar de nós mesmos. Esse é o primeiro sentido da
responsabilidade. Reflita, então, sobre o modo como você tem sido responsável por si mesmo(a).
Reflita sobre os exemplos de vivência da sexualidade que a sociedade hoje apresenta. Pense, por
exemplo, no caso das muitas adolescentes que engravidam porque não planejam a própria vida ou
porque não conhecem minimamente o funcionamento do próprio corpo. Pense nos rapazes
apressados e egoístas que forçam suas parceiras à atividade sexual, mas depois, se elas
engravidarem, as abandonam por infantilismo e covardia, dizendo que a gravidez é um assunto
apenas das mulheres... Lembre-se também de que a gravidez nem sempre é resultado de descuido
ou ignorância. Muitos jovens desejam e escolhem gerar uma criança. Convém saber isso para não
dar lugar a preconceitos contra casais jovens, e menos ainda contra jovens grávidas. Porém, não
deixa de ser verdade que grande parte dos jovens envolvidos em uma gravidez não pensa nas
consequências de seus atos e depois se arrepende. Isso também vale para as doenças sexualmente
transmissíveis e tantas outras dificuldades ligadas à responsabilidade sexual. Pensando nesses
vários aspectos, reflita: o que você quer para sua vida e como você se esforça para construir seus
sonhos? Como você vive sua sexualidade? Você pode assistir a um vídeo muito esclarecedor,
baseado na entrevista com a médica Viviane Castelo Branco e gravado em 2012 pelo Canal Saúde
Oficial, do Sistema Único de Saúde (Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=HdwMoS14l9o>. Acesso em: 27 jan. 2015.)
Acesse:
2 Pesquisa e debate Com a orientação do(a) seu(sua) professor(a):
1. Divida a classe em dois grupos, cada qual com um(a) líder que representará o grupo na plenária.
2. Um grupo deve pesquisar formas de compreensão da sexualidade como algo determinado pela
Natureza; o outro deve pesquisar formas de conceber a sexualidade como uma construção humana.
Diferentes fontes podem ser consultadas: teorias científicas, filosóficas, éticas, religiosas etc.
5. Em outra aula, os grupos podem estudar durante 20 minutos o texto abaixo, para, na sequência,
apresentar sua visão sobre o assunto, tomando por base o debate realizado na aula anterior (a
compreensão da sexualidade como vivência resultante de elementos naturais e culturais).
Daniela Truffer veio ao mundo como hermafrodita. Os médicos decidiram fazer dela uma mulher.
Natural de Zurique, ela milita hoje contra as operações forçadas e os tratamentos hormonais
impostos às crianças com órgãos sexuais indeterminados.
Para Daniela, é preciso dar tempo aos indivíduos para crescer e decidir por si mesmos se querem se
tornar um homem ou uma mulher ou, ainda, ficar no cruzamento dos dois caminhos, fenômeno
chamado de intersexuação ou, mais comumente, hermafroditismo. “As operações forçadas são
dolorosas e irreversíveis. A probabilidade de reduzir ou de mesmo destruir o desejo sexual é
bastante elevada. As operações estéticas não voluntárias violam o direito à integridade física e à
autodeterminação. Isso contraria os direitos do ser humano”, defende Daniela Truffer.
De acordo com a média mundial, cerca de uma criança em cada 2.000 nasce hermafrodita. Esse fato
é conhecido das sociedades humanas desde a Antiguidade. Mas, com o tempo, as pessoas de sexo
nem totalmente masculino nem totalmente feminino tornaram-se uma minoria invisível,
particularmente depois que a cirurgia “corretiva” tornou-se norma no século XX.
Nascida em 1965 “sem características sexuais claramente definidas”, ela possuía cromossomos
masculinos, um micropênis e testículos pouco desenvolvidos que pareciam lábios vaginais. Os
médicos disseram que essas características acabavam “ajudando”, pois ficava mais fácil designar a
ela um sexo definido por meio de uma cirurgia rápida. Os testículos de Daniela foram, então,
retirados quando ela tinha dois meses. “Eles literalmente me castraram!”, indigna-se ela.
Aos sete anos, seu micropênis foi diminuído e transformado em clitóris. Uma vagina artificial foi
“dada” a ela quando completou 18 anos. Mesmo tendo consciência de sua diferença, nem seus pais
nem seus médicos lhe explicaram de maneira adequada a sua condição. Ela cresceu com um
profundo sentimento de vergonha. No seu dizer, “os médicos acham que são Deus e direcionam os
pais, que, em geral, estão completamente desorientados e não sabem o que fazer, pois essa temática
ainda é um tabu”.
Daniela reconhece que os pais de uma criança hermafrodita vivem um sério dilema, principalmente
quando a genitália indefinida prejudica o funcionamento da via urinária e do intestino. Além disso,
o desenvolvimento psicológico de uma criança com genitália indefinida é bastante confuso e
sofrido. No entanto, sua experiência é a de que a cirurgia corretiva fere o corpo e a mente.
Acesse:
Texto baseado no artigo: O’DEA, Claire. Hermafroditas lutam pelo direito de definir o sexo. 26 ago. 2009.
Disponível em: <http:// www.swissinfo.ch/por/hermafroditaslutam-pelo-direito-de-decidir-sexo/ 7567050>.
Acesso em: 19 maio 2015.
FABRICE COFFRINI/AFP/GETTY IMAGES
Ícone: Dica de filmes Dicas de filmes para você assistir tendo em mente o que trabalhamos
neste capítulo
Eu, mamãe e os meninos (Les garçons et Guillaume, à table!), direção Guillaume Galienne, França, 2014.
Comédia muito engraçada (porém sem situações ridículas!), em que o diretor conta sua história: ele foi uma
criança que todos consideravam homossexual, sem que ele o fosse de fato. Trata do tema da relação com os
pais e as influências (muitas vezes estranhas!) que o ambiente exerce sobre a criança.
Filme de grande sensibilidade, cujo tema é a maneira como um jovem cego vive sua sexualidade. Fora dos
padrões que sobrecarregam a experiência visual (propagandas com imagens, padrões de moda etc.), a
personagem do jovem cego mostra como os afetos e os desejos podem ser vividos de maneira mais intensa e
livre.
Filme muito bem humorado sobre a história de Mark, vítima de poliomielite que, aos 38 anos, deseja ter sua
primeira relação sexual. Sexo, carinho, amor e cumplicidade são os focos da narrativa.
Kinsey – Vamos falar de sexo (Kinsey), direção Bill Condon, Alemanha/EUA, 2004.
História do professor norte-americano Alfred Kinsey (1894- 1956), que iniciou sua carreira como estudioso de
insetos, mas, aos poucos, sentiu a necessidade de estudar a vida sexual humana e esclarecer seus aspectos
fisiológicos para a sociedade de sua época.
A pele que habito (La piel que habito), direção Pedro Almodóvar, Espanha, 2011.
Suspense em torno do cirurgião plástico Roberto Ledgard, que vive com a filha Norma e a incentiva a sair mais
de casa para melhorar do quadro depressivo em que se encontrava. Roberto leva Norma a uma festa na qual
ela é estuprada. Para se vingar do estuprador, Roberto elabora um plano completamente imprevisível e
macabro. Mas as atitudes do estuprador tornam-se surpreendentes, levantando questões delicadas sobre o
modo como o ser humano vive a sexualidade.
História da jovem russa Sabina Spielrein, diagnosticada como histérica, que é levada a um hospital psiquiátrico
de Zurique (Suíça), onde o Dr. Carl Gustav Jung aplica pela primeira vez as teorias de seu mestre Sigmund
Freud. Anos depois, Sabina volta à Rússia e abre uma creche, aplicando a teoria psicanalítica à educação das
crianças.
História de minha vida (dois volumes), de Giacomo Casanova, tradução Pedro Tamen, Divina Comédia, 2013.
Escrita em versos pelo romano Ovídio (43 a.C.-17), a obra pretende ser uma iniciação na arte de seduzir e de
transformar a conquista em algo durável.
Satíricon, de Petrônio, tradução Claudio Aquati, Cosac Naify, 2008.
Obra clássica de autoria provável do escritor romano Petrônio (morto em 66), que narra as aventuras
amorosas de três jovens durante o período que se costumou chamar “Roma decadente”. Impotência,
infidelidade, paixão, ciúme e amor são eixos das narrativas do romance.
As mil e uma noites, obra anônima, tradução Mamede Mustafa Jarouche, Azul, 2012.
Coletânea de contos populares escritos em árabe e de origem persa e indiana. Desfilam perante o leitor
inúmeras personagens em jogos de espelho, tratando de vários temas, como a sedução, a vida sexual, o amor
etc. Faz parte dessa coletânea a conhecida história de Ali Babá.
Página 137
Peça de teatro sobre os dois últimos dias da vida de Juan Tenorio, libertino e grande amante, um pouco
covarde, apreciador da boa mesa e de disputas intelectuais. Provocador constante, Dom Juan acaba sendo
punido pelos céus...
A vida sexual de Catherine M., de Catherine Millet, tradução Claudia Fares, Ediouro, 2001.
A autora Catherine Millet (1948-) é uma das mais destacadas especialistas da arte contemporânea e das mais
sofisticadas diretoras de arte na Atualidade. Nesse livro, ela decide contar em detalhes o conjunto das
experiências sexuais que teve ao longo de sua vida. O texto explora o contraste entre, de um lado, o assunto nu
e cru e, de outro lado, a forma do texto, que é redigido propositalmente com elegância e correção.
A outra vida de Catherine M., de Catherine Millet, tradução Hortênsia S. Lencastre, Agir, 2009.
O imenso sucesso de vendas do primeiro livro da autora (A vida sexual de Catherine M.) foi proporcional ao
choque causado com os relatos de sua intensa vida sexual. Nesse segundo livro, descobre-se outro lado de
Catherine: mesmo com muitos amantes, ela nunca suportou não ser “a única”; e confessa que sofria de um
terrível ciúme, a ponto de hoje só ver armadilhas na ideia de “casamento aberto”. Seu texto continua chocante,
pois ela apresenta, sempre com seu estilo elegante e sóbrio, o elenco quase infinito de amantes e ousadias.
Apresentação didática, voltada ao público adolescente, dos principais elementos da visão psicanalítica e
psicopedagógica da sexualidade.
O inconsciente, de Luciana Chaui-Berlinck, WMF Martins Fontes, 2014.
(Coleção Filosofias: o prazer do pensar). Apresentação introdutória dos fundamentos da Psicanálise freudiana,
concentrados em torno do tema do Inconsciente.
Número especial da Revista CULT contendo um dossiê com vários artigos sobre a teoria queer, teoria
sociológica que critica as teses segundo as quais o gênero e a orientação sexual seriam determinados
geneticamente. Segundo a teoria queer – que significa diferente, em inglês –, a sexualidade e o gênero de um
indivíduo, embora contenham determinações biológicas, são formados principalmente pelo meio sociocultural.
História da sexualidade (três volumes) de Michel Foucault, tradução Maria Thereza C. Albuquerque, Graal,
2007.
A obra registra alguns cursos dados pelo filósofo francês Michel Foucault (1926-1984) nos quais ele analisava
textos sobre o tema da sexualidade escritos desde a Antiguidade até a Era Contemporânea, passando pela
Idade Média, Renascimento e Modernidade. Embora hoje seja possível perceber que Foucault cometeu
pequenas falhas em algumas de suas análises históricas, sua obra já é uma leitura obrigatória e clássica para o
estudo filosófico do tema da sexualidade.
Corpo e sociedade – o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo, de Peter Brown,
tradução Vera Ribeiro, Zahar, 1990.
O historiador Peter Brown (1935-) estuda, por meio do tema da renúncia sexual (o autocontrole, o casamento
sagrado, a castidade, a virgindade etc.), a sexualidade vivida nas origens do cristianismo, indo do apóstolo
Paulo até os tempos de Agostinho de Hipona (séculos IV-V). Os resultados das pesquisas de Peter Brown são
surpreendentes, principalmente por mostrar que a vivência sexual dos primeiros cristãos era menos definida
por leis rígidas e mais integrada ao sentido global da existência como obra do amor divino.
A fenomenologia do ser humano, de Angela Ales Bello, Tradução Antonio Angonese, Ed. da Universidade do
Sagrado Coração, Bauru, 2000.
A pensadora italiana Angela Ales Bello, centrando-se na compreensão do ser humano, apresenta o pensamento
de três filósofas: Edith Stein, Hedwig Conrad-Martius (1888-1966) e Gerda Walter (1897-1977). O tema da
força vital e da sexualidade recebem um tratamento especificamente fenomenológico e com conotações que,
segundo a autora, somente uma experiência feminina pode revelar.
p. 452
Sugestões bibliográficas
Página 138
Uma dissertação de síntese filosófica é uma redação que resume a posição de um(a) filósofo(a) ou de
mais filósofos a respeito de um tema específico.
Sintetizar ou resumir de maneira filosófica não é simplesmente repetir com poucas palavras aquilo que
está em um texto filosófico. Em vez de repetir, a síntese identifica os diversos momentos lógicos ou
partes de um texto, explicitando as ideias centrais defendidas em cada uma de suas partes ou momentos
e mostrando a articulação dessas ideias. Afinal, se a Filosofia analisa as razões pelas quais os
pensamentos são justificados, então uma síntese filosófica concentra-se em tornar claras essas razões,
com atenção especial ao modo como elas são interligadas.
Por exemplo, para fazer uma síntese filosófica do Capítulo 4 deste livro (“Sexualidade e força vital”),
podemos apontar para a estrutura do capítulo e para o que une suas partes. Ao redigi-la, podemos seguir
o seguinte esquema:
1) INTRODUÇÃO
1º parágrafo - A forma mais simples de escrever a introdução de uma síntese filosófica é anunciar o que
virá na sequência. Concentrando-nos no Capítulo 4, bastaria dizer que o tema “Sexualidade e força vital”
pode ser tratado em três momentos e mencionar quais são eles: a relação entre sexualidade humana e
comportamento animal; a concepção psicanalítica da sexualidade e a importância do diálogo entre
Filosofia e Psicanálise; e a noção de força vital. Essa forma de começar é, porém, desestimulante para os
leitores, pois eles podem perder o interesse pela síntese, por causa do tom mecânico da introdução. Uma
forma mais atraente consiste em anunciar já de início a linha que estrutura o tratamento dado ao
assunto. Por exemplo, você pode começar da seguinte maneira: O Capítulo 4 reflete sobre o sentido da
sexualidade humana. Diante da possibilidade de compreender a sexualidade com base no comportamento
animal, o capítulo mostra as incoerências filosóficas dessa compreensão e passa a uma análise da teoria
psicanalítica da sexualidade, chegando à postura fenomenológica, que concentra na força vital seu esforço
de elucidação da vida humana.
2) DESENVOLVIMENTO
2º parágrafo - Anunciada a temática na introdução, você deve, agora, dizer por que o capítulo abordou o
tema da compreensão da sexualidade humana com base no comportamento animal. Você pode servir-se
de conjunções como porém, mas, contudo, no entanto.
4º parágrafo - Com base na menção da Psicanálise, você deve retornar à análise filosófica e justificar o
modo como ela reaparece no Capítulo 4.
3) CONCLUSÃO
5º parágrafo - Na conclusão, você não precisa apresentar nenhuma ideia nova nem repetir o que já foi
dito nos parágrafos anteriores. Também não deve usar frases de efeito, como: “Vimos nesta redação
como é importante para o ser humano estudar a sexualidade e a força vital”. Quem leu sua redação já
entendeu que o tema é importante! Então, para concluir, você precisa encontrar uma frase que “sintetize
sua síntese”, ou seja, que condense em poucas palavras o espírito de seu texto. Por exemplo, você pode
escrever: Ainda que a sexualidade humana tenha uma base fisiológica, isso não quer dizer que ela se reduza
apenas a aspectos físicos nem que ela se identifique com o comportamento animal. Em diálogo com a
Psicanálise, alguns filósofos identificaram razões para recusar a tese da sexualidade como motor
estruturante da vida humana e defenderam que ela é um dos aspectos da corrente ou força vital que
constitui os indivíduos.
Com efeito, o Capítulo 4 inicia pela análise do pensamento que busca compreender a sexualidade humana
por comparação com o comportamento animal. Levanta, porém, algumas dificuldades contidas nessa
tentativa, uma vez que nada justifica filosoficamente passar do fato de que os seres humanos são animais à
conclusão de que eles vivem sua “animalidade” assim como os animais vivem a deles. Colabora para essa
problematização o pensamento da filósofa Hannah Arendt e os dados científicos que asseguram a
especificidade humana em meio ao reino animal. Especificamente no tocante à sexualidade, a experiência
humana é formada por dados fisiológicos, como ocorre com os animais, mas também por dados culturais,
históricos, sociais.
Dando atenção à complexidade de fatores que caracteriza a sexualidade humana, o Capítulo 4 defende um
diálogo da Filosofia com a Psicanálise, haja vista a importância do saber psicanalítico para formas
contemporâneas de compreensão do ser humano. O capítulo apresenta, então, a teoria freudiana que rompe
com a concepção da sexualidade entendida como algo que se desperta na puberdade e é ligado à
reprodução e a concebe como dado estruturante da vida humana em todas as fases da existência,
desvinculada da reprodução. A sexualidade seria a atividade de busca de satisfação e prazer, concentrando-
se na atividade sexual durante a vida adulta. O capítulo apresenta, ainda, a releitura da teoria freudiana,
feita por Winnicott, que discordava de seu mestre Freud e defendia que, em vez da sexualidade, o elemento
estruturante da vida humana é a busca de satisfazer a necessidade de cuidado, por meio do respeito
bondoso entre as pessoas.
A atenção à Psicanálise e a percepção das diferenças interpretativas no interior dela mesma permitem ao
Capítulo 4 expor o pensamento de alguns filósofos que valorizaram aspectos da teoria psicanalítica e
apontaram, no entanto, para a necessidade de elaborar uma compreensão mais ampla da vida humana.
São apresentados os pensamentos de dois representantes da fenomenologia: Maurice Merleau-Ponty e Edith
Stein. Merleau-Ponty analisa as incoerências contidas na associação entre a sexualidade e a vida, preferindo
a expressão “corrente vital” para designar a existência de cada indivíduo e concebendo a sexualidade como
uma das correntes que compõe o fluxo unitário que caracteriza a vida individual. Edith Stein, por sua vez,
prefere falar de “força vital”, pois a ideia de força, proveniente da Física, permite compreender que cada
uma das correntes que formam a corrente vital só pode ser entendida em relação a outras correntes. Mesmo
na ação física, segundo a filósofa, o ser humano tem a possibilidade de escapar a certas leis físicas e dar
novo sentido a elas, revelando que, na sua base material, ele já é um ser espiritual. A sexualidade, dessa
perspectiva, pode ser concebida como atividade fisiológica e espiritual a um só tempo.
Em síntese, o Capítulo 4 procura mostrar que, apesar da inquestionável base fisiológica da sexualidade
humana, não é justificado reduzi-la apenas a aspectos físicos nem identificá-la ao comportamento animal.
Em diálogo com a Psicanálise, alguns filósofos identificaram, portanto, razões para recusar a tese da
sexualidade como motor estruturante da vida humana e defenderam que ela é um dos aspectos da corrente
ou força vital que constitui os indivíduos.
Parafrasear é reescrever um texto simplesmente repetindo, de forma resumida, tudo o que já afirmou
seu (sua) autor(a). A paráfrase pode ser um bom exercício quando alguém nos pede para explicar algum
assunto “com nossas próprias palavras”. Mesmo grandes escritores servem-se dela. Por exemplo,
Rousseau e Malherbe fizeram paráfrases de versos dos Salmos; Lizst e Bach fizeram paráfrases de temas
musicais de outros compositores. Porém, esse recurso é inadequado em uma redação de síntese
filosófica cujo objetivo é apresentar as ideias centrais de um texto e explicitar suas articulações.
Página 140
DICA 2: NÃO MISTURE O QUE VOCÊ PENSA COM O QUE O TEXTO DISCUTE
É uma dificuldade de muitos estudantes e professores saber “calar-se” e “ouvir” um texto, isto é, deixá-lo
“falar”, a fim de bem conhecê-lo em suas próprias razões. Muitos de nós não se contêm e, diante de um
texto (ou mesmo de uma frase), já passam a interpretá-lo e a tomar posição pessoal. Esse é um
comportamento apressado que não combina com a atividade filosófica e deve ser evitado a todo custo
em uma redação de síntese. Independentemente de gostarmos ou não de um texto, a atitude filosófica
mais necessária é compreendê-lo em sua estrutura antes de qualquer julgamento. Afinal, para julgar é
preciso compreender bem!
Você certamente notou que algumas palavras estratégicas no exemplo de redação de síntese filosófica
estão sublinhadas. Elas articulam termos e frases. Em gramática, recebem o nome de conjunções, amigas
inseparáveis dos filósofos e escritores em geral, pois elas permitem entender o modo como alguém
relaciona duas ideias, duas frases, dois parágrafos. Veja uma tabela que pode ser muito útil em suas
redações:
BI, ADAGP, PARIS/SCALA, FLORENCE © PHOTOTHÈQUE R. MAGRITTE, MAGRITTE, RENÉ/ AUTVIS, BRASIL, 2016.
René Magritte (1898-1967), Les amants (Os amantes), 1928, óleo sobre tela. Museum of Modern Art
(MoMa), Nova York (EUA).
A imagem do quadro que abre nosso capítulo desperta a curiosidade de saber por que as duas
pessoas têm o rosto coberto por um pano exatamente no momento em que se beijam.
Quem pintou esse quadro foi o belga René Magritte (1898-1967), que o intitulou Os amantes. As
pessoas nele retratadas vivem uma relação de amor, porém com a visão encoberta. Teria o pintor
pensado no ditado popular “O amor é cego”?
De fato, Magritte pode ter desejado mostrar que o amor é tão envolvente e produz tanta satisfação,
que o seu brilho ofusca as imperfeições pessoais, tornando cegos os amantes. Mas também pode
1
ser o caso de o pintor ter desejado transmitir a ideia de que o amor é impossível e o desejo é fonte
de frustração. Para ser feliz no amor, então, seria melhor não saber tudo sobre a pessoa amada.
Ainda, Magritte pode ter desejado mostrar que os amantes se conhecem muito bem, a ponto de não
precisarem se ver para se amar...
Não precisamos nos preocupar com a melhor maneira de interpretar o quadro de Magritte. Um
quadro não precisa ser “explicado”. Aliás, segundo contam amigos de Magritte, ele costumava
afirmar que suas pinturas “não escondem nada”. No seu dizer, embora seus quadros evoquem algo
misterioso, quando alguém perguntar “O que eles querem dizer?” deve-se dar esta resposta: “Eles
não querem dizer nada além do que é dito, porque o mistério é incognoscível ”.
2
Surrealismo, estilo de alguns artistas que, no início do século XX, procuraram desvincular a arte dos
padrões de beleza entendida como representação da realidade e insistiam na liberação da
imaginação, do sonho e das coisas que nos habitam sem delas termos clara consciência.
Mesmo não precisando “interpretar” o quadro de Magritte, é possível prestar atenção nas reações
que Os amantes suscitam em nós e tomar essas reações como ponto de partida para refletir sobre a
associação que se costuma fazer entre amor e falta de visão. Independentemente do sentido
identificado no quadro de Magritte, deve-se reconhecer que o pintor exprimiu uma profunda
verdade: o amor está relacionado com o modo de olhar.
BI, ADAGP, PARIS/SCALA, FLORENCE © PHOTOTHÈQUE R. MAGRITTE, MAGRITTE, RENÉ/ AUTVIS, BRASIL, 2016.
Acima: René Magritte (1898-1967), A traição das imagens, 1929, óleo sobre tela. Los Angeles County Museum
of Art (EUA). À direita: Eliseu Visconti (1866-1944), A caminho da escola, 1928, óleo sobre tela. Magritte, com A
traição das imagens e em estilo surrealista, mostra que a pintura do cachimbo é algo que tem vida própria; não
é simplesmente uma cópia de um cachimbo. Por sua vez, Eliseu Visconti, artista ítalobrasileiro e de estilo
impressionista, rompe com as formas tradicionais da pintura, que valorizavam sobretudo as linhas, e dá vida
própria às manchas (que deixam de ser simples manchas!).
Essa descrição do amor, no entanto, é insuficiente, porque também se observa que, muitas vezes,
quem ama vê melhor a pessoa amada. Uma pessoa tímida pode ser considerada antipática pelos
outros, mas quem a ama sabe que seu problema não é antipatia, e sim timidez. Algumas pessoas,
ainda, quando amam, percebem os aspectos menos positivos da pessoa amada, mas têm paciência
com ela e contribuem para o seu crescimento.
Na História da Filosofia, diferentes pensadores também perceberam que a experiência do amor está
ligada à visão e à falta de visão. Muito do que vivemos depende do modo como olhamos o mundo.
Um desses pensadores foi Platão (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 82), a quem, sem
exagero, poderíamos chamar de “filósofo do amor”. No seu livro O banquete, ele registra uma
Página 144
das explicações mitológicas (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 371) para o nascimento do
deus do amor, que se chamava Éros, em grego, e era filho da deusa Pobreza (Pênia) e do deus
Recurso (Póro) : Ícone: Texto filosófico
O nascimento do amor
Platão
Quando nasceu Afrodite , os deuses banqueteavam-se e entre eles se encontrava também o filho da
3 4
Prudência, [chamado] Recurso. Depois que acabaram de jantar, a Pobreza veio esmolar no festim e 5
ficou pela porta. Ora, Recurso, embriagado com o néctar – pois ainda não havia vinho – adentrou no
jardim de Zeus e, pesado, adormeceu. Pobreza, então, tramando em sua falta de recurso engendrar
6 7
um filho de Recurso, deita-se ao seu lado e pronto concebe o Amor [Éros]. Eis por que ficou
companheiro e servo de Afrodite o Amor gerado em seu natalício , ao mesmo tempo que por
8
natureza [ficou] amante do belo, porque Afrodite também é bela. Por ser filho de Recurso e
Pobreza, foi esta a condição em que [o Amor] ficou: primeiramente ele é sempre pobre e está longe
de ser delicado e belo, como a maioria imagina, mas é duro, seco, descalço e sem lar, sempre por
terra e sem forro, deitando-se ao desabrigo, às portas e nos caminhos, porque tem a natureza da
mãe, sempre convivendo com a precisão ; segundo o pai, porém, ele é insidioso com o que é belo e
9 10
bom, e corajoso, decidido e enérgico, caçador terrível, sempre a tecer maquinações , ávido de 11
sabedoria e cheio de recursos, a filosofar por toda a vida [...]. Sua natureza não é nem imortal nem
mortal; e no mesmo dia ele germina e vive, quando enriquece; logo morre e de novo ressuscita,
graças à natureza do pai; e o que ele consegue sempre lhe escapa, de modo que nem empobrece
nem enriquece, assim como também está no meio da sabedoria e da ignorância.
PLATÃO. O banquete. Tradução José Cavalcante de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1987. p. 35. (Coleção Os Pensadores).
Ícone: Glossário 3 Afrodite: deusa que também promovia e protegia o amor e a sexualidade.
7 Engendrar: gerar.
A narrativa de Platão apresenta o amor como dotado de dois grupos de características opostas: de
um lado, o amor é carência e falta, pois é filho de Pobreza; de outro lado, ele é abundância de
artimanhas e energia, pois é filho de Recurso. Ele é um misto de falta de sabedoria e de posse de
astúcia; é pobre de beleza, mas rico de esperteza para caçá-la.
A explicação de Platão, remetendo às origens míticas do amor, exprimia uma certeza adquirida no
cotidiano da vida humana: os indivíduos desejam completar sua vida (carência) e são dotados da
capacidade de buscar aquilo que pode dar essa completude (recurso). Diante de alguém que
representa a possibilidade de preenchimento da carência, a pessoa amante fica fascinada e se deixa
tomar pelo amor. Segundo essa imagem, amar não é viver uma cegueira, pois há consciência da
carência e identificação de alguém que pode preenchê-la.
Eros, séc. V a.C., detalhe em jarro de óleo em terracota. Metropolitan Museum of Art, Nova York (EUA).
Página 145
No mesmo livro O banquete, Platão registra outro mito que, em sua época, retratava exatamente a
carência que se supre pelo amor: Ícone: Texto filosófico
Platão
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 453
Indicação 2
[O corpo dos humanos, originalmente, tinha a forma de círculo. Por isso,] eram de uma força e de
um vigor incríveis; e tinham uma grande presunção ; mas voltaram-se contra os deuses. [...] Zeus,
12
então, e os demais deuses puseram-se a deliberar sobre o que se devia fazer com eles e
13
embaraçavam-se: não podiam nem matá-los [...], pois as honras e os templos que lhes vinham dos
humanos desapareceriam, nem permitir-lhes que continuassem na impiedade . Depois de 14
laboriosa reflexão, diz Zeus: “Acho que tenho um meio de fazer com que os humanos possam
15
existir, mas parem com a intemperança , tornados mais fracos. Agora, com efeito, eu cortarei a cada
16
um em dois; e, ao mesmo tempo, eles serão mais fracos e também mais úteis para nós, pelo fato de
se terem tornado mais numerosos; e andarão eretos, sobre duas pernas.” [...] Logo que disse isso,
Zeus pôs-se a cortar os humanos em dois; [...] a cada um que cortava, mandava Apolo voltar-lhe o 17
rosto e a banda do pescoço para o lado do corte, a fim de que, contemplando a própria mutilação,
cada humano fosse mais moderado. [...] Por conseguinte, desde que a nossa natureza se mutilou em
duas, cada um ansiava por sua própria metade e a ela se unia [...]. Cada um de nós, portanto, é uma
18
PLATÃO. O banquete. Tradução José Cavalcante de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1987. p. 24. (Coleção Os Pensadores).
12 Presunção: característica de alguém que exagera na convicção de suas próprias qualidades; orgulho.
16 Intemperança: falta de moderação; característica de quem não consegue controlar seus impulsos.
19Téssera: cubo (como um dado) ou pedaço de osso polido que, no mundo antigo, era dividido entre as pessoas
como sinal de amizade e compromisso. Por exemplo, quando alguém morria, seus descendentes podiam usar essa
peça para provar que tinham amizade com as famílias amigas do ancestral falecido.
Expondo os motivos pelos quais Zeus fez dividir os humanos ao meio, essa narrativa apresenta a
vida humana como um jogo de carência e de busca de preenchimento.
Nesses termos, é fácil dar razão ao mito; afinal, se há algo com que todos parecem concordar, é o
fato de os humanos passarem sua existência inteira procurando suprir necessidades dos mais
variados tipos (desde a necessidade básica de alimentação até as formas mais elaboradas de
participação no mundo, como o conhecimento, as relações interpessoais etc.). De acordo com a
apresentação dos amantes como metades que buscam se completar, o amor equivale a mais uma
busca de preenchimento de necessidades humanas.
Platão, porém, não pensava que cada indivíduo tem uma cara-metade exata e perdida em algum
Página 146
lugar do mundo, à espera de ser encontrada. Em outros trechos de seu livro O banquete, ele afirma
que é possível deixar uma pessoa amada e suprir a carência com outra pessoa, que se torna a nova
pessoa amada. Segundo Platão, o amor não é uma simples “colagem” de duas metades nem uma
fusão entre elas. Se é verdade que amar significa desejar o que falta (a mãe de Éros é Pobreza), essa
falta, carência ou pobreza não é, porém, suprida simplesmente pelo encontro da outra metade. Se o
amor fosse simplesmente o encontro de uma “cara-metade”, encontrá-la significaria “possuí-la” e
obter satisfação total. No entanto, ninguém nunca se sente totalmente satisfeito na vida, nem
mesmo junto da pessoa amada, pois sempre precisará de algo que ainda não possui. Por outro lado,
na relação de amor, uma pessoa não “possui” a outra. Amar não é ter alguém; é ser com alguém. Os
deuses cortaram tão bem as metades humanas que elas se tornaram semicírculos: pelo amor, elas
podem formar novamente um círculo, mas continuam sempre independentes; nunca mais formarão
um círculo unitário.
A independência das pessoas amantes, tal como descrita por Platão, levanta um tema de grande
interesse filosófico: nenhuma pessoa amante quer “ter” a outra pelo simples fato de tê-la, mas pela
satisfação que sente na relação com ela. Aliás, muitas pessoas percebem que, mesmo se amando, é
melhor para ambas separar-se, pois a relação existente entre elas só traz infelicidade. Não é,
portanto, a “posse” da pessoa amada que supre a carência humana, mas a qualidade da relação que
elas constroem juntas. Elas se olham entre si; e também precisam olhar para um terceiro elemento:
a satisfação que vem da relação entre elas.
O amor, portanto, de acordo com a compreensão platônica, tem um caráter ativo e depende do
olhar que as pessoas têm para si mesmas, para a pessoa amada e para a relação existente entre elas.
Dizer que ele é cego, como faz o ditado, seria uma forma de entendê-lo como algo que
“simplesmente acontece” e de desviar o olhar do fato de que ele depende em grande parte da
construção ativa dos amantes. O amor não é apenas algo que se “sente” ou que “acontece”. Sua mãe
é Pobreza, mas seu pai é Recurso. O amor verdadeiro, então, é dotado de engenhosidade . Os
21
amantes, além de seguirem o movimento que os leva individualmente a entrar em uma união,
podem e devem seguir também o movimento que os leva em conjunto a construir a satisfação
amorosa, aberta constantemente à novidade que solicita novas respostas.
EXERCÍCIO A
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 454
1. Encontre, nas narrativas míticas de Platão, elementos que mostrem como o amor não é cego.
2. Reflita sobre experiências de amor que você conhece (amor conjugal, amor familiar, amor de
amigo) e observe se você concorda com a seguinte afirmação: “O amor não é algo que apenas
se sente; é algo que também se constrói”.
2 Desejo e amor
No modo como Platão descreve a experiência humana do amor, podem-se identificar dois
elementos centrais: (a) um movimento inicial ou um impulso que move a pessoa a tomar
consciência de sua carência; (b) um movimento de busca de satisfação dessa carência por meio da
relação com outra pessoa, visando ao bem recíproco e a uma vida conjunta sempre melhor.
22
Empregando-se um modo cotidiano de falar, pode-se chamar de desejo o movimento inicial que faz
ver a carência; e de amor a busca de satisfação por meio da relação com outra pessoa. Platão,
porém, só usa uma palavra: amor (éros, em grego). Isso permite constatar que Platão identificava
nos seres humanos um único movimento, que inicia como impulso e continua como busca de
satisfação pela relação amorosa. Assim, não há, segundo Platão, uma oposição entre desejo e amor,
como ocorre no modo comum de falar. Chega-se a ouvir, hoje em dia, que o desejo é algo mais
primitivo, “animal”, ao passo que o amor seria mais “humano” e mais nobre. Para Platão, essa
separação seria ilusória, mesmo porque “ser” humano não significa necessariamente viver o “amor
mais nobre” (muitas pessoas se unem apenas para obter a satisfação do prazer físico, e não para
construir uma
Página 147
relação amorosa). Além disso, também é possível procurar satisfação não apenas com outras
pessoas, mas também com atividades e coisas (trabalho, lazer, esporte, religião, alimento, roupas
etc.).
É justamente para a busca de satisfação, vivida de variadas maneiras, que Platão chama a atenção
ao falar do amor. Os diferentes modos de buscar satisfação correspondem a diversos graus na
experiência do mesmo movimento, o amor. A relação entre duas pessoas que realmente se amam é
apenas um desses graus, embora certamente mais perfeito do que o grau da relação vivida entre
pessoas que se unem apenas por motivos egoístas (em que ambas não se “veem”, mas “veem”
apenas o interesse proporcionado pela pessoa amada). Desse ponto de vista, mesmo as pessoas
egoístas são seres que amam, porque buscam satisfação. O amor que elas conhecem permanece,
porém, em um grau inferior àquele de quem consegue entrar em uma relação na qual os amantes
buscam o bem um do outro.
Para atingir graus mais altos e intensidades mais fortes, é preciso, segundo Platão, enriquecer o
movimento causado pelo impulso que dá consciência da carência e leva à sua satisfação. No livro
Fedro, Platão identifica dois tipos de amantes: aqueles que amam porque seguem apenas o desejo
de prazer e aqueles que amam porque seguem o desejo do melhor. O primeiro tipo de amor
funciona naturalmente, ao passo que o segundo requer treinamento, educação. Ambos estão
misturados; ora vence um, ora vence outro. Na verdade, eles são duas formas distintas de viver o
mesmo desejo que move os seres humanos.
Os prazeres, segundo Platão, são bons; mas é preciso saber que, sozinhos, eles não oferecem a
possibilidade da realização completa buscada pelos seres humanos. Alguém que só consegue
concentrar-se no prazer seria como um doente que, estando com seu paladar prejudicado, não
percebe o mal que um alimento pode lhe fazer e o ingere. Já o prazer obtido com a busca do melhor
torna as pessoas também melhores, porque mais realizadas e mais senhoras de si.
No caso das pessoas que vivem uma relação amorosa, elas podem estar unidas apenas visando ao
prazer ou também visando ao melhor prazer. Para atingir uma realização mais perfeita, precisam
“ver-se” mutuamente e buscar satisfação em conjunto. Elas prestam atenção em si mesmas e
também são capazes de olhar para graus mais perfeitos de realização, buscando esses graus. Mesmo
no interior de uma família a busca do melhor não é algo natural, e sim uma prática que se aprende;
o éros familiar pode ser vivido como simples busca individual de satisfação ou como busca conjunta
do melhor. Na obra O banquete, Platão dá como exemplo de verdadeiro amor Alceste, que havia sido
oferecida em casamento a Admeto e terminou por dar sua própria vida por amor a ele (p. 148).
EXERCÍCIO B
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 455
1. Por que faz sentido, no vocabulário de Platão, chamar o desejo e o amor com uma única
palavra (éros)?
2. Se uma pessoa pode se relacionar com outra apenas por prazer, qual seria a outra maneira
possível de relação amorosa?
3 Amor e Beleza
Um ponto decisivo para a compreensão do amor mais completo de que são capazes os seres
humanos, tal como concebido por Platão, é a observação de que, ao amar, ninguém possui a pessoa,
a coisa ou a atividade amada. Se possuísse, o amor terminaria: bastaria conseguir a pessoa, a coisa
ou a atividade, e o amor se realizaria de uma vez por todas. Mas a experiência mostra que o amor,
busca de satisfação sempre mais intensa, não termina quando se está com aquele(a) ou aquilo que
se ama. Ele continua; impulsiona sempre a pessoa a estar em atividade.
Platão denomina a busca constante de satisfação como busca de beleza. A Beleza é, no vocabulário
platônico, o nome daquilo que atrai o ser humano em tudo o que lhe oferece satisfação. Se pelo
amor o ser humano percebe tanto a sua carência como aquilo que pode supri-la, então se pode dizer
que, pelo amor, o ser humano busca Beleza. Éros, como diz Platão, não é belo; mas é hábil para
encontrar a Beleza.
É preciso cuidado, no entanto, na interpretação do termo beleza. Hoje se fala cada vez mais de
padrões de beleza: modelos de corte de cabelo, de peso, de roupa, de casa, de móveis, de maneira de
se comportar etc. Os apresentadores de programas de televisão parecem saber o que é a beleza,
tanto quanto as revistas de moda, construção, saúde etc.
Página 148
A lceste era uma princesa, filha de Pélias, rei de Iolco, dada em casamento a Admeto, rei de Feras.
Pélias, pai de Alceste, prometeu dar a filha em casamento a Admeto se este conseguisse lhe trazer
uma carruagem puxada por um leão e um javali. Admeto realizou a façanha e casou-se com Alceste,
mas se esqueceu de oferecer, por ocasião de seu casamento, um sacrifício a Ártemis, deusa da caça.
Por essa razão, ele e Alceste encontraram o quarto cheio de serpentes na noite de núpcias. Quando
Admeto estava para morrer, Apolo conseguiu um favor das Moiras, deusas do destino, que
aceitaram deixar Admeto viver se outra pessoa morresse em seu lugar. O pai e a mãe de Admeto
recusaram morrer pelo filho, mas Alceste, por amor, envenenou-se, dando sua vida pelo amado.
Frederick Leighton (1830-1896), Hércules luta com a Morte pelo corpo de Alceste, 1871, óleo sobre tela.
Mas esses arautos da beleza não fazem mais do que reproduzir padrões construídos
23
historicamente. Uma mulher, conforme certos padrões de hoje, deve ser magra para ser
considerada bela. Em outras épocas, mulheres magras eram associadas à miséria; as belas mulheres
deviam ter mais massa corporal.
Não é desse tipo de beleza que falava Platão. Ele não desprezava a harmonia produzida pelos
aspectos externos ou as aparências, mas procurava mostrar que o que atrai de modo verdadeiro é a
maneira como esses aspectos se apresentam. Por exemplo, para que um lugar tenha beleza, não
basta possuir coisas belas; é preciso que elas estejam bem distribuídas e revelem um esforço para
agradar. No caso dos seres humanos, essa experiência é ainda mais forte, pois mesmo pessoas sem
beleza física podem ser belas pelo seu modo de ser e de externar o seu interior.
Dessa perspectiva, a beleza, segundo Platão, liga-se ao encanto produzido pelo modo de ser das
pessoas, coisas e ações. É esse modo de ser que atrai e satisfaz os amantes. Ainda no livro O
banquete, Platão, refletindo sobre as ações, diz aos seus companheiros que, enquanto é praticada,
nenhuma ação é bela ou feia, mas se torna bela ou feia dependendo do modo como é feita. Um
discurso, por exemplo, não é belo nem feio em si mesmo. Contudo, se, ao ouvi-lo, somos levados a
observar a maneira como ele é proferido, então podemos dizer que, além da satisfação que ele nos
dá ao ser ouvido, ele também nos faz experimentar a verdadeira Beleza. Por exemplo, o discurso de
um filósofo, de um matemático ou de um sociólogo pode ser um discurso técnico, que simplesmente
apresenta um raciocínio, uma equação ou uma análise. Ficamos satisfeitos por aprender algo com
eles. Mas esse mesmo discurso também pode ser feito com beleza, causando mais prazer quando se
presta atenção no seu modo de ser proferido.
Como os humanos, em geral, quando podem escolher, preferem maior satisfação em vez de uma
satisfação menor, então é possível concluir que eles são habitados por um desejo de beleza. O amor,
desejo de satisfação, mostra-se, portanto, desejo da verdadeira Beleza. Se os humanos não têm
consciência disso, vivem na mera busca de prazer, com menor beleza. Entretanto, ao prestarem
atenção nas possibilidades de encontrar maior beleza, podem desenvolver essas possibilidades. São
elas também que permitem entender o amor como atividade.
EXERCÍCIO C
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 455
2. Como é possível explicar, de acordo com Platão, que alguém ame uma pessoa sem beleza
física?
3. O que Platão quer dizer quando afirma que o amor é busca da verdadeira Beleza?
4 Amor e Formas
Para Platão (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 82) a vivência do amor ou da busca da
Beleza está relacionada ao modo de olhar para a realidade, o que corresponde também ao modo de
ser. É possível simplesmente olhar para o mundo sem prestar atenção no modo como se olha e
apenas encarar tudo como ocasião de satisfação imediata (prazer); e é possível, também, olhar
prestando atenção no modo como se olha e procurar as melhores possibilidades em tudo, a fim de
desenvolvê-las.
Se amo no sentido mais básico, só vejo o meu interesse os benefícios que ela me traz. Eu “não a
vejo”, porque vejo apenas meu interesse; ela é só para o meu prazer. Porém, se presto atenção no
modo como a amo e por que a amo, então tomo consciência da sua beleza,assim, descubro por que
ela me atrai. Sabendo isso colaboro para que o amor vivido entre nós se intensifique e nossa relação
seja sempre melhor.
Ver a beleza de alguém é entender por que o seu modo de ser preenche a minha carência.
aprofundo meu conhecimento da essência de quem amo: ela é uma pessoa, um ser humano; não é
um objeto nem um animal irracional. Ora, se ela é uma pessoa, ela tem possibilidades que podem
ser desenvolvidas: suas emoções, seu pensamento, seu corpo, suas opiniões etc. Por fim, esse meu
olhar mais qualificado me faz ver que, junto com essa pessoa, posso avançar no conhecimento que
temos de nós mesmos e do mundo, alcançando satisfação maior por meio do desenvolvimento de
nossas possibilidades. Juntos, somos capazes de ver as possibilidades de tudo o que se apresenta
em nosso caminho, a fim de construir uma satisfação sempre maior.
Por exemplo, se tivermos um filho, veremos que ele será dotado das possibilidades contidas em um
ser humano; se soubermos cultivar essas possibilidades, colaboraremos para o seu melhor
desenvolvimento e para a nossa maior satisfação com ele. Se construirmos uma casa, veremos que
as possibilidades são outras: são aquelas contidas no material da casa; precisaremos saber o que
esperamos da casa e o que podemos fazer com o material de que dispomos. Se pusermos plantas
em nossa casa, conheceremos outras possibilidades nas plantas e teremos de operar com elas; não
bastará pôr uma semente em um vaso e esperar que nasça alguma flor. Será preciso cuidar dela,
pois suas possibilidades dependem de água, luz e nutrientes. Do mesmo modo, não fará sentido
criar um tigre e depois se assustar caso ele reaja com força. As possibilidades do tigre preveem isso;
elas não preveem que ele se comporte como um gato ou outro animal de estimação. Se quisermos
cultivar a justiça em nossa casa, não fará sentido praticarmos atos injustos, pois a injustiça não é
uma das possibilidades da justiça; é exatamente a falta dela. Se cultivarmos bondade, não
poderemos cultivar também o ódio, pois ele não faz parte da bondade. E assim por diante.
A atenção às possibilidades que formam todas as coisas do mundo é de extrema importância para
Platão. Ele entendia que tudo, mesmo estando em constante transformação, possui uma identidade
ou um conjunto de possibilidades que permanecem em meio às mudanças. Platão se referia a essa
identidade por Forma, Essência ou Ideia.
Página 150
Observe que escrevemos Forma, Essência e Ideia com letras maiúsculas, para não as confundirmos
com “formato”, “retrato”, “contorno” ou “imagem”. As Formas que determinam as possibilidades de
tudo o que existe seriam “modelos” que a Natureza segue para produzir tudo o que existe. Por
exemplo, todas as flores (margaridas, rosas, cravos etc.) têm a identidade de Flor ou a Forma de
Flor; se tivessem a identidade de Folha, não seriam flores. Aliás, quando dizemos Flor, não
precisamos pensar em todas as flores que já conhecemos para entender o sentido desse termo. O
fato de o entendermos sem precisar evocar todas as flores que já vimos mostra que conhecemos a
Forma ou a Ideia de Flor. Assim também, quando temos uma emoção de raiva, sabemos que ela não
é emoção de alegria. Pouco importa o nome que damos a essas emoções; sabemos distinguir entre a
emoção de raiva e a emoção de alegria. Isso ocorre porque conhecemos a Forma de Raiva e a Forma
de Alegria. Ainda, não hesitamos em dizer que um japonês é humano, um congolês é humano, um
brasileiro é humano e um norueguês é humano. Vemos que todos eles têm a Forma de Humano.
Podemos falar de Forma da Humanidade, pois a humanidade é a característica comum aos seres
que identificamos como humanos (não os confundimos com folhas, flores, raiva ou alegria).
ARTEM ZAVARZIN/SHUTTERSTOCK.COM
Como nas formas menores envolvidas pelas maiores, até chegar à forma maior que engloba todas as outras, as
Formas ou Ideias platônicas enformam e englobam as realidades por elas organizadas, até chegar à Forma do
Bem ou Ideia do Bem, que envolve todas as realidades e todas as Formas.
As Formas, seriam “modelos” gerais e próprios da estrutura da Natureza, que os segue na produção
de tudo o que existe. Não são “retratos” idealizados que seriam reproduzidos como cópias infiéis
pelos seres particulares; são os conjuntos de possibilidades que os seres particulares contêm e
desenvolvem ao longo de sua existência. Numa palavra, as Formas são realidades universais (p. 97)
que não dependem dos seres singulares, mas que permitem a esses seres existir participando cada
qual da identidade comum do seu gênero (universal).
Como Platão pensava que o mundo é eterno (não foi criado nem terá fim), as Formas seriam os
modelos que a Natureza segue eternamente na produção de tudo e em todos os níveis. Assim, são
Formas: os gêneros mineral, vegetal e animal, bem como os pensamentos, as cores, os movimentos,
as ações etc. Tudo o que vem a existir segue as possibilidades de uma determinada Forma.
Os humanos, por sua vez, ao produzirem coisas, também seguem Formas. Por exemplo, ao
produzirem mesas, não precisam ter em mente uma imagem exata de uma mesa (um formato); em
vez disso, precisam saber o que é que faz algo ser mesa, e não cadeira. É a Forma de Mesa.
Para conhecer a Forma de uma coisa particular, deve-se conhecer o que há de comum em todas as
coisas do mesmo grupo dessa coisa particular, contrapondo esse grupo aos grupos de outras coisas.
Isso não significa saber tudo sobre cada grupo, e sim saber aquilo que cada grupo tem de próprio,
sem o qual as coisas do grupo deixam de ser o que são. Por exemplo, para conhecer a Forma de Ser
Humano, não precisamos saber todas as características possíveis de todos os seres humanos, mas
aquilo sem o que os seres humanos deixam de ser humanos (perdem sua humanidade). Certamente
diríamos que a Forma do ser humano consiste nisto: que tenha um corpo e seja dotado de
capacidade intelectual. Essa identidade é tão universal que é participada por todos os membros da
espécie humana.
Por sua vez, participando dessa identidade universal, cada ser humano pode desenvolver as
possibilidades contidas nela. Cada indivíduo pode desenvolver tudo aquilo de que seu corpo é
capaz, desenvolver suas emoções, seus sentimentos, seu pensamento, suas opiniões, seu
conhecimento, suas relações, sua capacidade produtiva, artística, política, religiosa; enfim, todas as
possibilidades contidas na Forma universal de Ser Humano ou de Humanidade. Ele não pode voar,
nem viver sob a água, nem deixar de se alimentar etc., pois essas possibilidades não estão contidas
na Forma de Ser Humano. Se ele fosse formado pela Forma de
Página 151
Pássaro, poderia voar; se da Forma de Peixe, poderia viver sob a água; se da Forma de Mineral,
poderia deixar de se alimentar... Até podemos dizer que o ser humano participa da Forma de
Mineral, pois a constituição de seus ossos é cálcio; então, ele é, de certa maneira, “mineral”. Mas ele
participa da Forma de Mineral como ser humano, e não como pedra. Igualmente, ele participa da
Forma de Planta (ser vivo) e de Animal (ser vivo dotado de consciência por meio dos cinco
sentidos), mas é como humano que ele participa dessas Formas, ou seja, como ser vivo e animal
racional, não como planta nem como animal irracional. Na contraposição do ser humano com os
minerais, as plantas e outros animais, salta à vista sua especificidade, levando a perceber a sua
identidade própria (sua Forma, Essência ou Ideia).
S e você já assistiu a algum filme de extraterrestres, talvez tenha notado que eles sempre são
representados como humanoides, ou seja, com aspecto humano. Têm sempre cabeça, tronco e
membros que lembram seres humanos.
Alguns diretores de cinema até procuram representá-los de maneira diferente (com cabeças
desproporcionais ao corpo, com olhos não humanos, mãos bizarras etc.), mas sempre acabam por
lhes dar aspecto humano. Outros tentam representá-los sem aspecto humano, mas terminam por
dar a eles a aparência de algo conhecido (aparência de animal, de planta, de poeira, de monstros
com partes humanas e partes animais etc.).
Ora, se são extraterrestres, por que não os representamos como algo inteiramente diferente de
tudo o que há na Terra?
Se Platão ouvisse essa pergunta, certamente sorriria, piscaria para nós e nos diria: “Não os
representamos de modo totalmente diferente do que há na Terra porque isso é simplesmente
impossível. Só podemos representar aquilo que conhecemos!”. Para conceber um extraterrestre
autêntico, teríamos de conseguir imaginar alguma Forma ou algum gênero completamente novo,
não produzido na Terra. Ora, se for completamente novo, não conheceremos sua Forma ou sua
identidade. Então, sequer poderemos imaginá-lo.
Lembre-se que Forma não significa aparência, mas a identidade dos grupos nos quais se divide tudo
o que existe. Os indivíduos, com suas aparências, são só exemplares da identidade ou Forma do seu
grupo. Assim, se não conhecemos a Forma ou a identidade de um extraterrestre, não podemos
imaginar como seria um representante dessa Forma. É por isso que, para “imaginar” o que seria um
extraterrestre, sempre temos necessidade de usar características de coisas que conhecemos.
Você pode assistir ao filme sozinho(a) ou em grupo e refletir se o diretor realmente conseguiu
representar alienígenas de maneira original. O corpo deles é bastante diferente do nosso. Pergunte-
se, porém: mesmo diferente do corpo humano, o corpo desses extraterrestres não lembra o de um
camarão gigante ou de uma lagosta? Além disso, eles não adotam atitudes humanas? Não têm
inteligência? Não têm afetos? Se têm, então o que impediria de dizer que eles são seres humanos?
No filme, o governo sul-africano insiste em dizer que aqueles seres não são humanos. Mas, se eles
têm afetos e pensamento, então apenas o seu corpo os tornaria não humanos? Pergunte-se ainda: o
diretor Blomkamp realmente quis fazer um filme sobre extraterrestres? Ou seria outra a sua
intenção?
Ao afirmar as Formas ou os modelos universais e eternos que, Platão não oferece “receitas” do que
as coisas devem ser, mas indica o que elas são e o que podem ser. É justamente pela atenção ao
modo como as pessoas, coisas e atividades podem ser que se torna possível pensar a identidade
delas ou as suas Formas.
As Formas não são óbvias, porque, segundo Platão, o ser humano está acostumado a confiar na
aparência das coisas e a acreditar que a identidade delas é dada por essa aparência. A percepção da
aparência ocorre quando o ser humano conhece (usa sua inteligência) com base nas informações
recebidas por meio dos cinco sentidos (o tato, a visão, a audição, o olfato e o paladar). Todavia,
conhecer apenas a aparência das coisas, por meio dos cinco sentidos, não significa chegar às
Formas.
Para chegar às Formas, é preciso que o ser humano, servindo-se de sua inteligência, vá além do que
ela capta por meio dos cinco sentidos e preste atenção no modo de funcionar da própria
inteligência. Ao fazer isso, o ser humano percebe que, para a inteligência funcionar, ela precisa de
Formas.
Ao se pôr em ação, a inteligência humana percebe diferenças e semelhanças entre tudo o que existe.
Nesse nível, ela ainda se serve dos dados captados por meio dos sentidos; percebendo semelhanças
e diferenças, a inteligência contrapõe as coisas entre si (ela as compara, observando em que se
distinguem e em que consiste a identidade comum a elas). Contudo, observando diferenças e
semelhanças entre as coisas, a inteligência pode concentrar-se em si mesma, sem precisar mais dos
dados sensíveis (colhidos por meio dos cinco sentidos). Ela percebe que identidade, diferença e
semelhança são critérios ou regras que ela mesma usa para poder funcionar. Assim, a presença das
Formas se revela no funcionamento da própria inteligência humana. Elas são vistas como modelos
que organizam tudo o que existe porque são modelos que permitem ao próprio pensamento
humano entender as coisas.
Uma vez que elas podem ser captadas pela inteligência sem a contribuição dos cinco sentidos, as
Formas são chamadas por Platão de realidades inteligíveis. Aos conteúdos percebidos pela
inteligência com o auxílio dos sentidos ele denomina realidades sensíveis.
Na História da Filosofia, criou-se o costume de afirmar que Platão teria falado de um “mundo
inteligível” e de um “mundo sensível”, mas ele nunca usou essas expressões, menos ainda dividiu o
mundo em dois. Ao contrário, as realidades sensíveis, no seu dizer, são estruturadas por “dentro”
pela dimensão inteligível ou pelos modelos universais e eternos (Formas, Essências ou Ideias).
Segundo Platão, a inteligência humana reconhece Formas nas coisas, pessoas, ações etc., como
modelos que orientam a identidade essencial de tudo o que existe (o conjunto de possibilidades
específicas de cada realidade) e o pensamento sobre essas mesmas coisas, pessoas, ações etc.
Assim, a Forma de Cavalo é a “regra” universal que faz de uma coisa um cavalo, e não um peixe, um
ser humano, uma pedra ou uma planta e que permite conhecê-lo especificamente como cavalo. Essa
regra pode ser expressa de duas maneiras: (a) todos os seres que forem produzidos no interior da
espécie dos cavalos serão cavalos e terão as possibilidades próprias de cavalos; ou, então, (b) para
que um ser tenha as possibilidades próprias de um cavalo, tem de ser produzido no interior da
espécie dos cavalos.
Outros exemplos: a Forma de Triângulo não é o desenho de um triângulo perfeito ou “ideal”. Todo
triângulo, se bem construído, representa um triângulo ideal, pois triângulos não existem como tais
na Natureza; há somente coisas triangulares. De todo modo, a Forma de Triângulo é a regra: todo
triângulo deve ser um polígono de três lados. Os “triângulos” da Natureza são azuis, rosas, verdes,
equiláteros, escalenos, de pedra, de madeira etc., mas todos seguem a essência de ter três lados.
Assim também a Forma de Ser Humano determina que todo ser humano é um animal racional.
Pouco importa se eles têm olhos puxados ou não, se sãos altos ou baixos, do sexo biológico
masculino ou feminino etc.
Platão insistia que as coisas e as Formas só são conhecidas por contraposição, quer dizer, pela
comparação que distingue entre uma coisa e outra,
Página 153
fazendo aparecer a diferença própria de cada uma. Percebendo-se a diferença entre as coisas e
identificando-se aquilo que é essencial nelas, chega-se à Forma, Ideia ou Essência delas. Assim,
identifica-se um cavalo quando se percebe que ele não é um elefante, um ser humano ou uma
árvore. Identifica-se um ser humano vendo-se que ele não é um cavalo, uma árvore ou um elefante.
E assim por diante.
Representação equivocada que se tornou comum na História da Filosofia para representar a Teoria das Ideias.
O X que marca o erro da representação foi posto aqui com fins pedagógicos, para você saber que essa
representação é inadequada. Segundo essa representação inadequada, o cavalo “ideal” estaria em outro mundo
(que nem mesmo Platão saberia onde fica!), ao passo que os cavalos “reais” estariam em nosso mundo.
Por essa razão, seria possível propor outra representação figurativa da Teoria das Formas ou
Ideias, de Platão, mesmo sendo absurdo querer representar aquilo que não pode ser expresso por
imagens. Afinal, se as Formas são regras essenciais que regem a Natureza, elas não são “coisas”, ou
melhor, não são coisas materiais ou físicas, e, por isso, não poderiam ser representadas. Entretanto,
com o auxílio da arte abstrata, é possível ilustrar, como numa metáfora, o dinamismo das Formas.
Observe abaixo a imagem do pintor holandês Piet Mondrian (1872-1944).
Piet Mondrian (1872- 1944), Victory Boogie Woogie (Boogie Woogie da Vitória), 1942-1944, óleo e papel sobre
tela.
Liberando-se das imagens naturais, a pintura de Mondrian convida a olhar para formas universais,
isto é, formas que exprimem todo tipo de coisa, sem se fixar sobre nada em particular. Diante do
quadro Victory Boogie Woogie, o olhar dos espectadores não para em nenhuma cor nem em
nenhuma forma, mas circula por todas elas. Ao mesmo tempo, é impossível olhar para uma forma
sem ver o conjunto e sem situar cada uma das formas em contraposição com as outras. É até
possível falar de cor e de “não cor” quando se veem os traços pretos e as formas brancas, pois,
embora pareçam “não ser cores” como as outras cores, eles só são “não cores” na contraposição que
os revela exatamente como cores diferentes das outras. Esse dinamismo de olhar o todo, mesmo
começando em um ponto, e de definir o ponto em contraposição com o todo permite justamente
tomar a pintura de Mondrian como um modo de ilustrar a visão platônica das Formas. As Formas
estão em tudo e dão o sentido de tudo; algumas se penetram, outras não; mas todas só são
percebidas em contraposição e ganham novo sentido quando vistas no todo.
A experiência do amor, dessa perspectiva, revela que ele não é uma “coisa”, mas um movimento
vivido pelos seres humanos e compreensível apenas em contraponto com outros movimentos. Na
verdade, o amor ou a Forma do Amor se revela como o motor do dinamismo que leva a buscar
satisfação. O seu sentido só pode ser percebido na contraposição com outras experiências: não é
conhecimento nem sabedoria; não é plenitude nem falta total; e assim por diante. Além disso, para
realmente compreender a Forma do Amor, é preciso entender que, se a sua especificidade é a de ser
o motor da busca de satisfação, então não há diferentes “tipos” de amor
Página 154
nem diferentes “buscas”, mas diversos modos de amar ou de buscar satisfação. Assim, pode-se
proceder por contraposição para compreender o dinamismo interno na própria experiência do
amor: a contraposição entre os seus graus é que leva a falar de diferentes modos de amar.
EXERCÍCIO D
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 455
1. A relação amorosa permite ver as possibilidades contidas no fato de que a pessoa amada é
um ser humano. Explique como essa experiência leva a afirmar a existência das Formas (Ideias,
Essências) segundo Platão.
4. Por que o desenho do “cavalo ideal” é inadequado para representar a Teoria das Ideias? Qual
a vantagem do quadro de Mondrian para representá-la?
O convite de Platão é para dar às aparências o valor que elas têm: elas são apenas uma dimensão de
tudo o que existe; não são “tudo” o que existe, mas a ocasião para chegar às Formas.
No tocante ao amor, Platão defende a possibilidade de passar pelas aparências e pelos prazeres
(que são bons em si mesmos) e avançar para algo ainda melhor, fonte de maior satisfação. O mesmo
movimento que se inicia pela fixação nas aparências e pela busca dos prazeres pode conduzir até a
contemplação ou a compreensão das Formas.
Ao afirmar essa possibilidade, Platão percebe que todas as Formas apontam para uma Forma mais
básica, presente em todas as outras: a Forma do Bem ou a Ideia do Bem. Buscar satisfação é buscar
algo que se considera bom. Se algo é considerado bom, então é formado pela Ideia do Bem. Por
outro lado, se as Formas contêm possibilidades de boa realização, elas também remetem ao Bem,
pois tudo o que realiza, completa e plenifica é algo bom. Assim, em todas as Formas pulsa a Forma
do Bem.
De uma perspectiva platônica, mesmo as coisas aparentemente “ruins” podem remeter à Forma do
Bem. Uma catástrofe natural, por exemplo, faz parte do movimento da Natureza, que sempre busca
equilíbrio, arranjo ordenado e funcionamento adequado. Então, por mais que uma catástrofe nos
pareça algo “ruim” em si mesmo, ela tem um sentido no conjunto da Natureza e é direcionada pela
Forma do Bem. Uma doença, do ponto de vista platônico, não é um castigo. Vista como causa de
sofrimento, ela parece má. Porém, vista no conjunto da Natureza, ela se revela como parte do
movimento que leva tudo a surgir e a desaparecer, mantendo o funcionamento do conjunto da
Natureza.
Um exemplo polêmico pode ser dado aqui: mesmo um criminoso é alguém que busca o Bem; afinal,
ele crê que está fazendo algo bom para si ao cometer um crime. É uma crença equivocada, não há
dúvida. Porém, o criminoso também é movido pela busca do Bem. Seu equívoco está na má
identificação dos meios para alcançá-lo.
REPRODUÇÃO
Como na representação de círculos concêntricos, a Ideia do Bem pode ser associada, por analogia, tanto com o
círculo externo, que engloba todos os outros e lhes dá sentido, como também com o círculo mais interno, do
qual procede o centro e o sentido dos círculos externos.
O Bem é desejado mesmo pelos seres irracionais (que não podem refletir sobre ele), pois sempre
desejam o que há de melhor. Uma planta, por exemplo, se estiver numa região escura e se captar luz
em alguma
Página 155
direção, naturalmente se contorcerá rumo à luz, que é melhor do que a escuridão. Assim, de acordo
com a filosofia platônica, nada no Universo deseja o pior, o ruim ou a destruição gratuita. Tudo
procura a afirmação, a positividade, o melhor. O único ser que pode buscar sua própria destruição é
o ser humano, com o suicídio, mas mesmo quem chega a essa situação extrema supõe fazer o bem
para si mesmo(a).
Dado que Platão entende o Bem é o horizonte da melhor realização possível para tudo e todos, e
como ele havia definido a beleza das coisas como aquilo que satisfaz, ele então conclui que a Beleza
é uma face do Bem, pois aquilo que satisfaz corresponde à melhor realização possível. É por isso
que, no contexto do pensamento platônico, também escrevemos Beleza com letra maiúscula. Dessa
perspectiva, o Bem é o motor que age desde o início do movimento do amor, magnetizando tudo e
todos a buscá-lo.
O Bem aparece, assim, como aquilo que pode suprir a carência humana de maneira perfeita. Se o
amor, como busca da Beleza, é busca do Bem, e se tudo visa ao Bem, então também é possível
concluir que o amor é o motor do dinamismo do Universo.
Platão, filósofo do amor, percebia com clareza que nem sempre os seres humanos se tornam
melhores. Mesmo magnetizados pelo Bem, podem apegar-se a imagens dele e perder-se pelo
caminho, procurando satisfazer sua busca do melhor com coisas que não são realmente as
melhores. A Humanidade, portanto, não está necessariamente em progresso, mas, tomando
consciência de suas possibilidades e do polo do Bem, pode melhorar a busca de satisfação vivida
naturalmente.
EXERCÍCIO E
1. O que leva Platão a afirmar a existência da Forma do Bem?
3. Como é possível, segundo Platão, que um criminoso e um suicida sejam vistos como pessoas
que buscam o Bem?
6 Amor e educação
Platão esclarece que avançar rumo ao Bem é um processo que requer educação. É preciso aprender
a identificar a dimensão inteligível de tudo o que existe (as Formas presentes no mundo e na
atividade mesma da inteligência). Acostumado a crer nas aparências das coisas ou nas suas
características sensíveis como única realidade, o ser humano necessita de um novo olhar para ver a
transcendência das Formas agindo na imanência do mundo (Ícone: Conteúdo tratado em outra
página p. 80). Esse novo olhar, resulta da educação, é também o que permite evitar que as pessoas
façam coisas más pensando fazer coisas boas.
No livro A República, Platão apresenta os passos necessários para uma educação que visa ao amor
pleno (o conhecimento do Bem). Trata-se de uma educação filosófica, pois os filósofos platônicos
são entendidos como cidadãos que se dedicam a compreender a experiência humana e a identificar
a presença do Bem. Os outros cidadãos revelam aptidões para outras tarefas, como a produção da
subsistência e a defesa da cidade. Os filósofos, então, devem pôr-se a serviço dos outros cidadãos,
24
colaborando com o governo da cidade por meio da implementação da Justiça, que é a organização
de tudo em vista do Bem.
(1) é possível fazer o educando sair do nível das aparências físicas e perceber as próprias coisas,
quer dizer, perceber que elas não são apenas suas aparências. Nesse nível, dá-se atenção à
confiança que costumamos ter em tudo o que captamos pelos cinco sentidos, gerando opinião sobre
tudo;
(2) entender que as coisas do mundo podem ser reduzidas a hipóteses matemáticas, fazendo-o sair
do campo da confiança e da opinião e entrar no campo da inteligência e do conhecimento. A
atividade matemática permite ver que as coisas de nosso mundo podem ser reunidas em conjuntos,
decompostas em partes, linhas, pontos, podem ser contadas em unidades, dualidades, tríades,
harmonias etc. Ponto, linha, unidade, dualidade, harmonia são realidades eternas, segundo Platão,
pois um ponto será sempre um ponto, em qualquer época e lugar. O mesmo ocorre com a linha,
Página 156
a harmonia e todas as outras entidades matemáticas. Desse ponto de vista, a análise do ponto, da
linha, da unidade etc. mostra que eles não são apenas os desenhos de pontos, linhas, unidades, pois
remetem à Forma de Ponto, à Forma de Linha, à Forma de Unidade etc. A Matemática permite,
então, que o educando veja com outro olhar o mundo das imagens e das coisas sensíveis (mundo da
confiança e da opinião) e perceba que o mundo físico é formado por regras inteligíveis cujo melhor
exemplo é o modo de ser das entidades matemáticas (mundo da inteligência e do conhecimento);
(3) a estrutura matemática das coisas e feita a transição para o mundo inteligível levar o educando
a entender a existência das próprias Formas. Continua-se no campo da inteligência e do
conhecimento, e não mais da crença e da opinião;
(4) captar a Forma do Bem, presente em todas elas e doadora de sentido a tudo o que existe. Trata-
se da Forma reguladora máxima, pois é a mais elevada (só se chega a ela pela compreensão das
outras), e, ao mesmo tempo, mínima, porque é o elemento fundamental presente em absolutamente
tudo o que existe. Compreendê-la é o ato mais pleno de consciência e de conhecimento, grau mais
perfeito da atividade da inteligência.
Esses passos se mostram como um contraste de luzes e sombras, de realidade invisível ou discreta
e aparência das coisas. A realidade sensível é “sombra” da realidade inteligível e só revela sua
identidade quando contrastada com a dimensão inteligível. As entidades matemáticas são sombra
das Formas e só podem ser bem compreendidas quando contrastadas com elas. As Formas, por sua
vez, são mais bem compreendidas quando contrastadas com a Forma do Bem. Dizendo de “trás para
a frente”, a Forma do Bem ilumina a compreensão das Formas, que iluminam a compreensão das
entidades matemáticas, que iluminam a compreensão das coisas sensíveis, que, por sua vez,
iluminam a compreensão das aparências.
O contraponto realizado nas duas direções (subindo do sensível até o Bem e descendo dele até o
sensível) recebeu o nome de dialética: método que reproduz um diálogo ou um contraponto de
posições, confrontando-as até chegar a um acordo ou a um desacordo. Se lembrarmos que o motor
de toda essa educação é o amor, poderemos dizer que Platão propôs uma concepção de educação
como dialética do amor.
No livro VII da obra A República, Platão mostra, por meio de uma alegoria, como se dá a educação
dialética do amor. Trata-se da Alegoria da Caverna. Uma alegoria é uma explicação por metáforas.
Esse procedimento é estratégico para Platão, pois ele sabe que, naturalmente, as pessoas
compreendem melhor por imagens. A caverna em que vivem os seres humanos (caverna da crença
nas aparências) pode ser o ponto de partida da libertação que faz sair da própria caverna (chegar às
Formas). A alegoria é apresentada na forma de um diálogo entre o filósofo Sócrates (p. 157) e o seu
interlocutor Glauco. Ícone: Texto filosófico
Página 157
Foi um filósofo grego que viveu em Atenas e desenvolveu um pensamento essencialmente oral sem
registrá-lo por escrito, pois considerava o saber filosófico como algo que se encarna em um estilo
de vida mais do que uma atividade “profissional”. Tudo o que se sabe sobre Sócrates foi transmitido
por seu aluno Platão e por outros escritores. Sócrates se baseou no trabalho de filósofos anteriores
a ele, mas ampliou o campo de interesse da Filosofia. Por exemplo, em debate com os Sofistas, fez
que a Filosofia se interessasse por questões éticas. Sua influência foi tão grande que se costuma
referir aos filósofos anteriores como “pré-socráticos”. O livro de Platão intitulado Apologia de
Sócrates reconstrói o momento em que Sócrates foi condenado à morte, sendo obrigado a tomar
veneno (cicuta), porque ele “perturbava” a mente das pessoas. A mesma sociedade que Sócrates
havia defendido agora o condenava. Ele, por respeito a essa sociedade, acatou a pena de morte, mas,
com esse gesto, não deixou de introduzir dúvidas em seus concidadãos.
Pode-se perguntar por que Platão precisou imaginar a caverna para expor o jogo de sombra e luz da
dialética do amor. Ele não poderia ter falado simplesmente das sombras refletidas na água; depois
das coisas mesmas refletidas; e depois do Sol, cuja luz ilumina tudo?
Poderia, claro. Mas perderia o que mais importa nessa narrativa: o seu caráter pedagógico. Por
meio da imaginação da caverna, Platão pretende fazer o leitor compreender que só por uma
atividade decidida e sistemática (educação) o ser humano pode aprender a identificar as aparências
e ver o que está por trás delas. É por isso que o prisioneiro sente dor, sofre com o excesso de luz e
chega até a pensar que os objetos são falsos (ao passo que as sombras seriam verdadeiras). Mas
quem o liberta, mostrando pouco a pouco as coisas refletidas e a luz do fogo que as faz refletir,
consegue que ele entenda como as sombras são produzidas e tome consciência da prisão em que
vivia. Depois, ao subir para o mundo externo, o antigo prisioneiro entende melhor a dinâmica da
luz, pois compreende que tudo é visto graças à luz do Sol. Ao compreender, ele não fica apenas
numa dinâmica de confiança e opinião, mas de conhecimento.
Assim também, no processo educativo, o educando pode resistir, apegando-se à confiança direta na
aparência do mundo. Tudo parece normal... Viver, alimentar-se, descansar, praticar esporte,
estudar, trabalhar, amar, ganhar dinheiro, gastar, consumir, unir-se a alguém ou ficar sozinho(a),
envelhecer, morrer. Porém, se entrar no caminho que leva a perguntar pelo que faz o mundo ser
como é, perceberá que aquilo que a realidade “parece ser” esconde uma dimensão invisível que a
explica. Ao entender isso, sairá da mera confiança e entrará numa atitude de conhecimento,
podendo, então, explorar melhor as possibilidades de tudo o que existe.
REPRODUÇÃO/MUSÉE DES BEAUX-ARTS, ANGERS, FRANÇA
Lorenzo Lippi (1606-1665), Alegoria da imitação, 1640, óleo sobre tela. A aparência é realidade, embora,
segundo Platão, ela não seja toda a realidade. Como uma máscara, a aparência pode ocultar outra coisa que não
é ela; mas, como numa romã, ela pode ocultar coisas que são ela (por trás da casca da romã, há as sementes da
própria romã).
É por isso que Platão também afirma que o prisioneiro tomará consciência de que vivia num mundo
de ilusões. Aliás, se ele quiser voltar para abrir os olhos de seus companheiros, estes certamente
rirão dele e poderão até querer matá-lo. Platão, ao mencionar esse risco, prestava uma homenagem
a seu mestre Sócrates, que havia sido condenado à morte porque seus concidadãos não entenderam
sua atividade
Página 158
Alegoria da Caverna
Platão
SÓCRATES: Imagina a nossa natureza, relativamente à educação ou à sua falta, de acordo com a
seguinte experiência. Suponhamos uns homens numa habitação subterrânea em forma de caverna,
com uma entrada aberta para a luz [...]. Eles estão lá dentro desde a infância, algemados de pernas e
pescoços, de tal maneira que só lhes é dado permanecer no mesmo lugar e olhar para a frente; são
incapazes de voltar a cabeça, por causa dos grilhões ; serve-lhes de iluminação um fogo que se
25
queima ao longe, numa eminência , por detrás deles; entre a fogueira e os prisioneiros há uma
26
subida, ao longo da qual se construiu um pequeno muro, no gênero dos tapumes que os homens das
marionetes colocam diante do público. [...] Visiona também, ao longo desse muro, homens que
transportam toda a espécie de objetos que o ultrapassam; estatuetas de animais e de homens, de
pedra e de madeira; como é natural, nos que transportam esses objetos, uns falam, outros seguem
calados.
SÓCRATES: Semelhantes a nós! Em primeiro lugar, pensas que, nessas condições, os prisioneiros
tenham visto, de si mesmo e dos outros, algo mais que as sombras projetadas pelo fogo na parede
oposta da caverna?
GLAUCO: Como não, se são forçados a manter a cabeça imóvel toda a vida!
SÓCRATES: Então, se eles fossem capazes de conversar uns com os outros, não te parece que eles
julgariam nomear objetos reais quando apontavam para o que viam?
GLAUCO: É forçoso.
SÓCRATES: E se a prisão tivesse também um eco na parede do fundo? Quando algum dos passantes
falasse, não te parece que eles julgariam que era a voz da sombra que passava?
SÓCRATES: De qualquer modo, pessoas nessas condições pensariam que a realidade fosse só a
sombra dos objetos. [...] Considera o que aconteceria se eles fossem soltos das cadeias e curados da
sua ignorância, para vermos se, retornando à sua natureza, de que modo as coisas passariam. Logo
que alguém soltasse um deles e o forçasse a endireitar-se de repente, a voltar o pescoço, a andar e a
olhar para a luz, ao fazer tudo isso, sentiria dor e o deslumbramento impedi-lo-ia de fixar os
27
objetos cujas sombras antes via. Que pensas que ele diria se alguém lhe afirmasse que até então ele
só vira coisas sem valor e que agora ele estava mais perto da realidade e via de verdade, voltado
para objetos mais reais? E se ainda, mostrando-lhe cada um desses objetos que passavam, o
forçassem com perguntas a dizer o que era? Não te parece que ele se veria em dificuldades e
suporia que os objetos vistos antes eram mais reais do que os que agora lhe mostravam?
SÓCRATES: Se alguém o forçasse a olhar para a própria luz, doeriam seus olhos e ele se voltaria
para buscar refúgio junto dos objetos para os quais podia
Página 159
olhar e julgaria ainda que esses eram na verdade mais nítidos do que os que lhe mostravam? [...] E
se o arrancassem dali à força e o fizessem subir o caminho rude e íngreme e não o deixassem fugir
antes de o arrastarem à luz do Sol, não seria natural que ele se doesse e se desesperasse, por ser
assim arrastado, e, depois de chegar à luz, com os olhos deslumbrados, nem sequer pudesse ver
nada daquilo que agora dizemos serem os verdadeiros objetos?
SÓCRATES: Precisaria habituar-se, julgo eu, se quisesse ver o mundo superior. Em primeiro lugar,
olharia mais facilmente para as sombras; depois disso, para a imagem dos homens e dos outros
objetos, quer dizer, a imagem refletida na água, para, por último, olhar para as próprias coisas. A
partir de então, seria capaz de contemplar o que há no Céu e o próprio Céu, durante a noite,
olhando para a luz das estrelas e da Lua, mais facilmente do que se fosse o Sol e o seu brilho de dia.
[...] Finalmente, julgo eu, seria capaz de olhar para o Sol e contemplá-lo; não mais sua imagem na
água ou em qualquer outro lugar, mas o próprio Sol, no seu lugar. Depois já compreenderia, acerca
do Sol, que é ele que causa as estações e os anos e que tudo dirige no mundo visível, sendo o
responsável por tudo aquilo de que os prisioneiros viam só uma imitação.
SÓCRATES: Imagina ainda o seguinte: se um homem nessas condições descesse de novo para o seu
antigo posto, não teria os olhos cheios de trevas ao regressar subitamente da luz do Sol? [...] E se lhe
fosse preciso julgar aquelas sombras, em competição com os que tinham permanecido na caverna,
acaso não causaria o riso? Não diriam que, por ter ele subido ao mundo superior, estragara a vista e
que não valia a pena tentar a subida? E a quem tentasse soltá-los e conduzi-los até lá em cima, se
pudesse agarrá-lo e matá-lo, não o matariam?
SÓCRATES: Meu caro Glauco, este quadro – prossegui eu – deve agora aplicar-se a tudo quanto
dissemos anteriormente, comparando o mundo visível por meio dos olhos à caverna da prisão e a
luz da fogueira que lá existia à força do Sol. Quanto à subida ao mundo superior e à visão do que lá
se encontra, [...] segundo entendo, a Ideia do Bem é o que se avista, com muito custo, na fronteira do
cognoscível. Uma vez avistada, compreende-se que ela é para todos a causa de tudo quanto há de
justo e belo; e que, no visível, foi ela que produziu a luz, da qual é senhora; e que, no inteligível, é ela
a senhora da verdade e da inteligência; e que é preciso vê-la para ser sensato na vida particular e
pública.
MIRELLA SPINELLI
PLATÃO. A República. Tradução Maria Helena R. Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993. p. 317-321.
educativa e acharam que, com seu pensamento, ele corrompia as pessoas, principalmente os jovens.
O esquema anterior, que representava a divisão entre o campo da crença e o do conhecimento, pode
ser completado com este:
Ao descrever a passagem de um nível a outro, Platão refere-se à educação que permite identificar
diferentes dimensões da mesma realidade. Ele não indica “partes” separadas do mundo (menos
ainda “dois mundos”). Seu objetivo é esclarecer que há diferentes modos de conhecer a mesma
realidade (seja crendo nas imagens, seja chegando às Essências).
O prisioneiro que chega até a visão do Sol ou o educando que completa o caminho da educação
dialética e “vê” o Bem (por meio da inteligência) é a imagem de quem pratica a Filosofia, adotando
uma vida mais clara e mais sensata tanto no nível particular como no público. Daí a convicção
platônica: o filósofo deve voltar à caverna da opinião e abrir os olhos de seus concidadãos. O risco é
grande, mas o amor faz valer a pena correr tal risco.
EXERCÍCIO F
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 456
1. Por que Platão afirma que a experiência do amor requer educação? Em sua resposta, use a
palavra-chave aparência.
5. Por que a dialética que leva ao Bem pode ser chamada de dialética do amor?
EXERCÍCIOS COMPLEMENTARES
1 Recapitulação
Faça um resumo da teoria platônica do amor concentrando-se na tese de que a experiência do amor
pode ser vivida de duas maneiras básicas.
2 Reflexão
Reflita sobre suas experiências de amor tomando por base o caminho que percorremos neste
capítulo. Você consegue se lembrar de alguma vivência em que você não apenas “sentiu” amor, mas
também colaborou ativamente para construí-lo?
3 Observação e reflexão
Observe a seguinte releitura da Alegoria da Caverna. Depois, encontre motivos para concordar com
ela e também para discordar dela.
Kanar (1967-), La caverne moderne (A caverna moderna), sem data, cartoon. <www.kanar.be>
Página 161
Ícone: Dica de filmes Dicas de filmes para você assistir tendo em mente o que trabalhamos
neste capítulo
Belo documentário em que 19 pessoas com diferentes graus de deficiência visual (da miopia à cegueira total)
explicam como “veem” os outros e o mundo.
Filhos do silêncio (Children of a Lesser God), direção Randa Hanes, EUA, 1986.
Emocionante história de um professor de linguagem de sinais que se apaixona por uma surda-muda com
dificuldades de relacionamento. É surpreendente o modo como o professor soube contribuir para que sua
aluna desenvolvesse suas possibilidades.
A culpa é das estrelas (The Fault in Our Stars), direção Josh Boone, EUA, 2014.
O filme retrata a história de dois adolescentes com câncer. Entre as várias questões suscitadas, uma delas é
como viver o amor quando se pode morrer em breve. Evitar o amor, para não sofrer? Deixar de amar, para
poupar as pessoas? Amar sem responsabilidade? Um amor verdadeiro nunca tem sofrimento?
“Uns braços”, conto de Machado de Assis, no volume Várias histórias, com várias edições.
História do amor sentido entre um jovem e uma mulher casada. A força do sonho, tal como retratada por
Machado de Assis, leva muitos leitores a afirmar que seu conto narra um “amor platônico”, como se Platão, ao
falar do mundo das Ideias, vivesse no mundo do sonho e pensasse que o amor é só intelectual. Contudo, se
viver no mundo do sonho (irreal) significa ser “platônico”, então nem Machado de Assis nem o próprio Platão
são platônicos! Machado retrata com intenso realismo o amor vivido entre o jovem e a mulher casada, levando
os leitores a se perguntar várias coisas: a mulher casada cometeu adultério ao desejar o jovem? Adultério só se
comete quando há relação sexual? Mas, se o amor é irresistível, faz sentido falar de adultério? Ou o amor não é
irresistível?
“Amor”, conto de Clarice Lispector, publicado no volume Laços de família, com várias edições.
O amor pode surgir de modo completamente imprevisível, causando uma reviravolta na vida dos amantes. É o
que ocorre com Ana, que um dia vê um cego mascando chiclete e é perturbada por essa imagem.
Amor e desejo, de Homero Santiago, WMF Martins Fontes, 2011 (Coleção Filosofias: o prazer do pensar).
O livro reúne elementos estratégicos da história filosófica do amor, perguntando se ele é idêntico ao desejo.
Apresenta autores como Sócrates, Platão, Santo Agostinho, Descartes, Espinosa e Freud.
Introdução ao estudo da vida e do pensamento de Platão, adotando uma estratégia precisa: a exploração de
diferentes hipóteses que permitem interpretar Platão. Dá especial atenção ao vínculo de Platão com os
pitagóricos.
Acesse:
Site do grupo Archai, dedicado ao estudo das origens da Filosofia. No site há rico material dedicado a Platão,
sobretudo nos artigos da Revista Archai, cujo link é também disponibilizado. O acesso é gratuito, tanto ao site
como à revista.
Acesse:
Site do Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA). Você pode navegar gratuitamente e conhecer várias
obras de Piet Mondrian.
CAPÍTULO
SAGRADO
6 DO AMOR DE AMIGO AO AMOR
SERGEY KAMSHYLIN/SHUTTERSTOCK.COM
Nas três grandes tradições monoteístas ocidentais (judaísmo, cristianismo e islamismo), as personagens
angélicas representam seres que contemplam o ser divino e conhecem a gratuidade do seu amor. Durante a
Patrística e a Idade Média, eles foram considerados, depois de Deus, os melhores modelos da vivência do amor
cuja única recompensa é o próprio ato de amar.
A cantora islandesa Björk compôs, a canção All is Full of Love [Tudo é repleto de amor]. retrata
o “amor” de dois robôs, o que é muito curioso; afinal, robôs não podem amar.
O clipe mostra a fase final da montagem dos dois robôs. Em uma das cenas, um líquido começa a
fluir entre eles, indicando como que uma “vitalidade”. Ao mesmo tempo, a voz marcante de Björk
continua a repetir que “tudo é repleto de amor”. O líquido pode, então, ser entendido como o
próprio amor; e a metáfora ganha todo um novo brilho: o amor é capaz de mover até máquinas!
Acesse:
Você pode ver o clipe oficial da canção em: <www.youtube. com/watch?v=AjI2J2SQ528> (acesso
em: 4 jan. 2016).
Björk
p. 459
Observação 1
(BJÖRK. All is Full of Love. In:_____. Homogenic. Nova York: Elektra Entertainment Group, 1997. 1 CD. Faixa 10.)
A canção de Björk admite uma interpretação platônica, pois afirmar que tudo é repleto de amor
significa que o amor dá o sentido de tudo; e, com efeito, na filosofia platônica, o amor é o
movimento que leva tudo a buscar o melhor.
Björk não pensa que as máquinas amam; a força de sua imagem está justamente em ser um caso
extremo. Sua metáfora pode ter outros sentidos. Pode ser uma ironia do amor vivido na era das
máquinas: as pessoas não sabem amar, mas amam como robôs, mecanicamente. Ou podem mesmo
amar apenas a si mesmas quando entram em uma relação amorosa. Não é por acaso que os dois
robôs do clipe de Björk reproduzem o corpo da cantora. Mas, ainda que o sentido do clipe seja o de
uma crítica à vivência egoísta do amor, o próprio amor aparece como o único capaz de melhorar as
relações amorosas. O exercício de amar deve ser reaprendido. Não é casual a insistência de Björk:
You have to trust it [você precisa crer nisso]; Your phone is off the hook [você está desconectado;
literalmente: seu telefone está fora do gancho]; Your doors are all shut [suas portas estão todas
fechadas].
Assim como Platão (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 82) e como os amantes, Björk sabe
como é difícil olhar para o mundo e dizer que tudo é repleto de amor. No entanto, a possibilidade de
amar está aí, diante de todos; é possível ir além das dificuldades da existência e ver que o amor,
como busca incessante do melhor, dá-se a entender como motor que leva a assumir a fragilidade do
mundo e a aumentar a qualidade das relações humanas.
1 O amor de amigo
Na História da Filosofia, muitos filósofos concordaram com Platão afirmaram que o amor move
todas as coisas para o melhor. Outros discordaram completamente dele; outros, ainda,
concordaram em partes. Aristóteles (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 103), por
exemplo, foi aluno de Platão, mas adotou diferenças importantes com relação ao pensamento do
mestre.
Aristóteles preferia compreender o amor como experiência exclusivamente humana e partia do que
lhe parecia ser uma evidência: a observação de que os seres humanos tendem a associar-se para
viver, isto é, a viver em conjunto.
REPRODUÇÃO/PALÁCIO APOSTÓLICO DO VATICANO, ROMA, ITÁLIA
Rafael Sanzio (1483-1520), Escola de Atenas (detalhe), 1508-1511, afresco. O fato de Aristóteles, no afresco de
Rafael, carregar os livros sobre Ética, enquanto Platão leva o diálogo Timeu, mostra que, segundo Rafael
(bastante influenciado pelo pensamento platônico), o mestre e o discípulo refletiam um assunto comum: a
busca da felicidade, que passa pela reflexão sobre o agir humano (Ética) e pode chegar à contemplação do Bem
(Timeu).
Aristóteles justifica sua discordância de Platão expondo as razões pelas quais não podia
acompanhar o pensamento do mestre em todos os aspectos. Sua atitude, aliás, é um exemplo de
como se procede honestamente
Página 164
em Filosofia: nas concordâncias e nas discordâncias filosóficas, não se trata de apenas “achar” ou
“preferir”, e sim de dar justificativas para as concordâncias e discordâncias. Do contrário,
transforma-se a Filosofia em crítica gratuita e imatura, postura profundamente antifilosófica,
autoritária e nociva para a convivência.
Hoje, porém, muitos estudiosos da crítica de Aristóteles a Platão defendem que talvez o discípulo
não tenha sido justo em sua crítica ao mestre. Platão distinguia, é verdade, o que é inteligível
(conhecido apenas pela inteligência) do que é sensível (conhecido pela inteligência por meio dos
cinco sentidos), porém, não queria dizer com isso que o inteligível e o sensível são separados.
Seja como for, Aristóteles busca elaborar sua filosofia de outra maneira, marcando diretamente sua
diferença no tocante à concepção do amor. Ele adota como ponto de partida algo que lhe parecia
aceito por todos: os seres humanos têm a tendência de viver em grupo. Isso lhe permitirá concluir
que os seres humanos têm algo como uma familiaridade ou uma amizade natural, que ele também
chamou de amor, mas um amor específico, o amor de amigo. Assim, enquanto Platão usava
principalmente o termo grego éros (amor em sentido geral), Aristóteles se servirá do termo philía
para designar o amor de amigo. No seu dizer, os pais sentiriam naturalmente amizade pelos filhos;
e os filhos, pelos pais. Fora das famílias, também haveria a amizade como forma de amor mútuo,
colaborando para a vida de cada indivíduo e de todos. Nesse sentido, Aristóteles, em vez de
construir sua reflexão sobre a ideia do Bem Supremo, como fazia Platão, prefere concentrar-se no
bem humano, construindo uma ética para seres humanos, e não para “humanos e deuses”. É sob
essa perspectiva que Aristóteles pensará a amizade. Ícone: Texto filosófico
Aristóteles
Se viver é, em si mesmo, algo bom e prazeroso (visto o próprio fato de todos desejarem viver) [...];
se quem vê também percebe que vê, se quem ouve também percebe que ouve, se quem caminha
também percebe que caminha e assim por diante (porque em todas as atividades há alguma coisa
que percebe o fato de praticarmos uma atividade) [...]; se existir é perceber e pensar; se viver é uma
coisa prazerosa por si [...]; se viver é algo desejável, sobretudo para os humanos de bem (visto que o
existir, para eles, é um bem e um prazer, pois, tomando consciência de um bem, eles se alegram); se
o ser humano virtuoso sente em relação a seu amigo a mesma coisa que sente em relação a si
mesmo (o amigo, com efeito, é um outro eu); então, assim como para cada um a própria existência é
desejável, assim também, ou pelo menos de modo muito parecido, é desejável a existência do
amigo.
Mas o existir, como dissemos, é algo desejável pelo fato de que existir é também perceber que é um
bem ser quem se é. A percepção disso é prazerosa. Precisamos, pois, junto com o amigo, perceber
também que ele existe e isso acontece no viver junto e no ter comunhão de palavras e de
pensamento. É nesse sentido que se diz que os seres humanos vivem juntos. Não é a mesma coisa
que se declara a respeito dos animais, quando se afirma que eles pastam juntos no mesmo lugar.
ARISTÓTELES, Etica nicomachea. Tradução Marcello Zanatta. Milão: BUR, 2001. v. 2, p. 811-813. Edição bilíngue. (Ética nicomaqueia.
Tradução nossa para o português.)
Página 165
A prova de que a amizade é natural, vem do fato de que se observa familiaridade mesmo entre os
animais não racionais. Membros da mesma espécie procuram unir-se e viver na presença de seus
semelhantes. O livro Ética nicomaqueia é a obra em que o filósofo mais reflete sobre o tema.
Aristóteles faz várias interpolações em seu texto, ou seja, ele intercala frases que justificam suas
afirmações, até chegar à conclusão principal.
Para oferecer uma visualização mais clara de seu raciocínio, podemos assim reescrever:
2. Dado que quem vê também percebe que vê, assim como quem ouve também percebe que ouve e
quem caminha percebe que caminha,
2.1. então, podemos concluir que em todas as atividades há algo que percebe o fato de praticarmos
uma atividade.
7. Se os passos 1 a 6 são verdadeiros, então se pode concluir que, assim como a própria existência é
desejável, também é desejável a existência do amigo.
Com os passos 1-6, Aristóteles revela o ponto de partida ou as premissas de seu raciocínio. Ele
precisava garantir que a existência de cada ser humano é desejável por si mesma. Conseguindo
mostrar isso nos passos 1 a 5, ele pôde dar o passo 6 e lembrar que, se o amigo é um “outro eu”,
quer dizer, se o amigo é meu semelhante (ele me reflete), então sentiremos por ele o mesmo que
sentimos por nós mesmos. Daí o passo 7 (conclusão): a existência do amigo é desejável assim como
a nossa própria existência é desejável. Em outras palavras, assim como a nossa existência é um
bem, assim também é a existência do amigo.
Poderíamos mesmo esclarecer que, segundo Aristóteles, se convém que existamos, quer dizer, se é
bom estarmos aqui, convém também que existam amigos; é bom que eles estejam junto conosco.
Sem eles, algo nos faltaria; não seríamos completos. Nesse sentido, Aristóteles complementa seu
primeiro raciocínio com este:
8. Como foi expresso nos passos 2 e 3, o existir mesmo percebe que é algo bom ser quem se é.
11. Então, precisamos perceber que o amigo existe, vivendo juntos e tendo comunhão de palavras e
de pensamento.
12. Viver junto, no caso dos seres humanos, significa: (a) perceber o amigo; (b) perceber como um
bem que o amigo seja quem ele é; (c) viver em comunhão de palavras e de pensamento. Essa
comunhão permite perceber o amigo e perceber que é bom que ele seja quem ele é.
Observa-se, pelos raciocínios A e B, como Aristóteles constrói uma filosofia do amor diferente da de
Platão. A fonte de ambos é a observação dos seres humanos, mas o ponto de partida de Aristóteles é
apenas a experiência humana de praticamente depender do amor de amigo.
EXERCÍCIO A
Ícone: Glossário p. 462
2 O amor sagrado
Alguns séculos depois de Platão e de Aristóteles surgiram filósofos que deram novo impulso à
compreensão do amor. Foram pensadores que construíram visões filosóficas com base em sua
experiência religiosa de orientação judaica e judaico-cristã (e, posteriormente, muçulmana). Era a
fase histórica que ficou conhecida como Patrística (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p.
378) e Idade Média (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 380).
Essa nova concepção do ser divino diferia bastante daquela que os filósofos antigos haviam
elaborado. Platão, por exemplo, ao falar da Forma do Bem, não a entendia como “alguém” ou como
uma “pessoa” que ama a Humanidade. Segundo Aristóteles, o Bem Supremo, sendo perfeito, sequer
teria “consciência” de que o mundo existe, pois crer que o Bem conhece o mundo levaria a afirmar
algo contraditório: aquilo que é perfeito (o Bem) conteria em si algo imperfeito (o conhecimento do
mundo).
como o mundo se relaciona unilateralmente com o Bem (sendo atraído por ele).
3
Ícone: Glossário 2 Bilateral: algo com dois lados; com duas direções.
É justamente a crença na criação do mundo que distinguirá a nova concepção do ser divino,
desenvolvida por filósofos de orientação religiosa judaica, judaico-cristã e muçulmana. As obras de
muitos desses autores, principalmente dos cristãos da Patrística, registram o que eles
consideravam a nova experiência de fé vivida por eles: uma forma de realização mais perfeita, fonte
de prazer e alegria, por meio da relação com o ser divino. Justino de Roma, por exemplo, mesmo
sendo um platônico convicto, dizia ter encontrado o “calor” que faltava à frieza das Ideias. A fé
preenchia necessidades não apenas intelectuais, mas também afetivas. Ora, vivendo essa nova
experiência, os filósofos não consideravam adequado deixá-la de lado para refletir filosoficamente
sobre o mundo. Ao contrário, se a ignorassem, não seriam fiéis à plenitude da verdade que eles
acreditavam ter encontrado. Dessa perspectiva, procurarão combinar o que haviam aprendido por
meio das obras dos filósofos antigos com aquilo que aprendiam agora pela experiência de fé. Deram
origem, então, a uma nova prática filosófica, ampliando os horizontes de investigação com novos
temas e questões.
Justino de Roma (100-165)
Também conhecido como Justino Mártir, foi um filósofo e teólogo cristão que nasceu em Flávia
Nápoles (atual Nablus, na Síria). Segundo a tradição católica, foi morto em Roma, decapitado como
mártir. Foi um filósofo platônico que se converteu ao cristianismo. Defendia que Jesus Cristo era a
verdade buscada pelos filósofos. Obras mais conhecidas: Apologias e Diálogo com Trifão.
O principal desses novos temas foi exatamente a possibilidade de entender Deus como o criador de
todas as coisas. Se há um ser divino, a nova experiência religiosa leva a afirmar que, para
desenvolver um pensamento coerente sobre ele, ele precisa ser concebido como transcendente ao
mundo (p. 80) – assim como Platão descrevia o Bem Supremo – e como fonte de tudo o que existe. O
mundo,
Página 167
portanto, não teria existido sempre, mas começado a existir quando Deus decidiu criá-lo.
Essa combinação de elementos filosóficos e religiosos foi operada, pela primeira vez, na obra do
judeu Fílon de Alexandria, mas ganhou amplo desenvolvimento com os cristãos da Patrística (a
partir do século II), que levantaram uma questão filosófica de não pouca importância: se Deus é o
criador de tudo o que existe, ele tem o poder de fazer tudo o que quer; ora, se ele pode fazer tudo o
que quer, então é um ser perfeitíssimo, sem necessidade de nada que o complete; por que, então,
ele terá criado o mundo se não precisava do mundo para ser Deus? A essa pergunta filosófica era
dada uma resposta religiosa: Deus criou o mundo por amor. É no novo contexto aberto por essa
pergunta e essa resposta que a filosofia do amor ganhará novas colorações: o amor, agora, recebe
um novo “padrão” de compreensão, pois passa a poder ser pensado como um gesto de pura
gratuidade, ato de “alguém” (o ser divino) que, sem recompensa nenhuma, decide fazer o bem de
seres que não o completam (pois ele não precisa de nada) e os traz à existência. A criação do
mundo, assim, revela um novo tipo de amor, aquele que visa o próprio ato de amar, e não uma
satisfação com algo diferente.
Foi um filósofo de origem judaica que viveu em Alexandria no período helenístico. Fílon foi o
primeiro filósofo que buscou conciliar o conteúdo bíblico com a tradição filosófica ocidental,
criando uma interpretação do Primeiro Testamento à luz da filosofia grega, notadamente platônica.
De modo geral, porém, esses filósofos tinham consciência de que não eram obrigados
filosoficamente a crer na criação do mundo. É verdade que eles discordavam dos antigos gregos e
não aceitavam que o mundo podia ser entendido como existente “paralelamente” ao ser divino (ao
lado dele e sem ter sido produzido por ele); afinal, como eles diziam, nada, no próprio mundo,
mostra ser a fonte de si mesmo, parecendo mais sensato concluir que, em seu conjunto, o mundo
também não se produz a si mesmo, mas resulta de um princípio criador. No entanto, nada obriga
racionalmente a dizer que o ser divino fez o mundo começar a existir em um determinado
momento; ele pode ter feito com que o mundo existisse desde sempre e junto com ele, mas por uma
decisão dele.
Giovanni di Paolo, 1398-1482, Criação do mundo e a expulsão do Paraíso, 1445, óleo sobre madeira.
Na Idade Média, Tomás de Aquino (p. 114) repetirá essa ideia. De acordo com sua interpretação, é
possível e mesmo necessário defender que o mundo resultou de um ato criador (afinal, nada no
mundo mostra ser capaz de produzir-se a si mesmo). No entanto, Tomás insistia que é impossível
resolver apenas com raciocínios filosóficos a dúvida sobre a alternativa: o mundo é criado
eternamente ou em um determinado momento? Haveria boas razões para assumir tanto uma como
a outra dessas hipóteses. Tomás encontra, então, uma forma de superar a indecisão: quem tem fé
religiosa e respeita alguns textos como sagrados (a Bíblia, no caso de Tomás) tem uma razão a mais
para confiar no que dizem esses textos sagrados e optar pela hipótese da criação do mundo em um
determinado momento. Filosoficamente, porém, nada obrigaria a tal conclusão.
Esse tipo de raciocínio ilustra o modo como os pensadores patrísticos e medievais harmonizavam
elementos aprendidos pela experiência de fé com a prática filosófica. É exatamente da perspectiva
dessa harmonização
Página 168
que eles explorarão outra possibilidade de compreender o amor: com base na gratuidade total do
ato criador (o gesto de criar com o objetivo de tão somente prolongar o próprio amor, sem
nenhuma recompensa diferente dele mesmo), eles passaram a entender que mesmo os seres
humanos são capazes de amar dessa maneira. Se antes da concepção “pessoal” do ser divino (Deus
entendido como “alguém” que ama) o amor era compreendido como busca de satisfação por meio
da relação com alguma pessoa ou alguma coisa, agora se abre a possibilidade de entender que o
amor pode ser gratuito, como ato cujo objetivo é simplesmente amar.
Em outras palavras, a relação com o ser divino passa a ser entendida como uma relação bilateral de
amizade; e o modo como Deus vive a amizade (como ato total de amor) leva a entender que a
amizade entre os seres humanos pode ser vivida de modo parecido. Em comparação com o mundo
antigo, a amizade ou o amor de amigo é transfigurada , pois se revela uma forma de amar os amigos
4
também com um amor total, sem recompensa para além do próprio amor ou da satisfação obtida
com o simples ato de amar.
O modelo bíblico do amor divino (raiz da religiosidade judaica, judaico-cristã e mesmo muçulmana)
dá a base dessa nova concepção de amizade, pois, de acordo com esse modelo, ainda que os seres
humanos rompam sua relação com Deus, ele não rompe, de sua parte, a sua relação com os
humanos. As ofensas e os erros não são nunca suficientes para diminuir ou anular o amor divino.
Assim, mesmo atribuindo a ideia de justiça – já elaborada pelos filósofos antigos – ao ser divino, os
autores passam a dizer que ele também é dotado de misericórdia e compaixão.
A esse respeito, os textos bíblicos são repletos de exemplos. Em várias narrativas, Deus continua a
amar os seres humanos mesmo quando eles são “maus amigos”. Deus tem “paciência” com eles e
“aposta” sempre no fato de eles poderem melhorar. Uma das narrativas bíblicas mais
impressionantes é aquela em que Deus ordena ao profeta Oseias casar-se com uma prostituta,
mostrando que ela era capaz de viver uma relação de amor. O casamento de Oseias, por sua vez,
simboliza o casamento de Deus com a Humanidade.
Profeta Oseias
O Senhor disse a Oseias: “Vai, toma para ti uma mulher que se entrega à prostituição e filhos de
prostituição, pois a Terra se prostitui continuamente, afastando-se do Senhor”. [...] Pois então vou
seduzi-la. Eu a levarei ao deserto e falarei ao seu coração. De lá, eu lhe restituirei as suas vinhas e
farei do Vale de Akor uma porta de esperança: lá ela responderá como no tempo da sua juventude,
no dia em que subiu da terra do Egito. Acontecerá naquele dia que tu me chamarás “meu marido” e
já não me chamarás “meu dono”. [...] Naquele dia, firmarei uma aliança em favor deles com os
animais do campo, os pássaros do céu, os répteis do chão. Quanto ao arco, à espada e à guerra, eu os
quebrarei e já não existirão na Terra; permitirei aos habitantes que durmam em segurança. Eu
noivarei contigo para sempre, eu noivarei contigo, pela justiça e pelo direito, pelo amor e pela
ternura. Eu noivarei contigo pela fidelidade e tu conhecerás o Senhor.
Livro de Oseias, cap. 2, versículos 16-22. In: Tradução Ecumênica da Bíblia. 2. ed. Vários tradutores. São Paulo: Loyola, 1995. p. 882.
É curioso que o texto comece por um discurso de Deus dirigido a Oseias, mas depois misture as
pessoas gramaticais (a pessoa do narrador e a pessoa do destinatário), não permitindo saber se é
Deus ou se é Oseias que tem a palavra. Oseias inicia falando em primeira pessoa, mas, ao
mencionar ações que só Deus pode realizar (aliança com os animais, domínio sobre a Terra),
empresta sua voz a Deus. O texto começa mencionando a esposa (“vou
Página 169
seduzi-la”), para terminar falando diretamente com ela (“tu conhecerás”). É um sinal de que
seus destinatários são todos que leem o texto, e não apenas a esposa de Oseias. Isso se
confirma pelas referências ao Vale de Akor e à saída do povo judeu do Egito, referências
públicas e universais naquela época, e não particulares. O Vale de Akor era conhecido como um
local de desgraça e sofrimento, pois lá o judeu Akan teria cometido o crime do roubo, vindo a
ser apedrejado junto de toda a sua família, com a permissão de Deus. Todavia, no relato
amoroso de Oseias, Deus revê sua posição e transforma o vale de desgraça em lugar de
esperança, simbolizada pela vitalidade das vinhas. A transformação do Vale de Akor é
comparada com a saída dos judeus do Egito, onde eles tinham sido escravos e de onde haviam
sido retirados para chegar à terra prometida pelo próprio Deus, lugar de liberdade e de
satisfação.
Diante desse novo modelo de amor (que transcende a justiça e é também misericordioso), o amor
de amigo vivido entre os humanos passa a ser visto também como dotado da possibilidade da
misericórdia. Entendidos em sua imperfeição, os amigos (e todos os seres humanos) podem ser
amados pelo simples prazer de amar. Não se trata de ser passivamente omisso diante de injustiças,
5
mas de entender que o valor das pessoas não diminui nem mesmo quando elas erram.
As consequências filosóficas da reflexão sobre essa nova maneira de viver o amor serão de grande
impacto, principalmente em termos éticos. Novas virtudes passam a ser concebidas (especialmente
a misericórdia e a compaixão). Do lado judaico-cristão, ainda, tem início a elaboração da ideia de
dignidade humana, isto é, do valor inquestionável de cada indivíduo (porque ele é amado
gratuitamente por Deus), independentemente do que ele pratica. O significado histórico dessa ideia
pode ser avaliado se se tem em vista que ela é a raiz de práticas sociais que duram até hoje, como é
o caso do compromisso com os Direitos Humanos (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p.
276).
Aos poucos, passou-se a adaptar o vocabulário grego antigo e a designar essa nova concepção de
amor pelo termo ágape. Essa palavra não tinha um sentido rígido antes, embora servisse para
designar o amor “gratuito” que surge entre os membros de uma família. Por sua vez, o sentido
sexual, erótico, passou a ser reservado ao termo éros; e o amor de amigo confirmou-se como a
philía.
Os autores latinos traduziram ágape por charitas, que, em português, corresponde a caridade. Em
síntese, o amor-caridade é o amor cuja recompensa é o próprio ato de amar e de dar valor a tudo o
que existe.
Rembrandt (1606-1669), O pai misericordioso ou O retorno do filho pródigo (detalhe), 1668, óleo sobre tela.
Ícone: Conteúdo tratado em outra página 5 Omisso: quem não realiza algo que deveria realizar.
Página 170
EXERCÍCIO B
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 462
(a) Como o mundo precisa ter surgido de alguma coisa, o mundo não é eterno; Deus teve de
começá-lo.
(c) Como não é possível ter qualquer certeza a respeito do surgimento do mundo, a revelação
bíblica fornece um motivo para optar pela crença no começo do mundo como obra de Deus.
(d) Como, segundo a Bíblia, Deus criou o mundo, não se deve discutir esse dado, mas aceitá-lo,
pois a Bíblia é a Palavra de Deus.
3. Comente o impacto filosófico causado pela nova concepção de amor, o amor sagrado.
Com efeito, em livros como o Fédon, Platão dá a entender que o corpo humano e o mundo físico
podem ser obstáculos para o conhecimento do Bem, de modo que a verdadeira sabedoria só seria
alcançável por quem conseguisse libertar-se do corpo. Do lado patrístico, Agostinho de Hipona, na
obra Livro sobre oitenta e três questões diversas, por exemplo, interpreta o Bem como Deus e conclui
que é possível conhecê-lo por meio exclusivamente da inteligência, sem a interferência do corpo.
Assim, diante dessas relativizações do corpo, pensadores como Friedrich Nietzsche (Ícone:
Conteúdo tratado em outra página p. 172) denunciarão o grave erro de elaborar reflexões
desconectadas da vida efetiva. Nietzsche proclamava a necessidade de romper com o platonismo e
com a religião cristã, o “platonismo das massas”. De acordo com sua interpretação, Platão teria
abafado o espírito dionisíaco do mundo grego, o espírito do prazer, do excesso, da força, dando
preferência ao espírito apolíneo, o espírito do equilíbrio, da harmonia, da compreensão racional; e o
cristianismo teria apenas consagrado essa inversão.
perceber que ela é uma constante superação de resistências por meio de uma correlação de forças:
o Universo mesmo é um conjunto de forças que movem tudo a vencer obstáculos e a afirmar-se.
Dionísio e Apolo
Dionísio, por sua vez, era, acima de tudo, a divindade da vegetação, da umidade que dá vida e anima
todo o Universo. Era o deus das grandes árvores e das folhagens que permanecem verdes no
inverno, revelando a continuidade incessante da vida.
Apolo é solar, deus do conhecimento e garantidor das tradições religiosas. Endereçava sua
mensagem aos humanos em termos de sabedoria equilibrada, tal como se lia na entrada de seu
templo: Conhece-te a ti mesmo!
Dionísio é terreno, ao mesmo tempo líquido e fogo, como o vinho que sacia e aquece por dentro,
renovando a vitalidade. Daí Dionísio ter se tornado o deus do vinho, como se dissesse aos humanos:
Embriaga-te! Entra em êxtase!
REPRODUÇÃO/PAPHOS, CHIPRE
Reprodução/Museu Palatino, ROMA, ITália
Acima: Dionísio e a ninfa, séc. III, mosaico grego. À direita: Apolo tocador de cítara, séc. I, afresco romano.
Ao falar de força, Nietzsche não faz um elogio da violência, e sim da tendência a ultrapassar
resistências, observável principalmente nos seres vivos. Ser forte não é ser violento, porque quem é
verdadeiramente forte não busca exterminar os outros, mas dominá-los o suficiente para manter o
jogo em que os fortes podem se afirmar. Os platônicos, sobretudo cristãos, cultivariam uma atração
doentia pela fraqueza e se apegariam a ela, segundo Nietzsche, em vez de lutar com as resistências
que a vida lhes opõe. Fogem da luta e vivem no mundo dos sonhos, especialmente os
Página 172
Foi um filólogo, filósofo e poeta alemão. Marcou a filosofia contemporânea por sua profunda crítica
à cultura do final do século XIX, especialmente à moral, à religião e à razão (Filosofia e Ciência).
Identificava na Natureza uma necessidade de afirmação da vida, manifestada no ser humano pela
vontade de potência (de dominar). Denunciava falsos valores como a fraqueza e o autocontrole,
produtores de ressentimento. Obras mais conhecidas: O nascimento da tragédia no espírito da
música, Assim falou Zaratrusta, e Além do bem e do mal.
No livro Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche oferece uma síntese de sua crítica. Ícone: Texto filosófico
Friedrich Nietzsche
Vão-me ficar agradecidos se eu condensar uma tão essencial e tão nova perspectiva em quatro
teses: com isso facilito o entendimento; com isso promovo a contradição.
Primeira proposição. Os fundamentos, em vista dos quais “este” mundo foi designado como
aparente, fundam, em vez disso, sua realidade – uma outra espécie de realidade é absolutamente
indemonstrável.
Segunda proposição. Os signos característicos que se deram ao “verdadeiro ser” das coisas são os
signos característicos do não ser, do nada – edificou-se o “verdadeiro mundo” a partir da
contradição com o mundo efetivo: um mundo aparente de fato, na medida em que é uma ilusão de
óptica e de ética.
Terceira proposição. Fabular sobre um “outro” mundo, que não este, não tem nenhum sentido,
pressupondo que um instinto de calúnia, apequenamento, suspeição contra a vida, não tenha
potência em nós: neste último caso vingamonos da vida com a fantasmagoria de uma “outra” vida,
de uma vida “melhor”.
NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos, § 6. In:_____. Obras incompletas. v. 2. Tradução Rubens R. Torres Filho. São Paulo: Abril
Cultural, 1987. p. 111-112. (Coleção Os pensadores.)
A primeira e a segunda teses de Nietzsche tomam como ponto de partida a impossibilidade de
demonstrar a existência de alguma outra realidade diferente da nossa. Se demonstrar significa, de
modo geral, “provar” ou dar boas razões para acreditar naquilo que se afirma, então se torna difícil
demonstrar a existência de uma realidade diferente desta (o mundo), pois nada a prova
rigorosamente. Por isso, o outro mundo é um não ser; é o nada; e o nada não existe. Platônicos e
cristãos falaram, então, do não ser, do nada, de algo que não existe. Isso é uma ilusão de óptica e
ilusão ética, pois, se ética é algo que se refere aos valores morais, então os platônicos e os cristãos
guiaram-se por valores inventados com base em uma ilusão.
A ilusão de óptica e de ética, comentada por Nietzsche na segunda proposição de seu texto, liga-se
diretamente com o que é dito na terceira
Página 173
proposição: fabular sobre “outro” mundo é algo que não tem sentido e resulta de um instinto de
6
calúnia, de apequenamento e de suspeita contra a vida. Esse instinto explicaria, sobretudo, a atitude
dos cristãos, pois, em vez de entrar na vida (como campo de forças) e explicá-la como ela é, eles se
deixam levar por esse instinto de calúnia e atacam os fortes, pretendendo fazê-los sentir-se
culpados por serem fortes.
Na quarta proposição, Nietzsche explica de outra maneira o que disse nas três primeiras. Ele afirma
que dividir o mundo em dois, o “verdadeiro” e o “aparente”, é um sintoma de decadência. Se
correlacionarmos a quarta proposição com a terceira, poderemos ter já uma visão do que é a
decadência: em primeiro lugar, ela significa não olhar para a vida tal como ela é, mas se refugiar em
ilusões. Além disso, na quarta proposição, Nietzsche dá outras indicações do que é a decadência. Ela
se refere à vida que está em diminuição e abatimento. Ela pode, porém, retomar suas forças e
revigorar-se; para tanto seria importante denunciar a ilusão platônico-cristã.
Com efeito, Nietzsche não era um pessimista; pelo contrário, lutava pela afirmação da vida. A prova
disso vem ainda da quarta proposição, pois ele proclama aquilo que um artista pode fazer diante da
decadência: em vez de chamar a realidade de aparência, pode considerar que o que chamaram de
aparência é o mundo mesmo: é a transformação, a instabilidade, a efemeridade . A “aparência” seria
7
finalmente compreendida; ela seria vista corretamente. Assumindo-a tal como ela é, o artista diz
“sim” a ela, mesmo diante de tudo o que é problemático e terrível. O artista é trágico, ou seja,
assume que a vida tem prazeres e dores, coisas boas e coisas difíceis. É por isso que o artista é
dionisíaco: ele percebe vitalidade por todos os lados, mesmo diante dos problemas e das coisas
terríveis. Pode-se mesmo afirmar que, de acordo com Nietzsche, para haver um bom filósofo, ele
deve ser um artista.
Nietzsche menciona ainda o filósofo alemão Immanuel Kant (p. 207) e o chama de capcioso , pois,
8
embora Kant tenha tentado construir uma filosofia não baseada em “outros mundos”, acabou
justificando sua ética pela crença em Deus e pelo temor do castigo eterno (portanto, pela referência
a um outro mundo).
O esquema ao lado foi desenvolvido pelo psiquiatra e sociólogo alemão Franz Müller-Lyer
(1857-1916), para mostrar a ilusão de crer que os traços das flechas têm comprimentos diferentes.
A ilusão se produz como uma crença que não corresponde à realidade (olhando os traços em
vermelho, percebe-se que eles têm o mesmo comprimento). Uma ilusão de ética seria algo parecido.
Pode-se olhar para certos valores morais crendo que são adequados, mas, vistos de perto, eles se
mostrariam inadequados. No caso da crítica de Nietzsche aos cristãos, valores como a caridade ou a
misericórdia seriam uma ilusão de ética, pois não correspondem à verdadeira existência humana,
que é uma correlação de forças.
Ícone: Glossário 6 Fabular: imaginar; falar de algo irreal.
8 Capcioso: quem diz uma coisa, mas acaba querendo dizer outra; ardiloso; enganador.
Página 174
Nietzsche e a décadence
E m alguns de seus textos, Nietzsche usa o termo francês décadence (decadência). Tal uso se
explica por ele ter sido bastante influenciado por pensadores franceses que justamente explicavam
a decadência. Segundo Charles Andler, um de seus melhores biógrafos, Nietzsche apreciava
especialmente Paul Bourget, escritor católico francês que viveu entre 1852 e 1935.
A França do final do século XIX foi marcada por eventos políticos muito controversos. O combate
entre a tendência autoritária (monarquistas e imperialistas) e a tendência democrática
(republicanos) produzia um clima de incerteza e de falta de direção. Em seus primeiros romances,
Paul Bourget revela grande capacidade de análise psicológica, explorando o que ele chamava de
desejo de modernidade por parte das jovens gerações. São dessa época seus livros Cruel enigma
(1885), Um crime de amor (1886) e Mentiras (1887).
Em outra fase de sua produção literária, Paul Bourget dedica-se a analisar as causas dos
sentimentos que estava acostumado a descrever. Produz, então, o livro O discípulo, de 1889,
considerado sua obra-prima. Escreve também ensaios, ou seja, textos menos curtos do que um
romance, com um claro caráter de análise. Vários dos ensaios de Bourget foram dedicados à obra de
autores que ele admirava e ao mesmo tempo criticava: Charles Baudelaire (1821-1867), Joseph
Ernest Renan (1823-1892), Gustave Flaubert (1821-1880), Hippolyte Taine (1828-1893) e Henri-
Marie Beyle, conhecido como Stendhal (1783-1842).
Bourget associa esses escritores com o espírito dos anos 1880 e as incertezas políticas. Compara-os
aos romanos do período do declínio do Império e acredita que eles se consideram a si mesmos
como “nascidos tarde demais” e em um “mundo ultrapassado”. Eles seriam marcados por um
incurável cansaço diante da vida; seriam diletantes em sentido pejorativo, ou seja, eram gênios da
9
Literatura e das artes, mas também imaturos nos assuntos “sérios” da existência.
O escritor francês tomará, então, a palavra décadence para exprimir os anos 1880 e os escritores
que analisou. Em linhas gerais, a decadência seria um período em que uma sociedade não consegue
suscitar um grande número de pessoas com uma produção em vista do bem comum. Ao contrário,
as pessoas pensam em si mesmas, em seu próprio benefício e em sua glória individual. Como a
Sociedade é um organismo vivo e dependente dos seus componentes (indivíduos e grupos), então,
se os indivíduos só pensam em si mesmos, o conjunto sofre e entra em declínio. É a decadência.
De acordo com Bourget, embora os escritores e artistas do fim do século XIX denunciassem em
termos gerais a decadência do mundo, eles mesmos também eram decadentes. A decadência de
uma sociedade afeta a arte da palavra; e os literatos decadentes não são capazes de vencer o desejo
de chamar atenção para si. Nas palavras de Bourget, um estilo decadente é aquele em que a unidade
de um livro decompõe-se para chamar a atenção para a independência da frase; e, a frase, para a
independência da palavra.
Nietzsche não partilhava inteiramente a visão de Paul Bourget. O livro O vermelho e o negro, de
Stendhal, por exemplo, foi tão importante em sua vida, a ponto de ele comparar a descoberta de
Stendhal com sua descoberta de Arthur Schopenhauer (p. 85), autor que lhe teria permitido pensar
um modo de sair da decadência. Desse ponto de vista, a decadência ainda não significa um fim, pois
ela pode ser revertida em construção de novas formas de vida. Nietzsche concentrava seus esforços
para encontrar tais formas novas.
REPRODUÇÃO/NEW YORK PUBLIC LIBRARY, EUA
Ícone: Glossário 9 Diletante: quem exerce uma atividade por prazer, e não por obrigação. Mas o termo também
tem um sentido pejorativo, designando alguém imaturo, que reage com orgulho e provocação diante da vida
porque é medroso e não tem coragem de enfrentar as dificuldades, fechando-se em sua visão de mundo.
Página 175
EXERCÍCIO C
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 463
2. Por que Nietzsche afirma que os cristãos fazem uma ilusão de óptica e de ética?
3. Nietzsche é um pessimista?
4. Em que sentido se pode dizer que um bom filósofo, segundo Nietzsche, é um artista?
4 Contradição da contradição
A filosofia de Friedrich Nietzsche representou, uma contradição das filosofias platônica e cristã. Isso
significa que ele procurou elaborar uma filosofia oposta ao platonismo e ao cristianismo, a ponto de
anulá-los.
Ocorre, porém, que alguns especialistas do pensamento de Platão (Ícone: Conteúdo tratado em
outra página p. 82) e da história do cristianismo têm mostrado que Nietzsche, em seu esforço de
contradizer o platonismo e o pensamento cristão, não operou uma análise inteiramente adequada
de ambos. Dessa perspectiva, seria possível realizar uma “contradição da contradição” nietzschiana,
a fim de chegar a conclusões filosóficas mais condizentes com os fatos históricos.
Por exemplo, parece coerente lembrar que Platão considera as Formas como identidades comuns
das coisas e só diferencia o aspecto sensível do aspecto inteligível ( p. 152) com finalidades
pedagógicas, sem dividir o mundo em dois. Do lado do pensamento cristão, por sua vez, remeter a
Deus não significa necessariamente falar de “outro mundo”, uma vez que a presença divina é
encontrada neste mundo e no corpo físico. O modelo divino do amor torna mesmo inadequado
pensar que a religião judaico-cristã seja uma prática que desenvolve o sentimento de culpa nas
pessoas, pois a misericórdia e a compaixão são formas de valorizar a vida mesmo em seus tropeços,
aumentando o gosto de viver.
Segundo historiadores como Jean Delumeau (1923-), o tema da culpa como sentimento doentio é
algo que aparece só tardiamente no pensamento cristão, por volta dos séculos XVI-XVII, quando se
acentuam os debates sobre o sofrimento de Cristo, levando a uma identificação exagerada com o
“pagamento” pelas faltas humanas. Antes disso, os erros humanos (a culpa) eram vistos como
ocasião de encontrar a Deus, a ponto de se cantar, em cerimônias religiosas, o verso atribuído a
Agostinho de Hipona: “Ó culpa feliz, que trouxe ao mundo um tão grande salvador!”. Seja como for,
consiste em um equívoco histórico afirmar que o sentimento de culpa pertence à natureza ou à
“essência” do cristianismo.
Quanto ao desprezo pelo corpo, atribuído tanto a Platão como aos cristãos, trata-se de outro
exagero histórico: a atenção aos riscos da compreensão dos cinco sentidos como única fonte de
conhecimento é interpretada como uma desconfiança radical com relação ao corpo. Contudo,
embora Platão usasse algumas expressões de grande impacto para falar do corpo (por exemplo,
“túmulo da alma”), elas eram metáforas do “aprisionamento” que a inteligência humana pode viver
se acreditar que o mundo é apenas aquilo que os cinco sentidos revelam. Ademais, os corpos e as
aparências físicas eram concebidos por ele como o primeiro momento em que se pode reconhecer a
presença da Beleza (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 81). Os cristãos, por sua vez,
mesmo denunciando os riscos de confiar no corpo e de seguir os seus impulsos, viam nele a ocasião
da “salvação” (o “lugar” do encontro com Deus).
Gregório de Nazianzo (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 176), platônico cristão, é um
bom testemunho para confirmar a necessidade de uma revisão histórica do modo como tem
Página 176
sido praticada a historiografia das tradições platônica e cristã desde o século XIX. Ele combina essas
tradições, lembrando que o corpo permite chegar ao que há de mais belo (platonismo) e é parte
essencial do ser humano, ressuscitando para a vida com Deus depois da morte (fé cristã). Ícone:
Texto filosófico
Gregório de Nazianzo
Qual mistério me une ao meu corpo? Ignoro. Também não sei como posso ser, ao mesmo tempo,
imagem de Deus e mistura do barro de que sou feito. Esse corpo, quando está bem, luta comigo;
quando está doente, mostra seu mau humor. Tento escapar dele quando ele tenta me escravizar,
mas o respeito como a um companheiro que, assim como eu, tem direito à herança celeste. Se tento
cansá-lo, fico sem meu ajudante, aquele que me auxilia a atingir o que há de mais belo. Sei bem por
que nasci: para chegar até Deus por meio de meus atos. Portanto, poupo meu corpo como um
colaborador, pois aprendi a escapar de seus ataques e a não me afastar de Deus nem cair com o
peso do corpo que me puxa para a Terra e quer me fixar nela. Amigo adorável e inimigo esperto! Ah,
que unidade e que incompatibilidade: desejar aquilo que me dá medo e amar aquilo de que duvido.
Antes de começar uma guerra, nós já fazemos as pazes. Quando estamos em paz, eis-nos novamente
em conflito.
GREGÓRIO DE NAZIANZO, Discours XIV, 6-7. In: GALLAY, P. Grégoire de Nazianze. Paris: Éditions Ouvrières, 1993. p. 43. (Discursos.
Tradução nossa.)
Gregório de Nazianzo adota o vocabulário do “amigo” e do “inimigo” para falar do corpo, porque
alguns dos destinatários de sua obra eram os adeptos do maniqueísmo (Ícone: Conteúdo tratado em
outra página p. 177), que refletiam sobre todas as coisas em termos de oposição (como na luta
entre o Bem e o Mal). Adotando a estratégia de falar a língua dos maniqueus, Gregório leva a
perceber que, no fundo, o corpo não é um inimigo; ele tem suas diferenças com relação ao “eu” ou
ao pensamento que se sente como algo que está “dentro do corpo” ou que se entende como algo que
“possui” um corpo. Mas como em uma relação de amizade as diferenças de um amigo não fazem
dele um inimigo, assim também o corpo não é contrário ao “eu” ou ao pensamento que está unido a
ele. Se o “eu” sente medo e duvida de certas coisas específicas de seu amigo, ao mesmo tempo ele as
deseja e ama.
Esse texto de Gregório de Nazianzo permite um olhar diferente para a crítica de Friedrich Nietzsche
aos pensamentos platônico e cristão. Considerando também trabalhos de historiadores mais
atualizados, hoje é possível pensar que Nietzsche talvez não tenha obtido uma visão adequada do
“real platonismo de Platão” nem do “real cristianismo histórico”. Isso não diminui, porém, de modo
algum, a importância de sua filosofia nem de sua crítica aos “platônicos” que dividem o mundo em
dois ou aos “cristãos” que defendem um desprezo do mundo e do corpo.
MIRELLA SPINELLI
Página 177
Nietzsche dispunha dos recursos historiográficos do século XIX; por isso, não podia estudar nem
Platão nem o cristianismo com os dados históricos e filosóficos de que se dispõe hoje. Além disso,
não há dúvida de que Nietzsche entrou em contato de fato com formas platônicas e cristãs de
pensamento que cultivavam um espiritualismo prejudicial à inserção humana no mundo, fundado
na ideia de que a alma é independente do corpo. Contra essas formas de espiritualismo
desencarnado, o pensamento nietzschiano guarda toda a sua atualidade. Aliás, dessa perspectiva, o
“verdadeiro” Platão (o da obra platônica) e os pensadores cristãos ligados às fontes bíblicas e
patrísticas poderiam, sem dúvida, dialogar intensamente com o filósofo alemão.
Maniqueísmo
É uma doutrina filosófica e religiosa do século III d.C. que mescla elementos do pensamento oriental
com dados cristãos. Foi fundado por Manes, profeta de origem iraniana, e divide o mundo entre o
Bem, ou o Deus, e o Mal, ou o Diabo. A matéria seria intrinsecamente má, e o espírito,
intrinsecamente bom. A mistura dos dois elementos formaria o mundo material, que é
essencialmente mal, mas haveria um caminho de redenção, o de uma rigorosa vida de purificação. O
termo maniqueísta passou a designar toda doutrina ou discurso que pretende dividir a realidade
entre bem e mal.
EXERCÍCIO D
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 463
3. Por que Gregório de Nazianzo adota o modo dos maniqueus de se expressarem sobre o
corpo?
EXERCÍCIOS COMPLEMENTARES
1 Dissertação de problematização
Componha uma dissertação de problematização (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 106),
tomando como tese a posição platônico-cristã tal como entendida por Nietzsche; como antítese, a
posição do próprio Nietzsche; e, como síntese, a possibilidade de revisão histórica da oposição
entre a tese e a antítese.
2 Reflexão
Reflita sobre a crítica de Nietzsche à religião cristã e verifique se você conhece casos atuais aos
quais essa crítica pode ser feita. Esse procedimento pode ser aplicado também a outras religiões
que defendam um espiritualismo separado da vida real. Na sequência, observe se você conhece
exemplos de cristãos ou membros de outras religiões aos quais a crítica de Nietzsche não se
aplicaria. Por fim, se você é cristão(ã), reflita como as ideias nietzschianas tocam você.
3 Leitura complementar
Visto que em nosso país há um grande número de cidadãos cristãos, inclusive engajados na Política
e em outros aspectos da vida pública, é oportuno dedicar um espaço à reflexão: “O que é essencial
no cristianismo?”, “O que move a vida de nossos concidadãos cristãos e qual o critério que eles
mesmos devem seguir em sua participação social?”.
Não se trata de querer encontrar uma identidade aplicável a todos os cristãos, pois, em vez de ter
uma “essência” imutável, a fé cristã sempre adquiriu formas históricas muito diversas. Trata-se de
procurar saber se é possível identificar um aspecto que une (ou deveria unir) as diferentes
maneiras de praticar a fé cristã, almejando principalmente a convivência democrática.
O texto abaixo dá algumas pistas de reflexão. Ele foi escrito por pensadores protestantes (pastoras
e pastores da cidade de Genebra, na Suíça) que, em diálogo com membros de outras denominações
cristãs, acreditam ter identificado elementos
Página 178
“essenciais” em sua fé. Independentemente de você ser ou não cristão(a), leia-o com atenção e
reflita se ele parece traduzir as formas de vida cristã com as quais você talvez tenha contato. Pense
especialmente se os políticos brasileiros que se apresentam como representantes do cristianismo
traduzem ou não, na prática, tais elementos “essenciais”. Você pode também discordar do texto,
argumentando por que ele não lhe parece adequado para exprimir o núcleo da fé cristã.
Por fim, sob a orientação de seu(sua) professor(a) de Filosofia, abra um debate livre em sala de
aula, de modo que todos possam dar sua opinião a respeito da seguinte pergunta: “Seriam os
cristãos capazes de superar suas diferenças de pensamento e unir-se em torno de algo essencial?”.
Catecismo Protestante
Essa pergunta já foi feita um dia a Jesus. Quem fez a pergunta era um judeu praticante; por isso, ele
a formulou da seguinte maneira: “O que devo fazer para receber a vida eterna?”. Hoje nós
certamente diríamos: “O que devo fazer para que minha vida tenha um sentido?”. Jesus respondeu:
“Para viver plenamente, é preciso amar. Amar a Deus e amar as pessoas próximas”. Simples, não?
“Nem tanto”, respondeu a pessoa que fez a pergunta a Jesus. E nós certamente concordamos com
ela!
O que quer dizer amar? É preciso amar todo mundo? Onde ficam os limites do amor? Nós
gostaríamos de precisões. E Jesus dá essas precisões contando a história de um viajante judeu,
atacado por bandidos na estrada que levava de Jerusalém a Jericó (Evangelho de Lucas, Capítulo
10). Ele é abandonado quase morto à beira do caminho. Passam, então, sucessivamente, duas
pessoas importantes da época, mas não param para ver se o viajante precisava de ajuda. Omissão
de socorro, falta de tempo, fuga dos problemas... Outras pessoas, formadas e pagas para isso, vão
prestar ajuda alguma hora...
O viajante vai morrer. Morrerá duas vezes: pela violência de uns e pela indiferença de outros...
Passa, então, uma terceira pessoa, vinda da Samaria. Um samaritano, para os judeus daquela época,
era como um palestino para os israelenses radicais de hoje: uma espécie de irmão renegado,
detestado e temido. Mas esse samaritano vê o viajante quase morto; ele se deixa emocionar por sua
situação. Ele para e, sem se perguntar se aquele viajante machucado fazia ou não parte de seu
grupo, de seu partido ou de outro, cuida dele, cura-o e o conduz à hospedaria mais próxima. Ele até
dá dinheiro ao dono da hospedaria, para que o homem ferido seja bem cuidado. Depois disso, o
samaritano vai embora.
Bela e simples história; retrato de um gesto humanitário. Ao ouvi-la pela primeira vez, a conclusão é
natural: nosso próximo é aquele que precisa de nossa ajuda! Porém, para nossa grande surpresa,
Jesus faz uma pergunta diferente. Ele não pergunta quem é o próximo do samaritano, pois a
resposta seria fácil: o viajante ferido. Ao contrário, Jesus pergunta: “Quem é o próximo do viajante
ferido?”. A resposta é: o samaritano! Então, o próximo não é o ferido, mas aquele que se aproxima
do ferido. O próximo e a próxima são aquele e aquela que se aproximam, que se fazem próximos.
Página 179
Assim, para Jesus, amar seu próximo quer dizer amar aquele e aquela que se aproximaram de nós
quando precisávamos. É uma inversão surpreendente em nosso modo habitual de pensar. Todos
nós sabemos que, se possível, devemos ajudar os outros. No entanto, aqui se trata de outra coisa:
trata-se, antes de tudo, de reconhecer tudo o que recebemos dos outros e de mostrar esse
reconhecimento. Significa lembrar-se daquelas e daqueles que foram bons samaritanos para nós;
aquelas e aqueles cuja lembrança é viva em nós, bem como todas as pessoas anônimas que
souberam, no bom momento, dizer a palavra certa, fazer o ato adequado para nos ajudar, a fim de
nos permitir evitar um passo ruim ou sair de uma dificuldade. Amar o próximo não é um dever em
primeiro lugar, e sim um ato de reconhecimento por tudo o que nós recebemos por intermédio dos
outros.
Jesus contou essa história para fazer compreender que o Evangelho quer dizer “Boa Nova”. Na
verdade, trata-se do anúncio de que é Deus mesmo que se aproxima de cada uma e de cada um de
nós. Nosso primeiro e maior próximo é Deus! Aproximando-se dos sofredores, de pessoas como
você e como eu, dos doentes e dos angustiados, Jesus mostrou concretamente o que significa esse
amor que se faz próximo. Ele revelou, então, o rosto de Deus, Pai bem-intencionado que, como o
bom samaritano, deixa-se emocionar por nossas fraquezas e para no caminho, a fim de nos prestar
socorro. Todo o Evangelho está nisto: na certeza da proximidade cuidadosa de Deus para conosco.
Então, acrescenta Jesus, se você compreendeu isso, você fará o mesmo. Você se deixará tocar pela
fraqueza desta ou daquela pessoa; e você se aproximará para ajudar, para dizer que ela não está
sozinha nem abandonada; que ela não está condenada à morte pela maldade e pela indiferença.
O amor está nessa coragem de um olhar verdadeiramente dirigido para o outro. Nesse olhar não há
lugar nem para o medo nem para o sentimento de superioridade. Pois o Evangelho nos faz
descobrir que nós vivemos daquilo que recebemos dos outros e daquilo que trocamos com os
outros. Numa hora, pedimos; noutra, oferecemos. E que alegria em receber! E que alegria em poder
dar um pouco do que somos e do que temos! Assim começam a fraternidade e a solidariedade.
A resposta que o Evangelho propõe consiste nisto: o verdadeiro sentido da vida é o amor com que
somos amados e com o qual nós amamos. O resto é secundário.
Ícone: Dica de filmes Dicas de filmes para você assistir tendo em mente o que trabalhamos
neste capítulo
Adaptação do livro de mesmo título escrito pelo brasileiro José Mauro de Vasconcelos (e traduzido para mais
de 30 línguas!), o filme narra a história de Zezé, menino de oito anos, cheio de energia e bom coração.
Acostumado a conversar sobre o seu dia a dia com um pé de laranja-lima, Zezé também desenvolve uma
intensa amizade com um senhor português. A relação entre ambos é tão ou mais forte do que a relação de Zezé
com seu pai, que se encontra em dificuldades por causa da falta de emprego. O filme dá um exemplo de como o
amor de amigo é algo que nem sempre se experimenta em família.
Até a eternidade (Les petits mouchoirs), direção Guillaume Canet, França, 2010.
Um grupo de amigos que costuma viajar de férias todos os anos é surpreendido pelo acidente que faz um deles
ser hospitalizado às vésperas da viagem daquele ano. Os outros entendem que permanecer no hospital não
ajudaria no restabelecimento do amigo e decidem manter a viagem. O desenrolar da história é surpreendente,
pondo no centro da atenção os modos de exprimir o valor dado aos amigos.
Baseado em um caso verídico, o filme narra a história de Apple, que aos oito anos abandonou a casa de sua
mãe por causa dos muitos problemas maternos, principalmente o uso de drogas. Apple passou a viver em lares
adotivos. Ao ficar grávida de um rapaz que conheceu nas ruas, ela parte em busca de ajuda e encontra seu pai
biológico. Incompreendida, foge novamente e cai em profundo desespero. Chega, porém, a conhecer o que
significa ser amada, embora esse amor não viesse de sua própria família, mas de um grupo religioso.
Ferrugem e osso (Des rouilles et d’os), direção Jacques Audiard, França/Bélgica, 2012.
História de um boxeador e de uma treinadora de baleias para espetáculos. Ele vive de pequenos trabalhos, até
começar a participar de grupos clandestinos de luta livre. Ela sofre um grave acidente e suas pernas são
amputadas. Ambos se conhecem no pior momento de suas vidas. O improvável dessa amizade surpreende o
telespectador. Sem nenhuma conotação religiosa, o filme põe no centro do debate o tema do amor solidário e
universal, bem como o amor erótico.
Dançando no escuro (Dancer in the Dark), direção Lars von Trier, Suécia/Islândia/etc., 2000.
Filme em que a cantora Björk é a atriz principal e vive a personagem Selma, mãe solteira que foi morar nos
Estados Unidos e sofre de uma doença hereditária que a faz perder a visão. Seu filho Gene, de 12 anos, sofre da
mesma doença. Selma trabalha para juntar dinheiro para a operação de seu filho, que ainda pode ser curado.
Acontecimentos trágicos, porém, fazem o enredo complicar-se e põem em primeiro plano o tema do amor
incondicional.
Apresentação da vida de Francisco de Assis (1182-1226), exemplo medieval que revolucionou o modo como a
religião cristã oficial apresentava o amor na Europa da época. (Disponível em: <https://www.youtube.
com/watch?v=1rFKl5 W0D0>. Acesso em: 6 jan. 2015.)
Acesse:
Bonhoeffer: agente da Graça (Bonhoeffer: Agent of Grace), direção Eric Till, EUA, 2000.
História do pastor protestante Dietrich Bonhoeffer, exemplo contemporâneo de vivência inspirada no amor
cristão. Defendendo o engajamento em favor da justiça e participando da resistência ao nazismo, Bonhoeffer
foi condenado à forca em 1945. (O filme dublado em português está disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=tdiXi9_Kstg>. Acesso em: 6 jan. 2016.)
Acesse:
Ícone: Dica de livro Dicas literárias
Livro de poesias em que Adélia Prado, uma das mais destacadas poetisas brasileiras, enfrenta os medos típicos
de quem começa a ver a passagem dos anos. Seus poemas são marcados por uma fé intensa e testemunham
por que Adélia crê que a vida vale a pena e é bela, mesmo em meio a seu caráter trágico.
Às avessas, de Joris- Karl Huysmans, tradução José Paulo Paes, Penguin-Companhia, 2011.
esgotamento de certo tipo de vida burguesa da época e experimenta uma profunda solidão, tornando-se
sensível à experiência religiosa.
A última ao cadafalso, de Gertrud von Le Fort, tradução Roberto Furquim, Quadrante, 1998.
A escritora alemã narra, em forma de romance, o drama de um grupo de mulheres cristãs que viviam em
Compiègne, na França, e foram guilhotinadas durante a Revolução Francesa. Algumas personagens simbolizam
diferentes aspectos do amor. Blanche de la Force é o símbolo do coração humano, marcado de fragilidade e
coragem; Maria da Encarnação revela a nobreza que o ser humano pode atingir; Madre Lidoine, por sua vez,
representa a prudência e a sensibilidade ao sobrenatural.
Um dos livros preferidos de Nietzsche. Nele, Stendhal narra a história de Julian Sorel e suas tentativas de
melhorar de vida, inicialmente tornando-se seminarista e depois passando a frequentar a alta burguesia
parisiense, dedicando-se a tramas psicológicas e políticas. Como ele é menosprezado por sua origem humilde,
Julian não hesita em entrar na correlação de forças com as pessoas de seu círculo, mesmo que para isso precise
usar de hipocrisia, mentira e vingança.
De amor e amizade, de Clarice Lispector, textos selecionados por Pedro Karp Vasquez, Rocco, 2010.
Textos em que Clarice Lispector trata dos temas do amor e da amizade e da relação entre ambos, baseada em
situações cotidianas. Os textos foram selecionados para o público jovem, mas têm muito a dizer também aos
adultos.
Estudo das concepções gregas e cristãs de amor, oferecendo, nos últimos capítulos, a contribuição pessoal do
autor para pensar o tema.
Nietzsche – a transvaloração dos valores, de Scarlett Marton, Moderna, 1993, Coleção Logos.
Uma das melhores introduções ao pensamento de Nietzsche, destinada ao leitor iniciante. Ao final do volume,
há uma rica seleção de textos do filósofo.
Estudo sistemático que retrata o desenvolvimento do pensamento sobre o cristianismo ao longo da vida de
Nietzsche.
Livro ilustrado e destinado aos leitores iniciantes, centrado numa introdução filosófica à reflexão sobre Deus.
O leitor encontrará páginas sobre o tema do amor divino, principalmente diante do problema do mal.
Estudo filosófico e histórico do modo como religiosos organizavam suas vidas entre os séculos IV e XIV
(Patrística e Idade Média) com base em um conjunto de práticas repetidas cotidianamente (chamadas de
regras), as quais, no entanto, previam a possibilidade de serem descumpridas em nome do amor sagrado. Ao
mostrar como homens e mulheres medievais eram capazes de relativizar as próprias leis e as funções políticas
em nome de um sentido mais forte para a existência, o filósofo Giorgio Agamben visa contribuir com a
compreensão da fascinação do Poder sobre o mundo moderno e contemporâneo e o apego a ele.
Acesse:
Cadernos Nietzsche, disponível em <http:// www.cadernosnietzs che.unifesp.br> Acesso em: 21 jan. 2016.
Site dos Cadernos Nietzsche, editados pelo Grupo de Estudos Nietzsche. O acesso é gratuito e o site
disponibiliza todos os números publicados desde 1996. A maioria dos artigos versa, obviamente, sobre o
pensamento nietzschiano, mas também sobre autores que dialogam com ele.
Acesse:
Site da revista Perspectiva Teológica, da Faculdade Jesuíta de Belo Horizonte (MG), com acesso gratuito a todos
os números já publicados. O conteúdo é primordialmente cristão (católico e protestante), mas inclui também
reflexões sobre outras religiões.
p. 465
Sugestões bibliográficas
Página 182
p. 466
Tristão e Isolda junto à fonte, espiados pelo rei Marcos, 1340-1350, detalhe em marfim de uma pequena caixa de
autor anônimo.
E xistiu um jovem inglês, de nome Dristão, a quem o povo preferiu chamar de Tristão para
lembrar a tristeza de seu nascimento. Seu pai morreu pouco antes de ele nascer; e sua mãe, durante
o parto. Tristão foi criado por Rohalt durante sete anos; depois foi confiado a Gouvernal, para,
enfim, ser acolhido pelo tio materno, o rei Marcos, da Cornualha, região sudoeste da Inglaterra.
Quando adulto, Tristão promete a seu tio Marcos buscar a única filha do rei da Irlanda, conhecida
como Isolda, a Loira, a fim de dá-la a ele em casamento. Tristão cumpre sua promessa, mas, no
caminho de volta à Cornualha, ele e Isolda tomam, sem saber, uma poção mágica que faz os dois se
apaixonarem perdidamente. Essa poção tinha sido feita pela mãe de Isolda, a fim de que a filha fosse
feliz junto do rei Marcos, mas o encarregado de guardar a poção, distraído, não explicou a Tristão e
Isolda o que havia no frasco. Eles beberam o líquido e uniram seus destinos para sempre.
Quando chegam à Cornualha, o rei Marcos casa-se com Isolda, mas ela e Tristão continuam a se
encontrar às escondidas. Chegam a fugir por três anos. No entanto, desejando honrar o rei e obter
seu perdão, retornam e são perdoados. O rei Marcos aceita de volta sua esposa e pede que Tristão
deixe a corte.
O amor entre Tristão e Isolda permanecia, apesar de tudo. Ele vai embora e casa-se com outra
mulher, também chamada Isolda, conhecida como Isolda de Brancas Mãos. Alguns anos depois, é
ferido gravemente e pede a um amigo para buscar Isolda, a Loira, pois ele sabia que ela era capaz de
salvá-lo. Seu amigo faz um acordo com Tristão: se Isolda, a Loira, aceitar vir até ele, então as velas
do navio, no retorno, serão brancas; se ela recusar, as velas serão pretas.
Página 183
Ao ver o navio enfim se aproximar, Isolda de Brancas Mãos (a esposa de Tristão), tomada de
profunda inveja diante do amor fiel de seu marido pela primeira Isolda, anuncia a ele que as velas
do navio eram pretas (quando, na verdade, eram brancas). Tristão, sem perceber a mentira, reúne
as forças que lhe restam, toma sua espada e suicida-se.
Isolda, a Loira, ao chegar e ver Tristão por terra, banhado com seu próprio sangue, desmaia e morre
ao bater sua cabeça no chão. O rei Marcos, ao receber a notícia, ordena que os corpos de Tristão e
Isolda sejam repatriados e enterrados na Cornualha. No túmulo de Isolda brotou uma roseira; no de
Tristão, uma vinha. As duas plantas cresceram e se entrelaçaram, mostrando que nem a morte pode
separar duas pessoas que se amam.
1 O amor cortês
A história de Tristão e Isolda tornou-se bastante popular na Europa a partir do século XI. Diferentes
versões circularam em prosa e em poesia; porém, os mais antigos registros talvez sejam os do
Romance de Tristão, escrito no século XII.
Pelo modo como representa a relação de seus personagens, a história de Tristão e Isolda marcou
um momento de mudanças no modo de entender o amor. A narrativa consagra uma visão em que o
centro, agora, é a vivência amorosa no dia a dia, principalmente na relação a dois, com todos os
prazeres e as dificuldades que o acompanham.
A narrativa enfatizava, é verdade, o final trágico; contudo, seu efeito era bastante positivo,
sobretudo por valorizar a aventura vivida por Tristão e Isolda, bem como a atitude do rei Marcos.
Tudo terminaria bem se não tivesse havido a inveja mortal de Isolda de Brancas Mãos. A vitalidade
representada pelas plantas lembrava que o amor dos amantes continua vivo mesmo depois da
morte. Aliás, o fato de ele ser evocado neste livro prova que o seu sentido continua vivo...
(1) o amor é irresistível (ele nasce nos seres humanos, sem que eles o forcem);
Um poema do século XII, escrito por Alano de Lille (1128-1202), testemunha a importância que
essa maneira de entender o amor passou a ter na Idade Média a partir do século XI. O trecho a
seguir é parte de uma obra intitulada A queixa da Natureza, na qual Alano debocha dos
comportamentos que ele considerava vícios humanos. O amor, para ele, não era propriamente um
vício, mas podia se tornar, caso os humanos não refletissem sobre ele. No seu dizer, os humanos
precisam saber claramente que a experiência do amor é dupla. Ícone: Texto filosófico
Alano de Lille
Paz acompanhada de ódio; confiança, de engano; esperança, de temor,
tudo isso é o amor, misto de razão e furor ,
1
2 Incólume: algo que não se altera, que não perde nada do que é.
Ainda nos séculos XII-XIII, surge a obra O romance da rosa, longo poema que narra um sonho para
falar do amor, indo mais longe com o deboche dos costumes humanos. Todos, agora, são alvos de
ironia: pobres, ricos, pessoas simples, membros da nobreza, clérigos, o papa, homens, mulheres.
Escrito em dois momentos e por dois autores diferentes, O romance da rosa exerceu grande
influência, durante séculos, ao pôr em questão o porquê das atitudes humanas. Por exemplo, ao
tratar do casamento, o livro compara os noivos a peixes que querem entrar em um aquário,
enquanto os peixes que já estão lá dentro só pensam em sair...
Por trás das obras aqui mencionadas (Romance de Tristão, A queixa da Natureza e O romance da
rosa), continua a questão levantada desde as origens da Filosofia: o que é o amor? Essas obras,
porém, dão um testemunho histórico de que o tema ganhou novo destaque e novo tratamento nos
séculos XI-XIII: o amor, agora, é visto de uma perspectiva cotidiana e, portanto, antropocêntrica,
concentrada no ser humano e não no bem supremo ou em Deus.
Essas três obras têm relações profundas com a concepção do amor cortês, um estilo de sedução que
se desenvolveu na Idade Média e visava à conquista das mulheres por meio da delicadeza e da
gentileza. A poesia, dessa perspectiva, apresentava-se como o melhor modo de seduzir.
O amor cortês era registrado literariamente pelos trovadores e celebrado pelos menestréis
(cantores que viviam nas cortes dos senhores feudais). Era comum que os trovadores projetassem
imagens de mulheres ideais, mostrando que o amor sempre sonha com perfeição e, por isso, requer
autocontrole. Isso não impedia, como dizem os historiadores, que os mesmos homens que
representavam o amor cortês como um amor nobre, elevado, perfeito, também consagrassem seu
amor real e cotidiano a mulheres simples, terminando suas noites em tavernas, que eram os “bares”
da época medieval. Esse misto de “ideal” e “real”, sonho e realidade, prazer e frustração, alimentava
a concepção do amor como algo que toma o ser humano e lhe dá, ao mesmo tempo, prazer e dor.
Senhor Konrad von Alstetten, 1310-1340, iluminura em pergaminho de artista anônimo. Códice de Manesse,
fólio 249 v.
A expressão amor cortês foi criada em 1883, por Gaston Paris (1839-1903), historiador da
poesia medieval que traduziu dessa maneira a expressão fin’amor (amor refinado), usada na Idade
Média.
A cortesia como meio de sedução introduziu a ideia de que o amor entre homem e mulher não devia
ser vivido como uma posse. O desejo brutal e a agressividade, que muitas vezes caracterizavam as
relações amorosas, separam-se agora, dando lugar à beleza e à virtude.
Tais elementos podem ser encontrados nos romances de cavalaria, gênero em prosa que teve
grande sucesso nos séculos XIII-XV e que registrava códigos de conduta dos cavaleiros das
Cruzadas, vistos como heróis pelos cristãos europeus. Outros romances de cavalaria de que se tem
notícia são Lancelote e Ivã, o cavaleiro do leão, escritos por Chrétien de Troyes, no século XIII. Esse
autor é uma das principais fontes para conhecer a história do rei Artur e os cavaleiros da Távola
Redonda, encarregados de assegurar a paz e procurar o Santo Graal (cálice que, segundo a lenda,
teria sido usado por Jesus Cristo em sua última ceia). A influência dos romances de cavalaria na
mentalidade europeia pode ser observada até os séculos XVI-XVII. Na Espanha, eles marcaram
profundamente a redação de um clássico da literatura ocidental, a obra Dom Quixote, de Miguel de
Cervantes (1547-1616).
Alguns historiadores defendem que os trovadores europeus aprenderam o ideal de amor cortês
com poetas muçulmanos. Outros criticam essa interpretação e o relacionam à influência dos rituais
católicos na produção de uma poesia não religiosa. Seja como for, o jogo de sedução passa a ser
concebido como atividade masculina de exaltação da mulher amada, encarando-a como um ser
superior ao próprio poeta. Essa atitude se explica, de um ponto de vista histórico, pelo fato de
muitos trovadores serem de classe inferior à das mulheres para quem escreviam seus poemas; e,
mesmo que os charmes cantados pelos menestréis não terminassem em casamento (por causa da
diferença socioeconômica), rendiam, sem dúvida, algumas aventuras.
Em nossos dias, a tradição do amor cortês talvez possa ser considerada “machista”, porque
Página 186
apresenta a mulher como uma figura delicada e sobre-humana, além de propagar a força de
conquista masculina. De fato, a mulher não é um “objeto” de conquista, mas um ser igual ao homem,
com quem a relação de amor merece ser estabelecida de igual para igual. Todavia, talvez também
não seja correto chamar de “machistas” poetas e prosadores que, segundo os costumes da época,
não tinham condições de ver a mulher da maneira como ela é vista hoje. Convém tomar cuidado
com julgamentos anacrônicos do passado. O mundo do amor cortês é o mundo das estruturas
5
Por outro lado, com tanto machismo e grosseria em nossas vidas cotidianas, uma pitada de
cavalheirismo e de cortesia, tanto da parte dos homens como das mulheres, talvez não fizesse mal a
ninguém, você não acha?
Ícone: Glossário 5 anacrônico: algo não adequado a um tempo determinado; julgamento que usa maneiras de
pensar típicas de um momento histórico para avaliar outros momentos históricos.
EXERCÍCIO A
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 467
2 O amor-paixão
A dupla face do amor, fonte de prazer e de dor, de virtudes e vícios, levou os pensadores a afirmar,
por um lado, que ele nasce nos seres humanos sem que eles o produzam, embora, por outro lado,
eles possam interferir na continuidade do amor ou no modo como ele é vivido.
Falar de vícios e virtudes significa acreditar que as pessoas podem praticar atos bons e desenvolver
bons hábitos (virtudes) ou praticar atos maus e desenvolver maus hábitos (vícios). Para
desenvolver hábitos, no entanto, é preciso haver uma base a ser trabalhada, uma capacidade ou
uma possibilidade inscrita nos seres humanos. No caso do amor, os filósofos medievais dirão que
ele mesmo é a sua base. Ele surge nos seres humanos porque eles são dotados da capacidade de
buscar satisfação e pode ser desenvolvido como um hábito bom ou mau (virtude ou vício).
O filósofo muçulmano espanhol Ibn Arabi (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 187)
descreveu essa dinâmica de viver e praticar o amor em uma obra intitulada Tratado do amor. Ícone:
Texto filosófico
Ibn Arabi concebe o amor como algo natural, sentido como uma tendência por todos os animais,
principalmente o animal humano. Em outras partes de seu livro, ele declara que até a relação com o
ser divino é uma relação em que o ser humano pensa no seu próprio bem em primeiro lugar. Ibn
Arabi não pretendia apresentar o ser humano como um ser egoísta, mas afirmar que, se ele busca o
bem em tudo o que faz (busca que outros filósofos chamaram de felicidade), então, não há nada de
negativo em dizer que o amor visa ao próprio bem em primeiro lugar e, apenas em segundo lugar,
ao bem alheio. Trata-se do amor natural.
Esse esclarecimento permite entender por que, segundo Ibn Arabi, o ser humano ama a relação com
a pessoa amada; é na relação que ele encontra o seu bem. Conjuntamente, ele ama também a
existência da pessoa amada, mas é fato, segundo Ibn Arabi, que
Página 187
ele a ama porque aprendeu a amá-la na relação que lhe traz o seu bem. Sem a relação amorosa,
talvez a outra pessoa não fosse amada. O mesmo vale para o ser divino ou o amor espiritual.
O amor natural
Ibn Arabi
O amor natural origina-se do bem-estar e do benefício que são trazidos pelo amor, pois,
naturalmente, nenhum ser é capaz de amar outro só pelo bem desse outro; ao contrário, é visando
ao seu próprio bem que quem ama deseja unir-se ao que é amado, como observamos nos animais e
no ser humano pela animalidade que há nele.
O animal ama seu parceiro para conservar sua própria existência; não há nenhuma outra razão para
seu amor; aliás, o animal não tem consciência do que significa conservar a existência. Ele só
reproduz em si mesmo uma simples atração espontânea que o leva a se unir a outro ser particular.
Definitivamente, essa união é o objeto fundamental de seu amor. É claro que, como essa união só
acontece em indivíduos determinados, o ser que ama também amará a existência do ser amado,
mas esse amor é acessório, porque seu amor se dirige, em primeiro a lugar, a ele mesmo. [...] Tal
união é de ordem sensível, ocorre entre seres que se reconhecem fisicamente. É o que queremos
dizer com o verso: Essa é a finalidade do amor natural.
Se um ser deseja a união sexual, o objeto de seu amor se concretiza em outro indivíduo. Ele buscará,
então, e desejará o ser em quem se manifesta o objeto de sua paixão. Esse amor só pode nascer
entre dois seres e não em apenas um só, pois se trata de uma união correlativa. O que acabamos de
dizer aplica-se também às manifestações de carinho, às relações íntimas e a outros
comportamentos do mesmo tipo. [...]
Porém, no caso do ser humano, essa constatação é ainda mais válida do que no caso dos seres de
outras espécies, pois o ser humano sintetiza todas as realidades do mundo [...] e também possui
uma relação privilegiada com o aspecto santíssimo do Ser verdadeiro.
IBN ARABI. Traité de l’amour. Tradução Maurice Gloton. Paris: Albin Michel, 1986. p. 109-110. (Tratado do amor. Tradução nossa
para o português.)
Como se pode verificar, Ibn Arabi é profundamente platônico (Ícone: Conteúdo tratado em outra
página p. 146-147), sobretudo porque relaciona o amor com a conservação da existência e a
satisfação da carência. Há, contudo, em seu texto, uma ênfase um pouco diferente daquilo que havia
pensado Platão (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 82). No dizer de Ibn Arabi, além da
atração exercida pelo Bem Supremo (tal como pensava Platão), é preciso dar o devido valor à
atração sentida pelos animais e pelos seres humanos. Trata-se da atração exercida por um indivíduo
(amado) sobre aquele que ama (amante). Em outras palavras, trata-se de uma atração natural, à
qual Ibn Arabi, adotando um vocabulário mais forte em Aristóteles (Ícone: Conteúdo tratado em
outra página p. 103) do que em Platão, denomina paixão.
Também conhecido como Abenarabi ou Ben Arabi, foi um filósofo e poeta mulçumano espanhol da
Andaluzia. Defendia a unidade entre conhecimento e amor, realizada sobretudo pelo encontro entre
a fé religiosa e a razão filosófica, caminho para união com a verdade. Suas obras mais conhecidas
são: Epístola das luzes, Tratado sobre o amor e Livro das contemplações divinas.
Ibn Arabi insiste que o amor não está em quem é amado, mas em quem ama. Nisso, ele se mantém
platônico, pois entende que o amor não é a posse da pessoa amada, mas a relação amorosa ou o
viver na presença da pessoa amada. Em outro trecho de seu livro, Ibn Arabi analisa algumas
“falácias sobre o amor”. Uma falácia é um raciocínio malfeito, porém com a aparência de raciocínio
válido (p. 58). Entre as falácias do amor está a crença segundo a qual o fato de “amar alguém” daria
base para concluir que “o amor está em quem é amado” (o amor seria algo que está na
Página 188
pessoa amada e que nos faz amá-la). Ora, há pessoas que são amadas e não amam quem as ama. Se
o amor estivesse nelas, elas também amariam quem as ama.
Ibn Arabi compreende, assim, que o amor é uma atividade desenvolvida na presença de alguém
(podendo ser uma virtude ou um vício), mas também dá grande ênfase ao fato de que ele ocorre na
pessoa que ama. Ainda em seu Tratado do amor, ele escreve o seguinte poema:
IBN ARABI. Traité de l’amour. Tradução Maurice Gloton. Paris: Albin Michel, 1986. p. 131. (Tratado
do amor. Tradução nossa para o português.)
As palavras finais do poema são bastante significativas, pois se referem ao ser amado como quem
entra, sai e permanece na intimidade de quem ama. Tal dinamismo simboliza o amor entendido
como paixão, algo que está em quem ama, mas que “entra e sai”. No vocabulário atual, falamos de
emoção (p. 264): vivência sentida pelas pessoas como reação à presença de alguém, de uma coisa,
de uma ação etc.
Por seu modo de exprimir o amor como paixão ou emoção, Ibn Arabi testemunha um novo modelo
que começa a se fortalecer na compreensão do amor durante a Idade Média. A novidade está na
ênfase do caráter passional do amor, como uma tendência natural que se apodera dos indivíduos.
Platão já havia apontado para esse sentido e Aristóteles o levou muito além do que fizera seu
mestre. Agora, porém, ele recebe uma ênfase especial, tal como se pode observar também pelas
obras literárias aqui já mencionadas: por seu caráter passional, o amor passa a ser visto em sua
dimensão irresistível, ainda que possa ser vivido de maneira integradora (ordem e virtude) ou
desintegradora (desordem e vício). Essa ênfase marcou muitos outros filósofos da Idade Média e do
Renascimento (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 382), chegando até a Idade Moderna e
aos nossos dias.
IMAGE COPYRIGHT THE METROPOLITAN MUSEUM OF ART/ART RESOURCE/SCALA, FLORENCE
A “perturbação” causada pelo amor torna feliz a pessoa que ama, a ponto de ela não desejar fugir
das crueldades do amor. Seria irreal pretender que a razão o controle. Leão Hebreu apresenta o ser
humano como um ser unitário, não dividido. Nele, razão e paixão estão em jogo; e jogo é correlação
de influências, não necessariamente rivalidade.
A visão unitária do ser humano, defendida por Leão Hebreu, representa uma concepção bastante
influente no Renascimento. Suas raízes encontram-se já em Platão: cada indivíduo contém em si
todos os elementos do Universo; cada pessoa é um “resumo” ou
Página 189
uma “síntese” de tudo o que há no mundo. Observa-se uma harmonia no Universo, formada, por um
lado, de elementos estáveis e inteligíveis, e, por outro, de elementos imprevisíveis que, embora
pareçam perturbar o conjunto, contribuem para seu bom funcionamento. Assim, também no ser
humano há uma dimensão de estabilidade e controle (a razão), conjuntamente com um elemento
irresistível (a paixão). Por isso, segundo o vocabulário de alguns renascentistas, cada indivíduo é
um microcosmo (um Universo em miniatura), imagem do macrocosmo (o grande Universo).
Leão Hebreu
O amor que é regido pela razão não costuma forçar o amante; e, ainda que do amor tenha o nome,
não tem o seu efeito. É com assombrosa veemência e incrível jeito que o verdadeiro amor violenta
6
a razão e a pessoa amante; mais do que qualquer outro impedimento humano, ele perturba a
mente, que é sede do juízo; faz perder a memória de todas as outras coisas; e de si só a satura,
tornando o ser humano em tudo alheio de si mesmo e da pessoa amada. [...] O que eu acho mais
espantoso é que, sendo [o amor] tão intolerável e descomedido em crueldades e atribulações, a
7
mente não espera, não deseja nem procura fugir delas; antes, considera mortal inimigo quem
aconselhe [a ela fugir do amor] e a ajude [nessa fuga]. Parece-te que num tal labirinto se possa
prestar atenção à lei da razão e à norma da prudência?
LEÃO HEBREU. Diálogos de amor. Tradução Giacinto Manuppella. Lisboa: Casa da Moeda, 2001. p. 107-108.
Também conhecido como Judá Abravanel, foi um filósofo, médico e poeta de origem judaica,
nascido em Lisboa. Pouco se sabe sobre sua vida. Junto com seu pai, fugiu de Portugal devido à
perseguição aos judeus no início do século XVI. Sua obra mais conhecida é Diálogos de amor, escrita
por volta de 1502.
CAMÕES, Luís de. Soneto LXXXI. In: Obras completas de Camões. Edição José Victorino B. Feio e José Gomes
Monteiro. Lisboa: Baudry, 1843. p. 41.
REPRODUÇÃO
Fernão Gomes (1548-1612), Luís Vaz de Camões, 1575, retrato (copiado por Luís de Resende). Torre do
Tombo, Portugal. É historicamente provável que Luís de Camões (1524- 1580) tenha sido um leitor de Leão
Hebreu.
Página 190
EXERCÍCIO B
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 467
1. Em que sentido Ibn Arabi usa o termo paixão para falar do amor?
2. Por que Ibn Arabi insistia que o amor está em quem ama, e não na pessoa amada?
3. Com base no pensamento de Leão Hebreu, complete a seguinte frase, tirando a consequência
irreal denunciada pelo filósofo: Se o amor for controlado pela razão...
Charles Le Brun (1619-1690), O desejo, sem data, desenho reproduzido na obra As expressões da alma, de 1727.
Alguns filósofos dirão coisas bastante semelhantes ao que havia pensado o renascentista Leão
Hebreu. É o caso, por exemplo, de David Hume (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 273),
para quem não fazia sentido pensar em um controle total da razão sobre as paixões.
Hume partia da observação de que simples raciocínios não bastam para levar alguém a agir; os
indivíduos humanos, ao passar à ação, mostram-se movidos por emoções (paixões). Seria, portanto,
mais defensável pensar que os verdadeiros motores da vida (inclusive da atividade do pensamento
8
reflexivo) são as emoções e não a razão. Do ponto de vista moral, porém, a boa ação, segundo Hume,
combina paixão e razão (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 33 e 382).
Outros filósofos, mesmo concordando com a interpretação das paixões como vivências que
influenciam diretamente a razão, encontraram motivos para afirmar que a razão pode controlar as
paixões, principalmente por um trabalho de educação. Nessa linha seguiram filósofos como René
Descartes (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 191), que viveu um século antes de David
Hume.
Descartes considerava que, quando há uma vontade consciente de controlar as paixões, o indivíduo
pode ter sucesso; em vez de ficar sujeito a elas e desorientado, ele pode, digamos assim, direcionar
o sentido das paixões e fazê-las contribuir para a posse da felicidade. A consciência de si e de suas
possibilidades, típica do ser humano, fornecia a Descartes o principal ponto de partida para sua
compreensão da relação entre razão e paixões. O pensamento (atividade racional) é uma
experiência que permite ao indivíduo dizer “eu”, sentindo-se como uma singularidade total e
desejando ser reconhecido dessa maneira. Mas o indivíduo é também um corpo físico, pois se
percebe como um elemento da Natureza e como um centro de relações materiais com outros seres
também materiais.
REPRODUÇÃO/BIBLIOTECA NACIONAL DA FRANÇA, PARIS
Ora, se observarmos o corpo humano, veremos, segundo Descartes, que ele é uma “máquina” cujo
funcionamento não depende do pensamento (mesmo os animais, desprovidos de pensamento, têm
corpos que funcionam). Essa observação permite concluir que o pensamento é diferente do corpo; é
algo que existe em união com o corpo humano, mas sem se confundir com ele. Em outras palavras,
não é o corpo que pensa e diz “eu”; em contrapartida, é o pensamento que se serve do corpo. Por
conseguinte, se o
Página 191
pensamento se serve do corpo, e se as paixões têm origem no corpo (como se constata até nos
animais), então o pensamento pode se servir também das paixões e controlá-las, orientando-as
para a felicidade. Ícone: Texto filosófico
René Descartes
Parece-me que a diferença existente entre as grandes almas e aquelas que são baixas e vulgares
consiste, principalmente, no fato de que as almas vulgares deixamse levar por suas paixões e são
felizes ou infelizes se as coisas que lhes acontecem são agradáveis ou desagradáveis. Em vez disso,
as outras almas [as grandes] têm pensamentos tão fortes e tão potentes que, embora também
tenham paixões, e mesmo frequentemente mais violentas do que as paixões do homem comum, sua
razão permanece sempre sua mestra e faz que as aflições até lhes sirvam e contribuam para a
perfeita felicidade de que elas, as grandes almas, tiram proveito.
DESCARTES, René. Lettre à Elisabeth, reine de Suède, le 18 mai 1645. In: Œuvres complètes. Edição C. Adam e P. Tannery. Paris: Cerf,
1901. p. 202. (Carta a Elisabeth, rainha da Suécia, 18 de maio de 1645. Tradução nossa.)
Foi um filósofo e matemático francês, considerado como o principal fundador da filosofia moderna.
Além de ser famoso por sugerir a fusão da Álgebra com a Geometria (fato que gerou a geometria
analítica e o sistema de coordenadas que hoje leva seu nome, o plano cartesiano), foi um pensador
central na revolução científica e na fundamentação da ciência moderna. É também reconhecido
como o fundador do racionalismo clássico. Obras mais conhecidas: Discurso do método, Meditações
metafísicas e As paixões da alma.
A grandeza de alma, sobre a qual fala Descartes, longe de significar uma grandeza “natural” (como
se o mundo estivesse dividido entre pessoas grandes e pequenas, melhores e piores), refere-se à
atividade da razão, que engrandece. Algumas pessoas a desenvolvem, outras não. Em todo caso, a
grandeza estaria na possibilidade de se servir da razão e de pôr ordem nas paixões, a fim de obter
uma vida feliz.
Continuam, assim, na filosofia cartesiana das paixões, aqueles dois modelos desenvolvidos ao longo
9
dos séculos para entender as paixões: elas nascem no ser humano sem que ele possa decidir sobre o
seu surgimento, mas existe também a possibilidade de interferir no modo de vivenciá-las. O tema
da interferência nas paixões já havia sido bastante explorado no pensamento antigo. Platão e
Aristóteles, por exemplo, pensaram formas de controlá-las; alguns estoicos (p. 340) propunham até
eliminá-las. Mas nos tempos do Renascimento e na Modernidade, o tema ganha novo tratamento.
A novidade de Descartes estará, porém, em sua justificativa dessa concepção (a distinção entre o
corpo e o pensamento na unidade do indivíduo) e na aplicação do modelo mecanicista de
conhecimento (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 235) para explicar a relação entre a
razão e as paixões. Com efeito, o funcionamento do corpo humano e de todos os seres vivos poderia,
segundo Descartes, ser explicado da maneira como se explica o funcionamento de uma máquina.
Como o pensamento é quem comanda a máquina do corpo, uma vez entendida a “engrenagem” das
paixões (emoções), o comandante poderá controlá-las. Tal controle poderia ser ampliado para a
melhoria das relações sociais, como a Política, uma vez que a ordem nas paixões dos indivíduos
resultaria na ordem das paixões vividas pelo conjunto deles.
Ainda durante a Idade Moderna, alguns pensadores apontaram dificuldades nas conclusões de
Descartes. Por exemplo, Blaise Pascal (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 192)
considerava exagerado crer em um controle da vida individual e social pelo pensamento, dado que
fatores imponderáveis influenciam tanto a ação como o próprio pensamento. Ainda que Descartes
10
10 Imponderável: algo que não pode ser pesado (avaliado); imprevisível; incontrolável.
Página 192
Pascal não podia segui-lo na conclusão de que o pensamento é capaz de comandar inteiramente a
existência.
A bem da verdade histórica, porém, embora Descartes distinga o corpo e o pensamento (por ele
também chamado de alma), ele não os entende como coisas relacionadas de modo que apenas uma
delas possa influenciar a outra (o pensamento sobre o corpo). Em sua correspondência com a
rainha da Suécia, por exemplo, Descartes dá claras indicações de influências do corpo sobre a alma.
Caberia ao indivíduo buscar a harmonia entre corpo e alma. No entanto, também é verdade que se
criou, depois de Descartes, um tipo de leitura da filosofia cartesiana como defesa da total soberania
da alma em relação ao corpo: a “alma-comandante” disporia do corpo como um instrumento
passivo, inteiramente ao seu dispor.
©FRITZ KAHN
Homúnculo que dirige o corpo, desenho anônimo. The Open Source Science Project (disponível em:
<http://theopensources cienceproject.com/lecture-searchforthe self.php>. Acesso em: 7 jan. 2016).
Acesse:
O desenho representa o que seriam os atos de ver e de falar, segundo uma filosofia que entende a mente como
comandante do corpo. O homenzinho que está na cabeça recebe a informação visual de uma chave, analisa essa
informação com base no arquivo de experiências precedentes, interpreta-a e envia um comando para que as
cordas vocais exprimam o que o homenzinho entendeu. Ele consegue então fazer o corpo dizer: Schlüssel
(“chave” em alemão, pois essa é a língua do autor do desenho). No século XX, alguns cientistas e filósofos
identificaram o “homenzinho” diretamente com o cérebro.
Blaise Pascal (1623-1662)
Foi um filósofo, matemático, físico e teólogo francês. Deu contribuições bastante originais no campo
da Física e da Matemática. Em Filosofia, sua obra mais conhecida é Pensamentos, conjunto de
fragmentos publicados postumamente em 1670, expondo não apenas ideias filosóficas, mas
também uma defesa da espiritualidade e do cristianismo.
EXERCÍCIO C
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 467
1. Por que, segundo David Hume, seria mais defensável afirmar que as paixões controlam a
razão do que o contrário?
2. Resuma o caminho percorrido por Descartes para concluir que é razoável entender a razão
como dotada da possibilidade de controlar as paixões.
Página 193
4 O amor romântico
Tanto na Idade Moderna como na Contemporaneidade surgiram reações contrárias à concepção do
ser humano como máquina de comportamentos mecânicos. Algumas delas identificam nessa
concepção uma forma da falácia da causa ou do post hoc propter hoc (Ícone: Conteúdo tratado em
outra página p. 60): o fato de dizer que a mente ou o pensamento depende do cérebro não dá base
para concluir que a mente é também produzida pelo cérebro; não é porque o cérebro “vem antes”
da mente que ele pode ser considerado a sua causa, assim como o fato de a engrenagem de uma
máquina ser necessária para o seu funcionamento não permitir afirmar que a própria engrenagem
produz o funcionamento da máquina.
Algumas dessas reações contrárias denunciam o que elas consideram como o excesso do
racionalismo (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 336): a confiança de que a razão ou o
pensamento reflexivo é a característica principal dos seres humanos, capaz de controlar os
indivíduos e os grupos. Tal confiança introduz uma divisão tão potente no ser humano (entre sua
parte “racional” e sua parte “irracional” ou passional), que não é de estranhar a conclusão histórica
do desaparecimento da própria “razão”, dissolvida em meio aos aspectos humanos entendidos
como meras realidades físico-químicas.
Reações desse tipo surgiram já no final do século XVIII. A maior delas talvez seja a de um
movimento que ficou conhecido como Romantismo e que se construiu em uma relação íntima entre
Filosofia e arte. Se os românticos também afirmavam a possibilidade de o ser humano formar-se a
si mesmo (“controlar-se”), eles não podiam, porém, aceitar que essa formação fosse dada por uma
“razão” compreendida cada vez mais em termos científicos, quer dizer, uma razão que quantifica,
enumera, mede, calcula e depois se proclama a si mesma como padrão “humano” e fonte de
conhecimento “verdadeiro”.
O ser humano, na concepção romântica, tem outras formas de experimentar verdades. Por exemplo,
diante de certos acontecimentos naturais, sobretudo as catástrofes, os indivíduos e os grupos
podem adotar uma atitude “científica”, buscando entender as causas de tais acontecimentos e
dando explicações físicas, químicas e biológicas. Mas também podem deixar-se tocar pela força que
se manifesta na Natureza e perceber um mistério imponderável na mesma Natureza, uma dimensão
impossível de ser dominada por conceitos científicos. Percebido o mistério, surge nas pessoas uma
experiência de admiração e respeito, porque elas se veem diante de algo sublime, elevado,
incontrolável e incompreensível. A Ciência, dessa perspectiva, ao pretender impor-se como única
explicação verdadeira da Natureza, embrutece a percepção humana e termina por “fechar os olhos”
para o mistério sublime, dando a ilusão de que o mundo se reduz àquilo que dizem os cientistas em
termos de relações de causa e efeito, proporções mecânicas etc. A própria Filosofia produz esse
embrutecimento quando se submete passivamente às verdades científicas.
Nesse contexto, o tema do amor ganha destaque especial, deixando de ser entendido como simples
“paixão” ou algo oposto à “razão” (como se o ser humano fosse dividido interiormente) e passando
a ser compreendido como a atitude radical de percepção da vida em seu valor próprio.
O filósofo alemão Friedrich Schlegel (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 195) redigiu uma
série de pensamentos sobre o amor na
Página 194
B rumas são nevoeiros, como a cerração que altera as condições de visibilidade nas manhãs frias
em muitas regiões do planeta. Vários escritores e pintores românticos revelam um grande fascínio
por elas, principalmente as “brumas do Norte” (referência às regiões do norte da Europa, que são
mais frias).
Tal fascínio colaborou para o fortalecimento da imagem dos românticos como artistas e pensadores
enigmáticos, envolvidos em mistério brumoso e mesmo marcados por certa melancolia (o prazer de
sentir-se triste, desconfortável em meio à visão comum da realidade). Dessa perspectiva, o quadro
de Caspar David Friedrich é uma imagem clássica. No primeiro plano, aparece um homem de costas,
com cabelos ao vento, contemplando uma paisagem brumosa na qual se podem distinguir algumas
árvores e alguns rochedos. Como pano de fundo, a bruma está presente por todos os lados,
tornando impossível distingui-las das nuvens do horizonte.
Mais do que mistério e melancolia, o quadro permite observar que a própria Natureza altera sua
imagem e desperta sentimentos diferentes em quem se deixa tocar por suas variações. As brumas
naturais representam as brumas que envolvem o modo humano de olhar para o mundo: por mais
que se acredite na capacidade de compreender tudo, sempre um nevoeiro pode alterar a
visibilidade.
Caspar David Friedrich (1774- 1840), Viajante sobre o mar de névoa, 1817, óleo sobre tela.
Os fragmentos de Schlegel estão aqui registrados em uma ordem didática, não na ordem de sua
redação (indicada pelos números entre colchetes).
Os dois primeiros contêm a crítica à crença filosófica e científica de que é possível conhecer a
Natureza apenas pela razão. A consciência humana opera por fragmentos, contatos e ocultamentos.
Pretender uma explicação completa e sistemática seria perder a vida. Pelo amor, ao contrário, se
conhece a realidade tal como ela é, pois ocorre uma união direta com o objeto amado (aquilo cujo
valor é sentido), sem passar pelo intermediário de uma interpretação preconcebida (científica ou
filosófica). Então, se é pelo amor que isso é possível, é por ele também e pela consciência dele que o
ser humano se torna realmente humano.
Em vez de “pensar” o mundo, Schlegel propõe “sentir” o mundo (perceber o sentido de que fala o
terceiro fragmento). Sente-se a beleza de uma paisagem, por exemplo, quando ela é percebida por
meio dos sentidos físicos (sensação ou sensibilidade) e quando se percebe conjuntamente que ela
não é uma paisagem
Página 195
qualquer, e sim uma paisagem bela (sentimento da beleza). Sente-se o valor de cada coisa e ama-se
cada coisa pelo que ela é. É nessa união com o sentido que o amor se revela a forma adequada do
conhecimento da Natureza. Ele é crença, adesão ao que se apresenta como dotado de valor
(desejável por si mesmo).
Ilumina-se, assim, a experiência do amor entre os amantes: em primeiro lugar vem o sentido que
um tem para o outro, isto é, o reconhecimento do que um significa para o outro. Quando se
entregam mutuamente, eles creem um no outro. Em segundo lugar, vem o deleite ou o prazer, que
pode apurar o sentido percebido, mas não o produzir, pois ele é encontrado; ele é o objeto ou o
conteúdo do sentimento, não da sensibilidade ou sensação. Do ponto de vista apenas da
sensibilidade, duas pessoas más podem ter a ilusão de se amar, pois podem ter prazer uma com a
outra. Essa ilusão, porém, dura pouco: quando ambas percebem o que uma significa para a outra e
se dão conta da maldade, também percebem que não se amam com verdade, pois algo verdadeiro
não pode conter maldade.
Friedrich Schlegel
Jamais conhecerá a Natureza quem não a conhece por meio do amor. [103]
Somente pelo amor e pela consciência do amor o homem se torna homem. [83]
No amor, em primeiro lugar vem o sentido de um para o outro, e o mais elevado é a crença de um
no outro. Entrega é expressão da crença, e o deleite pode vivificar e apurar o sentido, mas não o
produzir, como é opinião comum. Por isso, durante um breve tempo, a sensibilidade pode dar a
pessoas más a ilusão de que poderiam se amar. [87]
SCHLEGEL, Friedrich. Dialeto dos fragmentos (Ideias 103; 83; Athenäum 87). Tradução Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1997. p.
157, 154, 60.
Foi um poeta, filósofo e crítico literário alemão. Participou ativamente das primeiras expressões e
formulações teóricas do Romantismo. Elaborou uma crítica da verdade poética por meio da ironia,
conceito central de seu pensamento. Entre suas obras mais conhecidas estão seus conjuntos de
fragmentos e Diálogo sobre a poesia.
Théodore Géricault (1791-1824), Paisagem com aqueduto, 1818, óleo sobre tela.
EXERCÍCIO D
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 467
Arthur Schopenhauer (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 85), por exemplo, tal como
registrado em seu livro Metafísica do amor, identificava um impulso sexual em todo ser vivo dotado
de sensação e interpretava esse impulso como uma tendência a conservar a vida, chamando-o de
amor. A Psicanálise, principalmente freudiana, também entendeu o amor em termos de sexualidade
(Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 124).
Outro tratamento contemporâneo do tema do amor está nas críticas feministas às concepções
platônico-cristã, romântica e mesmo psicanalítica. A pensadora Simone de Beauvoir, por exemplo,
denunciava que a história filosófica do amor era uma história escrita por homens, sem levar em
conta o fato de a palavra amor não ter o mesmo significado para homens e mulheres. Além disso, a
pensadora defendia que a construção das individualidades é o que determina os papéis sexuais; não
a Natureza. Em seu livro O segundo sexo, ela redige uma de suas mais famosas frases: “Não se nasce
mulher; torna-se mulher”.
Não é razoável, porém, considerar o feminismo como um pensamento homogêneo , pois nem todas
13
as feministas entendem o amor como uma simples invenção cultural para perpetuar a dominação
masculina. É o caso, por exemplo, da pensadora norte-americana Judith Butler, que dissocia o amor
das tensões entre homens e mulheres. Butler esclarece que o amor não é “algo que se sente”, e sim
uma relação que se constrói por trocas entre pessoas. Em seu ensaio Duvidando do amor, ela
defende que a primeira troca entre as pessoas é a dos sonhos ou dos anseios. As paixões ou as
emoções não são estáticas nem rígidas, e sim flexíveis e mutáveis. Por isso, as pessoas podem viver
suas emoções como uma performance, uma atuação, assim como os artistas atuam em um filme ou
em uma peça de teatro. Segundo Butler, o amor não seria sequer uma emoção, mas realmente uma
relação, uma atividade.
Judith Butler (1956-)
para o debate. Algo que pode ser avaliado dessa maneira chama-se público; do contrário, chama-se
privado.
Por exemplo, as afirmações das ciências seriam públicas, pois os observadores que conhecem as
regras do debate (os cientistas) podem avaliar a correção e a adequação dessas afirmações. Já
experiências como o amor seriam privadas, pois nenhum observador pode avaliar objetivamente
aquilo que se chama com esse nome. Pode ser o caso de alguém agir com gentileza e dizer-se
movido por amor, quando, na verdade, age por interesse, hipocrisia etc.
O termo amor, assim, passa a ser visto como impreciso e insuficiente para dar conta das motivações
humanas. Nessa linha, o filósofo inglês Stuart Hampshire, por exemplo, lembra que o amor remete a
conceitos como bem, perfeição, busca do melhor, atração do bem etc., que resistem a toda análise
objetiva. Ora, assim como as ciências empregam uma linguagem compreensível por todos que
conhecem suas regras, assim também a Ética deveria buscar universalidade segundo o modelo
científico. Dado que o amor e os outros conceitos por ele implicados são privados, não seria racional
pretender empregá-los em Ética.
Em reação contrária a Hampshire, a pensadora inglesa Iris Murdoch (p. 199) procurou reabilitar o 14
amor como tema público. Ela concordava com grande parte do que dizia seu colega Hampshire, mas
discordava em algo central: nada obriga a afirmar que tudo o que se passa na dimensão privada
também não é público, ou seja, compreensível racionalmente. O amor seria um exemplo.
No texto “A soberania do bem”, publicado no Brasil em um livro de mesmo nome (coletânea de três
ensaios), Iris Murdoch imagina o seguinte caso: uma determinada mãe, chamada de M, tem um filho
que se casa com N (nora de M). A mãe M não consegue ter simpatia por N; acha que ela é grosseira,
sem bons modos, vive fazendo barulho e veste-se mal; seu modo de ser é muito cansativo. No
entanto, M é uma mulher “correta” e se comporta bem com N, sem deixar transparecer aquilo que
realmente pensa sobre ela. Mas M vive uma luta interior: sabe que não gosta de N, embora faça tudo
para tratá-la bem. Com o passar do tempo, e como M é uma mulher inteligente e com boas
intenções, ela começa a fazer uma autocrítica, perguntando-se se não exagera e se não está
completamente equivocada. M presta atenção no que vive e analisa melhor as coisas, buscando
compreender N tal como N é. Aos poucos, M percebe que estava enganada, pois descobre que N não
era grosseira, mas simples; era espontânea, não alguém sem bons modos; seus “barulhos” eram
alegria. A opinião que M tinha sobre N transforma-se, embora o comportamento de M e sua relação
com N não mudem, porque, desde o início, M era gentil e amável com N.
O caso desenhado por Iris tem por objetivo mostrar que todos certamente aprovam a atitude de M e
entendem que ela mudou de opinião sem precisar mudar de comportamento. Apesar de ser
verdade que é difícil conhecer a real motivação de M (pois, em última instância, só ela mesma pode
saber isso), é possível, entretanto, partir do pressuposto de que ela é uma mulher inteligente e bem-
intencionada (“correta”), a fim de concluir que ela agiu com justiça (procurando ver sua nora tal
como ela realmente é) e por amor (amor por seu filho e amor em geral).
A filósofa sabe que um pensamento só é realmente pensamento quando se dirige a uma conclusão
expressa como algo comunicado ou como ação. Um monólogo interior não tem significado público
15
se não leva a algo exterior. Por conseguinte, para avaliar aquilo que se passa na mente de alguém, é
mais fácil começar pelo que esse alguém exterioriza. O complicador do exemplo de M está no fato
de a sua ação não mudar (ela continua tratando bem a nora); o que muda é sua maneira de ver a
jovem.
No entanto, segundo Iris Murdoch, qualquer pessoa comum entende o caso de M e sabe que é real a
experiência da luta interna com os próprios pensamentos. Caso se concorde que isso é real, então
não é razoável, em termos éticos e mesmo psicológico-científicos, desconsiderar o fato de que as
vivências internas (privadas) interferem no campo público e podem ser avaliadas de algum modo.
Iris Murdoch explica que a luta interna de M pode ser vista como um esforço que resulta do amor.
Nesse aspecto, Iris revela tons românticos em sua filosofia, embora ela fosse uma grande defensora
do modelo científico e dos preceitos lógicos para a construção e expressão do pensamento. Sua
vivência, porém, não lhe permitia abrir mão da convicção de que as bases da Moral ou da Ética
superam regras formuladas objetivamente. Elas se enraízam em experiências cotidianas como a
luta interna de M.
Assim, é racionalmente possível afirmar que a atividade interior de M não se separou de suas
atitudes externas; pelo contrário, formou com elas um “tecido” único. M prestou atenção em N e se
esforçou para ser justa com ela. “Isso é moral”, diz Iris, pois todo ser humano pode praticar a
atenção à sua experiência privada e melhorar o sentido de sua ação. É nesse ponto que Iris Murdoch
recupera a importância do amor e de uma filosofia do amor que não se concentre em especulações,
mas na vida cotidiana. M seguiu um impulso a ser sempre melhor e mais justa com N; tentou ser
mais perfeita. É pela consideração de experiências cotidianas desse tipo que se torna possível
entender ideias como perfeição, bem, melhor etc. É explícito, aqui, o reencontro da filosofia de
Platão. Ícone: Texto filosófico
Amor e atenção
Iris Murdoch
O que M tenta fazer não é apenas enxergar N com precisão, mas enxergá-la com justiça e amor. [...]
A atividade de M é algo progressivo, [...] mas, longe de associar-se a algum tipo de infalibilidade , 16
esse novo quadro foi construído sobre a noção de uma necessária falibilidade . M está engajada em 17
uma tarefa interminável. No instante em que começamos a usar palavras como amor e justiça na
caracterização de M, introduzimos em nosso quadro conceitual a ideia de progresso, isto é, a ideia
de perfeição. [...] O amor é conhecimento do indivíduo. M está confrontada com N em uma tarefa
infinita. [...] Falar aqui de uma imperfeição inevitável ou de um limite ideal de amor ou de
conhecimento que sempre recua pode ser tomado como referência à nossa condição humana
“decaída ”, mas isso não precisa ter um sentido dogmático especial. Como não somos nem anjos
18
nem animais, e sim indivíduos humanos, nossas relações têm esse aspecto; e isso pode ser visto
como um fato empírico. [...]
Nada do que estou dizendo aqui é particularmente novo: coisas semelhantes foram ditas por vários
filósofos, de Platão em diante. [...] Por que não considerar o vermelho como um ponto final ideal,
como um conceito a ser aprendido ao infinito? [...] Isso seria, por contra-ataque, recuperar a ideia
de valor, posta de lado pela Ciência e pela Lógica, e fazê-la ocupar todo o campo do conhecimento.
[...]
Uso a palavra “atenção”, que tomei de empréstimo de Simone Weil para expressar a ideia de um
olhar justo e amoroso dirigido a uma realidade individual. [...] Quando M é justa e amorosa, ela vê
em N quem N é de verdade. Muitas vezes nos sentimos impulsionados automaticamente pelo que
podemos ver. Se ignoramos o trabalho anterior da atenção e notamos apenas o vazio do momento
da escolha, tendemos a identificar a liberdade com o movimento exterior, já que não há nada mais
com que identificá-la. Mas, se levamos em conta como é o trabalho da atenção, como ele se dá de
forma contínua, e a maneira imperceptível como ele constrói estruturas de valor à nossa volta, não
ficaremos surpresos ao ver que, em momentos cruciais de escolha, a maior parte do processo de
escolha já está feita. Isso não implica que não sejamos livres, absolutamente. Mas implica que o
exercício de nossa liberdade é algo que se dá aos poucos e de modo fragmentário o tempo inteiro; e
não num salto grandioso e desimpedido em momentos importantes.
MURDOCH, Iris. A soberania do bem. Tradução Julián Fuks. São Paulo: Ed. da Unesp, 2012. p. 37-38, 44-45, 54-55, 59-60.
Para analisar esse texto de Iris Murdoch, convém lê-lo por inteiro e depois relê-lo começando pelo
segundo
Página 199
parágrafo. Ao afirmar que suas ideias não são totalmente novas, a filósofa menciona a cor vermelha.
Essa menção pode parecer estranha; afinal, o que a cor vermelha faz aqui, num texto sobre o amor?
Esse dado curioso articula, porém, o texto todo.
Com efeito, no primeiro parágrafo, Iris enfatiza o progresso de M e sua busca de perfeição. Ela
levanta a problemática de saber o que é o progresso e a perfeição. Para explicá-los, recorre à ideia
de que os seres humanos são “decaídos”, quer dizer, diminuídos em perfeição. A expressão condição
humana decaída é tomada da religião judaico-cristã (designação dos seres humanos como criaturas
que perderam o estado perfeito do paraíso), mas Iris afirma não ser necessário assumir a
explicação religiosa para entender a falibilidade humana. Para entender a condição decaída, basta
observar que todos os humanos são falhos, erram. Esse dado é empírico, comprovado pela
experiência pública, e explica o progresso de M, pois, fazendo uma autocrítica e assumindo sua
falibilidade, ela pôde melhorar.
Prevendo, porém, que alguns filósofos poderiam considerar a busca de perfeição algo
“publicamente incompreensível”, Iris introduz a comparação com a cor vermelha: o vermelho
também não pode ser “explicado”, mas apenas apontado; no entanto, ninguém considera
incompreensível o vermelho. Mesmo uma pessoa daltônica apontará para o que ela chama de
19
vermelho, aquilo que ela aprendeu a identificar com esse nome. Por fim, o vermelho pode ser
tomado como um padrão para avaliar tudo o que possui a cor vermelha. Ninguém conhece o
vermelho perfeito; todos veem apenas coisas dotadas de diferentes graus de vermelho.
Ícone: Glossário 19 Daltônico: pessoa que tem dificuldades de perceber certas cores, especialmente o vermelho e
o verde.
Contudo, ao identificar o vermelho das coisas, pressupõe-se algo como um “vermelho perfeito” que
permite avaliar o grau de vermelhidão de cada coisa. Assim também, termos como perfeição,
progresso e amor, mesmo não compreendidos completamente, designam ideais completos com base
nos quais são avaliadas algumas experiências conhecidas de todos. É a possibilidade de se esforçar
e buscar o melhor, progredindo, que permite entender tais termos.
Voltando ao primeiro parágrafo, entende-se por que Iris insiste que as pessoas podem errar. É
justamente a falibilidade que abre a compreensão das infinitas formas de melhorar. Iris Murdoch,
no entanto, não se compromete com a crença de que os indivíduos e as sociedades caminham
sempre para uma evolução e um progresso. Em outras partes de sua obra, ela denuncia as
fraquezas da Humanidade, que tem se tornado cada vez mais egoísta, consumista e excessivamente
desejosa de Poder. A natureza humana é obscura. Apesar disso, a perfeição permanece como
possibilidade; e a tendência para ela é empírica, perceptível por todos.
Foi uma filósofa e escritora irlandesa. Escreveu vários romances e ensaios filosóficos sobre
questões éticas e morais, destacando-se pela ênfase na análise lógica e na valorização da Literatura.
Entre seus romances mais conhecidos estão O sino (1958), Uma cabeça decepada (1961) e O mar, o
mar (1978). Entre seus ensaios filosóficos mais conhecidos estão os três artigos publicados no livro
A soberania do bem (1970).
A comparação com a cor vermelha, feita no segundo parágrafo, prepara também o que Iris afirma
no parágrafo terceiro, pois o caso de M é visto como um trabalho de constante atenção, isto é, um
olhar cuidadoso e treinado para enxergar N tal como N realmente é. Sua atitude corresponde à
atenção tal como compreendida pela pensadora francesa Simone Weil: um olhar amoroso e justo
para com um objeto (um alvo) particular.
Foi uma filósofa francesa de origem judaica. Dedicou-se ao estudo do pensamento grego,
reelaborando de modo original e atual conceitos gregos. Por exemplo, lendo Platão, Simone Weil
propôs a ideia de que tudo o que, no mundo, é fator de separação também pode ser fator de união.
Engajou-se no trabalho operário e na resistência francesa. Considerava-se cristã, embora não tenha
se convertido oficialmente, por discordar do pensamento cristão majoritário. Escreveu Aulas de
Filosofia, A gravidade e a Graça e A condição operária, entre outras obras.
Por outro lado, se se pensar que M decidiu “de repente” pelo bom tratamento de N, não se
perceberá o real funcionamento das decisões humanas: elas não nascem em momentos especiais,
mas resultam do modo como cada pessoa está acostumada a dar valor
Página 200
às coisas. Quando se toma uma decisão, ela é marcada pelos costumes praticados no dia a dia
(muitas vezes sem a devida atenção). A liberdade reside, portanto, na formação atenta da maneira
cotidiana de agir e de reagir às circunstâncias. Em outras palavras, a liberdade está no processo
cotidiano que leva às escolhas, e não nas escolhas mesmas. No caso de M, sua decisão de tratar bem
N nasceu de seu costume de ser “correta”.
No mesmo ensaio, A soberania do bem, Iris Murdoch afirma que a melhor maneira de conhecer o ser
humano não é pela análise científica ou filosófica, mas pela Literatura, que recupera o cotidiano e
permite um acesso direto à vida. Comparando a atenção bondosa com o modo de os pintores
olharem para o mundo, Iris Murdoch evoca uma frase do poeta tcheco Rainer Maria Rilke (1875-
1926), que, ao falar da pintura de Paul Cézanne (1839-1906), dizia ver nela um “consumo de amor
em obra anônima”, um desfrutar amoroso da realidade sem querer chamar a atenção para si
mesmo, mas para a própria realidade. Não foi por acaso que, impressionado pela Montanha Santa
Vitória, no sul da França, Cézanne a pintou aproximadamente 80 vezes em seus quadros. Como ele
dizia, o estudo real que um pintor deve fazer é o da diversidade do “quadro da Natureza”,
produzindo “quadros seus” que sejam ensinamentos. Tais ensinamentos, por sua vez, não seriam
simples reproduções ou imitações da Natureza.
Cézanne não acreditava em uma separação entre o que é objetivo (público) e o que é subjetivo
(privado). De sua perspectiva, toda pintura é objetiva, pois registra o que foi realmente visto pelo
artista.
No alto, à esquerda: Paul Cézanne (1839-1906), A montanha Santa Vitória, 1904, óleo sobre tela. À esquerda:
Paul Cézanne, A montanha Santa Vitória vista de Bellevue, 1885, óleo sobre tela. Acima: Paul Cézanne, Estrada
em frente à Montanha Santa Vitória, 1898-1902, óleo sobre tela.
EXERCÍCIO E
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 468
2. É correto dizer que todo pensamento feminista é contrário ao amor? Analise o caso de Judith
Butler.
4. O que a história de M e N, imaginada por Iris Murdoch, ensina sobre a diferença entre a
dimensão pública e a dimensão privada na experiência humana?
EXERCÍCIOS COMPLEMENTARES
1 Música e poesia
Ouça a música “Monte Castelo”, gravada em 1989 pela banda brasileira Legião Urbana, que combina
o poema “Fogo que arde sem ver”, de Luís de Camões, com o “Hino ao amor” composto por Paulo de
Tarso no Capítulo 13 da Primeira Carta aos Coríntios (Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch ?v=NQ-K8QSStOo>. Acesso em: 8 jan.2016). A combinação dos
dois textos é um sinal de como, no modo geral de pensar da nossa cultura, são associadas as
concepções do amor como sentido das ações humanas e como paixão.
Acesse:
Leia o romance O seminarista, de Bernardo Guimarães (publicado em várias edições). Reflita sobre
as seguintes questões: Haveria um sentido romântico na impossibilidade de Eugênio e Margarida
viverem seu amor? Você concorda que há uma semelhança entre a história de Eugênio e Margarida
e a história de Tristão e Isolda? Você concorda que o desfecho do livro O seminarista contém um
potencial de revolta e de crítica do comportamento social? Lembre-se de sempre justificar suas
respostas.
3 Exercício hermenêutico
A ciência do amor
Revista Galileu
Quando você está apaixonado, seu cérebro se comporta como se você estivesse sob o efeito de
drogas. Aliás, de um coquetel: adrenalina, dopamina, serotonina e uma série de outras substâncias
são liberadas na corrente sanguínea e nos impedem de pensar claramente, tomar decisões sensatas
e, inclusive, de sermos nós mesmos. É isso mesmo: se você não se reconhece quando está
apaixonado, a Ciência explica o porquê.
Para começar, a adrenalina é a primeira substância que seu corpo produz quando você avista ou
entra em contato (recebe uma mensagem, digamos) de alguém de quem esteja a fim. É daí que vem
a taquicardia, a tensão e o suor nas mãos: a adrenalina é o hormônio que nos coloca em ponto de
ação, conhecido em inglês como fight or flight, isso é, atacar ou fugir. Além disso, o corpo também
libera dopamina, que é responsável pela sensação de prazer, uma espécie de recompensa a um
estímulo. Este neurotransmissor também ajuda a formar hábitos. É por isso que você sente vontade
de passar tempo com a pessoa de novo e de novo – e por isso alguns relacionamentos chegam a
níveis obsessivos.
Quando você não consegue tirar alguém da cabeça, culpe a queda de serotonina no seu organismo.
Ao se apaixonar, os níveis desse hormônio ficam parecidos com os de quem tem transtornos
obsessivos compulsivos, o que também explica quando algumas pessoas perdem a cabeça pelo
amor.
Por fim, depois que você está junto com a pessoa e aquela paixão inicial esfria, a oxitocina, um
hormônio liberado após o orgasmo e também durante abraços, por exemplo, desencadeia a
sensação de conexão com o outro.
Ufa. Da próxima vez que seus amigos disserem que você mudou muito depois que começou a
namorar, você pode mandar este link para eles. É culpa de como o seu cérebro funciona.
Acesse:
A CIÊNCIA do amor. Revista Galileu, Rio de Janeiro, 16 jan. 2014. Disponível em: <http://revistagalileu.
globo.com/Ciencia/Neurociencia/noticia/2014/01/ ciencia-do-amor.html>. Acesso em: 5 mar. 2015.
Página 202
Observe que a afirmação A é feita de maneira diferente do modo como são feitas as afirmações B e
C. Em A, afirma-se que a adrenalina é produzida quando avistamos alguém de quem se está a fim.
Em outras palavras, primeiro ocorre a percepção da pessoa; depois vem a adrenalina. Já nas
afirmações B e C, esse esquema é invertido. Em B se afirma que não conseguimos tirar alguém da
cabeça por causa da falta de serotonina. Então, se houvesse serotonina suficiente, não nos
apaixonaríamos. Em C, por sua vez, afirma-se claramente que o cérebro é o responsável pelo
comportamento amoroso. Dito de outra maneira, é o cérebro que produz o amor.
Ícone: Dica de filmes Dicas de filmes para você assistir tendo em mente o que trabalhamos
neste capítulo
Filme brasileiro que apresenta um quadro cultural bastante variado e composto por maneiras distintas de
viver o amor no cotidiano. O cenário é a cidade de Recife, onde as histórias pessoais se cruzam das maneiras as
mais imprevisíveis.
História de Laura, que tem 10 anos e é confundida com um menino porque tem cabelos curtos e usa bermuda e
camiseta a maior parte do tempo. Empolgada com a acolhida que seu grupo de amigos lhe dá como “menino”,
Laura explora esse jogo de identidade até ser descoberta. Sua mãe reage com dureza, mas num ato de amor
intenso. Filme de extrema delicadeza e inteligência.
Foi apenas um sonho, (Revolutionary Road) direção Sam Mendes, EUA, 2008.
Nos anos 1950, Frank e April vivem seu casamento segundo certo modelo norte-americano da época. Mudam-
se para uma casa confortável; ele tem um bom emprego e ela cuida do lar. Com o passar do tempo, percebem
que se tornaram aquilo que temiam: um casal sem ideais. Filme inteligente e realista que explora o desafio da
comunicação entre os membros de uma mesma família.
Elsa e Fred, um amor de paixão (Elsa y Fred), direção Marcos Carnevale, Argentina/Espanha, 2005.
Filme bem-humorado que retrata a história de Elsa, senhora argentina repleta de vitalidade, imigrante em
Madri, e que conhece Fred, seu novo vizinho, um viúvo rabugento e hipocondríaco. Elsa faz tudo para se
aproximar de Fred e ambos vivem uma bela e agitada história de amor. No enredo entram temas como o amor
entre pessoas idosas, as relações entre pais e filhos, as diferenças de gerações, a possibilidade da morte
próxima, mas sempre tratados com leveza e otimismo.
As asas do desejo (Der Himmel über Berlin), direção Wim Wenders, Alemanha, 1987.
Clássico filme do diretor alemão Wim Wenders (1945-), que explora uma metáfora instigante: Damiel e Cassiel
são dois anjos que perambulam pela cidade de Berlim logo depois da Segunda Guerra Mundial e são invisíveis
aos mortais. Mesmo sem ser vistos, eles procuram consolar as pessoas em suas dificuldades. Tudo muda
quando um deles se apaixona por uma trapezista e deseja tornar-se humano para experimentar as dores e a
alegria do amor vivido no dia a dia.
Em nome de Deus (Stealing Heaven), direção Clive Donner, Inglaterra e Iugoslávia, 1988.
Filme baseado na história de Abelardo e Heloísa. Ele foi o mais destacado filósofo de sua época (séc. XII) e ela
era uma jovem de extrema inteligência, sobrinha de um importante religioso da Catedral de Notre-Dame de
Paris, gozando da possibilidade de estudar com Abelardo. Ambos se apaixonam e se casam. Mas os filósofos,
naquele período, não podiam casar-se. Além disso, o tio de Heloísa tinha projetos mais ambiciosos do que o
casamento de sua sobrinha com um filósofo. O filme concentra-se nas dificuldades e perseguições a Abelardo e
na importância de Heloísa em sua vida.
Transamerica, direção Duncan Tucker, EUA, 2004.
História de uma transexual que trabalha e economiza para realizar a cirurgia de mudança de sexo biológico.
Sua vida sofre uma reviravolta quando descobre que sua antiga namorada (dos tempos anteriores à sua vida
como mulher) teve um filho seu.
Página 203
O romance de Tristão e Isolda, de Joseph Bédier, tradução Luís C. e Costa, WMF Martins Fontes, 2012.
O romance da rosa, de Guillaume de Lorris e Jean de Meun, tradução Lucília Maria D. M. Rodrigues, Europa-
América, 2001.
Os quatro primeiros livros indicados aqui são traduções brasileiras de fontes que registram as histórias
mencionadas neste capítulo para tratar do amor cortês e dos romances de cavalaria.
Romeu e Julieta, de William Shakespeare, tradução Beatriz Viegas Faria, L&PM, 1998.
História de dois jovens que se amam, porém pertencem a famílias inimigas da Inglaterra do século XVI: Julieta,
da família Capuleto, e Romeu, da família Montecchio. O destino trágico dos jovens acabará por aproximar as
famílias.
Do desejo, de Hilda Hilst, Globo, 2004.
Conjunto de sete textos de Hilda Hilst (1930-2004), centrados no tema do amor e da paixão. Nos textos “Do
desejo” e “Da Noite”, Hilda aborda o tema em seu aspecto mais cru e carnal. Nos outros, ela o relaciona com o
desejo de eternidade.
Correspondência de Abelardo e Heloísa, organizado por Paul Zumthor, tradução Lucia Santana Martins,
Martins Fontes, 2002.
Correspondência entre o filósofo Pedro Abelardo e sua discípula e futura amante-esposa, Heloísa.
C. S. Lewis (autor das Crônicas de Nárnia) estuda o amor cortês na obra Alegoria do amor e mostra que, longe
de ter desaparecido do horizonte moderno e contemporâneo, ele continua vivo nos subterrâneos culturais das
concepções de amor.
Amor, de Maria de Lurdes Alves Borges, Zahar, 2004 (Coleção Passo a passo).
Apresentação introdutória a elementos da filosofia do amor. Aborda temas como os mitos platônicos, os
exercícios estoicos, as paixões segundo Descartes e as advertências de Kant.
Coletânea de artigos em que especialistas de Literatura, Filosofia, História, Poesia, Teatro, Prosa, Ficção,
Linguística e Arte analisam manifestações do Romantismo em cada uma dessas áreas. Entre os autores estão
Benedito Nunes e Gerd Bornheim, dois destacados filósofos brasileiros.
Amor líquido, de Zygmunt Bauman, tradução Carlos Alberto Medeiros, Zahar, 2004.
Estudo de diferentes maneiras de viver o amor no mundo atual, marcado por tecnologias que tornam as
relações humanas cada vez mais flexíveis ou “líquidas”, com níveis de ansiedade sempre mais elevados e
diminuição da capacidade de tratar com humanidade as pessoas desconhecidas.
Acesse:
Psicanálise, paixão e amor, disponível em: <http://www.mariarita kehl.psc.br>. Acesso em: 8 jan. 2016.
Site gratuito da psicanalista Maria Rita Kehl, com artigos e textos sobre temas como o amor, a paixão, a família,
entre outros.
Acesse:
O site gratuito Crítica na rede é uma fonte de rico material de estudo filosófico. Nele há textos de Michael
Tooley (Universidade do Colorado), interessantes para refletir sobre os valores morais implicados na prática
sexual.
p. 470
RAWPIXEL.COM/SHUTTERSTOCK.COM
Na quase infinita variedade dos membros da espécie humana, é inevitável perguntar pelo sentido da vida em
grupo e do ser individual.
E m nosso modo cotidiano de pensar, referimo-nos muitas vezes à Sociedade como um conjunto
de indivíduos organizados para permitir que a vida humana continue e seja melhor.
Diz-se, por exemplo, que a Sociedade permite a troca entre os indivíduos: uma pessoa oferece o que
tem para dar (seu trabalho, sua arte, seu pensamento etc.) e recebe em troca aquilo de que
necessita (o trabalho dos outros, a arte deles, seu pensamento e assim por diante). Desse ponto de
vista, mesmo a vida dos animais é entendida como uma “vida social”: falamos de “sociedades
animais”, “sociedade das abelhas”, das formigas, dos elefantes...
Os seres humanos seriam, então, levados pela Natureza a viver em Sociedade? Eles são levados por
um impulso natural a se associar assim como fazem outros animais?
Ao refletir sobre perguntas desse tipo, poderíamos ter a tendência a querer comparar as sociedades
humanas com as sociedades animais, a fim de verificar semelhanças e diferenças entre elas. No
entanto, esse procedimento é problemático, pois, como alertava a filósofa Hannah Arendt ( Ícone:
Conteúdo tratado em outra página p. 117), é praticamente impossível justificar a projeção pura e
simples de comportamentos animais para entender os seres humanos, uma vez que a espécie
humana tem características próprias e diferentes das características das outras espécies (Ícone:
Conteúdo tratado em outra página p. 123). Aliás, quem tem bom conhecimento de mais de uma
espécie animal sabe que nem sempre é adequado explicar o que se observa em uma delas tomando
por base o que se observa em outra. Por que, então, haveríamos de falar dos animais “em geral” e
depois tomar características deles para compreender os seres humanos?
Página 205
No máximo, talvez seja justificável projetar características humanas sobre os animais, pois
conhecemos os comportamentos humanos e podemos interpretar os animais identificando neles
características semelhantes às nossas. Todavia, mesmo esse procedimento não é inteiramente
seguro. Embora pareça adequado afirmar que meu gato tem fome como eu também tenho fome,
não posso dizer que ele quer se vingar de mim quando faz xixi no meu sofá. Seria um exagero
acreditar que ele refletiu na melhor forma de me agredir e calculou onde seria o lugar mais
apropriado para isso. Ou ainda, embora eu veja meu cachorro babar diante de uma comida de pet
shop em formato de hambúrguer, me iludo se penso que é o “hambúrguer” que o atrai. O formato de
hambúrguer não aumenta o seu desejo, pois ele percebe a comida pelo faro, não pela visão. Sou eu
que presto atenção no “hambúrguer” e projeto minha percepção sobre aquilo que vive meu
cachorro. Assim, mesmo que todas as nossas formas de conhecimento sejam, no fundo,
antropomorfizações (projetamos a experiência humana sobre tudo), há também limites que
impedem de identificar características humanas nos outros seres, coisas, ações etc.
Em meio ao gênero animal, a diferença específica dos seres humanos está em sua possibilidade de
refletir sobre suas próprias experiências e participar da construção do sentido dado a elas. Alguns
animais talvez também tenham essa possibilidade, mas nada permite afirmar que ela atinge os
mesmos graus a que chegam os humanos.
Por isso, talvez a Sociedade tenha raízes determinadas pela Natureza, mas os humanos a constroem
de maneira especificamente humana. Costuma-se dizer em Filosofia que os seres humanos podem
comportar-se como causas (refletidas) de suas ações e estabelecer objetivos (também refletidos)
para elas. Em outras palavras, os seres humanos são dotados de liberdade. A Sociedade, dessa
perspectiva, aparece como uma livre associação entre indivíduos, com o objetivo de realizar trocas
que permitam organizar a vida humana e continuá-la.
No entanto, não é uma tarefa simples entender o que seja uma “livre associação entre indivíduos”.
Se a Natureza os leva a reunir-se em Sociedade, então não são eles que estão na causa dessa
associação nem são eles que a escolhem como objetivo. Além disso, a própria Sociedade antecede 1
os seus membros e influencia seu modo de viver, fazendo-os repetir padrões de comportamentos já
existentes: nenhum bebê decide, por exemplo, sobre a língua que quer falar, os alimentos a ingerir,
nem as atitudes éticas que gostaria de adotar. Os indivíduos recebem tudo isso dos grupos
familiares, os quais, por sua vez, reproduzem comportamentos sociais. A Sociedade aparece, então,
como algo maior do que a simples soma de indivíduos. Mas, se a liberdade dos indivíduos consiste em
ser causa e objetivo de suas ações, então a Sociedade anula a liberdade?
Levantar perguntas desse tipo é uma forma de iniciar a desconstrução das imagens da Sociedade e
dos indivíduos aceitas e transmitidas muitas vezes sem reflexão crítica. Convém analisar, portanto,
o que é a vida social e o que se entende por liberdade.
MICHAEL D BROWN/SHUTTERSTOCK.COM
Duas respostas costumam ser dadas: (a) os seres humanos possuem uma tendência natural a se
reunir; (b) os seres humanos se reúnem por motivos históricos, ou seja, motivados por diferentes
circunstâncias, surgidas em momentos específicos de sua existência.
Percebeu-se que entender a Sociedade como uma construção histórica não era contraditório com a
opinião segundo a qual a Sociedade resulta de uma tendência natural. Mesmo havendo tendência
natural, essa tendência não é vivida como algo que submete completamente os seres humanos, mas
como algo que pode ser modelado por eles, assim como um escultor modela a argila de suas obras.
Os filósofos Aristóteles (p. 103) e Immanuel Kant (p. 207) podem ser tomados como representantes
dessas duas linhas interpretativas. É possível analisar suas posições separadamente e em conjunto,
a fim de observar que elas são conciliáveis . 2
Ícone: Glossário 2 Conciliável: que pode ser combinado com algo aparentemente oposto.
Aristóteles
A família é a sociedade cotidiana formada pela Natureza e composta de pessoas que comem do
mesmo pão e se esquentam com o mesmo fogo.
A Sociedade que se formou da reunião de várias aldeias constitui a cidade, que tem capacidade de
se bastar a si mesma, sendo organizada não apenas para conservar a existência, mas também para
buscar o bem-estar. Essa Sociedade [a cidade], portanto, também está nos desígnios da Natureza, 3
como todas as outras que são seus elementos. Ora, a essência de cada coisa é também a sua
finalidade. Assim, quando um ser é perfeito , de qualquer espécie que ele seja – homem, cavalo,
4
família –, dizemos que ele está na Natureza. Além disso, a coisa que, pela mesma razão, ultrapassa
as outras e se aproxima mais do objetivo proposto deve ser considerada a melhor. Bastar-se a si
mesma é uma meta a que tende toda a produção da Natureza e é também o mais perfeito estado. É,
portanto, evidente que toda cidade está na Natureza e que o ser humano é naturalmente feito para
a Sociedade.
ARISTÓTELES. A Política. Tradução Roberto L. Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 3-4.
(a) Algo perfeito é algo que está na Natureza. Tudo o que está na Natureza obedece aos seus
desígnios. Nesses desígnios está incluída a concorrência, pois ultrapassar as outras coisas significa
ser o melhor. Como a cidade é o lugar do melhor, pois nela vence o mais forte, então o ser humano
vive naturalmente na Sociedade chamada cidade.
(b) Algo perfeito é algo que está na Natureza. Tudo o que está na Natureza também busca o melhor.
Buscar o melhor significa tentar bastar-se
Página 207
a si mesmo. Como a cidade é a Sociedade que se basta a si mesma, e como tudo na Natureza busca o
melhor, então os seres humanos vivem naturalmente na cidade, pois essa é a melhor Sociedade.
Como ocorre com os animais gregários, o ser humano, segundo Aristóteles, tem uma tendência natural a viver
em sociedade.
(c) Algo perfeito é algo que está na Natureza. Como o ser humano é perfeito, uma vez que ele vive
em família, então ele também está na Natureza. Se ele está na Natureza, é evidente que ele vive
naturalmente na Sociedade chamada cidade.
Foi um filósofo alemão, geralmente considerado o último grande filósofo da Idade Moderna. É
conhecido pela “virada epistemológica” que procura superar a crise e a dualidade do debate entre o
empirismo e o racionalismo da filosofia moderna. Antes de conhecer o que quer que seja, Kant
defendia que a razão deve analisar suas próprias condições para conhecer (condições de
possibilidade). Por esse motivo, fala-se de criticismo kantiano. Suas obras mais conhecidas
recobrem três frentes de análise: o conhecimento, a prática ética e a experiência estética. São elas,
respectivamente: Crítica da razão pura (1781), Crítica da razão prática (1788) e Crítica da
faculdade do juízo (1790).
Para identificar a alternativa que exprime corretamente o texto de Aristóteles, você deve analisar
cada uma das opções, comparando-a sempre com o que o filósofo de fato escreveu. Preste bastante
atenção aos detalhes das alternativas, pois eles podem fazer errar.
A alternativa (a) interpreta como concorrência e como lei do mais forte aquilo que Aristóteles
chama de melhor, ou seja, aquilo que, na sua espécie, ultrapassa os outros. Mas Aristóteles não dá
base para associar “melhor” com “concorrência” ou “lei do mais forte”. Ultrapassar as outras coisas
significa, no texto, aproximar-se mais do objetivo proposto dentro da espécie (aproximar-se do que
é o melhor). Assim, de acordo com Aristóteles, o ser humano, sem a cidade, não atinge o seu melhor.
Dizer isso, porém, não tem qualquer sentido de concorrência. Então, a alternativa (a) não é correta.
A alternativa (b) afirma que Aristóteles observa na Natureza uma tendência a buscar sempre o
melhor. Isso vale para tudo o que existe, quer dizer, está na Natureza. Ora, aquilo que basta a si
mesmo é melhor do que aquilo que não basta a si mesmo (pois não bastar a si mesmo significa
depender de outros). A cidade (cidade-Estado) oferece condições para uma vida que basta a si
mesma (não depende de outras cidades). Se é assim, a cidade é o lugar natural para o ser humano
viver, pois, bastando a si mesma, ela é melhor do que qualquer outra forma de organização.
Portanto, a alternativa (b) parece exprimir corretamente o texto de Aristóteles. Se a alternativa (c)
for incorreta, não restará dúvida de que (b) é a resposta deste exercício. A alternativa (c) contém
ideias que aparecem no texto de Aristóteles. No entanto, ela não articula essas frases do mesmo
modo como faz o filósofo. Note como conjunções e expressões conjuntivas (como..., então, se,
também, é evidente que...) foram introduzidas entre frases de Aristóteles, conduzindo a conclusões
que seu texto não autoriza. Ele não diz, por exemplo, que ser perfeito é viver em família; nem passa
da Natureza à cidade, pois nem tudo o que está na Natureza está também na cidade. Portanto, (c)
não é uma resposta correta.
Excluída a possibilidade de (c) ser uma resposta, não resta dúvida de que a alternativa que exprime
o pensamento de Aristóteles é a (b).
Página 208
Dois esclarecimentos são convenientes, aqui, a respeito do vocabulário de Kant. Em primeiro lugar,
note que, no início do texto, o termo natureza está escrito com inicial minúscula, pois se refere à
natureza humana, não à Natureza como conjunto de todos os seres. A natureza humana, segundo
Kant, é o conjunto de leis naturais (dadas, portanto, pela Natureza) que orientam a ação dos
indivíduos e dos grupos de acordo com finalidades. A natureza humana, então, obedece, segundo
Kant, às leis comuns aos outros seres e às leis que lhe são específicas. Além disso, princípios práticos
determinados (linha 25) são motivações que levam o ser humano a agir bem mesmo quando não
recebe em troca nenhum benefício; são motivações morais desinteressadas.
(1) Se, por hipótese, um indivíduo pudesse permanecer sozinho, então assim permaneceria, pois
nele não há impulso natural a viver em Sociedade. O antagonismo o leva não apenas a se isolar, mas
também a tentar dominar os outros. Como todos os indivíduos tentam dominar, não há acordo
possível. Portanto, a natureza humana introduz antagonismos nos indivíduos para que eles se
desentendam e tenham de ser controlados pela Sociedade.
Immanuel Kant
O meio de que a natureza se serve para realizar o desenvolvimento de todas as suas disposições é o 5
fim, a causa de uma ordem regulada por leis dessa Sociedade. Eu entendo aqui por antagonismo a
insociável sociabilidade dos seres humanos, ou seja, sua tendência a entrar em sociedade que está
ligada a uma oposição geral que ameaça constantemente dissolver essa Sociedade. Essa disposição
é evidente na natureza humana. O humano tem uma inclinação para associar-se porque se sente
mais como humano num tal estado, pelo desenvolvimento de suas disposições naturais. Mas ele
também tem uma forte tendência a separar-se (isolar-se), porque encontra em si, ao mesmo tempo,
uma qualidade insociável que o leva a querer conduzir tudo simplesmente em seu proveito,
esperando oposição de todos os lados, do mesmo modo que sabe que está inclinado a, de sua parte,
fazer oposição aos outros. Essa oposição é a que, despertando todas as forças do ser humano, o leva
a superar sua tendência à preguiça e, movido pela busca de projeção, pela ânsia de dominação ou
pela cobiça, a proporcionar-se uma posição entre companheiros que ele não atura , mas dos quais 7
não pode prescindir . Dão-se, então, os primeiros verdadeiros passos que levarão da rudeza à
8 9
Cultura, que consiste propriamente no valor social do ser humano; aí se desenvolvem aos poucos
todos os talentos, forma-se o gosto e tem início, por meio de um progressivo iluminar-se , a 10
fundação de um modo de pensar que pode transformar, com o tempo, as toscas disposições 11
KANT, I. Ideia de uma História universal de um ponto de vista cosmopolita. Tradução Rodrigo Naves e Ricardo R. Terra. São Paulo:
Martins Fontes, 2003. p. 8-9.
7 Aturar: suportar.
12Discernimento moral: capacidade de identificar e distinguir o que é bom e o que é mau do ponto de vista dos
costumes.
(2) Se, por hipótese, um indivíduo pudesse permanecer sozinho, então assim permaneceria, porque,
embora tenha uma tendência a viver em Sociedade, ele também é marcado de insociabilidade, quer
dizer, sente uma oposição à socialização. No entanto, ele percebe que, mesmo não suportando os
outros, precisa deles. Estabelece com eles, então, uma relação de oposição, tentando dominá-los e
entendendo que é capaz de fazê-lo se conseguir reunir os indivíduos em Sociedade. Assim, para se
manter no domínio das pessoas, esse indivíduo procura sair da bruteza e elaborar princípios
práticos determinados.
(3) Se, por hipótese, um indivíduo pudesse permanecer sozinho, então assim permaneceria, porque,
embora tenha uma tendência a viver em Sociedade, ele também é marcado de insociabilidade, quer
dizer, sente uma oposição à socialização. No entanto, ele percebe que, mesmo não suportando os
outros, precisa deles. Estabelece com eles, então, uma relação de oposição, tentando dominá-los e
entendendo que os outros também tentam dominar, o que os obriga a fazer um acordo que
inicialmente é doentio. Esse é o mesmo acordo que permite deixar a rudeza para formar um
pensamento racional capaz de mudar as inclinações grosseiras e levar à elaboração de princípios
práticos determinados.
Analisando as três alternativas, tem-se que a alternativa (1) interpreta a ideia de antagonismo e
oposição de modo contrário ao de Kant, pois ignora que o filósofo observa ao mesmo tempo uma
tendência à socialização e uma oposição a ela. Além disso, enquanto o filósofo discute um primeiro
acordo patológico e um segundo acordo racional, a alternativa (1) entende que não há acordo
possível. É, portanto, uma alternativa falsa.
A alternativa (2) inicia com afirmações que correspondem ao texto de Kant, mas, ao dizer que um
indivíduo entende ser capaz de dominar os outros em Sociedade, afirma algo que extrapola o texto
e não combina com ele. Também é uma alternativa falsa.
A alternativa (3) contém afirmações que reproduzem fielmente o texto de Kant e seguem as
articulações feitas por ele: da insociável sociabilidade passa à percepção da necessidade dos outros,
à relação de oposição e ao acordo forçado, chegando, enfim, ao acordo racional e à elaboração de
princípios práticos determinados. É, portanto, a alternativa correta.
Movimento Diretas Já, 1984. O movimento pelas eleições diretas no Brasil foi um exemplo de como a
Sociedade, para além de tendências naturais, contém aspectos determinados historicamente.
Com base nesses dois exercícios, é possível fazer um terceiro, correlacionando as ideias de
Aristóteles e Kant. Indique agora a alternativa falsa, lembrando que (b) se refere à resposta do
exercício sobre Aristóteles e (3) sobre Kant:
(I) O conteúdo de (b) e o conteúdo de (3) podem ser considerados ambos verdadeiros ao mesmo
tempo, pois não se excluem.
(II) O conteúdo de (b) e o conteúdo de (3) não podem ser considerados ambos verdadeiros ao
mesmo tempo, pois se excluem.
(III) O conteúdo de (b) e o conteúdo de (3) podem ser considerados ambos verdadeiros ao mesmo
tempo, pois se complementam.
(IV) O conteúdo de (b) e o conteúdo de (3) não podem ser considerados ambos verdadeiros ao
mesmo tempo a não ser que se observe que eles são distintos e podem até complementar-se.
Analisando as alternativas (b) e (3), nota-se que elas contêm algo parecido e ao mesmo tempo
distinto: ambas afirmam uma tendência natural a viver em Sociedade, mas cada uma declara isso de
modo diferente. A diferença entre elas está no fato de a alternativa (3) afirmar, além da tendência
natural, também a existência de outra tendência, a da insociabilidade. As afirmações são
formuladas, então, de modo que seria possível aceitá-las como verdadeiras ao mesmo tempo, pois
elas não se excluem. Em vez disso, podem até mesmo ser complementares.
Página 210
Dessa perspectiva, a alternativa (I) é claramente verdadeira. A alternativa (II), que considera (b) e
(3) como não verdadeiras ao mesmo tempo porque se excluem, é uma alternativa falsa. Por sua vez,
a alternativa (III) também é claramente verdadeira. A alternativa (IV), por fim, contém certa
dificuldade, pois está redigida na forma de uma dupla negação (não podem... e a não ser que),
resultando em uma afirmação (o conteúdo de (b) e o conteúdo de (3) podem ser considerados como
ambos verdadeiros ao mesmo tempo desde que se observe que eles são distintos e podem até
complementar-se). Por isso, a alternativa (IV) é verdadeira.
Como (I), (III) e (IV) são alternativas verdadeiras, elas não são respostas adequadas ao exercício,
que solicita a indicação da alternativa falsa. A resposta adequada, então, é a alternativa (II).
A correlação entre as ideias de Aristóteles e de Kant permite concluir que, de uma perspectiva
filosófica, nada leva necessariamente a opor a origem natural e a origem histórica ou cultural da
Sociedade; é possível mesmo combiná-las. Aristóteles, aliás, ao defender a origem natural da
Sociedade, não pensava que ela fosse totalmente independente da construção histórica. Por essa
razão, ele escreveu A Política e Ética nicomaqueia, algumas das obras mais conhecidas a respeito da
formação dos cidadãos na pólis.
Q uando pensamos algo diferente do que pensa outra pessoa, costumamos dizer que nossos
pensamentos são contrários ou mesmo contraditórios.
No entanto, é possível melhorar esse modo de nos expressar, pois nem sempre pensamentos
diferentes mantêm relações de contrariedade e de contradição.
Tais relações costumam acontecer entre frases e entre termos. Concentrando-se nas primeiras, diz-
se que duas frases são contrárias quando ambas não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo, mas
podem ser ao mesmo tempo falsas. Em outras palavras, são contrárias quando o fato de considerar
uma delas verdadeira leva a considerar a outra falsa, sem ser possível que o fato de considerar uma
falsa leve a considerar a outra verdadeira (ambas podem ser falsas).
Por sua vez, diz-se que duas frases são contraditórias quando não podem ser verdadeiras ao mesmo
tempo nem ambas falsas ao mesmo tempo. Dito de outra maneira, são contraditórias quando o fato
de tomar uma como verdadeira leva necessariamente a considerar a outra como falsa e vice-versa.
Lembrando que as frases podem ser classificadas por quantidade e por qualidade ( Ícone: Conteúdo
tratado em outra página p. 51), observem-se os seguintes exemplos:
A – Universal Afirmativa
Todo ser humano é racional – VERDADEIRA
Todo ser humano é egoísta – FALSA
E – Universal Negativa
Nenhum ser humano é quadrúpede – VERDADEIRA
Nenhum ser humano é egoísta – FALSA
I – Particular Afirmativa
Algum ser humano é egoísta – VERDADEIRA
Algum ser humano é quadrúpede – FALSA
O – Particular Negativa
Algum ser humano não é egoísta – VERDADEIRA
Algum ser humano não é racional – FALSA
Página 211
As letras A, E, I e O foram usadas na Idade Média para nomear os tipos básicos de frases. Era uma
astúcia para memorizar: A e I vêm da palavra AFIRMO (aplicam-se às frases afirmativas); E e O vêm
da palavra NEGO (aplicam-se às frases negativas).
Assim, se uma frase afirmativa de tipo A for verdadeira, as frases negativas correspondentes (de
tipo E e O) serão necessariamente falsas. Mas, se A for falsa, E poderá ser verdadeira ou falsa, ao
passo que O será necessariamente verdadeira. Observe:
O último exemplo de frase O, Algum ser humano não é quadrúpede, não permite concluir que Algum
ser humano é quadrúpede. A frase O, no último exemplo, é verdadeira apenas porque declara que
não há uma parte de quadrúpedes no conjunto dos humanos. Isso significa que formular uma frase
particular não permite afirmar algo automaticamente sobre a sua contrária. Já as frases de tipo E,
nos dois últimos exemplos, mostram a possibilidade de serem verdadeiras e falsas quando a frase
de tipo A é falsa.
Essa correlação de frases permite aprender que a melhor maneira de refutar uma frase universal
15
não é encontrar uma frase contrária de tipo universal (porque ambas podem ser falsas!). Para
refutar uma frase de tipo A, a maneira mais segura é encontrar uma frase de tipo O, não de tipo E; e
para refutar uma frase de tipo E, convém encontrar uma frase de tipo I, não de tipo A. Por fim, todas
essas relações valem no inverso, ou seja, frases de tipo I são refutadas por frases de tipo E; e frases
de tipo O são refutadas por frases de tipo A. Por exemplo:
Ícone: Glossário 15 Refutar: mostrar, sem sombra de dúvida, o erro de algum pensamento; excluir; negar
definitivamente.
Página 212
Com base nessas observações, cujas raízes estão na obra A interpretação, de Aristóteles (Ícone:
Conteúdo tratado em outra página p. 103), o poeta e filósofo latino Apuleio (125-180) desenhou um
quadro didático para representar a relação entre as frases. Por sua vez, o poeta e filósofo latino
Marciano Capella (360-428) registrou e estudou esse quadro, influenciando o também poeta e
filósofo Boécio (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 354), que o transmitiu à posteridade. O
desenho ficou conhecido como o Quadrado das oposições ou Quadrado lógico.
Enfatizar o fato de que a verdade das frases particulares não permite afirmar a verdade das
universais que lhes correspondem é importante, porque o teste da realidade é tomado como algo
tão óbvio que somos tentados a querer decidir rapidamente sobre a verdade ou a falsidade das
frases universais com base nas particulares. Mas a obviedade se desfaz quando nos damos conta de
que nem sempre podemos comparar diretamente as frases com a realidade. Pense, por exemplo, no
caso de um cientista que descobre algo novo, como o comportamento de uma bactéria. Ele não terá
base firme para se pronunciar sobre todas as bactérias desse tipo. Se ele observar que Algumas
bactérias k apreciam o ambiente Z, não poderá afirmar que Toda bactéria k aprecia o ambiente Z; e,
se observar que Algumas bactérias k não apreciam o ambiente Z, não poderá concluir que Nenhuma
bactéria k aprecia o ambiente Z.
Após conhecer o quadrado das oposições, você tem a possibilidade de dar mais atenção ao fato de
que nem sempre pensamentos diversos são contrários ou contraditórios. É preciso perceber
também que os pensamentos não se exprimem necessariamente na forma das frases aqui
apresentadas. Na verdade, poucas vezes os pensamentos são expressos com as palavras
quantificadoras todo(a), nenhum(a), algum(a). Em todo caso, para além das formas de expressão, o
quadrado das oposições permite prestar atenção na maneira como os pensamentos se constroem.
Ele ensina uma análise das atitudes mentais mesmas.
EXERCÍCIO A
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 471
2. Analise as frases abaixo e diga o tipo completo de cada uma delas, indicando a letra que as
representa. Note que, mesmo sem as palavras quantificadoras (todo, toda, algum, alguma,
nenhum, nenhuma), é possível perceber se a frase é universal ou particular.
Considerando que a base da vida social são os indivíduos, como entender que eles são livres (causa
e objetivo de suas ações), se tanto a Natureza como a Sociedade os precedem e determinam sua
maneira de pensar, sentir e agir?
Se por liberdade se entende a possibilidade de “fazer o que bem se entende” (ser causa de todas as
ações e definir por conta própria o objetivo de todas elas), então os indivíduos não são livres. Uma
rápida observação da vida cotidiana basta para fazer ver que ninguém é dotado dessa liberdade
nem no plano histórico ou social nem no plano físico-biológico.
Se, ainda, se entende por liberdade a possibilidade de escolher entre uma coisa e outra (ou entre
várias coisas), então também os indivíduos talvez não sejam livres; afinal, as opções dadas os
tornam limitados (não são eles que criam essas opções) e os obrigam a escolher uma delas. A essa
liberdade de escolha dá-se o nome de livre-arbítrio, concepção extremamente frágil e amplamente
criticada por diferentes filósofos. Uma das críticas mais contundentes vem do filósofo holandês
Baruch de Espinosa. Ícone: Texto filosófico
A ilusão do livre-arbítrio
Baruch de Espinosa
Concebei agora, se quiserdes, que a pedra, enquanto continua a mover-se, saiba e pense que se
esforça tanto quanto pode para continuar a mover-se. Seguramente, essa pedra, visto não ser
consciente senão de seu esforço e não ser indiferente, acreditará ser livre e perseverar no
movimento apenas porque quer. É essa a tal liberdade humana que todos se jactam de possuir e 16
que consiste apenas em que os seres humanos são cônscios de seus apetites , mas ignorantes das
17 18
causas que os determinam. É assim que uma criança crê apetecer livremente o leite; um rapazinho,
se irritado, querer vingar-se, mas fugir quando intimidado. Um ébrio crê dizer por uma livre
19
decisão de sua mente aquilo que, sóbrio, preferiria ter calado. Assim também, um delirante, um
tagarela e tantos outros da mesma farinha acreditam agir por um livre decreto da mente e não por
impulso. Como esse preconceito é inato em todos os humanos, dele não se livram facilmente.
ESPINOSA, Baruch. Carta 58. Tradução Marilena Chaui apud CHAUI, Marilena. Sobre a correspondência de Espinosa com
Tschirnhaus. Discurso, Revista do Departamento de Filosofia da USP, São Paulo, n. 31, p. 67-68, 2000.
17 Cônscio: consciente.
18 Apetite: desejo.
Foi um filósofo holandês nascido de uma família judia portuguesa. Herdeiro do pensamento
racionalista de René Descartes, Espinosa desenvolveu uma filosofia própria, sobretudo por sua
compreensão da Natureza como ser divino. Deus não seria um ser a quem humanos devem prestar
adoração, mas a substância única que se manifesta por diferentes modos (as coisas da Natureza). O
ser humano torna-se livre quando conhece racionalmente Deus ou a Natureza, pois se liberta da
superstição e do medo explorados pelas religiões institucionalizadas. Principais obras: Tratado da
emenda do intelecto, Tratado teológico-político e Ética.
A imagem da pedra, empregada por Espinosa, é bastante clara: assim como uma pedra, se tiver
consciência de seu esforço, acreditará que está em movimento “porque quer”, e não por outras
causas, assim também os seres humanos se vangloriam de sua liberdade; acreditam que são a
origem ou o princípio de suas ações, quando, na verdade, só conhecem seus desejos, e não as causas
deles. Conhecer seus desejos não significa ser livre nem ser a causa da ação que
Página 214
leva à satisfação dos desejos. Essa causa continua, no limite, a ser os próprios desejos.
A leitura desse texto de Espinosa não permite concluir que o filósofo holandês negava a existência
da liberdade. Muito pelo contrário, sua filosofia é um grande elogio da capacidade humana de tomar
consciência de seus impulsos, bem como de tudo que condiciona os indivíduos, a fim de poder
operar racionalmente com tais impulsos e condicionamentos, lidando com eles e determinando
também racionalmente os rumos da existência. Espinosa chama a atenção para o fato de que os
indivíduos e os grupos são “pontos” em que se manifestam paixões (Ícone: Conteúdo tratado em
outra página p. 264), influências externas aos próprios indivíduos e grupos. Delas não se pode
escapar, mas se pode, pelo pensamento, dar-lhes um rumo de maneira ativa, sem apenas sofrê-las
passivamente. O livre-arbítrio, portanto, como resultado de uma capacidade de escolher aquilo que
se quer viver, parecia uma grande ilusão ao filósofo holandês. Em vez disso, ele concebe um novo
significado para a ideia de liberdade, mais amplo e mais real, o da possibilidade de operar
racionalmente com as paixões. A esse sentido da liberdade, outros pensadores chamarão de
liberdade de autodeterminação: sobre a base do que é determinado pela Natureza e pela Sociedade,
o ser humano revela-se como um ser que também pode se determinar, sendo coautor da corrente
de sentido na qual ele se insere.
Essa maneira de conceber a liberdade não deixa de ter semelhanças com o que fizeram alguns
filósofos antigos, como Platão (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 82). Mesmo na Idade
Média, quando se valorizou o livre-arbítrio, os autores costumavam distinguir entre ele (também
chamado de liberdade de escolha) e a liberdade propriamente dita. O primeiro seria apenas um
aspecto da liberdade; aliás, o mais frágil e elementar, pois mantém os indivíduos “reféns” das
opções determinadas de fora (pela vida natural e social). O sentido propriamente dito da liberdade
seria aquele em que o indivíduo toma consciência de seus limites (sobretudo o das escolhas) e
mostra-se capaz de se orientar por convicção no caminho do bem.
Mais próximo a nós no tempo, o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (Ícone: Conteúdo tratado
em outra página p. 130) encontrou uma expressão bastante lúcida para retratar a liberdade de
autodeterminação. Ele se refere à capacidade humana de assumir situações de fato (inescapáveis,
portanto) e dar a elas um sentido novo, figurado, ou seja, trabalhado, transformado, como numa
obra de arte que vai além do sentido factual ou do aspecto bruto do acontecimento em si mesmo.
Segundo Merleau-Ponty, o melhor modelo dessa operação humana é dado pela ação dos artistas e
dos filósofos. Ícone: Texto filosófico
Maurice Merleau-Ponty
O ato do artista ou do filósofo é livre, mas não sem motivo. Sua liberdade reside no poder de
equívoco [...] ou ainda no processo de regulagem [...]; ela consiste em assumir uma situação de fato,
atribuindo-lhe um sentido figurado para além de seu sentido próprio. Assim Marx, não contente em
ser filho de advogado e estudante de filosofia, pensa sua própria situação como a de um “intelectual
pequeno-burguês” e na perspectiva nova da luta de classes. Assim também Valéry transforma em
poesia pura um mal-estar e uma solidão com os quais outros nada teriam feito. O pensamento é a
vida inter-humana tal como ela se compreende e se interpreta a si mesma. Nessa retomada
voluntária, nessa passagem do objetivo ao subjetivo, é impossível dizer onde terminam as forças da
História e onde começam as nossas; e a questão não significa rigorosamente nada, já que só existe
História para um sujeito que a vive e só existe sujeito situado historicamente.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Tradução Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes,
1999. p. 635.
O texto de Merleau-Ponty serve-se de dois conceitos específicos: poder de equívoco e processo de
regulagem. Apesar de eles poderem ser entendidos pelos exemplos dados pelo pensador, vale a
pena esclarecer tais conceitos, a fim de obter uma visão mais adequada do trecho lido.
Para esclarecer esses conceitos, o caminho mais adequado é buscar seu significado na obra do
próprio
Página 215
Sobre o poder de equívoco, esclarece Merleau-Ponty no livro Fenomenologia da percepção (do qual
o texto lido foi retirado):
potência de expressão.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Tradução Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes,
1999. p. 255.
Observe que Merleau-Ponty não usa diretamente a expressão poder de equívoco. Ela aparece uma
única vez no seu livro. Mas o modo como o filósofo trata os equívocos no trecho referente à
linguagem permite entender o seu significado. Em outras palavras, entendendo o significado de
equívoco, entende-se o poder de equívoco ou o poder de produzir equívoco.
Note que, no trecho acima, Merleau-Ponty trata como sinônimos os equívocos e os deslizamentos de
sentido. O filósofo mostra aos leitores que, na sua compreensão, equívocos são os deslizamentos de
sentido dos quais é feita uma tradição linguística e que permitem medir exatamente a potência de
expressão dessa tradição.
As tradições linguísticas ou as línguas faladas pelos povos operam, assim, com sentidos que são
deslizados, não permanecem fixos e imóveis, mas se alteram, associam-se, aumentam, diminuem,
enfim, são dinâmicos. É essa mobilidade que constitui a equivocidade, quer dizer, a característica
que torna algo equívoco.
Equívoco não significa necessariamente, portanto, um erro, um dos significados da palavra. Aliás, a
própria palavra equívoco é equívoca, quer dizer, contém a possibilidade de fazer sair do significado
de “erro” e passar ao significado de “deslizamento de sentido”. É o mesmo que ocorre, por exemplo,
quando a palavra manga é usada no sentido de parte da camisa, e não de fruta. É também isso que
ocorre quando me levanto de repente da mesa de uma reunião, pois o meu gesto pode significar
tanto que me levanto para ir embora porque estou descontente, como que me levanto para ir ao
banheiro com urgência ou porque fui picado por uma abelha.
Por fim, se os deslizamentos de sentido revelam o dinamismo de uma língua, então alguém só pode
falar essa língua e pensar se assumir tal dinamismo, inclusive os equívocos. Isso permite entender o
início do trecho lido: ainda que se afirme a existência de um pensamento universal, quer dizer, de
uma atividade de pensar que tenha características comuns para todos os seres humanos, é preciso
ver que cada indivíduo só pode realizar essa atividade seguindo uma língua já formada, um esforço
de expressão e comunicação já desenvolvido por uma sociedade.
Retomando o poder de equívoco como característica da liberdade, entende-se que ser livre é
produzir novos sentidos para sentidos já existentes. Em outros momentos do mesmo livro,
Merleau-Ponty afirma que o equívoco é essencial na vida humana, é a marca da capacidade de
perceber e produzir sentidos.
Quanto à expressão processo de regulagem, diz Merleau-Ponty no mesmo livro:
Tudo aquilo que somos, nós o somos sobre a base de uma situação de fato que fazemos nossa e que
transformamos sem cessar por uma espécie de regulagem que nunca é uma liberdade
incondicionada . 21
Como esse trecho é bastante denso, convém distinguir os diferentes elementos que o compõem, a
fim de obter clareza:
(1) situação de fato – o trecho não define diretamente essa expressão, mas permite compreendê-la
pela contraposição com o que não é “nosso” e pela afirmação de que “transformamos” essa situação.
Entende-se, então, que uma situação de fato é tudo aquilo que existe e que não é produzido pelos
seres humanos, embora possa ser transformado por eles. Pode-se pensar, por exemplo, na base
natural que forma os indivíduos, suas capacidades e seus limites, os dados históricos e culturais
(sociais) que os precedem etc.
(2) regulagem – esse termo vem do vocabulário cotidiano e tem um sentido de ajuste, assim como
se regula um relógio, um aparelho doméstico ou qualquer outra coisa dotada de funcionamento
mecânico, a fim de chegar ao melhor desempenho possível. Por comparação, a regulagem, no
tocante a tudo o que é relativo aos seres humanos (seres não mecânicos), seria a atividade de
chegar ao melhor funcionamento da base ou situação de fato;
(3) liberdade incondicionada – por contraposição com a regulagem, uma liberdade incondicionada
seria uma liberdade sem regulagem, sem um ajuste que adapte seu processo a limites dados pela
situação de fato e que permitem chegar a um bom funcionamento.
Uma vez esclarecidas essas unidades conceituais, entende-se que, segundo Merleau-Ponty, existir
como ser humano significa transformar situações de fato. O indivíduo é um ser situado e dotado da
capacidade de ressignificar sua situação por uma regulagem que opera com tudo o que restringe
sua liberdade e produz seu melhor “funcionamento”.
Por conseguinte, tendo esclarecido o que Merleau-Ponty entende por poder de equívoco e por
processo de regulagem, é possível retomar o texto sobre a liberdade e entender por que o filósofo
toma o ato do artista e do filósofo como exemplos da liberdade humana, afirmando que ela reside
no poder do equívoco e no processo de regulagem. De fato, a liberdade residirá, segundo Merleau-
Ponty, em dar novos sentidos às limitações (poder do equívoco), em uma busca constante de um
melhor funcionamento em meio a elas (processo de regulagem). Ela não será uma pretensão a
existir sem limitações, o que explica a primeira frase do texto, quando Merleau-Ponty afirma: “o ato
do artista ou do filósofo é livre, mas não sem motivo”. Não é uma liberdade sem algo que a
condicione; ela é sempre motivada, seja na origem (como causa), seja no fim (como objetivo).
O exercício da liberdade estará, assim, no jogo com as limitações, a fim de construir um sentido
novo para exprimir o modo de o indivíduo ser quem é. Os exemplos de Merleau-Ponty são bastante
significativos: o filósofo Karl Marx (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 221), em vez de
viver limitado pelo fato de ser filho de advogado e estudante de Filosofia, deu novo significado à sua
existência, vendo-se como intelectual pequeno-burguês e interpretando-se da perspectiva da luta
de classes. Dito de outra maneira, Marx deixou de encarar como natural o fato de ser filho de
advogado e estudante de Filosofia, para entender que sua vida era resultado da pequena-burguesia.
A expressão pequena-burguesia foi criada no século XIX para identificar a classe social formada
pelas famílias que não possuíam riquezas antigas (como a nobreza ou a aristocracia) e que
enriqueceram pelo comércio e outros meios de acumular bens. A pequena-burguesia era malvista
por pensadores que denunciavam as injustiças sociais, pois os membros dessa nova classe
esqueciam frequentemente suas origens pobres e, uma vez ricos, reproduziam os esquemas de
dominação econômica e social que eles mesmos haviam sofrido. Esse é um dos aspectos do que
também no século XIX começou a se chamar de luta de classes: um processo de tensões sociais,
nascidas da Sociedade dividida em classes econômicas (ricos aristocratas; ricos burgueses;
proletários pobres, ou seja, empregados) que lutam entre si, seja para manter seu status (ricos),
seja para mudar a ordem e ter acesso à riqueza (pobres). Marx, assim, passou a entender sua
situação de fato como resultado do surgimento da pequena-burguesia e da luta de classes. Foi um
modo de ressignificar ou de dar sentido novo à sua vida, transformando-a.
O outro exemplo dado por Merleau-Ponty é o do poeta e filósofo francês Paul Valéry (1871-1945),
que, em vez de apenas sofrer com a solidão, transformou-a em poesia. Em vez de se sentir vítima da
solidão, Paul Valéry a assumiu e a transformou, conseguindo tirar dela a energia para produzir
poesia.
Com base nesses exemplos, Merleau-Ponty conclui que o pensamento é a vida inter-humana, quer
dizer, a vida que acontece nas trocas entre os seres humanos, especificamente no modo como essa
própria vida
Página 217
Dessa perspectiva, não faz sentido considerar os indivíduos como simples resultados da História ou
do movimento histórico que caracteriza a Humanidade. A História (os processos de construção da
vida social) não é vista como um processo que “engole” os indivíduos nem como uma mera
construção feita por esses mesmos indivíduos. Ela passa a ser entendida como algo que os
influencia, sendo também influenciada por eles. É por isso que Merleau-Ponty encerra o trecho
declarando que a questão de saber onde terminam as forças da História e onde começam as nossas
é uma questão que não significa nada, pois os sujeitos são históricos tanto quanto a História só
existe nos sujeitos.
A Sociedade, dessa perspectiva, aparece como algo cujo sentido é aquele que os indivíduos lhe dão.
A Sociedade é o que fazemos dela.
Paul Valéry (1871-1945). “Valéry transforma em poesia pura um mal-estar e uma solidão com os quais outros
nada teriam feito” (Maurice Merleau-Ponty).
REPRODUÇÃO/MUSEO DEL NOVECENTO, MILÃO, ITÁLIA
Giuseppe Pellizza da Volpedo (1868-1907), O quarto estado, 1901, óleo sobre tela. O quadro representa uma
greve de operários e simboliza o protesto do proletariado, nova classe social que se tornava, no fim do século
XIX e início do século XX, consciente de sua exploração e de seus direitos.
EXERCÍCIO B
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 472
3 Sociedade e desigualdade
O caminho que percorremos até aqui mostrou a possibilidade de defender filosoficamente que a
Sociedade é uma livre associação entre indivíduos, com o objetivo de realizar trocas que permitam
organizar a vida humana e continuá-la. Os indivíduos, por sua vez, aparecem como seres em
formação, unidades básicas da Sociedade e capazes de operar com limites e condicionamentos,
dando sentido à própria existência.
Convém, no entanto, evitar uma imagem da Sociedade como simples somatória de indivíduos, pois a
ação humana sempre é configurada por um agir em grupo. A construção livre da própria
individualidade requer, assim, a consciência das influências recebidas dos grupos sociais aos quais
cada indivíduo pertence.
Um dos estudiosos que mais bem exprimiram esse dado foi o sociólogo francês Robert Castel
(1913- 2013), que tratava da necessidade de “desindividualizar” o indivíduo e de compreendê-lo
como membro de grupos sociais. Em uma de suas análises, Castel baseia-se em um tema bastante
cotidiano, a aposentadoria. Ícone: Texto filosófico
Segundo Robert Castel, nas estruturas sociais que conhecemos, o indivíduo só é respeitado quando
unido a grupos que obtêm direitos por sua ação social (com debates, reivindicações e mesmo
conflitos). O caso específico da aposentadoria é típico, pois consiste em um direito de indivíduos,
porém obtido em grupo. Por sua vez, as políticas que chamam a atenção apenas para os indivíduos,
ao tratar do tema da aposentadoria, desviam a atenção do fato de que é apenas como grupo social
que se consegue garantir esse direito aos indivíduos. Tais políticas ocultam esse fato e organizam o
debate dando a entender que a aposentadoria é um tema que se refere apenas aos indivíduos (por
exemplo, como se tudo se resolvesse na fórmula: “pagou, tem direito; não pagou, não tem direito”).
O que essas políticas não trazem à tona é que nem todos têm as mesmas condições e oportunidades,
bem como o fato de que nem todos têm condições de “pagar”, embora trabalhem tanto ou mais do
que aqueles que “pagam”.
A análise sociológica de Robert Castel reafirma que a Sociedade tem o sentido que os indivíduos e
grupos lhe dão. Contudo, ela permite levantar outra temática de grande interesse filosófico: se a
Sociedade é construída para facilitar a vida dos indivíduos, ela também é uma fonte de profundas
desigualdades entre eles.
O mundo do trabalho é um testemunho desse dado. Pode parecer que cada ser humano tem o
trabalho que “merece”, que conquistou por seus esforços e méritos. Mas as oportunidades são as
mesmas para todos?
Alguns filósofos interpretaram as desigualdades sociais como algo natural, ou seja, como resultado
do modo de ser que a Natureza impõe aos indivíduos.
RADIOKAFKA/SHUTTERSTOCK.COM
ANJO KAN/SHUTTERSTOCK.COM
Acima: grafite em Berlim, Alemanha, retratando uma família de refugiados pobres. À esquerda: refugiados
chegam a Lesbos, Grécia, em outubro de 2015. As desigualdades sociais, bem como os conflitos e a fome,
sempre levaram os seres humanos a migrar, em busca de melhores condições de vida. No mundo
contemporâneo, a imigração tornou-se um problema de enorme significação, pois as sociedades nem sempre
se abrem à presença da alteridade.
Página 219
Robert Castel
Paradoxalmente – mas esse é um ensinamento inegável da História Social – foi necessário
desindividualizar os indivíduos para que eles se tornassem indivíduos inteiros. É o pertencimento a
coletivos que dá direitos [...]. Por exemplo, o direito à aposentadoria consiste em uma pensão que
22
se torna realmente um direito para o trabalhador idoso e que, em princípio, deve permitir-lhe
continuar a se sustentar a si mesmo. A aposentadoria é atribuída pessoalmente ao trabalhador e ele
é livre para dispor dela como indivíduo. Mas a aposentadoria como direito é a consequência do fato
de que ele pertenceu a um coletivo de trabalhadores e contribuiu com a previdência social durante
certo número de anos, a fim de satisfazer às exigências coletivas de seu sistema de aposentadoria,
entre outras coisas. A individualidade do trabalhador, então, é garantida à medida que ele é inscrito
em um sistema de proteções coletivas. [...] É por isso que insisto na ambiguidade profunda das 23
políticas que tomam como exigência incondicional a responsabilização dos indivíduos. Falar dessa
ambiguidade significa mostrar que essas políticas podem ter aspectos positivos – afinal, é positiva,
por exemplo, a tentativa de dar responsabilidades a quem ajudamos, uma vez que nunca é bom ser
alguém completamente assistido –, mas a generalização da exigência dessa responsabilização
repousa sobre uma omissão e mesmo sobre uma ocultação : ela evita a necessidade de nos
24 25
interrogarmos sobre as condições (ou os suportes) indispensáveis para que um indivíduo possa se
encarregar de si mesmo, “ativar-se”, “mobilizar-se” etc. [...] Tomo a liberdade de me exprimir aqui
de maneira um pouco brutal: um indivíduo sozinho não para em pé; sem pontos de apoio ele corre
o risco da morte social.
CASTEL, Robert. Les ambigüités de la promotion de l’individu. In: VVAA. Refaire société. Paris: Seuil, 2011. p. 18- 24. (As
ambiguidades da promoção do indivíduo. Tradução nossa.)
23 Ambiguidade: característica do que tem vários sentidos, dificultando identificar o sentido mais adequado.
Fotos de diferentes trabalhadores. No alto, à esquerda: diretora executiva; à direita: vendedor ambulante na
praia. Abaixo, à esquerda: trabalhador de minas de carvão; à direita: funcionário de uma indústria de
tecnologia.
Página 220
Ela daria as mesmas oportunidades para todos, mas também dotaria cada indivíduo de capacidades
diferentes, levando cada um a aproveitar de modo diverso as mesmas oportunidades.
No século XIX, o filósofo e economista Karl Marx (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 221),
ao refletir justamente sobre o modo como a vida social está organizada, chegou à conclusão de que
as desigualdades nascem de um fator bastante preciso: o sentido da vida humana é dado hoje pelo
dinheiro; e, na corrida para obter dinheiro, os indivíduos deixam de se preocupar com o bem-estar
de todos e passam a entender que cada qual é responsável por si mesmo, devendo simplesmente
procurar obter mais dinheiro. Ícone: Texto filosófico
Karl Marx
Aquilo que, mediante o dinheiro, é [existe] para mim, o que posso pagar, isto é, o que o dinheiro
pode comprar, isso sou eu, o possuidor do próprio dinheiro. Minha força é tão grande como a força
do dinheiro. As qualidades do dinheiro – qualidades e forças essenciais – são minhas, seu possuidor.
O que eu sou e o que eu posso não são determinados de modo algum por minha individualidade.
Sou feio, mas posso comprar a mais bela mulher. Portanto, não sou feio, pois o efeito da feiura, sua
força afugentadora , é aniquilado pelo dinheiro. Segundo minha individualidade, sou inválido, mas
26 27
o dinheiro me proporciona vinte e quatro pés; portanto, não sou inválido. Sou um homem mau, sem
honra, sem caráter e sem espírito, mas o dinheiro é honrado e, portanto, também [é honrado] o seu
possuidor. O dinheiro é o bem supremo; logo, o seu possuidor é bom. O dinheiro poupa-me além
disso o trabalho de ser honesto; logo, presume-se que sou honesto. Sou estúpido, mas o dinheiro é o
espírito real de todas as coisas; como então seu possuidor poderia ser um estúpido? Além disso, seu
possuidor pode comprar as pessoas inteligentes; e quem tem o poder sobre os inteligentes não é
mais inteligente do que o inteligente? Eu, que mediante o dinheiro posso tudo a que o coração
humano aspira , não possuo todas as capacidades humanas? Meu dinheiro não transforma, então,
28
MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos [Manuscritos de 1844]. In: Manuscritos econômicofilosóficos e outros textos
escolhidos. Tradução José A. Giannotti, José C. Bruni e Edgard Malagodi. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 196-197. (Coleção Os
Pensadores)
Ao ler esse trecho de Marx, é preciso perceber a ironia com que ele é escrito. A ironia, além do seu
sentido socrático (p. 33), pode ser um estilo no qual se diz o contrário do que se considera
adequado. Marx não considera o dinheiro o verdadeiro sentido da vida humana, mas pretende levar
os leitores a entender que ele se tornou tal sentido, transformando-se em elemento estruturante da
vida atual.
Porém, ao ler esse texto, alguém poderia responder a Marx: “Não é o dinheiro que interessa por si
mesmo às pessoas, mas aquilo que o dinheiro permite adquirir!”.
Marx certamente concordaria com essa frase. Aliás, ele mesmo observava que o dinheiro só tem
valor se puder ser trocado por produtos e pelo que as pessoas chamam em geral de “serviços”
(produtos e “serviços” seriam formas de mercadoria). O dinheiro por si mesmo e a riqueza seriam
abstrações, ideias ou símbolos separados da realidade material, mas representativos dela. No
cotidiano, o que dá valor a uma nota de dinheiro ou a milhões de notas de dinheiro é aquilo que
cada nota representa, ou seja, o poder de ser trocada por produtos e “serviços”.
Na história da Humanidade, houve períodos em que as trocas eram feitas diretamente com coisas
(um boi por 10 sacas de sal; uma saca de sal por cinco galinhas etc.). Aliás, essa prática existe ainda
hoje em alguns lugares. Com o passar do tempo, as sociedades passaram a usar moedas que tinham
valor por si mesmas, como moedas de ouro e prata. Por serem
Página 221
feitas de metais preciosos, elas permitiam fazer trocas mais ou menos adequadas (algumas moedas
de ouro por um boi; algumas moedas de prata por uma saca de sal etc.). No entanto, sempre foi o
ato da troca que permitiu falar de valor das coisas.
Como Karl Marx explica em seu livro O capital, a prática repetida da troca transformou-a em um
negócio social regular, a ponto de algumas pessoas, no interior das sociedades, passarem a produzir
intencionalmente coisas e “serviços” a fim de serem trocados. Faz-se, assim, uma separação entre,
de um lado, a utilidade das coisas e dos “serviços” que atendem a necessidades imediatas e, de
outro lado, a utilidade para a troca. As coisas e os “serviços” deixam de ter um simples valor de uso
para ter um valor de troca; e, à medida que as sociedades elaboram a simbologia do dinheiro em
torno do valor de troca, o dinheiro passa a ser visto como algo que tem valor em si. Marx chegará a
explicar o fetiche da mercadoria (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 25), o seu poder
mágico, como num feitiço. As mercadorias e o desejo de consumir coisas e “serviços” levam as
pessoas a ficar tão seduzidas que elas organizam suas vidas em torno do dinheiro, para poder obter
aquilo que ele permite comprar.
Foi um intelectual alemão que atuou em diferentes frentes, sobretudo filosofia, economia e história.
Ficou conhecido por sua interpretação de Hegel, seu materialismo histórico, sua análise do
capitalismo e sua concepção do socialismo. Obras mais conhecidas: O capital e A ideologia alemã.
Segundo Marx, essa dinâmica explicaria as desigualdades no interior das sociedades, pois, embora
os humanos tenham precisado desde sempre fazer trocas, nem todos tinham as mesmas condições
e igualdade de oportunidades para trocar. Algumas pessoas, por exemplo, detinham e detêm ainda
hoje os meios de produção (a terra, os instrumentos, as máquinas etc.), ao passo que outras só têm a
própria força física para trocar. Sendo assim, quem detém os meios de produção oferece a
possibilidade de usá-los aos que só possuem a força de trabalho, pagando-lhes um salário, mas
conservando para si os resultados do trabalho e os lucros obtidos na venda desses produtos.
Como o dinheiro se torna a mediação das relações humanas, o trabalho, segundo Marx, deixa de
29
ser o simples modo de os seres humanos construírem sua própria existência e se transforma em
uma relação econômica ou em um contrato estabelecido entre indivíduos e grupos com base no
dinheiro. Marx chega a concluir que esse sistema pode destruir a vida humana, pois, embora pareça
uma simples relação de troca (portanto, um meio), ele acaba por se constituir no objetivo mesmo da
vida dos indivíduos e grupos. Cria-se a ilusão de que a felicidade consiste em acumular capital e a
comprar produtos e “serviços”. De instrumento a serviço do ser humano, o dinheiro se transforma
em senhor do ser humano; e, dado que a acumulação de alguns só pode ser feita às custas do
empobrecimento de outros, as desigualdades agravam-se no interior das sociedades.
Ainda, o sistema capitalista produz maneiras de pensar que ocultam a gravidade dessa situação
desigual, fazendo os indivíduos que vendem sua mão de obra crer que as desigualdades são
“naturais” e que eles merecem trabalhar para receber seu salário e “vencer na vida”. A propriedade
privada ou particular dos meios de produção é tratada como aproveitamento livre das
oportunidades oferecidas pela Natureza, quando, na realidade, ela resulta de histórias violentas em
que alguns indivíduos se apoderaram de terras, coisas e pessoas, deixando-as como heranças a seus
descendentes. Não explicar isso e fazer que as pessoas creiam na naturalidade das relações de
produção e de trabalho são tarefas, segundo Marx, da ideologia: uma forma de pensar e um tipo de
discurso que oculta a verdade histórica, distraindo os indivíduos com o desejo de consumir e
fazendo com que eles não percebam o esquema de exploração ao qual são submetidos. Os
trabalhadores são “separados de si mesmos”, impedidos de se entender como unidades formadas
historicamente. Como dizia Marx, são vítimas da alienação.
O caminho da libertação dos indivíduos exigiria, segundo Marx, tomar consciência do mecanismo da
ideologia e da alienação e participar ativamente da
Página 222
construção de uma vida social que seja representada por um governo ou um Estado que controle os
meios de produção e garanta a igualdade de acesso de todos os cidadãos a eles. A essa concepção
política e econômica costuma-se chamar de socialismo.
Outras teorias discordam radicalmente do pensamento marxista, porque, no seu dizer, é impossível
negar que a Natureza dá a todos os indivíduos certas características das quais eles podem se servir
segundo suas diferenças. Essas características, sendo naturais, corresponderiam a direitos
inseparáveis dos indivíduos: o mais fundamental deles seria o direito à propriedade privada; e
junto dele viria o direito à liberdade e à circulação pelo mundo (direito de ir e vir).
Entre essas teorias, a mais forte e mais conhecida denomina-se liberalismo. De acordo com os
liberais, todo ser humano tem direito a agir como quer, desde que não prejudique seus
semelhantes. Dessa perspectiva, as desigualdades existentes no interior de uma sociedade seriam
positivas, pois traduziriam as diferentes maneiras como cada indivíduo, por livre iniciativa, constrói
sua vida. Elas não seriam injustas nem algo ruim.
Iluminismo ou Ilustração
Foi um movimento filosófico-cultural da Europa do século XVIII (conhecido como Século das Luzes)
que procurou reformar, por meio da razão, a Sociedade e o conhecimento recebido das gerações
passadas. Caracteriza-se principalmente pela ênfase na luz da razão, a defesa do livre uso das
capacidades humanas, do conhecimento aprofundado da Natureza em benefício do ser humano e do
engajamento político-social para o progresso. Tais posições levaram muitos iluministas a uma
profunda oposição ao poder absoluto dos reis e à Igreja, influenciando a Revolução Francesa e a
Revolução Americana, como também a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789.
Um dos autores centrais para o pensamento liberal foi o inglês John Locke. No contexto do
Iluminismo, Locke dedicou-se a justificar as ideias de que todo ser humano é livre e de que a
Sociedade é um conjunto de indivíduos organizados por um pacto ou um acordo que favorece a
convivência de todos. Ele ficou conhecido por sua teoria dos direitos naturais (liberdade,
propriedade etc.), da separação entre o poder civil e o poder religioso, do direito à desobediência
dos cidadãos em caso de injustiças praticadas pelos governantes e da liberdade de consciência.
Foi um filósofo inglês, conhecido como um dos principais representantes do empirismo. Locke
rejeitou a crença de Descartes em ideias que nascem com o ser humano e afirmou que a mente é
uma tabula rasa (uma tábua lisa, como uma lousa limpa ou uma folha em branco), na qual se
inscrevem dados aprendidos por meio dos cinco sentidos. Sua concepção dos direitos naturais do
ser humano e da Política como invenção humana ajudaram a derrubar o Absolutismo na Inglaterra
e a questionar o direito divino dos reis. Obras mais conhecidas: Dois tratados sobre o governo
(1689) e Ensaio acerca do entendimento humano (1690).
No dizer de Locke, se cada ser humano é livre por um dom da Natureza, então sua liberdade é
também econômica, podendo ser concretizada por meio da troca e do trabalho realizado segundo o
modo como quer cada cidadão. Os governos ou os Estados, por sua vez, não teriam direito de
intervir nas liberdades econômicas, pois isso significaria pretender interferir em dons que não são
feitos pelos governos, e sim pela Natureza mesma.
Enquanto Marx identificava nas origens da Humanidade violências que permitiram a alguns tomar
posse de terras, ferramentas etc., Locke interpretava as origens da Humanidade como um momento
em que todos tinham direito a tomar posse do necessário para sobreviver. Então, se nada impedia
que alguns seres humanos possuíssem mais coisas do que os outros, todos se mostravam de acordo
com tal posse do necessário. Ícone: Texto filosófico
Note como a tese central do texto de Locke pode ser resumida em alguns passos básicos: (1) quem
dá valor ao ouro e à prata são os seres humanos; (2) os seres humanos concordaram de maneira
silenciosa (sem manifestação contrária; tacitamente) que alguns produzissem mais do que o
necessário e recebessem ouro e prata em troca do excedente; (3) o fato de os seres humanos
valorizarem o ouro e a prata fez com que a troca por produtos excedentes fosse considerada
legítima, pois quem tinha ouro e prata os dava em troca de produtos e não discordava disso (prática
que levou ao
Página 223
uso do dinheiro); (4) essa prática surgiu antes mesmo que os seres humanos formassem uma
sociedade, quer dizer, não dependeu de um pacto ou de um acordo; (5) como nada impedia que os
seres humanos tomassem posse do necessário para trabalhar, todos aceitaram que essa posse era
legítima e não questionaram o direito à propriedade (inclusive porque produzir para trocar por
ouro e prata era a forma de trabalho dos proprietários); (6) por fim, os governos dos países
elaboraram leis para organizar as relações baseadas no direito de propriedade, a fim de proteger os
cidadãos proprietários.
John Locke
Como, porém, o ouro e a prata, por terem pouca utilidade para a vida humana em comparação com
o alimento, as vestimentas e o transporte, derivam o seu valor apenas do consentimento dos seres 30
pelo qual alguém pode possuir com justiça mais terra do que aquela cujos produtos possa usar,
recebendo em troca do excedente ouro e prata que podem ser guardados sem prejuízo de quem
33
quer que seja, uma vez que tais metais não se deterioram nem apodrecem nas mãos de quem os
possui. Essa partilha das coisas em uma desigualdade de propriedades particulares foi propiciada 34
pelos humanos fora dos limites da sociedade e sem um pacto, mas apenas atribuindo-se um valor
ao ouro e à prata e concordando-se tacitamente com o uso do dinheiro. Nos governos, as leis
regulamentam o direito de propriedade; e a posse da terra é determinada por legislações
35
positivas.
Desse modo, penso eu, torna-se muito fácil entender sem a menor dificuldade de que modo o
trabalho pôde, no princípio, dar início a um título de propriedade sobre as coisas comuns da
Natureza; e de que modo o gasto das mesmas coisas para nosso uso limitava essa propriedade. De
maneira que não podia haver nenhum motivo para controvérsia acerca desse título nem sombra de
36
dúvida quanto à extensão das posses que ele conferia. O direito e a conveniência andavam juntos,
pois o ser humano tinha direito a tudo em que pudesse empregar seu trabalho; e, por isso, não tinha
a tentação de trabalhar para obter além do que pudesse usar. Isso não deixava espaço para
controvérsias acerca do título [de propriedade] nem para a violação do direito alheio . A porção 37
que o ser humano tomava para seu uso era facilmente visível; e seria inútil e desonesto tomar
demasiado ou mais do que o necessário.
LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. Tradução Julio Fischer. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 428-429.
36 Controvérsia: discordância.
Mas um liberal poderia responder defendendo que, mesmo se nas origens houve violência e
engano, tal fato não autoriza a pensar que todo proprietário praticou alguma violência ou enganou
alguém. Mesmo quem recebeu heranças de antepassados desonestos não teria
Página 224
A tensão entre a leitura marxista e a leitura liberal da vida social é extremamente saudável para
interpretar o mundo atual. Independentemente de se assumir uma ou outra posição, é possível
observar como elas põem no centro do debate o fato de a própria Sociedade ser produtora de
desigualdades. Essa tensão também permite pensar que, num mundo estruturado em torno da
propriedade, do dinheiro e do consumo, a responsabilidade por diminuir ou agravar as
desigualdades é dos próprios indivíduos e grupos. Por fim, ela faz entender que não é adequado
culpar individualmente as pessoas, hoje, por estruturas socioeconômicas montadas durante
séculos.
A percepção dessa tensão tem levado diferentes pensadores a combinar elementos marxistas e
elementos liberais na tentativa de conceber tipos de vida social menos injustos e desiguais. Se, por
um lado, parece cada vez mais difícil, no mundo atual, fazer que os governos ou Estados decidam
sobre o uso dos meios de produção, por outro, é também cada vez mais explícito o exagero de crer
que uma vida social equilibrada depende apenas de práticas “livres” e centradas no dinheiro, com
um mercado (sistema de troca mediada pelo dinheiro) sem controle ético-político por parte dos
próprios indivíduos, grupos e governos.
Com essa consciência, alguns pensadores sustentam a ideia dos direitos naturais como a liberdade e
a propriedade, mas também defendem limites para a liberdade econômica, pois, no seu entender,
sem um sentimento de comunidade ou de dependência solidária no interior das sociedades, estas
caminharão para a autodestruição. Uma das formas desse tipo de pensamento recebe o nome de
comunitarismo, tendo no filósofo inglês Alasdair MacIntyre um de seus principais representantes.
Sem adotar necessariamente uma visão em que todos os indivíduos devem ser considerados
natural e inteiramente iguais, os comunitaristas advogam que a preocupação com algo como o bem
comum é a única solução para evitar ao máximo a exploração humana e as desigualdades extremas.
O bem comum seria um ideal de sociedade equilibrada e justa por meio da comparação e do debate
entre as formas de pensar dos indivíduos e grupos, em busca de práticas refletidas comuns.
De uma perspectiva comunitarista, tanto o pensamento liberal como o pensamento marxista teriam
uma fraqueza, a de pretender ter encontrado uma compreensão da vida social que deveria ser
seguida por todos. Levada ao extremo, essa fraqueza poderia produzir atitudes autoritárias e38
centradas no mesmo interesse, o de ditar as regras da construção da “melhor” vida social. Em vez
disso, os comunitaristas propõem observar o que desejam os indivíduos e os grupos, pois, embora a
Sociedade seja mais ampla do que a simples somatória dos seus componentes, é nos grupos
menores que os indivíduos se sentem realmente realizados por tipos específicos de relações
afetivas, políticas, econômicas e culturais. A solução para escapar do individualismo desenfreado e 39
do discurso identitário , por um lado, e do risco de autoritarismo presente nos pensamentos liberal
40
e marxista, de outro, seria o teste dialético das convicções, quer dizer, o confronto honesto e
respeitoso entre pensamentos, na busca de formas de convivência com a contrariedade e a
contradição, em favor de um equilíbrio. As condições necessárias para tal teste dialético seriam
uma autocrítica constante e uma atitude de abertura desarmada à compreensão dos pensamentos
alheios. Ícone: Texto filosófico
Observe como MacIntyre se afasta de uma concepção da Sociedade como simples somatória de
indivíduos ou “eus”, como se cada “eu” tivesse uma visão de mundo específica e pudesse
simplesmente convencer os outros “eus”. Cada “eu” ou cada indivíduo é formado pela contraposição
com outros indivíduos ou “eus”, pois é pelo encontro que cada unidade individual se constrói, assim
como é pela tentativa de falar a língua do outro que cada “eu” (indivíduo ou grupo) pode obter um
melhor conhecimento de si mesmo e da vida social.
Ícone: Glossário 38 Autoritário: que se refere à autoridade; em sentido pejorativo, autoritário é quem não ouve
os outros e só se baseia em seu próprio pensamento para agir, impondo sua vontade.
40 Identitário: que acredita em uma identidade fixa para os indivíduos e grupos humanos.
Página 225
Na cacofonia atual, com cada “eu” querendo ouvir apenas a sua própria voz e convencer os outros
41
da sua própria opinião, MacIntyre aposta na possibilidade de falar a língua dos outros,
compreender suas razões, debater, discordar, concordar e chegar a pontos comuns, em pleno
exercício da liberdade.
Ícone: Glossário 41 Cacofonia: conjunto de sons sem harmonia, desencontrados e produtores de uma confusão
sonora desagradável. Contrário da sinfonia (sons harmônicos).
Alasdair MacIntyre
O que [o] indivíduo tem de aprender é como testar dialeticamente as teses que lhe forem
42
propostas por toda tradição e, ao mesmo tempo, utilizar essas mesmas teses para testar
dialeticamente as convicções e as reações que ele próprio trouxe para o debate. Ele deve envolver-
se no diálogo entre as tradições, aprendendo a usar a língua de cada uma delas, a fim de descrever e
avaliar por meio dela [essa mesma língua]. Assim, cada indivíduo será capaz de transformar suas
próprias incoerências iniciais em vantagens argumentativas, exigindo de cada tradição que ela lhe
forneça uma visão de como essas incoerências podem ser mais bem caracterizadas, explicadas e
superadas.
Uma das marcas de qualquer tradição madura [...] é que ela possui os recursos para fornecer visões
de uma série de condições nas quais a incoerência se tornaria inevitável e para explicar como essas
incoerências ocorreriam. Os indivíduos [que testam dialeticamente a si mesmos e às tradições]
farão com que uma tradição [analisada] lhes forneça um tipo de autoconhecimento que ainda não
possuíam, proporcionando-lhe uma consciência do caráter específico de sua própria incoerência
[...].
MACINTYRE, Alasdair. Justiça de quem? Qual racionalidade? Tradução Marcelo Pimenta Marques. São Paulo: Loyola, 1991. p. 426
EXERCÍCIO C
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 472
2. O que significa, segundo a análise de Marx, afirmar que o dinheiro se tornou a mediação
entre as pessoas e pode desumanizá-las?
3. Quais as razões de John Locke para afirmar que as desigualdades sociais são boas?
4. Como um pensador marxista pode reagir à interpretação liberal do início da história da
Humanidade e como um pensador liberal pode responder à reação marxista?
7. Reflita sobre sua própria experiência e a de sua família. Pense sobre as relações que vocês
mantêm, o modo como obtêm o próprio sustento, o trabalho (de seus pais e talvez o seu
próprio, caso já trabalhe), o lazer, o tipo de serviço de saúde e de educação a que vocês têm
acesso etc. Em seguida, analise sua experiência com base na perspectiva liberal e, depois, com
base na perspectiva marxista. Registre sua resposta por escrito.
Página 226
EXERCÍCIOS COMPLEMENTARES
DAVID PLUNKERT
1 Dissertação de contradição
Elabore uma dissertação de contradição (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 229), tendo
por tema a seguinte afirmação: Tudo o que o ser humano vive é determinado pela Natureza. A própria
desigualdade econômica é uma prova disso, pois todos os seres vivem em concorrência. Para sua
redação, você pode inspirar-se também na abertura do Capítulo 9 deste livro (Ícone: Conteúdo
tratado em outra página p. 230-233).
Relato 1:
Relato resumido com base em: BURNS, Jeffrey M.; SWERDLOW, Russell. H. Right Orbitofrontal
Tumor with Pedophilia Sympton. Archives of Neurology, v. 60, n. 3, p. 437-440, 2003. (Tumor no
córtex orbitofrontal direito com sintoma de pedofilia).
Relato 2:
Relato resumido com base em: LIBET, Benjamin. Mind Time: The Temporal Factor in Consciousness
Cambridge: Havard University Press, 2005. (Tempo da mente: o fator temporal na consciência).
Com base nos dois relatos, formule duas frases curtas que resumam as concepções de liberdade
deles decorrentes e analise se as frases que você formulou são complementares, contrárias ou
contraditórias.
Ícone: Dica de filmes Dicas de filmes para você assistir tendo em mente o que trabalhamos
neste capítulo
Filme que mistura toques de humor e seriedade para narrar a história de Antonia em seu retorno ao vilarejo
onde nasceu. Ela se dirige para lá com sua filha, Danielle, e ambas dão início a uma grande família em torno de
Antonia. Nos quarenta anos relembrados pelo filme, abordam-se temas como: o amor, a amizade, a família, a
Sociedade, o trabalho, a religião, o sexo, o ódio, a vingança, além de Filosofia e poesia. Notas de pessimismo são
lançadas com a personagem de um filósofo admirador de Schopenhauer, mas elas não deixam de ser
equilibradas pela amizade que o mesmo filósofo desenvolve com uma das crianças da família de Antonia.
Mistura de drama, suspense e humor que narra de forma inteligente a história de Marc, trabalhador que decide
entrar no mundo financeiro e torna-se um dos homens mais importantes do sistema bancário europeu.
Quando um fundo de investimentos norte-americano o enfrenta, Marc mostra do que é capaz, revelando até
onde vai a influência do sistema econômico na vida social. O filme não termina antes de Marc dizer sua última
palavra. Seriam os bancos ladrões dos pobres para dar aos ricos? Ou tudo não passaria de um jogo infantil para
ter a sensação de Poder?
São Paulo Sociedade Anônima, direção Luís Sérgio Person, Brasil, 1965.
Carlos pertence à classe média paulistana e começa a trabalhar em uma grande empresa. Depois se torna
gerente de uma fábrica de autopeças. Quando toma consciência de si, vê que já é pai de família, trabalha
bastante, recebe um bom salário, mas vive profundamente insatisfeito.
Máiquel perde ingenuamente uma aposta com amigos, mas torna-se um assassino e “herói” em sua cidade.
Recebe o respeito de criminosos e policiais e é amado por duas mulheres. Tudo vai bem; Máiquel recebe o
título de “homem do ano”. Até que comete um “primeiro erro”, que o obriga a lutar para controlar novamente a
própria vida.
Baseado em uma história verídica, o filme retrata a vida de um grupo de jovens estudantes norte-americanos
cuja liberdade depende do enfrentamento de difíceis condicionamentos sociais.
História dos jovens Vinz, Saïd e Hubert. Os três vivem em um subúrbio de Paris e sofrem diariamente a
discriminação e os abusos da polícia. Depois de um confronto, Vinz encontra uma arma e promete assassinar
um policial caso seu amigo Abdel morra por causa dos ferimentos provocados em um interrogatório violento.
Filme de forte realismo e que descortina dinâmicas sociais de grandes cidades como Paris, Londres, São Paulo,
Buenos Aires e outros centros nos quais os indivíduos e os grupos enfrentam problemas muito parecidos.
Uma das obras de maior destaque na literatura brasileira, O tempo e o vento compõe-se de três volumes: O
continente, O retrato e O arquipélago. Neles, Erico Veríssimo retrata 200 anos de história do estado do Rio
Grande do Sul, narrando a formação da família Cambará. Se, porém, a narrativa concentra-se em uma história
familiar, seu sentido é universal e explora a necessidade humana de liberdade, vivida em meio às
determinações familiares, sociais, históricas, muitas vezes trágicas, mas outras vezes também alegres.
Os irmãos Karamázov, de Fiódor Dostoiévski, tradução Paulo Bezerra, Editora 34, 2008.
A liberdade e o sentido da existência são alguns dos temas centrais desse último romance de Dostoievski,
estruturado em torno das complexas relações entre
Página 228
Fiodor Karamázov e seus três filhos, que representam, no limite, tipos humanos: Aliócha é puro, sensível e
percebe o mistério que envolve o mundo; Ivan é intelectual e vive atormentado; Dmitri, por sua vez, vive de
paixão e orgulho.
Josef K., certo dia, é preso sem ter cometido nenhum crime. Seu drama é o de descobrir do que é acusado,
quem é o acusador e qual lei dá base para prendê-lo. Mas Josef K. se vê cada vez mais confundido pelo absurdo
de seu processo, que não tem nada de racional.
Os caminhos da liberdade, de Jean-Paul Sartre, tradução Sérgio Milliet, Nova Fronteira, 1997. 3 v.
Romance em três volumes nos quais Sartre apresenta personagens comuns, “torturadas” pela necessidade de
escolher. Os três volumes são: A idade da razão, Sursis e Com a morte na alma.
Acesse:
Projeto 7 mil milhões de Outros, direção de Yann Arthus-Bertrand, Sibylle d’Orgeval e Baptiste Rouget-
Luchaire.
Projeto para divulgar a diversidade humana social e individual na Terra (o título se refere à estimativa da atual
população do planeta). Foram colhidos depoimentos de pessoas de praticamente todos os países, sociedades,
comunidades e tribos, em torno de perguntas básicas, como a sua “identidade”, sua visão de mundo, o sentido
da família, da felicidade, do perdão, do amor etc. Os inúmeros vídeos funcionam como quadros vivos, não
apenas registrados no site, mas também apresentados em exposições pelo mundo inteiro. Cada “quadro” é
uma viagem e um encontro fascinantes! A versão em português, com apresentação do projeto, pode ser vista
em: <http://www.7billionothers. org/pt/content/sobre-o-projeto>. Acesse a aba “Vídeos” e navegue pelos
diferentes temas. Para conhecer as pessoas entrevistadas, basta clicar nas fotos que aparecem na tela do link:
<http://www. 7billionothers.org/pt/testimonies>. Para conhecer os depoimentos de brasileiros e
estrangeiros residentes no Brasil, acesse: <http://www.7billionothers.org/pt/ content/sao-paulo-masp>.
Acesso em: 9 jan. 2016.
O ser humano é um ser social, de Marilena Chaui, WMF Martins Fontes, 2013 (Coleção Filosofias: O prazer do
pensar).
A filósofa brasileira Marilena Chaui analisa, neste livro introdutório, o caráter social do ser humano por meio
de perguntas como: O ser humano é naturalmente um ser social? Poderia ele viver isoladamente? O que há por
trás desse tipo de perguntas?
A liberdade, de Alexandre Carrasco, WMF Martins Fontes, 2011 (Coleção Filosofias: O prazer do pensar).
O autor inicia por situações cotidianas em que se fala de liberdade e aprofunda sua reflexão com a ajuda do
pensamento estoico e da leitura de Michel de Montaigne, Jean-Paul Sartre e Maurice Merleau-Ponty.
A Justiça e o Direito, de Alfredo Culleton e Fernanda Bragato, WMF Martins Fontes, 2015 (Coleção Filosofias: O
prazer do pensar).
Os autores refletem sobre as relações entre Justiça, Direito e Sociedade, explorando dilemas como: devemos ou
não obedecer a uma lei que contraria nossa consciência?
A sociedade do espetáculo, de Guy Debord, tradução Estela dos Santos Abreu, Contraponto, 1997.
Escrito pelo filósofo e diretor de cinema Guy Debord, este livro já é um clássico da filosofia contemporânea a
respeito dos mecanismos adotados pela sociedade atual, estruturada em torno do consumo, para transformar
a vida em espetáculo.
A sociedade do cansaço, de Byung-Chul Han, tradução Enio Paulo Giachini, Vozes, 2015.
O autor é um jovem filósofo alemão-coreano e defende, neste livro curto e provocativo, a ideia de que as
sociedades tiveram doenças típicas nas diferentes épocas da História. O início do século XXI seria marcado
pelo cansaço e suas correlatas doenças psíquicas e neuronais: a depressão, o déficit de atenção, a
hiperatividade, a síndrome do desgaste profissional etc. Cabe perguntar simplesmente: Por quê?
A sociedade dos indivíduos, de Norbert Elias, tradução Vera Ribeiro, Zahar, 1994.
Em uma reflexão que combina elementos filosóficos e sociológicos, Norbert Elias promove uma compreensão
da vida social como pluralidade e unidade. “Indivíduo” e “Sociedade” não seriam mais do que duas maneiras de
olhar para a mesma realidade.
Em uma reflexão interdisciplinar baseada principalmente nos trabalhos do sociólogo Anthony Giddens e dos
filósofos Michel Foucault, Judith Butler e Giorgio Agamben, o autor trata a identidade do indivíduo, buscando
as origens dessa “ficção do eu”.
DISSERTAÇÃO DE CONTRADIÇÃO
Uma dissertação de contradição mostra que uma forma de pensamento pode ser recusada por não
corresponder a algo considerado verdadeiro.
2) mostrar que dois pensamentos se contradizem entre si e se excluem (quer dizer, se um for aceito
como verdadeiro, o outro tem necessariamente de ser tomado como falso). Essa maneira de
considerar dois pensamentos distingue a dissertação de contradição da dissertação de
problematização (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 106), pois não permite combinar os
dois pensamentos analisados.
Nas duas maneiras, uma boa estratégia consiste em se apoiar no funcionamento do quadrado das
oposições (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 211-212), considerando que, para uma frase
afirmativa universal, a contradição é garantida se houver uma frase particular negativa que seja
verdadeira (e vice-versa), ao passo que, para uma frase negativa universal, a contradição é
garantida se houver uma frase particular afirmativa que seja verdadeira (e vice-versa). Exemplos:
1º passo (1º parágrafo): apresentar as razões pelas quais alguém poderia afirmar que nenhum
político é honesto.
3º passo (3º parágrafo): concluir que, diante do caso de político honesto, é um erro afirmar que
nenhum político é honesto. Esse pensamento está, portanto, contradito.
1º passo (1º parágrafo): apresentar razões que permitam defender o Pensamento X e exprimir
com clareza que esse pensamento pode ser expresso da seguinte maneira: Todo o sentido da vida é o
dinheiro.
2º passo (2º parágrafo): encontrar uma forma de defender o Pensamento Y. A mais adequada e
firme é encontrar pelo menos um caso em que dinheiro não é o sentido da vida (por exemplo, em
alguns lugares do mundo, ainda hoje as relações de troca são feitas sem dinheiro; ou ainda, o
sentido da vida para muitas pessoas pode estar não no dinheiro, mas nas relações de amizade, na
prática artística e no esporte sem interesses por lucro etc.). Se o Pensamento Y indicar pelo menos
um caso, ele pode ser expresso da seguinte maneira: Existe pelo menos um caso em que o sentido da
vida não é o dinheiro: ...
3º passo (3º parágrafo): concluir que o Pensamento Y, levantando uma verdade inquestionável,
exclui o Pensamento X.
Lembre-se que você pode tentar defender o Pensamento X contra o Pensamento Y. Nesse caso, pode
começar pelos exemplos dados em favor de Y, mostrar que são todos falsos e concluir com X (O
dinheiro é o único sentido da vida). Tenha o cuidado de realmente provar que os exemplos de Y são
falsos. Do contrário, sua defesa de X será fraca.
Página 230
ALTA OOSTHUIZEN/SHUTTERSTOCK.COM
MICHAELJANICH/WIKIMEDIA COMMONS
E m nosso modo cotidiano de falar, costumamos nos referir à Natureza como o grande conjunto
composto pelos minerais, vegetais, animais e o ser humano. Incluímos o ser humano entre os outros
seres, mas, ao mesmo tempo, o destacamos do conjunto, tratando-o como diferente de todo o
restante.
Em outras palavras, tomamos o ser humano como parte da Natureza e marcamos sua diferença em
meio ao conjunto.
Contudo, o ser humano não é um animal? Se ser animal significa ter um corpo vivo, dotado da
capacidade de perceber o mundo, expressar emoções e fazer escolhas, então também somos
animais. Por outro lado revela-se diferente o modo como vivemos nosso corpo, percebemos o
mundo, expressamos emoções e fazemos escolhas, pois os animais não dão sinais de que podem
sentir o valor objetivo de tudo ou aquilo que cada ser representa no conjunto dos seres, nem de
refletir sobre si mesmos, sobre seu comportamento e sobre o mundo.
À diferença que permite aos humanos sentir o valor objetivo de tudo chamamos sentimento; e à
diferença que lhes permite refletir sobre si mesmos, sobre seus comportamentos e sobre o mundo
costumamos chamar de razão. Com efeito, os humanos revelam a possibilidade de encontrar
maneiras novas de viver, baseados no seu sentimento do mundo e adaptando-se às situações de
forma refletida e calculada, por um aprendizado e uma construção de sua diferença (razão e
sentimento). Já os animais não humanos parecem “nascer sabendo” tudo aquilo de que necessitam
para serem animais. Com o passar do tempo, eles só desenvolvem o que já têm em seu organismo.
No entanto, há um risco em descolar os seres humanos do grupo dos outros seres, o risco de
encararmos a Natureza como uma casa que é nossa, mas da qual não nos sentimos realmente
membros. Afirmamos pertencer a
Página 231
ela, mas, ao mesmo tempo, sentimo-nos separados dela, quase como intrusos . Essa situação
1
estranha parece gerar duas atitudes: passamos a acreditar que realmente somos diferentes da
Natureza e a tratamos como algo que está a nosso serviço ou contra nós; ou passamos a acreditar
que, para realmente sentir-nos em casa na Natureza, devemos recuperar nossa “animalidade” e nos
abster de nossas características especificamente humanas.
As duas atitudes são claramente problemáticas. Tratar a Natureza como estranha pode
simplesmente levar a considerá-la como uma mera reserva de materiais para a satisfação das
necessidades humanas. As consequências ecológicas dessa atitude estão aí para todos verem. Hoje,
não precisamos de guerras para destruir nossa própria casa. Já a atitude de nos unirmos à Natureza
a ponto de abrir mão de nossas características específicas (a razão e o sentimento) só reforça a
ideia de que somos separados dela, fazendo-nos crer que, para sermos “naturais”, devemos deixar
de ser quem somos. No limite, teríamos de abandonar aquilo que a própria Natureza nos deu, isto é,
a capacidade de desenvolver a razão e o sentimento. Teríamos de abafar algumas de nossas
possibilidades a fim de privilegiar outras.
Essas duas atitudes instalam igualmente uma cisão entre o reino da Natureza e o reino humano,
como se nada parecido com consciência humana existisse nos seres não humanos. É verdade que
não temos base para afirmar que os minerais, as plantas e os animais “pensam”. Mas isso também
não permite concluir que os outros seres vivos, principalmente os animais, não têm nenhum tipo de
percepção de si mesmos, dos outros e do mundo ou algo como a possibilidade de realizar boas
escolhas. Para espanto nosso, pesquisas científicas mostram que, mesmo sem uma estrutura
nervosa e sem cérebro, as plantas são capazes de “perceber” a si mesmas e ao mundo, bem como de
ter certa “memória”. Elas podem, inclusive, comunicar umas com as outras por sinais químicos, a
fim, por exemplo, de se defender contra animais herbívoros . Algumas até reagem ao carinho
2
humano e à música.
Hoje, mais do que nunca, somos solicitados a rever nossa maneira de encarar a Natureza. Repensá-
la significa repensar a nossa própria morada e o tipo de relação que estabelecemos com nossos
companheiros de jornada, os minerais, as plantas e os animais não humanos.
Ícone: Glossário 1 Intruso: alguém que se introduz onde não deveria estar (um lugar, uma conversa etc.).
SPL/LATINSTOCK
Pesquisadores como Michel Thellier (1933-), membro da Academia de Ciências da França, defendem que as
plantas “percebem” e “têm memória”. Outros chegam a afirmar que elas têm uma estrutura parecida com a dos
neurônios humanos.
Embora Darwin não tenha empregado o termo evolução, sua teoria foi amplamente divulgada como
teoria da evolução das espécies; e, justamente na versão mais divulgada, ela gerou a seguinte
interpretação: a lei da evolução é a lei “do mais forte”. Por
Página 232
corolário , a concorrência ou a tendência a dominar e vencer na luta pela sobrevivência seria a lei
3
da Natureza.
Dada a importância cultural dessa visão simplificada do trabalho de Darwin, alguns cientistas têm
procurado corrigi-la, a fim de melhorar a compreensão da Natureza. Embora concordem que a
concorrência se manifesta de maneira inquestionável em alguns seres vivos (que, aliás, podem ser
altamente violentos), esses cientistas observam que também existe colaboração na Natureza. Mais
do que isso, a colaboração seria até mais importante do que a lei do mais forte.
Nessa direção, os biólogos Larissa Conradt e Tim Roper têm se dedicado a observar diferentes
grupos de animais (principalmente gorilas, búfalos, veados, cisnes, peixes, estorninhos e elefantes),
testando a tese “evolucionista” segundo a qual, nos grupos animais, há sempre um indivíduo que
detém o comando (chamado de alfa, primeira letra do alfabeto grego) e diante do qual os outros
manifestam respeito. Essa tese explicaria até mesmo o comportamento humano de sempre contar
com líderes (reis, presidentes, governadores, representantes, chefes e assim por diante), pois a
Natureza colocaria sempre no alto da hierarquia aqueles que têm mais força.
4
Conradt e Roper instalaram, por exemplo, câmeras em árvores numa região onde vivia um rebanho
de veados. Em determinado momento, os animais precisavam ir até uma poça para beber água, mas
tinham de permanecer em grupo, a fim de evitar o ataque de predadores. A decisão de como e
quando beber água não era simples, pois havia três poças naquela região. A distância e o tempo
eram fatores importantes: se fossem cedo demais, alguns deles não teriam se alimentado o bastante
e poderiam ficar para trás ou desfalecer no trajeto; se fossem tarde demais, teriam problemas de
5
desidratação; se fossem com a velocidade errada, poderiam ser vítimas dos predadores; se
escolhessem a poça errada, também perderiam vantagem. Qual dos indivíduos devia, então,
escolher a melhor poça, o melhor momento e a melhor velocidade? Os cientistas esperavam que
fosse o indivíduo alfa, dotado de “autoridade” por se confrontar todos os anos com outros
indivíduos do grupo, mantendo sua liderança. Mas não foi o que observaram! Enquanto o grupo
todo pastava junto, alguns indivíduos começaram a apontar com suas orelhas e com seus olhares
para uma das três poças. Quando pouco mais da metade dos animais havia apontado para uma
poça, todo o rebanho dirigiu-se até ela. Mais de uma vez o indivíduo alfa ficou curiosamente para
trás e se juntou rapidamente ao grupo. Essa observação foi feita repetidamente durante um longo
tempo, levando os cientistas a afirmar que os membros daquele rebanho tinham uma atitude
semelhante aos grupos humanos que votam. Quando mais da metade havia “votado”, apontando
para uma poça, todos se dirigiam para ela.
eles “votam” com um tipo específico de batida da asa ou com um movimento preciso do papo. Além
disso, “votam” centenas de vezes por minuto!
Ícone: Glossário 3 Corolário: afirmação ou negação que decorre imediatamente de uma conclusão anterior.
4Hierarquia: organização de um grupo por meio da classificação que identifica indivíduos ou funções mais
importantes e que lhes subordina os outros indivíduos ou as outras funções.
EXERCÍCIO A
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 476
Apresente a crença na concorrência como lei da Natureza e explique sua crítica pela teoria da
“democracia animal”.
A “democracia” animal
L arissa Conradt e Tim Roper, da Universidade de Sussex (Inglaterra), ficaram conhecidos como
os cientistas da “democracia” animal por terem defendido que, na Natureza, a concorrência ocorre
em menor escala do que a colaboração. Mostraram também que os indivíduos mais adaptados nem
sempre são os mais fortes.
Entretanto, se as pesquisas de Conradt e Roper são uma novidade no tocante aos animais não
humanos, conclusões parecidas já foram registradas ao longo do século XX com estudos sobre os
seres humanos (Antropologia e Sociologia). Sabe-se que em diferentes partes do planeta há
comunidades organizadas por colaboração, e não por competição. Por exemplo, alguns grupos
indígenas das Américas, da África e da Oceania consideram doentes ou “anormais” os indivíduos
que manifestam um comportamento dominador e concorrencial. Sem excluí-los, as comunidades
encontram, porém, maneiras de limitar sua influência e conservar a mentalidade aprendida com os
antepassados.
O resultado global de posturas como essas tem sido o reforço do individualismo, da desconfiança
entre indivíduos e grupos, o aumento do sofrimento humano com o isolamento e a solidão, sem
falar na ameaça de destruição do planeta: de fato, chegamos a um momento da História em que não
precisamos mais de guerras para acabar com nossa morada.
Acesse:
Para conhecer um pouco mais das pesquisas de Larissa Conradt e Tim Roper, leia o artigo
“Democracia animal”, de Cristiane Segatto, publicado no site da revista Época (disponível em:
<http://revistaepoca.globo.com/Revista/ Epoca/0,,EDR54940-6010,00. html>. Acesso em: 10 jan.
2016).
Sugerimos que você também assista ao documentário I Am: você tem o poder de mudar o mundo (I
Am: the Shift is About to Hit the Fan), dirigido por Tom Shadyac, EUA, 2010.
Tom Shadyac é um diretor de sucesso de Hollywood (produziu filmes de comédia como O mentiroso
e Professor aloprado). Depois de um acidente de bicicleta que lhe rendeu um grave ferimento na
cabeça e em uma das mãos, Shadyac passou um longo período de internação e recolhimento. Ele
entrou em profunda depressão, com hipersensibilidade ao som e à luz, pensamentos suicidas e uma
insuportável sensação de vazio existencial. Ao se sentir melhor, decidiu sair pelo mundo,
entrevistando líderes, cientistas, pensadores e cidadãos comuns, com duas perguntas básicas: “O
que está errado no mundo?” e “O que podemos fazer para melhorá-lo?”. Entre os entrevistados mais
conhecidos estão o filósofo Noam Chomsky (1928-) e o bispo anglicano Desmond Tutu (1931-).
Página 234
2 A Natureza
O debate em torno da concorrência ou da colaboração entendidas como leis da Natureza dá ocasião
para a reflexão filosófica sobre o que se entende pela Natureza mesma. Mais do que explicar o seu
funcionamento (tarefa das ciências), interessa à Filosofia investigar o modo como se fala dela.
Por que falamos sobre a Natureza, descolando-nos dela como se pudéssemos analisá-la na
qualidade de “observadores”? Por que simplesmente não “nos sentimos Natureza”, entendendo-a
como o nosso modo de estar no mundo junto com os outros seres? Se todos concordam que ela é a
nossa morada, o que impede de dar um passo adiante e dizer que, em vez de estar “na” Natureza,
“somos” Natureza? Por que costumamos considerar como não naturais as produções humanas (o
resultado do trabalho, a tecnologia, as obras artísticas, os conhecimentos científicos etc.)?
A resposta para perguntas como essas depende do nosso modo de olhar para o mundo e das
imagens ou metáforas (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 48) que elaboramos para
exprimir aquilo que é visto. Assim, segundo alguns pensadores contemporâneos, o hábito de tratar
a Natureza como algo do que os seres humanos se descolam vem da compreensão da Natureza vista
como uma máquina: por seu funcionamento mecânico e independente, ela seria uma máquina em si
mesma, além de ser uma máquina à disposição dos seres humanos.
Uma metáfora é uma forma de compreender uma coisa por comparação com algo que não tem
necessariamente semelhança com a coisa que se quer compreender, mas cujo sentido permite
entendê-la melhor. Fala-se, por exemplo, de “asas da liberdade”: a base da comparação está no fato
de as asas permitirem aos animais voadores se dirigir para onde desejam; a liberdade, então,
seriam as “asas” que dão aos humanos a possibilidade de ir para onde desejam.
Dizer que a Natureza é uma máquina significa afirmar que ela funciona como uma máquina, ou seja,
com um movimento repetitivo e constante. Essa imagem da Natureza começou a ser construída nos
séculos XVI e XVII, quando as mudanças trazidas pela ciência moderna (p. 190-193 e 336-337)
levaram a enfatizar os aspectos da Natureza que podiam ser claramente medidos, testados,
controlados e reproduzidos. Constatando que os acontecimentos naturais podiam ser entendidos e
retratados com procedimentos matemáticos (relações expressas numericamente), filósofos e
cientistas passaram a pensar que as próprias leis da Natureza eram matemáticas. Por serem
matemáticas, elas seriam adequadamente expressas em termos de um mecanismo constante e
repetitivo, como o dos números. Por sua vez, o funcionamento de mecanismos (principalmente dos
relógios), por ser repetitivo e constante, passou a ser um bom modelo para exprimir o modo de ser
das coisas.
O mecanismo dos relógios mostrava-se filosoficamente interessante, porque permitia pensar que,
como o funcionamento das suas partes (também mecânicas) faz funcionar o conjunto (o relógio),
assim também as partes da Natureza produziriam o seu dinamismo. Galileu Galilei (1564-1642),
Johannes Kepler (1571-1630) e René Descartes (p. 191) foram três dos principais responsáveis
pela consagração dessa metáfora.
REPRODUÇÃO/ BIBLIOTECA NACIONAL DA FRANÇA, PARIS
No alto: desenho no livro de René Descartes, Tratado sobre a luz, para explicar a refração da luz como
movimento de pequenas bolas duras (edição Adam & Tannery, 1909, v. XI, p. 116). Acima: desenho na edição
de 1664 da obra de Descartes, Tratado sobre o homem, para representar mecanicamente o ato da visão.
Página 235
PHILLIPPE MONOT/HTTP://WWW.HORLOGE-EDIFICE.FR
No modelo dos mecanismos ou das máquinas, atraía, sobretudo, o fato de eles poderem ser
montados e desmontados. Para cientistas e filósofos que buscavam conhecer o Universo com base
apenas em dados claramente observáveis e testáveis, a prática de montar e desmontar mecanismos
como os do relógio significava a possibilidade de fazer o mesmo com a Natureza: era possível
observar suas partes, controlar e reproduzir os acontecimentos naturais. Nascia o modelo de
conhecimento por reconstrução: um “aprender fazendo”. Considerando a Natureza como se ela
fosse uma máquina, esse modelo ficou conhecido como mecanicismo ou visão mecanicista. Com a
Revolução Industrial, no século XVIII, o modelo mecanicista se impôs definitivamente. O ser
humano passava a ser entendido como o operador da grande máquina da Natureza, descolando-se
dela e encarando-a como uma grande reserva de materiais destinados às suas necessidades.
Não há dúvida de que esse modelo de conhecimento trouxe ganhos consideráveis para a melhoria
da vida na Terra. A tecnologia e seus benefícios estão aí para serem desfrutados com tudo o que
têm de bom. No entanto, é também verdade que o fato de o ser humano se entender como
“operador” da máquina natural teve consequências também negativas. Basta observar os
problemas ecológicos provocados pela corrida do desenvolvimento e do consumo.
Foi um filósofo alemão cujo pensamento se formou em dois momentos: uma crítica ao pensamento
ocidental sobre o ser e um convite à superação do próprio pensamento. Embora tenha simpatizado
com o nacional-socialismo alemão, tornou-se um forte crítico dessa ideologia. Obras mais
conhecidas: Ser e Tempo e Carta sobre o humanismo.
Na Atualidade, pensadores, cientistas, ecologistas e outros agentes culturais têm chamado a atenção
para a necessidade de superar a metáfora da Natureza-máquina. Nessa direção vai o trabalho do
biólogo e bioquímico inglês Rupert Sheldrake (1942-), que põe em questão o núcleo mesmo da
metáfora mecanicista: a crença de que a Natureza obedece a leis imutáveis.
No livro Ciência sem dogmas (cujo título original é The Science Delusion: Freeing the Spirit of
Enquiry), Sheldrake insiste em um dado bastante simples, porém desestabilizador da crença em leis
naturais imutáveis: é verdade que a Ciência opera com constantes, quer dizer, medidas que não
variam (ou variam pouco) e que servem para exprimir acontecimentos naturais; porém, é também
verdade que a própria Ciência altera essas constantes de tempos em tempos, quando comitês
internacionais de especialistas, em vários pontos do planeta, percebem a necessidade de adequar as
constantes a mudanças naturais. Ora, se há mudanças naturais significativas a ponto de os
especialistas solicitarem a revisão das constantes, então as leis da Natureza não são fixas nem
imutáveis. Há provas de variações mesmo em acontecimentos
Página 236
Seria, então, a Natureza um grande organismo, como um corpo vivo? Talvez. Mas o que interessa
realmente de um ponto de vista filosófico não é simplesmente trocar uma metáfora por outra, e sim
analisar, em primeiro lugar, as razões oferecidas para justificar tais metáforas. Um dado cultural de
grande relevância para tal análise é também levantado por Sheldrake em seu livro: muitos
cientistas e pensadores já deixaram de crer no mecanicismo; contudo, não podem adotar outro
modelo ou ainda lhes falta coragem para fazê-lo, porque se encontram profissionalmente
submetidos às exigências de industriais, comerciantes, investidores e políticos que financiam partes
importantes das pesquisas. Para que o lucro desses grupos continue a existir, interessa manter a
imagem da Natureza como máquina e como simples reserva de material para o consumo humano.
EXERCÍCIO B
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 476
1. Defina o mecanicismo.
3. Justifique a resposta dada ao exercício anterior e explique por que as outras alternativas lhe
parecem falsas.
4. Além dos problemas sociais e ecológicos, haveria dificuldades teóricas que indicassem a
incoerência do mecanicismo?
3 A Cultura
O olhar que faz ver a Natureza como morada dos seres e, portanto, também como modo de ser
humano não anula a diferença humana com relação aos outros seres.
Uma forma de apontar para a diferença humana é o conceito de Cultura. Esse termo foi tomado do
vocabulário cotidiano, com o sentido básico de cultivo: assim como se cultiva a terra, assim também
o ser humano é capaz de cultivar a si mesmo e desenvolver as capacidades dadas pela Natureza.
Tudo indica que o primeiro autor a usar o termo Cultura, transpondo-o do vocabulário comum para
o vocabulário científico-filosófico, foi o antropólogo inglês Edward Burnett Tylor (1832-1917), que
descrevia a Cultura como o conjunto dos conhecimentos, crenças, arte, Direito, moral, enfim, dos
costumes e habilidades que o ser humano adquire como membro de uma sociedade.
A marca dessa definição é clara: o ser humano aprende e produz Cultura ao conviver com outros
seres humanos, e não apenas seguindo suas características “naturais” ou “animais”. Esse
aprendizado exige, portanto, educação e transmissão de informações. Não é por acaso que, aos
poucos, passou-se a usar o termo Cultura também como sinônimo de tudo o que significa um
enriquecimento intelectual, artístico e ético dos seres humanos. Há mesmo quem fale de “cultura
erudita” e “cultura popular” como forma de diferenciar práticas que exigem iniciação e treinamento
(cultura erudita) de práticas desenvolvidas no cotidiano, sem reflexão crítica sobre seus próprios
métodos (cultura popular).
Seria, então, a diferença entre os animais humanos e os animais não humanos apenas uma
diferença de grau? É muito difícil extrair essa conclusão. Na Idade Média, por exemplo, vários
autores identificaram semelhanças entre humanos e não humanos ao apontar para a capacidade de
perceber instintivamente a utilidade ou a nocividade de uma situação.
A essa capacidade, presente também nos animais não humanos, os autores medievais chamavam,
em geral, de estimativa. No entanto, eles não consideravam adequado concluir que nos animais há
uma reflexão intelectual, ou seja, a capacidade de pensar sobre si mesmo e de analisar o modo como
se dá o próprio pensamento. A reflexão intelectual vai além da simples percepção de causas e
efeitos (algo que a capacidade estimativa permite); ela é da ordem do “pensamento do pensamento”
e, como tal, leva a identificar uma diferença de qualidade entre os humanos e os não humanos.
Marcada a diferença humana, ela se torna o elemento que distingue a Cultura como modo de “ser
humanamente Natureza”. Separar rigidamente Natureza e Cultura, porém, seria uma forma de
voltar ao mecanicismo ou a certos preconceitos racionalistas (p. 193 e 336). A fim de evitar essa
volta, o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 130)
defende que, no ser humano, tudo é fabricado (cultural) e tudo é natural. Ícone: Texto filosófico
Maurice Merleau-Ponty
A mímica da cólera ou a do amor não são as mesmas para um japonês e para um ocidental. Mais
8
precisamente, a diferença das mímicas esconde uma diferença das próprias emoções. Não é apenas
o gesto que é contingente em relação à organização corporal, é a própria maneira de acolher a
9
situação e de vivê-la. O japonês encolerizado sorri; o ocidental enrubesce e bate o pé, ou então
10
empalidece e fala com uma voz sibilante . Não basta que dois sujeitos conscientes tenham os
11 12
mesmos órgãos e o mesmo sistema nervoso para que em ambos as mesmas emoções se
representem pelos mesmos signos. [...] O equipamento psicofisiológico deixa abertas múltiplas
13
possibilidades; e aqui não há mais, como no domínio dos instintos, uma natureza humana dada de
uma vez por todas. O uso que um ser humano fará de seu corpo é transcendente em relação a esse 14
corpo enquanto ser simplesmente biológico. Gritar na cólera ou abraçar no amor não é mais natural
ou menos convencional do que chamar uma mesa de mesa. Os sentimentos e as condutas passionais
são inventados, assim como as palavras. Mesmo aqueles sentimentos que, como a paternidade,
parecem inscritos no corpo humano são, na realidade, instituições. É impossível sobrepor, no ser
humano, uma primeira camada de comportamentos que chamaríamos de “naturais” e um mundo
cultural ou espiritual fabricado. No ser humano, tudo é natural e tudo é fabricado.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Tradução Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes,
1999. p. 256-257.
Ícone: Glossário 8 Mímica: expressão de pensamentos, sentimentos e emoções por meio de gestos.
9 Contingente: variável.
12 Sibilante: que lembra um assovio; voz fraca que é emitida como se resultasse de um atrito.
14 Transcendente: algo que supera outro, que vai além (p. 80 e 339).
REPRODUÇÃO/METROPOLITAN MUSEUM OF ART, NOVA YORK, EUA
À esquerda: Rembrandt (1606-1669), Autorretrato, 1660, óleo sobre tela. À direita: Henri Rousseau,
Autorretrato, 1890. O autorretrato de Rembrandt é considerado pelos estudiosos uma obra da cultura erudita,
enquanto o de Henri Rousseau seria uma obra de cultura popular e mesmo ingênua (art naïf). A diferença está
no fato de que o autorretrato de Rembrant não é apenas um retrato de si mesmo, mas envolve uma reflexão
consciente sobre o próprio fazer artístico.
Página 238
De uma perspectiva bastante semelhante, Pierre Sanchis (1928-), antropólogo e sociólogo francês
radicado no Brasil, resume o conceito de Cultura como o modo próprio de ser humano, e não mais
como aquilo que separa o ser humano da Natureza. Ícone: Texto filosófico
Pierre Sanchis
O que é a Cultura? É exatamente isso que faz com que o grupo seja grupo “de gente”. Que homens e
mulheres sejam gente, quer dizer, precisamente, seres humanos. Um ser universal, então, com a
mesma “Cultura” para todos? Não. Esse universal seria um universal modulado , que define a 15
maneira particular de exercer a qualidade humana. Cultura será, então, essa maneira de ser
humano de certo jeito, de certo modo, essa maneira particular de encarnar a Humanidade. Hoje, a
Etologia é mais complexa e reconhece traços de Cultura também no mundo animal. Mas,
globalmente falando, [...] o animal nasce apetrechado com tudo aquilo de que precisa. A abelha
16
nasce sabendo fazer tudo o que ela faz, por mais sofisticado que seja; ela não passa propriamente
por um processo de aprendizagem e de aperfeiçoamento. O ser humano não nasce feito, mas
propenso , dotado de uma potencialidade. Num meio social criativo, esse meio o leva, como
17
indivíduo, “até lá”, e, como indivíduo, “além de lá”. Leva-o, ainda, como membro de grupos
múltiplos, em direções e para resultados diferentes.
SANCHIS, Pierre. O “som Brasil”: uma realidade sincrética? In: MASSIMI, Marina. (Org.). Psicologia, Cultura e História: perspectivas em
diálogo. Rio de Janeiro: Outras Letras, 2012. p. 20.
THE J. PAUL GETTY MUSEUM, LOS ANGELES, EUA © RUDNITSKY, EMMANUEL/ AUTVIS, BRASIL, 2016.
Man Ray (1890-1976), Preta e Branca, 1926, e Preta e Branca (variações), 1926.
A Antropologia também chama a atenção para um dado de forte significação filosófica: em geral,
quem reflete sobre os diferentes grupos humanos tem a tendência de valorizar sua cultura e de
avaliar as outras com base na sua própria. A essa prática se denomina etnocentrismo; e contra ela,
antropólogos, sociólogos, historiadores e filósofos passaram a defender a ideia de relativismo
cultural, quer dizer, a valorização de cada cultura pelo que ela é, independentemente da
comparação com outras. Além disso, constata-se que as culturas são abertas e podem influenciar-se
mutuamente, dando origem a novas formas culturais ou mesmo preservando-se diante do contato.
O fotógrafo norte-americano Man Ray (1890- 1976) exprimiu de maneira artística essa mudança de
visão da Cultura. Fotografando máscaras e estatuetas africanas, Man Ray mostrava que, em sua
época, essas obras eram tomadas apenas para divulgação, como se fossem simplesmente peças de
“outros povos”, sem nenhuma contribuição de sentido para as sociedades que as contemplavam
(interesse etnocêntrico). Man Ray fez, então, fotografias nas quais há uma interação direta entre
peças africanas e imagens tipicamente norte-americanas. É o caso das fotos Preta e Branca e Preta e
Branca (variações) (p. 238) ambas de 1926, nas quais as máscaras deixam de ser meros objetos
decorativos e passam a ter vida, produzindo sentido ao solicitar uma resposta de quem as
contempla.
EXERCÍCIO C
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 477
1. Diferencie Natureza e Cultura com base na necessidade humana de aprendizado. Você pode
se inspirar no texto de Pierre Sanchis.
3. A continuidade entre Natureza e Cultura anula a diferença entre animais humanos e animais
não humanos?
4. Com base na continuidade entre Natureza e Cultura, analise as frases seguintes e argumente
se você concorda com elas ou discorda delas: “Todo brasileiro ama futebol”; “Italiano fala com
as mãos”; “Brasileiros e argentinos não se gostam”.
4 A pessoa
Precisamente para entender os seres humanos em função de seu modo próprio de ser, muitos
filósofos empregaram o termo pessoa para significar que, se os seres humanos já se distinguem
entre os animais, também os indivíduos humanos se distinguem entre si no interior da espécie
humana.
Indivíduo é todo membro de uma espécie; portanto, cada mineral, cada planta e cada animal
irracional é um indivíduo. Quando, porém, analisam-se os seres humanos, vê-se que eles não são
meros indivíduos dentro da espécie humana, porque eles se mostram capazes de viver de modo
inteiramente singular aquilo que recebem da espécie. Cada indivíduo humano tem um modo único
de ser, dando uma coloração própria aos condicionamentos físicos, biológicos e sociais de seu
grupo. O conceito de pessoa indica, então, o indivíduo humano como um ser singular que
concretiza, de modo irrepetível , tudo aquilo que tem em comum com seus companheiros de
18
espécie.
Agostinho concluía que, se esses atos humanos ocorrem, então é legítimo pensar que eles nascem
de possibilidades inscritas nos próprios humanos. Por conseguinte, é preciso também supor que a
constituição do ser humano é mais complexa do que a dos outros seres (dotados de menos
possibilidades). Agostinho descreve, então, a constituição humana, identificando corpo (existência
material, dado comum a todos os seres naturais), alma (vitalidade, dado comum aos seres vivos) e
espírito (pensamento e escolha refletida, dado exclusivo do ser humano).
A noção de alma visa marcar a diferença entre minerais e seres vivos. Ela é a vitalidade responsável
por nutrir as plantas (alma vegetativa), nutrir também os animais e permitir que eles tenham
sensações e emoções (alma sensitiva), bem como nutrir os humanos, permitir que eles tenham
sensações e emoções, além
Página 240
Os filósofos gregos e romanos já haviam nomeado a vitalidade dos seres vivos com o termo alma
(psique, em grego; anima, em latim). Na raiz dessa palavra está a ideia de movimento, vento, sopro.
Quer dizer, dinamismo, vida.
A base da reflexão sobre a alma, no entanto, é a observação de diferentes atos nos diferentes seres.
Especificamente no caso dos seres humanos, seus atos revelam uma complexidade não observada
no restante. Daí Agostinho concluir que, ao se chamar de alma a vitalidade que anima os corpos, a
alma humana tem três funções: a vegetabilidade (nutrição, doação de vida), a sensibilidade
(percepção por meio dos cinco sentidos) e a racionalidade (capacidade de refletir e escolher). À
terceira função, exclusivamente humana, ele também chamava espírito.
alma espiritual
ALMA SENSITIVA
ALMA VEGETATIVA
nutrição
sensibilidade
razão e vontade
Agostinho de Hipona
Estou convencido de que a alma é incorpórea , mesmo se é difícil convencer os mais resistentes. [...]
19
Se todas as substâncias ou essências – ou aquilo que se diz ser [existir] de algum modo por si
20
mesmo – fossem corpo, então a alma também seria um corpo. Ainda, se chamássemos de
incorpóreo apenas aquilo que é perfeitamente imutável e que se encontra inteiramente por toda
21
parte, então a alma seria um corpo [ela não seria incorpórea], pois a alma não é dessa maneira
[perfeitamente imutável e inteiramente em toda parte]. Mas, por outro lado, se um corpo é aquilo
que se situa ou se move em um local do espaço, com algum comprimento, alguma largura e alguma
altura, de modo que uma parte maior ocupa um lugar também maior, enquanto uma parte menor
ocupa um lugar também menor, então a alma não é corpo [pois ela não ocupa o espaço assim como
o corpo o ocupa]. A alma não está no corpo que ela anima como se ela se espalhasse em um local;
ela se irradia pelo corpo como certa tensão vital.
AGOSTINHO DE HIPONA. Epistola 166. Disponível em: <www.augus tinus.it/latino>. Acesso em: 29 set. 2015. (Carta 166. Tradução
nossa.)
Acesse:
20Substâncias ou essências: Agostinho toma essas palavras no significado de tudo o que existe. Para outros
significados, ver p. 22-23.
Note que Agostinho concentra-se nas funções da alma. O ser humano não tem “três almas”. Por sua
vez, as funções da alma só podem ser descritas a partir de seus efeitos e de um contraponto com
aqueles observados nos outros seres vivos, uma vez que, não sendo material, ela não pode ser
captada pelos cinco sentidos.
Tudo o que se fala sobre a alma é, portanto, aproximativo e indireto, assim como se fala do Sol com
base nos efeitos vividos na Terra e sem que jamais alguém tenha ido até ele. Agostinho sabia, por
isso, que as pessoas têm a tendência a “imaginar” a alma, ou seja, pensá-la com base em imagens,
uma vez que todos os conteúdos de pensamento são formados com alguma referência ao que é
percebido por meio dos cinco sentidos. Ele sabia também que esse esforço de imaginação leva a
representar a alma como um “fantasma” aprisionado dentro de um corpo. Assim, para contrariar
essa imagem, Agostinho propõe uma outra: a alma é como uma tensão (assim como a tensão
elétrica em um fio ou como o retesamento da corda de um instrumento musical). Retesar uma
corda musical significa esticá-la até o grau em que ela pode produzir o som para o qual foi feita.
Uma corda de violão frouxa não emitirá o seu som próprio; em vez disso, quando é esticada no grau
certo, ela se torna realmente aquilo que ela pode ser, ou seja, uma verdadeira corda de violão. A
alma seria para o corpo aquilo que o retesamento é para a corda de violão. O retesamento não é
uma “coisa” que entra na corda, não é uma parte dela, mas é a força que
Página 241
lhe permite vibrar e emitir sua nota específica. Assim também a alma seria o “retesamento” do
corpo, a “força” que lhe permite desempenhar suas funções. A diferença básica da alma, entretanto,
está no fato de sua “força” brotar dela mesma, sem vir de fora, como é o caso do retesamento da
corda de violão. Ícone: Texto filosófico
Da perspectiva da imagem agostiniana, a relação entre a alma e o corpo não seria a de um dualismo,
ou seja, de dois elementos separados e independentes que precisam encontrar um ponto de união.
Mais do que isso, é uma relação de copertencimento (um pertence ao outro e um habita o outro). Há
uma dualidade (alma e corpo não se confundem, como revelou a contraposição dos seres), mas o
ser humano mostra-se unitário: cada indivíduo é uma unidade harmonicamente formada por dois
componentes que não existem separadamente. A fim de apontar para a complexidade que constitui
o ser humano (revelada por seus atos), Agostinho empregou o termo pessoa.
No pensamento contemporâneo, a clássica distinção entre corpo e alma tem sido tratada,
especificamente no caso dos seres humanos, como uma diferença entre corpo e mente ou entre
corpo e consciência. Alguns filósofos, porém, defendem que, além de não fazer mais sentido usar a
noção de alma (pois a consideram uma ilusão que não pode ser observada pelos cinco sentidos), a
própria mente ou consciência não passariam de operações inteiramente físicas. Elas seriam
qualidades do corpo; não se distinguiriam dele senão como a diferença existente entre quem corre
e o seu ato de correr. Nessa direção vai, por exemplo, o trabalho de John R. Searle (1932-), pensador
norte-americano e autor das obras A redescoberta da mente e Intencionalidade, dois dos mais
frutuosos trabalhos sobre o tema. No entender de Searle, a consciência ou a mente é um mero
processo biológico. Quando a Ciência explicar de modo integral o funcionamento do cérebro,
deixará claro o processo da consciência. Junto com a consciência, será explicado como o ser humano
produz a realidade social e a Cultura, tornando desnecessário pensar em alma ou espírito.
(1) não é adequado fazer teorias sobre a consciência em geral, uma vez que cada pessoa só tem
acesso à sua própria consciência; esse fato é de extrema importância, pois, mesmo quando é
possível medir as reações conscientes de alguém (por meio de aparelhos, da reação a estímulos
externos etc.), nada garante rigorosamente que não há nenhuma consciência em quem parece estar
inconsciente; só é possível falar de consciência em primeira pessoa;
(2) explicar a base físico-química da consciência (o corpo em geral ou apenas o cérebro) não
justifica afirmar que a consciência é um mero processo químico-físico nem concluir que a base
físico-química é a causa da consciência. Como se dizia na Idade Média, o fato de o fogo ocorrer na
madeira não permite dizer que o fogo é a madeira.
EXERCÍCIO D
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 477
1. Qual a diferença entre o conceito de pessoa e o de indivíduo?
4. Explique a metáfora agostiniana da alma como tensão vital do corpo, servindo-se do exemplo
da corda de um instrumento musical.
Página 242
5 O cerne da pessoa
A filósofa judia-alemã Edith Stein (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 132), que muito se
inspirou no pensamento de Agostinho, chamou ainda a atenção para o fato de que, assim como os
seres humanos destacam-se entre as espécies animais, assim também cada indivíduo humano ou
cada pessoa se destaca no interior da espécie humana, porque o seu modo de concretizar a espécie
é inteiramente seu, não se repetindo em mais ninguém.
Adotando o vocabulário clássico que se referia à diferença entre corpo e alma, Edith Stein também
considerava o ser humano como ser psicofisiológico (como fez Merleau-Ponty depois dela) e
buscava saber se o modo como cada pessoa vive sua corporalidade, sua vitalidade e sua
racionalidade/espiritualidade é inteiramente condicionado pelo modo biológico de ser da espécie.
O cerne da alma
Edith Stein
Neste momento reflito sobre um problema; ao mesmo tempo, ouço um barulho vindo da rua e vejo
a folha de papel que se encontra diante de mim; vejo também minha mesa e outras coisas ao meu
redor. Mas me concentro no problema. Aquilo que vejo e ouço passa por mim e me toca apenas de
modo periférico. Em sentido próprio, eu estou virada para o problema; estou perante ele e o encaro
com meu olhar espiritual. Pode haver em mim ainda outras coisas às quais não quero dar lugar,
para as quais não quero me virar e às quais impeço de virem à tona. Por exemplo, uma preocupação
ou uma inquietação. A preocupação está aí; sou consciente dela e pode ser mesmo o caso de que ela
tenha surgido já há algum tempo. Mas, neste momento, ela está “embaixo” de tudo o que se passa na
superfície; ela se encontra no “fundo da minha alma”. Continuo fixada em meu problema e não
naquilo que vejo ou ouço. Essa situação espiritual tem um paralelo no mundo exterior, pois, assim
como o olho só pode ver uma pequena parte de seu campo visual e assim como o restante desse
campo só o afeta secundariamente, assim também há um campo de visão espiritual formado, de um
lado, por uma atenção que delimita seu próprio foco e, de outro, por uma percepção periférica. [...]
A atenção “central” e a percepção “periférica”, ambas praticadas pelo “eu”, são modos de
consciência diferentes. [...] O mais importante, aqui, é o contraste entre “superfície” e
“profundidade”. [...] Na alma, tenho meu “lar” de modo muito diferente como tenho meu “lar” em
meu corpo. [...] No “espaço” da alma, há um lugar próprio do “eu”, lugar de sua intimidade, que ele
deve procurar até encontrar e para onde deve voltar a cada vez que daí for tirado. É o ponto mais
profundo da alma. [...] É somente a partir desse ponto que ela pode tomar decisões sérias,
comprometer-se com algum ideal, entregar-se e se dar. São todos atos da pessoa. Sou eu que tomo
decisões e me comprometo. É um “eu” pessoal.
STEIN, Edith. Der Aufbau der menschlichen Person. Texto crítico da Editora Herder. Disponível em: <http:// www.edith-stein-
archiv.de/ beispielseite/>. Acesso em: 17 set. 2015. (Estrutura da pessoa humana VI, II, b. Tradução nossa.)
Acesse:
Edith Stein responderá negativamente, pois, segundo sua análise, apenas um indivíduo preciso
pode ter o sentimento de que é singular e desejar ser reconhecido como tal. O caso dos gêmeos
idênticos ou univitelinos é um exemplo extremo e bastante esclarecedor aqui, pois eles possuem
22
estrutura biológica praticamente idêntica e recebem os mesmos valores culturais (pois nascem da
mesma família). No entanto, não possuem o mesmo modo de ser; cada um tem seu modo único de
sentir o mundo e de pensar.
Ícone: Glossário 22 Univitelino: cada gêmeo gerado de um mesmo óvulo.
Edith Stein, então, depois de observar que cada indivíduo realiza a espécie humana de um modo
único e irrepetível, concluía que o modo único de ser não decorre da matéria de que é feito o corpo,
Página 243
pois a matéria é comum com os outros membros da espécie, chegando a ser idêntica em alguns
casos. Esse modo só pode decorrer da vitalidade ou da alma. Mas se a alma, porém, do ponto de
vista de suas possibilidades ou capacidades, é idêntica para todos, Edith Stein aponta a
singularidade de cada indivíduo defendendo haver em todo indivíduo um cerne ou um “fundo” de
“onde” nasce a irradiação do ser singular de cada pessoa. É o que Edith Stein, retomando uma longa
tradição filosófica, chama de cerne da alma, núcleo da pessoa e alma da alma. Trata-se de um
recanto íntimo e “sagrado”, no qual só o indivíduo pode entrar; “lugar” onde a pessoa se “sente em
casa”.
Edith Stein, tanto como Agostinho, serve-se de metáforas espaciais para falar do cerne da alma,
porque ela sabe que o pensamento se apoia em dados físicos e imaginados. Todavia, ela queria
apontar para uma experiência que não se condiciona pela espacialidade, a experiência de se sentir
companheiro de jornada com outros membros da mesma espécie e, ao mesmo tempo, um ser
singular, o único capaz de saber realmente o que sente e o que pensa.
O tema do cerne da pessoa humana é muito antigo na História da Filosofia. Na Idade Média, a
pensadora, pintora, musicista, médica e filósofa Hildegarda de Bingen (1098-1179) afirmava que tal
cerne era o coração, órgão vital de que dependem todos os outros. Hoje, o coração é visto apenas
como o músculo cardíaco e, no máximo, como metáfora das emoções e de tudo o que não pertence à
razão. Para Hildegarda de Bingen, porém, o coração representava o que há de mais íntimo em cada
pessoa, o refúgio de onde ela tira as cores com que pinta seu modo individual de ser, ponto de onde
brota a canção específica da sua vida na sinfonia universal.
Hildegarda de Bingen (1098-1179), Homem universal, 1165, iluminura no manuscrito do Liber divinorum
operorum (Livro das obras divinas). Hildegarda de Bingen foi uma das primeiras artistas a desenhar o ser
humano como cerne do Universo. Por sua vez, cada ser humano teria seu próprio cerne, o coração. No entanto,
Hildegarda não pinta o músculo cardíaco; o cerne físico não era o cerne pessoal. O coração de cada pessoa não
“está” em parte alguma; está no corpo inteiro, pois não é uma “coisa”, mas o modo como cada pessoa vive sua
humanidade.
EXERCÍCIO E
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 478
1. O que significa o cerne da alma, de acordo com o pensamento da filósofa Edith Stein?
2. Por que se pode dizer que Hildegarda de Bingen, em Homem universal, pintou o coração
humano sem ter pintado o músculo cardíaco?
Página 244
EXERCÍCIO COMPLEMENTAR
Componha uma dissertação livre sobre o tema da concorrência e um de seus mais perigosos efeitos,
o individualismo (atitude de considerar excessivamente os indivíduos como centro da vida social,
perdendo de vista a importância dos grupos). Em algum momento de sua redação, introduza o
seguinte dado (concordando com ele ou discordando dele): o individualismo parece prejudicar cada
vez mais os esportes de grupo (como o futebol ou o voleibol), pois certos atletas se esforçam para
ter destaque individualmente, mesmo que isso prejudique seu time.
Ícone: Dica de filmes Dicas de filmes para você assistir tendo em mente o que trabalhamos
neste capítulo
Victor foi encontrado na região francesa do Aveyron, em 1800, quando tinha 10 anos de idade. Acreditava-se
que ele tivesse vivido sempre na floresta. O Dr. Jean Itard conseguiu instruí-lo para a vida urbana e ele foi
confiado a uma senhora durante 17 anos. Hoje se sabe que Victor não viveu sempre isolado da civilização, mas,
por não se adaptar aos padrões civilizados, acabava sempre sofrendo violência e fugindo. O cineasta François
Truffaut o representou como “garoto selvagem”, segundo o modo como o século XIX o via.
O enigma de Kaspar Hauser (Jeder für sich und Gott gegen alle), direção Werner Herzog, Alemanha, 1974.
Kaspar Hauser nasceu e foi isolado por 15 anos em uma masmorra, não aprendendo nenhum idioma nem
tendo contato humano. Certo dia foi deixado numa praça de Nuremberg (Alemanha) e viveu com diferentes
famílias. Aprendeu a falar, mas não conseguia distinguir o sonho da realidade, distinção que requeria
aprendizado. O título em alemão, “Cada um por si e Deus contra todos”, é uma forma de apontar para o destino
de Kaspar...
Alive Inside (Vivo por dentro), direção Michael Rossato-Bennett, EUA, 2014.
Documentário sobre as reações de idosos à música. Considerados portadores de doenças cerebrais (Mal de
Alzheimer, por exemplo), os idosos observados não reagiam a nenhum estímulo e simplesmente não se
lembravam de sua história. Algumas músicas específicas, porém, reavivavam a memória deles, tirando-os do
aprisionamento em si mesmos. Narram-se ainda os casos surpreendentes das senhoras Norman e Mary Lou,
que por vários anos tiveram uma vida saudável sendo apenas estimuladas pela música, sem medicamentos.
Um antropólogo em Marte, de Oliver Sacks, tradução Bernardo Carvalho, Companhia das Letras, 2006.
Livro que mescla biografias com literatura científica, escrito em estilo acessível para narrar histórias de
pessoas que sofreram acidentes com danos cerebrais ou que possuíam deformações no cérebro e cujo
organismo se readaptou, permitindo uma vida inteiramente “normal”.
José de Alencar explora o modo como as barreiras sociais impediram os impulsos naturais do amor entre
Ricardo, advogado
Página 245
sem riqueza, e Guida, moça da corte brasileira e educada segundo os padrões europeus. Merece destaque o
prefácio, intitulado “Bênção paterna”, no qual o autor registra sua compreensão da relação entre Natureza e
Cultura e propõe uma das primeiras interpretações para a “cultura brasileira”.
O francês François Rabelais (1494-1553) foi um dos primeiros escritores a introduzir na literatura o tema da
Cultura e das relações sociais como fonte de costumes. Principalmente em Gargântua, Rabelais denuncia a
decadência de crenças e hábitos de sua época, chegando a ser considerado obsceno por valorizar os instintos.
Na natureza selvagem, de Jon Krakauer, tradução Pedro Maia Soares, Companhia das Letras, 1998.
História do jovem norte-americano Chris Mc-Candless, que termina a faculdade e, em vez de realizar os sonhos
profissionais nutridos por seus pais, decide doar seu dinheiro, adotar outro nome e viver na estrada até chegar
ao Alasca. O livro foi transformado em filme, com o mesmo nome (direção Sean Penn, 2008).
Ensaio sobre o homem, de Ernst Cassirer, tradução Tomás Rosa Bueno, WMF Martins Fontes, 2012.
Reflexão filosófica sobre o ser humano, considerado da perspectiva de sua capacidade de produzir sentido.
Cassirer explora, entre outros temas, a produção científica, artística, ética e religiosa.
Consciência e memória, de Débora Morato Pinto, WMF Martins Fontes, 2013 (Coleção Filosofias: o prazer do
pensar).
A autora analisa o modo como o tema da consciência, a partir da Modernidade, é entendido, em geral, como
rememoração. Passa por autores clássicos e termina com um estudo sobre Henri Bergson, que associava a
memória à vida, sem opô-las à matéria.
Filosofia da Natureza, de Márcia Gonçalves, Zahar, 2006.
Apresentação da filosofia da Natureza como estudo que tem raízes na Grécia Antiga e chega ao ápice no século
XIX. O livro pretende também despertar uma reflexão ecológica.
A mente desconhecida: por que a Ciência não consegue replicar, medicar e explicar o cérebro humano, de
John Horgan, tradução Laura Teixeira Motta, Companhia das Letras, 2002.
O autor analisa diferentes linhas e temas das Neurociências e da Psicanálise, chegando à desconcertante
conclusão de que os seres humanos estão longe de decifrar a mente humana.
Acesse:
“Livre-arbítrio, determinismo e responsabilidade moral”, artigo de Howard Kahane, tradução Álvaro Nunes,
disponível em: <http://criticanarede. com/hkahanelivre-arbitriodeterminismo.html>. Acesso em: 1 out. 2015.
O texto reconstrói de maneira didática e clara argumentos favoráveis e contrários à afirmação da existência da
liberdade, do determinismo e da responsabilidade moral.
Acesse:
“Direitos dos animais e erros dos humanos”, artigo de Hugh LaFollette, tradução Miguel Moutinho, disponível
em: <http://criticana rede.com/hlafollette direitosdosanimaiseerrosdoshumanos. html>. Acesso em: 1 out. 2015.
Apresentação e análise do tema dos direitos dos animais e sua relação com erros humanos. É uma forma
prática e provocativa de abordar a relação entre Natureza e Cultura.
Acesse:
“Como é ser um morcego?”, artigo claro e bem-humorado de Thomas Nagel, disponível em:
<http://www.cle.unicamp.br/cadernos/ pdf/Paulo%20Abran tes%28Traducao%29.pdf>. Acesso em: 1 out. 2015.
Texto de um dos mais importantes filósofos da mente na Atualidade, publicado nos Cadernos de História e
Filosofia da Ciência, tradução Paulo Abrantes e Juliana Orione, Campinas (Unicamp), série 3, v. 15, p. 245-262,
2005.
BRUNO SANTOS/FOLHAPRESS
À esquerda: escola Fernão Dias Paes, em São Paulo (SP), ocupada por estudantes, em 2015. À direita: cantor
Chico César reúne-se com estudantes da escola Fernão Dias Paes, em 22 nov. 2015.
V ocê provavelmente já deve ter observado que muitas pessoas só se envolvem com assuntos
políticos em época de eleições.
Quando perguntamos a elas as razões desse comportamento, as respostas costumam ser: “Não
gosto de Política!”, ou “A Política não tem nada que ver com as pessoas comuns...”, ou ainda “Os
políticos são todos corruptos”.
De fato, nosso país vive algo curioso: embora a população brasileira seja numerosa, poucos são os
cidadãos que acompanham os assuntos políticos. Grande parte sente-se decepcionada e mesmo
enganada pelos políticos. As más ações de alguns representantes levam ao pessimismo; e o modo
como algumas redes de televisão e rádio tratam a Política apenas faz crer que ela é assunto de gente
mal-intencionada.
No entanto, também é inegável que esse cenário tem mudado. Depois dos anos de ditadura militar,
o Brasil entrou em um processo de democratização que ainda está em curso. Fatores muito
positivos puderam ser observados nas últimas décadas. Nunca houve tanta investigação e punição
de políticos corruptos. Além disso, a população começa a se engajar mais. Um exemplo evidente de
1
envolvimento e de aumento da consciência política foi dado pelo movimento de ocupação das
escolas nos estados de São Paulo e de Goiás, em 2015, por parte dos próprios estudantes.
O motivo das ocupações em São Paulo foi a proposta da Secretaria de Estado da Educação de
reorganizar as escolas por ciclos (anos iniciais e finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio)
como forma de aumentar o rendimento escolar e resolver problemas como os custos com algumas
salas que tinham poucos alunos. A reorganização levaria a fechar algumas escolas e concentrar os
estudantes em outras.
O caráter político do movimento estudantil era claro. Não se tratava de uma política de partidos,
como se o objetivo fosse enfraquecer ou derrotar o partido do governo: era uma política no sentido
próprio da palavra, uma ação que visava mostrar aos ocupantes do Poder quais eram os desejos da
população que os elegeu, solicitando que eles realmente a representassem.
Ações desse tipo permitem refletir sobre o sentido da Política, do Poder e do interesse ou
desinteresse dos cidadãos.
É visível o fato de que o interesse e o desinteresse dependem do que vive a Sociedade nos
diferentes momentos históricos. Ninguém “gosta” ou “desgosta” naturalmente de Política. O
envolvimento depende do modo como os cidadãos estão habituados. Uma forma de fazê-los
interessar-se ou desinteressar-se é relacionar a Política com a vida cotidiana. Quando os indivíduos
se sentem diretamente afetados pelas ações de seus representantes, eles costumam envolver-se; do
contrário, encaram a Política como algo alheio.
O filósofo francês Alexis de Tocqueville (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 248) dedicou-
se a entender esse fenômeno. Ícone: Texto filosófico
Alexis de Tocqueville
Os negócios gerais de um país só ocupam os cidadãos principais. Estes só se reúnem de longe em
longe, nos mesmos lugares; e, como é frequente depois disso eles se perderem de vista, não se
estabelecem entre eles vínculos duradouros . Mas, quando se trata de fazer os negócios particulares
2
de um cantão serem resolvidos pelos que nele vivem, os mesmos indivíduos estão sempre em
3
contato e, de certa forma, são forçados a se conhecer e a se habituar uns com os outros.
É difícil tirar um [indivíduo] de si mesmo para interessá-lo pelo destino de todo o Estado, porque
ele compreende mal a influência que o destino do Estado pode ter sobre sua sorte. Mas, se é
necessário fazer uma estrada passar nos limites de suas terras, ele perceberá à primeira vista que
há uma relação entre esse pequeno negócio público e seus maiores negócios privados e descobrirá,
sem que ninguém lhe mostre, o estreito vínculo que une, nesse ponto, o interesse particular ao
interesse geral.
Portanto, é encarregando os cidadãos da administração dos pequenos negócios, muito mais do que
lhes entregando o governo dos grandes, que se pode levá-los a se interessar pelo bem público e a
enxergar a necessidade que têm, sem cessar, uns dos outros para produzi-lo.
TOCQUEVILLE, Alexis de. Como os americanos combatem o individualismo por instituições livres. In: A democracia na América.
Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2004. Livro II. p. 127.
3 Cantão: região.
Para bem entender o texto de Tocqueville, há três expressões que precisam ser esclarecidas com
cuidado:
a) cidadãos principais (linha 1) – não se trata de pensar que há cidadãos mais importantes ou
melhores do que outros, mas que, no governo de um país (os negócios gerais do país), há cidadãos
que são “principais” porque têm funções de liderança na estrutura do governo;
Página 248
b) Estado (linha 8) – esse termo pode significar, em língua portuguesa, o estado de algo (por
exemplo, a água e seus estados físicos; o estado civil de alguém), o estado que faz parte da
federação, quer dizer, do país (por exemplo, o estado do Amazonas, o estado do Piauí etc.), e ainda o
Estado ou o próprio país (o Brasil como um Estado independente entre os outros Estados ou
países). Tocqueville usa o termo, nesse texto, como sinônimo de país;
c) bem público (linhas 16 e 17) – essa expressão significa o bem de todos cidadãos, incluindo não
apenas os interesses particulares, mas também os gerais. Como o bem público é construído pelos
cidadãos quando participam do governo (administração), pode-se concluir que a construção do
bem público, segundo Tocqueville, é o objetivo da Política.
Uma vez esclarecido o vocabulário de Tocqueville, pode-se perguntar: Qual a ideia central do seu
texto?
Relendo o texto, percebe-se que todas as afirmações nele feitas têm o objetivo de justificar a
afirmação que está no final (a conclusão). Por isso, aquilo que é registrado no final é chamado de
ideia central ou tese do texto. Não é central porque está nas linhas da metade do texto, mas porque
tudo converge para ela.
A ideia central, portanto, é: para fazer que os cidadãos se interessem pela construção do bem público
(pela Política, segundo Tocqueville), é preciso encarregá-los da administração de pequenos negócios
(linhas 14 a 17).
1) quando os indivíduos cuidam dos interesses de sua região, são levados a se conhecer e a se
habituar entre si (linhas 3 a 6);
2) os indivíduos não costumam ver como os assuntos gerais do Estado (país) têm relação direta
com eles, mas apenas quando esses assuntos gerais tocam em seus interesses privados, particulares
(linhas 7 a 13).
Essas ideias permitem entender a recomendação de Tocqueville: não adianta falar da Política em
geral ou dos assuntos gerais de um país, esperando que as pessoas se interessem e se envolvam. É
preciso fazê-las participar dos debates sobre os assuntos mais imediatos de sua região (bairro e
cidade, por exemplo), pois somente assim elas verão que suas vidas estão relacionadas aos assuntos
locais e aos assuntos gerais do país.
Os tempos de hoje são muito diferentes dos de Tocqueville. No século XIX, quando ele escreveu, não
havia a facilidade atual da circulação de informações. Era, portanto, mais difícil para os cidadãos ter
consciência dos assuntos gerais. Atualmente, pode-se saber em minutos se as decisões dos
governantes afetarão ou não os interesses particulares de cada um. No entanto, o princípio
defendido por Tocqueville continua válido: os cidadãos só se interessam pela Política ao observar
que ela interfere em seus interesses. Na contrapartida, para causar o desinteresse, a melhor
estratégia é impedir que as pessoas se encontrem e convivam, gerando a impressão de que a
Política é algo distante de suas vidas.
Alexis de Tocqueville (1805-1859)
Foi um filósofo político, historiador e escritor francês defensor da liberdade e da democracia. Suas
análises da Revolução Francesa e da democracia norte-americana ficaram célebres e contribuíram
para o desenvolvimento da teoria da democracia moderna. Obras mais conhecidas: A democracia na
América e O Antigo Regime e a Revolução.
EXERCÍCIO A
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 483
1. Resuma em poucas linhas o texto de Tocqueville, iniciando pela ideia central e dando em
seguida as justificativas para ela. Você deverá, portanto, seguir a ordem inversa daquela em
que o texto foi redigido. Use duas conjunções em seu resumo: porque e visto que.
2. Pesquise e indique pelo menos duas organizações em seu bairro que trabalham pelos
interesses locais.
3. Pesquise se sua escola tem um Grêmio Estudantil. Se tem, reflita se você está a par das
atividades do Grêmio. Se você nunca se inteirou sobre ele, pense no porquê de seu
desinteresse. Caso sua escola não tenha um Grêmio Estudantil, que tal começar um? No site
Mundo Jovem, mantido pela PUC-RS, você pode encontrar todas as informações necessárias
para sua criação: <http://www.mundojovem. com.br/gremio-estudantil>. (Acesso em: 13 jan.
2016.)
Acesse:
Página 249
Passo 1 O grupo que pretende formar o grêmio comunica à direção da escola, divulga a proposta
entre os alunos, convidando os interessados e os representantes de classe (se houver) para formar
a Comissão Pró-Grêmio. Este grupo elabora uma proposta de estatuto que será discutida e
aprovada pela Assembleia Geral.
Passo 2 A Comissão Pró-Grêmio convoca todos os alunos da escola para participar da Assembleia
Geral. Nesta reunião, decide-se o nome do grêmio, o período de campanhas das chapas, a data das
eleições e se aprova o Estatuto do Grêmio. Nessa reunião também são definidos os membros da
Comissão Eleitoral.
Passo 3 Os alunos se reúnem e formam as chapas que concorrerão à eleição. Eles devem apresentar
suas ideias e propostas para o ano de gestão no Grêmio Estudantil. A Comissão Eleitoral promove
debates entre as chapas, abertos a todos os alunos.
Passo 4 A Comissão Eleitoral organiza a eleição (o voto é secreto). A contagem é feita pelos
representantes de classe, acompanhados de dois representantes de cada chapa e, eventualmente,
dos coordenadores pedagógicos da escola. No final da apuração, a Comissão Pró-Grêmio deve fazer
uma Ata de Eleição para divulgar os resultados.
Passo 5 A comissão Pró-Grêmio envia uma cópia da Ata de Eleição e do Estatuto para a direção da
escola e organiza a cerimônia de posse da diretoria do Grêmio.
Acesse o site da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES) e consulte modelos de documentos
relacionados ao Grêmio Estudantil, principalmente estatutos e atas: <http://ubes.org.br/gremios>.
Acesse:
Página 250
A generalização apressada consiste em fazer uma afirmação sobre um grupo inteiro tomando
como base apenas uma pequena amostra desse grupo. Por exemplo, depois de observar que no
bairro x há casos de violência, é uma generalização apressada concluir que “No bairro x, as pessoas
são violentas”. Ou, depois de observar que no bairro y há casos de amizade, concluir que “No bairro
y, as pessoas são amigas”.
Para mostrar o erro dessas generalizações, basta encontrar uma pessoa não violenta no bairro
chamado de violento e uma pessoa não amigável no bairro considerado amigável.
Um caso claro de generalização apressada vem do uso de pesquisas de opinião pública. Em 2015,
por exemplo, vários órgãos entrevistaram grupos de 2 mil a 3 mil brasileiros a respeito da redução
da maioridade penal (reduzir a idade de 18 a 16 anos para fins de responsabilização por crimes). As
respostas variavam e o resultado final ficou em torno de 80% dos entrevistados como favoráveis à
redução. Algumas emissoras de televisão e rádio logo passaram a anunciar que “a população
brasileira é favorável à redução da maioridade penal”. O erro evidente está em considerar que
grupos de 2 a 3 mil brasileiros representam os 200 milhões de habitantes do Brasil.
Além disso, as pesquisas podem ser manipuladas. Caso a pessoa, empresa ou outra instituição que
encomenda pesquisas tenha interesse em determinado resultado, então o órgão de pesquisa
contratado pode procurar amostras apenas em regiões e grupos nos quais a resposta esperada é
mais fácil de ser encontrada.
Por outro lado, é verdade que o procedimento da generalização pode ser muito útil (desde que ela
não seja apressada!). É o caso, por exemplo, do procedimento indutivo (p. 48), amplamente
empregado em nosso conhecimento do mundo.
Para refletir sobre essa temática, é preciso pontuar, logo de saída, que seria ingênuo acreditar que
4
os seres humanos podem agir sem interesse. Mesmo a pessoa mais generosa do mundo e mais
5
preocupada com os outros age pelo interesse de fazer o bem. Ter interesse não é nada ruim em si
mesmo, pois ele se liga a um objetivo e, portanto, à busca da felicidade (p. 90), motor básico da vida
humana.
A observação do modo de ser dos animais não humanos e dos animais humanos confirma esse
pensamento, pois nem os animais não humanos nem os animais humanos são seres “prontos”. Pelo
contrário, são seres em construção; precisam satisfazer necessidades. Parece natural, então,
acreditar que os humanos agem por interesse. Quando deixam de se interessar, iniciam o processo
que os leva a morrer.
Desse ponto de vista, agir por interesse não significa necessariamente ser egoísta ou individualista .
6
Ícone: Glossário 4 Ingênuo: que não tem consciência de tudo o que uma situação envolve.
5 Generoso: que age sem nenhuma recompensa além da satisfação obtida ao beneficiar outras pessoas.
6Individualista: que tem a tendência exagerada de buscar apenas o próprio benefício. Do ponto de vista
sociológico, o individualismo é a tendência de o indivíduo buscar seu benefício mesmo às custas do bem comum ou
social.
O fato de algumas pessoas viverem seus interesses de maneira egoísta não dá base para concluir
que todo interesse implica egoísmo. Há quem seja movido pelo desejo de beneficiar os outros,
sentindo-se feliz com a felicidade alheia. Passar da observação de alguns indivíduos egoístas e
concluir que todos os humanos
Página 251
Se a Política nasce da vida, a fim de organizá-la, e se a Sociedade é uma forma de torná-la mais
satisfatória, então é legítimo pensar que a Política pode ser entendida como forma de tornar a vida
mais satisfatória.
É verdade, contudo, que, do ponto de vista histórico, buscar o bem da vida social nem sempre
significou buscar o bem de todos os cidadãos nem oportunidades iguais para eles. A democracia
grega, por exemplo, embora tenha sido a experiência que deu origem à Política (p. 376), não tratava
os indivíduos de maneira igual: as mulheres, os escravos, os estrangeiros e as crianças não tinham
os mesmos direitos dos homens gregos adultos e livres. Mesmo na Modernidade, com os ideais
iluministas (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 222) e com a tentativa de expansão dos
direitos dos cidadãos, as mulheres ficaram sem direito a voto e as crianças eram tratadas com as
mesmas exigências feitas aos adultos.
Com efeito, foi longo o processo que levou a entender a Política como atividade inclusiva. No
entanto, apesar dos tropeços históricos, foi possível associá-la à busca do bem comum ou do
benefício do grupo social com suas diferenças internas.
O filósofo Platão (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 82) ofereceu um forte exemplo a esse
respeito. No seu dizer, a prática política envolve a busca de justificativas racionais para as decisões
que organizam a vida dos cidadãos, não sendo um mero exercício do Poder. Em outras palavras, as
ações políticas precisam ser baseadas em motivos ou razões que possam ser avaliadas pelo
conjunto dos cidadãos.
Na filosofia platônica, apresentar razões para a ação significava pôr-se em continuidade com as
possibilidades inscritas em cada ser, as quais Platão chamava de Formas, Ideias ou Essências ( Ícone:
Conteúdo tratado em outra página p. 150). A Política seria a atividade de organizar e governar o
conjunto social de modo que todos pudessem desenvolver o que têm de melhor e chegar à forma de
vida mais adequada ao conjunto. Como Platão chamava de Bem o ideal da plena realização de todas
as coisas, ele concebia a Política como um serviço ao Bem. No decorrer dos séculos, passou-se a
7
falar do bem comum justamente para enfatizar que o Bem não pode ser apenas de alguns grupos ou
indivíduos, pois isso não corresponde à melhor realização das possibilidades inscritas na Natureza.
Platão não acreditava que todos os seres humanos eram iguais, mas também não admitia que as
diferenças fossem tomadas como justificativas para construir uma vida social injusta. Caberia ao
governante promover a justiça (a realização adequada das possibilidades de cada cidadão). Em seu
livro A República, ele concebe um sistema ideal de educação em que mulheres e homens teriam o
mesmo valor e receberiam o mesmo processo educativo. Em outro de seus livros, chamado As leis,
encontra-se especialmente sua denúncia do erro que transforma a atividade política em
competição. Ícone: Texto filosófico
REPRODUÇÃO
JOHN JABEZ EDWIN MAYALL
REPRODUÇÃO REPRODUÇÃO
Reprodução/Library of Congress
REPRODUÇÃO/South Africa The Good News
REPRODUÇÃO/mynewsdesk
reprodução
reprodução
Wolfram Huke
Pensadores e ativistas que entenderam a Política como serviço ao bem comum. Iniciando do alto e da esquerda
para a direita: Mahatma Gandhi, Karl Marx, Simone Weil, Rosa Luxemburgo, Martin Luther King, Nelson
Mandela, Desmond Tutu, Friedrich Hayek, Bertrand Russell e Jürgen Habermas.
Observe que a ideia central do texto de Platão consiste em defender que o governo da cidade ou o
serviço das leis deve ser dado a quem é o melhor exemplo de seguidor das mesmas leis
estabelecidas na cidade.
Convém lembrar que, nos tempos de Platão, a cidade era uma cidade-Estado, ou seja, uma cidade
com estatuto de país (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 206).
Da concepção do poder de governar como serviço dependem todas as outras afirmações do texto de
Platão, inclusive a primeira: quando a autoridade é motivo de disputa, não há justiça. O objetivo da
Política, portanto, seria, segundo Platão, realizar a justiça (favorecer o bem de todos). Em outras
palavras, a Política, segundo Platão, é um meio, e não um fim ou uma finalidade em si mesma.
Um dado textual e cultural de grande importância para entender o texto de Platão refere-se à
concepção de lei. Não seria adequado afirmar que, segundo o pensamento platônico, para fazer
justiça basta seguir as leis. Platão tinha clara consciência de que uma lei pode ser injusta,
principalmente quando ela não representa o interesse comum dos cidadãos. Uma lei será justa
quando conseguir superar tudo o que divide o corpo social e produzir a união dos cidadãos em
torno de interesses comuns. Assim, de acordo com o filósofo, a missão da Política inclui a produção
de leis justas. O objetivo é a justiça; a Política é o meio para isso.
Platão
Quando a autoridade torna-se alvo de competição, os vencedores apropriam-se dos assuntos da
Cidade de um modo que não deixam o menor espaço nem aos vencidos nem aos seus descendentes.
[...]
Nesse caso, são injustas as leis que não foram instituídas para o interesse comum do conjunto da
Cidade. Quando as leis são feitas em favor de apenas alguns, chamamos esses alguns de partidários,
e não de cidadãos; e quando eles falam de seus direitos, na verdade não dizem nada.
Se afirmo isso, é para significar que, na Cidade, não devemos dar o poder de governar a alguém
somente porque é rico ou porque possui alguma vantagem desse tipo sobre os outros (força,
destaque, nascimento...). Devemos dá-lo a alguém que sirva às leis na Cidade, ou melhor, a alguém
que mais bem obedece às leis estabelecidas e é exemplar desse ponto de vista. Assim, o cargo mais
elevado no serviço das leis deve ser dado ao mais exemplar; o segundo cargo mais elevado, ao
segundo mais exemplar; e assim por diante, proporcionalmente a cada cargo que deve ser
distribuído.
Além disso, se dou o nome de servidores das leis àqueles que em geral são chamados de governantes,
não é porque tenho prazer em inventar palavras novas, mas porque, a meu ver, é disso que depende
o sucesso ou o fracasso da Cidade.
PLATÃO. Les lois. Tradução Luc Brisson. Paris: Flammarion, 2006. p. 237-238. (As leis. Tradução nossa para o português.)
EXERCÍCIO B
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 483
(a) Quando viajei para o Rio Grande do Sul, vi muitas churrascarias. É porque todos os gaúchos
comem muita carne.
(b) Toda religião é violenta, porque judeus, cristãos, muçulmanos e até budistas praticam
guerras religiosas.
(e) Se sempre preveni a gripe na minha família com vitamina C, creio que todos deveriam fazer
o mesmo.
(f) Visto que todo ser humano é mortal e que todo ser mortal precisa alimentar-se para
sobreviver, então todo ser humano precisa de alimento.
Página 253
Maquiavel dedicou atenção especial ao estudo histórico em matéria política, isto é, à análise das
maneiras como diferentes sociedades estruturaram a participação dos cidadãos nas decisões que
diziam respeito a todos e da relação entre governantes e governados. Essa atenção histórica
permitiu a Maquiavel destacar três dados básicos:
(3) nessa dinâmica de conservar o Poder, a atividade dos governantes revela-se, de certa maneira,
uma finalidade em si mesma. Maquiavel observava que a Política talvez nunca tenha sido apenas
um meio para realizar uma boa sociedade, mas também uma atividade que precisa se conservar a si
mesma.
Maquiavel propôs, então, um novo modelo de compreensão da Política, considerando que ela não é
um simples meio, mas também um fim. A Política passava a ser entendida, agora, como uma forma
de chegar ao Poder e de se manter nele.
Seria possível perguntar se a conservação do Poder com a finalidade de preservar a unidade social
não significaria entender a Política como meio, e não propriamente como fim. Isso faria voltar ao
modelo platônico de compreensão, uma vez que a unidade social seria tomada como objetivo ou
fim, enquanto a Política seria apenas um meio ou um instrumento para obtê-lo. Precisamente nesse
ponto se revela a originalidade de Maquiavel, porque ele não parte de um “ideal” de unidade ou de
uma concepção de sociedade justa e boa, nem afirma que a Política serve para concretizar esse
ideal. Ao contrário, Maquiavel prefere pensar que são as circunstâncias históricas que determinam o
tipo de unidade que pode ser mantida e como ela deve ser obtida dentro dos limites do possível,
permitindo que a Sociedade se estruture de acordo com as novidades de cada momento de sua
história.
O governante, dessa perspectiva, também não existe para aplicar um “ideal”, mas para continuar a
governar, adaptando-se às circunstâncias e mantendo-se no Poder. De certo modo, estão aqui
algumas das raízes da “profissionalização” dos políticos tal como conhecemos, bem como da
transformação da atividade política de governar em “especialidade” de alguns indivíduos.
O pensamento político de Maquiavel desliga, portanto, a Política de objetivos externos ao próprio
jogo político e a concebe como exercício do Poder por meio da força e das leis. A Política identifica-
se, agora, com o exercício de governar e de conservar o Poder.
Foi um filósofo político, historiador, músico, poeta e diplomata italiano do Renascimento. Por
pensar o Estado como ele é, e não como deveria ser, é considerado o fundador da teoria política
moderna. Buscando estimular uma política de fortalecimento e de unificação da Itália contra seus
inimigos estrangeiros por meio do Poder absoluto da figura do Príncipe ou do governante, escreveu
sua obra mais conhecida e polêmica, O príncipe (1513), publicada postumamente, em 1532.
Maquiavel não usa o termo Poder, mas principado, pois emprega o vocabulário do tempo e lugar em
Página 254
que vivia. O governante era o príncipe; seu poder era o principado. Em sua atividade política, o
governante ou o príncipe terá de fazer todo o necessário para conservar o Poder. Ícone: Texto
filosófico
A metáfora do leão e da raposa fornece um quadro básico para a leitura do texto de Maquiavel: o
leão é sinônimo de força; a raposa é sinônimo de esperteza. O leão aterroriza os lobos; a raposa
reconhece as armadilhas. O governante (o príncipe), por sua vez, deve lutar por meio das leis, como
todo ser humano, além de servir-se da força do leão e da esperteza da raposa, pois as leis não são
suficientes.
A chave de leitura do texto de Maquiavel está na afirmação feita nas linhas 10 a 15: “um príncipe
prudente não pode nem deve guardar a palavra dada quando isso se lhe torne prejudicial e quando
as causas que o determinaram [no momento em que deu sua palavra] cessem de existir”. E ainda:
“Se todos os seres humanos fossem bons, esse preceito seria mau. Mas, dado que os seres humanos
são pérfidos e que não cumpririam [sua palavra], também não és obrigado a cumpri-la”.
Como se pode observar, Maquiavel parte da afirmação de que todos os seres humanos são
enganadores, traiçoeiros e não cumprem sua palavra. Por isso, o governante também não é
obrigado a cumprir sua palavra se isso for prejudicá-lo (prejudicar sua conservação no Poder),
principalmente quando os motivos históricos que o levaram a dar sua palavra já não existem mais.
O governante deve ser esperto como a raposa e se sair bem nas variadas circunstâncias. Se ele tiver
apenas as qualidades enumeradas no texto (piedade, lealdade etc.), poderá sair-se mal, pois em
alguns momentos ele terá de não ser bom, com o objetivo de conservar o Poder.
É por isso que Maquiavel afirma que é importante para o governante parecer bom, manter as
aparências, pois o povo se apega a elas. Em outras palavras, o governante terá mesmo de enganar o
povo caso seja preciso. É por isso também que Maquiavel afirma: “onde não há tribunal a que
recorrer, o que importa é o êxito bom ou mau (linhas 39-40)”. Quer dizer, se o governante não tem
mais outro recurso (tribunal), deve preocupar-se com seu objetivo e fazer o necessário para
alcançá-lo.
Essa frase de Maquiavel foi interpretada por muitos leitores como dotada do seguinte sentido: “os
fins justificam os meios”. Em outras palavras, se os fins são bons (manter a unidade social pelo
Poder), seriam aceitáveis injustiças para atingir esses fins. Essa interpretação está na raiz do
substantivo maquiavelismo e do adjetivo maquiavélico nas línguas modernas, como se Maquiavel
tivesse ensinado a ser mau (maquiavélico), desde que se atinja um objetivo. É como se Maquiavel
tivesse ensinado que Política e Ética não se misturam.
Todavia, Maquiavel não quis declarar que os fins justificam os meios, nem que a Política não tem
relação com a Ética. Sua afirmação é clara: se não houver mais nenhum outro recurso, o governante
deve se preocupar com o resultado de sua ação. Isso quer dizer que ele se submete às instâncias
(recursos) que definem o agir justo. Numa situação extrema, porém, quando não há mais instâncias
às quais recorrer, ele mesmo deve decidir de modo a preservar o Poder que dá a unidade social.
Tal atitude explica a ênfase de Maquiavel na sorte e nas circunstâncias. Ele percebia que o exercício
do Poder depende do que acontece no momento vivido pela Sociedade. Muitas coisas acontecem
sem terem sido previstas; aparecem como circunstâncias que não dependem diretamente dos
indivíduos (são sorte) e exigem respostas adequadas. Pretender orientar o Poder por ideais, e não
pela adaptação às circunstâncias fortuitas seria um erro de estratégia. O governante deve, então,
8
Ícone: Glossário 8 Fortuito: que acontece sem ter sido previsto; resultado do acaso.
O termo sorte não tem apenas o sentido de “boa sorte” (chance, benefício, condições favoráveis),
mas, principalmente, o sentido clássico de acaso, acontecimento fortuito. Em italiano, língua de
Maquiavel, o termo sorte é o mesmo da língua latina: fortuna. Em português, embora esse termo
esteja hoje mais ligado ao sentido de riqueza, ele também tem o sentido de acaso e sorte. Fala-se,
por exemplo, de “boa fortuna”.
No tempo de Maquiavel, o mundo europeu passava por profundas mudanças. Eram os inícios da
Idade Moderna, caracterizada pelo fim das sociedades medievais, cuja ordem social era mais fixa e
guiada por valores ético-religiosos mais fortes. Na Modernidade, com a era das navegações, o
encontro de novos povos, o desenvolvimento do comércio, além de outros fatores, a estabilidade
social é abalada e os grupos entram em conflito para buscar seus interesses. Se os comerciantes,
por exemplo, formavam uma classe pouco influente na Idade Média, eles têm agora um papel muito
ativo na organização social e lutam para ver seus interesses atendidos.
Mudavam, portanto, as regras do jogo político; e o governante tinha de saber jogar. Sua força (sua
virtù, como dizia Maquiavel em italiano) não residia mais
Página 255
Nicolau Maquiavel
Existem duas formas de combater: uma, pelas leis; outra, pela força. A primeira é própria do ser
humano; a segunda, dos animais. Como, porém, muitas vezes a primeira não é suficiente, é preciso
recorrer à segunda. Ao príncipe torna-se necessário, porém, saber empregar convenientemente o
[que é próprio do] animal e o [que é próprio do] humano. [...]
Sendo, portanto, um príncipe obrigado a bem servir-se da natureza da besta, deve tirar dela as
qualidades da raposa e do leão, pois este não tem defesa alguma contra os laços; e a raposa, contra
os lobos. [O príncipe] precisa, pois, ser raposa para conhecer os laços e leão para aterrorizar os 9
lobos. Os que se fizerem unicamente de leões não serão bem-sucedidos. Por isso, um príncipe
prudente não pode nem deve guardar a palavra dada quando isso se lhe torne prejudicial e quando
as causas que o determinaram [no momento em que deu sua palavra] cessem de existir. Se todos os
seres humanos fossem bons, esse preceito seria mau. Mas, dado que os seres humanos são
10
pérfidos e que não cumpririam [sua palavra], também não és obrigado a cumpri-la para com eles.
11 12
Jamais faltaram aos príncipes razões para dissimular quebra da fé jurada. Poder-se-iam dar
13
valer-se das qualidades da raposa saiu-se melhor. Mas é necessário disfarçar muito bem essa
qualidade e ser bom simulador e dissimulador . [...]
15 16
O príncipe não precisa possuir todas as qualidades acima citadas [piedade, lealdade, humanidade,
integridade e religiosidade], bastando que aparente possuí-las. Antes, teria eu a audácia de afirmar
que, possuindo-as e usando-as todas, essas qualidades seriam prejudiciais, ao passo que,
aparentando possuí-las, são benéficas. Por exemplo: de um lado, parecer ser efetivamente piedoso,
fiel, humano, íntegro, religioso, e, de outro, ter o ânimo de, sendo obrigado pelas circunstâncias a
não o ser, tornar-se o contrário.
todas as coisas a que são obrigados aqueles que são considerados bons, sendo frequentemente
forçado, para manter o governo, a agir contra a caridade, a fé, a humanidade, a religião. É
necessário, por isso, que [o príncipe] possua ânimo disposto a voltar-se para a direção a que os
ventos e as variações da sorte o impelirem ; e, como eu disse mais acima, não partir do bem, mas,
18
O príncipe deve, no entanto, ter muito cuidado em não deixar escapar da boca expressões que não
revelem as cinco qualidades acima mencionadas, devendo aparentar, à vista e ao ouvido, ser todo
piedade, lealdade, integridade, humanidade, religião. [...]
Nas ações de todos os humanos, máxime dos príncipes, onde não há tribunal a que recorrer, o que
19
importa é o êxito bom ou mau. Procure, pois, o príncipe vencer e conservar o Estado. Os meios que
20
empregar serão sempre julgados honrosos e louvados por todos, porque o vulgo é levado pelas 21
aparências e pelos resultados dos fatos consumados; e o mundo é constituído pelo vulgo; e não
haverá lugar para a minoria se a maioria não tem onde se apoiar.
MAQUIAVEL, N. O príncipe. Tradução Lívio Xavier. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 73-75. (Coleção Os Pensadores).
18 Impelir: empurrar.
20 Êxito: resultado.
21 Vulgo: povo.
Página 256
em suas qualidades éticas ou em sua vida exemplar, nem em um ideal de bem comum ou de
vontade divina, mas na capacidade de aproveitar as circunstâncias e mostrar a sua força.
Essa atitude não significava necessariamente falta de Ética. Talvez ninguém mais do que Maquiavel
tenha falado com tanto desprezo daqueles que se servem de métodos “para obter o Poder, mas não
a glória”, isto é, o respeito do seu povo. Dessa perspectiva, a diferença entre o pensamento político
de Maquiavel e de Platão até deixa de ser tão profunda, pois haveria um elemento “platônico”
continuado por Maquiavel ao apontar para o respeito do povo. Afinal, o respeito do povo só é
obtido quando há uma preocupação com o bem de todos. Ora, tal preocupação não deixa de ser, de
certa maneira, uma preocupação com o bem comum, tal como Platão exprimia por meio de Sócrates
(p. 157), personagem de seus diálogos. Com efeito, no livro I de A república, Platão “prevê” um
elemento “maquiaveliano” na reflexão política ao apresentar a personagem Trasímaco,
comprometido com uma ideia de justiça como “aquilo que mais convém”. A esse modelo, Platão
contrapõe a reflexão de Sócrates e sua ênfase na justiça em relação ao bem de todos.
Altobello Melone (1490-1543), Retrato de um cavalheiro (César Bórgia), 1513, óleo sobre tela. César Bórgia era
um exemplo, segundo Maquiavel, de governante que obteve Poder por sorte ou fortuna. Confiando apenas no
acaso e sem planejar sua ação política, esse tipo de governante tenderia ao fracasso.
EXERCÍCIO C
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 483
4 O Poder e o Estado
A reflexão sobre a Política requer uma análise do que se entende por Poder, sobretudo porque a
compreensão da Política a reduz muitas vezes apenas à atividade dos ocupantes do Poder. No
entanto, se a Política diz respeito à vida de todos os cidadãos, não seriam eles a verdadeira base do
Poder?
Atualmente, entre os vários sentidos do termo Poder está o de autoridade. É um sentido específico e
se refere ao fato de algumas pessoas estarem autorizadas a liderar outras. O que as autoriza pode
ser sua competência (assim como um cirurgião lidera uma equipe em uma operação) ou o fato de
terem sido escolhidas pelos indivíduos e grupos com o objetivo de representá-los. O segundo
sentido corresponde ao uso político do termo; trata-se do poder representativo.
Não havia em Platão uma reflexão sobre o Poder nesses termos. Os cidadãos não seriam
representados pelos governantes porque tanto governantes como governados submetiam-se à
busca do Bem, por meio da aplicação de leis justas. A autoridade para governar provinha da
preparação para servir às leis justas. O “Poder” estava, então, na justiça à qual todos deviam servir,
a ponto de Platão chamar de usurpadores aqueles que ocupam o poder de governar e seguem
interesses diferentes da justiça. No limite, os maus governantes merecem perder sua função, a fim
de serem substituídos por pessoas justas. O “Poder”, numa palavra, era relativo ao Bem.
Nos tempos de Maquiavel essa concepção sofre profundas mudanças. A percepção de que a
realidade histórica exige adaptações (que nem sempre permitem manter os olhos fixos no bem
comum) leva a entender o Poder como uma estrutura necessária para o bom governo da vida social.
Fortalece-se, aos poucos, a ideia de que os ocupantes do Poder representam os interesses dos
cidadãos, embora muitos governantes, na época de Maquiavel, não fossem eleitos, mas recebessem
o Poder por herança. Seja como for, a ideia de construção do governo mais eficaz para manter o
bom funcionamento da Sociedade (não mais o ideal do bem comum) conduz à valorização da
estrutura que permite tal eficácia: o Poder.
Coube ao filósofo inglês Thomas Hobbes (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 258) dar
forma a essa ideia, consagrando o Poder como condição para o bom funcionamento da vida social e
fortalecendo a concepção de que os cidadãos autorizam os governantes a representá-los. Como não
seria possível que todos os indivíduos se ocupassem do bem do conjunto social, e como alguns
indivíduos e grupos, se não forem controlados, revelam maior força e buscam servir-se do conjunto
para seu próprio benefício, passa-se então a delegar a representantes políticos a função de zelar
22
Diante das diferentes tendências e interesses que caracterizam a Sociedade, a Política deixa
definitivamente de ser vista como serviço a um ideal único e passa a ser entendida como a busca da
paz, forma de vida que reduz ao mínimo os conflitos e evita que os grandes ou mais fortes devorem
os pequenos ou mais fracos. Dado que o Poder é compreendido como estrutura necessária para
governar e obter paz, a Política torna-se a prática do Poder.
Segundo Hobbes, os seres humanos, se viverem em estado de Natureza, ou seja, se seguirem apenas
sua constituição física e instintiva, instalarão uma guerra de todos contra todos, pois cada indivíduo
é habitado por um desejo duplo: o de ser livre e o de dominar os outros seres, inclusive seus
semelhantes. O homem é o lobo do homem, declarava Hobbes.
No entanto, percebendo que a vida pode ser melhor caso seja evitada a guerra de todos contra
todos, os seres humanos abrem mão de sua liberdade total e aceitam limites e controles.
Transferem, portanto, sua força e seu poder a outro “ser”, que passará a representá-los e a evitar a
violência geral. Esse outro “ser” é chamado de soberano; e a fonte de sua autoridade é o pacto social
feito pelos cidadãos. Tal “ser” é visto como uma “pessoa”, ou seja, como “alguém” dotado de
qualidades específicas. Não se trata de um ser humano, mas de uma estrutura que se encarna no
indivíduo que a ocupa (o soberano). A ela se dá o nome de Estado (no sentido de unidades políticas
independentes e com administração própria, ao modo como entendemos os países).
Thomas Hobbes chamava o Estado, segundo a concepção moderna, de Leviatã ou Grande Leviatã:
ele é como um deus, mas um deus mortal, abaixo do Deus Imortal, e é uma figura que causa medo.
De fato, Leviatã é o nome de um monstro que espalha terror. Aparece, por exemplo, no livro bíblico
de Jó. Hobbes serve-se dessa figura a fim de representar o Estado como uma instância autorizada a
usar da força para evitar a luta de todos contra todos. Ícone: Texto filosófico
Thomas Hobbes
O fim último [...] dos humanos [...] ao se imporem a si mesmos aquela restrição sob a qual os vemos
23
viver nos Estados é o cuidado com sua própria conservação e com uma vida mais satisfeita. [...]
A única maneira de instituir um tal Poder comum – capaz de defendê-los das invasões dos
estrangeiros e das injúrias uns dos outros, garantindo-lhes assim uma segurança suficiente para
24
que, mediante seu próprio labor e graças aos frutos da terra, possam alimentar-se e viver
25
satisfeitos – é conferir toda sua força e poder a um homem ou a uma assembleia de homens, que
possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade. [...] Isso é mais
do que consentimento ou concórdia; é uma verdadeira unidade de todos eles, numa só e mesma
26
pessoa, unidade essa realizada por um pacto de cada indivíduo com todos os indivíduos [...]. Feito
isso, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, [...] aquele grande Leviatã ou antes
(para falar em termos mais reverentes) daquele deus mortal ao qual devemos, abaixo do Deus
Imortal, nossa paz e defesa. Pois graças a essa autoridade que lhe é dada pelos indivíduos no
Estado, é conferido a ele o uso de tamanho poder e força que o terror assim inspirado o torna capaz
de conformar as vontades de todos eles, no sentido da paz em seu próprio país e da ajuda mútua
contra os inimigos.
HOBBES, Thomas. Leviatã. Tradução João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1988. p. 103- 106.
(Coleção Os Pensadores.)
Frontispício do livro Leviatã, de Thomas Hobbes (1651). Gravura de Abraham Bosse (1602-1676).
Apesar de ser um Leviatã, o Estado moderno tal como teorizado por Hobbes não dava aos
governantes (os ocupantes do Poder) a faculdade de fazer tudo o que bem entendem. Para indicar
limites à força do Estado, alguns pensadores complementaram a filosofia política de Hobbes por
meio do conceito de Estado de Direito: um sistema institucional (Estado) no qual tanto os cidadãos
como o poder público devem respeitar as leis do país (Direito).
EXERCÍCIO D
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 483
Foi um filósofo e matemático inglês conhecido por suas críticas ao racionalismo de Descartes e por
ser um dos principais fundadores do empirismo e da teoria moderna sobre o Estado. Obras mais
conhecidas: Do cidadão (De cive) e Leviatã.
5 Cidadania e democracia
O conhecimento das raízes do pensamento político que forma nossa experiência nos dias de hoje
permite recolocar em outros termos os temas do interesse e da participação política.
Se é verdadeira a percepção hobbesiana de que nem todos os cidadãos podem ocupar o Poder ao
mesmo tempo (sendo conveniente, portanto, ter representantes), também não deixa de ser verdade
que o próprio Hobbes defendia a participação de todos como forma de exercer a liberdade e de
delegar o Poder aos governantes. A essa participação e delegação deu-se o nome de cidadania.
Dessa forma de participação indireta no Poder surgiu a ideia de democracia representativa,
principalmente com a divisão do Poder em três instâncias (o Poder Legislativo, o Poder Executivo e
o Poder Judiciário), inspirada no pensamento do filósofo Montesquieu (1689-1755) e na Declaração
dos direitos do homem e do cidadão, de 1789. O conjunto dos cidadãos participa do Poder por meio
de representantes, que, por sua vez, dividem-se entre as três instâncias: o Poder Legislativo é
composto pelos responsáveis por elaborar as leis que regem a vida social (em nosso país são os
vereadores, deputados estaduais e deputados federais), além de aprovar as ações do Poder
Executivo, que, por sua vez, é composto pelos responsáveis por praticar as leis e zelar pelo seu
cumprimento em todos os níveis (prefeitos, governadores e presidente). O Poder Judiciário, por fim,
também zela pelo cumprimento das leis e decide sobre os conflitos pessoais, grupais ou sociais com
a lei. Ele não é eleito, mas se constitui de alguns cargos concursados e outros nomeados pelos
Poderes Legislativo e Executivo.
A divisão em três Poderes é hoje considerada uma forma de proteger o princípio do Estado de
Direito, embora não deixe de apresentar fragilidades muitas vezes estruturais. O filósofo Louis
Althusser (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 259), por exemplo, alertava para o fato de
que o sistema dos três Poderes fez com que, ao longo do tempo, alguns cidadãos tivessem
privilégios porque são reeleitos e exercem influência excessiva sobre o Legislativo e o Executivo.
Mais grave ainda, no dizer de Althusser, é que os três poderes são uma forma de proteger o Poder
Executivo das revoltas populares. Como os cidadãos votam
Página 259
em representantes para o Executivo e para o Legislativo, eles têm a impressão de que participam do
Poder, principalmente porque imaginam que os membros do Legislativo representarão os
interesses públicos e porque, em caso de decepção extrema, esperam a eleição dos próximos
ocupantes do Executivo.
Althusser, então, bem como Hannah Arendt (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 117) e
outros pensadores, defendeu uma concepção diferente de democracia, a democracia direta, na qual
o povo exerce o Poder diretamente, e não por meio de representantes. Os modos para exercer
diretamente o Poder podem variar, como, aliás, já ocorreu na história da democracia: em Atenas, os
cidadãos podiam tomar a palavra na praça pública; em partes da Europa do Leste, eles governavam
por meio de plebiscitos (como entre os cossacos, povo de guerreiros instalado no sul da atual
Rússia e na Ucrânia); nas comunas da Idade Média, por meio das assembleias populares; ou ainda
em partes do México, por meio do sistema de rodízio no Poder. Em nossos dias, com a facilidade de
comunicação trazida pela revolução da informática e pelas mídias sociais, certamente seria possível
haver consultas amplas à população, bem como formas de acionar rapidamente as pessoas para
manifestarem seu pensamento. Aliás, o movimento da ocupação das escolas em São Paulo e em
Goiás não foi uma tentativa de praticar a democracia direta?
Por outro lado, a democracia, apesar de suas fragilidades, é um valor construído pelas sociedades
ao longo dos séculos e merece ser defendida. Se ela ainda é vivida apenas como o sistema da
maioria, isso não impede as sociedades de melhorá-la e torná-la mais inclusiva.
Foi um filósofo político francês de origem argelina. Sua obra radical, polêmica e, muitas vezes,
contraditória permanece influente no pensamento marxista. Althusser é visto como um teórico das
ideologias e seu trabalho mais conhecido é Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado, que
estabelece seu conceito de ideologia, relacionando marxismo e Psicanálise.
Foi um pensador francês que atuou em várias frentes, principalmente Filosofia, História e crítica
literária. Entre suas abordagens originais destaca-se sua análise das relações entre Poder e controle
social. Obras mais conhecidas: As palavras e as coisas, Microfísica do Poder e História da sexualidade.
EXERCÍCIO E
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 484
2. Por que a divisão em três Poderes é vista como uma forma de preservar o Estado de Direito?
EXERCÍCIOS COMPLEMENTARES
Elabore uma dissertação de síntese filosófica (p. 138) sobre as concepções de Política e Poder
segundo Platão e Maquiavel.
2 Pesquisa
Sob orientação de seu(sua) professor(a) de Filosofia, divida a sala em cinco grupos. A cada um
caberá um trabalho:
Grupo 4: Pesquisar quantos e quais são os partidos representados na Câmara dos Vereadores de
sua cidade, na Câmara dos Deputados (Assembleia Legislativa) de seu Estado, na Câmara dos
Deputados Federais e no Senado.
Grupo 5: Pesquisar por que setores da Sociedade defendem a necessidade de uma reforma política
no Brasil.
Ícone: Dica de filmes Dicas de filmes para você assistir tendo em mente o que trabalhamos
neste capítulo
A mulher faz o homem (Mr. Smith Goes to Washington), direção Frank Capra, EUA, 1939.
Este clássico do cinema norte-americano narra a história de Jefferson Smith, político inexperiente e idealista,
eleito senador com os favores de Sam Taylor, rico executivo que financia campanhas e espera dos políticos o
favorecimento de seus negócios. Quando Smith tem de tomar posição com relação ao projeto de construção de
uma barragem, conhece mecanismos políticos que ele nunca havia imaginado.
Terra em transe, direção Glauber Rocha, Brasil, 1967.
História de um político que quer governar a cidade de Eldorado, embora deteste o povo, e de um jornalista
dividido entre a poesia e a militância. O vazio, a estupidez e o conservadorismo de certas elites, bem como a
obediência total, o populismo adorado e o prazer de algumas pessoas em se sentirem comandadas são alguns
dos temas desse clássico do cinema brasileiro.
Tudo pelo poder (The Ides of March), direção George Clooney, EUA, 2011.
Ficção sobre os bastidores da equipe de Mike Morris, governador democrata e candidato à presidência dos
Estados Unidos. Explora o tema da construção dos candidatos e o papel dos meios de comunicação na elevação
e na queda das personagens políticas.
A tragédia de Coriolano, peça de William Shakespeare, tradução Manuel Resende, Afrontamento, 1998.
A peça Coriolano é uma obra-prima sobre a natureza do Poder e as relações entre os diferentes membros da
vida social. Shakespeare chega a prever problemas de grande atualidade para a sociedade democrática e
constrói um texto cheio de movimento. Sua base principal é a narrativa da vida de Caio Márcio Coriolano,
personagem dos inícios da república romana, apresentada na obra Vidas paralelas, de Plutarco (46-120).
Nascido em uma família nobre, Coriolano se destacava no combate físico, mas não tinha sucesso nas eleições
para cônsul, porque revelava claramente desprezo pelo povo. Tomado de cólera, age com violência e é
condenado ao exílio. Junta-se, então, com inimigos de Roma e organiza um ataque à cidade. O final da narrativa
é inesperado. Shakespeare sabe explorá-lo com primor para mostrar sua visão daqueles que se deixam levar
pelo desejo do Poder.
Página 261
A narrativa tem como personagem principal o médico Simão Bacamarte. Com uma importante carreira na
Espanha e em Portugal, Simão decide entrar para o ramo da Psiquiatria, instalando-se na cidade de Itaguaí, no
Rio de Janeiro, e lá abre uma casa para doentes mentais. Começa a estudar a loucura e procede como um
verdadeiro cientista. Simão interna, então, todos os habitantes de Itajaí que lhe pareciam loucos: a mulher
indecisa, o homem vaidoso, a mulher supersticiosa, o homem bajulador e assim por diante. Aquilo que era
apenas comportamento diferente Simão considera loucura e procura estudá-la. A história de Machado de Assis
retrata outra forma de exercício do Poder, aquela dos que possuem autoridade para prender outras pessoas,
seja em nome da Ciência, seja em nome da segurança pública.
1984, de George Orwell, tradução Heloisa Jahn e Alexandre Hubner, Companhia das Letras, 2009.
O livro 1984 é talvez o mais conhecido dos romances da distopia, isto é, de uma negação da utopia ou do sonho
com uma sociedade ideal e plenamente boa. A distopia é uma contrautopia e opera pela ficção de uma
sociedade imaginária na qual seus membros estão impedidos de obter a felicidade. Dessa perspectiva, 1984
descreve a Grã-Bretanha de 30 anos depois de uma guerra nuclear entre o Oriente e o Ocidente. Um regime
totalitário se instala e a liberdade de expressão não existe mais. O livro retrata como poderá ser a vida humana
se um dia ela for controlada em seus detalhes. Depois de apreciar o livro, você pode fazer uma pesquisa sobre
o vocabulário que George Orwell criou e que hoje entrou na maneira de falar de muitas pessoas pelo mundo
todo, como se observa pelos termos Big Brother e novilíngua.
Filosofia política, de José Antônio Martins, WMF Martins Fontes, 2014 (Coleção Filosofias: o prazer do pensar).
Estudo dos momentos centrais da história da Filosofia Política, iniciando pelo surgimento conjunto da Filosofia
e da Política, na Grécia Antiga, passando pelas contribuições medievais e pelas transformações modernas, até
chegar à Contemporaneidade.
O Estado, de Adriana Mattar Maamari, WMF Martins Fontes, 2014 (Coleção Filosofias: O prazer do pensar).
A autora apresenta os momentos centrais da história da concepção do Estado, partindo da ideia de governo
entre os antigos, passando pela Idade Média e chegando à formulação moderna do pensamento político que
está na origem dos Estados nacionais e também no fundamento da crítica a eles.
Maquiavel: a lógica da força, de Maria Lúcia de Arruda Aranha, Moderna, 1993 (Coleção Logos).
Introdução didática à vida e ao pensamento de Maquiavel, com uma boa seleção de textos ao final.
O livro defende que a liberdade dos indivíduos só pode ser obtida e garantida por um esforço coletivo. No
entanto, hoje as sociedades transformam em mercadoria os meios que podem garantir a liberdade individual.
Segundo o autor, é preciso traduzir os problemas pessoais em questões de dimensões públicas. Sem isso, a
atividade política não poderá ser renovada.
Acesse:
Cadernos de Ética e Filosofia Política, da Universidade de São Paulo, disponível em: <http://www.revistas.
usp.br/cefp>. Acesso em: 13 jan. 2016.
Você pode acessar gratuitamente os vários números da revista e enriquecer-se com a leitura de artigos sobre
Filosofia, Política, Sociedade etc.
Acesse:
Site da Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP), disponível em: <http://www. sep.org.br>. Acesso em:
13 jan. 2016. Neste site você pode encontrar notícias da SEP, e também todos os artigos escritos por
participantes dos encontros anuais. Os temas são os mais variados, desde teorias clássicas sobre Sociedade e
Política até assuntos da Atualidade.
Inscrição na Avenida Brasil (anos 1980), feita pelo Profeta Gentileza (1917-1996).
A imagem que abre este capítulo chama a atenção para um dado de grande interesse filosófico: a
prática de uma ação pode despertar uma reação parecida. “Gentileza gera gentileza”.
Antes de refletir sobre esse dado, vale a pena conhecer a história do artista que inscreveu essa frase
na Avenida Brasil, na cidade do Rio de Janeiro. Ele ficou conhecido como Profeta Gentileza e seu
nome era José Datrino (1917-1996).
Nascido na cidade de Cafelândia, no interior do estado de São Paulo, José Datrino constituiu família
e tornou-se empresário do ramo de transportes. Aos 44 anos, adotou um estilo de vida
completamente diferente depois de ter ficado impressionado com a tragédia que matou cerca de
500 pessoas no incêndio de um circo na cidade de Niterói, no estado do Rio de Janeiro. Sua família
conta que, depois de uma reunião de negócios, José Datrino, decepcionado com o tipo de vida que
levava, correu para o quintal e jogou-se na lama, proclamando que daí por diante mudaria seus
hábitos. Instalou-se em Niterói e viveu quatro anos no local onde ocorreu o incêndio. Lá plantou
flores e cultivou uma horta, anunciando a quem o observava que o mundo “já tinha acabado” e que
era preciso cultivar a gratidão e a gentileza tanto entre os seres humanos como entre eles e a
Natureza.
Nos anos 1970, José Datrino percorreu várias cidades brasileiras, viajando de carona, para anunciar
sua mensagem. A partir de 1980, pintou 56 murais nas pilastras de um viaduto do Rio de Janeiro,
insistindo principalmente naquele que lhe parecia ser o segredo de uma vida melhor: a prática da
gentileza, ação de tratar bem todas as pessoas e o meio ambiente; reconhecendo o valor de cada ser
e tratando-o com respeito simplesmente porque existe.
Página 263
RAIMUNDO VALENTIM/CPDOC JB
Profeta Gentileza no início dos anos 1980, quando ele andava pelas ruas do Rio de Janeiro e de Niterói.
Alguns artistas reconheceram o trabalho de José Datrino e o consagraram como “profeta”, quer
dizer, portador de uma mensagem divina. Foi o caso de Gonzaguinha e Marisa Monte. Você pode
conferir a homenagem dos dois músicos ao artista em vídeos do site YouTube e assistir ao
documentário de Dado Amaral e Vinícius Reis, de 1994 (Disponível em:
<https://www.youtube.com/ watch?v=71iQuiQb3h8>. Acesso em: 5 out. 2015).
Acesse:
A vida de José Datrino foi interpretada por muitos como loucura. Ele mesmo se apresentava como
“maluco”; e, adotando o vocabulário do músico brasileiro Raul Seixas (1945-1989), dizia que todos
deviam ser “malucos beleza”. Um “maluco beleza” não se satisfaz com a simples repetição do que
todos fazem, mas procura escapar à “normalidade”, dando um sentido pessoal à sua própria
existência.
José Datrino falava e escrevia coisas que misturavam Política, religião e moral, dando às vezes a
impressão de falta de sentido no que dizia. Fazia associações nem sempre corretas do ponto de
vista científico-histórico, como quando afirmava que a palavra capeta vem da palavra capital. Na
verdade, capeta vem de capa, peça do vestuário com que o inimigo de Deus aparece em algumas
representações. Já capital vem de caput, termo que em latim significa a cabeça ou a parte que
comanda o corpo. Quando associava, porém, o capital (acúmulo de dinheiro, típico das sociedades
capitalistas) com uma obra do mal ou do capeta, a “loucura” do Profeta Gentileza não deixava de
revelar lucidez ao exprimir o sofrimento de tantas pessoas submetidas ao capital.
Certos atos controversos de José Datrino também levaram a vê-lo de maneira diferente. Algumas
1
pessoas dizem que ele não era gentil com todos, pois não suportava, entre outras coisas, que as
mulheres usassem minissaia. Gritava com elas e as insultava. Seu discurso, então, era um pouco
moralista e mesmo machista: ensinava a sua visão de mundo como a única aceitável e considerava
que as mulheres deviam adotar padrões de comportamento definidos em função dos homens (para
não “provocá-los”, como se elas fossem responsáveis pelos descontroles masculinos). Datrino não
dialogava com as pessoas, mas procurava amansá-las, assim como havia feito em sua infância,
quando ajudava sua família a amansar burros.
Ícone: Glossário 1 Controverso: algo cujo significado pode ser interpretado de maneiras diferentes e gerar
polêmica.
Não há dúvida de que, para a qualidade do convívio humano, é inadequado apresentar a reflexão
sobre valores morais como uma tarefa de “amansar” as pessoas, sem reconhecer o que elas têm de
bom. É uma atitude autoritária e mesmo violenta. No entanto, descontado o exagero e a incoerência
do Profeta Gentileza, também não há dúvida de que alguns elementos de seu discurso e de sua
maneira de viver levantam temas
Página 264
Acesse:
Seja como for, a frase mais conhecida de José Datrino, “Gentileza gera gentileza”, traz à tona uma
temática que sempre interessou os filósofos: atos bons (éticos, morais) têm a possibilidade de
despertar reações semelhantes nas pessoas. Isso pode ser sintetizado na seguinte pergunta: os atos
podem tornar-se hábitos individuais e sociais?
1 Atos e hábitos
Um dos primeiros exemplos de reflexão sobre a ação humana foi dado por Aristóteles (Ícone:
Conteúdo tratado em outra página p. 103), que procurou identificar o que distingue os seres
humanos dos outros animais.
Analisados apenas da perspectiva de sua constituição física, os seres humanos têm tudo em comum
com os outros seres (os minerais, as plantas e os animais em geral). Porém, analisados da
perspectiva dos atos que só eles realizam, então é possível colher a diferença que os caracteriza: os
seres humanos são racionais, quer dizer, podem refletir e praticar atos livres.
A palavra ato e outras semelhantes (ação, agir, atividade etc.) são empregadas por Aristóteles, aliás,
com um sentido específico quando ele se refere aos seres humanos. Embora se diga, por exemplo,
que o animal realiza o ato de correr tanto quanto o ser humano, é preciso saber que o ato humano
de correr é diferente do ato animal de correr, uma vez que o ser humano pode refletir sobre os
motivos e sobre o modo de correr. O animal, mesmo tendo certa “consciência” das coisas e de seus
atos, não realiza uma reflexão, mas corre desde que sente um perigo; ou, se não corre e fica parado,
também o faz com base em uma percepção imediata. Já o ser humano pode refletir sobre qual é a
melhor ação em cada circunstância: correr ou ficar parado? Sua ação pode, portanto, ser mediada
por uma reflexão que analisa causas e consequências.
A fim de indicar a possibilidade especificamente humana de agir, Aristóteles usava a palavra grega
práxis, que pode ser traduzida em português por prática: trata-se da ação humana de reagir a
estímulos e de construir o sentido da própria ação. Não se diz, então, que o animal “pratica” uma
ação, e sim que ele simplesmente a “faz” ou a “realiza”. O ser humano, em vez disso, pratica sua
ação; é autor que age refletidamente, calculando as causas e as consequências de seu ato.
Aristóteles também observava que os seres humanos vivem certas experiências que independem
deles; elas “brotam” ou “nascem” neles, sem que possam controlar o seu surgimento. A essas
experiências, Aristóteles chamou de paixões. Em português, paixão traduz o termo latino passio,
que, por sua vez, correspondia ao termo grego páthos, “sofrer”, “ser tomado” por algo (assim como
“sofremos” ou recebemos a batida de uma bola em nós ou como “somos tomados” pelo desejo que
nos leva a amar alguém). Hoje é possível trocar a palavra paixão pela palavra emoção. Exemplos de
paixão ou emoção são a alegria, a raiva, o desejo, o medo etc.
Aristóteles observava, ainda, que, apesar de não poder controlar o surgimento das paixões ou das
emoções, o ser humano pode interferir no modo de vivenciá-las. É impossível impedir que o medo
nasça em nós; no entanto, é possível “construir” refletidamente a maneira de senti-lo. A essa
possibilidade Aristóteles chamava disposição ou capacidade de dispor-se de si mesmo. Assim, o
medo surge no indivíduo quando ele percebe uma ameaça; isso é natural. Porém, a intensidade com
que ele o vive depende de como dispõe refletidamente de si mesmo. Sentir medo em excesso é
ruim, tanto quanto é ruim sentir menos medo do que seria adequado. Em outras palavras, se a
paixão do medo é uma reação imediata, então ela merece ser sentida, mas sem falta nem excesso. A
falta leva a enfrentar a ameaça sem calcular a sua força; o excesso, por sua vez, identificando a
ameaça como maior do que ela realmente é, leva a ficar paralisado. A melhor situação é aquela em
que se reconhece o medo, se avalia adequadamente a força da ameaça e se encaminha o medo
proporcionalmente ao que a ameaça realmente é, sem mais nem menos. Por meio dessa dinâmica
que envolve emoção e reflexão, o indivíduo pode reagir com coragem, sentindo medo na medida
adequada e enfrentando a ameaça também de maneira adequada.
Nos finais da Idade Média, principalmente depois do trabalho de Pedro Abelardo (Ícone: Conteúdo
tratado em outra página p. 98) e de Tomás de
Página 265
Aquino (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 114), circulou um ditado filosófico bastante
didático para traduzir o pensamento aristotélico: o objeto determina o ato e os atos determinam o
hábito. Por objeto entende-se aquilo que motiva um ato; aquilo que dá o sentido desse mesmo ato (o
objeto determina o ato). Repetindo a identificação do mesmo objeto em situações variadas e
produzindo o mesmo ato, os indivíduos produzem o hábito (os atos determinam o hábito).
Resumindo, objetos (sentidos) despertam atos; e atos repetidos produzem hábitos. Os hábitos
constituem as disposições de que falava Aristóteles: modos de reagir de maneira semelhante diante
de objetos semelhantes. A ameaça (objeto, sentido) faz surgir o medo (paixão) e desperta uma
reação (ato). A reação (ato de agir com coragem, por exemplo, ou com falta e excesso de medo),
quando repetida, grava-se no indivíduo como disposição (hábito de reagir com coragem, falta ou
excesso de medo).
Hábitos ou disposições desenvolvidos de modo irrefletido (sem a moderação que evita o excesso e a
falta) são chamados de vícios. Por sua vez, hábitos ou disposições desenvolvidos de modo refletido
(moderado, ponderado) são virtudes. A educação ou o treinamento dos indivíduos é o requisito
fundamental para levá-los a desenvolver virtudes e evitar vícios quando aprendem a identificar o
meio-termo entre a falta e o excesso. Ícone: Texto filosófico
Aristóteles
Entendo por meio-termo da coisa o que dista igualmente de cada um dos extremos, que justamente
2
é um único e mesmo para todos os casos; por meio-termo relativo a nós, [entendo] o que não excede
nem falta, mas isso não é único nem o mesmo para todos os casos. Por exemplo, se dez é muito e
dois é pouco, toma-se o seis como meio-termo da coisa [...]; esse meio-termo ocorre segundo a
proporção aritmética. O meio-termo relativo a nós não deve ser concebido assim. Com efeito, se a
alguém comer dez minas de peso é muito e duas é pouco, não é verdade que o treinador
3
prescreverá seis minas, pois isso talvez seja pouco ou muito para quem as receberá: para Mílon 4
será pouco, para o principiante nos exercícios será muito. O mesmo [vale] para corrida e a luta.
Desse modo, todo conhecedor evita o excesso e a falta e procura o meio-termo e o busca, mas o
[meio-termo] relativo a nós. Se, então, toda ciência leva a bom termo a função olhando o meio-
5
termo e a ele conduzindo as obras [...]; e se os bons artesãos trabalham tendo o meio-termo em
vista; e se a virtude [...] é mais exata e melhor que toda arte ; [então] ela terá em mira o meio-termo.
6
Quero dizer a virtude moral, pois ela concerne a ações e emoções, nas quais há excesso, falta e
meio-termo. Por exemplo, é possível temer, ter arrojo , ter apetite, encolerizar-se, ter piedade e, em
7
geral, aprazer-se e afligir-se muito e pouco; e ambos de modo não adequado. [Saber identificar] o
8
quando deve, a respeito de quais, relativamente a quem, com que fim e como deve é o meio-termo e
o melhor, o que justamente é a marca da virtude. Similarmente, há excesso, falta e meio-termo no
tocante às ações. A virtude diz respeito a emoções e ações, nas quais o excesso erra e a falta é
censurada, ao passo que o meio-termo acerta e é louvado: acertar e ser louvado pertencem à
virtude. Portanto, a virtude é certa mediedade, consistindo em ter em mira o meio-termo.
ARISTÓTELES. Ethica nicomachea I 13 – III 8: Tratado da virtude moral. Tradução Marco Zingano. São Paulo: Odysseus, 2008. p. 50-
51. (Ética nicomaqueia II, 5, 1106a29-1106b30. )
3Mina: unidade de peso da Grécia Antiga, equivalente a cerca de 300 gramas. Assim, 10 minas correspondem a 3
quilos; 2 minas, a 600 gramas; 6 minas, a 1 quilo e 800 gramas.
4Mílon de Crotona: conhecido na Grécia Antiga como modelo de lutador. Diz a lenda que ele comia o equivalente
a um boi por dia.
5O termo ciência é aqui empregado no sentido amplo de conhecimento racional justificado, e não no sentido das
ciências modernas.
6O termo arte é empregado aqui no sentido de produção consciente e refletida de algo, incluindo o sentido das
artes modernas (produção artística), mas sem se reduzir a ele.
Observe que Aristóteles emprega um adjetivo específico: moral. Isso significa que ele se refere aos
atos que envolvem a escolha deliberada, decidida a buscar o bem de cada ação, o meio-termo
apropriado a cada circunstância, e não um meio-termo geral que pudesse ser aplicado a todos os
atos.
Página 266
Jean Pichore (séc. XVI), Virtudes, 1500, iluminura. O artista representa aquelas virtudes que, no seu contexto,
eram consideradas centrais. Do alto e da esquerda para a direita: a humildade vence o orgulho; a liberalidade
vence a avareza; o amor ou a caridade vence a inveja; a paciência vence a ira; o equilíbrio sexual ou a castidade
vence o desejo desenfreado; a sobriedade vence a gula.
Esse tipo de ação é diferente de outros, como o das ações que visam apenas conhecer, sem a
preocupação de agir bem. Um estudioso dos movimentos dos seres materiais (físico) ou das
ciências matemáticas (matemático) não precisa se preocupar com o meio-termo de sua ação; seu
objetivo é conhecer a verdade presente na Natureza e, nisso, ele não corre risco do excesso ou da
falta. No entanto, alguém que deseje agir bem em sentido moral (ético) precisa se preocupar em
evitar os extremos do excesso e da falta e em visar ao meio-termo. Essa preocupação dá o caráter
moral da ação, quer dizer, faz da ação uma ação boa ou ruim do ponto de vista dos costumes
individuais e sociais (costumes morais) e daquilo que a comunidade valoriza como bom (valores
morais).
A prática moral termina por constituir a matéria de um conhecimento específico, praticado por
quem procura entender como se chega àquilo que é definido como a boa ação. Trata-se da Moral ou
Ética, também conhecida como filosofia prática. Esse conhecimento se refere tanto ao que cada
pessoa precisa desenvolver pela educação, a fim de agir bem, como ao ramo da reflexão filosófica
que procura entender por que uma ação pode ser valorada como boa ou má. 9
Na Modernidade, principalmente com Hegel (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 270),
tentou-se separar o uso das palavras Moral e Ética, reservando-se para a primeira o sentido de
conjunto de hábitos considerados bons por uma sociedade e para o segundo o sentido de estudo
desses hábitos. Mas essa distinção nunca se impôs de maneira definitiva na reflexão filosófica em
geral, de modo que não é incorreto tomá-los como sinônimos, inclusive porque, em sua raiz
aristotélica, a prática especificamente humana deve incluir reflexão sobre os seus motivos.
Procurando entender como se determina o que é uma boa ação e como ela é diferenciada de uma
ação má, Aristóteles responde de maneira bastante direta: isso só pode ser conhecido quando se
observam os exemplos de uma pessoa que todos consideram prudente. Para poder saber o que é
bom ou ruim e chegar ao meio-termo de cada situação, o indivíduo deve pensar como uma pessoa
prudente agiria naquela mesma situação. Isso permite, segundo Aristóteles, evitar que o meio-
termo seja visto como “o que cada um bem entende” e chegar a uma concepção que é, ao mesmo
tempo, comum ou social (o que o grupo considera prudente) e individual (o agir do modelo
prudente como inspiração do agir dos outros indivíduos em cada situação concreta).
Usando um vocabulário comum em nossos dias, pode-se dizer que a concepção aristotélica evita um
relativismo total em assuntos éticos, mantendo em uma tensão saudável os dados que vêm do
modo de viver do grupo e a possibilidade de que o indivíduo permaneça livre em sua adequação a
esse modo de viver. Ela permite entender ainda que, com o tempo, a relação entre indivíduo e
grupo faz que os modelos de prudência se alterem.
Tal dinâmica levou Aristóteles e os medievais a discutir uma virtude geral que orienta a prática das
outras virtudes: trata-se da prudência (em grego: phrónesis), hábito de agir bem em tudo o que se
refere ao que é bom e mau para o ser humano. Como agir bem é agir segundo a mediedade (visar ao
meio-termo), a prudência ficou conhecida como a virtude ou o hábito virtuoso de sempre procurar
o meio-termo relativo a nós. Como meio-termo relativo a nós, ele depende das circunstâncias
particulares da ação.
Martino di Bartolomeo (1389- 1435), Alegoria da Prudência (1406), desenho em mármore, no chão ao lado do
altar da Catedral de Siena (Itália).
Declarar, por exemplo, que todos devem comer 500 gramas pode ser adequado para algumas
pessoas e inadequado para outras: os atletas talvez precisem comer 1 quilo; já os doentes talvez
precisem comer apenas 250 gramas. Entre a falta e o excesso, o meio-termo deve ser determinado
em cada situação específica.
Por essa razão, diferentes leitores de Aristóteles também chamaram a prudência de moderação e
temperança. No século XX e na Atualidade, alguns estudiosos propõem chamá-la ainda de sabedoria
prática, visão prática e inteligência prática. Independentemente do nome que se lhe dê, trata-se da
virtude de conservar o discernimento com relação ao que é bom ou mau para cada ser humano em
cada circunstância concreta.
Tomás de Aquino (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 114), em sua obra Suma teológica,
chegou a chamar a prudência de virtude principal, interpretando a ideia aristotélica de que cada
virtude (como a justiça, a coragem etc.), mesmo tendo sua esfera particular ou seu campo de ação
próprio, enraíza-se na orientação geral dada pela prudência. Tomás também acrescentava,
seguindo o filósofo Marco Túlio Cícero ( Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 111), que a
educação na prudência exige o desenvolvimento de outras capacidades, como a da memória (que
tanto faz lembrar das experiências já vividas como faz conhecer o que viveram os antepassados), a
da docilidade (para aprender com as pessoas mais experientes) e a da providência (o olhar para o
10
Essa visão é marcada de grande atualidade e não é por acaso que alguns estudiosos identificam ecos
da moral aristotélica até mesmo na obra de pensadores considerados “antiaristotélicos”, como é o
caso de Michel Foucault (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 259), por exemplo, e de sua
concepção do cuidado de si. O cuidado que cada indivíduo merece ter para consigo mesmo requer
uma atenção ao que se vive tanto no plano da vida social como no recôndito do segredo da
11
consciência individual, a fim de poder construir uma vida em primeira pessoa e realizar a melhor
ação.
Ícone: Glossário
Como também dizia Aristóteles, esse “cuidado” e a decisão acertada se concretizam na escolha dos
meios para atingir o objetivo de cada ato. Nisso, ele se mantinha muito próximo de seu mestre
Platão (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 82): toda pessoa, no limite, sempre quer o bem,
até mesmo quando não sabe e quando pratica algo considerado mau. Se não há liberdade no fato de
sermos sempre atraídos pelo bem, há, porém, liberdade na escolha dos meios para alcança-lo.
Aristóteles esclarecia que a liberdade pode gerar um descompasso entre a busca do bem e a boa
Página 268
escolha dos meios para alcançá-lo justamente porque os seres humanos nem sempre dão a devida
atenção às paixões e às disposições que desenvolvem em si mesmos. Nesse contexto, a educação ou
a formação na arte de visar ao meio-termo apresenta-se como a solução para tal descompasso.
EXERCÍCIO A
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 486
1. Por que, segundo Aristóteles, o termo prática só pode ser usado para referir-se a seres
humanos?
2. Usando o termo hábito, explique o que é uma virtude e um vício de acordo com o
pensamento de Aristóteles.
3. Com base no exemplo das reações causadas pela presença de uma ameaça e a emoção de
medo, analise as possíveis reações causadas pela presença de algo positivo e a emoção da
alegria.
2 Ética e razão
Diante do pensamento aristotélico sobre a virtude moral, não é difícil sentir-se tocado(a) por ele e
perceber como ele exprime de maneira adequada muitos aspectos experimentados no dia a dia.
Provavelmente você já deve ter ouvido frases como estas: “Falta ética no nosso mundo...” ou “Ah,
como seria bom se houvesse mais valores éticos...”. É como se as pessoas sentissem uma decepção,
lamentando a perda de bons modelos e desejando uma solução que as resgate da vida atual. Essa
percepção intensifica-se diante de casos extremos, como quando se observa que no Senado ou no
Congresso Nacional, assim como nas Assembleias Legislativas dos Estados, há “comitês de ética”:
aparentemente isso é bom, mas, se pensarmos que os representantes do povo deveriam ser os
primeiros a saber o que é uma ação ética, então ficamos surpresos ao constatar que eles precisam
de comitês para avaliar se o que fazem é ético ou não. Experimenta-se um desconforto ou mesmo
uma indignação quando se percebe que os representantes do povo não conhecem Ética e precisam
de especialistas para orientá-los.
Ainda, quando falam em nome da Ética ou da Moral, muitos representantes políticos apenas
defendem suas visões pessoais (formadas por suas crenças religiosas, sua atividade partidária,
sindical etc.) e mostram-se incapazes de dialogar racionalmente com quem tem opiniões diferentes,
a fim de identificar elementos comuns na busca universal do bem. Segundo uma leitura aristotélica,
todos buscam o bem, que tem a felicidade como uma de suas faces; contudo, muitos se perdem na
escolha dos meios para alcançar o bem ou a felicidade, apegando-se à crença de que suas ideias
particulares são as melhores para todos.
A experiência de desconforto ou indignação não é algo vivido apenas em nossos dias. Hoje, de fato,
com um mundo sempre mais plural e conflituoso, tal experiência é vivida com força. Mas, talvez ela
tenha existido desde que a Humanidade despontou em meio à Natureza.
Considerando que a ética aristotélica parte do princípio de que é possível saber socialmente o que é
melhor para todos (o bem) e observando como esse mesmo “melhor” (o bem) pode ser
interpretado de maneiras muito diferentes, alguns filósofos modernos identificaram a necessidade
de rever a ética aristotélica. Utilizando termos cotidianos, pode-se dizer que
Página 269
esses filósofos perguntavam: como identificar o que é a virtude se há tantas variações sobre aquilo
que se considera bom ou mau? Como agir com prudência se a identificação do meio-termo pode
alterar de acordo com as experiências de diferentes grupos e indivíduos? Como conceber o bem se
os indivíduos e os grupos podem discordar a respeito dele?
Um dos primeiros filósofos a enfrentar questões desse tipo foi Immanuel Kant (Ícone: Conteúdo
tratado em outra página p. 207). Vivendo no século XVIII, Kant tinha clara consciência de seu tempo
e das profundas mudanças pelas quais o mundo havia passado desde o século XVI, com as
navegações, o fortalecimento do comércio, o encontro das novas culturas, o desenvolvimento da
Ciência moderna e das indústrias, as guerras de religião, o nascimento dos países ou dos Estados
modernos etc.
Daniel Chodowiecki (1726-1801), Minerva, deusa da sabedoria, espalha sua luz e envolve até as religiões, 1791,
ilustração para o calendário de bolso da Universidade Multiconfessional de Gotinga (Alemanha). Kant foi um
dos principais responsáveis pela criação da cultura iluminista que confiava na razão e no entendimento como
formas de esclarecer os seres humanos e promover a aceitação das diferenças, inclusive religiosas.
O momento vivido por Kant lembra bastante outros períodos da História da Humanidade,
especialmente o que acontecera na Grécia, quando os filósofos sofistas (Ícone: Conteúdo tratado em
outra página p. 83) perceberam que a lista das virtudes gregas não era a mesma de outros povos.
Conhecendo sociedades diferentes, eles se perguntavam pelo que realmente era a virtude. Kant, de
certa maneira, tentou fazer algo semelhante ao que Platão e Aristóteles fizeram diante do
questionamento sofista: superar as dificuldades de compreensão e encontrar um modo de formular
respostas aceitáveis racionalmente por todos.
Kant concentrou seu trabalho em três frentes: o conhecimento científico-racional, o agir ético e a
experiência da beleza. O que há de comum em todos os seres humanos, segundo Kant, é a razão,
dotada, por sua vez, da capacidade do entendimento, quer dizer, de compreender as experiências
humanas e fundamentar as afirmações referentes a essas experiências em dados compreensíveis
para todos os indivíduos. Tais dados são aqueles provenientes do conhecimento sensível do mundo
(obtido por meio dos cinco sentidos e elaborados pela capacidade do entendimento). Kant, aliás,
antes de propor uma interpretação da realidade, chamava a atenção para a necessidade de avaliar
nossas possibilidades de conhecer, a fim de evitar ilusões ou tentativas de chamar de conhecimento
o que não passaria de opinião. A esse procedimento ele chamava de crítica (análise), donde sua
Filosofia ser chamada também de filosofia crítica.
Em matéria de Ética ou Moral, Kant percebia que esse não é um terreno no qual pode haver
certezas como as certezas científicas (fundadas em dados sensíveis). Assim, não é possível entender
cientificamente o conteúdo do bem, pois, embora se possa afirmar que o bem existe, não se tem
experiência sensível do que ele é; portanto, não é adequado tratar o tema do bem como se fosse um
assunto cujo conteúdo é captável pelo entendimento humano. A razão até pode falar com coerência
sobre o bem (como também sobre a beleza), mas isso não significa conhecê-lo ao modo como se
conhecem os dados investigados pela Física ou pela Matemática.
Dessa perspectiva – a dos limites do que pode ser entendido por todos –, Kant afirma que a própria
virtude da prudência era algo que continha variações e demandava ainda esclarecimento. Se ela
pode ser considerada como forma de agir moderadamente, em conjunto com outras pessoas e pela
escolha dos meios adequados para atingir finalidades éticas, ela não pode, entretanto, permitir que
as pessoas sejam tratadas como meios. Ou se garante que cada indivíduo tem um valor a ser
respeitado sempre e absolutamente (cada pessoa é um fim em si mesmo) ou se cai no risco
Página 270
de todos se instrumentalizarem entre si, rumo à destruição mútua. Por outro lado, garantindo-se a
autonomia de cada indivíduo, é legítimo pensar que a prudência é também uma forma de obter
benefícios pessoais duradouros desde que se respeite o benefício dos outros. Somente uma visão
que considerasse esses aspectos seria, segundo Kant, compreensível e praticável universalmente.
Ao procurar uma visão ética desse tipo (dotada de universalidade racional) e ao observar que as
ações se dão sempre em circunstâncias particulares, Kant esforçou-se para formular um princípio
ou uma lei que fosse compreensível por todos e orientasse a ação em todas as circunstâncias. Sua
estratégia foi discutir se é possível encontrar, pelo entendimento, um princípio a priori, ou seja,
anterior às experiências e às situações específicas.
Kant percebeu que a preocupação com o “agir bem” é uma preocupação que fornece sua própria lei,
independentemente das ocasiões singulares, pois o querer agir bem já contém a possibilidade de
levar à boa ação. Ora, se esse querer é a própria lei do agir, então ele pode ser visto como o dever
contido na ação humana, o dever de agir bem. Por sua vez, a forma básica desse dever – válida para
todas as circunstâncias – pode ser expressa assim: Você deve agir somente segundo uma máxima 12
que lhe permita também querer que a sua própria máxima seja tomada como lei universal. Dito de
outra maneira: em sua ação, você deve seguir uma regra que você mesmo(a) deseja que seja
tomada por todas as outras pessoas como regra de suas ações.
A essa forma universal do agir ético Kant denominou imperativo categórico, algo que obriga
(imperativo) a seguir a própria vontade de agir bem em todas as circunstâncias, sem exceção e
independentemente dos objetivos visados (categórico).
Segundo Kant, o imperativo categórico é uma expressão racional da antiga Regra de Ouro defendida
por tradições religiosas: “faça aos outros aquilo que você quer que eles façam a você”; ou ainda “não
faça aos outros aquilo que você não quer que eles façam a você”. A diferença da reflexão kantiana
está no fato de ela propor uma lei moral independente de conselhos vindos de inspirações
religiosas, poéticas etc., mas nascida diretamente do funcionamento da própria vontade de querer
agir bem. Em seu livro Fundamentação da metafísica dos costumes, Kant apresenta, de maneira
bastante direta, o significado do imperativo categórico. Ícone: Texto filosófico
A priori e A posteriori
A priori – Modo de fazer uma afirmação que, para ser comprovada, não precisa recorrer à
experiência (fundada nos cinco sentidos). Exemplos:
A posteriori – Modo de fazer uma afirmação com base na experiência fundada nos cinco sentidos.
Exemplos:
Foi um filósofo alemão, um dos fundadores do Idealismo alemão e do Historicismo. Defendia que a
razão passou por um desenvolvimento histórico, chegando a uma consciência da totalidade do
mundo (espírito absoluto) por meio da consciência de si mesma, exprimindo-se como Filosofia.
Esse desenvolvimento seria um movimento dialético, um choque e uma união de posições
contrárias, resultando em uma síntese (progressão na qual o movimento sucessivo surge como
solução das contradições inerentes ao movimento anterior). Obras mais conhecidas: Fenomenologia
do espírito, Ciência da lógica, Princípios da Filosofia do Direito.
Immanuel Kant
Seja, por exemplo, a seguinte questão: será que eu não posso, quando estou em apuros, fazer uma
promessa com a intenção de não cumpri-la? É fácil distinguir aqui o significado que a questão pode
ter: se é prudente ou se é conforme ao dever fazer uma promessa falsa. O primeiro caso pode, sem
dúvida, ter lugar muitas vezes. Vejo bem, é verdade, que não basta livrar-me de um embaraço
presente por meio desse subterfúgio , mas que é preciso refletir bem se dessa mentira não poderia
13
originar-se depois, para mim, um incômodo muito maior do que aqueles de que estou me livrando
agora; e – visto que, apesar de toda a minha pretensa esperteza, não é tão fácil assim prever as
consequências, de tal sorte que a perda de confiança não venha a se tornar muito mais desvantajosa
para mim do que todo o mal que penso evitar agora – é preciso refletir também se não seria uma
linha de ação mais prudente proceder aqui segundo uma máxima universal e adotar o hábito de
nada prometer senão na intenção de cumpri-lo. Contudo, logo fica claro para mim que uma tal
máxima tem sempre por fundamento as consequências a serem receadas. Ora, ser veraz por dever 14
é coisa bem diversa de ser veraz por receio das consequências desvantajosas: [...] no primeiro
15
caso, o conceito da ação já contém em si mesmo uma lei para mim; no segundo, tenho primeiro de
16
voltar os olhos numa outra direção , a fim de ver a partir daí quais efeitos para mim poderiam
17
porventura estar ligados a isso [quer dizer, ao ser veraz]. Com efeito, se me afasto do princípio do
dever, é certíssimo que isso é mau; se renego a minha máxima de prudência, isso pode sim, às
vezes, ser muito vantajoso para mim, muito embora, na verdade, seja mais seguro ater-me a ela.
Entretanto, para me instruir da maneira mais breve possível, mas infalível , com respeito à solução
18
do problema [de saber] se uma promessa mentirosa seria conforme ao dever, pergunto a mim
mesmo: será que eu ficaria contente se a minha máxima (livrar-me de um embaraço por meio de
uma promessa falsa) valesse como uma lei universal (tanto para mim quanto para outros)? E será
que eu poderia dizer, para mim mesmo, que todo o mundo faça uma promessa falsa quando se
encontrar num embaraço do qual não possa se livrar de outra maneira? Assim, logo me darei conta
de que posso, é verdade, querer a mentira, mas de modo algum uma lei universal de mentir: pois,
segundo semelhante lei, não haveria propriamente promessa alguma, porque seria vão alegar
minha vontade com respeito a minhas ações futuras a outros que não dão crédito a essa alegação ou
que, se precipitadamente o fizessem, me pagariam com certeza na mesma moeda; e, por
conseguinte, porque a minha máxima se destruiria a si mesma tão logo se tornasse uma lei
universal.
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução Guido Antônio de Almeida. São Paulo: Discurso & Barcarolla,
2009. p. 135-137.
Ícone: Glossário 13 Subterfúgio: justificativa que disfarça a verdadeira razão de algo; escapatória.
16Conceito da ação: sentido moral da ação. No texto de Kant, “conceito da ação” é igual a “agir por dever”.
Diante do apuro, bastaria “olhar” para o conceito da ação (olhar para o sentido de agir por dever) e já se saberia
qual a melhor decisão a tomar diante da possibilidade de mentir para escapar de apuros: não se deve mentir.
17A outra direção de que fala Kant é uma direção diferente daquela do conceito da ação: em vez de olhar para o
conceito da ação (e saber que se deve agir bem), olha-se em “outra direção”, para as consequências que podem
surgir do ato praticado não por dever. São as possíveis consequências do ato que darão o sentido com que ele é
praticado, e não o seu conceito mesmo.
1. Apresente o pensamento moral de Kant com base em seu projeto de uma filosofia crítica.
3. Considere o pagamento na mesma moeda, de que trata Kant no final de seu texto, e explique
a incoerência da falsa promessa em momentos de apuro.
Página 272
3 Ética e paixão
Alguns pensadores identificaram no pensamento kantiano um exagero na confiança no poder do
entendimento para orientar a ação humana e mesmo uma desvalorização do papel das emoções ou
paixões como motores. É o caso, por exemplo, de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (Ícone: Conteúdo
tratado em outra página p. 270), que chegará a dizer: “Nada se produziu no mundo sem paixão”.
Antes de Hegel e mesmo de Kant, pensadores como o escocês David Hume (Ícone: Conteúdo tratado
em outra página p. 273) e o suíço Jean-Jacques Rousseau (Ícone: Conteúdo tratado em outra página
p. 132) haviam chamado a atenção para a influência das emoções na razão. David Hume chegava a
afirmar que, diferentemente do que Aristóteles pensava, a racionalidade não é a característica
principal e definidora do ser humano em matéria de Ética, porque o conhecimento puramente
racional não leva ninguém a agir; mas as emoções sim.
Hume defende, na obra Tratado da natureza humana, de 1739-1740, que a razão é e deve ser uma
serva das emoções. Posteriormente, na obra Investigação sobre o entendimento humano, de 1751,
ele diminui a força dessa afirmação, preferindo sustentar que a razão e a emoção contribuem juntas
para a prática moral. A Natureza teria posto nos seres humanos algo como um senso moral ou
sentimento interno (pensamento) para agir bem.
Curiosamente, embora Hume se dissesse em desacordo com Aristóteles (Ícone: Conteúdo tratado
em outra página p. 103) em vários aspectos, há uma concordância entre ele e o pensador grego,
pois este também colocava as emoções em primeiro plano. Aristóteles chegava a dizer que a virtude
e o vício estão ligados a prazeres e dores; seu objetivo era elaborar uma ética para seres humanos,
“não para deuses”. Por esse motivo, não é exagerado dizer que a presença de Aristóteles na reflexão
ética é uma constante no pensamento filosófico. Mantendo, então, certa continuidade com ele,
David Hume elaborou uma de suas mais importantes contribuições para a reflexão ética com a
teoria da simpatia e da comparação. Ícone: Texto filosófico
Simpatia e comparação
David Hume
Devemos recorrer a dois princípios bastante manifestos na natureza humana. O primeiro é a
simpatia, ou seja, a comunicação de sentimentos e paixões [...]. Tão estreita e íntima é a
correspondência entre as almas dos seres humanos que, assim que uma pessoa se aproxima de
mim, ela me transmite todas as suas opiniões, influenciando meu julgamento em maior ou menor
grau. Embora, muitas vezes, minha simpatia por ela não chegue ao ponto de me fazer mudar
inteiramente meus sentimentos e modos de pensar, raramente [a simpatia] é tão fraca que não
perturbe o tranquilo curso de meu pensamento, dando autoridade à opinião que é me recomendada
por seu assentimento e aprovação. [...]
19
HUME, David. Tratado da natureza humana. Tradução Déborah Danowski. São Paulo: Ed. da Unesp, 2009. p. 632-633.
O fechamento em si é próprio da comparação. Uma pessoa que compara não está propriamente
aberta à influência, pois mantém o outro à distância, avaliando-o com base nela mesma e no que ela
vive.
Página 273
Frederic Leighton (1830-1896), Reconciliação das famílias Montéquio e Capuleto na morte de Romeu e Julieta,
1855, óleo sobre tela. As duas famílias rivais são influenciadas reciprocamente pela experiência da dor e
reconciliam-se.
Se me identifico com alguém e vejo seu sucesso e alegria, sou contagiado por essa alegria (ocorre
uma simpatia entre nós); porém, se não tenho nenhuma afinidade com esse alguém, nenhuma
identificação, então me fecho em mim mesmo e tendo a vê-lo e a compará-lo comigo, podendo
mesmo sentir inveja diante de seu sucesso e alegria.
Tanto a simpatia como a comparação são modos de reagir à presença alheia e interferem na
vivência das virtudes. Agir bem, portanto, não pode ser apenas o resultado de um convencimento
intelectual; não há dúvida de que as paixões agem na determinação de nosso comportamento
moral.
Se David Hume tivesse vivido depois de Kant e se pudesse ter lido a obra do pensador alemão,
provavelmente diria que a Ética do dever é um projeto humanamente impossível de ser realizado. O
dever exigiria crer que o ser humano pode controlar as emoções por meio do entendimento, mas as
paixões são tão ou mais fortes do que ele.
Essa problemática é muito viva no pensamento contemporâneo. Hegel, por exemplo, chamou
atenção para a fraqueza de uma ética do dever que considera possível falar de uma lei anterior a
toda prática social e interna à própria intenção de bem agir. No seu dizer, todas as crenças éticas e
avaliações morais são fundamentadas em instituições sociais, ou seja, em práticas socialmente
construídas, principalmente um Estado justo. De sua perspectiva, a Regra de Ouro, traduzida na
forma “Ama ao próximo como a ti mesmo”, só pode ser entendida quando já se tem alguma
experiência do que significa amar. Sem experiências históricas de Amor, ninguém entenderia essa
frase. Por isso, nem ela nem o imperativo categórico teriam um fundamento a priori.
Hegel vincula, então, a Ética e a Política. Seu trabalho lembra claramente o pensamento de Platão e
Aristóteles, para quem o cidadão é alguém que se realiza apenas na convivência com outros
cidadãos. No entanto, o pensamento hegeliano é bastante diferente do pensamento platônico e
aristotélico, pois, em vez de recorrer a bases naturais da Política e do Estado, enfatiza que eles são
instituições ou construções culturais. Hegel partia da esperança de que um dia algum Estado (Ícone:
Conteúdo tratado em outra página p. 257), construído de maneira justa pelos seus próprios
membros, permitiria que esses mesmos membros alcançassem uma existência plenamente justa.
Houve, porém, quem denunciasse o “risco” do pensamento hegeliano, pois, ainda que um Estado
seja construído de maneira justa (permitindo o desenvolvimento igualitário de seus membros), tal
Estado pode sempre converter-se em uma ameaça à individualidade dos cidadãos, principalmente
se o grupo de líderes do Estado for considerado como a instância que pode decidir sobre o que é
20
justo para todos. Grande seria o risco de esse grupo definir o “bem” em função de seus próprios
interesses.
No entanto, a contribuição de Hegel foi de grande importância para a reflexão ética e exerce uma
influência inegável ainda hoje, principalmente por ter mostrado que as concepções éticas e políticas
são, em boa parte, construções históricas. Em seu livro Depois das virtudes, o pensador escocês
Alasdair MacIntyre (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 224), mesmo discordando de Hegel
em vários pontos, reconhece a historicidade do ser humano e afirma que cada indivíduo, sendo
membro de uma espécie (tendo, portanto, uma dimensão natural inegável), segue
Página 274
finalidades presentes nessa espécie ao mesmo tempo que tal seguimento é social e culturalmente
orientado.
EXERCÍCIO C
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 487
1. Por que, segundo Hume, não é adequado enfatizar a racionalidade como característica do ser
humano visto como agente moral?
2. Quais são as duas tendências fundamentais do ser humano em matéria de moral segundo
Hume?
O mundo nunca conheceu como hoje tantas trocas culturais e tantas diferenças entre pessoas e
grupos. Na vida de dimensões globalizadas, em que os intercâmbios culturais são facilitados por
meios antigos (como as viagens) e novos (como o contato proporcionado pela Internet), sente-se a
necessidade de que governos, grupos e indivíduos tenham um olhar capaz de compreender e
respeitar pensamentos e práticas diferentes, favorecendo o encontro entre os seres humanos.
Curiosamente, porém, há reações que vão na contramão dessa necessidade e endurecem o olhar
diante das diferenças, buscando mantê-las à distância ou mesmo eliminá-las. Os governos de alguns
países têm reforçado, por exemplo, seu poder de controle sobre seus cidadãos (por meio da força
policial, por exemplo) e sobre estrangeiros (pelo fechamento de suas fronteiras). Defendem a ideia
de que cada país tem seu povo “natural” e de que é preciso lutar para conservá-lo. É o caso de
alguns governos europeus que, diante dos movimentos migratórios, ignoram o fato de as
populações do planeta sempre terem migrado em maior ou menor medida, misturando-se na busca
de formas melhores de viver. Por sua vez, muitos indivíduos e grupos também têm se fechado em si
mesmos, defendendo identidades culturais como se elas fossem “naturais” e devessem ser
conservadas. É o caso de indivíduos e grupos que afirmam existir padrões como a “brasilianidade”
dos brasileiros, a “italianidade” dos italianos, a “africanidade” dos africanos e assim por diante, ou
mesmo de grupos contrários à integração com estrangeiros, como ocorre com os brasileiros que
reprovam a integração de haitianos em nosso país depois do terremoto de 2010. Atitudes como
essas reforçam posições racistas, identitárias etc., fazendo pensar em formas “naturais” de viver,
quando, na verdade, essas formas são construções históricas.
Considerando essas e outras incoerências do nosso tempo, pensadores como Étienne Balibar (1942
-) têm feito o esforço de repensar o que significa a cidadania e a formação ética. Balibar elaborou o
conceito de cosmopolítica ou de cosmocidadania como uma prática em que os governos, grupos e
indivíduos são chamados a possibilitar que a cidadania seja entendida como algo que vai além de
uma identidade dada pela Natureza, pelo território e por costumes aparentemente ancestrais , 21
passando a ser concebida como uma atividade participativa pela qual os indivíduos criam seus
direitos em função dos novos desafios que a vida apresenta. A cosmopolítica, assim, ou a
cosmocidadania, erguendo o olhar dos indivíduos para as dimensões planetárias da vida atual,
permitiria observar e unir o que há de universal nos seres humanos (como o desejo do bem, da
felicidade, de uma vida justa etc.) com o que cada indivíduo tem de particular.
Ícone: Glossário 21 Ancestral: relativo aos antepassados; nascido com as gerações passadas.
Étienne Balibar põe em evidência o fato de que ninguém mais, nos dias de hoje, encontra-se
necessariamente limitado pela identidade do território em que vive ou dos costumes de seus
ancestrais. Ele não quer dizer que
Página 275
S e há algo comum entre os pensadores que refletem sobre a Ética, é a ideia de que a prática ética
depende da educação. Alguns dirão que a educação pode ser sinônimo de liberdade; outros, que ela
é adestramento e limitação da liberdade. Todos, porém, concordam que a transmissão de
22
costumes ou hábitos pela educação tem um papel decisivo na construção de diferentes visões
éticas.
Nesse contexto, é de grande importância a ideia de decisão ética ou de decisão de ser ético(a). Se o
indivíduo não entender que ele pode refletir sobre si mesmo e querer ser ético, e se não tomar
consciência do que o condiciona, procurando uma forma de dar sentido à sua própria existência,
então a preocupação com a Ética não passará de um discurso vazio. Aliás, é cômodo lamentar a falta
de Ética nos outros, sem buscar agir segundo os padrões que nós mesmos valorizamos (os valores
éticos).
Por outro lado, a face trágica da vida faz com que, muitas vezes, mesmo tendo a intenção de agir
bem, terminemos agindo mal por várias razões (desconhecimento das circunstâncias,
contratempos, dificuldade de seguir o que se considera bom etc.). Mas a honestidade para consigo
mesmo(a) e o desejo de agir bem podem dar o valor de uma ação, mesmo quando ela não se torna
tudo o que esperávamos dela. Manifesta-se, assim, o sentido do educar para a responsabilidade
ética.
Por outro lado, surge uma dificuldade intensa: como é possível saber o melhor modo de educar e o
que se deve despertar nas pessoas? O filósofo Dietrich von Hildebrand (1889-1977) elaborou uma
tentativa de responder a essa dificuldade, baseando-se no que ele observava de comum em
diferentes contextos e diferentes expectativas éticas. No seu entender, uma educação autêntica é
aquela que permite a cada pessoa desenvolver-se “a partir de dentro”, e não apenas por meio de
uma simples recepção de costumes externos. Na atenção a si mesma (a seus pensamentos, emoções
e sentimentos), a pessoa pode entender que, em grande parte, depende dela mesma o seu modo de
viver e de reagir ao que vem de “fora”.
Para desenvolver a atenção a si mesmo(a) e dar aos outros a atenção que eles merecem, cinco
atitudes são fundamentais segundo Dietrich von Hildebrand. Por serem “hiperatuais”, ele as
chamava de “atitudes éticas fundamentais”:
Respeito
Fidelidade
Responsabilidade
Veracidade
Bondade
Mais do que conteúdos moralistas (quer dizer, que impõem uma visão particular como se ela fosse
melhor do que as outras), esses cinco valores justificam-se por si mesmos quando se deseja agir
bem.
O respeito consiste em abrir-se aos outros e a tudo o que existe, considerando-os como dotados de
um valor indiscutível. É a atitude de quem não se fecha em seu “eu”, querendo dominar tudo ou
entender tudo apenas de seu ponto de vista, mas aceita que tudo, pelo simples fato de existir,
merece ser levado a sério. Das cinco atitudes éticas fundamentais, o respeito seria a mais
fundamental de todas. A fidelidade, por sua vez, consiste na tentativa de ser alguém que, mesmo em
meio às mudanças da vida, permanece digno de confiança. A responsabilidade é a atitude de assumir
as consequências de nossos atos; é o contrário de quem simplesmente “vai vivendo”. A veracidade é
a tentativa de evitar esconder quem somos e de evitar mentir. A bondade, por fim, é o resultado das
outras atitudes fundamentais e torna-se ela mesma uma atitude ética: consiste na tentativa de,
sendo agradável, mostrar a tudo e a todos o valor que vemos neles.
Você pode encontrar a análise mais detalhada de Dietrich von Hildebrand no pequeno livro Atitudes
éticas fundamentais (Editora Quadrante).
cada indivíduo simplesmente “escolhe” sua identidade, pois todos são devedores, em maior ou
menor grau, das construções sociais nas quais nascem e crescem. No entanto, ele chama a atenção
para a inegável possibilidade de mesclar identidades e inserir-se em um processo contínuo de dar
novos sentidos à própria existência e à existência das instituições sociais. A cidadania, em vez de ser
a manutenção de alguma identidade “natural”, é a construção de uma identidade que considera a
convivência de todos na mesma casa comum, o Planeta Terra; é uma cidadania em rede, muito mais
ampla do que as fronteiras erguidas pelas mentalidades e pelos territórios.
O descompasso entre as decisões dos Estados e o pensamento dos indivíduos foi vivido de maneira
catastrófica no século XX. A filósofa alemã Hannah Arendt (Ícone: Conteúdo tratado em outra
página p. 117), em seus livros A condição humana e As origens do totalitarismo, denunciou com
grande sensibilidade o fato de que a crença no Poder dos Estados foi a causa de práticas
autoritárias como o nazismo e o stalinismo, bem como dos dois maiores horrores já conhecidos
pela Humanidade: as duas Guerras Mundiais. Hoje, a ação cotidiana de indivíduos, grupos e
governos pode ser tão destrutiva quanto esses horrores. A Humanidade chegou a um ponto em que
pode destruir a si mesma e à vida no Planeta mesmo sem guerras.
Diante da dificuldade de chegar a uma visão comum sobre o que é bom para o ser humano em geral,
a Organização das Nações Unidas (ONU) publicou, em 1948, a Declaração dos Direitos Humanos:
trata-se de um documento que procura garantir direitos mínimos para todos os indivíduos de todos
os lugares do mundo. A Declaração não funciona como lei, pois a ONU não tem propriamente o
poder de dar ordens aos países, embora ela possa impor exigências aos países que dela fazem parte.
Entre os direitos mínimos – que os países são convocados a respeitar independentemente de suas
concepções éticas ou políticas – estão o direito à vida, à liberdade e à segurança, o direito de não ser
torturado, o direito de não ser preso sem motivo, o direito a não ser condenado sem julgamento
justo e público, o direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião etc.
Em nosso país, há, infelizmente, muitos cidadãos contrários aos direitos humanos, sobretudo
quando pessoas que cometeram atos maus são tratadas com respeito e bondade. Há mesmo quem
defenda a pena de morte. No entanto, esses cidadãos não percebem como sua opinião é
contraditória, pois eles mesmos, se algum dia e depois de algum tropeço ético ou de algum
desequilíbrio, cometerem um ato mau, certamente desejarão ser tratados com respeito e bondade,
sem tortura, com julgamento justo e público etc. A reflexão filosófica contribui para compreender
que ou os direitos são respeitados de modo igualitário ou eles deixam de ser realmente direitos e
passam a ser privilégios dos mais fortes.
No horizonte dessa reflexão sobre a complexidade e a riqueza da prática ética, permanece o tema
do sentido: o ser humano é um ser capaz de dar sentido à sua existência. Vendo a si mesmo dessa
maneira, ele tem a possibilidade de construir uma prática ética que contribua efetivamente para
uma vida individual e social sempre melhor.
© GUICHAOUA /ALAMY STOCK PHOTO
EXERCÍCIO D
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 487
1. Comente o descompasso que pode haver entre as ações dos Estados e os desejos dos
indivíduos.
INTERCONTINENTALE/AFP
Assembleia Geral da ONU, 1948, Paris, Adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
EXERCÍCIOS COMPLEMENTARES
1 Dissertação argumentativa
Faça uma dissertação argumentativa (p. 280) tendo como tema a pergunta: “As paixões podem
impedir os seres humanos de serem éticos?”.
2 Atividade em grupos
Sob a orientação de seu(sua) professor(a) de Filosofia, divida a turma em oito grupos, a fim de
estudar a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Cada grupo ficará encarregado de uma
atividade: Grupo 1 – pesquisar como surgiu a Declaração; Grupo 2 – estudar o Preâmbulo; Grupo 3
– analisar os Artigos 1 a 5; Grupo 4 – analisar os Artigos 6 a 10; Grupo 5 – analisar os Artigos 11 a
15; Grupo 6 – analisar os Artigos 16 a 20; Grupo 7 – analisar os Artigos 21 a 25; Grupo 8 – analisar
os Artigos 26 a 30. Vocês precisarão de uma aula para estudar em grupos; se seu(sua) professor(a)
considerar mais conveniente, o estudo em grupos pode ser feito em casa. Preparem o resultado de
seus estudos na forma de cartazes ou de PowerPoint, caso sua sala de aula seja equipada com
computador e projetor. Vocês devem resumir o conteúdo estudado e refletir sobre um modo direto
de apresentá-lo. Na aula seguinte, cada grupo expõe seu resultado. O documento da Declaração
pode ser encontrado no site da ONU: <http://www.dudh.org.br/ wp-
content/uploads/2014/12/dudh.pdf>.
Acesse:
Propomos aqui uma atividade muito prazerosa e instrutiva. Ela segue obras visuais e musicais
apresentadas em 2002, no museu Cité de la Musique [Cidade da Música], em Paris, durante a
exposição Figuras da paixão. Propomos que você veja pela Internet algumas das pinturas e
esculturas dessa exposição e ouça, ao mesmo tempo, as músicas que eram tocadas nas respectivas
salas em que cada uma das obras visuais se encontrava exposta.
O objetivo é reproduzir, de certo modo, sensações parecidas com as dos expectadores/ouvintes do
século XVII, quando o tema das paixões recebeu um tratamento novo. Indicaremos os links em que
você poderá encontrar a pintura e a música.
No século XVII, surgiu um tema artístico de forte significação: a expressão das paixões. Hoje, na
linguagem comum e na linguagem artística, fala-se da “Paixão de Cristo”, isto é, de seu sofrimento,
tal como expresso pelo termo latino passio. Na Idade Média e no Renascimento, esse tema já havia
sido bastante explorado, mas, durante a Idade Moderna, com o “estilo” barroco, o tema da Paixão de
Cristo é ainda mais desenvolvido, procurando-se exprimir o aspecto físico do sofrimento de Jesus,
bem como o seu estado psicológico, suas paixões de dor, medo e angústia.
Aos poucos, na História da Arte, essa tentativa de exprimir a experiência interna de Jesus passou à
expressão das paixões de personagens não religiosas. Buscava-se exprimir pela pintura, escultura e
música, aquilo que as pessoas viviam como paixões em geral (não apenas o sofrimento, mas
também a alegria, o prazer etc). Foi para aproximar os seus visitantes desse mundo passional que a
Cité de la Musique organizou a exposição Figuras da Paixão, apresentando ao mesmo tempo e no
mesmo local obras visuais e música.
A – Da Paixão às paixões
Acesse:
Acesse:
Ao mesmo tempo, ouça: Tenebrae facta sunt [E as trevas foram feitas], de Marc-Antoine Charpentier (1643-
1704). Disponível em: <https:// www.youtube.com/watch?v=dlIo-qGiTLI>. Acesso em: 7 out. 2015.
Acesse:
Contemple o quadro La sainte face [A santa face], de Claude Mellan (1598-1688). Disponível em:
<https://upload.wikimedia.org/wikipedia/ commons/c/ca/Claude_Mellan_-_Face_of_ Christ_-
_WGA14764.jpg>. Acesso em: 7 out. 2015.
Acesse:
Ao mesmo tempo, ouça: Le reniement de Saint Pierre [A negação de São Pedro], de Marc-Antoine Charpentier,
principalmente o coro final. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch ?v=_-QxdDXaY_U>. Acesso em:
7 out. 2015.
Acesse:
Contemple o quadro Portrait funéraire d’Henriette Sélincart [Retrato fúnebre de Henriette Sélincart], de
Charles le Brun (1619-1690). Disponível em: <https://www.flickr.com/photos/ma gika2000/3753271460/>.
Acesso em: 7 out. 2015.
Acesse:
Ao mesmo tempo, ouça: La mort de Didon [A morte de Dido], de Michel Pignolet de Montéclair (1667-1737).
Disponível em: <https://youtube.com/watch?v=W1mNQUNa3xo>. Acesso em: 7 out. 2015.
Acesse:
Contemple o quadro Portrait d’une femme inconnue, dite La Menaceuse [Retrato de uma mulher desconhecida,
chamada “A ameaçadora”], de Hyacinthe Rigaud (1659-1743). Disponível em:
<https://upload.wikimedia.org/wikipedia/ commons/a/a3/La_Menasseuse_1709.jpg>. Acesso em: 7 out.
2015.
Acesse:
Ao mesmo tempo, ouça: Le doge de Venise [O doge de Veneza], de Jacques Gallot (1625-1625). Disponível em:
<https://www.youtube.com/ watch?v=IQSuc-imQ5c>. Acesso em: 7 out. 2015.
Acesse:
Contemple o quadro Portrait d’homme en Bacchus [Retrato de homem como Baco], de Henri Millot (morto em
1756). Disponível em: <http:// sites.univ-provence.fr/pictura/Images/A/4/ A4468.jpg>. Acesso em: 7 out.
2015.
Acesse:
Ao mesmo tempo, ouça: Charmant Bacchus, dieu de la liberté [Charmoso Baco, deus da liberdade], de Jean-
Philippe Rameau (1682-1764). Disponível em: <https://www.youtube.com/ watch?v=IaOZZ4yUiLo>. Acesso
em: 7 out. 2015.
Acesse:
Contemple a escultura Copie de Laocoon du XVIIIème siècle [Cópia de Laocoonte, século XVIII], de artista
desconhecido. Disponível em: <http://rgi.revues.org/944>.
Acesse:
Acesso em: 7 out. 2015. Ao mesmo tempo, ouça: Plainte sur la mort de Monsieur Lambert [Lamentação pela
morte do Senhor Lambert], de Jacques Du Buisson (morto em 1710). Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=JEmUi296yVo>. Acesso em: 7 out. 2015.
C – Para um contraste cultural e uma percepção do que há de comum entre culturas diferentes,
sugerimos que você reflita sobre as populações indígenas sul-americanas que viviam ao mesmo
tempo que os europeus estavam no século XVII. Os indígenas desenvolveram maneiras muito
diferentes de exprimir as paixões, mas isso só confirma que elas são universais. O antropólogo
brasileiro Eduardo Viveiros de Castro (1951-) tem obtido reconhecimento mundial por sua maneira
de estudar diferentes experiências indígenas e falar delas. No seu entender, há uma visão indígena
sobre o ser; portanto, há também uma Ética. Para orientar-se em sua reflexão, leia a entrevista
Antropologia renovada, concedida por Eduardo Viveiros de Castro à Revista CULT em 2010.
Disponível em: <http://revistacult. uol.com.br/home/2010/12/antropologiarenovada/>. Acesso
em: 7 out. 2015.
Acesse:
Essa atividade foi extraída de: MOURA LACERDA, T. As paixões. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. (Coleção Filosofias: O
Prazer do Pensar.)
Ícone: Dica de filmes Dicas de filmes para você assistir tendo em mente o que trabalhamos
neste capítulo
Meia-noite no Jardim do Bem e do Mal (Midnight in the Garden of Good and Evil), direção Clint Eastwood, EUA,
1997.
O jornalista John Kelso, de Nova York, vai até a Geórgia para registrar a festa de Natal de uma pessoa muito
conhecida e poderosa, Jim Williams. Um assassinato acontece e Jim é acusado, mas alega legítima defesa. Jim
tenta usar todo o seu poder para influenciar o julgamento.
O jardineiro fiel (The Constant Gardner), direção Fernando Meirelles, EUA, 2005.
Além da trama de mistério que perpassa o filme, o diretor brasileiro Fernando Meirelles explora o tema do
limite ético para os testes de medicamentos em cobaias.
Reunidos em uma casa na montanha, um grupo de jovens revive lembranças que levantarão a dúvida sobre a
autenticidade da prática ética de alguns deles na luta por seus sonhos. Como comenta o diretor, no filme “tudo
gira em torno da sobrevivência, para tratar dos conflitos morais de um mundo que conheço”.
Um dos textos mais antigos a abordar um conflito ético, essa peça de teatro (representada já no século V a.C.)
registra a história de Antígona, que se vê diante do dilema de seguir uma ordem do rei Creonte ou desobedecê-
la a fim de ser justa com seu irmão morto.
Lavoura arcaica, de Raduan Nassar, Companhia das Letras, 1989.
Narrativa em primeira pessoa da história de André, que explica a seu irmão Pedro por que saiu de casa e os
motivos pelos quais não podia mais aceitar os valores paternos. Pedro tenta levar André de volta para casa,
com o objetivo de restabelecer a paz na família, mas André rememora fatos impressionantes que põem os
leitores diante da pergunta pelo porquê dos costumes sociais.
“Mineirinho”, texto de Clarice Lispector, no livro A legião estrangeira, Rocco, 1999. Texto centrado na história
de Mineirinho, um “bandido” que a imprensa carioca, em 1962, tratou como inimigo número um da sociedade
e que, no entanto, era visto pelos seus companheiros do “morro” como alguém que fazia justiça. Clarice
Lispector põe no centro da atenção o tema dos Direitos Humanos, mesmo sem usar essa expressão. Você pode
ler o texto gratuitamente no site do Instituto de Psicologia da USP: <http://goo.gl/MX2XmB>. Acesso em: 25
maio 2016.
Acesse:
As paixões ordinárias: Antropologia das emoções, de D. Le Breton, tradução L. A. Salton Peretti, Vozes, 2009.
Abordagem antropológica das emoções e das culturas. Embora as percepções sensoriais e a expressão das
emoções brotem da intimidade mais secreta de cada pessoa, elas também são social e culturalmente
modeladas. Os gestos que sustentam a relação com o mundo se juntam a um simbolismo corporal que lhes
confere sentido, nutrindo-se ainda da cultura afetiva que, segundo o autor, cada pessoa vive à sua maneira.
Introdução à Ética filosófica I: Escritos de Filosofia IV, de Henrique C. de Lima Vaz, Loyola, 2001.
Excelente história da reflexão ética no Ocidente. O autor resume com grande clareza o pensamento ético de
alguns dos filósofos que exerceram mais influência no pensamento ocidental e identifica linhas comuns que
aparecem nas diversas propostas éticas.
Depois das virtudes, de Alasdair MacIntyre, tradução Jussara Simões, EDUSC, 2001.
Obra de grande importância para a filosofia ética e política atual. O autor analisa elementos históricos e
teóricos para pensar o que seria a ética em um modelo posterior ao modelo clássico das virtudes.
Recomendamos que os leitores fiquem atentos para não ler a primeira edição da obra em português, pois ela
contém erros graves de tradução. Apenas a segunda edição é recomendável.
Textos de filósofos selecionados e comentados pelo professor Danilo Marcondes, da PUC-Rio. Entres os autores
estão Platão, Aristóteles, Agostinho de Hipona, Tomás de Aquino, Descartes, Espinosa, Hume, Kant,
Kierkegaard, Nietzsche, Stuart Mill, Max Weber, Freud e Foucault.
Página 280
As virtudes morais, de Marco Zingano, WMF Martins Fontes, 2013, Coleção Filosofias: o prazer do pensar.
O autor explora a atualidade do pensamento aristotélico sobre as virtudes e o testa com alguns desafios
contemporâneos. Trata também de temas como a amizade, o amor e o altruísmo.
As paixões, de Tessa Moura Lacerda, WMF Martins Fontes, 2013, Coleção Filosofias: o prazer do pensar.
Apresentação didática do tema das paixões e centrada em pensadores estratégicos como Tomás de Aquino,
Descartes, Espinosa e Freud.
A invenção dos Direitos Humanos: Uma história, de Lynn Hunt, tradução Rosaura Eichenberg, Companhia das
Letras, 2009.
DISSERTAÇÃO ARGUMENTATIVA
Dissertação argumentativa é a redação que defende uma posição com base em argumentos.
Diferente da dissertação de problematização (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 106) e da
dissertação de síntese filosófica (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 138), a dissertação
argumentativa contém o pensamento de quem a escreve.
Na realidade, toda dissertação é argumentativa, porque deve justificar suas afirmações e negações
com base em razões que os leitores podem avaliar, mesmo quando essas razões são tomadas do
pensamento de outros autores. Aqui se chama de dissertação argumentativa propriamente dita
aquela na qual quem escreve dá seus próprios argumentos para convencer os leitores. Ela também
pode ser construída como dissertação de problematização, mas os argumentos devem ser
encontrados pela própria pessoa que escreve.
2) montar um esquema – elaborar um plano apenas com palavras-chaves, ligando-as entre si com
outras palavras ou com sinais gráficos (fazer um “esqueleto”), e seguir esse plano no momento de
escrever (obviamente esse plano poderá mudar se alguma novidade aparecer durante a redação);
4) compor um ou mais parágrafos para apresentar as razões que justificam o próprio pensamento;
5) compor um parágrafo de conclusão – momento de afirmar com clareza a própria posição (caso se
tenha começado pela conclusão, o último parágrafo pode retomar o que foi adiantado no início do
texto).
Para fornecer um exemplo de estrutura de uma dissertação argumentativa, podemos tomar aqui o
tema: As paixões impedem os políticos de serem éticos?
O tema está na forma de pergunta e relaciona as paixões com a possibilidade de que elas impeçam
os políticos de serem éticos. É preciso, então, saber o que são as paixões e por que elas podem ser
vistas como obstáculo para a prática ética dos políticos. Uma forma de apresentar o tema é
esclarecer os subtemas e levantar dados que confirmem a resposta dada à questão. Nesta
dissertação, tomaremos a posição de que as paixões não precisam ser vistas necessariamente como
obstáculo para a prática ética dos políticos, porque, como todo ser humano, os políticos podem
interferir no modo de viver as paixões, adotando uma postura ética. Para fazer isso, usaremos uma
conjunção adversativa (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 140).
Passo 2: Esquema
2 – Parágrafo 2:
(a) o que é uma paixão? → experiências em que somos “tomados” = emoções
(b) paixões = obstáculos à prática ética → ações inadequadas → reações de ódio, entusiasmo,
desrespeito, confiança total, cumplicidade na maldade etc.
3 – Parágrafo 3:
(a) transição do Parágrafo 2 ao 3:
No entanto, (conjunção adversativa) → as paixões não impedem necessariamente a prática ética
(b) por quê? Porque seres humanos = seres que podem interferir no modo de viver as paixões
(c) políticos = seres humanos = também têm a possibilidade de interferir no modo de viver as
paixões
(d) confirmação exemplo do político que, diante do abuso policial, não reagiu com raiva, mas com
respeito, e tentou convencer os policiais sem recorrer à sua autoridade pessoal.
Perguntar se as paixões impedem os políticos de serem éticos significa pensar na relação entre a
vivência das paixões e a prática ética, especificamente a prática ética dos políticos.
As paixões são experiências que tomam o ser humano, sem que ele possa controlar o surgimento
delas. Às paixões também se dá o nome de emoções; e, por nascerem no indivíduo
independentemente de ele querer ou não, elas podem ser intensificadas, caso o mesmo indivíduo
não pense em como reagir a elas. Quando isso ocorre, elas podem ser um obstáculo para a prática
ética, pois, não encaminhando bem a vivência das paixões, o indivíduo pode chegar a ações
prejudiciais para si mesmo e para seu grupo social.
Um fato público pode aqui ser tomado como sinal dessa possibilidade: no dia 1º de agosto de 2015,
o deputado estadual Carlos Augusto Maia, do PT do B do Rio Grande do Norte, foi detido em Caicó
por policiais federais que faziam uma blitz depois de uma festa tradicional da cidade. Segundo os
policiais, o deputado teria proibido seu motorista de descer do carro para fazer o teste do
bafômetro. Porém, de acordo com o deputado, a abordagem dos policiais foi desrespeitosa e, como
ele ficou surpreso diante do desrespeito, os policiais o obrigaram a descer do carro, o jogaram por
terra e o algemaram. O deputado, porém, mesmo sentindo raiva, controlou-se, conservou a calma e
tentou argumentar com os policiais, dizendo ser um cidadão de bem que não merecia aquele tipo de
tratamento. Aliás, ele só revelou que era um deputado depois de ter sido levantado do chão. Além
disso, nem seu motorista nem ele estavam alcoolizados, como confirmou o próprio delegado de
Caicó, Helder Carvalhal, ao confirmar que o deputado não desacatou os policiais nem resistiu à
abordagem.
É possível concluir, portanto, que, se as paixões são experiências que não impedem
necessariamente a prática ética e se o comportamento de alguns políticos comprova esse dado,
então as paixões não impedem necessariamente os políticos de serem éticos.
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 488
Outras referências à dissertação argumentativa
Página 282
CAPÍTULO
EXPERIÊNCIA ARTÍSTICA
12 EXPERIÊNCIA ESTÉTICA E
ALBRIGHT KNOX ART GALLERY/ART RESOURCE, NY/SCALA, FLORENCE © THE POLLOCK-KRASNER FOUNDATION / AUTVIS, BRASIL, 2016.
À esquerda: Jackson Pollock (1912-1956), Convergência, 1952, óleo sobre tela. À direita: Paul Cézanne (1839-
1906), Natureza-morta, 1893-1895, óleo sobre tela.
A s reações diante das obras de arte, especialmente as pinturas, costumam ser muito diferentes.
Por exemplo, contemplando os quadros que abrem este capítulo, algumas pessoas consideram que
o trabalho de Jackson Pollock não é uma verdadeira obra de arte, ao passo que o quadro de Paul
Cézanne seria verdadeiramente “arte”, porque “representa” a Natureza.
Mas há também quem se encanta com a liberdade e a explosão de cores e formas livres no quadro
de Pollock, considerando-o uma obra verdadeiramente artística. Desse ponto de vista, Cézanne
pareceria “menos artístico”, porque se prende demais à reprodução do mundo...
Essas diferentes atitudes permitem levantar algumas perguntas de grande interesse filosófico:
Afinal, o que é a arte? Como diferenciar um trabalho artístico de um não artístico? Por que algumas
obras causam estranheza, enquanto outras parecem mais “naturais”?
Semelhante sensação de estranheza pode nascer em quem compara, por exemplo, a dança clássica e
a dança “popular”.
Dificilmente alguém dirá que um balé clássico não tem beleza. O mesmo, porém, não ocorre com
danças “populares”. Por exemplo, a Breakdance (estilo criado nos anos 1970 e praticado
principalmente em grandes centros urbanos) ainda é vista por muitas pessoas como uma dança
sem sofisticação, menos bela e improvisada. Diz-se que seus dançarinos não têm o preparo técnico
de quem dança um balé clássico. No entanto, quem conhece bem a Breakdance sabe que, mesmo
incluindo improvisações, ela requer técnicas sofisticadas tanto quanto as da dança clássica.
Seria, então, o grau de sofisticação aquilo que determina o caráter artístico de uma prática? É
verdade que as obras de arte costumam ser vistas como o
Página 283
JACK.Q /SHUTTERSTOCK.COM
O lago dos cisnes, balé de Piotr Tchaikovsky (1840-1893). Apresentação do Balé Nacional da China no
teatro Jincheng, Chengdu, China, 5 de janeiro de 2012.
DAVIDTB/SHUTTERSTOCK.COM
O que pensar, porém, de obras cujo objetivo parece ser o de surpreender os espectadores , mais do 1
Ícone: Glossário 1 Espectador: quem vê uma obra ou um acontecimento; quem assiste a uma apresentação.
Pensemos, por exemplo, na obra Untitled 2007, do italiano Maurizio Cattelan (1960-), exposta no
Museu de Arte Moderna de Frankfurt (Alemanha).
COURTESY MAURIZIO CATTELAN’S ARCHIVE / AXEL SCHNEIDER
Maurizio Cattelan (1960-), Untitled 2007, instalação. Museum für moderne Kunst, Frankfurt, Alemanha.
A obra Untitled 2007 (literalmente: Sem título 2007) é duplamente surpreendente, pois, além de
causar impacto ao apresentar um cavalo de uma perspectiva totalmente inesperada (com a cabeça
desaparecendo na parede e o corpo dependurado para fora), ela se encontra exposta em uma região
da Alemanha onde muitos habitantes ainda têm o costume de caçar animais e pendurar a cabeça
deles como troféu em suas casas.
O choque provocado por essa obra permite perguntar se seu objetivo se refere a algo além da
beleza. Ou, ainda, se a sua beleza inclui o choque dos espectadores. De fato, Untitled 2007 provoca
uma reação em quem a contempla e leva para além do prazer ou desprazer na presença da obra. Os
espectadores são convidados a participar do trabalho artístico, perguntando-se sobre si mesmos,
sobre sua maneira de ver o mundo, sobre suas práticas sociais e sobre seu modo de conceber a arte
e a beleza.
Você provavelmente percebeu que, ao falar de Cézanne, Pollock, da dança clássica, da Breakdance e
da obra de Maurizio Cattelan, nossas palavras centrais foram arte e beleza. Ambas são relacionadas
de maneira estreita, a ponto de ser possível considerar os artistas ou quem produz arte como
pessoas que exprimem com beleza sua experiência (experiência artística). As pessoas que não são
artistas, no entanto, também podem viver experiências de beleza, inclusive por meio das obras de
quem é artista. Ainda que elas não vivam uma experiência artística em primeira pessoa, elas
experimentam a beleza em um grau diferente, mais amplo (experiência estética).
Sendo mais ampla, a experiência estética parece ser a raiz mesma da experiência particular dos
artistas, a experiência artística. Assim como todos os seres humanos têm a experiência do
pensamento, enquanto alguns têm a experiência particular à qual se dá o nome de pensamento
filosófico (o “pensamento do pensamento”), assim também todos os
Página 284
seres humanos parecem experimentar a beleza em sentido geral, enquanto alguns, os artistas, a
experimentam de modo particular.
Esse modo de dizer confirma aquelas questões filosóficas sobre o que é a arte. Acrescentam-se
outras agora: a relação com a beleza é dada a todos ou apenas a alguns? A arte está realmente
relacionada com a beleza? A arte é acessível apenas aos artistas?
O filósofo grego Aristóteles (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 103), ao analisar a ação
humana, percebeu que uma das maneiras de produzir sentido para a existência reside na arte. No
seu dizer, os seres humanos têm prazer em conhecer e em reproduzir aquilo que conhecem. De
modo especial, esse prazer é vivido por meio da arte, pois ela consiste, segundo Aristóteles, em agir
assim como a Natureza age (reproduzir o dinamismo da Natureza).
Aristóteles pensava, sobretudo, nas artes visuais (a escultura, a pintura e o teatro), uma vez que a
visão, entre os cinco sentidos, é a que mais oferece informações sobre a Natureza e, portanto,
desperta mais prazer. A tendência a imitar a Natureza leva, então, a produzir obras artísticas,
aumentando a quantidade de coisas que dão prazer. Os artistas seriam aqueles que contribuem
para esse aumento de prazer; e quem desfruta dessas obras sem produzi-las participa da
experiência prazerosa dos artistas.
No século XX, o crítico de cinema André Bazin (1918-1958), refletindo sobre o prazer de imitar ou
2
de reproduzir, afirmava que a atividade dos artistas nasce de uma necessidade de “parar o tempo”,
de escapar da correnteza da vida e de gravar para sempre a imagem, o som ou o toque vivido em
algum dos momentos passageiros. No seu entender, os artistas (escultores, pintores, dramaturgos , 3
diretores de filmes, músicos, dançarinos e tantos outros) “embalsamam” a vida, assim como os
4
antigos egípcios embalsamavam os corpos dos mortos para evitar que desaparecessem.
Para André Bazin, a atividade de “parar o tempo” é algo que vai além da imitação da vida ou da
Natureza. Seria uma ilusão acreditar que alguém, ao reproduzir algo conhecido, faz uma réplica 5
idêntica, pois, ao reproduzir, sempre se insere um toque particular, a começar do ponto de vista de
quem reproduz. Por exemplo, a natureza-morta pintada por Cézanne é a Natureza tal como vista
6
por ele. Ou ainda, mesmo nas experiências atuais de reproduzir o canto dos pássaros com o auxílio
de computadores, o resultado é sempre o canto tal como ouvido em um determinado momento e
em determinadas circunstâncias; nunca será uma reprodução perfeita da graça e do imprevisto dos
pássaros. A beleza que os artistas imprimem em seus trabalhos está, segundo Bazin, em
experimentar e exprimir algo como a eternidade, a ausência do tempo que tudo devora; está em
construir maneiras de afirmar a vida e de evitar a morte, mesmo que a morte sempre termine por
se impor.
O ponto comum entre a análise de Aristóteles e a de Bazin está em permitir entender que a
experiência estética é dada a todos, pois ela consiste na busca do prazer com a beleza expressa por
meio da arte: o desejo de aumentar as coisas prazerosas liga-se diretamente à tentativa de escapar
do tempo e de fixar aquilo que satisfaz os seres humanos mergulhados na sucessão temporal.
A experiência de tentar escapar do tempo seria uma “língua” que todos os seres humanos podem
entender. Tal seria a “língua” da arte; e, mais do que isso, a arte consistiria em uma produção de
liberdade ou em uma construção de aspectos novos para a própria existência, levando a vencer os
condicionamentos que a vida impõe naturalmente.
Ícone: Glossário 2 Crítico: aqui, significa alguém que conhece bem um assunto e analisa as produções ligadas a
esse assunto.
6Natureza-morta: estilo de pintura que retrata seres sem vida (frutas colhidas, peixes pescados, animais
caçados) etc.
Entendendo justamente a arte como produção de liberdade, diferentes pensadores, nos séculos
XVIII e XIX, passaram a referir-se aos artistas
Página 285
como gênios, quer dizer, pessoas dotadas de talento para produzir obras representativas da
possibilidade humana de vencer as amarras da vida natural. O gênio seria, assim, alguém que
produz um novo modelo de existência, completando os modelos já dados pela Natureza.
No entanto, entender a arte como obra de gênios ou de pessoas geniais é uma reflexão que contém
o seguinte risco: ela pode levar a crer que apenas pessoas “especiais” podem ter experiência
estética e artística. É verdade que, para produzir obras artísticas, requer-se talento e esforço; mas
isso não significa que apenas pessoas especiais podem ter talento; em maior ou menor grau, os
talentos podem ser desenvolvidos. Ainda que uma pessoa não chegue a tornar-se um artista com
amplo reconhecimento público, ela pode desenvolver capacidades estéticas e produzir arte. No
mínimo, ela pode apreciar as obras artísticas. Dessa perspectiva, todos seriam “gênios”, porque
possuem a possibilidade de refinar sua sensibilidade e enriquecer sua percepção do mundo com a
arte.
Já Immanuel Kant (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 207), considerando a beleza como
aquilo que agrada a todos, defendia que a arte também é para todos. Por sua vez, Friedrich
Nietzsche (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 172) não apenas insistiu nesse ponto, mas
ainda denunciou o risco de considerar que a arte é reservada apenas às pessoas dotadas de
“genialidade” ou aos indivíduos privilegiados pela Natureza.
O ponto de partida da visão nietzschiana vinha de sua concepção do ser humano como um ser
habitado por forças cósmicas que o levam em muitas direções. Se a razão é um dos pontos em que
7
essas forças se manifestam, a paixão ou a emoção também o são. O ser humano encarna esses
pontos de modo unitário, sem que razão e paixão sejam divididas nele e sem que a razão seja sua
característica específica. Nietzsche chegava a afirmar que a razão é tão somente um “órgão”
desenvolvido pelos humanos para dominar os outros seres, uma vez que eles, os humanos, foram
incapazes de desenvolver garras e presas na luta pela existência.
A compreensão da arte como algo reservado a poucos se deve, segundo Nietzsche, à ideia muito
desenvolvida no cotidiano, porém equivocada, que toma a razão como algo separado da paixão.
Habituados a se relacionar com o mundo por meio dessa ideia, os humanos embotaram suas outras
8
mesmos, acabam por ignorar a importância da paixão. Como os artistas são associados com a
paixão, passam a ser vistos como seres de outro mundo, operadores de milagres, gente fora do
normal e impossível de ser acompanhada em sua excentricidade . Curiosamente, os não artistas
10
desenvolvem também uma admiração pelos artistas, tomando-os por gênios; mas essa admiração
equivale, no limite, a uma forma de manter os artistas à distância, para que sua “anormalidade” não
incomode quem é “racional”.
Acesse:
9Mediocremente: de modo medíocre, ou seja, que se satisfaz com a média de alguma coisa, sem buscar níveis
melhores.
Muito influenciado pelos autores do Romantismo (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 193
e 389), que insistiam precisamente no papel das paixões na construção da vida humana, Nietzsche
defenderá que não há milagres na arte. Ícone: Texto filosófico
Friedrich Nietzsche
Porque pensamos bem de nós [mesmos], mas no entanto não esperamos de nós que possamos
alguma vez fazer o esboço de uma pintura de Rafael ou uma cena tal como a de um drama de
Shakespeare, persuadimo-nos de que a faculdade para isso é maravilhosa acima de todas as
11 12
medidas, um raríssimo acaso, ou, se ainda temos sentimento religioso, uma graça do alto. Assim,
nossa vaidade, nosso amor-próprio, propiciam o culto do gênio: pois somente quando este é
pensado bem longe de nós, como um miraculum [milagre], ele não fere [...]. Mas, sem levar em conta
essas insinuações de nossa vaidade, a atividade do gênio não aparece de modo algum como algo
13
História, do mestre de tática . Todas essas atividades se explicam quando se têm em mente
15
humanos cujo pensar é ativo em uma direção, que utilizam tudo como material, que sempre
consideram sua vida interior e a de outros com empenho, que por toda parte veem modelos,
estímulos, que nunca se cansam de combinar seus meios. O gênio também nada faz a não ser
aprender, primeiro, a pôr pedras, em seguida a edificar, procurar sempre pôr material e sempre
modelar nele. Toda atividade do ser humano é complicada até o miraculoso , não somente a do 16
gênio: mas nenhuma é um “milagre”. [...] Os humanos, evidentemente, só falam do gênio ali onde os
efeitos do grande intelecto lhes são mais agradáveis e eles, por sua vez, não querem sentir inveja.
Denominar alguém “divino” quer dizer: “aqui não precisamos rivalizar ”. Depois: tudo que está
17
pronto, perfeito, é admirado, tudo o que vem a ser é subestimado. Ora, ninguém pode ver, na obra
do artista, como ela veio a ser; essa é sua vantagem, pois por toda parte onde se pode ver o vir-a-ser
há um certo arrefecimento . A arte consumada da exposição repele todo pensamento do vir-a-
18 19 20
ser; tiraniza como perfeição presente. Por isso os artistas da exposição são considerados geniais
21
por excelência, mas não os homens de Ciência. Em verdade, aquela estima e esta subestimação são
apenas uma infantilidade da razão.
NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano. Tradução Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1987. p. 60.
11 Persuadir-se: convencer-se.
12 Faculdade: capacidade.
15 Tática: estratégia.
20 Repelir: afastar.
21 Tiranizar: comportarse como um tirano, ou seja, como alguém que tira a liberdade alheia.
O próprio texto de Nietzsche fornece suas chaves de leitura. Em primeiro lugar, Nietzsche afirma,
logo de início, que nós pensamos bem de nós mesmos e consideramo-nos pessoas que não têm a
possibilidade de fazer algo parecido com o que fez o pintor italiano Rafael (1483-1520) ou o
escritor inglês Shakespeare (1564-1616). Se vemos bem a nós mesmos e não aceitamos comparar o
que fazemos com o que fizeram “gênios” como Rafael e Shakespeare, é porque estamos apegados à
nossa imagem e desejamos permanecer em nossa situação confortável. Isso é confirmado pelo que
Nietzsche afirma nas linhas 6-7: somente quando o “gênio” é pensado longe de nós, ou seja, quando
ele é visto como um ser distante, miraculoso, divino, é que ele não fere, não machuca, não revela o
estado fraco em que nos encontramos. É cômodo, então, referir-nos aos artistas como “gênios”, sem
nos sentirmos obrigados a pensar se podemos ser como eles. Não queremos sentir inveja (linha 19),
pois a inveja (que é uma paixão!) nos faz ver como realmente somos. A inveja pode até pôr-nos em
movimento, levando-nos a buscar formas melhores de vida. Mas, como preferimos a calma da
acomodação por preguiça ou por falta de vontade de mudar, então evitamos a inveja. Mantemos os
artistas à distância e os tratamos como seres divinos, com quem não se pode rivalizar (linhas 19-
20).
Propondo uma filosofia do vir-a-ser na qual as identidades são móveis, Nietzsche prefere falar da
arte como resultado do mesmo movimento ou das mesmas forças que fazem alguns tornarem-se
mecânicos; outros, astrônomos, historiadores ou estrategistas.
Página 287
Os seres humanos seriam atravessados por essas forças e dotados da mesma possibilidade de
segui-las; o problema está em que, por força do hábito, eles se acostumam com a imagem que fazem
de si mesmos e não desejam entrar no movimento cósmico. Intelectualizam a atividade artística,
quer dizer, encontram explicações para ela (interpretações racionais como a da genialidade
miraculosa) e evitam toda provocação. Colocam o “pensamento racional” entre eles e a arte.
EXERCÍCIO A
1. O que significa, segundo Aristóteles, imitar a vida ou a Natureza? Por que os seres humanos
praticam essa imitação?
2. Tomando por base a metáfora do embalsamento, apresente a visão de André Bazin sobre a
arte.
3. Como Nietzsche permite superar a ideia de que a arte é algo reservado a poucos?
2 A beleza
Partindo da concepção geral que relaciona a arte à beleza, faz-se necessário esclarecer o que é a
beleza, a fim de poder entender melhor o que é a própria arte. Trata-se de uma tarefa de grande
importância filosófica, sobretudo porque algumas obras e atividades são marcadas de beleza (e
podem, portanto, ser classificadas como arte), mas servem também a fins utilitários (e, então, não
têm a gratuidade que parece envolver a arte).
Por exemplo, alguns prédios são construídos para finalidades específicas (um prédio comercial, um
hotel, uma igreja etc.) e, no entanto, não deixam de ser belos. O mesmo sucede com músicas,
desenhos, pinturas, esculturas etc. Essas obras perdem quanto à graça que caracteriza o prazer de
simplesmente estar na presença de um trabalho artístico (pois remetem à utilidade para a qual
foram construídas), mas isso não as impede de manifestar beleza. Hoje, aliás, surge a problemática
da transformação da beleza em meio de obter lucro: estamos ainda diante da beleza quando a
finalidade não é sua presença, mas o lucro? Se a arte relaciona-se com a beleza, e se a beleza é
transformada em meio para obter lucro, então a arte também pode ser direcionada para o lucro?
Retorna, portanto, de modo inescapável, a pergunta sobre o que diferencia uma obra artística de
uma obra não artística. Mais do que isso, torna-se indispensável perguntar sobre o que é a própria
beleza e o tipo de relação existente entre ela e a arte.
A construção da noção de beleza é tão antiga quanto a própria Filosofia. A seguir encontraremos
alguns elementos centrais dessa construção.
FILIPE FRAZAO/SHUTTERSTOCK.COM
DOTSHOCK/SHUTTERSTOCK.COM
Acima: Hotel Unique, em São Paulo, projetado pelo arquiteto Ruy Ohtake (1938-). À direita: Caixa de pralinas e
chocolates de luxo.
Página 288
O filósofo grego Platão (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 82) foi um dos primeiros
pensadores a transformar a beleza em tema filosófico. Sua estratégia consistiu em desconstruir
inicialmente as interpretações da beleza que circulavam em sua época. Como elas lhe pareciam
incoerentes, Platão terminou por descartá-las; mas foi desse confronto reflexivo que nasceu sua
própria concepção.
Diante da opinião que identificava a beleza com a riqueza, as coisas convenientes, a utilidade e a
vantagem, Platão lembrava que algo pode ser útil e vantajoso sem ser belo. Assim, não é a beleza
que dá a utilidade de alguma coisa.
Platão recusa ainda a opinião de que a beleza é o “conjunto das coisas belas” e de que ela pode ser
entendida com um simples olhar para esse conjunto. Platão lembra que coisas belas surgem e
desaparecem, transformam-se, perecem , mas, apesar de elas desaparecerem, surgem outras
22
também belas; os seres humanos continuam a ver beleza no mundo e a falar dela,
independentemente do conjunto de coisas belas com que deparam. Além disso, nenhum ser
humano seria capaz de conhecer o conjunto de todas as coisas belas, para somente depois poder
falar de beleza. Conhecendo poucas ou muitas coisas belas, todos são capazes de identificar a
beleza; portanto, ela não corresponde à soma total das coisas belas.
Segundo Platão, as coisas belas convidam o olhar humano a ir para além delas mesmas. As coisas
belas revelam um modo de ser, o modo de ser com beleza. Ora, se as coisas podem ter um modo de
ser que não desaparece com elas, então esse modo de ser deve ter uma fonte diferente das coisas
mesmas. A essa fonte do modo de as coisas serem belas Platão chamava de Beleza. Ela é uma Ideia,
Forma ou Essência (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 150) que age nas coisas mas não se
identifica com elas; transcende-as (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 80). A Beleza
apresenta-se, então, como algo que não pode ser definido com precisão, pois supera toda
compreensão baseada apenas nas coisas belas, mas que pode ser apontado como a fonte do sentido
de tudo que se considera belo.
Nos livros Filebo e Leis, Platão chegou a enumerar algumas características que tornam belas as
coisas materiais: os pontos, as linhas, a proporção nas medidas, a simetria , as cores, o ritmo etc.
23
Influenciado pelo pensamento pitagórico (p. 289), Platão insistia que é a harmonia entre o todo e as
partes que dá a beleza das coisas. Era uma concepção matemática de harmonia: a repetição de
unidades pode ser feita de modo a adaptar e transformar essas unidades em uma unidade de
conjunto. Dessa perspectiva, mesmo uma ação podia ser vista como bela, pois, se os seus diferentes
momentos forem praticados em harmonia, então se produz uma ação harmônica no conjunto.
Todas as coisas do mundo natural também são belas, pois manifestam harmonia entre as partes do
cosmo (o conjunto do Universo).
Sua maneira de conceber a beleza levou Platão a nutrir certa suspeita com relação aos artistas. No
seu entender, se eles não integrassem sua atividade em um processo mais amplo que levasse a
olhar para além das próprias obras e para além do belo aspecto das coisas, aprisionariam o ser
humano em uma visão limitada do mundo, fazendo-os crer que o que existe é apenas aquilo que se
capta pelos cinco sentidos (coisas materiais ou sensíveis). Concentrando-se apenas na beleza
visível, o risco era de não chegar à beleza invisível.
Por essa razão, em seu livro A República, ao traçar o projeto de uma cidade perfeitamente justa,
Platão chegou a declarar que os artistas não teriam lugar em tal cidade, pois eles poderiam ser um
obstáculo à educação verdadeira, aquela cujo objetivo é alcançar o Bem invisível (Ícone: Conteúdo
tratado em outra página p. 154). A Beleza, segundo Platão, é um aspecto do Bem; e a beleza
percebida pelos cinco sentidos é apenas um aspecto da Beleza inteligível, isto é, que se pode
entender pelo pensamento sobre as coisas belas. Seria necessário ir além da experiência das belas
coisas e da própria Beleza, a fim de ver a plena possibilidade de realização de todas as coisas (o
Bem).
Isso não quer dizer que Platão fosse contrário à arte ou contrário ao prazer obtido com as coisas
belas. Em sua obra O banquete, ele é bastante explícito ao considerar que a percepção da beleza
sensível (nas coisas belas) é o começo do caminho que faz “subir” até a Beleza inteligível.
Inadequado, no seu dizer, era associar a Beleza com a arte, pois esta, quando praticada sem os olhos
fixos no Bem, pode ser aprisionadora. Daí a suspeita platônica em relação aos artistas. Dito de outra
maneira, a arte, para Platão, estava intimamente ligada à Ética e à Política.
A visão platônica exercerá grande influência sobre o modo como os filósofos tratarão a relação
entre beleza e arte. Cerca de 500 anos depois de Platão, o filósofo
Página 289
Plotino (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 290) recupera o pensamento do mestre,
chegando a chamá-lo de “Divino Platão”. A concepção plotiniana da arte contará, porém, com uma
novidade: ela passará a ter um estatuto mais positivo.
Elaborando elementos herdados também de Aristóteles (Ícone: Conteúdo tratado em outra página
p. 103), Plotino continuará a entender a beleza como a fonte da harmonia dos seres, mas
considerará que a arte ou a verdadeira imitação daquilo que se conhece no mundo sensível é uma
ocasião para chegar ao conhecimento das Ideias, Formas ou Essências. A arte será, portanto, um
caminho de acesso à beleza. Sendo mais do que uma simples produção material de obras, ela se
mostra como atividade espiritual que aciona a sensibilidade, o pensamento e o desejo. Por acionar
essas possibilidades, ela permite entrar no caminho que leva ao Bem, sustento de tudo o que existe
e fonte de toda unidade (harmonia) no cosmo. Por ser fonte de unidade, o Bem ou o Bem Supremo
de que falavam Platão e Aristóteles será chamado de Uno por Plotino.
Por conseguinte, considerando o Uno como fonte de tudo, Plotino afirmava que tudo contém em si
um impulso de retorno ao Uno, um desejo ou movimento amoroso que leva a evitar a dispersão e a
reunir-se na unidade, até conhecer a Unidade suprema. Não foi à toa que, com base no pensamento
plotiniano, criou-se um ditado filosófico de grande sucesso: “A beleza atrai por si mesma”. Ela não
depende da arte ou do trabalho dos artistas para atrair, embora ela esteja na raiz da arte e de todas
as atividades.
Sem fazer a beleza depender da arte, Plotino também não as separa com a mesma força que
separava Platão. A arte verdadeira continua sendo aquela que permite ao ser humano trabalhar a si
mesmo, “esculpir-se” em um movimento que vai além do aspecto belo das coisas e permite buscar a
raiz da beleza. Uma das condições dessa “escultura de si” era fugir do mundo: longe de significar um
desprezo do mundo, do corpo, dos prazeres, das coisas belas etc., essa “fuga” ocorre quando o
indivíduo volta-se para “dentro de si”, perguntando-se sobre o porquê do mundo, do corpo, dos
prazeres, das coisas belas. A fuga seria obra de um “olho interior”, capaz de enxergar para além das
aparências. Ícone: Texto filosófico
A escultura de si
Plotino
É necessário ver a alma daqueles que realizam as obras belas. Como se pode ver essa beleza da
alma boa? Volta-te a ti mesmo e olha se tu não vês, todavia, a beleza em ti; faze como o escultor de
uma estátua, que deve ser bela; toma uma parte, esculpe-a, pole-a e vai ensaiando até que tires
24
linhas belas do mármore. Como aquele [escultor], tira o supérfluo , endireita o que é oblíquo ,
25 26
limpa o que está obscuro para torná-lo brilhante e não cesses de esculpir tua própria estátua, até
que o resplendor divino da virtude se manifeste, até que vejas a temperança sentada sobre um 27
trono sagrado. Tu és já isso? É isso que tu vês aí? É isso o que tu viste, um comércio puro, um trato 28
puro, sem nenhum obstáculo à tua unificação, sem que nada estranho esteja mesclado
interiormente a ti mesmo? És tu todo inteiro uma luz verdadeira, não uma luz de dimensão ou de
formas mensuráveis que pode diminuir ou aumentar indefinidamente em magnitude , senão uma
29 30
luz que carece em absoluto de medida, porque ela é superior a toda medida e quantidade? Tu te vês
nesse estado?
PLOTINO. Sobre o Belo (Enéadas I, 6). Tradução Ismael Quiles. In: DUARTE, R. (Org.). O belo autônomo: textos clássicos de Estética.
Belo Horizonte: Autêntica; Crisálida, 2012. p. 57.
Pitagorismo
Nome geralmente utilizado para se referir ao movimento iniciado por Pitágoras de Samos, em
meados do século VI a.C., cuja influência foi decisiva para o pensamento ocidental. A escola teve
como ponto de partida a cidade de Crotona, no sul da atual Itália, e concebia os números e as
harmonias matemáticas como os princípios e as essências de toda a realidade. Seus representantes
mais conhecidos são Filolau, Árquitas, Alcmeão e a filósofa Melissa.
Página 290
Laocoonte e seus filhos (séc. II ou I a.C.), escultura em mármore de Agesandro, Atenodoro e Polidoro, habitantes
da ilha de Rodes. O conjunto se perdeu por volta do século II d.C. e foi reencontrado no século XVI, próximo ao
Coliseu, em Roma, exercendo grande influência sobre os artistas renascentistas, especialmente Michelangelo.
Os renascentistas logo reconheceram as características da concepção grega de beleza, principalmente pela
harmonia do conjunto e o movimento das formas.
Plotino (205-270)
Foi um filósofo nascido em Licópolis (atual Assiut, no Egito) e fundador de uma releitura de Platão
que ficou conhecida como neoplatonismo. Foi discípulo de Amônio Sacas durante onze anos, em
Alexandria. Aos quarenta anos, fundou sua própria escola em Roma. Escreveu inúmeros tratados,
que foram organizados por seu discípulo Porfírio em seis grupos de nove tratados cada, chamados
de Enéadas. Seu pensamento é compreendido geralmente como a descrição de um duplo
movimento da Natureza: o primeiro narra o surgimento de todas as coisas a partir da unidade do
princípio, o Uno (movimento de “processão” ou “emanação”); e o segundo narra o movimento da
alma humana que busca retornar da multiplicidade exterior até a unificação com o princípio (a
chamada “conversão” ou “retorno”).
Agostinho de Hipona (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 170), por exemplo, entende que
todas as coisas naturais são belas, inclusive aquelas que parecem não belas, como um escorpião que
certamente pica quem o toca. Em seu livro
Confissões, Agostinho explica que o escorpião é uma criatura boa e bela, pois tem sua função no
conjunto dos seres. O que o torna aparentemente “mau” e “não belo” é o ato equivocado do ser
humano que o pega na mão. Seu lugar não é a mão humana; portanto, sua bondade e sua beleza só
podem ser percebidas se ele estiver lá onde tem sua função, servindo, por exemplo, de alimento
para outros animais.
A novidade trazida pela Patrística e pela Idade Média para o modo de falar da beleza está em
conceber que o Universo pode ser pensado como obra de uma criação divina. Se há um ser divino,
ele é bom e belo no grau mais elevado, pois é a fonte da beleza e bondade de tudo. Ora, se tudo é
criado por ele, então tudo também é belo e bom.
Movidos por sua experiência de fé, os pensadores da Patrística e da Idade Média viam a Deus como
alguém com quem se pode estabelecer uma relação amorosa. A esse “alguém” (que seria como uma
“pessoa”) eles identificam o Bem Supremo ou o Uno de que falavam os pensadores antigos. Por
conseguinte, nele (Deus) residem o Bem Supremo e a Beleza Suprema. Esses termos passam a ser
empregados como diferentes nomes de Deus mesmo.
No caso específico da beleza, se Deus é a fonte de todos os seres e se ele é a própria Beleza, reforça-
se a ideia platônica de harmonia e afirma-se que todas as coisas são belas porque são criadas
harmonicamente por Deus. A beleza natural no mundo passa a ser entendida como reflexo da
beleza de seu criador.
Esse aspecto novo leva os autores patrísticos e medievais a recuperar a suspeita platônica em
relação à arte, bem como a separação entre beleza e arte. A fixação na beleza das coisas e no
trabalho dos artistas pode produzir um afastamento de Deus caso as coisas belas e o trabalho dos
artistas sejam tomados como fins em si mesmos. A boa arte e a verdadeira beleza serão somente
aquelas que contribuírem para a vida ético-religiosa dos indivíduos, ajudando-os a louvar a beleza
do grande “Artista” que os criou.
Agostinho, nesse sentido, valorizava fortemente o prazer despertado pelas coisas belas, mas dizia
temer que os atrativos belos “acorrentassem” a alma. A atitude ideal seria, então, desfrutar do
prazer com as coisas belas sem parar o olhar nelas mesmas, mas elevando-o à Beleza ou fonte de
toda beleza, a fim de estabelecer uma relação amorosa com ela.
No século VIII, a suspeita religiosa em relação à arte foi levada ao extremo, dando origem ao que
ficou
Página 291
No século XIII, Tomás de Aquino (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 114), embora
elogiasse a arte, também se mostrou receoso diante do exagero da sua valorização. Ele tomou, por
exemplo, posição contrária ao uso de instrumentos musicais nas cerimônias religiosas, pois, no seu
entender, as pessoas podiam apegar-se à beleza dos sons e desviar sua atenção de Deus. A arte
podia transformar-se em apego à aparência das coisas, iludindo as pessoas e enchendo-as de si
mesmas.
Uma consequência ética dessa suspeita com relação ao trabalho artístico não deixou, porém, de ter
interesse filosófico: é possível ver beleza mesmo em pessoas, coisas e atitudes sem aparência
atraente. Passa-se a falar, por exemplo, da beleza de pessoas verdadeiras e amáveis, mesmo
fisicamente não belas. Na contrapartida, pensa-se também na feiura de realidades superficialmente
belas (especialmente a feiura das más ações de pessoas fisicamente atraentes). Essa ideia já aparece
no pensamento de Platão e tornou-se bastante explorada a partir da Idade Média.
Convém lembrar ainda que, apesar da retomada da suspeita platônica, a Era Patrística e a Idade
Média não deixaram de valorizar a arte. Desde os inícios da fé cristã se valorizou a produção de
pinturas, por exemplo, porque, além de apontarem para a beleza divina, elas serviam para formar
as pessoas que não sabiam ler. No período medieval, floresceu a arte do canto, da escultura, da
arquitetura, da pintura, da poesia e da literatura, dando-se os primeiros passos rumo à prática de
aplicar conhecimentos matemáticos e científicos à produção artística.
A esse respeito, o julgamento que alguns autores do Renascimento (Ícone: Conteúdo tratado em
outra página p. 382) emitiram sobre a Idade Média, chamando-a de “era das trevas”, é
historicamente equivocado. Os autores medievais nunca se posicionaram contra a luz trazida pelo
conhecimento e pela experiência artística. Aliás, o tema da luz (seja como metáfora do
conhecimento, seja como dado físico) foi central nos estudos científicos e filosóficos da Idade Média.
A arquitetura das catedrais testemunha o nível técnico atingido nesses estudos; não foi por acaso
que cientistas e filósofos modernos, ao criarem a Óptica, recorreram abertamente a eles. Hoje se
sabe, por exemplo, que René Descartes (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 191) estudou
os tratados de Dietrich de Freiberg (1250-1310) intitulados Tratado sobre a luz e sua origem e
Tratado sobre a íris e as impressões causadas por irradiação.
Dietrich de Freiberg foi o primeiro a oferecer uma explicação cientificamente correta para o arco-
íris, baseando-se em experiências com água e em operações geométricas. Em sua época, o
muçulmano Al-Farisi (1267-1319) também fazia experimentos parecidos. Mesmo sem haver
relação histórica entre Dietrich e Al-Farisi, é certo que ambos leram o tratado de Óptica escrito já
no século XI pelo muçulmano Al-Hazem (965-1040).
IVAN VARYUKHIN/SHUTTERSOTCK.COM
BERTHOLD WERNER/CREATIVE COMMONS
FOTOWAN/SHUTTERSTOCK.COM
No alto: detalhe do Anjo do Sorriso, na entrada da Catedral de Reims, França. Ao centro: Colunas islâmicas (séc.
IX) na Catedral- Mesquita de Córdoba, Espanha. Acima: Livro de canto medieval (séc. XV), com notação
gregoriana.
Página 292
E mbora a Idade Média tenha ficado conhecida como era religiosa, os temas artísticos do período
nem sempre eram ligados à religião.
Um exemplo bastante conhecido são os poemas do século XIII, conhecidos como Carmina burana
(Poemas de Beuern), escritos por monges e estudantes para tratar de temas como a passagem
rápida do tempo, a fragilidade da vida humana, a instabilidade das coisas (a Roda da Fortuna) e os
costumes hipócritas de personagens religiosos (bispos e abades beberrões, entre outros).
Acesse:
No século XX, o alemão Carl Orff (1895-1982)criou uma versão musical para esses poemas, com
ampla difusão. Você pode ouvi-la na versão gravada pela Orquestra e Coro da Universidade da
Califórnia (EUA), no YouTube: <https://www.youtube.com/ watch?v=QEllLECo4OM> (acesso em: 9
out. 2015).
Acesse:
A roda que faz alguém subir é a mesma que faz um rei descer e perder a coroa.
Roda da Fortuna (séc. XIII), iluminura anônima no manuscrito dos Poemas de Beuern (Carmina burana).
2.3 A beleza no Renascimento e na filosofia moderna
Essa mudança foi bastante rápida, sem ser repentina. Suas raízes iniciam pelo menos no século XIV
e dão seus primeiros frutos nos séculos XV e XVI, principalmente com os novos padrões
mecanicistas de conhecimento (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 235). Cria-se a ideia de
Natureza como conjunto de acontecimentos mecânicos e submissos a leis que podem ser
conhecidas e reproduzidas, dando-se ênfase justamente às técnicas de reprodução das leis naturais
como forma de conhecimento. Essa prática exercerá influência decisiva sobre a concepção de
beleza, levando-a a ser entendida também como algo que pode ser produzido. A arte, por sua vez,
será entendida como a ação específica de produzir beleza; e a beleza, entendida agora sob o aspecto
da sua produção, será associada às técnicas de composição das partes de uma obra, com o fim de
obter a harmonia que agrada a quem a contempla. Os antigos métodos gregos são redescobertos e
desenvolvidos nesse período (daí o nome de “Renascimento” nas artes) e a temática religiosa,
embora continuasse presente, deixa de ser central. O trabalho de Leonardo da Vinci (1452-1519),
nesse sentido, é um dos melhores exemplos.
Aos representantes da filosofia moderna caberá terminar o que havia sido iniciado no
Renascimento. Tratava-se, agora, de associar com exclusividade a beleza à arte. Cria-se, assim, no
século XVII a expressão belas artes, com o objetivo de distingui-las das artes liberais (nome que, na
Idade Média, designava as técnicas relacionadas ao conhecimento verdadeiro). As belas artes eram,
de início, a arquitetura, a pintura, a escultura e a gravura. Posteriormente, elas
Página 293
passaram a incluir todo o conjunto de práticas de produção da arte, incluindo as antigas artes
liberais (como a música), em consonância com a concepção renascentista-moderna de beleza
artística.
Considerando que a ideia de Natureza conduziu à elaboração da ideia de Cultura como atividade
humana de dispor da Natureza e de transformá-la (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 234-
239), a beleza artística e a arte serão associadas à Cultura. Pode-se dizer então que a ideia de
Natureza, de um lado, e as ideias de Cultura, arte e beleza, de outro, constituirão os eixos centrais do
modo moderno de tratar a experiência artística e a experiência estética. Nesse sentido, o filósofo
Alexander Baumgarten (1714-1762) publicou um livro decisivo. Intitulado Estética, esse livro
fundou uma nova disciplina filosófica, a “ciência da beleza e da arte”, que ficará depois conhecida
simplesmente como Estética.
O termo estética, inventado por Baumgarten com base no termo grego aísthesis (sensação), designa
bem o modelo (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 358) com que os pensadores modernos
passaram a entender a relação humana com a beleza: trata-se de uma relação que envolve o prazer
dos cinco sentidos na contemplação do que é belo. A experiência artística e a experiência estética
desvinculam-se definitivamente de preocupações éticas, políticas, religiosas ou cognitivas. A beleza
e a arte conquistam, então, sua autonomia.
No século XVIII, Immanuel Kant (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 207), considerado
como o primeiro “filósofo da arte” propriamente moderno, ainda mantém a distinção entre beleza
natural e beleza artística, mas se concentra em examinar a experiência estética (interesse
antropológico, ou seja, pelo que significa ser humano), e não em investigar a arte por si mesma.
Kant consagra, assim, a Estética como disciplina filosófica e mostra que, segundo os novos padrões
de pensamento, em vez de argumentações ou raciocínios em torno do que é a beleza, interessava
destacar que a experiência estética opera com a universalidade das experiências de gosto.
De acordo com a análise kantiana, quando se está de fato diante de algo belo (uma obra de arte),
diz-se simplesmente que ele é belo. Em outras palavras, julga-se essa obra como bela. Tal
julgamento ou juízo dificilmente seria contrariado por alguém; é um juízo que solicita a
31
concordância de todos, pois se refere a algo comunicado universalmente, sem se reduzir a uma
sensação particular ou privada. No juízo de gosto, mesmo sendo ele subjetivo (isto é, ocorrendo em
uma experiência inteiramente individual), manifesta-se algo universal: é um indivíduo que
identifica a beleza e julga que algo é belo; mas, se qualquer outra pessoa fosse posta no lugar desse
indivíduo, ela também identificaria a beleza e faria o mesmo juízo ou julgamento.
Na obra Crítica da faculdade do juízo, Kant nega a existência de alguma “regra” objetiva para o gosto
ou algum critério que permita, por meio de conceitos, definir o que é belo. No entanto, há algo
universal (e, nesse sentido, “objetivo”): a possibilidade subjetiva de pôr em funcionamento as
capacidades de conhecer e representar tudo o que é conhecido, levando essas capacidades a uma
relação recíproca que permite identificar a beleza como algo “para todos” ou como algo que agrada
universalmente.
Reprodução/Museu do Louvre, Paris, frança
À esquerda: Diane (séc. XVI), detalhe da Fonte de Diane, de artista incerto. À direita: Estudo de proporção da
face (1489-1490), desenho de Leonardo da Vinci (1452-1519).
Página 294
Caberá ao filósofo Georg W. F. Hegel (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 270) superar de
vez a preocupação com alguma beleza natural e instalar a noção de beleza exclusivamente no
campo da arte. No seu dizer, a marca do espírito (o pensamento e a liberdade) é operar por
oposição à Natureza e ser superior a ela. Uma vez separado o belo natural do belo artístico, não faz
mais sentido preocupar-se com o belo natural; seria um esforço sem ganho algum. Aliás, é mesmo
necessário “excluir” ou valorizar pouco o belo natural, pois o espírito fixado na Natureza é um
espírito alienado , um espírito que só existe em-si, e não para-si. A arte, ao contrário, seria a
32
primeira etapa do desenvolvimento que faz o ser humano sair da alienação do em-si e entrar no
para-si. Ela permite sair do fechamento na individualidade (espírito subjetivo) e entrar na
sociabilidade (espírito objetivo). Seria desnecessário, portanto, voltar ao belo natural.
Ícone: Glossário 32 Alienado: aquele que não se possui a si mesmo e que permanece sob o domínio de um outro.
As expressões em-si, para-si e em-si-e-para-si vêm do pensamento hegeliano e são hoje empregadas
por diferentes pensadores. Partindo do princípio de que a realidade é o desabrochar de algo que
estava já presente nela virtualmente desde seu começo, essas expressões, apesar de serem
empregadas com pequenas variações pelos pensadores, podem ser resumidas como segue:
Em-si – é a realidade ainda desconhecida, sem autoconsciência. Por exemplo, a criança é em-si; a
Natureza é em-si. No caso da criança, isso quer dizer que ela é um ser humano ainda não completo e
deve tornar-se um ser humano ao longo de um processo. Ela é um ser humano por ter a disposição
para tornar-se tal; e não poderia tornar-se se já não fosse um ser humano em germe, em-si. O em-si
designa, então, um conteúdo real, mas não manifestado. É preciso haver uma mediação, uma
“ponte” entre o ser potencial e o ser realizado. Essa mediação é o para-si.
Para-si – momento da tomada de consciência de si. Quando o ser humano conhece sua verdadeira
natureza, pode apropriar-se dela e dispor dela, participando na construção de seu sentido. O para-
si, então, revela um conteúdo real que estava em-si e torna-o um conteúdo efetivo.
Em-si-e-para-si – ser consciente e efetivamente aquilo que no início era apenas virtual. Momento
em que aquilo que era contido na Natureza ou na criança, por exemplo, vem à máxima consciência,
dando-se conta, inclusive, do processo que levou do em-si ao para-si (processo pelo qual se percebe
como construtor de sentido).
Na história do pensamento sobre a beleza, Hegel representa um momento de reinício, pois muito do
que os autores contemporâneos dirão sobre o tema será construído em diálogo com o filósofo
alemão, seja por continuidade com ele, seja por contraponto.
Com o pensamento hegeliano, estabelece-se de uma vez por todas o costume de associar a beleza
apenas à arte. No entanto, Hegel via a arte em um movimento de progresso histórico do espírito
humano e a considerava uma atividade ainda excessivamente ligada à sensibilidade (portanto,
ainda muito próxima à Natureza ou ao em si). Dois outros estágios teriam ocorrido nesse progresso:
a religião e a Filosofia. A religião deu um passo adiante com relação à arte, pois permitiu que o ser
humano superasse a Natureza e voltasse seu olhar para si mesmo, recolhendo-se em sua devoção
pessoal. Mas essa fase também já teria sido superada pelo espírito humano, transformando-se na
Filosofia, momento em que o espírito se torna absoluto, porque sai da consciência individual e
percebe que é ele mesmo o produtor das formas objetivas da vida (as instituições da família, da
moral e do Estado).
Por outro lado, a “arte bela”, segundo Hegel, seria também em si e para si quando se considera que a
beleza artística é produzida pelo espírito. Como arte bela, ela expõe algo superior a si mesma e à
sensibilidade: o espírito, possibilidade humana de apontar
Página 295
para os interesses mais urgentes, tais como o sentido da existência individual e social. Dessa
perspectiva, a arte revela a sua importância no caminho que leva ao espírito absoluto, pois
reconcilia o exterior (captado na sensibilidade) e o interior (a percepção como ato do sujeito), o
finito (de cada situação) e o infinito (das intermináveis possibilidades de sentido).
Idealismo
É o nome com que se costuma designar a postura filosófica que, na compreensão do mundo,
enfatiza o papel das ideias como unidades que organizam a realidade e o conhecimento que se pode
ter sobre ela. Costuma-se identificar no trabalho de René Descartes as raízes da concepção atual do
Idealismo. Também se fala do “idealismo” de Platão. Mas é sobretudo a partir de Immanuel Kant
que o termo aparece, ganhando força no Idealismo e Romantismo alemães do século XIX.
Hegel apostava na esperança de que, na consciência de seu caráter histórico, o ser humano
universalizado (concentrado na sociabilidade, e não na singularidade) construiria um Estado justo,
no qual os indivíduos também seriam justos exatamente porque se concentrariam na justiça do
conjunto. Como costumava declarar o filósofo brasileiro Henrique Cláudio de Lima Vaz (1921-
2002), se o trabalho de Platão foi introduzir a presença do absoluto transcendente (Ícone:
Conteúdo tratado em outra página p. 80, 100 e 154) ou do Bem Supremo no mundo, o trabalho de
Hegel foi tirar toda transcendência desse absoluto, transformando-o em pura imanência.
Especificamente no tocante à Estética, é possível também dizer que, se Kant ainda reservava certo
espaço para a Natureza na concepção da beleza, permitindo chegar a uma fonte divina criadora e
ordenadora de tudo, Hegel tira definitivamente Deus do horizonte humano ao anular o interesse na
Natureza e concentrá-lo no próprio ser humano.
Surgiram várias reações contra o pensamento hegeliano, com consequências diretas para a visão da
beleza. O filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard é certamente o mais antihegeliano dos
pensadores. Segundo ele, o indivíduo é quem realmente existe e importa, mas Hegel o dissolve na
vida social e o transforma em algo passivo ou em um resultado do progresso do espírito que se
objetiva.
Foi um filósofo e teólogo dinamarquês, considerado um dos elos críticos que possibilitaram a
passagem do idealismo de Hegel para o existencialismo do século XX. Crítico voraz da filosofia
idealista e das formalidades da igreja luterana da Dinamarca, Kierkegaard ficou conhecido como um
existencialista cristão, por centrar sua filosofia na experiência individual e por tratar de temas
filosóficos e religiosos fundamentalmente do ponto de vista da existência. Obras mais conhecidas:
Migalhas filosóficas, O conceito de angústia e O desespero humano.
Kierkegaard chegava a afirmar que Hegel elaborou uma filosofia ultrassofisticada para perder o que
realmente importa na vida: a individualidade. Na experiência individual há aspectos que a razão
humana não é capaz de dominar nem de transformar em conceitos. Ao perder esses aspectos,
dissolvendo-os em conceitos, Hegel construiu, como diz Kierkegaard, o belo castelo de sua filosofia
do espírito objetivo, mas depois foi morar num quartinho dos fundos, pois, como ser humano em
carne e osso, não podia sequer entrar em seu castelo frio e solitário.
THE METROPOLITAN MUSEUM OF ART/ART RESOURCE/SCALA, FLORENCE © TANGUY, YVES/ AUTVIS, BRASIL, 2016.
A preocupação com o indivíduo e com sua afirmação tornou-se bastante forte no pensamento
contemporâneo. Na verdade, ela é anterior às reações contrárias ao pensamento de Hegel; e, para
além dos aspectos teóricos, ligados ao movimento que leva ao espírito absoluto, a preocupação com
o indivíduo se
Página 296
fazia sentir no campo das artes desde, pelo menos, o Romantismo ( p. 193 e 389). O escritor e
pensador Johann Wolfgang von Goethe (1749-1831) defendia, por exemplo, que cada artista
deveria criar os princípios de sua própria arte. A posição de Goethe era uma reação aos costumes
de “ensinar arte”, desenvolvidos nas academias criadas já no século XVI e responsáveis por
transmitir padrões “profissionais” de produção artística.
Especificamente no tocante a Hegel, por entender a arte sob a perspectiva de sua história
(considerando, aliás, as esculturas gregas como ponto mais alto na história da arte tal como ele a
entendia), o filósofo sofreu a crítica de ter racionalizado excessivamente a arte, dissolvendo o fazer
artístico em esquemas conceituais distantes da experiência individual e, por isso mesmo, não
conseguindo interpretá-lo tal como ele realmente é.
Em outras palavras, assim como o indivíduo pode ser entendido apenas como componente do grupo
social e como simples resultado de processos sócio-históricos que não dependem dele, assim
também o artista corria o risco de ser encarado, segundo denunciavam os críticos do pensamento
hegeliano, como um ser destituído de liberdade ou de qualquer iniciativa criativa. Seja como for,
uma renovada atenção à individualidade se fez necessária; e os artistas a tomaram como uma causa
a defender. As referências tradicionais da beleza (propagadas pelas academias de arte) foram
conscientemente atacadas; e, embora permanecesse no horizonte a ideia de que a beleza não pode
ser definida (mas apenas indicada, tal como dizia Platão), artistas e pensadores convocaram a uma
nova mudança no modo de ver a beleza. Era preciso contrariar os padrões impostos tanto na arte
como na experiência estética cotidiana. Surgia, então, no século XIX, o que se convencionou chamar
de arte moderna, principalmente com o impressionismo. Um dos fundadores da arte moderna, o
impressionista Édouard Manet (1832-1883) marcou a modernidade na arte com seu quadro Música
no Jardim das Tuileries, pois, além de ser um dos primeiros artistas a retratar cenas da vida
moderna, inclusive cenas banais, Manet valorizava as impressões causadas pelas “manchas” como
forma de figuração (e não os recursos tradicionais, como as linhas). Pensa-se hoje, aliás, que talvez
Manet tenha se baseado em fotografias para compor sua pintura, o que seria um sinal claro de sua
modernidade. Segundo as classificações históricas, a arte moderna durou até cerca de 1950.
Édouard Manet (1832-1883), Música no Jardim das Tuileries, 1862, óleo sobre tela.
É importante não confundir a periodização da arte com a divisão histórica da Filosofia: enquanto a
filosofia moderna corresponde aos séculos XVI-XVII ou XVI-XVIII, a arte moderna corresponde à
passagem do século XIX ao XX. Antes da arte moderna, a periodização tradicional identifica a arte
neoclássica (séculos XVI-XIX), a arte renascentista (século XV ou séculos XV-XVI), a arte bizantino-
medieval (séculos II-XV), a arte antiga ou clássica (das origens até o século II d.C.).
Se, porém, uma característica é típica da arte moderna, ela consiste no programa de romper com os
padrões estipulados pelas academias. Tal programa de ruptura fazia que o interesse da arte
moderna não fosse mais a beleza, mas a própria arte. O artista moderno se coloca em questão e leva
os que contemplam sua obra a perguntar-se pelo que é a arte e o que define a beleza ou a falta de
beleza.
Da perspectiva do interesse da “arte pela arte” e relacionando o quadro de Paul Cézanne (abertura
deste capítulo) com o quadro de Manet, observa-se também em Cézanne a exploração das manchas
e, portanto, uma ruptura com os padrões tradicionais. Assim, ainda que Cézanne pareça, para
algumas pessoas, um artista que simplesmente reproduz a Natureza, é possível entender que sua
obra é mais do que uma representação. As formas pintadas por Cézanne são objetos típicos do
mundo da arte, e não da Natureza; são recriações de coisas existentes, pois as cores e as linhas são
reinventadas pelo olhar do artista, que opera com manchas e explora variações de luz.
Cézanne, ademais, é um dos artistas que estão na origem do que se chama de arte abstrata, da qual
Pollock também é um representante. O estilo do abstracionismo rompe de uma vez por todas com a
preocupação figurativa ou a busca por exprimir associações com
Página 297
realidades “naturais”. Um artista abstracionista cria suas próprias formas e faz o prazer dos
sentidos e a beleza falarem por si mesmos.
Movimentos semelhantes podem ser vistos na música, com o serialismo ou o minimalismo, e mesmo
até mais radicais na Literatura e na Pintura, como foi o caso do dadaísmo e do surrealismo,
verdadeiras revoluções para os padrões estéticos do início do século XX.
REPRODUÇÃO/M.T. ABRAHAM FOUNDATION, PARIS, FRANÇA © ECHAURREN, ROBERTO SEBASTIÁN ANTONIO MATTA/ AUTVIS, BRASIL, 2016.
Recorte o artigo.
Recorte em seguida, com cuidado, cada uma das palavras [que formam esse artigo e coloque-as num
saquinho.
Agite suavemente.
Tire em seguida cada palavra recortada, uma por uma.
Copie conscienciosamente na ordem em que elas [saírem do saquinho.
TZARA, Tristan. Pour faire un poème dadaïste. In: Œuvres complètes.Tomo I. Paris: Flammarion, 1982. p. 382. (Para fazer um poema
dadaísta. Tradução nossa.)
EXERCÍCIO B
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 490
1. Apresente a concepção platônica da beleza, explicando por que, segundo Platão, a beleza não
pode ser definida.
2. A suspeita lançada por Platão sobre os artistas significava que ele era contrário à arte?
Explique.
6. O que significa afirmar que tanto para o pensamento antigo como para o pensamento
patrístico-medieval a beleza era separada da arte?
7. Qual a grande mudança operada pelo Renascimento com relação ao pensamento anterior
sobre a beleza e a arte?
8. Como entender que, segundo Kant, o juízo estético ou juízo de gosto seja a um só tempo
subjetivo e universal?
9. Por que, segundo Hegel, a reflexão estética deve abandonar a ideia de beleza natural?
10. Qual o significado da afirmação de Kierkegaard segundo a qual Hegel construiu um castelo,
mas foi morar num quartinho dos fundos?
Como artista, historiador da arte e filósofo, Didi-Huberman encarna uma necessidade sentida desde
o século XIX: a de que os próprios artistas se pronunciem sobre sua experiência e reflitam sobre sua
individualidade criadora. Nessa direção, muitos deles esclarecem que, às vezes, são
incompreendidos por quem reflete sobre a arte (filósofos e cientistas da arte) e projeta sobre ela
suas próprias teorias, em vez de fazer com que sua reflexão nasça da experiência artística mesma.
Para evitar, então, toda falsa intelectualização da arte, esses artistas pensadores recuperam a vida,
quer dizer, mostram como a arte nasce da vida cotidiana e produz sentidos novos para ela. Ainda
que a beleza seja vista como algo específico da arte, ela não se separa do dia a dia da existência; e a
arte, por sua vez, apresenta-se como uma forma de chamar para a beleza.
Dessa perspectiva, fragiliza-se mesmo a distinção entre uma experiência artística e uma experiência
estética geral, a menos que a experiência artística seja entendida como um aprofundamento da
experiência estética. Por conseguinte, a possibilidade desse aprofundamento é dada a todos os
seres humanos. Relativiza-se até a separação racionalista (Ícone: Conteúdo tratado em outra página
p. 336) entre Natureza e Cultura (p. 234-239), pois a Natureza deixa de ser encarada como uma
dimensão mecânica da existência ou como um conjunto de coisas (incluindo o próprio corpo
humano) dispostas passivamente para serem “transformadas”. O que se chama de Natureza é já
uma construção que depende do modo humano de ver as coisas. A cultura, por sua vez, mais do que
um “acréscimo” à Natureza, passa a ser entendida como um modo de habitar o mundo e de criar
sentidos para ele por meio da exploração das infinitas possibilidades que ele mesmo oferece.
Contribuem para essa unidade entre vida “natural” e vida “cultural” as pesquisas em Etologia
(estudo do comportamento animal), que, desde a segunda metade do século XX, mostram haver
traços de cultura também em animais não racionais, como os elefantes, as baleias, os macacos, os
pássaros e muitos outros. Percebeu-se, por exemplo, que alguns deles criam e transmitem às novas
gerações formas de comunicação muito parecidas com o que os humanos chamam de dialetos ; 33
outros, ainda, revelam claramente a possibilidade de escolher livremente entre diferentes reações.
Ícone: Glossário 33 Dialeto: variações desenvolvidas por grupos no modo de falar uma mesma língua.
Para ouvir dois artistas que se pronunciaram sobre o sentido da arte, vamos dar a palavra a Oscar
Wilde (1854-1900) (Ícone: Texto filosófico) e Marcel Proust (1871-1922). Ícone: Texto filosófico
Oscar Wilde
WILDE, Oscar. Le déclin du mensonge. Tradução P. Neel. Paris: Allia, 1986. p. 22 (O declínio da mentira. Tradução nossa para o
português.)
O que é a Natureza? Ela não é a Mãe que nos criou. Ela é nossa criação. [...] As coisas existem porque
as vemos; o que vemos e como vemos depende das artes que nos influenciaram. Olhar uma coisa e
ver uma coisa são dois atos bem diferentes. Não se vê alguma coisa senão quando se vê sua beleza.
Então – e somente então! – essa coisa passa a existir. Hoje, as pessoas veem os nevoeiros não
porque há nevoeiros e basta; mas porque poetas e pintores ensinaram a misteriosa beleza desses
efeitos. Os nevoeiros até podem ter existido durante séculos em Londres. Ouso mesmo dizer que
eles estavam lá. Mas ninguém os via; é por isso que não sabemos nada sobre eles. Eles não existiram
até o dia em que a arte os inventou. Agora – é preciso reconhecer – temos nevoeiros até demais.
Eles se tornaram puro exagero de certo grupo; e o realismo exagerado de seu método faz as pessoas
estúpidas pegarem bronquite. Lá onde a pessoa cultivada capta um efeito, a pessoa inculta pega um
resfriado.
Sejamos, então, humanos e peçamos à arte para virar seus admiráveis olhos para outro lado. Na
verdade, ela já o fez. Essa luz branca e arrepiante que hoje se vê na
Página 299
França, com suas incomuns granulações roxas e suas sombras móveis e violetas, é a última fantasia
da arte ; e a Natureza, em suma, a produz de modo admirável. Lá onde ela nos dava alguns Corot e
34
alguns Daubigny, ela nos dá agora alguns Monet preciosos e alguns Pissarro encantadores. Há
momentos – raros, é verdade – em que a Natureza se torna absolutamente moderna. Mas não se
deve esperar sempre por isso. O fato é que a Natureza se encontra em uma posição infeliz. A arte
cria um efeito incomparável e único; depois, segue em frente. Mas a Natureza, esquecendo que a
imitação pode se transformar na forma mais sincera do inculto, fica sempre se repetindo, até que
nós fiquemos absolutamente esgotados.
Ícone: Glossário 34 Última fantasia da arte: Oscar Wilde refere-se, aqui, ao impressionismo.
Marcel Proust
PROUST, Marcel. Le temps retrouvé. Paris: Flammarion, 1986. p. 289-290. (O tempo reencontrado. Tradução nossa.)
A verdadeira vida, a vida enfim descoberta e esclarecida, a única vida realmente vivida é a
literatura. Essa vida que, em certo sentido e em cada instante, habita todos os seres humanos tanto
quanto habita o artista. Mas eles não a veem porque não procuram esclarecê-la. Assim, o passado
deles fica com um amontoado de chavões que permanecem inúteis porque a inteligência não os
“desenvolveu”. Nossa vida; e também a vida dos outros; afinal, o estilo para o escritor, tanto quanto
a cor para o pintor, é uma questão de visão, e não de técnica. O estilo é a revelação, que seria
impossível por meios diretos e conscientes da diferença qualitativa que há no modo como o mundo
aparece para nós, uma diferença que, se não houvesse a arte, continuaria a ser o segredo eterno de
cada um. Somente pela arte nós podemos sair de nós mesmos e saber o que o outro vê desse
Universo que não é o mesmo que o nosso e cujas paisagens continuariam desconhecidas para nós
assim como nos são desconhecidas as paisagens que certamente há na Lua. Graças à arte, em vez de
ver só um mundo, o nosso, nós vemos o mundo multiplicar-se; tanto quanto há artistas originais,
tantos são os mundos que temos à nossa disposição; esses mundos são mais diferentes entre si do
que aqueles mundos que se movimentam no infinito; esses mesmos mundos, séculos depois de ter
morrido quem os acalentou – quer se chame Rembrandt, quer se chame Vermeer –, ainda nos
enviam sua irradiação especial.
EXERCÍCIO C
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 491
2. Você percebe que a maioria dos cidadãos brasileiros só tem a televisão como meio de
contato com elementos culturais? O que você pensa sobre os conteúdos apresentados nos
programas de televisão? Eles contêm beleza? Faça uma lista dos programas aos quais você
costuma assistir e reflita sobre o caráter artístico de cada um deles.
3. Faça um levantamento dos centros culturais de sua cidade. Você costuma frequentá-los? Se
em sua pesquisa você encontrar grupos que produzem arte, seria muito enriquecedor
programar uma visita, que você poderia fazer com alguns colegas de classe. Se possível,
converse com os artistas e peça para que eles falem de seu modo de ver a arte e a beleza.
Essa prática pode dar a impressão de que somente é possível “entender” a arte depois de muito
preparo. Sentimo-nos, muitas vezes, excluídos do mundo da arte; e essa sensação intensifica-se
quando ouvimos falar de “grande arte” e de “arte popular”: a primeira seria reservada para quem
domina os conteúdos que permitem “entendê-la” e tem condições financeiras para ir a museus,
concertos etc.; a segunda seria acessível a todos, porque é espontânea e fácil de ser encontrada.
Antes de tudo, é importante ter em mente que, se a arte tem alguma relação com a beleza, então o
impulso que leva alguém a dançar O lago dos cisnes é o mesmo que leva alguém a dançar
Breakdance. É o mesmo impulso ainda que permite apreciar tanto uma como outra dança. Dessa
perspectiva, anula-se a diferença entre “grande arte” e “arte popular”, pois ambas são expressões
do mesmo tipo de vivência.
S em nunca ter deixado as paragens áridas do cerrado, Moacir, um poeta de traços e cores,
desenvolveu uma linguagem visual repleta de simbolismos e personagens do imaginário popular.
Pintor e desenhista da Vila de São Jorge, possui uma profícua produção artística. Entretanto, por
estar afastado dos grandes centros urbanos e do cenário artístico contemporâneo, nunca teve sua
obra exposta numa montagem à altura.
Moacir já foi alvo de estudo por especialistas e estudantes, tendo inclusive sido o tema de uma
monografia de diplomação de uma aluna do curso de Artes Plásticas da Universidade de Brasília.
Tem 45 anos, nasceu em São Jorge na época dos garimpos. Filho de Seu Domingos Farias, antigo
garimpeiro, e Dona Maria, Moacir nunca saiu da vila, onde vive até hoje. Desde o seu nascimento, é
envolto numa aura mística. Quando morava com a família nos garimpos próximos à vila, ele se
escondia das pessoas. Só saía às ruas com o rosto e o corpo cobertos, andava mascarado com um
tecido sobre si. Evitava o convívio social; quando alguém se aproximava da casa para uma visita, ele
pressentia a presença das pessoas e saía de casa, escondendo-se no mato. Esse comportamento
fazia com que as pessoas o considerassem um louco (esquizofrênico) [...]. No entanto, o artista já foi
submetido a vários exames que comprovam sua sanidade.
Logo cedo demonstrou interesse pela pintura. Começou a pintar com pedaços de carvão, pintando
as paredes e papéis que encontrava – sua maneira de se comunicar com o mundo exterior. Moacir
garimpou a sua arte no chão do cerrado, em meio aos troncos retorcidos da vegetação nativa.
O rico universo interior do artista pode ser conhecido nas pinturas, nas quais a linguagem imagética
transpõe todo o vasto universo onírico onde o profano e o sagrado se encontram e se misturam.
35
JEAN MARCONI/FLICKR
JEAN MARCONI/FLICKR
Essa diferença serve para comerciantes de arte, pois ela consagra a ideia de que a “grande arte” é
melhor ou mais sofisticada do que a “arte popular” e favorece a transformação da “grande arte” em
mercadoria e fonte de lucro. Ocorre, porém, que nem todas as obras da “grande arte” são realmente
“melhores” do que as obras da “arte popular”. Em muitos casos, inventa-se um valor econômico
para certas obras porque as pessoas são levadas a acreditar que tais obras valem grandes somas de
dinheiro. Para reagir a esse tipo de relação com a arte, muitos artistas têm optado por produções
independentes, separadas do circuito comercial e mesmo da “grande arte” em geral.
Por outro lado, sem cair na diferença artificial entre “grande arte” e “arte popular”, é adequado
lembrar que algumas obras solicitam de nós o aprendizado da “língua falada por elas”. Quem lê, por
exemplo, Macunaíma, de Mário de Andrade (1893-1945), ou Ulisses, de James Joyce (1882-1941),
ou quem se depara pela primeira vez com um quadro de Pollock ou uma instalação de Maurizio
Cattelan pode sentir grande estranheza. Essas obras requerem iniciação, pois são únicas e originais.
Desse ponto de vista, não parece adequado igualar todas as produções artísticas e dizer que elas
têm o mesmo valor estético.
O fato, porém, de algumas obras “falarem uma língua” própria não significa que, sem conhecer sua
“língua”, não podemos ter qualquer experiência estética na sua presença. Assim como ocorre
quando encontramos uma pessoa estrangeira e podemos ter alguma comunicação com ela mesmo
sem falar sua língua (pelo olhar, pela postura, por um gesto etc.), assim também o encontro com
uma obra singular nunca é vazio. No entanto, esse encontro pode ser mais intenso se conhecermos
o seu modo de “falar”. Para esse encontro são de grande importância profissionais e instituições
(guias, críticos, museus, galerias, salas de concerto etc.) que colaboram para ativar graus mais
intensos de nossa percepção e desde que não se tornem “controladores” da arte, tal como já os
dadaístas denunciavam. As pesquisas em História da Arte e outras áreas do saber (a Filosofia, a
Antropologia, a Psicologia, a Sociologia etc.) revelam os variados contextos de produção das obras
artísticas e inserem em uma partilha social que favorece a entrada no mundo do sentido dessas
obras.
O contexto de produção de uma obra de arte foi um tema central na reflexão do filósofo norte-
americano Arthur Danto, que costumava tomar como exemplo a instalação Brillo Boxes [Caixas de
Brillo], de Andy Warhol (1928-1987).
BOB CAREY/GETTY IMAGES © THE ANDY WARHOL FOUNDATION FOR THE VISUAL ARTS, INC./ AUTVIS, BRASIL, 2016.
Andy Warhol usou diferentes materiais para fabricar cópias idênticas das caixas de esponja de aço
(bucha) da marca Brillo. Em seguida, instalou essas caixas na Stable Gallery, em Nova York. Ao
mesmo tempo que explorava o aspecto belo e lúdico das inscrições nas caixas de esponja, ele
36
chamava a atenção dos espectadores para o modo como somos acostumados a olhar para as coisas
e a encará-las como objetos de consumo.
Arthur Danto, então, baseando-se na instalação de Warhol, escreveu um dos artigos mais
importantes de nossa época a respeito da arte conceitual, quer dizer, a arte que se entende como
uma prática relacionada consigo mesma, e não necessariamente com a beleza. Em outras palavras, a
arte conceitual se define somente pelo conceito ou a ideia que se faz da própria arte, e não pelas
suas qualidades estéticas. Os artistas conceituais continuam a pensar na beleza, principalmente
Página 302
como aquilo que causa prazer aos sentidos; mas, além de procurar mostrar que um conceito
também pode causar prazer e ser, portanto, belo, os artistas conceituais têm mais interesse pela
composição, os materiais utilizados, a interação com o público, a crítica social, política e cultural.
Segundo Arthur Danto, o trabalho da arte conceitual é um dos melhores exemplos para perceber
que o contexto de produção da obra de arte ou o mundo da arte é o que permite captar o seu
sentido.
Especificamente no caso da instalação Brillo Boxes, o contexto ou o mundo das caixas é formado
pela galeria onde elas são postas e pelo momento histórico da criação artística no local em que a
instalação foi montada. O fato de as caixas terem sido postas em uma galeria de arte, os dados
históricos sobre a própria arte nos anos 1960 e o fenômeno do consumismo do mundo atual
mudaram radicalmente o sentido das próprias caixas. Elas deixam de ser meras caixas de esponja
de aço e passam a “falar outra língua” com quem as contempla, uma língua estética. Ícone: Texto
filosófico
O “mundo” da arte
Arthur Danto
DANTO, Arthur. O mundo da arte. Tradução Rodrigo Duarte. Artefilosofia, Ouro Preto, v. 1, p. 21-22, jul. 2006.
Suponha que um homem colecione objetos (em estado natural), incluindo uma caixa de Brillo;
elogiamos a exibição pela sua variedade, sua engenhosidade ou o que for. Em seguida, ele não exibe
nada a não ser caixas de Brillo e nós criticamos isso como insosso , repetitivo, autoplágio [...]. Ou
37 38
ele as empilha bem alto, deixando uma trilha estreita; nós abrimos nosso caminho através das
prateleiras regularmente opacas e achamos que essa é uma experiência perturbadora e a
39
anotamos como a clausura dos produtos de consumo, que nos confina como prisioneiros; ou
40 41
dizemos que [esse homem] é um moderno construtor de pirâmides. Na verdade, não dizemos essas
coisas sobre o estoquista . Mas, então, um depósito não é uma galeria de arte; e não podemos
42
prontamente separar as caixas de Brillo da galeria em que elas estão [...]. Fora da galeria, elas são
caixas de papelão. [...] Mas, então, se pensamos totalmente sobre essa matéria, descobrimos que o
artista falhou, de modo real e necessário, em produzir um mero objeto real. Ele produziu uma obra
de arte, seu uso das caixas de Brillo reais não sendo senão uma expansão dos recursos disponíveis
aos artistas, uma contribuição aos materiais dos artistas [...].
O que, afinal de contas, faz a diferença entre uma caixa de Brillo e uma obra de arte consistente de 43
uma caixa de Brillo é uma certa teoria da arte. É a teoria que a recebe no mundo da arte e a impede
de recair na condição de objeto real que ela é [...]. É claro que, sem a teoria, é improvável que
alguém veja isso como arte e, a fim de vê-lo como parte do mundo da arte, a pessoa deve dominar
uma boa dose de teoria artística, assim como uma quantia considerável de história da recente
pintura nova-iorquina. Isso poderia não ter sido arte cinquenta anos atrás. Mas, então, não poderia
ter havido, se tudo permanece igual, seguro de voos na Idade Média ou borrachas para máquinas de
escrever etruscas . O mundo tem de estar pronto para certas coisas – o mundo da arte não menos
44
do que o mundo real. É o papel das teorias artísticas, hoje como sempre, tornar o mundo da arte e a
própria arte possíveis. Nunca ocorreria, devo pensar, aos pintores de Lascaux que eles estavam 45
produzindo arte naquelas paredes. A menos que tenham existido estetas no Neolítico . 46 47
38Autoplágio: alguém que faz plágio de si mesmo (o plágio é a cópia de um texto, de uma obra de arte, de uma
ideia etc., sem indicar o autor do que é copiado).
39 Opaco: denso; espesso; algo compacto que não deixa passar a luz ou não a reflete.
44 Etruscos: povos que viveram na região da atual Itália entre os anos 1.200 e 700 a.C.
45 Lascaux: localidade na França, com algumas das mais antigas pinturas da Humanidade.
47Neolítica: período da “Pré-História” europeia que vai de cerca do ano 9.000 até 3.000 a.C. Danto comete um
pequeno deslize histórico ao falar do Neolítico, pois as pinturas da Gruta de Lascaux foram feitas entre os anos
18.000 e 15.000 a.C. (portanto, durante o Paleolítico).
Página 303
EXERCÍCIO D
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 491
Comente a distinção entre “grande arte” e “arte popular”. Para tanto, dê três passos:
(a) inicie com a ideia de que as experiências artística e estética são possibilidades universais;
(b) levante o aspecto do uso financeiro das artes e da importância de um aprendizado das
línguas artísticas;
EXERCÍCIOS COMPLEMENTARES
1 Entrevista
(1) Há algum(a) escritor(a) brasileiro(a) dadaísta ou surrealista que mais causa sua admiração?
(2) [Caso a resposta seja afirmativa:] Por que esse(a) autor(a) causa sua admiração?
[Caso a resposta seja negativa:] Por que nenhum(a) escritor(a) dadaísta ou surrealista causa sua
admiração?
Assista à cena “A morte do cisne”, de O lago dos cisnes, dançada pela grande bailarina russa Svetlana
Zakharova (1979-) no YouTube: <https://www.youtube.com/watch?v=qgZVDTheSyQ>. Acesso em:
8 out. 2015.
Acesse:
Na sequência, assista à coletânea de números de Breakdance organizada por Breakdance Dope Bout
& Crazy Moves 2015: <https://www.youtube.com/watch?v=MGG7DqAsiWA>. Acesso em: 16 dez.
2015. Reflita sobre o tema da sofisticação com base nas duas danças. É possível afirmar que uma é
mais sofisticada do que outra?
Acesse:
3 Atividade de sensibilização musical 1º passo – Acesse em casa ou na escola o site do YouTube
e ouça as seguintes peças musicais:
Passacaglia e Fuga em C menor (BWV 582), de Johann Sebastian Bach (1685- 1750):
<https://www.youtube.com/ watch?v=HtFMxFQrKc4>.
Acesse:
Acesse:
2º passo – Anote suas impressões sobre a segunda peça, comparando-a com a primeira
(semelhanças, diferenças, o que agrada, o que incomoda etc.).
4º passo – Acesse agora o YouTube e ouça as seguintes peças musicais: Em C, de Terry Riley (1935-
): <https://www.youtube.com/watch? v=yNi0bukYRnA>.
Acesse:
Acesse:
5º passo – Anote suas impressões sobre a peça Come out, comparando-a com Em C.
6º passo – Procure na Internet informações sobre o minimalismo em Música. Ouça novamente as
peças do 4º passo e reflita se as informações encontradas em sua pesquisa ajudaram você a
comparar melhor as duas peças.
Página 304
Ícone: Dica de filmes Dicas de filmes para você assistir tendo em mente o que trabalhamos
neste capítulo
História da amizade nascida entre um escritor que se retirou por uma temporada em um lugarejo da Itália e o
carteiro que entregava suas correspondências. História delicada e emocionante que põe em destaque o caráter
ético da palavra e da Literatura.
Moça com brinco de pérola (Girl with a Pearl Earring), direção Peter Webber, Inglaterra, 2003.
Narrativa inspirada na vida do pintor holandês Johannes Vermeer e no quadro que dá título ao filme.
Nelson Freire – um filme sobre um homem e sua música, direção João Moreira Salles, Brasil, 2003.
Documentário sobre o brasileiro Nelson Freire, um dos mais destacados pianistas do mundo. Além de
apresentar alguns aspectos técnicos de seu modo de tocar, o documentário apresenta a personalidade e a
história do artista.
Retrato dos anos anteriores à invenção da televisão, em uma pequena cidade da Sicília (Itália). O garoto Toto,
hipnotizado pelo cinema, iniciou uma amizade com Alfredo, o responsável por projetar os filmes, homem
irritado, mas de coração grande. O filme é feito na forma de memória, quando Toto, adulto e cineasta de
sucesso, recebe a notícia da morte de Alfredo.
Documentário sobre a vida e a obra de Arthur Bispo do Rosário e sobre a experiência artística para além das
fronteiras entre sanidade e insanidade mental. Documentário produzido para a Bienal de arte de São Paulo de
2012. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch? v=t6Jou6DlEek>. Acesso em: 10 out. 2015.
Acesse:
Arte, amor e ilusão (The Shape of Things), direção Neil LaBute, EUA/França, 2003.
O jovem Adam trabalha como segurança em um museu e conhece Evelyn depois de ela ter infringido duas
regras, a de não tirar fotografia e a de ultrapassar o cordão que isolava o público. Evelyn, na verdade, era
estudante da Faculdade de Belas Artes e tinha um projeto ainda mais polêmico: desenhar um grande pênis em
uma das estátuas do museu, pois, como ela dizia, não aceitava “arte falsa”. Adam tenta convencê-la de que
aquela estátua era uma obra original e que não tinha nada de falso, mas Evelyn insiste que a folha de gesso
posta sobre os genitais da estátua era um ato de moralidade exagerada e a transformava em peça falsa. Depois
desse episódio, Adam e Evelyn descobrem que têm um gosto comum por filmes. Os dois saem para jantar e
começam a namorar. Pouco tempo depois, o casal Phillip e Jenny, amigos de Adam, notam que o seu modo de
ser mudava rapidamente, mas não imaginavam o motivo.
Fahrenheit 451, direção François Truffaut, França/Inglaterra, 1966.
Em um país ditatorial e do futuro, a principal função dos “bombeiros” é queimar livros, pois foi convencionado
pensar que a literatura só espalhava infelicidade. O “bombeiro” Montag, no entanto, passa a questionar essa
convenção quando vê uma mulher preferir ser queimada com seus livros a permanecer viva sem eles.
Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, de Mário de Andrade, Nova Fronteira, 2013.
Mário de Andrade, artista brasileiro de destaque na Semana de Arte Moderna de 1922, compôs um romance
surrealista, mesclando o “real” e o “irreal” (que pode ser mais real do que se imagina!), elementos culturais,
preconceitos, evidências, dados culturais e informações inventadas, a fim de narrar a saga de Macunaíma,
“imperador do mato”, que perde seu amuleto da sorte, uma muiraquitã que Ci, a Mãe do Mato, lhe havia dado.
O anti-herói parte, então, em busca do amuleto, que estava em poder do fazendeiro Venceslau Pietro Petra, e se
encanta com a paisagem urbana de São Paulo, “maior cidade do Universo”.
Peças literárias em que Arthur Rimbaud mostra a ousadia de recuperar e superar estilos anteriores,
principalmente vindos do Romantismo, de Lamartine e de Victor Hugo. Nessa edição brasileira,
Página 305
encontram-se os textos “Iluminações”, “Uma estada no inferno”, “Um coração sob a sotaina”, “Desertos de
amor” e “Prosas evangélicas”.
Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, tradução Mário Quintana, Globo, 2006- 2012, 7 vol.
Obra monumental em que Marcel Proust revoluciona a literatura, tratando, sob a forma de lembranças, do
tema do tempo, da memória e da própria literatura.
A arte, de Rodrigo Duarte, WMF Martins Fontes, 2012 (Coleção Filosofias: O prazer do pensar).
Partindo de experiências atuais, o autor reflete sobre a vivência da arte, tomando por base elementos das
filosofias de Platão, Aristóteles, Agostinho de Hipona, Tomás de Aquino, Kant, Hegel, Adorno e Arthur Danto.
Coleção com variados volumes sobre temas relacionados à arte, entre eles: Intuição e intelecto na arte; Espaço,
tempo e arquitetura; A educação pela arte; Complexidade e contradição em arquitetura; Escultura; A arte
medieval; Design gráfico – uma história concisa etc.
Coletânea de trechos de pensadores da Estética e da filosofia da arte, desde Platão até Arthur Danto.
Arte e beleza na estética medieval, de Umberto Eco, tradução Mário Sabino, Record, 2010.
Estudo sobre o sentido da arte e sua relação com a beleza em várias formas medievais de pensamento.
Sínteses didáticas das posições de alguns filósofos mais conhecidos diante da arte, indo da Antiguidade à
primeira metade do século XX.
Comentários inspiradores sobre correntes contemporâneas da Estética desde o início do século XX até o
momento atual.
A história da arte, de E. Gombrich, tradução Álvaro Cabral, LTC, 2000, e Iniciação à História da arte, de H. W.
Janson, tradução Jefferson Luiz Camargo, WMF Martins Fontes, 2009.
Duas obras escritas de modo didático para um estudo introdutório de História da Arte.
Acesse:
Programa História da Arte
Apresentação resumida e didática da História da Arte, feita pelo professor de Língua e Literatura Douglas
Tufano. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=OmbX8Kq31j8>. Acesso em: 4 jan. 2016.
Acesse:
Série de cinco aulas a respeito da função dos museus e outras instituições que expõem coleções de arte. O
programa foi concebido e realizado por professores de História da Arte da USP e da Unesp, com o objetivo de
refletir sobre a relação entre arte e educação. Disponível gratuitamente em: <http://
univesptv.cmais.com.br/museu-emmovimento/museu-para-que-serve>. Acesso em: 4 jan. 2016.
Acesse:
Gravado no Instituto de artes da Unesp, com o Prof. José Leonardo do Nascimento, em 2015, o curso
concentra-se na arte pré-histórica e na arte grega antiga. As aulas estão disponíveis gratuitamente no
YouTube. A primeira delas encontra-se disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=5LooCGIl-Vw>.
Acesso em: 4 jan. 2016.
Acesse:
Continuação do curso anterior, trata da arte etrusca, romana, bizantina, medieval e renascentista. As aulas
estão disponíveis gratuitamente no canal on line Univesp: <http://univesptv.cmais. com.br/historia-da-arte-
ii>. Acesso em: 4 jan. 2016.
Acesse:
Wassily Kandinsky (1866-1944), O som das trombetas (Estudo para a obra A grande ressurreição), 1911,
aquarela, detalhe. Kandinsky era fascinado pela tentativa de “pintar sons”, exercício que contribuía, no seu
dizer, para elevar o ser humano à transcendência.
Paul Claudel
Quem tirará do coração da ovelha o desejo da erva fresca?
E quem tirará do coração dos jovens esse outro desejo que não é o desejo de riqueza?
– Qual desejo?
– O desejo do horizonte!
– E do que há por trás do horizonte!
Quando Deus toca flauta, não há cercado que possa reter o rebanho.
Quando Deus toca flauta, não há barreira que possa reter o coração de carne...
Quando Deus toca flauta, as montanhas se põem a dançar.
CLAUDEL, Paul. Lorsque Dieu joue de la flûte. In: VV.AA. Dire Dieu. Paris: Univers Média, 1978. p. 68. (Quando Deus toca flauta.
Tradução nossa.)
Uma das fontes de sentido que se apresentam ao ser humano é a experiência religiosa.
Justamente por ser uma fonte de sentido, a experiência religiosa atrai a atenção da reflexão
filosófica, uma vez que a Filosofia se interessa por analisar tudo o que o ser humano vivencia.
O poema em prosa que abre este capítulo pode ser tomado como um ponto
Página 307
de partida para nossa análise, pois quem o escreveu revela aquilo que parece ser o núcleo da
experiência religiosa: Deus.
Independentemente de crermos ou não em Deus, podemos deixar-nos tocar pela beleza do poema e
“ouvi-lo” filosoficamente. Ele fala diretamente ao coração dos leitores, pois menciona temas de
interesse vital: o desejo, o horizonte de nossas vidas e o que talvez esteja por trás do horizonte...
O desejo, tal como descrito no poema, é o que põe o ser humano em movimento, assim como a
ovelha busca a erva fresca que a alimenta. O horizonte é a direção para onde se volta o olhar
humano; ele representa as possibilidades que se abrem a cada pessoa. Por sua vez, pensar no que
pode estar por trás do horizonte significa perguntar por que o horizonte é desta ou daquela
maneira. Significa também perguntar se não podemos interferir ou construir nosso próprio
horizonte. Como diz o poema, ver no horizonte o desejo de riqueza leva a refletir se a riqueza é
realmente o único horizonte da vida humana ou se é possível ir além dela.
Deixando-nos envolver ainda mais pela beleza do poema e recorrendo a algumas ferramentas
filosóficas para compreendê-lo, podemos observar que o tema central é o horizonte. Apesar de
Deus aparecer já no título e também em quatro linhas do poema, o tema central é o horizonte, é
porque mesmo Deus é apresentado como um ser que aparece no horizonte.
Para o poeta, o desejo move tudo e leva tudo a buscar um horizonte: o ancião deseja Deus assim
como a ovelha deseja a erva fresca e assim como os jovens desejam mais do que riqueza.
Alguém poderia discordar do poeta, dizendo que nem todos os anciãos creem em Deus, assim como
a ovelha nem sempre busca erva fresca (ela pode buscar também água e repouso) e como nem todo
jovem consegue olhar para além da riqueza.
Precisamos saber, porém, que o poeta não tem a obrigação de escrever um texto “correto” do ponto
de vista sociológico, biológico, histórico etc. Ele não escreve uma análise científica. Em vez disso,
tem a liberdade de declarar que Deus é o objeto do desejo do ancião porque, sem nos basearmos em
nenhuma visão religiosa específica (budista, cristã, espírita, judia, muçulmana etc.), mas
considerando que o nome Deus representa um horizonte misterioso que talvez contenha respostas
para as perguntas mais importantes sobre o sentido da vida, então o ancião, no alto de sua vida,
certamente tem o desejo de saber qual horizonte encontrará depois da morte. Esse “depois” é um
mistério radical; pode ser que não haja mais nada depois da vida terrestre; pode ser que haja algum
horizonte novo. Em todo caso, é como horizonte misterioso que o poeta apresenta o conteúdo
contido por trás da palavra Deus.
Os jovens também querem saber o que está por trás do horizonte que se apresenta a eles. Não se
contentam em olhar passivamente. A força de sua juventude e a abertura infinita que os caracteriza
leva-os a perguntar pelos motivos de o horizonte ou as possibilidades de realização terem a forma
que têm. De acordo com o poeta, os jovens desejam Deus, pois aquilo que está por trás do horizonte
é sempre algo misterioso.
Numa palavra, o mistério envolve a realidade humana. Por mais que explicações científicas,
filosóficas, artísticas e mesmo religiosas iluminem a existência, sempre permanecemos sob a
sombra misteriosa da dúvida e da possibilidade de que o horizonte seja diferente daquilo que
imaginam nossas explicações.
Ao mesmo tempo, segundo o poema, tal horizonte nos atrai, assim como o alimento atrai a ovelha.
Como a percepção do caráter misterioso da existência foi algo despertado no poeta pela experiência
religiosa, ele o denomina Deus. É sob esse aspecto que ele desperta o interesse filosófico e permite
ser tomado como introdução à reflexão sobre a experiência religiosa: do que falam as pessoas
quando falam de Deus?
VICHIE81/SHUTTERSTOCK.COM
Lanternas do Festival Yi Peng, em Chiang Mai, Tailândia. A simbologia da luz da fé na escuridão do mistério da
vida é comum a praticamente todas as religiões.
Página 308
Com efeito, conforme explica o próprio poeta Paul Claudel (1868-1955), sua vida mudou com a
experiência religiosa. Depois de ter estudado Filosofia, Política e Direito e de se ter banhado no
cientificismo materialista , ele foi “tocado” pelo mistério (“Deus”) durante uma cerimônia religiosa,
2 3
especificamente durante um canto litúrgico . Daí a força da imagem poética de Deus como músico
4
ou tocador de flauta. Aliás, desde há muitos séculos a flauta simboliza a inspiração divina. Na
Antiguidade grega, por exemplo, ela era ligada ao deus Dionísio, patrono da vitalidade que brota
sempre em todos os cantos do mundo. Na tradição bíblica, ela é um dos instrumentos privilegiados
para louvar o criador. Paul Claudel exprime então que, ao ouvir a “flauta de Deus”, foi tomado de
uma nova vitalidade, uma força inesperada que transformou sua existência e mudou sua maneira
de ver o mundo: as montanhas deixaram de ser imóveis e passaram a dançar. O sentido de tudo
transformou-se ao som da música divina.
Tendo ouvido o poeta, ao menos duas perguntas filosóficas podem ser feitas: (1) O que é a
experiência religiosa ou essa experiência que, centrada em Deus, fornece sentido para a existência?
(2) O que significa falar de Deus?
1 A experiência religiosa
Observando as pessoas religiosas, um dado que salta à vista é o fato de elas interpretarem todos os
aspectos da vida remetendo ao mistério divino. Seu gosto de viver é aumentado e mesmo renovado
(com efeitos palpáveis de paz interior, alegria e consolação), de modo que o mistério divino se
torna a chave da visão religiosa do mundo.
É certo que uma pessoa religiosa considera também outras explicações para a vida. Por exemplo,
ela aceita as teorias da Física para entender o funcionamento da Natureza ou os trabalhos de
História para entender as causas e as consequências dos acontecimentos culturais. No entanto, ela
vai além do horizonte da Física e da História e o complementa com o mistério divino ao qual ela dá
um rosto, chamando-o de “ser divino”, “Deus” ou outra palavra que aponte para uma dimensão que
supera o horizonte do mundo. Dessa perspectiva, a vida humana é entendida como um dom, e não
apenas como um acontecimento do acaso.
Esse dom, por sua vez, é vivido pelas pessoas religiosas como algo que solicita uma resposta
amorosa e responsável. Elas encontram um sentido transcendente (p. 80 e 339) para o mundo,
porque, sem recusar a vida no mundo, experimentam que ele é insuficiente para satisfazer o desejo
humano de sentido. Apenas por uma relação com o mistério tal desejo pode ser satisfeito.
A fim de explicitar o que a experiência religiosa parece conter, alguns elementos podem ser
destacados: (1) tudo começa pelo gosto de viver; (2) por sua vez, o gosto de viver leva a uma
abertura aos outros seres, vendo-os como portadores de um sentido que os torna membros de um
grande conjunto; (3) a abertura ao “mundo” (conjunto de tudo o que existe) produz o sentimento
de que tudo o que existe partilha o mesmo horizonte de busca de sentido e faz estabelecer uma
relação ou uma comunhão com tudo e todos; (4) a experiência de uma solidariedade universal leva
5
a perceber valores como o amor, a bondade, a compaixão, a aceitação das diferenças, a tolerância
etc.; (5) no entanto, percebe-se também que tudo o que existe é incapaz de oferecer um horizonte
de satisfação estável e definitiva, embora se deseje algo com essas características; é então que o
contraste entre o desejo do “infinito” e a limitação de tudo o que existe aponta para a dimensão
transcendente como possibilidade de satisfação plena do desejo (desejo este que se revela, ele
mesmo, “infinito”).
Na realidade, uma vivência religiosa não acontece necessariamente na ordem em que esses
elementos foram apresentados aqui. Aliás, uma pessoa não religiosa também pode experimentá-los,
com exceção do quinto “passo”, que parece ser a característica específica da vivência religiosa. Além
disso, uma pessoa religiosa talvez diga que foi o quinto “passo” a causa dos quatro primeiros, pois
os efeitos vividos no encontro de um sentido transcendente (paz interior, alegria e consolação)
fazem mudar sua visão de mundo e aumentar seu gosto de viver. A indicação desses elementos é,
portanto, apenas didática, a fim de chamar atenção para a descoberta do horizonte misterioso como
fonte de sentido na vida das pessoas religiosas.
Ícone: Glossário 2 Cientificismo: crença na Ciência como algo capaz de explicar todos os aspectos da
experiência humana e como única forma de conhecimento aceitável.
3 Materialista: teoria de que só existe aquilo que possui um corpo (uma porção de matéria).
4 Litúrgico: algo que se refere às cerimônias de uma religião (canto, gestos, dança, símbolos, textos etc.).
Khadija Sadek Moudafi, Mystère d’un monde (Mistério de um mundo), 2013, óleo sobre tela. Artmajeur. Como
explica a pintora e poetisa marroquina Khadija Sadek Moudafi, a arte é um dos caminhos mais adequados para
experimentar o mistério que envolve o mundo e as infinitas possibilidades que são dadas a cada ser humano
na produção de sentido para sua existência.
Experimentar e experienciar
Você certamente notou que usamos os verbos experimentar e experienciar. Há diferença entre eles!
Tudo depende do conteúdo da experiência.
Dizemos, por exemplo, que temos experiência da cor verde, do sabor doce ou salgado, da dor, da
alegria, mas também da beleza de uma melodia ou de um quadro, do desejo de fazer o bem, da
presença divina etc. São experiências claramente diferentes; afinal, o verde não é experimentado da
mesma forma que a beleza de uma melodia. Como o verde pode ser captado por um dos cinco
sentidos, podemos dizer que o experimentamos. Quanto à beleza de uma melodia, ela não “passa”
por nenhum dos cinco sentidos; embora a melodia seja captada pela audição, sua beleza depende
do modo de ser do indivíduo que a ouve. Podemos, então, afirmar que experienciamos a beleza da
melodia.
Tanto o verde como a beleza são “objetos” ou “fenômenos”, ou seja, conteúdos da consciência.
Ambos geram um sentimento de certeza; e o fazem de maneiras muito diferentes. Então, para
distinguir esses tipos de experiência em função dos diferentes conteúdos, muitos filósofos têm
usado de maneira distinta os verbos experimentar e experienciar:
Experimentar – Ato em que a consciência de um indivíduo tem certeza sobre algo com base na
captação de informações por meio dos cinco sentidos e de maneira que os outros indivíduos podem
avaliar essa certeza também com base nos cinco sentidos. Exemplos:
O termo mistério, por sua vez, não significa aqui algo impossível de conhecer, mas uma dimensão
que, mesmo sendo percebida, é conhecida parcialmente, nunca esgotada ou dominada inteiramente
pelo pensamento; algo que sempre convida a ser mais compreendido.
Também é provável que as pessoas (possivelmente a maioria delas) falem do mistério divino sem
ter consciência do que ele significa. Para muitas, a vivência religiosa equivale a frequentar uma
igreja, um terreiro, uma sinagoga, uma mesquita, um centro, a adoção de normas morais etc. Talvez
elas sequer se questionem sobre o sentido da vida. Outras, ainda, atribuem ao ser divino coisas
facilmente explicáveis por recurso às Ciências, à Psicologia ou mesmo à Filosofia. No entanto, de
uma perspectiva filosófica, o mistério divino ou o sentido transcendente é a única possibilidade de
identificar uma experiência religiosa autêntica e distingui-la de vivências simplesmente “humanas”
6
(sociais, psíquicas, culturais etc.). É por isso que, neste capítulo, a palavra religião e a expressão
experiência religiosa são tomadas como sinônimo da percepção de um horizonte misterioso e da
adesão livre, inteligente e amorosa a ele; não significa a simples prática de uma religião
determinada.
Ícone: Glossário 6 Autêntico: aquilo que é vivido de modo consciente e com o máximo de esforço para evitar
erros e ilusões.
Página 310
Convencionando chamar de Deus a esse mistério (por ser o nome mais comum), pode-se dizer que
viver uma experiência religiosa autêntica significa experienciar Deus. Mas, sendo Deus
transcendente, como é possível experienciá-lo?
EXERCÍCIO A
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 495
3. Considerando-se o sentido fundamental da religião, é possível pensar que ela pode não ser
autêntica? Explique.
4. Pense em pessoas e grupos religiosos que você conhece. Essas pessoas e esses grupos dão
sinais de uma experiência religiosa autêntica? Lembre-se que analisar o comportamento de
pessoas e grupos não significa fazer um julgamento sobre eles, sobretudo porque, no limite,
nenhum ser humano conhecerá plenamente o que há na consciência de outro. Analisar o
comportamento de pessoas e grupos significa procurar sinais que permitam conhecer o
sentido que eles dão à própria vida. Com essa intenção é que convidamos você a refletir.
Sem dar uma resposta satisfatória para essa dificuldade, a experiência religiosa pode parecer
absurda aos olhos dos filósofos e de outros observadores atentos. Dar essa resposta é uma das
tarefas da filosofia da religião. Nesse sentido, alguns pensadores (inclusive não religiosos, mas
interessados na religião como tema filosófico) têm desenvolvido algumas reflexões que defendem a
necessidade de ampliar o conceito de percepção, fazendo-a ir além da atividade dos cinco sentidos.
Mesmo nas experiências mais cotidianas há casos que não podem ser explicados apenas pelo
recurso aos cinco sentidos, pois pode haver percepção (captação de dados que produzem certeza)
sem conteúdos que “passam” por eles. Um exemplo bastante simples é o caso das mães e dos pais
que percebem a chegada dos filhos mesmo antes de eles entrarem em casa. Outras pessoas
percebem que alguém está mal sem que haja qualquer sinal de seu mal-estar. Casos como esses
permitem repensar a percepção em jogo na experiência religiosa, como têm feito, por exemplo, a
filósofa norte-americana Keith Yandell, em seu livro A epistemologia da experiência religiosa, e o
filósofo também norte-americano Charles Taliaferro, em sua obra Consciência e a mente de Deus.
Assim, mais do que uma “coisa” chamada Deus, o conteúdo de uma experiência religiosa são os
efeitos produzidos na vida de uma pessoa quando ela reconhece o mistério divino e adere a ele. O
conteúdo de sua consciência ou percepção são esses efeitos, os quais ela vivencia quando se põe em
relação com o mistério que ela chama de Deus, mesmo não o dominando conceitualmente. Numa
palavra, a experiência de Deus é a experiência que a pessoa faz de si mesma na relação com o ser
divino. Por sua vez, a análise filosófica da religião só é possível quando se debruça sobre a pessoa
humana vista da perspectiva de sua relação com Deus. Ela até pode ampliar-se para as ações das
pessoas religiosas, o aspecto social de sua vivência, seu engajamento na
Página 311
transformação do mundo ou seu isolamento etc., mas o alvo fundamental da filosofia da religião é a
consciência das pessoas mesmas.
C omo Deus é o nome que se dá para o horizonte misterioso de realização do desejo humano de
sentido, há um risco enorme de equivocar-se sobre ele e mesmo de manipular o nome Deus, falando
dele segundo interesses particulares. O filósofo grego Xenófanes de Colofon (p. 323), segundo
consta, afirmava que, se os bois e os cavalos tivessem deuses, eles os representariam sob a forma de
bois e cavalos. Xenófanes acreditava nos deuses gregos, mas também defendia a necessidade de
evitar abusos no modo de falar sobre eles.
Mirella Spinelli
Khalil Gibran
Certo dia, um cachorro que era considerado sábio no mundo dos cachorros passou por um local
onde estava reunida uma assembleia de gatos. Todos estavam tão concentrados, ouvindo
religiosamente um pregador gato, que nem perceberam a presença do cachorro. Então, o cachorro
7
sábio decidiu ouvir a pregação. Viu que aquele que falava era um gato grande, sério e muito
respeitado. Ele tinha ares de quem conhece o assunto:
– Meus irmãos, orem e orem sempre. Em verdade vos digo: se vocês orarem com muita fé, Deus fará
chover muitos ratos do céu.
Esse discurso fez o sábio cachorro rir muito. Distanciando-se da assembleia dos gatos, disse para si
mesmo:
– Como podem ser tão iludidos e estúpidos esses gatos! Não é isso que está escrito no livro sagrado.
Eu, porém, conheço a verdade. Aprendi no livro sagrado e meus antepassados aprenderam antes de
mim. Se nós orarmos com bastante fé, não é rato que Deus fará chover, mas grandes ossos cheios de
tutano ! 8
GIBRAN, Khalil. Le sage chien. In: PIQUEMAL, Michel. Les philo-fables. Paris: Albin Michel, 2008. p. 146-147. (O cão sábio. Tradução
nossa.)
Começar pela análise de Deus levava, segundo Schleiermacher, a reduzir a experiência religiosa a
um tema de Metafísica, visão sobre o ser das coisas, ou de Ética, reflexão sobre as boas ações. Em
vez disso, começar pela atitude de considerar a consciência da pessoa religiosa permite conhecer a
especificidade de sua experiência, à qual Schleiermacher chamava de sentimento.
O sentimento é diferente da emoção (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 264); trata-se da
percepção que envolve tanto a capacidade de pensar como a capacidade de perceber um valor
naquilo que é percebido e aderir a ele. Graças ao trabalho de Schleiermacher, passou-se a falar, em
Filosofia, de sentimento religioso, experiência específica, relativa à percepção do mistério divino, e
que não convém
Página 312
Schleiermacher registrou sua filosofia da religião em obras como Discursos sobre a religião e
Doutrina da fé. Ícone: Texto filosófico
Friedrich Schleiermacher
Para tomar posse de sua propriedade, a religião renuncia a toda pretensão sobre tudo o que 9
pertença [à Metafísica e à Moral] e devolve tudo o que lhe tem sido imposto pela força. Ela não
pretende, como a Metafísica, explicar e determinar o Universo de acordo com sua natureza ; ela não 10
divino no ser humano. A essência da religião não é pensamento nem ação, [mas] intuição e
13
sentimento. Ela quer intuir o Universo, quer observá-lo piedosamente em suas próprias 14
manifestações e ações; quer ser impressionada e plenificada, na passividade infantil, por seus
influxos imediatos.
15
Desse modo, a religião se opõe a ambas [tanto à Metafísica como à Moral] em tudo o que constitui
sua essência e em tudo o que caracteriza seus efeitos. A Metafísica e a Moral não veem em todo o
Universo nada mais do que o ser humano como ponto central de todas as relações, como condição
de todo [tipo de] ser e causa de todo devir ; [em vez disso,] a religião quer ver no ser humano, não
16
menos que em todo outro ser particular e finito, o Infinito, seu relevo, sua manifestação. A
Metafísica parte da natureza finita do ser humano e quer determinar conscientemente, a partir de
seu conceito mais simples e do conjunto de suas forças e de sua receptividade, o que pode ser o
Universo para ele. A religião também desenvolve toda a sua vida na Natureza; porém se trata da
natureza infinita do conjunto, do Uno e do Todo. [...] A Moral parte da consciência da liberdade, cujo
reino quer expandir até o infinito, procurando fazer com que fique submetido à liberdade; [já] a
religião respira ali onde a liberdade mesma já se tenha convertido em Natureza. [...]
e à Moral; ela é a contrapartida natural, não inferior em dignidade e excelência a qualquer das
outras duas, seja qual for. Abandonar-se à especulação e a praxes , sem dar vez à religião, constitui
18 19
uma arrogância temerária , uma desavergonhada hostilidade para com os deuses; tal é o ânimo
20 21
ímpio de Prometeu, que roubou covardemente o que houvera podido exigir e esperar com
22
tranquila segurança. O ser humano só tem roubado o sentimento de sua infinitude e de sua
semelhança com Deus; e, como bem ilegítimo, não lhe pode ser proveitoso se ele não toma
consciência, por sua vez, de sua limitação, do seu caráter contingente de toda a sua forma, da
23
SCHLEIERMACHER, Friedrich. Sobre a religião. Tradução Daniel Costa. São Paulo: Novo Século, 2000. p. 33-34.
17 Imprescindível: indispensável.
20 Temerário: algo ou alguém imprudente, que não calcula os riscos de uma ação.
23 Contingente: variável.
Foi um filósofo e teólogo alemão. Buscou estabelecer um conhecimento geral sobre a arte da
interpretação dos textos e discursos, chamando a atenção para o papel dos indivíduos na
construção do sentido dos mesmos textos e discursos. Dedicou-se também a identificar a Religião
como uma área específica entre os saberes. Obras mais conhecidas: Hermenêutica e Sobre a religião.
ao seu conteúdo um tratamento próprio de outros saberes. Com efeito, Prometeu é uma
personagem da mitologia grega, intermediário entre os deuses e os humanos, e responsável por um
ato de violência contra os deuses: junto de Epimeteu, seu irmão, Prometeu havia recebido dos
deuses a tarefa de produzir os animais e os seres humanos. Epimeteu se ocupou dos animais e deu a
eles vários dons, como a força, a velocidade, as asas, as garras etc. Quando quis produzir o ser
humano, já não tinha mais recursos para dar. É por isso que ele se chamava Epimeteu, que, em
grego, significa “aquele que reflete depois de ter agido”. Prometeu, então, roubou o saber divino,
simbolizado pelo fogo sagrado do Olimpo (residência dos deuses) e o deu aos humanos. Por direito,
o fogo era reservado aos deuses; e Prometeu sabia disso (seu nome significa “aquele que vê e reflete
antes de agir”). Como castigo, Zeus, o maior dos deuses, condenou Prometeu a ser acorrentado no
alto do monte Cáucaso, aonde todos os dias vinha uma ave devorar seu fígado. Para seu sofrimento
ser ainda mais forte, seu fígado se refazia todos os dias. A condenação previa que ele sofresse por
30 mil anos, mas Hércules o libertou, oferecendo, em troca de Prometeu, o centauro (um ser que
era metade homem, metade cavalo) de nome Quíron.
Auguste Rodin (1840-1917), La main de Dieu ou la création (A mão de Deus ou a criação), 1896, escultura. A
experiência de sentir-se plasmado por um criador é um dado fundamental da vivência da fé religiosa.
friedwater/Creative Commons
Stonehenge, Reino Unido. Alguns lugares do mundo, como Stonehenge, são conhecidos por despertarem em
seus visitantes o senso do mistério e contribuem para o sentimento de dependência de que falava
Schleiermacher.
O mito de Prometeu representa o orgulho humano e sua vontade de ignorar os deuses, ou, mais do
que isso, de querer igualar-se a eles ou até superá-los. Por essa razão, Schleiermacher o associa às
tentativas filosóficas de ignorar a especificidade da experiência religiosa ou de explicá-la com base
em outros saberes.
REPRODUÇÃO/ACERVO PARTICULAR
EXERCÍCIO B
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 496
1. O que permite afirmar que na experiência religiosa a pessoa experiencia a si mesma sem que,
por isso, ela viva uma ilusão ou uma fantasia?
4. Observando sua própria vida, você considera que possui sentimento religioso? Justifique sua
resposta.
Página 314
YOEL TORDJMAN
Yoel Tordjman (1960-), Deixe-me voar, sem data, pintura acrílica sobre alumínio. Saatchi Art. Como ocorre com
o voo dos pássaros, a experiência religiosa pode constituir-se em uma das formas mais intensas de exercício da
liberdade. Afinal, não há melhor ocasião do que o encontro com o mistério transcendente para o indivíduo
dizer “sim” ou “não” em profunda radicalidade.
3 O Sagrado ou o Numinoso
Alguns pensadores, porém, mesmo colocando-se em continuidade com a filosofia da religião de
Friedrich Schleiermacher, identificaram nela uma fragilidade: ela abria espaço para pensar que a
experiência religiosa é algo totalmente pessoal, restrito à consciência dos indivíduos, sem nenhuma
garantia de que o conteúdo experimentado (a relação com Deus) possa ser mais do que uma
fantasia ou uma projeção de ilusões (como a de “Todo”, “Uno”, “infinito”, “amor” etc.).
Procurando resolver essa dificuldade (conhecida como subjetivismo ), Rudolf Otto (1869-1937)
25
procurou saber se seria possível identificar características do ser divino tal como ele se apresenta
na relação com as pessoas religiosas. Para além do sentimento religioso ou da dependência total de
que falava Schleiermacher, Otto buscava elementos que permitissem distinguir o objeto (conteúdo)
divino da experiência em meio aos outros objetos da consciência.
Rudolf Otto estudou, então, diversas religiões (além das religiões mais conhecidas em sua época,
como o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, também o vedismo, o hinduísmo, o taoísmo,
religiões africanas etc.), a fim de observar se a vivência dos seus praticantes revelaria traços
comuns no modo de ver o mistério divino. O resultado foi surpreendente, pois Otto constatou que,
independentemente dos rostos dados ao mistério divino pelas diferentes religiões, ele é visto de
maneira muito parecida em todas elas. Por essa razão, Otto defendeu a criação de um novo conceito
para referir-se ao conteúdo específico que se apresenta como polo da relação religiosa: trata-se do
conceito de Sagrado ou Numinoso . 26
Em seu livro, cujo título é exatamente O Sagrado, Otto justifica seu procedimento de estudo
afirmando que, quando se observam semelhanças em diversas experiências, é legítimo concluir que
o conteúdo ou o objeto dessas experiências é o mesmo ou aparece com características semelhantes;
ora, se diferentes experiências religiosas apresentam semelhanças, parece legítimo concluir que o
seu objeto ou o seu conteúdo (o mistério divino na relação com as pessoas) também é o mesmo nas
diferentes religiões ou, pelo menos, aparece com características semelhantes em todas elas.
Identificar essas características permitiria, segundo Otto, encontrar um critério que leva a
distinguir a experiência especificamente religiosa, isto é, aquela em que alguém está diante do
Sagrado ou Numinoso.
De acordo com a observação de Rudolf Otto, as características comuns ao Sagrado tal como
experienciado nas diferentes religiões são:
(1) o Sagrado é encontrado como algo que provoca um sentimento do estado de criatura: quando a
pessoa percebe o Sagrado, sente que a vida é recebida e que nada no mundo é suficiente para
explicar esse sentimento;
(2) o Sagrado é encontrado como mistério tremendo ou mistério que causa espanto: ao perceber o
Sagrado, a pessoa tem certeza de que está diante de algo maior do que ela e do que tudo o que
existe; na contrapartida, essa experiência faz com que a pessoa tenha noção também de sua
pequenez ; 27
Ícone: Glossário 25 Subjetivismo: concepção segundo a qual toda forma de pensamento depende sempre de um
sujeito (indivíduo) e é válida pelo simples fato de esse sujeito a afirmar.
26 Numinoso: algo que tem as características de um nume, ser superior que eleva e inspira.
(3) o Sagrado é encontrado como mistério fascinante: a pessoa não sente medo diante do Sagrado,
Página 315
(4) o Sagrado é encontrado como algo que produz uma força ou energia nova: a pessoa religiosa
sente um impulso ou uma vitalidade nova quando estabelece uma relação com o ser divino.
Há um risco de “Biblialatria”?
É inegável a influência do cristianismo na sociedade brasileira. Por essa razão, a Bíblia (livro
sagrado para os cristãos) é uma fonte de orientação para muitas pessoas.
Toda igreja cristã tem direito de crer que a Bíblia é a palavra de Deus e, por isso, acreditar que ela
exprime quem Deus é. A análise filosófica convida, porém, a pensar que Deus pode ser maior do que
o retrato feito pela Bíblia; afinal, nem todos os livros do mundo bastariam para conter o mistério
divino. Desse ponto de vista, é mais coerente afirmar que Deus se revela na Bíblia, mas a Bíblia não é
Deus. Adorar a letra da Bíblia, imaginando que se está adorando Deus, seria pôr o livro sagrado no
lugar do próprio Deus. Seria, então, uma “Biblialatria”.
Uma análise parecida vale também para as outras religiões. Se o mistério divino não é respeitado
exatamente como mistério, a maneira humana de pensar é posta no seu lugar; cria-se um ídolo.
Pode haver também uma “Toralatria” (adoração da Torá, texto sagrado para os judeus e composto
do ensinamento de Moisés em cinco livros: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio),
uma “Alcoranolatria” (adoração do Alcorão, livro sagrado dos muçulmanos, formado pelos
ensinamentos de Maomé) e assim por diante.
(1) sentido histórico ou literal – significado primeiro do que está escrito no texto bíblico, ou seja,
significado que o texto tinha na época em que foi escrito;
(2) sentido espiritual – significado que o texto bíblico tem para a vida de quem o lê hoje, pois
permite à pessoa iluminar sua vida com o que está escrito; subdivide-se em:
(2.1) sentido simbólico ou alegórico – significado dos textos que falam de uma coisa para
significar outra; por exemplo, os textos bíblicos que mencionam leprosos não têm um significado
direto para quem não tem lepra, mas significam que Deus pode curar, tirar as pessoas da exclusão
(os leprosos eram separados da sociedade no momento em que o texto bíblico foi escrito) etc.;
(2.2) sentido moral – significado que leva a agir bem, isto é, que orienta a ação para sempre ser
boa;
(2.3) sentido místico – significado que eleva até as realidades divinas, dando uma ideia daquilo que
será a vida depois da morte.
Dessa perspectiva, entende-se que as diferentes concepções de Deus ou do mistério divino (os
“rostos” dados a ele) são maneiras de interpretar o Sagrado que se manifesta no horizonte humano.
que Deus se reduz somente àquilo que está escrito no texto revelado. Se Deus existe e se ele
realmente é um mistério transcendente, ele não pode ser limitado pelos retratos traçados pelos
livros sagrados. Por sua vez, mesmo que uma pessoa conheça perfeitamente um livro sagrado, nada
a autoriza a dizer que Deus é somente aquilo que a pessoa pensa que ele é.
Ônus da prova?
T em se tornado comum, em debates filosóficos sobre a existência de Deus, afirmar que cabe a
quem tem fé o “ônus da prova”, isto é, a obrigação de provar a existência de Deus, assim como em
um tribunal cabe ao acusador apresentar a prova que torna alguém culpado.
Nessa linha de pensamento, o matemático e filósofo inglês William K. Clifford (1845-1879), grande
combatente da ignorância promovida por certas pessoas religiosas, defendia que é sempre uma
desonestidade e um erro crer em algo sem evidência . Por exemplo, seria racionalmente errado e
28
moralmente desonesto aconselhar alguém a sair sem guarda-chuva quando a meteorologia anuncia
que provavelmente vai chover. O caráter “provável” da chuva (falta de evidência) não permite crer
que não vai chover. Essa maneira de raciocinar ficou conhecida como Princípio de Clifford.
Outros pensadores, porém, enfatizam que nossas crenças (mesmo científicas) nem sempre são
baseadas em evidência. No caso da crença na existência de Deus, seria mesmo contraditório
pretender prová-la, pois qualquer “prova” anularia o caráter misterioso do ser divino. Nesse
sentido, o filósofo norte-americano Peter van Inwagen (1942-) formulou o Outro Princípio de
Clifford: é sempre uma desonestidade e um erro rejeitar sem base em evidência aquilo que é contrário
às nossas crenças. Dessa perspectiva, é racionalmente legítimo crer naquilo que a razão não obriga a
rejeitar: a própria razão reconhece que, se ela não pode provar o absurdo de algo, ela mesma pode
aceitar crer nesse algo, embora ela também tenha consciência de que nada a obriga a crer. Por
exemplo, alguém pode crer que comer doces faz mal à saúde. Ora, a evidência de que os doces
fazem mal à saúde é frágil, porque se baseia apenas em pesquisas parciais (feitas somente com
pessoas que ficaram doentes comendo doces). A rigor, não haveria propriamente uma evidência,
em sentido forte, de que doces fazem mal a todas as pessoas. No entanto, se alguém crê que comer
doces faz mal, seria uma desonestidade para consigo mesmo(a) deixar de seguir sua crença apenas
porque ela não é baseada em uma evidência definitiva. Sua razão, mesmo percebendo a fragilidade
da evidência, aceita que não é possível provar definitivamente o prejuízo de comer doces, mas
compromete-se com a crença nesse prejuízo por motivos válidos para a pessoa em questão (ela
sente que, no seu caso, comer doces faz mal).
Aplicado à crença em Deus, o Outro Princípio de Clifford mostra que a própria razão, percebendo o
caráter misterioso do ser divino, pode crer nele, dado ser impossível provar que ele não existe.
Nesse sentido, é a própria razão que crê; e, de certo modo, o Outro Princípio de Clifford devolve o
“ônus da prova” a quem nega a existência de Deus.
Ícone: Glossário 28 Evidência: característica de algo inquestionável; de algo cujo contrário é absurdo.
O cuidado com o caráter misterioso do ser divino levou também diferentes filósofos a concluir que
ele não pode ser conhecido diretamente, em seu ser íntimo, a menos que ele tome a iniciativa e
ilumine diretamente a consciência de uma pessoa. A essa vivência chama-se experiência mística,
união direta com o mistério divino, para além de toda representação conceitual.
cimento, o ser divino só pode ser percebido por meio de seus efeitos. Conhecê-lo diretamente
significaria dominá-lo pelo pensamento, ao modo como se dominam outros objetos da consciência;
e ele deixaria de ser um mistério ou um objeto de conhecimento inesgotável. Dessa perspectiva,
como diziam alguns filósofos medievais, para falar de Deus, ele próprio (Deus) oferece a primeira
dificuldade, pois, sendo o Transcendente, e não o transcendental! (Ícone: Conteúdo tratado em
outra página p. 80 e 339), é impossível fazer um discurso sobre ele começando por ele mesmo.
Resta apenas a possibilidade de partir dos efeitos atribuídos a Deus e assim construir um discurso
indireto sobre ele.
O recurso elementar para construir esse discurso indireto é a analogia (Ícone: Conteúdo tratado em
outra página p. 48). Se há bondade no mundo, afirma-se que Deus, sendo a origem de tudo, também
deve ser bom de algum modo; se há beleza, então Deus deve ser belo; e assim por diante. Assim
também, quando se afirma que o ser divino é “pai”, “amoroso”, “fonte de equilíbrio” etc., isso quer
dizer que ele é “como um pai” (pressupondo que todo pai deveria ser bom), “como um ser que
ama”, “como uma fonte de equilíbrio”, mas ele não é exatamente um “pai” (se ele fosse um pai, teria
também um pai, um avô etc.), nem “amoroso” ao modo do amor imperfeito que percebemos no
mundo, nem uma “fonte” que pode se esgotar. Aliás, Deus também pode ser visto como “mãe”
(pressupondo que toda mãe deveria ser boa), já que ele não é nem “pai” nem “mãe”, pois não tem
sexo.
Justamente a fim de evitar que o pensamento humano desfigure o mistério divino, algumas religiões
evitam falar de Deus e apontam apenas para a transcendência que a tudo envolve. Por essa razão,
essas religiões são chamadas de ateológicas (sem “Deus”). É o caso, por exemplo, de certos ramos
do budismo.
Nessa frente de trabalho reflexivo, o diálogo com os que negam a existência de Deus é uma atitude
bastante esclarecedora.
François Dubois (1529-1584), Noite de São Bartolomeu, 1572-1584, óleo sobre madeira. O autor retrata o
sangrento combate entre cristãos católicos e protestantes no episódio conhecido como Noite de São
Bartolomeu.
EXERCÍCIO C
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 496
1. Por que Rudolf Otto viu a necessidade de complementar a filosofia da religião desenvolvida
por Friedrich Schleiermacher?
3. Com base no uso da analogia, explique a seguinte frase: “Uma pessoa religiosa pode crer que
conhece Deus, mas não pode ter a pretensão de dizer que Deus é só aquilo que ela pensa que
ele é”.
4 Irreligiosidade e ateísmo
A crença na existência de Deus foi questionada por diferentes filósofos.
Em alguns casos, porém, o alvo da crítica não é propriamente o mistério divino, e sim as práticas
das pessoas e grupos religiosos que produzem formas de vida autoritária 29, obscurantista30,
escravizadora das mentes e violenta. A esse tipo de crítica se costuma denominar irreligiosidade,
quer dizer, uma atitude contrária às religiões.
Ícone: Glossário 29Autoritário: quem procura convencer pela autoridade que acredita ter, e não por
argumentos.
Outros pensadores, por não compreenderem ou por não terem experienciado o sentimento
religioso, optam honestamente pelo agnosticismo, atitude de não comprometimento nem com a
afirmação nem com a negação da existência de Deus.
Dois dos autores mais conhecidos por sua crítica à religião foram Friedrich Nietzsche (p. 172) e
Baruch de Espinosa (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 213). O primeiro ataca não apenas
a religião, mas também Deus; o segundo denuncia a religião, mas continua a falar sobre Deus.
Dediquemo-nos a ouvi-los.
Na análise de Nietzsche, a prática religiosa contraria o que há de mais autêntico no ser humano: sua
força e os impulsos naturais que o levam a querer viver, afirmar-se e dominar tudo o que
representa obstáculo. A prática religiosa levaria ao enfraquecimento, à negação do mundo e da vida,
à hipocrisia, construindo a fantasia de que é melhor ser fraco, humilde e confiar em um ser maior e
diferente do mundo, o ser divino.
No texto a seguir, Nietzsche refere-se aos cristãos. Por isso, aparecem noções como “além” (o Céu),
“vida eterna” e “pecado”. Ícone: Texto filosófico
Mentiras religiosas
Friedrich Nietzsche
As pequenas coisas – alimentação, lugar, clima, recreação, a inteira casuística do amor-próprio – 31
são, para além de todos os conceitos, mais importantes do que tudo a que se deu importância até
agora. Aqui precisamente é necessário começar a reaprender. Aquilo que até agora a Humanidade
ponderou seriamente nem sequer são realidades, são meras imaginações ou, dito mais
32
sentido mais profundo: todos os conceitos “Deus”, “alma”, “virtude”, “pecado”, “além”, “verdade”,
“vida eterna”... Mas procurou-se neles a grandeza da natureza humana, sua “divindade”... Todas as
questões da Política, da ordem social, da educação foram falsificadas pela base e pelo fundamento
por se tomarem os homens mais perniciosos por grandes homens, por aprenderem a desprezar as
“pequenas” coisas, quer dizer, as disposições fundamentais da própria vida... E, se me comparo com
os homens que até agora foram honrados como os primeiros dos homens, a diferença é palpável.
Nem sequer tenho esses pretensos “primeiros” em conta de homens em geral; são para mim o
vômito da Humanidade, aborto de doença e de instintos vingativos; são apenas funestos , no fundo 34
incuráveis monstros inumanos, que tomam vingança da vida... Disso quero ser o oposto: minha
prerrogativa é ter a suprema finura para todos os signos de instintos sadios. [...] A vida se tornou
35
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo. In: Obras incompletas. Tradução Rubens R. Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1987. p. 153.
Coleção Os Pensadores.
Observe como esse texto de Nietzsche, marcado de grande força e elaboração literária, é um
exemplo de irreligiosidade, ou seja, de combate à religião. Sem conter necessariamente um
argumento que negue a existência de Deus, o filósofo levanta-se contra as pessoas que, dizendo-se
religiosas, vão contra a vida, vingam-se e fogem dela, fixando sua atenção no que Nietzsche
considerava um conjunto de fantasias: “Deus”, “alma”, “virtude”, “pecado”, “além”, “verdade”, “vida
eterna”.
É curioso notar, porém, que o pensamento de Nietzsche ganha a simpatia mesmo de pessoas que
têm fé mas que também percebem a “doença” de certas práticas religiosas. Em vez de enraizar a fé
no gosto pela vida, essas práticas usam a fé para apegar-se à tristeza, ao pessimismo e à vingança.
Página 319
Baruch Espinosa
Como Deus é um ente absolutamente infinito, do qual nenhum atributo que exprima a essência de
36
uma substância pode ser negado, e como ele existe necessariamente, se existisse alguma substância
além de Deus, ela deveria ser explicada por algum atributo de Deus e existiriam, assim, duas
substâncias de mesmo atributo, o que é absurdo. Portanto, não pode existir e, consequentemente,
tampouco pode ser concebida nenhuma substância além de Deus. Pois, se pudesse ser concebida,
ela deveria necessariamente ser concebida como existente. Mas isso é absurdo. Logo, além de Deus,
não pode existir nem ser concebida nenhuma substância.
Disso se segue, muito claramente, em primeiro lugar, que Deus é único, isto é, que não existe na
natureza das coisas senão uma única substância, e que ela é absolutamente infinita.
ESPINOSA, Baruch. Ética. Parte I, Proposição 14. Tradução Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. p. 29 e 31.
Ícone: Glossário 36 Ente: algo que existe (realmente ou pelo menos no pensamento).
Nietzsche, por outro lado, nutria certa admiração pela personagem histórica de Jesus Cristo, mas
denunciava formas de vida cristã que ele conheceu bem: ações amargas, rancorosas, rígidas,
repletas de condenações morais e hipócritas contribuíram para que ele desenvolvesse sua visão da
religião como uma mentira ou um jogo de vingança. Pessoas incapazes de lutar ou exercer a força
dos instintos fazem passar-se por ovelhas mansas a fim de controlar os mais fortes, introduzindo
neles um sentimento de culpa por serem fortes.
Quanto a Baruch de Espinosa, ele certamente foi o pensador mais radical na denúncia da religião.
Sem, no entanto, negar a existência de Deus, Espinosa atacou a base mesma da fé religiosa: a crença
de que Deus é diferente do mundo ou da Natureza. Ícone: Texto filosófico
Pensador de extrema capacidade de análise, Espinosa construiu uma filosofia em que somente era
considerado racional aquilo que pudesse ser demonstrado de modo semelhante aos procedimentos
da Matemática. Dado que algo como um mistério divino não pode ser tratado dessa maneira, não
haveria por que afirmar sua existência. Ademais, segundo Espinosa, o mundo pode ser explicado
por si mesmo, no campo da pura imanência, sem recurso a nenhuma transcendência (Ícone:
Conteúdo tratado em outra página p. 80). O próprio mundo, portanto, deve ser chamado de divino;
e, chamando o mundo de divino, Espinosa muda completamente o sentido desse termo, tirando
dele toda significação de ser maior do que o mundo e dando-lhe o sentido de fonte e destino
internos ao próprio mundo. O filósofo holandês construiu, assim, uma “metafísica sem
transcendência”, alterando também, por fim, o significado da própria palavra Deus: agora, Deus é o
mundo ou a Natureza.
No seu entender, a ideia de Deus é algo que tem sentido racional (um ser infinito que produz a si
mesmo); nada obrigaria racionalmente a associar Deus a um ser diferente do próprio mundo ou da
Natureza.
Para entender o texto de Espinosa, faz-se necessário esclarecer pelo menos três termos: essência,
atributo e substância. A fonte para esse esclarecimento é o início da mesma obra da qual foi
extraído o trecho acima, chamada Ética.
A essência, segundo Espinosa, é a identidade de algo, a qual pode ser pensada com recursos da
razão, sem necessidade de nenhum auxílio externo a ela. O atributo é aquilo que, também pela
capacidade racional, o ser humano percebe como algo que faz parte da essência. Por sua vez, a
substância é algo que existe em si mesmo, quer dizer, que não existe em dependência de outra coisa
e que pode ser pensado por si mesmo (é aquilo cujo conceito não precisa de outro conceito para ser
formado).
Dado esse vocabulário, o raciocínio de Espinosa pode ser expresso como segue:
(1) se Deus só pode ser pensado como aquele cuja essência é a de ser absolutamente infinito,
(1.1) então não se pode negar que ele tenha todos os atributos que exprimem a essência de uma
Página 320
substância (se Deus não tivesse algum atributo, não seria infinito);
(1.2) e então Deus existe necessariamente (se não existisse, faltaria a ele o atributo da existência, o
que faria com que ele não fosse infinito);
(2) seria, por isso, absurdo pensar que existe alguma substância diferente de Deus,
(2.1) pois uma substância diferente de Deus teria de ter o mesmo atributo de Deus,
(3) ora, é absurdo pensar duas substâncias com o mesmo atributo, então só há uma substância, que
é infinita;
(4) se as coisas existem e se a existência é um atributo de Deus, a natureza das coisas é o próprio
Deus; só há uma única substância (a natureza das coisas), absolutamente infinita.
ANIA KLARA/SHUTTERSTOCK.COM
JOINGATE/SHUTTERSTOCK.COM
No alto: Planta suculenta em que as partes são estreitamente ligadas ao núcleo, formando com ele uma
unidade. Acima: Náutilo cortado ao meio. Dado que as partes da planta e do náutilo são continuidades diretas
do núcleo, essas imagens podem ser tomadas como representações ou analogias da concepção espinosana da
única substância divina da Natureza.
A grande transformação operada por Espinosa está em sua insistência no fato de que pensar com
coerência sobre o mundo exige pensar uma única substância absolutamente infinita. Só há um ser,
que é divino por ser absolutamente infinito. Isso não quer dizer que todas as coisas percebidas são
“partes” de Deus; elas são suas expressões singulares.
Como explica Espinosa em outros trechos de sua obra, as coisas não são criadas por Deus como se
elas fossem diferentes dele. Todas as coisas são modos de Deus, são a manifestação dos atributos
divinos: o atributo “extensão” produz os corpos; e o atributo “pensamento” produz ideias e mentes
(ou almas). Corpos e mentes são expressões de Deus imanentes a ele.
Nesse trabalho está a raiz da irreligiosidade de Espinosa. Deus deixa de ser entendido como
mistério transcendente e passa a ser concebido como o infinito que opera por seus modos finitos ou
pelas coisas que existem nele mesmo. Segundo Espinosa, não se crê em Deus, mas se conhece Deus:
ele é explicado racionalmente. Dessa compreensão surge o verdadeiro amor por Deus ou pela sua
essência infinita. O amor é conhecimento acompanhado de alegria, a qual, por sua vez, é a passagem
de um conhecimento para outro conhecimento maior. Esse estado de conhecimento amoroso ou
alegre resulta na liberdade, pois o ser humano se livra de falsos conhecimentos como as
imaginações religiosas que mantêm os seres humanos na escravidão do medo. A origem da religião,
portanto, será, segundo Espinosa, o medo ou as emoções tristes que nascem da ignorância humana.
Ícone: Texto filosófico
Na direção contrária ao medo e à superstição, o ser humano se torna livre quando compreende que
toda a realidade é divina e que ele mesmo é um modo da essência infinita. Como modo finito de um
ser infinito, o ser humano, pelo conhecimento racional, pode entender que sua tendência é
permanecer no ser ou na existência. Em outras palavras, sua tendência é igualar-se ao seu conceito
(ao que ele compreende); essa tendência é uma possibilidade inscrita em todos os humanos e, por
isso mesmo, ela é sempre positiva,
Página 321
Baruch Espinosa
Não há ninguém que tenha vivido entre os seres humanos e que não tenha observado como, em
tempos de prosperidade, quase todos, por maior que seja sua ignorância, mostram-se como se
fossem cheios de sabedoria, a ponto de que quem procura dar-lhes conselhos parece até ofendê-los.
Na adversidade , porém, eles não sabem mais para onde se voltar, pedem e suplicam conselho a
37
todos e estão sempre prontos a seguir qualquer opinião que lhes seja dada, por mais estúpida,
absurda ou ineficaz que seja. As mínimas coisas bastam para que eles confiem em uma mudança da
sorte ou recaiam nos piores medos. Com efeito, enquanto eles estão no estado de medo, se ocorre
um imprevisto que os faz lembrar-se de um bem ou de um mal acontecidos no passado, eles
pensam que é o anúncio de uma saída feliz ou de uma saída infeliz; por isso, embora se enganem mil
vezes, consideram isso um presságio favorável ou funesto . Se, porém, acontece algo que não é
38 39
comum, eles creem que é um sinal da cólera dos deuses ou da suprema divindade. Será um sinal de
impiedade para esses humanos submetidos à superstição e à religião não corresponder a tal
presságio com sacrifícios e compromissos. Assim, eles inventam inumeráveis ficções e, quando
interpretam a Natureza, veem nela milagres por todos os lados, como se a Natureza delirasse junto
com eles. Nessas condições, os mais ligados a todo tipo de superstição acabam desejando coisas
incertas. Correndo perigo e não sabendo encontrar socorro em si mesmos, imploram o socorro
divino, prometendo coisas e derramando lágrimas; declaram que a razão é cega (de fato, ela é
incapaz de lhes ensinar um caminho seguro para chegar às satisfações vãs que eles procuram) e
tratam a sabedoria humana como vaidade. Ao contrário, os delírios da imaginação, os sonhos e as
ignorâncias pueris parecem respostas divinas para eles. [...] Os humanos são dominados pela
40
superstição enquanto têm medo; o culto inútil ao qual eles se dedicam com respeito religioso só se
dirige a fantasmas, aos desvios da imaginação de uma alma triste e medrosa.
ESPINOSA, Baruch. Traité théologico-politique. Tradução C. Appuhn. Paris: Flammarion, 1965. p. 19-20. (Tratado teológico-político.
Tradução nossa para o português.)
Foi um filósofo alemão reconhecido por seu ateísmo humanista e pela influência que exerceu sobre
Karl Marx. Abandonou os estudos de teologia para ser aluno de Hegel durante dois anos em Berlim,
tornando-se depois crítico da filosofia hegeliana. Seu pensamento é reconhecido como uma
importante mediação entre o idealismo alemão e o materialismo histórico de Marx e Engels. De
acordo com Feuerbach, a religião é uma forma de alienação que projeta os conceitos do ideal
humano de perfeição em um ser supremo. Obras mais conhecidas: A essência do cristianismo (1841)
e Preleções sobre a essência da religião (1846).
é desejo, é força que leva a melhorar a própria existência por meio da razão, e não por meio de
ficções como as religiosas. A ela Espinosa chamava conatus.
A impactante filosofia de Espinosa é um testemunho claro de que, para recusar a existência de Deus
tal como afirmada religiosamente, é preciso atacar a ideia de transcendência, e não apenas criticar
os rostos que as religiões dão a Deus. Quando se ataca a raiz da transcendência e se constrói uma
argumentação para negar toda possibilidade de conhecimento de Deus ocorre outra atitude
filosófica, o ateísmo.
O filósofo inglês Bertrand Russell, por exemplo, dedicou-se a várias maneiras de refutar os
argumentos de quem defende a existência de Deus. Uma delas se concentra na ideia de que o
mundo foi criado ou produzido por um ser divino diferente do próprio mundo.
Bertrand Russell
O argumento da causa primeira é talvez o mais simples e o de mais fácil compreensão. (Mantém que
tudo o que existe no mundo tem uma causa; e que, percorrendo a cadeia de causas, se chegará
fatalmente à causa primeira, a que se dá o nome de Deus.) Esse argumento, suponho, não pesa
demasiado na nossa época, porque, entretanto, a noção de causa não é a mesma de outrora. Os
filósofos e cientistas têm estudado esse conceito e ele não possui atualmente a força que se lhe
atribuía; mas, no entanto, podereis verificar que o argumento da causa primeira é daqueles que não
possuem qualquer validade. Devo dizer-vos que, quando era jovem e debatia esses problemas
muito seriamente comigo próprio, aceitei por largo tempo o argumento da causa primeira, até que
um dia, pelos meus dezoito anos, lendo a Autobiografia de Stuart Mill, descobri esta frase: “Meu pai
ensinou-me que a pergunta ‘Quem me criou?’ não comporta qualquer resposta porque levantaria
imediatamente outra interrogação: ‘Quem criou Deus?’” Essa frase tão simples revelou-me, como
ainda creio, a falácia do argumento da causa primeira. Se tudo tem de ter uma causa, também Deus
tem de a possuir; e, se algo existe sem causa, tanto pode ser o mundo como Deus — razão da
inutilidade desse argumento. Ocorre-me a história do indiano que afirmava estar o mundo assente 41
num elefante e este sobre uma tartaruga; e quando se pergunta: “E a tartaruga?”, o indiano
responde: “E se mudássemos de assunto?” Na verdade o argumento não tem mais valor do que este.
Não há razão para que o mundo não tenha nascido sem causa; nem, além disso, que não tenha
existido sempre. A ideia de que as coisas têm de ter um começo é uma opinião resultante da
pobreza da nossa imaginação. Assim não me parece necessário ocupar mais tempo com o
argumento da causa primeira.
RUSSELL, Bertrand. Por que não sou cristão. Tradução Mário Alves e Gaspar Barbosa. Disponível em: <http:// criticanarede.com/
brussellporquenaosoucristao. html>. Acesso em: 26 jan. 2016.
Acesse:
Foi um filósofo, matemático e lógico inglês, cujo pensamento contribuiu decisivamente para uma
das tradições filosóficas do século XX, a chamada filosofia analítica, centrada no interesse pela
lógica e pela linguagem. Também foi ativista político e pacifista, defensor da justiça social e da
liberdade. Obra mais conhecida: Principia Mathematica (Princípios matemáticos).
Por outro lado, se a ideia de causa primeira é falaciosa, então se torna desnecessário procurar por
ela. Mais do que isso, torna-se possível, segundo Russell, pensar que algo pode existir sem causa.
Ora, se é possível pensar que algo existe sem causa, esse algo pode ser tanto Deus como o mundo,
de onde se provaria a inutilidade do raciocínio que chega a Deus.
Pode-se dizer, de modo resumido, que a reflexão de Bertrand Russell representa um núcleo comum
a diversas formas de pensamento ateu. Trata-se de anular a referência a toda possibilidade de
transcendência e de apontar para o equívoco de pensar em Deus como causa diferente do próprio
mundo. De modo semelhante operaram filósofos como Georg W. F. Hegel (Ícone: Conteúdo tratado
em outra página p. 270), Karl Marx (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 221), Ludwig
Feuerbach (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 321), Jean-Paul Sartre, entre outros.
Feuerbach procedeu a uma análise da crença em Deus como projeção ou imaginação do próprio ser
humano, que transforma o “mistério” do mundo em um ser divino. Mas tal ser divino não seria mais
do que um “ser humano aumentado” ou “infinitizado”.
EXERCÍCIO D
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 497
2. Por que, mesmo falando de Deus, Baruch Espinosa ataca a base da religião?
4. Em que consiste o núcleo do ateísmo tal como praticado por Bertrand Russell?
5 O deísmo e o teísmo
A reflexão ateia é recente na História da Filosofia. Sempre houve, é verdade, desde os inícios da
Filosofia, críticas à religião e ao modo como os seres humanos falam do ser divino. Xenófanes de
Colofon e mesmo Platão (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 82) são alguns exemplos
dessa crítica. Já a reflexão sistemática com o objetivo de negar a existência de Deus tal como visto
pelas religiões nasceu apenas nos séculos XVII e XVIII.
Foi um filósofo e poeta grego nascido na cidade de Colofon, na Jônia (atual costa ocidental da
Turquia). Crítico do antropomorfismo dos poetas e da mitologia de Homero e Hesíodo, considerava
absurda a ideia de que os deuses possuíam forma, nasciam e eram movidos por paixões humanas,
praticando atos de violência, fraude e luxúria. Para Xenófanes, o ser divino era uno, onisciente,
perfeito, imóvel e eterno. De sua obra restaram apenas uma centena de versos, registrados em
publicações de outros autores.
Outra atitude filosófica, porém, consiste em justificar a afirmação da existência de Deus e defender
a possibilidade de uma relação com ele por intermédio dos textos sagrados. A ela se chama teísmo
(do grego théos). Essa postura não nasceu em reação ao ateísmo, pois ela é anterior e data do
encontro entre o pensamento antigo, greco-romano, e a fé judaico-cristã
Página 324
(Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 166-169). Ela se desenvolveu fortemente na Idade
Média e continuou na Modernidade, com filósofos como Pascal (Ícone: Conteúdo tratado em outra
página p. 192) e Leibniz (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 321), e continua até os dias de
hoje.
Atanásio Kircher (1601-1680), Diagrama dos 72 nomes de Deus, no livro Oedipus Aegeptiacus, séc. XVII,
desenho que mescla elementos da cultura judaica, cristã e egípcia.
Para os filósofos teístas, os problemas e comportamentos doentios surgidos com as religiões não
são suficientes para negar a existência do mistério divino. Muitos deles, aliás, teceram críticas
impactantes às práticas religiosas.
Por sua vez, para justificar a afirmação segundo a qual Deus existe, tais filósofos concentram-se
precisamente em defender o que eles consideram a insuficiência do mundo para a explicação do
próprio mundo e do horizonte de sentido que se abre à realização humana.
Um dos exemplos mais conhecidos nessa direção é o trabalho de Tomás de Aquino (p. 114), em seu
livro Suma teológica. O núcleo de seu argumento está na experiência humana que leva a afirmar que
tudo tem uma causa. Como não se observa no mundo nada que se tenha causado a si mesmo, mas,
em vez disso, tudo recebe a existência de outro ser, Tomás concluía que a grande rede de causa e
efeito observada no mundo deve ter sido produzida por um ser externo ao mundo, transcendente a
ele. A esse ser transcendente ele denomina Deus.
Tomás emprega a expressão causa eficiente, tomada de Aristóteles (p. 103), para significar aquilo
que dá o impulso que faz alguma coisa existir (o artesão, por exemplo, é a causa eficiente da mesa
produzida por ele). Ícone: Texto filosófico
Tomás de Aquino
[Este caminho para provar que Deus existe] é tomado daquilo que se entende por causa eficiente . 42
Em tudo o que é sensível encontramos uma ordem de causas eficientes: não se encontra, nem se
43 44
pode encontrar, algo que seja causa eficiente de si mesmo, porque, se fosse causa eficiente de si
mesmo, existiria antes de si mesmo [para poder causar-se], o que é impossível. Tampouco é
possível proceder ao infinito nas causas eficientes, porque, em todas as causas eficientes ordenadas,
o que vem primeiro é causa do que é intermediário; e o que é intermediário é causa do que vem por
último, seja no caso de uma ordem de muitas causas, seja no caso de uma única causa. Assim,
removida uma causa, remove-se também seu efeito. Portanto, se não houvesse um primeiro na
ordem das causas eficientes, não haveria nem um intermediário nem um último. Mas, se se procede
ao infinito na ordem das causas eficientes, não haverá uma primeira causa eficiente: por
conseguinte, não haverá nem efeito último nem causas eficientes intermediárias. Mas é claramente
falso pretender isso. Portanto, é necessário pôr [afirmar] alguma causa eficiente primeira: a ela
todos denominam “Deus”.
TOMÁS DE AQUINO. Summa theologiae I, 1, 3. Roma: San Paolo, 1988. p. 13-14. (Suma teológica. Tradução nossa para o português
com base no texto latino.)
Ícone: Glossário 42 Causa eficiente: causa do dinamismo que produz algo; ponto de origem desse dinamismo.
43 Sensível: que pode ser percebido por meio dos cinco sentidos.
A argumentação de Tomás de Aquino pode ser resumida nos seguintes passos: (1) a observação das
coisas sensíveis (o mundo tal como percebido pelos cinco sentidos) faz ver que
Página 325
há uma ordem de causas eficientes, quer dizer, cada coisa é causada por outra coisa que lhe dá o
impulso que a faz existir;
(2) isso se confirma pela observação de que nada no mundo é causa de si mesmo, pois, para ser
causa de si mesmo, algo teria de já existir a fim de poder causar-se (o que parece absurdo);
(3) mas, caso se concorde que todas as coisas são causadas por outras, será preciso afirmar que
existe uma primeira causa de tudo, pois, do contrário, não se poderia falar de uma ordem ou de uma
série de causas no mundo;
(4) no entanto, se não se afirmar uma série de causas no mundo, vai-se contra a percepção sensível,
que constata o fato de que tudo recebe sua existência de outro (todas as coisas são causadas por
outras);
(5) então, para respeitar a observação, é preciso dizer que há uma série de causas e que deve haver
uma primeira causa;
(6) dado que nada no mundo é causa de si mesmo, a primeira causa tem de ser diferente do mundo,
pois, do contrário, não se respeita o que foi dito no passo (2);
(7) a essa primeira causa, por ser diferente do mundo, chama-se Deus.
Numa palavra, para pensar o mundo com coerência e respeitar a percepção sensível, será
necessário, segundo Tomás de Aquino, afirmar que o mundo tem uma causa diferente dele, a qual,
por sua vez, deve ser vista como causa incausada (ela é causa, mas não é causada). Afinal, se ela
também for causada, a busca das causas se reabre e não se pode falar de ordem ou série de causas,
o que vai contra a percepção sensível.
A causa primeira de que fala Tomás de Aquino não significa necessariamente um começo temporal
do mundo; ele pode ter existido sempre. Apenas com base na observação sensível não é possível
afirmar definitivamente nem que o mudo foi começado nem que não o foi, pois ninguém tem
experiência sensível do “começo” ou do “não começo” do mundo. Segundo Tomás, tendo começado
ou não, o mundo só pode ser pensado com coerência caso se aponte para uma dimensão que fez o
mundo ser como é. Em outras palavras, tanto se o mundo existe desde sempre como se ele começou
a existir em um momento preciso, ele existe porque uma causa primeira o fez existir. Será por um
ato de fé que se tornará possível defender que o mundo teve um começo (Ícone: Conteúdo tratado
em outra página p. 82-83), embora a consciência da necessidade da fé para essa conclusão
mantenha, segundo Tomás, a validade de dizer que nada pode existir sem causa.
Dessa perspectiva, se Tomás pudesse responder a Bertrand Russell (Ícone: Conteúdo tratado em
outra página p. 322), talvez ele dissesse que o princípio da causa primeira é racionalmente válido
somente para o mundo. Aplicar algo válido para o mundo ao pensamento sobre algo que supera o
mundo seria injustificado. Em outras palavras, é justamente para garantir a compreensão do
mundo que ele, Tomás, aponta para uma causa externa ao mundo. Não seria coerente falar em uma
conexão de causas e efeitos no mundo sem pressupor uma primeira causa não causada. Chamando
a essa causa externa de Deus, Tomás esclarece que ela é causa de si mesma, não necessitando ser
causada por algo diferente dela.
Além disso, Tomás insiste que a causa primeira só pode ser pensada com coerência caso seja
entendida como transcendente. Afinal, só algo infinito pode ser causa de outra coisa, sem ser ele
mesmo causado. Mas, sendo infinito, esse algo tem de ser pensado como um ser consciente e livre
(do contrário, se lhe faltasse consciência e liberdade, ele seria limitado e, portanto, finito). Ser
consciente e livre, por sua vez, requer que ele possa fazer ou não aquilo que se passa em sua
“mente”. Por conseguinte, como nada no mundo revela ser capaz de fazer tudo o que quer (porque,
no mundo, todos os seres são finitos), então esse algo precisa ser pensado como transcendente ao
mundo; a ele se dá o nome Deus. No limite, só há a existência de Deus; e todo o restante existe “em
Deus”, sem necessariamente identificar-se com ele, uma vez que, como fonte consciente, livre e
infinita, ele garante sua diferença em relação às coisas do mundo.
A posição tomasiana foi construída em debate com alguns filósofos muçulmanos que justamente
concebiam Deus como um ser que produz as coisas por necessidade, isto é, sem liberdade. Para
Tomás, no entanto, era mais racional pensar que Deus pode produzir seres diferentes, pois essa
possibilidade significa que o ser divino é ainda mais perfeito do que se pudesse produzir apenas a si
mesmo. Toda diferença, aliás, só pode ser entendida com a ajuda de alguma semelhança. A
semelhança entre Deus e o mundo estaria no fato de que ambos existem. Contudo, o mundo existe
como o rio que corre de Deus, sua fonte: mesmo nascendo dela, o rio não é a fonte. Assim, segundo
Tomás, não seria irracional pensar que o mundo, mesmo tendo sua causa em Deus, é diferente dele.
Página 326
A maioria dos filósofos religiosos que enfrentaram essa problemática manifestou sempre um
grande respeito por ela. Trata-se de um conjunto de questões de grande significação para a vida; e é
mesmo legítima a revolta que muitas pessoas sentem quando veem o sofrimento de seres
inocentes.
No entanto, alguns desses filósofos também mostraram haver um equívoco no pensamento que,
revoltando-se diante do sofrimento, conclui que Deus não existe. O mundo é imperfeito; e
sofrimentos causados pelas imperfeições da Natureza não são dirigidos a ninguém em específico
nem a todos em conjunto. Eles acompanham o modo de ser do mundo; e cada ser humano, do
nascimento à morte, é marcado por esse modo de ser.
Quanto à maldade humana, ela pode ser vista como resultado da liberdade dada pelo ser divino aos
humanos. Ele os criou para serem bons e buscarem o bem, mas eles nem sempre buscam o bem
onde ele realmente está e o associam com outras coisas que, embora também sejam boas em si
mesmas, não podem oferecer a satisfação própria do melhor. Um autor como Agostinho de Hipona
(p. 170) dizia a Deus: “Fizeste-nos para ti e o nosso coração permanece inquieto enquanto não
descansa em ti”. Mas também dizia que os seres humanos, “em vez de buscar seu criador, apegam-
se às outras criaturas”. Ele pretendia mostrar que, sendo livres, os seres humanos podem dizer
“não” ao Bem (Deus) e querer definir, eles mesmos, o que é bom. Dessa perspectiva, não há no
mundo algo como o “Mal”, realidade contrária ao Bem que é Deus. Mesmo o demônio, tal como
concebido pela fé cristã, seria uma criatura boa em si mesma, porém perdida na busca do bem,
acreditando agir bem ao recusar Deus. Assim, não haveria o mal ontológico (como uma substância),
mas apenas o mal moral (a maldade das ações confusas de quem não busca o bem em Deus, mas nas
criaturas).
LEEMAGE/GETTYIMAGES
REPRODUÇÃO/BIBLIOTECA NACIONAL DA FRANÇA, PARIS
À esquerda: Boécio prisioneiro, a Dama Filosofia e as Musas do Teatro e da Poesia (séc. XV, iluminura em
manuscrito do livro A consolacão da Filosofia). Biblioteca Nacional da França, Paris. Acima: Roda da Fortuna
(séc. XII), iluminura em edição do livro Hortus deliciarum, de Herrad de Landsberg. Na prisão, Boécio é
consolado pela dama Filosofia, que o faz entender a vida como a roda da Fortuna, deusa romana das variações.
Seria uma ilusão e causa de sofrimento esperar que a Fortuna se comporte de maneira estável: assim como ela
dá as estações do ano, ela faz todos os humanos subirem e descerem na roda da vida.
Essa problemática conduz a uma outra de grande interesse filosófico: se Deus existe e se ele
respeita a liberdade humana, sabendo de antemão o que os seres humanos farão de certo e de
errado, então os seres humanos não parecem
Página 327
livres. Afinal, se Deus sabe tudo, ele também não pode enganar-se. Como ele sabe de antemão o que
os humanos farão no futuro, então os humanos são obrigados a fazer aquilo que Deus já previu.
Mesmo dizendo que Deus previu que os seres humanos escolheriam livremente o sentido de suas
ações, eles são levados a cumprir o que está na mente divina. Não haveria, portanto, liberdade; ou,
no máximo, os seres humanos seriam “condenados a ser livres”.
Um dos autores mais conhecidos que trataram desse problema foi o romano Boécio (Ícone:
Conteúdo tratado em outra página p. 354). Em sua obra Consolação da filosofia, Boécio esclarece
que o raciocínio contrário à liberdade com base na presciência divina é um raciocínio mal
construído, porque projeta a visão humana sobre Deus: os humanos estão sujeitos ao tempo e
vivem a passagem do passado ao presente e do presente ao futuro; Deus, porém, por ser quem é,
não se submete ao tempo. Vive como em um eterno presente. Por analogia, o olhar de Deus seria
como o de alguém que está no alto de um prédio e, sem mudar de posição, pode ver as pessoas na
calçada indo de um lado para o outro. Assim, Deus em seu eterno presente, não prevê o que as
pessoas farão no futuro; ele simplesmente vê. Não seria correto falar de presciência divina, mas
simplesmente de ciência, visão ou providência. Por sua vez, vistas da perspectiva do olhar divino, as
ações livres podem ser consideradas pelos humanos como futuros contingentes, não necessários.
Justificar a afirmação da existência de Deus, no entanto, não basta para originar a vivência religiosa.
Segundo Tomás de Aquino, é preciso que a razão se associe a um ato de amor e mova a pessoa a
estabelecer uma relação com Deus. A razão aceita que não pode dominar Deus completamente e
passa a encará-lo como um mistério ou como uma realidade a ser sempre mais conhecida. Nesse
ponto, os textos sagrados auxiliam no conhecimento de Deus, pois abrem um horizonte de
compreensão que, sozinha, a razão não poderia produzir. A fé, assim, aparece como um ato da razão
ligada ao amor; ela não seria contrária à razão nem uma anulação dela.
Foi um filósofo e teólogo alemão. Aluno de Martin Heidegger, Rahner buscou identificar elementos
fenomenológicos e existencialistas em autores medievais, principalmente Tomás de Aquino. Sua
teologia é considerada um marco de renovação no pensamento cristão do século XX. Obras mais
conhecidas: Ouvintes da Palavra e Curso fundamental da fé.
O texto de Karl Rahner é bastante denso. Por isso, recomendamos lê-lo mais de uma vez!
Observe que Rahner escreve “mundo” entre aspas, indicando que o que costumamos chamar de
“mundo” não é algo óbvio e evidente, a que todos percebem da mesma maneira. O “mundo”, mesmo
nas suas características mais básicas, depende do modo como nosso olhar é formado para vê-lo. Por
exemplo, podemos tomar o “mundo” por um conjunto de coisas independentes entre si, cujo
funcionamento se assemelha ao de uma máquina, bem como podemos considerá-lo como um
conjunto de partes correlacionadas, de modo que o funcionamento de todas elas esteja interligado,
assim como ocorre em um organismo ou em um corpo vivo. Ambas as visões são construídas e
determinam nosso modo de olhar para o “mundo”. Ninguém “descobre” o mundo de maneira
direta; todos são precedidos pelas concepções já elaboradas pelos grupos sociais em que nascem.
Disso Rahner tira uma afirmação: há sempre uma “lei prévia” que faz o “mundo” ser o resultado de
dados formulados antes mesmo que haja experiência das coisas. Tais concepções, por sua vez, são
elaboradas sobre uma base que não pode ser explicada com a mesma clareza e certeza com que se
explicam as coisas do
Página 328
Karl Rahner
O ser humano encontra-se já em um “mundo” quando começa a tomar sobre si a responsabilidade
pela sua própria existência. Esse mundo não é um mundo de “fatos”, pela simples razão de que os
“fatos” são sempre “fatos analisados”, quer dizer, construídos com base em visões e ideias. [...]
Toda tentativa de construir uma imagem do mundo, tratando experimentalmente as coisas, baseia-
se já em uma série de dados anteriores à experiência, tomados como universalmente válidos e mais
ou menos verificados na experiência sempre particular, porém impossíveis de serem demonstrados
por ela. Por exemplo, partimos do dado de que a realidade existe, que obedece ao princípio de não
contradição, que apesar de toda a diversidade existente entre as coisas há relações e semelhanças
entre elas, que todo acontecimento natural sempre tem uma explicação etc. A justificação e a
evidência dessas estruturas anteriores à experiência só se manifestam a quem se confia a elas em
um ato de livre confiança. Mas nosso começo intelectual parte também de algo historicamente dado
de antemão e que não pode ser evitado. Os indivíduos começam sempre com uma imagem do
mundo já transmitida e já projetada. [...] O ponto de partida é a lei prévia de nossa odisseia 45
intelectual. Mesmo quando queremos nos revoltar e protestar contra essa lei, olhando-a com
grande desconfiança, não nos libertamos dela. Afinal, pelo protesto, referimo-nos precisamente a
essa lei, ocupamo-nos com ela e não com outra coisa, protestamos contra algo que não poderíamos
questionar se não existisse. [...] Assim, a orientação das perguntas humanas sobre o mundo é
sempre orientada, é guiada por algo que antecede à sua própria experiência. [...]
[Nesse quadro geral,] a imagem do mundo construída pela Ciência não é a instância crítica para a 46
Religião. Entre elas não há duas verdades que necessariamente se contradizem. [...] Quando há um
aparente conflito, tanto a Religião como a Ciência devem, com honrada autocrítica, buscar o motivo
dessa aparente contradição. Mas a Religião não está, por isso, entregue sem mais à Ciência e à sua
imagem do mundo. [...]
O ser humano, ao construir uma imagem do mundo, sabe que nessa imagem do mundo ele é finito;
ele vê também que diante de sua finitude há uma amplidão infinita de perguntas e de
possibilidades. O ser humano não se relaciona, portanto, apenas com aquilo que está dado nem
apenas com o que é investigável no campo já delimitado historicamente, mas relaciona-se também
(aliás, em primeiro e em último lugar) com o que está longe, com o que é horizonte e fundo de seu
mundo. Relaciona-se com aquilo que, justamente sendo inalcançável e incompreensível, revela a
permanente finitude e historicidade de seu mundo e de sua visão de mundo. Assim, o indizível é
fundamento do dizer. Aquilo de que não existe nenhuma imagem é o que torna possível toda
imagem do mundo. Esse fundamento primeiro e objetivo de toda realidade (fundamento que só
está presente exatamente porque não é uma parte de nossa imagem do mundo e porque é o
horizonte conceitualmente inacessível), de nosso movimento “imaginador” do mundo, é o que
chamamos Deus. [...]
Deus não é uma parte do mundo, mas um pressuposto dessa imagem. Não é uma porção do saber,
ao lado de outras porções, mas é a infinidade posta sempre diante do movimento do saber e dentro
da qual o saber percorre seus caminhos sempre finitos. Deus não é uma hipótese que leva a uma
conclusão, formulada com base em um projeto de imagem do mundo; ele é, na verdade, o único
dado requerido por todas as hipóteses com que construímos nossa imagem do 45 mundo.
RAHNER, Karl. ¿Sería la ciencia una confesión? In: Escritos de teología. Tradução J. Molina. Madri: Taurus, 1961. p. 427-430. (Seria a
Ciência uma confissão? Tradução nossa para o português.)
“mundo”. Essa base permite haver conhecimento, embora não se costume prestar atenção nela.
Trata-se de uma série de elementos ou estruturas tais como a crença na existência da realidade, no
funcionamento do princípio de não contradição (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 52), na
existência de semelhanças e relações entre as coisas, na possibilidade de explicar todo
conhecimento natural etc. Para além dessas crenças não é possível avançar com a investigação; e
elas mesmas são objetos de confiança, não de prova ou demonstração. Justamente por isso elas são
a base do conhecimento; e, como tal, essa base pode ser percebida, mas não dominada
conceitualmente. Quando o pensamento funciona, ele já aceitou essa base e entrou no nível da
construção de visões de mundo.
A análise de Rahner lhe permite identificar, na raiz do pensamento racional mesmo, algo
suprarracional, quer dizer, algo que ultrapassa as possibilidades de investigação da razão, embora a
razão possa percebê-lo. Assim, sob a superfície do conhecimento racional há um “abismo sem
fundo”, impossível de ser explorado completamente pelas elaborações construídas historicamente.
Ao ser humano finito abre-se, portanto, um horizonte infinito de questões e possibilidades. Nada
está dado definitivamente nem pode ser considerado como dado definitivamente, uma vez que o
caráter histórico da existência pode fazer tudo mudar. Por conseguinte, se o pensamento exprime o
“mundo” e se na raiz do pensamento há um abismo de incertezas, então o próprio “mundo” é
sustentado por algo incomensurável, inanalisável, incontrolável; numa palavra, impossível de
dominar pelo pensamento.
Nesse sentido, Rahner recupera a ideia de que a realidade é envolvida por um mistério. Quando se é
tomado de amor por tal mistério, pode-se chegar à sua associação com Deus, dando-lhe um rosto
em continuidade com as diferentes religiões. De todo modo, Deus não é “parte” do “mundo”. Tanto a
Ciência como a Religião erram, segundo Rahner, quando o encaram dessa maneira. Ele é o abismo
misterioso que permanece como condição ou base para o ato de pensar e falar sobre o “mundo”. Ele
irmana pela raiz, então, Ciência e Religião.
Para resumir a concepção teísta de Rahner e sua filosofia da religião, é possível recuperar uma
imagem usada por autores antigos: diante do mistério divino, os seres humanos são como animais
noturnos ou que vivem no fundo das cavernas; a luz os incomoda, porque estão acostumados à
sombra e à escuridão; ficam cegos diante da luz; assim também os humanos, não podendo encarar
diretamente a luz divina, só podem vê-la em seus reflexos, entre os quais o mais fiel é a própria
atividade humana de pensar e amar.
Inspirada na imagem do “relógio com asas”, constante na obra de Marc Chagall (1887-1985), essa escultura de
autoria desconhecida (que fica próxima ao Museu Marc Chagall, em Vitebsk, na Bielorrússia) simboliza o
tempo que se liberta de seu ritmo quando se abre à transcendência ou ao indeterminado. Seu aspecto lúdico
lembra as infinitas possibilidades que são dadas ao ser humano finito.
EXERCÍCIO E
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 497
2. Quais as razões de Tomás de Aquino para afirmar que nada, no mundo natural, pode ser
causa de si mesmo?
3. Segundo Tomás de Aquino, defender que o mundo tem uma causa significa necessariamente
que o mundo começou a existir em um momento preciso? Explique.
4. Por que, segundo Tomás de Aquino, nada obriga racionalmente a afirmar que Deus é incapaz
de produzir seres diferentes dele mesmo?
5. Por que Karl Rahner, para falar de Deus, inicia pela análise da atividade humana de
conhecer?
Página 330
Essa convivência inclui, obviamente, o respeito às pessoas religiosas e não religiosas. Todas têm
alguma contribuição a dar para a vida republicana. Especificamente no caso das pessoas religiosas,
elas podem testemunhar, por exemplo, o respeito sagrado pela vida em nosso planeta, a dignidade
humana em todas as situações e o senso da possibilidade da transcendência. No entanto, não
convém que elas tentem impor seu pensamento às outras pessoas. Elas podem tentar convencê-las
por seu exemplo e por argumentos; mas em um respeito total pela liberdade alheia, assim como se
espera que as pessoas não religiosas respeitem a liberdade de quem é religioso.
Um dos maiores desafios para a convivência republicana é justamente manter uma saudável tensão
entre diferentes visões de mundo, evitando a violência. Tensão, porém, não é necessariamente
sinônimo de conflito. Uma sociedade pode nutrir visões diferentes que, sem se anular, permitem
pensar a vida social sob aspectos que não seriam imaginados caso todos tivessem um pensamento
único.
Encontro ecumênico pela paz, no Estádio do Maracanã, 2014, com representantes do budismo, do candomblé,
do cristianismo (igrejas anglicana, católica, evangélica e luterana), do judaísmo, do islamismo e da umbanda.
No contexto atual, a responsabilidade das pessoas religiosas é tão grande ou mesmo maior do que a
das não religiosas. Se elas se entendem como testemunhas do amor divino, também devem tomar
consciência de que esse mesmo amor não é algo em que todos creem; e, se nem todos creem, é
porque o próprio ser divino não se impõe aos seres humanos, mas dá liberdade a eles e os respeita.
Nenhuma pessoa religiosa pode, então, interferir na liberdade alheia. Infelizmente, porém, o mundo
está repleto de exemplos de violência religiosa ou violência praticada em nome de Deus.
TOMAZ SILVA/AGÊNCIA BRASIL
A garota Kayllane Campos, da cidade do Rio de Janeiro, foi atingida na cabeça com uma pedra arremessada por
cristãos depois de sair de um ritual do candomblé, em 2015, quando tinha 11 anos. Na foto, ela participa de um
encontro inter-religioso pela paz. O caso de Kayllane convida a refletir sobre a urgência do respeito a todos os
cidadãos, independentemente de sua crença religiosa.
Não é preciso pensar no Oriente Médio (de que tanto se fala como local de violências religiosas);
basta observar que no Brasil, durante as duas últimas décadas, houve um aumento assustador da
violência religiosa. Em 2013, por exemplo, um grupo de dez cristãos invadiu o apartamento de uma
família espírita em Santo André (SP) e espancou o morador na frente de sua esposa e filhas, porque
ele havia pedido ao síndico do prédio que solicitasse a
Página 331
diminuição do barulho durante o culto feito em um dos apartamentos. Os cristãos não apenas
desrespeitaram o direito republicano ao silêncio na residência do morador, como ainda
pretenderam “justificar” sua violência, dizendo que aquela família pertencia ao demônio. Usaram
sua fé religiosa para julgar, condenar e agredir.
Outro caso ainda mais grave é o dos traficantes cristãos, no Rio de Janeiro, que ordenaram o
fechamento de locais de prática do candomblé, dizendo tratar-se de um local de culto ao demônio.
Ironicamente, esses cristãos não assumem o mal que fazem por meio do tráfico, mas pretendem
fazer “justiça” em nome de Deus, interferindo na liberdade religiosa. Algo parecido ocorreu em
2015, em uma escola do Amazonas, na qual os estudantes se recusaram a fazer uma pesquisa sobre
as religiões afro-brasileiras, “justificando” que tais religiões incentivam o culto ao demônio e à
homossexualidade. Esses estudantes foram apoiados por seus pais e por líderes religiosos, em um
ato claro de interferência na prática republicana. Se a escola tem o dever de oferecer formação
cultural aos estudantes, ela deve tratar de todos os assuntos ligados à realidade social.
Independentemente das análises sociológicas, econômicas ou políticas que possam ser feitas, esses
exemplos levantam um tema de caráter filosófico: a violência em nome de Deus nasce da ignorância
ou da manipulação do seu caráter misterioso. Por ser ele deus absconditus (um Deus discreto ou
escondido), como dizia Pascal retomando uma expressão do livro bíblico dos Salmos, muitos falam
em seu nome para “justificar” suas próprias visões de mundo; põem o ser divino a serviço de si
mesmos.
Felizmente, há também no mundo inteiro iniciativas positivas para fortalecer o respeito entre as
pessoas e para construir a paz. Algumas delas são os encontros dos representantes das religiões a
fim de estabelecer um diálogo e um conhecimento mútuo que permitam respeitar as diferenças, ir
além dos debates doutrinários e unir-se na busca de um mundo melhor.
EXERCÍCIOS COMPLEMENTARES
Elabore uma dissertação de síntese filosófica (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 138)
para apresentar os itens 1, 2 e 3 deste capítulo (A experiência religiosa, A experiência religiosa é uma
experiência de quê? e O sagrado ou o Numinoso).
2 Debate público
Sob orientação de seu(sua) professor(a) de Filosofia, reserve duas aulas (ou mais tempo se vocês
conseguirem envolver outros professores) e organize um debate em sua escola entre líderes de
diferentes religiões. Seria conveniente convidar entre 3 e 5 representantes, para haver opiniões
realmente diferentes, mas também de modo que todos tenham tempo de falar com calma. Se a sua
escola tiver um local apropriado (um pátio ou uma sala grande), o debate pode se tornar uma
ocasião de reunir toda a comunidade escolar, incluindo os funcionários, os pais e outros membros
do bairro. Para o debate, vocês podem fazer as seguintes perguntas a cada um dos representantes
religiosos, reservando 5 minutos para cada resposta:
C – Se o Brasil é um país laico, quer dizer, sem uma religião oficial, você acredita que o governo
brasileiro deve considerar as ideias religiosas? Por quê?
Nos minutos restantes, o público pode fazer outras perguntas. Não se esqueçam de escolher alguém
para controlar o tempo e passar a palavra aos participantes do debate. Vocês podem também se
organizar de modo a pedir para as pessoas trazerem sucos, salgados e doces, terminando o debate
com uma confraternização.
Ícone: Dica de filmes Dicas de filmes para você assistir tendo em mente o que trabalhamos
neste capítulo
Filme surpreendente pela riqueza de imagens e sons de diversas culturas, percorre uma série de cenários,
desde ritos religiosos até maravilhas da Natureza, passando por linhas de produção industrial e abatedouros.
Sem falas, o filme conduz a uma outra maneira de sentir as imagens e de conhecer um pouco do sentimento de
dependência em relação ao “todo”.
E agora aonde vamos? (Et maintenant, on va où?), direção Nadine Labaki, Líbano, 2011.
Em uma pequena comunidade do Líbano vivem muçulmanos e cristãos. Apesar das diferenças religiosas, todos
vivem em paz até um dia em que os homens começam a brigar entre si. A solução só aparece quando as
mulheres, com muito bom humor e inteligência, entram em ação.
O filme retrata a crise de fé de Tomas Ericsson, pastor luterano que luta para continuar crendo em Deus
quando se encontra profundamente abalado diante das dificuldades da vida. Tudo se agrava quando o
pescador Jonas Persson procura consolo na igreja do pastor Tomas ao sentir-se perturbado quando soube que
a China pretendia usar a bomba atômica. Por ser um filme antigo e difícil de encontrar, aqui segue um link com
o qual você pode assistir: <https://www. youtube.com/watch?v =oZUoT3CY6Lc>. Acesso em: 3 dez. 2015.
Acesse:
Monty Python – O sentido da vida (The Meaning of Life), direção Terry Jones, Inglaterra, 1973.
Filme bem-humorado que explora comportamentos de grupos religiosos da Inglaterra. Por meio do deboche, o
diretor leva a perguntar pelo que de fato é essencial na prática religiosa e pelo que é apenas costume social.
Deus não está morto! (God’s Not Dead!), direção Harold Cronk, EUA, 2014.
História de um jovem que, baseado em sua experiência pessoal, entra em conflito com seu professor de
Filosofia ao ter de fazer um trabalho escolar contra a existência de Deus.
Deus em questão (The Question of God), direção Catherine Tatge, EUA, 2014.
Documentário sobre o curso livre que o Prof. Armand Nicholi ofereceu durante 30 anos na Universidade de
Harvard, no qual ele comparava argumentos a favor e contra a existência e a experiência de Deus. Sua base
principal é o confronto entre o pensamento de Freud e de Clive Staples Lewis. Disponível na plataforma
YouTube.
As fitas do ateísmo (The Atheism Tapes), direção Jonathan Miller, BBC, EUA/Inglaterra, 2004.
Entrevistas com cientistas e filósofos que explicam as razões de sua negação da existência de Deus. Os vídeos
podem ser encontrados na plataforma YouTube.
O livro se passa na Idade Média e retrata a profunda amizade entre Narciso e Goldmund, explorando as
relações entre beleza e transcendência.
Perdoando Deus, conto de Clarice Lispector publicado na obra Felicidade clandestina, Rocco, várias edições.
Texto de grande força em que Clarice Lispector afirma: “Enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero,
serei um dado marcado, e o jogo de minha vida maior não se fará. Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe”.
Do desejo, de Hilda Hilst, Globo, 2004. Obra poética em que a grande escritora brasileira explora o tema do
desejo como experiência carnal marcada pela busca de eternidade.
Página 333
Apresentação didática da questão da existência de Deus no debate entre Filosofia e Ciência e sob a perspectiva
dos temas da liberdade e da maldade presente no mundo.
Uma história de Deus, de Karen Armstrong, tradução Marco Santarrita, Companhia das Letras, 2008.
A autora analisa o modo como os três grandes monoteísmos (judaísmo, cristianismo e islamismo) conceberam
e representaram a divindade. Aborda também o desejo humano de transcendência.
Em nome de Deus, de Karen Armstrong, tradução Hildegard Feist, Companhia das Letras, 2009.
Estudo dos fundamentalismos desenvolvidos nos três grandes monoteísmos – judaísmo, cristianismo e
islamismo. A autora aponta para a causa política dos fundamentalismos, e não para um problema congênito
das religiões.
Textos tirados das anotações da pensadora, visando exprimir sua experiência do mundo e de Deus.
O fato extraordinário, de Manuel García Morente, tradução Osvaldo Aguiar, Quadrante, 1989.
Manuel García Morente foi um dos professores de Filosofia mais conhecidos da Espanha no século XX. Neste
pequeno livro, ele narra o processo de sua conversão religiosa, destacando elementos experienciais e teóricos.
Estudo da vida e obra de Jean Meslier, que viveu na passagem do século XVII ao XVIII e, embora fosse padre
católico, era ateu em sua consciência.
Ateísmo – Um guia para crentes e não crentes, de Kerry Walters, tradução Barbara T. Lambert, Paulinas,
2015. Estudo de argumentos ateus, guiado pela convicção de que tanto ateus como não ateus têm muito a
aprender juntos.
Acesse:
Site gratuito em língua portuguesa com preciosos textos filosóficos de diferentes orientações. Entre eles,
encontram-se textos a favor e contra a existência de Deus, o criacionismo etc. Merecem destaque os textos de
Alvin Plantinga e Richard Dawkins (para ter acesso, basta clicar na foto dos autores, na primeira página).
CAPÍTULO 14 O CONHECIMENTO
MAZIARZ /SHUTTERSTOCK.COM
Frank Gehry (1929-), A casa dançante, 1996, sede da Nationale Nederlanden, Praga, República Checa. Diante das
formas arquitetônicas de Frank Gehry, o nosso modo de olhar para as construções é posto em questão: estamos
acostumados a encontrar linhas rígidas e seguras, mas o arquiteto nos põe diante de formas que contêm movimento,
sem deixar de ser seguras. Assim, também, na reflexão sobre o conhecimento, a Filosofia nos desafia a perguntar se o
que chamamos de realidade depende ou não de nosso modo de olhar para ela.
C onhecer é a principal atividade pela qual os seres humanos constroem sentidos para a
existência.
Conhecemos o tempo todo, desde que acordamos até o momento de dormir. Mesmo nos sonhos
podem ocorrer “conhecimentos”. Neles, podemos entender coisas que nos parecem estranhas
quando estamos acordados ou ter inspirações que iluminam aspectos de nossas vidas. Muitos
poetas, romancistas, cientistas, filósofos, pintores, entre outros, garantem que, durante o sonho,
eles vivem momentos que os ajudam a compreender e melhorar seu trabalho. Não é à toa que
costumam ter um caderno perto da cama, para anotar suas inspirações.
Seja na vigília , seja no sonho, se alguma experiência tem sentido para nós e se conseguimos
1
A atividade de conhecer acontece de diferentes modos e não é idêntica para todas as pessoas.
Conhecemos o cheiro do café que tomamos de manhã, assim como conhecemos um texto de
literatura ou uma equação matemática estudada na escola, como ainda conhecemos a emoção
sentida ao viver uma situação alegre, triste etc. Conhecemos também a cor da camiseta que
vestimos, assim como o cientista explica o que são as cores do arco-íris.
A Filosofia, por ser um pensamento sobre o pensamento, interessa-se de modo especial pelo tema
do conhecimento. No entanto, justamente como tal, a Filosofia, mais do que “explicar” o mundo,
como fazem os cientistas, artistas, literatos e outros cultivadores do saber, interroga pelo que
significa conhecer. Trata-se de fazer um retrato da realidade? De interpretá-la? De mudá-la?
Pelo menos três tipos de resposta foram dados pelos pensadores ao longo da História da Filosofia.
Fazendo uma comparação desses três tipos com a arte da fotografia, poderíamos dizer que uma
resposta entende o conhecimento como uma fotografia “simples” da realidade, ou seja, um registro
direto da realidade tal como ela é. Uma segunda resposta seria como uma fotografia que interpõe
um espelho entre a pessoa que contempla a realidade e a própria realidade, fazendo a pessoa
prestar atenção na sua própria maneira de ver a paisagem. Por fim, uma terceira resposta seria uma
fotografia diferente, pois nem é direta nem interpõe nada entre a pessoa que contempla a realidade
e a realidade mesma; em vez disso, ela chama a atenção para o fato de que quem olha para a
realidade pode interferir em seu próprio modo de ver, mas sem deixar de captar a realidade
mesma.
As três respostas podem ser resumidas como segue: (1) retratamos a realidade conhecida; (2)
retratamos a realidade conhecida, mas apenas parcialmente, pois o retrato que fazemos depende de
certas condições que não nos autorizam a concluir que o retrato é direto (há algo, portanto, entre
nós e a realidade: a representação que fazemos dela); (3) captamos a realidade conhecida, mas
participando do modo de captá-la (sem, por isso, pôr algo intermediário entre ela e nós).
Por sua vez, essas três maneiras básicas de compreender o conhecimento operam com duas noções
ainda mais básicas: a de representação e a de consciência da realidade. É nelas que concentraremos
nosso estudo do que significa conhecer.
TTSTUDIO/SHUTTERSTOCK.COM
© CENTRE POMPIDOU, MNAM-CCI, DIST. RMN-GRAND PALAIS / GEORGES MEGUERDITCHIAN © RAMETTE, PHILIPPE/AUTVIS, BRASIL, 2016
No alto: foto de retrato simples da realidade. TTStudio. Acima: Dan Grahan (1942-), Bissected Triangle
(Triângulo Bissectado), 2002, instalação. Inhotim, Brumadinho (Brasil). Á esquerda: Philippe Ramette (1961-),
Balcon II (Hong-Kong), 2001, fotomontagem.
1 A representação da realidade
As duas primeiras maneiras de entender o conhecimento consistem em explicar a atividade de
conhecer como se ela fosse uma “pintura” ou – melhor ainda – uma “fotografia” da realidade
conhecida. Assim, tudo o que conhecemos (o que está diante de nós, como o mundo físico, ou em
nós, como as emoções e os pensamentos) seria representado em nossa consciência como um
retrato daquilo mesmo que conhecemos.
Dificilmente algum filósofo acreditará que conhecer é captar diretamente a realidade conhecida,
como se fosse possível, digamos, “enfiar” em nossa consciência a árvore ou o fogo, a madeira, a
pedra, o animal ou a pessoa que vemos. Assim, tornou-se consensual , para muitos pensadores,
2
afirmar que conhecemos a realidade e nos relacionamos com ela por meio do “retrato” que dela
fazemos. A esse “retrato”, chama-se, em geral, de conceito ou ideia. No pensamento antigo, Platão
(Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 82) e Aristóteles (Ícone: Conteúdo tratado em outra
página p. 103), entre outros, afirmaram que Ideias, Formas ou Essências (Ícone: Conteúdo tratado
em outra página p. 150) eram mais do que simples retratos; eram as “letras” invisíveis com as quais
o mundo está “escrito”. Conhecer as Ideias seria conhecer as regras do mundo mesmo. Platão
chegava a declarar que o ser humano é habitado pelas mesmas Ideias com que o mundo é escrito,
pois elas seriam aquilo que permite a atividade de conhecer.
Durante a Modernidade, porém, grande parte dos filósofos passou a falar de conceito ou de ideia
como algo “construído”, um “retrato” tirado para representar as leis que organizam o mundo. A
ciência moderna, principalmente com seu caráter fortemente
Página 336
mecanicista ( Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 235), contribuiu para o surgimento dessa
maneira de entender a ideia, razão pela qual, aqui, escrevemos ideia com “i” minúsculo, a fim de
distinguir da Ideia em sentido platônico.
Em nossos dias, somos herdeiros diretos da compreensão moderna de conhecimento. Por isso, vale
a pena dedicar especial atenção a ela.
Entre os filósofos modernos, houve os que consideraram a ideia ou o “retrato” que tiramos do
mundo como uma representação fiel. Essa maneira de pensar, embora com variações, foi comum a
autores dos estilos conhecidos como racionalismo e empirismo. De modo geral, esses filósofos
identificavam no ser humano as capacidades da sensação e do intelecto, responsáveis pela
atividade do conhecimento. A sensação seria a capacidade de sentir ou de captar dados por meio
dos cinco sentidos; o intelecto, por sua vez, seria a capacidade de elaborar os dados físicos
captados, transformando-os em ideias ou conceitos.
Do lado do racionalismo, dá-se ênfase ao papel do intelecto (ou da razão, donde o nome
racionalismo). René Descartes (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 191), por exemplo,
identificava na alma humana algumas ideias inatas (nascidas com cada pessoa) que permitiriam a
compreensão dos dados captados pelos cinco sentidos. Seria o caso das ideias matemáticas, graças
às quais se identificam relações numéricas entre as coisas, assim como se procede na Geometria.
Outras ideias seriam adquiridas, construídas no encontro entre as ideias inatas e a realidade do
mundo. É desse segundo sentido que vem a maneira mais frequente de entender o termo ideia em
nossos dias.
TTSTUDIO/SHUTTERSTOCK.COM
Do lado do empirismo, considerava-se mais adequado concentrar-se apenas no que pudesse ser
observado por meio dos cinco sentidos, pois eles seriam uma fonte de informações de que
dificilmente alguém poderia discordar. Dessa perspectiva, pensar em ideias inatas parecia algo
problemático demais, justamente porque elas escapavam a toda observação física. O próprio
intelecto, entendido como algo separado dos cinco sentidos, aparece como algo impossível de ser
analisado. Por essas razões, os empiristas, na tentativa de compreender o conhecimento, darão
ênfase à sensação, uma vez que os dados captados por ela podem ser avaliados por todos,
constituindo, assim, uma base mais segura para a reflexão. O termo empirismo deriva da palavra
grega empeiría, que significa o esforço por captar aquilo que é conhecido envolvendo-o por todos os
lados, ou seja, explorando todos os seus aspectos. Dessa palavra vem também o termo experiência,
que os empiristas entenderão no sentido do conhecimento baseado nos dados sensíveis. Como dizia
Francis Bacon, o empírico ou o empirista parece uma formiga, pois se contenta em juntar suas
provisões e em consumi-las, ao passo que os não empiristas (por ele chamados de dogmáticos, quer
3
dizer, pessoas que afirmam com autoridade própria e não com a autoridade da experiência) seriam
como a aranha: para eles, o conhecimento é como a teia cuja matéria é tirada da própria aranha.
Ícone: Glossário 3 Provisão: material; mantimento; o que é necessário para sobreviver.
Foi um filósofo e político inglês, reconhecido como um dos principais fundadores da ciência
moderna. Com a obra Grande instauração (Instauratio magna, publicada em 1620), pretendia
fundar um novo modelo de conhecimento, baseado na observação empírica, e um novo método que
permitisse o poder e o controle sobre a Natureza.
Um dos representantes mais conhecidos do empirismo foi David Hume (Ícone: Conteúdo tratado
em outra página p. 273), que, embora não desprezasse o papel do intelecto, considerava
Página 337
necessário diferenciar com mais clareza entre aquilo que de fato pode ser encontrado na Natureza e
aquilo que os seres humanos, por seus costumes, nela projetam a fim de discorrer a seu respeito de
maneira eficaz. Por exemplo, vemos bolas que batem umas nas outras e parece-nos natural afirmar
que uma bola causa o movimento da outra; no entanto, não observamos nada que pode receber o
nome de “causa” ou “causalidade”. O movimento das bolas é um fato natural, mas algo como uma
“causa” não é um fato natural, e sim humano. Ideias desse tipo (não naturais) seriam resultado de
nossos hábitos (costumes), que nos permitem de certo modo dominar mentalmente os
acontecimentos.
A reflexão de Hume corresponde a outra metáfora usada por Francis Bacon: o conhecimento é
como a atividade da abelha, que extrai sua matéria das flores (base sensível) e, graças ao saber que
desenvolveu com o passar do tempo (imagem do intelecto), reelabora essa base. Em outras
palavras, Hume considera que o intelecto interfere na produção do conhecimento, mas sempre com
base nos dados vindos da Natureza. A experiência sensível seria, assim, a única fonte de
conhecimento seguro. As ideias começariam por impressões ou inscrições repetidas das
informações sensíveis na mente.
Em resumo, se para os racionalistas o ser humano é dotado de um conjunto de dados que permitem
a reelaboração das informações sensíveis, para os empiristas o ser humano é como uma folha em
branco ou uma tabula rasa (uma tábua lisa, uma lousa limpa). Nessa tábua lisa, a experiência
sensível grava informações, que são reelaboradas pelos seres humanos por meio do hábito,
permitindo mesmo inventar outras ideias com base nas ideias vindas da sensibilidade.
Esquema para exprimir o modo racionalista e empirista de entender o conhecimento do mundo exterior à
mente como uma operação do sujeito que “colhe” os objetos e forma as ideias ou hábitos.
Outros filósofos, por outro lado, terão reservas com a concepção do conhecimento como simples
“retrato” do mundo. Sem ser propriamente contrários a ela, não consideram que nosso
conhecimento seja uma cópia fiel da realidade. Por ser justamente um “retrato” da realidade, o
conhecimento depende das condições ou da “aparelhagem” dos sujeitos ou indivíduos
cognoscentes . Nada justificaria, então, crer que a realidade seja só aquilo que seu “retrato”
4
apresenta.
O filósofo mais conhecido quanto a esse modo de entender o conhecimento é certamente Immanuel
Kant (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 207). Ele concordava com David Hume quando
insistia na afirmação dos dados sensíveis como fonte do conhecimento seguro. Aliás, Kant declarava
ter sido despertado por Hume de seu sono dogmático. No entanto, Kant também concordava com
Descartes, pois considerava muito difícil explicar a elaboração dos dados sensíveis caso não
Página 338
houvesse, em todo ser humano, um “aparelhamento” cognitivo ou uma estrutura que permitisse
reelaborar os dados captados por meio dos cinco sentidos. Ainda que a mente ou a capacidade
cognitiva do ser humano seja uma tabula rasa ou uma folha em branco, ela é uma tabula dotada de
certas possibilidades, capacidades. Não são as informações captadas pelos cinco sentidos que
produzem essa tabula; elas são captadas graças ao fato de já existir uma tabula na qual elas podem
ser registradas.
Kant percebia, assim, que, ao descrever o conhecimento humano, não era justificável a passagem
direta das impressões sensíveis às representações mentais das coisas percebidas e causadoras das
impressões. Sozinhos, os cinco sentidos permaneceriam “mudos”, pois são incapazes de
correlacionar as informações captadas por eles mesmos. Ademais, cada sentido sequer percebe sua
própria operação: a visão não percebe o próprio ato de ver, apenas as coisas vistas; a audição não
percebe o ato de ouvir, apenas os sons; e assim por diante. Segundo Kant, é preciso, então, haver
uma estrutura interna nos indivíduos, capaz de sintetizar os dados captados por meio dos cinco
sentidos. De certa maneira, a compreensão kantiana do conhecimento combina o empirismo de
Hume com o racionalismo de Descartes.
Também é possível dizer que a análise de Kant une subjetivismo e objetivismo, no sentido de que o
conhecimento objetivo (seguro, verdadeiro) depende de uma estrutura subjetiva: todos os
indivíduos captam os dados sensíveis segundo o modo como sua sensibilidade é naturalmente
formada. Esses dados são, por sua vez, reelaborados de acordo com o modo de operar da
capacidade do entendimento ou intelecto, que também é naturalmente preparada para sintetizar os
dados sensíveis. A sensibilidade funciona sempre segundo as formas do tempo e do espaço; e o
entendimento sintetiza os dados captados no tempo e no espaço graças a uma série de critérios ou
de categorias que iluminam a compreensão desses dados (por exemplo, vendo relações de
causalidade entre eles).
Embora Hume tivesse razão ao falar da base sensível como fonte do conhecimento objetivo, ele
exagerava, segundo Kant, ao dizer que o estabelecimento de relações de causalidade entre as coisas
é apenas um hábito. Tais relações constituem um dos modos como nosso entendimento reelabora
os dados captados por meio dos sentidos. A causalidade não seria uma “coisa” entre outras na
Natureza; e nisso Kant concordaria com Hume. Todavia, ela também não é somente um costume,
como se fosse possível ser trocada por outro costume; ela é uma das maneiras naturais de
estabelecer relações entre os dados captados no tempo e no espaço.
A estrutura subjetiva composta pelas formas da sensibilidade (tempo e espaço) e pelas categorias
do entendimento (as relações de causalidade, entre outras) está presente em todos os seres
humanos, pois a comunicação entre eles o comprova. A ela Kant denomina subjetividade
transcendental ou sujeito transcendental. Fala-se em sujeito porque, no seu entender, há sempre
algo como um “eu” ou um suporte subjetivo, individual, para o conhecimento; e em transcendental
porque se trata de uma estrutura comum a todos os indivíduos, algo que os atravessa e é igual para
todos. Assim, mesmo que o conhecimento seja sempre um ato pessoal, ele segue uma estrutura
comum a todas as pessoas e anterior a toda experiência, sendo a condição mesma para haver
experiência.
WASHINGTON ALVES /LIGHT PRESS
Dan Graham (1942-), Bissected Triangle (Triângulo bissectado), 2002, montagem para o museu aberto de
Inhotim, Brumadinho (Brasil).
(como Deus, o bem, a beleza e assim por diante); no entanto, tal pensamento não poderá ser
considerado objetivo. Por essa razão, Kant distingue entre a razão, capacidade humana de pensar
em geral, e o entendimento ou intelecto, capacidade racional de conhecer de modo objetivo e
científico.
Embora os termos transcendental e transcendente sejam muito parecidos e tenham a mesma raiz,
eles não possuem o mesmo significado!
Transcendente é o nome que se dá a tudo que ultrapassa o que é analisado, por ser maior do que ele
sem estar necessariamente separado dele (trans-). Em nossos modos cotidianos de falar, ouvimos
afirmações como: Deus é transcendente, ou então Não há nada transcendente ao mundo.
O termo transcendental, por sua vez, contém também o sentido de “ir além” ou “ultrapassar”, mas
sem ser algo maior do que aquilo que é analisado. Por exemplo, no modo kantiano de falar, a
estrutura subjetiva é transcendental porque, mesmo estando nos indivíduos, ela independe de cada
um deles singularmente; ela é comum a todos eles, sem, no entanto, ser alguma coisa em si mesma e
maior do que eles. Na Idade Média, muitos filósofos concebiam que ser ou existir era sinônimo de
ser verdadeiro (algo que existe verdadeiramente), ser uno (cada ser é uma unidade), ser belo e ser
bom (cada coisa tem um papel na ordem do conjunto e é desejável por si mesma). Dizia-se, então,
que a veracidade, a unidade, a beleza e a bondade são transcendentais do ser. Isso significava que,
quando se pensa no ser, pensa-se automaticamente também na veracidade, na unidade etc. Assim,
em vez de ser maior, algo transcendental atravessa (trans-) aquilo de que se fala, sem se confundir
com ele, mas estando nele. É do vocabulário medieval que Kant parece ter tomado a noção de
transcendental.
Da perspectiva da amplitude da razão, comparada ao intelecto, Kant conclui que a realidade pode
ser entendida como algo que vai além do que aquilo que é representado pelo intelecto sintetizador
dos dados captados pela sensibilidade. O conhecimento objetivo seria como uma fotografia que
interpõe entre nós e a realidade um espelho com a imagem que construímos para retratar a
realidade. Sobre essa imagem espelhada (consciente dos dados captados e da construção resultante
da estrutura transcendental), pode-se falar de modo objetivo. Mas a realidade pode ser mais ampla
do que a imagem construída.
Para indicar o caráter mais amplo da realidade e delimitar o campo do que pode ser considerado
objetivo, Kant criou uma distinção entre aquilo que a realidade mostra de si mesma (e que pode ser
conhecido objetivamente por todos) e o que a realidade guarda como seu fundamento (e que está
além do que o “aparelho” cognitivo humano pode captar objetivamente). Ao que a realidade mostra
de si mesma Kant chamava de fenômeno, servindo-se da palavra grega phainomenon, “aquilo que
aparece”. Trata-se do modo como as coisas conhecidas se mostram para o ser humano (sempre no
tempo e no espaço e captadas segundo as categorias do entendimento ou intelecto). Ao fundamento
das coisas, impossível de ser conhecido objetivamente porque não é captado pelo aparelho
cognitivo, Kant chamava númeno, também se servindo de uma palavra grega, noumenon, “a coisa em
si” ou a coisa com que os humanos deparam, porém tomada em si mesma, quer dizer, naquilo que
ela é, e não segundo aquilo que os humanos conhecem sobre ela.
Aqui se faz necessária uma atenção redobrada com a palavra fenômeno, pois, em nosso modo
cotidiano de falar, ela significa, em certos contextos, um acontecimento fora do comum, a aparição
de um ser de “outro mundo” etc. Esse uso, embora contenha a ideia de um “aparecer”, não
corresponde ao sentido filosófico propriamente dito. Depois do trabalho de Kant, fenômeno é
aquilo que o ser humano pode conhecer nas coisas, porque é o modo mesmo de elas se mostrarem.
Quanto ao númeno, Kant esclarece em sua obra Crítica da razão pura que não se trata de um
conceito com um significado direto. Isso quer dizer que, ao falar de númeno, não apontamos para
alguma “coisa”. Trata-se de um conceito limitativo, ou seja, útil para limitar o campo do
conhecimento objetivo, aquele que se refere ao que pode ser apontado.
Página 340
EXERCÍCIO A
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 502
Em uma redação de síntese filosófica (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 138),
apresente a filosofia transcendental de Kant com base em sua tentativa de combinar elementos
do pensamento de Descartes e de Hume.
Segundo a análise estoica, o conhecimento propriamente dito parte da imagem que as coisas
imprimem na alma humana, ao modo de um carimbo ou da marca que um objeto deixa em uma
superfície mole, como um pedaço de cera. Essa metáfora foi usada por Zenão de Cítio e simbolizava
o início do conhecimento ou a impressão deixada pelas coisas na alma. A alma, por sua vez, para
chegar a ter certeza sobre as coisas, sistematiza as impressões, aceitando aquilo que é verdadeiro,
caso ela tenha se preparado para isso. Caso contrário, a alma pode errar. Acertar ou errar é emitir
um juízo ou um julgamento sobre as coisas, uma afirmação ou negação que pode ser verdadeira
caso a alma preparada para a verdade consiga exprimir a verdade das próprias coisas. Essa
expressão é o próprio juízo.
Ceticismo
É o nome do estilo que surgiu na Grécia Antiga e se fundamentava na tese de que, se a verdade
existe, ela não foi nem pode ser encontrada. O filósofo cético é um “exercitador” do pensamento que
não se compromete com nenhuma afirmação dogmática (defensora da existência da verdade). Pirro
de Élis (360-270 a.C.) e Sexto Empírico (séc. II d.C.) são os principais representantes do ceticismo
antigo. Como estilo filosófico, o ceticismo perdura até os dias de hoje e tem no brasileiro Oswaldo
Porchat Pereira (1933-) um de seus principais cultivadores.
Estoicismo
É o nome do estilo filosófico helenístico iniciado em Atenas por Zenão de Cítio (333-263 a.C.). Seu
nome vem do fato de ter sido fundado no lugar onde havia um pórtico (stoa, em grego). Os estoicos
concebem a Filosofia em três partes fundamentais: a Física, centrada na ideia de que o Universo é
um todo único e divino; a Lógica ou investigação sobre o conhecimento; e a Ética, referente à busca
da felicidade por meio das virtudes e da ataraxía ou tranquilidade da alma, obtida pelo controle das
paixões e pela aceitação do destino (o comportamento da Natureza). Entre os estoicos mais
conhecidos estão Crisipo de Solis (c. 279-206 a.C.), Sêneca (4 a.C.-65 d.C), Epicteto (55-135) e o
imperador romano Marco Aurélio (121-180).
A sensação, segundo os estoicos, é uma atividade da alma (afirmação muito parecida com a de Kant,
quando ele declarava ser necessário haver uma estrutura interna ao ser humano e capaz de
sintetizar os dados que se apresentam aos sentidos). Para que a sensação se transforme em uma
percepção verdadeira, ela tem de operar com imagens (impressões) fiéis das coisas.
Tão forte quanto a insistência estoica na representação foi a reação crítica por parte de outros
filósofos, os céticos ou os pensadores ligados ao estilo filosófico conhecido como ceticismo. O
iniciador desse estilo foi Pirro de Élis, que viveu no século IV a.C. e cujas ideias centrais podem ser
conhecidas por meio da obra Hipotiposes pirrônicas (Esboços pirrônicos ou Esquemas pirrônicos),
escrita pelo médico e filósofo Sexto Empírico (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 341).
Página 341
De acordo com Sexto Empírico, a ideia principal do pensamento pirrônico nascia de uma
observação da variedade de respostas dadas pelos filósofos em suas tentativas de explicar o mundo
(conhecê-lo e construir sobre ele um discurso ou uma expressão correta). Os céticos se davam
conta de que os filósofos apresentavam razões muito diferentes para justificar suas afirmações
sobre a realidade; algumas dessas afirmações, mesmo razoavelmente justificadas, eram tão
aceitáveis quanto outras que exprimiam, muitas vezes, dados contrários. Outras dessas afirmações,
ainda, simplesmente podiam ser descartadas, por não serem bem justificadas ou por poderem ser
feitas ao mesmo tempo que afirmações contrárias a elas.
Sexto Empírico
Foi um médico e filósofo grego que viveu entre os séculos II e III d.C. Seus textos são um dos
maiores exemplos do ceticismo pirrônico, contrapondo-se à pretensão de conhecimento da verdade
objetiva tanto na ética quanto na ciência. Pela contraposição dos argumentos e pela contenção do
juízo (epoché), buscava a indiferença ou a imperturbabilidade da alma (ataraxía). Obras mais
conhecidas: Hipotiposes pirrônicas (ou Esquemas pirrônicos), Contra os gramáticos e Contra os
retóricos.
Com base nas concepções filosóficas conflitantes e muitas vezes injustificadas ou igualmente
justificáveis (apesar de chegarem a conclusões diferentes), os céticos passaram a explicar que, se a
verdade existe, ela ainda não foi encontrada e talvez nem seja possível chegar a ela. Em vez de se
perturbar com a preocupação em encontrá-la, seria mais adequado evitar toda afirmação sobre a
verdade das coisas, chegando apenas a um tipo de conhecimento que permita ao ser humano viver
sua vida do melhor modo possível. A maneira adequada para evitar essa perturbação estaria em
conter o impulso de fazer um juízo sobre a verdade das coisas. A essa contenção do juízo os céticos
5
Foi um filósofo grego nascido em Cirene. Membro da Academia fundada por Platão, Carnéades, que
nada escreveu, foi um dos filósofos que desenvolveram o ceticismo acadêmico, concentrando-se na
concepção do conhecimento como algo apenas provável.
passagem da aparição das coisas (o que é observável nelas ou os fenômenos) às afirmações sobre o
modo de ser delas. Essa passagem não seria justificada. Ícone: Texto filosófico
Sexto Empírico
Aqueles que afirmam que o cético rejeita o aparente não prestaram atenção ao que dissemos. Pois,
como dissemos antes, não rejeitamos as impressões sensíveis que nos levam ao assentimento 7
involuntário ; e estas impressões são o aparente. Quando investigamos se as coisas na realidade são
8
como parecem ser, aceitamos o fato de que aparecem; e o que investigamos não diz respeito à
aparência, mas à explicação da aparência; e isto é diferente de uma investigação sobre o aparente
ele próprio. Por exemplo, o mel nos parece doce (e aceitamos isso na medida em que temos uma
percepção sensível da doçura); porém, se o mel é doce em si mesmo é algo questionável, pois não se
trata mais de uma aparência, mas de um juízo sobre o aparente. Mesmo se formulamos argumentos
sobre o aparente, isso não se deve à intenção de rejeitarmos as aparências, mas apenas de
mostrarmos a precipitação do dogmático, pois, se a razão nos ilude de tal modo que nos tira até
mesmo o aparente de debaixo de nossos olhos, então temos de tomar cuidado no caso das coisas
não evidentes, para não nos precipitarmos ao segui-la.
SEXTO EMPÍRICO. Hipotiposes pirrônicas. Tradução Danilo Marcondes. O que nos Faz Pensar: Cadernos do Departamento de Filosofia
da PUC-Rio, n. 12, p. 119, 1997.
Observe como Sexto Empírico insiste que os céticos não rejeitam as impressões sensíveis que levam
ao assentimento involuntário, ou seja, à aceitação imediata que não depende de um ato de escolha
ou aceitação voluntária. O que os céticos não defendem é, portanto, o assentimento voluntário. Em
outras palavras, os céticos não acreditam que os humanos possam decidir se aceitam ou não as
impressões sensíveis. Elas simplesmente ocorrem; e a aceitação é imediata, involuntária. Discutir a
possibilidade de aceitá-las ou não era a crença estoica, que considerava a representação como
verdadeira ou falsa de acordo com o papel da escolha humana em assentir a ela ou não como
representação da coisa conhecida.
Os céticos, assim, criticam fortemente a representação tal como concebida pelos estoicos, embora
mantenham certa ideia de representação, aquela que as coisas produzem imediatamente em quem
as conhece. Esse aspecto do pensamento cético exerceu forte influência na História da Filosofia e é
claramente presente em várias vertentes da reflexão contemporânea. É possível mesmo afirmar
que o pensamento atual é envolvido por debates semelhantes aos promovidos pelos céticos antigos
(céticos pirrônicos): vários pensadores têm defendido que a maneira mais adequada de evitar cair
em discussões intermináveis e em problemas insolúveis é conceber o conhecimento como uma
6
crença justificada. Mais do que uma “simples crença” (impossível de ser avaliada pelas outras
pessoas), a crença em sentido cético se esforça para se basear em razões que reduzam ao máximo
possível a margem de erro no ato de pensar sobre as coisas e falar sobre elas. Entre essas razões, a
principal continua a ser a aceitação da realidade em seu modo de aparecer para os seres humanos.
Ao se transformar em discurso ou em frases sobre o mundo, o conhecimento deve ser justificado,
isto é, deve apresentar boas razões para ser tomado como conclusivo (sem a possibilidade explícita
do erro).
No horizonte da História da Filosofia, o preceito cético que leva a evitar a precipitação sempre
permaneceu (e certamente permanecerá) como ponto de referência para a reflexão sobre a
atividade de conhecer e como alerta contra o comprometimento apressado com visões de mundo
não justificadas. Trata-se de ter o mundo diante dos olhos ou, como explica o filósofo brasileiro
Oswaldo Porchat Pereira (1933-), de respeitar o mundo e sua maneira de aparecer. Trata-se, ao
mesmo tempo, de evitar uma dúvida exagerada que leve a desconfiar da
Página 343
própria percepção do mundo. Uma dúvida desse tipo corresponderia a uma atitude artificial,
praticada por filósofos que se consideram sofisticados demais para aceitar os fenômenos.
O professor Oswaldo Porchat Pereira, fundando uma releitura do pirronismo antigo, refere-se hoje
a um neopirronismo, atitude filosófica que defende a visão comum do mundo, lembrando, porém,
que nem sequer essa visão precisa ser tomada necessariamente como verdadeira. A visão comum
do mundo – que obtemos sem ceder ao que os céticos considerariam as questões artificiais dos
filósofos dogmáticos – são válidas exatamente como crenças; no entanto, trata-se de crenças que
permitem viver em paz e agir no mundo.
EXERCÍCIO B
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 502
2. Explique por que, segundo Carnéades, é mais adequado falar de conhecimento provável, e
não de conhecimento verdadeiro.
3 Realidade e linguagem
O tema da percepção das coisas e suas consequências para a representação do mundo despertou de
modo especial o interesse do filósofo Ludwig Wittgenstein (Ícone: Conteúdo tratado em outra
página p. 76), responsável por um dos estilos mais influentes do pensamento contemporâneo.
Anônimo, Kaninchen und Ente (Coelho e pato), 1892, desenho publicado pela primeira vez no jornal satírico
Fliegende Blätter, Munique, Alemanha. Em 1900, Joseph Jastrow (1863-1944), psicólogo polonês naturalizado
norte-americano, reproduziu o desenho do “pato-coelho” em seu livro Fato e fábula em Psicologia, para ilustrar
a importância da fisiologia humana e do contexto cultural na percepção visual.
Página 344
Se você vê um pato, também pode ver um coelho. Se vê um coelho, também pode ver um pato.
De fato, se você focalizar seu olhar mais para a esquerda, perceberá o bico de um pato; e o contorno
à direita será o contorno da cabeça do pato, com o olho no meio.
Porém, se você focalizar seu olhar mais para a direita, o contorno será o do focinho e a boca de um
coelho; e o que era o bico de um pato agora é visto como as duas orelhas do coelho.
Sabendo, então, que a mesma figura pode gerar duas percepções diferentes e igualmente legítimas,
você diria que a frase “Isto é um pato” é verdadeira, enquanto “Isto é um coelho” é falsa? Ou vice-
versa? Ou nenhuma das duas opções?
Na verdade, a resposta mais adequada é que nenhuma das duas opções é boa, pois a frase “Isto é um
pato” é tão verdadeira quanto “Isto é um coelho” e vice-versa. Ao mesmo tempo, portanto, nenhuma
das duas frases é falsa!
Essa experiência perceptiva mostra que não existe simplesmente um “ver”, e sim, sempre, um “ver
como”. Quando percebemos algo, nós o percebemos sempre “como” algo; e tudo o que
pretendermos afirmar sobre a verdade ou a falsidade de nossa percepção dependerá do que
dissermos sobre ela.
A análise de Wittgenstein, sob o aspecto do respeito ao mundo tal como ele se mostra, revela uma
semelhança bastante forte com o ceticismo, embora o pensador austríaco não fosse cético. Outra
semelhança está em se recusar a propor uma teoria sobre as coisas e mesmo sobre o conhecimento.
É mais razoável, segundo Wittgenstein, que a prática filosófica aceite que explicar o mundo é tarefa
da Ciência, não da Filosofia. A esta cabe “curar” o ser humano de ilusões como a de acreditar que é
filosoficamente possível conhecer “tudo”. Nesse aspecto, há também semelhanças entre ele e Kant.
No entanto, Wittgenstein adota uma postura diferente tanto dos céticos como de Kant. No tocante à
sensação ou à percepção sensível, por exemplo, ele considerava um equívoco discutir essa operação
como se o seu resultado fosse mais uma “coisa” entre as “coisas” do mundo. Em outras palavras, ele
denunciava o erro de crer que a sensação ou a operação pela qual os seres humanos percebem as
coisas físicas tem vínculos claros e imediatos com as próprias coisas físicas. Esse erro levaria a
pensar em “representações das coisas”, como se uma representação fosse também uma “coisa” em
si mesma (um resultado deixado na mente, uma impressão, um “algo”). Esse caminho de
investigação seria sem saída ou levaria, no máximo, à confusão das explicações filosóficas que se
perdem em teorias sobre o que não cabe a elas explicar. A Filosofia, então, em vez de propor teorias,
deveria curar o pensamento das “contusões” que muitos filósofos fizeram o próprio pensamento
9
sofrer.
operam: a linguagem, modo de ser que caracteriza os seres humanos de maneira especial.
Wittgenstein se dava conta de que somente quando alguém exprime sua percepção do mundo é que
se pode avaliar se a sua visão tem ou não tem significado e sentido, se é correta ou equivocada.
Posto de outra maneira, é apenas pelo uso de palavras e frases que se pode avaliar a operação
humana de perceber e conhecer. Quando não se consegue usar palavras e frases adequadamente ou
quando o uso delas é confuso, é sinal de que simplesmente faltou uma percepção real. Por
conseguinte, para analisar o conhecimento humano de modo plausível , a única base possível é a
10
investigação da linguagem. Por esse motivo, costuma-se dizer que Wittgenstein promoveu uma
virada linguística (linguistic turn) na Filosofia, movendo-a de especulações sobre o modo de ser das
coisas para o funcionamento da linguagem. Toda atividade filosófica razoável seria, então, um
exame da linguagem.
REPRODUÇÃO
Nossas afirmações sobre o mundo assemelham-se, segundo Wittgenstein, à partitura musical: a escrita musical
não é a música propriamente dita, mas uma imagem dela; assim também nossas afirmações sobre o mundo são
a imagem do mundo.
A linguagem, portanto, segundo Wittgenstein, vai além de apenas um instrumento do qual os seres
humanos se servem para exprimir aquilo que vivenciam. Instrumentos são as diferentes línguas;
seus especialistas são os linguistas, os gramáticos, os psicólogos e assim por diante. A linguagem,
em vez disso, é o próprio modo de ser especificamente humano; é o pensamento ou a capacidade de
construir proposições com sentido sobre o mundo. O pensamento, por sua vez, é uma proposição
com sentido; e o conjunto das proposições é a linguagem.
Para entender um pouco melhor o que isso quer dizer, faça o seguinte exercício: tente pensar em
algo sem usar palavras (significados) e sem relacionar esse algo com outro algo
(proposição/sentido). Mesmo que você esqueça o nome que uma palavra dá a algo, você concorda
que sempre precisará do significado desse algo para pensar nele? Pensar em algo sem significado
equivale simplesmente a não pensar. Ao contrário, há pensamento quando há unidades básicas de
significado e correlações entre elas. Esses pontos ou unidades de significado são as palavras,
independentemente de nos lembrarmos ou não de seus nomes ou de usarmos nomes diferentes,
como espada, sabre, sword (“espada” em inglês).
O primeiro exame ou a primeira crítica da linguagem feita por Wittgenstein encontra-se em seu
livro Tractatus logico-philosophicus, obra escrita em aforismos e na qual o filósofo concebe a
12
linguagem em correlação direta com o mundo: haveria uma estrutura comum entre o mundo e a
sua expressão pela linguagem.
12Aforismo: sentença ou frase enunciada com poucas palavras e com o objetivo de resumir uma posição nova
sem cair em visões comuns ou em modos comuns de expressão.
Página 346
As palavras que são nomes exprimem diretamente as coisas; seu significado são as próprias coisas
que elas designam. Já as proposições (frases que têm sentido) figuram casos, fatos ou possíveis
estados de coisas, que são compreensíveis pela projeção de casos ou fatos já conhecidos.
Wittgenstein tinha, é certo, preocupações éticas, estéticas, políticas e mesmo religiosas, mas, à
semelhança de Kant, pretendia apontar para o fato de que o conhecimento, cujo melhor modelo é a
Ciência, não tem condições de tratar objetivamente (pela linguagem!) dessas preocupações. Em
outras palavras, os termos éticos, estéticos etc. são destituídos de significado, e, por conseguinte, as
proposições que empregam esses termos são destituídas de sentido. Compreende-se, assim, o
aforismo final do Tractatus: “Deve-se calar sobre aquilo de que não se pode falar”.
Wittgenstein reconhecia que preocupações desse tipo (éticas, estéticas, políticas, religiosas) são as
que costumam mais importar na vida. Elas, no entanto, devem ser resolvidas na vida íntima dos
indivíduos e nunca ter a pretensão de se elevar em formas de conhecimento, supondo que haveria
algum grau de universalidade compreensível por todos os outros indivíduos.
Mais tarde, Wittgenstein nuançou sua primeira concepção da linguagem, como se pode ler em sua
13
obra Investigações filosóficas, cuja redação começou quinze anos depois do Tractatus e levou
aproximadamente mais doze para ser concluída. Por causa das diferenças de posição, costuma-se
falar do “primeiro Wittgenstein” (o do Tractatus) e do “segundo Wittgenstein” (o das Investigações),
mas seria inadequado afirmar que o filósofo abandonou completamente suas primeiras posições ou
seus “graves erros”, como ele dizia. Na verdade, a concepção de linguagem apresentada na primeira
fase de seu pensamento permanece como pano de fundo e como o que permite compreender as
novidades. As palavras deixarão de ser entendidas como simples “etiquetas” das coisas, embora
continuem a remeter a elas. A diferença, agora, deve-se a que o seu significado depende do uso que
se faz delas e do “jogo” que se realiza de acordo com regras conhecidas pelos jogadores.
Por exemplo, se alguém diz “Água!”, isso pode ser interpretado de diversas maneiras e em função
do uso em determinado momento. Se a pessoa está no deserto e grita “Água!”, provavelmente se
entenderá que ela pede socorro. Mas pode ser o caso de ela ter encontrado um oásis e fazer uma
exclamação de alegria. Essa possibilidade de variação leva a um rearranjo das regras do jogo
linguístico e a uma nova prática de compreensão. Se a pessoa, porém, estiver na cidade, pode ser
que queira apontar para um incêndio; mas também pode ser que simplesmente queira um copo
d’água. O significado, portanto, de “Água!” depende dos usosou jogos de linguagem em que a palavra
é usada.
A linguagem, assim, no “segundo Wittgenstein”, passa a ser vista como prática humana que se
constitui de vários usos determinados pelas variadas formas de vida. Seu funcionamento depende
do aprendizado, que também pode ser bastante diferente em função dos costumes dos indivíduos
que adotam as mesmas formas de vida. Wittgenstein enfraquece mais ainda, assim, a concepção do
conhecimento em função da estrutura mental dos sujeitos ou da psicologia da representação e
insiste no caráter social da linguagem. Por sua vez, o caráter social torna também menos rígidos os
limites estabelecidos no Tractatus: embora no campo do conhecimento objetivo seja preciso jogar
um jogo universal e de modelo científico, muitos outros jogos podem ser realizados de acordo com
outras formas de vida. Wittgenstein, aliás, dá exemplos de jogos em que há uma produção social de
sentido por meio do conhecimento das regras por parte dos jogadores: dar ordens (comandar) e
obedecer, relatar
Página 347
um acontecimento, fazer hipóteses e prová-las, representar como no teatro, contar uma piada,
pedir, agradecer, orar etc. As proposições, agora, vão além da simples designação de coisas. Ícone:
Texto filosófico
“Primeiro” Wittgenstein
O mundo é tudo o que é o caso. O que é o caso, o fato, é a existência de estados de coisas. O estado
de coisas é uma ligação de objetos (coisas). A figuração é um modelo da realidade. O que a figuração
representa é seu sentido. Na concordância ou discordância de seu sentido com a realidade consiste
sua verdade ou falsidade. Especificar a essência da proposição significa especificar a essência de
toda descrição e, portanto, a essência do mundo. É claro que a ética não se deixa exprimir. A ética é
transcendental. (Ética e estética são uma só.) Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico- Philosophicus. Tradução Luiz Henrique Lopes dos Santos. São Paulo: EDUSP, 1994.
Proposições 1, 2, 2.01, 2.12, 2.221, 2.222, 5.4711, 6.421, 7.
Jogos de Linguagem
“Segundo” Wittgenstein
Quantas espécies de frases existem? Afirmação, pergunta e comando, talvez? — Há inúmeras de tais
espécies: inúmeras espécies diferentes de empregos daquilo que chamamos de “signo”, “palavras”,
“frases”. E esta pluralidade não é nada fixo, um dado para sempre; mas novos tipos de linguagem,
novos jogos de linguagem, como poderíamos dizer, nascem e outros envelhecem e são esquecidos.
(Uma imagem aproximada disto poderia nos dar as modificações da Matemática). O termo “jogo de
linguagem” deve aqui salientar que o falar da linguagem é uma parte de uma atividade ou de uma
forma de vida. [...] Assim, pois, você diz que o acordo entre os humanos decide o que é correto e o
que é falso? — Correto e falso é o que os humanos dizem, e na linguagem os humanos estão de
acordo. Não é um acordo sobre as opiniões, mas sobre a forma de vida. [...] Como as palavras se
referem a sensações? Nisto não parece haver nenhum problema; pois não falamos diariamente de
sensações e as denominamos? Mas como é estabelecida a ligação entre o nome e o denominado? A
questão é a mesma que: como um humano aprende o significado dos nomes de sensações? Por
exemplo, da palavra “dor”. Esta é uma possibilidade: palavras são ligadas à expressão originária e
natural da sensação, e colocadas no lugar dela. Uma criança se machucou e grita; então, os adultos
falam com ela e lhe ensinam exclamações e, posteriormente, frases. Ensinam à criança um novo
comportamento perante a dor.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas §§ 23; 241; 244. Tradução José Carlos Bruni. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
(Coleção Os pensadores.)
O entendimento ou o intelecto, com Wittgenstein, deixa de ser uma capacidade humana “natural”
(mente, alma etc.), para ser o resultado de um conjunto de comportamentos aprendidos
socialmente, com regras também socialmente construídas. Mais do que uma “parte” do ser humano,
o entendimento torna-se o trabalho social da linguagem. A Filosofia, por sua vez, teria o papel de
compreender esse trabalho ou a construção dos comportamentos linguísticos, produzindo uma
visão de conjunto que permita deixar claras as
Página 348
conexões internas de um mesmo jogo de linguagem ou mesmo entre diferentes jogos de linguagem.
Se parece possível associar a concepção do ato de conhecer do “primeiro” Wittgenstein com uma
fotografia “simples” que capta diretamente a realidade (como a foto da Ícone: Conteúdo tratado em
outra página p. 336), convém associar o conhecimento compreendido pelo “segundo” Wittgenstein
a uma fotografia na qual o ponto de vista de quem contempla a realidade, formado socialmente,
depende do modo de perceber a mesma realidade. Agora, conhecer não significa apenas figurar o
mundo, nem pôr algo entre a realidade e quem a conhece (algo como uma representação). Em vez
disso, conhecer é um ato que se constrói pelos diferentes modos de olhar para a realidade mesma
(caso ilustrado pela fotografia abaixo).
© CENTRE POMPIDOU, MNAM-CCI, DIST. RMN-GRAND PALAIS / GEORGES MEGUERDITCHIAN © RAMETTE, PHILIPPE/AUTVIS, BRASIL, 2016
EXERCÍCIO C
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 503
4 Realidade e consciência
4.1 Realidade e consciência na fenomenologia
O primeiro filósofo a consagrar o uso do termo foi Georg W. F. Hegel (Ícone: Conteúdo tratado em
outra página p. 270), mas a fenomenologia como estilo filosófico desenvolvido no século XX foi
proposta por outro pensador, o alemão Edmund Husserl (Ícone: Conteúdo tratado em outra página
p. 353). No dizer de Husserl, a Filosofia teria a possibilidade de se tornar um conhecimento
rigoroso, à maneira de uma ciência, ao esclarecer a consciência ou o modo como os fenômenos se
doam a quem os conhece.
A análise do conhecimento feita por Husserl leva-o a concluir que, mais do que uma “aparelhagem”
Página 349
humana, a consciência é, ela mesma, uma relação ou uma atividade: a atividade de estar na
presença daquilo que é conhecido, reagindo ativamente a ele. Os fenômenos, por sua vez, em vez de
serem marcas ou impressões deixadas pelas coisas na consciência de quem as conhece, são as
próprias coisas conhecidas e em cuja presença está a atividade da consciência.
Husserl rejeitava ainda o empirismo ou a compreensão do intelecto como uma tabula rasa ou uma
folha em branco na qual as impressões inscrevem dados. Aliás, segundo Husserl, nem mesmo um
empirista convicto poderia entender de fato o pensamento empirista, pois, embora se possa crer
que a experiência baseada nos cinco sentidos seja a única fonte de conhecimento seguro, deve-se
notar que essa crença é impossível de ser comprovada pela própria experiência empírica. Por meio
dos cinco sentidos só se captam experiências singulares (esta cor, este odor, este som etc.), nunca
regras gerais como aquela segundo a qual “todo conhecimento seguro baseia-se nos dados captados
pelos cinco sentidos”. Em outras palavras, o mundo físico dá fatos, não regras. O empirismo,
portanto, acreditando provar uma “lei empírica”, sem contudo poder provar empiricamente essa
lei, mostra-se contraditório. Por conseguinte, segundo Husserl, mesmo o ceticismo é contraditório,
pois também tem uma base empirista.
A crítica de Husserl ao empirismo fazia dele um grande admirador de René Descartes (Ícone:
Conteúdo tratado em outra página p. 191), por sua ênfase na verdade do pensamento ou na ação da
consciência. Todavia, Husserl diferia também do racionalismo, que, no seu dizer, terminava por
entender o ser humano de modo dualista, composto por duas “partes” que só se relacionam
casualmente (o pensamento ou alma, de um lado, e o corpo, de outro). Em vez disso, Husserl
compreendia o ser humano como um corpo consciente, uma realidade complexa ou uma realidade
psicofísica composta por corpo (materialidade), alma (vitalidade e capacidade de ter emoções) e
espírito (consciência) (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 239). Tais dimensões existem
em estreita habitação mútua ou inhabitação (um habita o outro), de modo que a consciência, mais
do que uma atividade de uma “alma” ou de um “espírito” que se serve de um corpo (assim como o
piloto de um avião ou o motorista de um automóvel), revela-se como a atividade do ser humano
inteiro, em um acionamento íntimo de sua dimensão física (corpo), psíquica (alma) e cognitivolivre
(espírito).
Por outro lado, Husserl também se distanciou de Kant, pois, mesmo que Kant tenha chamado
atenção para os fenômenos ou o modo como tudo aparece para a consciência, ele acabou
desviando-se
Página 350
para a análise do “aparelho” cognitivo humano, como se fosse possível falar desse “aparelho” em si
mesmo, sem seguir adiante com a investigação dos próprios fenômenos. Nesse ponto preciso da
crítica a Kant, talvez a originalidade de Husserl possa ser vista em toda a sua amplitude: para falar
da capacidade humana de conhecer, não é adequado dar explicações apenas para o funcionamento
da consciência, mas é preciso investigar o modo como as coisas aparecem para quem as conhece.
A razão mais clara para o projeto husserliano vem da sua observação de que nunca há consciência
“vazia” ou consciência sem conteúdo. Consciência é sempre consciência de alguma coisa. Ter
consciência é estar sempre em uma relação com algo. Seria sem sentido, portanto, pretender que a
razão se analise a si mesma, em sua estrutura íntima, porque a consciência só pode ser investigada
enquanto está em ação. Ora, para estar em ação, ela precisa ter algum conteúdo diferente dela
mesma (ser consciência de alguma coisa).
Husserl passa, então, a dar sentidos novos a palavras muito antigas como experiência. Ela não será
mais a captação de coisas, e sim a vivência de uma relação com as coisas. Aliás, de modo geral, em
fenomenologia, pode-se falar de experiência, consciência e vivência (ou vivido) como sinônimos.
Ao tentar discorrer mais diretamente sobre a consciência, Husserl, no livro Investigações lógicas
(não confundir com as Investigações filosóficas de Wittgenstein!), identifica três funções
conscientes: (1) cada uma das vivências; (2) o conjunto ou “tecido” formado pelas vivências na
unidade de seu fluxo, como na correnteza de um rio; (3) a percepção interna das vivências ou a
“vivência das vivências” (consciência de si ou autoconsciência).
As vivências, por sua vez, são percepções, imaginações, ficções, pensamentos conceituais, dúvidas,
hipóteses, suposições, alegrias, sofrimentos, esperanças, temores etc. Numa palavra, as vivências
são tudo o que as pessoas percebem.
Ainda uma comparação com Wittgenstein pode ser pedagógica aqui: de acordo com o “segundo”
Wittgenstein, falar de dor de dente é um bom exemplo para mostrar que não há experiências
idênticas para todas as pessoas; afinal, parece impossível afirmar que alguém que nunca teve dor de
dente compreenda outra pessoa que diz “Tenho dor de dente”. Essa expressão só será
compreensível para alguém que aprendeu a dizer “Tenho dor de dente”, em vez de simplesmente
gemer. Husserl, de modo semelhante, entende que o hábito de dar nomes às vivências depende dos
usos linguísticos e dos costumes construídos socialmente, mas defendia que uma pessoa que nunca
tenha tido dor de dente pode entender em primeira pessoa a frase “Tenho dor de dente”, pois essa
pessoa pode muito bem associar a ideia de dor com a ideia de dente e obter compreensão da frase
“Tenho dor de dente”. A essa possibilidade Husserl chamava empatia ou intropatia, isto é, um
“sentir dentro”, um “perceber dentro” algo que é vivido fora: ninguém precisa estar triste para
entender a tristeza de alguém. A empatia, assim, diferentemente de uma simpatia ou compaixão,
consiste na compreensão da vivência alheia sem ter exatamente a mesma experiência da outra
pessoa; trata-se, como dirá Edith Stein (p. 132), discípula de Husserl, do ato de “consciência da
consciência alheia”.
MIRELLA SPINELLI
Embora cada pessoa tenha sua percepção individual do mundo, é possível constatar, pela comunicação, que o
conteúdo percebido é o mesmo para pessoas diferentes. Por conseguinte, constata-se também que as coisas
percebidas existem por si mesmas e “fora” da consciência das pessoas que as percebem. A essa atividade
cognitiva a fenomenologia chama, de modo geral, intersubjetividade.
A empatia é a chave para explicar como é possível que, mesmo não tendo garantia nenhuma de que
aquilo que percebemos nos outros corresponde ao que eles realmente vivem, ainda assim somos
capazes de compreendê-los, comunicar, coincidir, divergir. Se comunicamos, é porque nossa
consciência ou nosso modo de ser consciente é parecido. Isso se observa mesmo nas vivências ou
nas
Página 351
experiências mais simples do cotidiano: quando duas ou mais pessoas dizem perceber uma cor, elas
se dão conta de que têm uma percepção comum, embora essa percepção seja vivida apenas
individualmente. Ora, como elas podem perceber individualmente a cor e perceber, ao mesmo
tempo, que suas percepções coincidem? Segundo Husserl, isso é possível porque os seres humanos
possuem um modo comum de ser conscientes. Esse modo de ser consciente manifesta-se e
desenvolve-se na intersubjetividade: é no encontro de sujeitos que se dá a percepção do que há de
comum.
É também a intersubjetividade que permite afirmar que o mundo não é uma simples “invenção” da
consciência e que o modo comum de ser consciente é mais do que o mero resultado da educação ou
do trabalho social. A educação pode variar de cultura para cultura (de jogo de linguagem para jogo
de linguagem, como diria Wittgenstein), mas vivências como dor, alegria, cálculo, hipótese etc.
permanecem fundamentalmente as mesmas para todos. Há, então, segundo Husserl, um modo de
ser, que é também um modo de se relacionar com tudo o que existe. Numa palavra, há consciência.
A partir dessa base, Husserl considera de extrema importância a atividade filosófica de investigar a
consciência. Seu próprio trabalho pessoal foi esclarecer o modo de ser consciente,
independentemente dos conteúdos específicos de cada ato consciente. Era o que ele chamava de
consciência pura (pura ou destituída de conteúdos) ou eu puro (o “eu” que é comum a todos os “eus”
empíricos, individuais).
Haveria aqui, contudo, uma contradição explícita se Husserl defendesse a possibilidade de uma
“radiografia” da consciência sem conteúdos, uma vez que ele mesmo já havia afirmado que
consciência é sempre consciência de alguma coisa. Husserl esclarecerá que a análise da consciência
pura só pode ser feita com base nos fenômenos, ou seja, no modo como tudo aparece para a
consciência. Em outras palavras, se tomarmos a palavra objeto como sinônimo dos conteúdos ou
fenômenos que se doam à consciência (revelando, portanto, um sentido), então será possível dizer
que, para Husserl, a análise da consciência é uma análise também dos objetos em seu modo de
aparecer.
No volume II do livro Ideias para uma fenomenologia pura e uma filosofia fenomenológica, Husserl
mostra que a percepção humana sempre segue um modo próprio de ocorrer. Esse modo é
constante e, em certa medida, independe da formação social: por exemplo, quando se diz que uma
parede é amarela, há uma série de modos de percepção implicados nessa afirmação. Para identificar
tais modos, pode-se praticar a variação, ou seja, a atividade de imaginar mudanças na percepção,
até chegar a dados sem os quais a percepção deixaria de fazer sentido. Enfocando a atenção na
parede, pode-se imaginá-la também vermelha, branca, verde etc. Não se requer uma cor específica
para se referir à parede. No entanto, enfocando a atenção na cor, pode-se imaginá-la fora da parede;
ela pode ser associada ao chão, a um papel, a um carro etc., mas não se pode imaginar a cor sem
uma superfície. A prática da variação leva, assim, a entender que “cor” é algo existente sempre em
unidade com uma superfície. Se for retirado o fato de que uma cor sempre está em alguma
superfície, simplesmente se deixa de pensar em uma cor. Como diz Husserl, chega-se a uma
consciência de impossibilidade relativa à cor, e essa consciência mostra que faz parte da essência da
cor a ligação com uma superfície.
Para tudo o que existe é possível pensar na sua essência. Em se tratando de um triângulo, é
impossível imaginá-lo como não convexo; em se tratando de um som, é impossível imaginá-lo sem
uma duração. A variação chega, assim, a limites que devem ser respeitados por tudo aquilo que
existe. Em outras palavras, tudo o que existe revela sempre um modo próprio de se apresentar à
consciência; esse modo próprio é o que Husserl chamava de essência ou ideia. Em sentido
husserliano, a essência ou ideia é diferente da Essência ou Ideia platônica (Ícone: Conteúdo tratado
em outra página p. 150) e da essência ou ideia entendida como construção no uso moderno do
termo (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 335). Ela é o modo de ser das coisas em sua
autodoação à consciência. Esse modo de as coisas se apresentarem à consciência determina, por sua
vez, o modo de ocorrer da própria consciência, a qual, em vez de construir representações das
coisas, relaciona-se com elas e na presença delas. Por isso, o lema com o qual a filosofia husserliana
ficou conhecida é: voltar às coisas mesmas.
A unidade radical entre consciência e objeto era chamada por Husserl de intencionalidade. Trata-se
do direcionamento (rumo ao objeto) no ato da intenção, conceito que Husserl aprende com seu
mestre Franz Brentano (1838-1917) e com os filósofos medievais. Ícone: Texto filosófico A
intenção, porém, tem mais do que um sentido ético (o motor de uma ação); ela consiste na tensão
em
Página 352
torno de um objeto que dá o modo de ser consciente (assim como a tensão que se aplica à corda de
um instrumento musical).
Observe como, ao final do texto, Husserl também afirma que há algo a priori (Ícone: Conteúdo
tratado em outra página p. 270) que funciona como condição para o conhecimento dos dados
empíricos (os dados que se apresentam de modo físico). Porém, esse algo a priori é diferente de
uma “estrutura”; ele é uma modalidade ou um conjunto de modos possíveis para a percepção. Visto
em si mesmo (independentemente dos conteúdos em cuja presença esses modos são ativados), o “a
priori” é a consciência pura ou o eu puro.
A tarefa de investigar a consciência pura de conteúdos é possível, segundo Husserl, quando se põe o
mundo real entre parênteses, à maneira da epoché cética (p. 341). Isso significa que, assim como
diante de filosofias dogmáticas o cético escolhia conter o seu juízo ou o seu julgamento, assim
também o fenomenólogo, para analisar a consciência pura, deve conter a preocupação com os
acontecimentos singulares, existentes em si mesmos, e procurar investigar o modo do
aparecimento dos fenômenos à consciência, esclarecendo também a própria consciência em seu
modo de estar presente aos fenômenos.
A intencionalidade da consciência
Edmund Husserl
[Há fenômenos psíquicos e fenômenos físicos]. Na percepção, sempre há algo percebido: na
fabricação de imagens, há algo representado em imagens; na enunciação , há algo enunciado; no14
amor, algo amado; no ódio, algo odiado; no desejo, algo desejado; e assim por diante. É isso que se
deve reter de todos esses exemplos usados por Brentano quando declarava: “Todo fenômeno [...] é
caracterizado por aquilo que os escolásticos, na Idade Média, chamavam inexistência intencional 15
(ou mesmo mental) de um objeto; é o que nós chamaremos – embora tenhamos de usar expressões
equívocas – de relação a um conteúdo, orientação para um objeto”. [...]
16
HUSSERL, Edmund. Logische Untersuchungen. Tübingen: M. Niemeyer, 1968. v. II, p. 366-369. (Investigações lógicas. Tradução
nossa.)
Essa regra metodológica valeu a Husserl a acusação de que ele seria um idealista estrito (Ícone:
Glossário p. 295), ou seja, um defensor da teoria segundo a qual não se pode conhecer nada sobre a
realidade em si mesma, mas apenas sobre a realidade construída pela consciência. No limite, talvez
a realidade sequer exista; só há certeza sobre os conteúdos da consciência.
Husserl, porém, reagindo a essa acusação, insistia que a árvore em chamas na realidade é a mesma
árvore em chamas na consciência, com a diferença de que, na consciência, ela não precisa queimar.
Essa maneira de se exprimir permitia a Husserl explicar que há duas orientações ou dois
direcionamentos na consciência humana: uma que se dirige às coisas e procura explicá-las
fisicamente; e outra que se dirige às coisas tal como elas estão presentes à consciência (a relação de
consciência estabelecida com elas). A primeira orientação seria natural, comum e mesmo ingênua
(despreocupada com questões filosóficas relativas ao funcionamento da consciência); ela
corresponde ao olhar dirigido ao mundo e equivale à percepção sensível, fundamentando, por isso,
o trabalho da Ciência. A segunda orientação seria filosófica ou fenomenológica, pois busca entender
o modo mesmo de ocorrer da consciência. Como o objetivo da segunda orientação é conhecer a
atividade da consciência na relação com os fenômenos, ela deixa de se concentrar sobre as coisas
empíricas e as põe entre parênteses, fixando sua atenção no fluxo da consciência.
Husserl une, dessa maneira, subjetividade (consciência individual) e objetividade (os fenômenos
comprovados pela intersubjetividade), relativizando a ideia de que o conhecimento independe dos
indivíduos. Ele chegava a dizer que o saber como conjunto de informações registradas nos livros e
documentos de laboratórios é simplesmente inerte até que um indivíduo o ative em um ato
18
EXERCÍCIO D
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 503
4. Husserl foi um idealista estrito? Justifique sua resposta servindo-se da expressão dupla
orientação.
O trabalho de Husserl é, sem dúvida, original; porém, ele não deixa de ter semelhanças com uma
tradição mais antiga, iniciada já com alguns autores dos tempos patrísticos (p. 378) e desenvolvida
em diferentes filosofias medievais (p. 380).
A principal dessas semelhanças reside na afirmação da consciência como atividade que participa da
produção do conhecimento. Contudo, de modo geral, os pensadores patrísticos e medievais não
empregavam o termo consciência no sentido da fenomenologia; davam-lhe um significado
primordialmente ético. Para se referir ao que depois os fenomenólogos chamarão de consciência,
eles se serviam de expressões como pensamento, atividade racional, atividade intelectual.
Um exemplo dessas semelhanças vem do modo como Agostinho de Hipona (p. 170) reagia ao
ceticismo e considerava a existência do pensamento como algo de que não é possível duvidar. Na
obra Confissões, ao narrar as dúvidas e as dificuldades filosóficas nas quais tinha se envolvido em
sua busca da verdade, Agostinho chega a considerar o ceticismo como a filosofia mais prudente.
Duvidar de todas as opiniões e não se iludir com a esperança de conhecer a verdade sobre o modo
de ser das coisas, confiando, em vez disso, nos fenômenos, pareceu-lhe algo que realmente evitava a
perturbação.
No entanto, Agostinho também constatava que a perturbação evitada pelos céticos nascia da
comparação entre opiniões e interpretações sobre o mundo. De fato, se a busca filosófica se
concentrar apenas na análise de proposições ou frases sobre a realidade, permanecerá incapaz de
ultrapassar a dúvida e evitar o erro. Será, então, mais prudente tornar-se cético. Um dado, porém,
marcou a reflexão de Agostinho: apesar da variedade de opiniões e interpretações sobre a
realidade, das quais se pode duvidar com base nos motivos levantados pelos céticos, é impossível
duvidar do fato de que essas opiniões e interpretações nascem de uma experiência individual da
mesma realidade. Ainda que essa experiência chegue a formular frases inadequadas sobre a
realidade, contraditórias ou mesmo contrárias, ninguém poderá duvidar que elas nascem de um
indivíduo que experiencia a realidade.
Agostinho chamou a atenção para esse fato analisando a possibilidade do erro. Na obra O livre-
arbítrio, ele esclarece que o próprio ato de duvidar e de errar confirmam que a pessoa existe. Se eu
erro, eu existo. Em outras palavras, se eu erro, então preciso existir para errar; como sei que erro
em muitas coisas, então existo.
Agostinho faz a reflexão passar, assim, do nível das simples frases sobre o mundo para o nível da
experiência interior pela qual cada indivíduo vivencia o mundo e se sente como algo singular. Por
causa dessa passagem, Agostinho exerceu grande influência sobre numerosos pensadores, entre
eles René Descartes, que se dedicou a justificar a evidência do pensamento, e Edmund Husserl,
fundador da filosofia fenomenológica. Mais próximo temporalmente de Agostinho, outro de seus
leitores atentos foi Boécio de Roma cuja obra Consolação da filosofia esclarecia como muitas
dificuldades filosóficas nascem da crença segundo a qual o conhecimento depende daquilo que é
conhecido, quando, na verdade, como dizia Boécio, ele depende de quem pratica a atividade de
conhecer. Como continuador da linhagem agostiniano-boeciana, Tomás de Aquino (p. 114) elabora
uma teoria do conhecimento marcada por fortes semelhanças com a “filosofia da consciência”
fenomenológica.
Foi um filósofo, político e teólogo que traduziu para o latim obras de Aristóteles, além de comentar
alguns textos clássicos, contribuindo para a formação do vocabulário filosófico em língua latina. Foi
vítima de uma conspiração política e acabou sendo condenado à morte pelo imperador Teodorico.
Obras mais conhecidas: A consolação da Filosofia e Escritos teológicos.
Tomás se serviu repetidas vezes de um ditado filosófico bastante conhecido na Idade Média: “nada
pode estar no intelecto sem antes ter estado nos sentidos”. No entanto, em vez de entender o
conhecimento como um simples retrato do mundo, resultante de um processo em que as coisas
físicas produziriam os conteúdos do intelecto, Tomás também defendia que o intelecto participa da
produção do conhecimento. Embora seja inegável a necessidade humana dos dados captados por
meio dos cinco sentidos para desenvolver a capacidade cognitiva, Tomás esclarecia que esses
mesmos dados são incapazes de produzir conhecimento sem a ação conjunta do intelecto. O papel
do intelecto seria colher as semelhanças entre as coisas singulares, interpretando-as de acordo com
Página 355
gêneros e espécies universais (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 97) que estruturam a
Natureza. A observação de tais gêneros e espécies, por sua vez, permitiria conhecer a essência de
cada coisa, em uma atividade muito semelhante à que Husserl chama de variação: trata-se de
identificar as características sem as quais alguma coisa deixa de ser o que ela é.
A concepção tomasiana, tal como sintetizada aqui, pode dar a impressão de que o conhecimento,
para Tomás, seria o resultado de uma recepção passiva de informações do mundo, em que o
intelecto seria uma tabula rasa ou uma folha em branco. Todavia, o intelecto é ativo no ato de
conhecer, pois, segundo Tomás, sequer há conhecimento se o intelecto não se debruça sobre si
mesmo e não percebe sua diferença com o mundo. Um conhecimento verdadeiro, desse ponto de
vista, não seria uma simples adequação do intelecto à coisa conhecida, mas a atividade refletida de
se pronunciar sobre o mundo com base na percepção da diferença entre aquilo que o mundo é e
aquilo que se pensa sobre ele.
Tomás de Aquino
A verdade está no intelecto e no sentido, porém não do mesmo modo. No intelecto, a verdade está
como aquilo que resulta do ato do próprio intelecto e como conhecida por meio do intelecto. Ela
segue, portanto, a operação do intelecto; e, de acordo com essa operação, um juízo do intelecto
versa sobre a coisa [conhecida] como algo que existe. Mas a verdade é conhecida pelo intelecto
enquanto o intelecto reflete sobre seu próprio ato: não apenas enquanto conhece seu próprio ato,
mas enquanto conhece a diferença ou a proporção entre ele e a coisa [conhecida], diferença essa
que não pode ser conhecida a não ser que se conheça a natureza mesma do próprio ato de
conhecer. Por sua vez, a natureza do ato de conhecer só pode ser conhecida quando se conhece a
natureza do seu princípio ativo, que é o próprio intelecto, em cuja natureza está a possibilidade de
se conformar às coisas. Daí que o intelecto conhece a verdade enquanto reflete sobre si mesmo.
TOMÁS DE AQUINO. Quaestio disputata de veritate. Disponível em: <http:// www.corpusthomisticum. org/qdv01.html#51747>.
Acesso em: 15 out. 2015. (Questão disputada sobre a verdade. Questão 1, artigo 9. Tradução nossa.)
Acesse:
Como explica o historiador da Filosofia Etienne Gilson (1884-1978), para bem entender Tomás de
Aquino, é preciso libertá-lo da visão de sua filosofia tal como interpretada pelos modernos,
principalmente Descartes. De acordo com a visão moderna, Tomás de Aquino acreditava que o
conhecimento inicia pela captação simples e direta do modo de ser das coisas, ingenuamente
tomado como evidente. Em vez disso, porém, Tomás defendia que o conhecimento inicia quando
alguém percebe as coisas como realidades “existentes para o intelecto” (para a consciência), ou seja,
quando as coisas são percebidas em sua diferença com relação a quem as percebe. Torna-se
compreensível, assim, que o pensamento tomasiano tenha despertado o interesse de Husserl,
embora o filósofo alemão considerasse os medievais, de modo geral, como “ingênuos”,
despreocupados com o papel da consciência na atividade de conhecer.
Avicena (980-1037)
Foi um filósofo e cientista muçulmano persa. Exerceu grande influência em Filosofia e outros
saberes, especialmente na Medicina. Relacionando o patrimônio filosófico grego com elementos
religiosos islâmicos, desenvolveu intuições bastante originais. Obras mais conhecidas: Livro da
Alma e A origem e o retorno.
Página 356
Avicena
Devemos indicar, aqui, um modo de estabelecer a existência da nossa alma, despertando a atenção e
permitindo a rememoração. Essa indicação terá uma forte ressonância junto de quem tem a
capacidade de perceber o verdadeiro sem ter necessidade de ser erudito nem afiado, nem desviado
dos erros. Dizemos, então: é preciso que cada um de nós se imagine como se tivesse sido criado
instantaneamente e perfeito, mas que sua vista tenha sido impedida de ter qualquer visão das
coisas exteriores; e que cada um se imagine como criado e posto no ar ou no vazio, de maneira tal
que a consistência do ar não o toque e não o leve a experimentar uma sensação; por fim, que seus
membros fiquem bem separados e assim ele não os aproxime nem se toque.
Depois, que cada um considere atentamente se afirmará a existência de sua essência ou seu “eu”.
Certamente não duvidará de que seu “eu” existe, mesmo sem afirmar, com isso, qualquer um de
seus membros nem nenhum de seus órgãos internos, nem um coração nem um cérebro, nem
nenhuma das coisas exteriores. Ele afirmará seu “eu” sem afirmar nenhuma extensão, nem largura,
nem profundidade. E se lhe fosse possível, nessa situação, imaginar um braço ou outro membro, ele
não o imaginaria como parte de seu “eu” nem como condição de seu “eu”.
Ora, o que é afirmado é diferente do que não é afirmado; o que é reconhecido é diferente do que não
é reconhecido. Por conseguinte, o “eu” que esse homem dirá existir possui a propriedade de ser
idêntico a ele mesmo e de ser diferente de seu corpo e de seus membros, os quais não foram
afirmados. Assim, pois, aquele que afirma tem uma via que desperta sua atenção para o fato de que
a alma é uma coisa diferente do corpo, ou melhor, diferente de um corpo; ele sabe isso e é
consciente disso, mesmo quando se encontra distraído e tem necessidade de ser chamado
novamente à ordem.
AVICENA. Sifā’ – De anima I, 1. Edição e tradução G. C. Anawati e S. Zayed. Cairo: Institut Français d’Archéologie Orientale, 1974. p.
13. (A cura ou Tratado da alma. Tradução nossa Tradução nossa para o português.)
Observe que a hipótese do “homem voador” ou do homem suspenso no espaço permite a Avicena
(Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 355) defender que nem todo conhecimento depende
da contraposição com coisas sensíveis. Isso não significa, porém, que Avicena concebia o
conhecimento como independente das coisas sensíveis. Ao contrário, a compreensão da própria
existência, no seu entender, só é alcançada por meio da interrogação constante e do contato dos
sentidos físicos com coisas singulares. O objetivo, porém, da hipótese do “homem voador” é mostrar
que a afirmação da própria existência independe do conhecimento desenvolvido pelo contato físico
com coisas singulares; é de outra ordem e, por isso, conserva ao menos uma mínima possibilidade
de acontecer por si mesma.
EXERCÍCIO E
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 504
1. O que fez Agostinho de Hipona chamar o ceticismo de “a mais prudente das filosofias”?
3. Explique por que, segundo Tomás de Aquino, o conhecimento não é um retrato direto da
realidade.
A esse respeito, é muito esclarecedor um texto escrito por Albert Einstein (1879-1955) e Léopold
Infeld (1898-1968).
EINSTEIN, Albert; INFELD, Léopold. L’évolution des idées en Physique. Tradução M. Solovine. Paris: Payot, 1978. p. 34-35. (A evolução
das ideias em Física. Tradução nossa para o português.)
É curioso observar como Einstein e Infeld, cientistas acima de tudo, invertem o uso da metáfora do
relógio, que foi tão valorizada a partir do Renascimento (p. 382) e da Modernidade ( p. 385),
quando muitos filósofos passaram a adotar como modelo de conhecimento o procedimento
mecanicista (p. 235). Einstein e Infeld não comparam o conhecimento científico com o
procedimento de alguém que desmonta um relógio e depois o monta novamente, como se esse
desmontar e remontar fosse o melhor modo de simbolizar o conhecimento científico. Ao contrário,
eles imaginam um relógio impossível de abrir e comparam o conhecimento científico com a
atividade criativa de alguém que imagina o funcionamento do mecanismo desse relógio. Isso quer
dizer que, para Einstein e Infeld, mais do que constatar coisas, conhecer cientificamente significa
elaborar um modo de unificar os dados observados em uma construção que permita explicar esses
mesmos dados.
Explicar, porém, é uma atividade que vai além de conhecer as partes ou os elementos em que os
dados podem ser divididos. Aliás, se Einstein e Infeld tivessem falado de alguém que abre o relógio
e estuda suas partes, certamente não teriam mudado sua conclusão, pois, mesmo desmontando e
remontando o relógio, o que o observador percebe é apenas o conjunto das partes. Chegar a uma
explicação do modo como as partes produzem um determinado resultado é algo que vai além da
simples observação e exige
Página 358
do pesquisador um passo adiante: é sua criatividade que lhe permitirá propor uma teoria que
unifica as partes e inventa um porquê para o resultado do conjunto que elas produzem.
O observador é, portanto, também autor. Constatando que sua teoria inventada permite explicar
dados empíricos, ele continua a aplicar essa mesma teoria e a lidar com um limite ideal, quer dizer,
um padrão máximo de clareza, também inventado por seu pensamento. Esse limite ideal ou padrão
máximo que pode ser atingido pelo conhecimento passa, por sua vez, a ser considerado como a
verdade “objetiva”, aquela que é tomada como critério para a avaliação de tudo o que se conhece
durante o processo de investigação. A objetividade da verdade científica, portanto, em vez de ser
algo que a própria Natureza revela, consiste, segundo Einstein e Infeld, em uma construção do
espírito humano em sua relação com a Natureza.
O filósofo da ciência Thomas Kuhn (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 361) dedicou-se a
compreender o comportamento científico como um processo de construção de teorias (e não de
retratos da Natureza), chamando a atenção para o fato de que as ciências revelam, por sua história,
um desenvolvimento descontínuo, ou seja, marcado por interrupções claras nas maneiras de
explicar a realidade. Mais do que acumular informações sempre correlacionadas, as ciências
realizam rupturas com modos anteriores e também científicos de explicar a realidade. Kuhn
denomina tais rupturas de revoluções, de onde vem o título de seu livro mais conhecido, A estrutura
das revoluções científicas.
Thomas Kuhn recorre ao exemplo do pato-coelho (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 343)
de Wittgenstein e o aplica ao próprio comportamento dos cientistas: a mesma realidade pode
despertar diferentes percepções, pois todo olhar é um “olhar como”. Assim, de acordo com o modo
como um cientista olha para a realidade, surge uma teoria correspondente; e os fatores que
influenciam o como se olha são as vivências e crenças sociais. Dado que a vida social está em
constante mudança, é compreensível que as teorias científicas também mudem, rompendo com
concepções anteriores. Os quadros, contextos ou modelos científicos do passado entram em crise
quando se percebe algum dado anômalo e dão lugar a novos modelos de explicação. Kuhn também
20
chama tais modelos de paradigmas. Novos modelos são criados para explicar as anomalias e
tornam-se a Ciência “normalizante ” daquele momento, até que outra anomalia surja, levando a
21
Pontos de vista neutros, portanto, inexistem em Ciência, segundo Kuhn; eles são sempre formados
socialmente e com os olhos voltados para o passado.
Karl Popper (1902-1994)
fatos da Natureza
Página 359
e considerada sempre verdadeira, uma teoria realmente científica deve ser feita de modo a poder
ser revista ou mesmo abandonada caso fatos novos revelem sua insuficiência explicativa.
Popper colocava no centro do debate o fato de a maior parte dos enunciados ou frases científicas
ser formada com base na indução (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 48). A partir de
certos dados conhecidos, tiram-se conclusões que não são necessariamente sempre garantidas por
esses dados. Por exemplo, o fato de se observar que um grande número de porções de água ferve a
100 ºC não garante que alguma porção de água não possa ferver com outro grau. A indução, nesse
sentido, torna frágil a crença científica de que uma teoria é sempre verdadeira por ser confirmada
por fatos.
Karl Popper insistia, então, que crer na verificação de um enunciado equivale a pensar que as
23
Popper chega a declarar sua descrença na indução como método científico, salvo no caso da
indução matemática (campo do saber em que a regularidade é mais facilmente defensável ). Por
24
essa razão, ele propõe outra compreensão das teorias científicas, promovendo, de certo modo, uma
concepção mais humilde da Ciência. Em vez de defender a verificação, Popper defende a
falseabilidade ou a possibilidade de que um enunciado venha a ser considerado falso: um enunciado
realmente científico é construído de modo que possa ser comparado com a experiência sensível e
refutado por ela. Esse modo de construção depende do que Popper chamava de forma lógica.
A forma lógica de um enunciado verificado pela realidade (enunciado criticado por Popper) seria,
no máximo, algo como Amanhã choverá ou não choverá aqui. É somente nessa forma que o
enunciado verificado pode ser de fato verdadeiro. Todavia, enunciados desse tipo são destituídos
de interesse científico, pois são verdadeiros antes mesmo do confronto com a realidade. Já o
enunciado Amanhã choverá aqui é um enunciado científico, segundo Popper, pois é formulado de
modo que a experiência possa refutá-lo. Caso seja refutado, será mostrado somente o seu caráter de
boa expressão da realidade. É, numa palavra, um enunciado falseável.
Por outro lado, se Todo ser humano é mortal não é um enunciado científico, o enunciado Todos os
corvos são pretos é científico, pois sua formulação permite que ele seja refutado: bastará encontrar
um corvo não preto para refutá-lo. Isso não significa que o enunciado falseado deva ser
abandonado, pois um caso de corvo não preto pode ser uma absoluta exceção. Mas, se a teoria
contida nesse enunciado começar a perder força para outra teoria, então a primeira pode ser
considerada inteiramente falseada, em benefício da segunda, que explica melhor os fenômenos.
Em Matemática, a falseabilidade tem um impacto ainda maior, pois um caso que contrarie um
enunciado basta para obter a verdade do enunciado contrário. Por exemplo, quando se diz Para
todo objeto A, verifica-se a propriedade x; e quando se pode dizer, ao mesmo tempo, que Há ao
menos um objeto A que não verifica x, então se obtém a falsidade da primeira proposição e a verdade
da proposição contraditória: Algum objeto A não verifica x. Em termos lógicos, essa operação
corresponde ao quadrado das oposições (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 211-212).
BJØRN CHRISTIAN TØRRISSEN/WIKIMEDIA COMMONS
O fato de ser possível encontrar um corvo não preto torna científico, segundo Karl Popper, o enunciado Todos
os corvos são pretos.
O comportamento das regras matemáticas permite ilustrar a razão pela qual Karl Popper afirma
que, no limite, mesmo o procedimento indutivo só se aplicaria à falseabilidade, nunca à verificação.
Com efeito, recorrer a fatos singulares serve apenas para contrariar leis universais por um
procedimento lógico muito simples: o modus tollens (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p.
56). Mas a refutação seria praticada por dedução (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 47-
48 e 50), procedimento que lida com a verdade de certos enunciados e obtém conclusões
necessariamente verdadeiras, independentemente do recurso à experiência. Ícone: Texto filosófico
Karl Popper
O critério de demarcação inerente à Lógica Indutiva – isto é, o dogma positivista do significado –
equivale ao requisito de que todos os enunciados da ciência empírica (ou todos os enunciados
“significativos”) devem ser suscetíveis de serem, afinal, julgados com respeito à sua verdade e
falsidade; diremos que eles devem ser “conclusivamente julgáveis”. [...]
Ora, a meu ver, não existe a chamada indução. Nesses termos, inferências que levam a teorias,
partindo-se de enunciados singulares “verificados por experiência” (não importa o que isso possa
significar) são logicamente inadmissíveis. Consequentemente, as teorias nunca são empiricamente
verificáveis. Se quisermos evitar o erro positivista de eliminar os sistemas teóricos de ciência
natural, por força de um critério de demarcação que estabeleçamos, deveremos eleger um critério
que nos permita incluir, no domínio da ciência empírica, até mesmo enunciados insuscetíveis de
verificação.
Minha posição está alicerçada numa assimetria entre verificabilidade e falseabilidade, assimetria
que decorre da forma lógica dos enunciados universais. Esses enunciados nunca são deriváveis de
enunciados singulares, mas podem ser contraditados pelos enunciados singulares.
Consequentemente, é possível, por meio de recurso a inferências puramente dedutivas (com auxílio
do modus tollens da lógica tradicional) concluir acerca da falsidade de enunciados universais a
partir da verdade de enunciados singulares. Essa conclusão acerca da falsidade dos enunciados
universais é a única espécie de inferência estritamente dedutiva que atua, por assim dizer, em
“direção indutiva”, ou seja, de enunciados singulares para enunciados universais.
POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. Tradução Leónidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix, 2006. p.
41-43.
por Thomas Kuhn e a ideia de que os cientistas trabalham sempre no interior de um modelo ou
paradigma que influencia sua visão sobre os fatos. Em resumo, o que levaria a aceitar ou recusar
uma teoria seria a decisão dos cientistas, não a forma lógica pretensamente objetiva dos
enunciados, como queria Popper.
No entanto, o também filósofo da ciência Imre Lakatos (1922-1974) explica que o trabalho de Kuhn
consistia em mostrar que a ciência progride por refutação de projetos de pesquisa. Nesse sentido,
sua compreensão do procedimento científico preserva o princípio da falseabilidade, embora o tire
de certa “ingenuidade”, como se sua aplicação dependesse da objetividade dos enunciados, sem a
interferência do olhar dos grupos de cientistas.
EXERCÍCIO F
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 504
3. Por que Karl Popper recusa a ideia de verificação dos enunciados científicos?
4. Por que um enunciado como Todos os seres humanos são mortais não é falseável, segundo
Popper, ao passo que é falseável um enunciado como Todos os corvos são pretos?
Como grande parte dos cientistas naturais ainda opera com a ideia de que a Natureza segue leis
fixas e imutáveis, torna-se claro como as ciências naturais são insuficientes para investigar o ser
humano, uma vez que ele revela a possibilidade de dar sentido à sua própria existência, superando,
em alguma medida, os próprios condicionamentos naturais. Dessa constatação nasceram as
ciências humanas.
Ícone: Glossário 25 Hermenêutica: atitude filosófica que se dedica a estudar o que contribui para a produção e
a percepção de sentido nas diferentes visões de mundo.
Dilthey elaborou a diferença entre compreender e explicar. Dessas duas noções nascerá sua
distinção entre ciências naturais e ciências do espírito.
Segundo as práticas científicas observadas por Dilthey no fim do século XIX e início do século XX, a
atividade de explicar consistia em analisar os elementos que compõem as realidades estudadas e
em identificar as causas que levam esses elementos a produzir seus efeitos correspondentes. Tais
causas eram explicadas em termos de leis ou regularidades.
A atividade de explicar, então, exprime o método típico das ciências naturais, como dizia Dilthey em
referência às áreas do saber que se concentram nos aspectos físicos, químicos e biológicos da
realidade, ao passo que compreender equivale ao método das ciências do espírito. Com o passar do
tempo, as ciências do espírito receberam o nome de ciências humanas.
A Psicologia é um bom exemplo para perceber a distinção entre explicar e compreender. Ela pode
concentrar-se apenas nos aspectos causais das experiências humanas, buscando mostrar por que
elas ocorrem e baseando-se em um modelo explicativo segundo o qual uma experiência gera
sempre determinadas consequências. O trabalho do psicólogo poderá encontrar essas relações de
causa e efeito; sua psicologia será, então, uma ciência explicativa e natural. Mas a Psicologia
também pode ser descritiva e analítica, isto é, pode tratar o ser humano como um conjunto de
fatores bioquímico-físicos (constituição corpórea), psíquicos (vivências perceptivas e emocionais) e
espirituais (vivências de pensamento reflexivo e de liberdade). O trabalho do psicólogo, de acordo
com essa segunda metodologia, será encontrar ligações entre as experiências, além de ver a
experiência no singular, a experiência de uma pessoa, sem interpretá-la como apenas mais um caso
das relações entre causa e efeito do psiquismo. Pode considerar também as influências tanto
naturais quanto sociais, recebidas pelas pessoas, e descrever as conexões espontâneas que
aparecem na sua experiência como fontes de sentido não necessariamente preestabelecidas.
A indústria cultural produz cultura, hoje, como um conjunto de artigos de consumo. Atrofiando as capacidades
humanas, ela paralisa a criatividade e torna passivos os consumidores.
Trata-se da visão da pessoa como ser que pode operar com seus condicionamentos e participar do
sentido dado à própria existência. De acordo com esse modelo, a Psicologia será uma ciência
humana.
No século XX, o grupo de filósofos e sociólogos reunidos no Instituto para a Pesquisa Social, em
Frankfurt, foi um dos principais atores na reflexão sobre as ciências humanas. Dele participaram
principalmente Max Horkheimer (1895-1973), Herbert Marcuse (1898-1979), Theodor Adorno
(1903-1969), Walter Benjamin (1892- 1940) e Jürgen Habermas (1929-). O impacto de seus
trabalhos foi tão grande que eles passaram a ser conhecidos como Escola de Frankfurt.
tendências sociais não refletidas e terminam por se deixar formar passivamente por influências
sociais, políticas e econômicas. Curiosamente, porém, como descrevem diferentes membros da
Escola de Frankfurt, fala-se cada vez mais do valor do indivíduo no mundo contemporâneo. Por trás
desse discurso, oculta-se, na verdade, apenas a valorização do indivíduo que reproduz formas de
pensar e de agir determinadas por outros indivíduos e grupos influentes, sobretudo os que definem
a organização econômica da vida social.
Um exemplo claro desse fenômeno, segundo Adorno, vem da música popular, principalmente o jazz,
que se fortalecia na época em que ele viveu. O sucesso do jazz, na análise de Adorno, devia-se ao
fato de que essa modalidade de música explorava apenas sonoridades já conhecidas e promovia
uma repetição que levava os ouvintes a ficarem passivos, sem precisar de nenhum esforço para
responder à “língua” falada por aquele estilo musical. Imediatamente, os controladores do mercado
se serviram desse estilo para vende-lo e obter lucro, administrando os gostos das pessoas por meio
de suas estratégias de “incentivo à Cultura”.
O filósofo Herbert Marcuse (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 259) explorou essa
transformação da concepção do indivíduo como unidade básica da experiência humana, mostrando
que suas raízes estão na própria ideia de razão ou conhecimento racional que se impôs durante os
séculos XVI-XIX. Marcuse, assim, representa bastante bem o modo como a Escola de Frankfurt se
relaciona com o Iluminismo (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 222) e com as filosofias
que decorreram dele: é inegável o ganho que as luzes do pensamento moderno trouxeram à
Humanidade (por exemplo, com a ideia de uso individual da razão, de valor universal do ser
humano, de universalidade da experiência, de capacidade de sempre melhorar etc.). Junto dessas
luzes, porém, vieram também sombras (como o resultado da manipulação dos indivíduos em
massa, a perda da paixão como algo essencialmente ligado à razão, a transformação do prazer em
apenas um aspecto secundário da vida e em motor do consumo de bens materiais).
No livro Cultura e sociedade, Marcuse retoma o projeto filosófico dos hedonistas, pensadores que
insistiam na importância do prazer como princípio estruturante da existência dos indivíduos e dos
grupos (o termo hedonista vem da palavra grega hedoné, “prazer”). Segundo Marcuse, defender
apenas a importância da razão significa conservar a estrutura social, econômica e política que o
mundo moderno produziu. Nessa concepção, os sentidos, o corpo, a materialidade humana
permanecem como dimensões inferiores e desprezíveis . O ser humano é valorizado apenas pelo
26
que faz socialmente, sobretudo por seu trabalho; e o lazer passa a ser visto como algo menos
importante, quase uma ocasião de culpabilidade. De um ponto de vista hedonista, porém, o prazer é
uma necessidade que constitui o indivíduo tanto quanto seu pensamento reflexivo ou seu trabalho.
O desafio que se apresenta hoje é identificar os modos como as sociedades estruturadas em torno
da produção e do consumo tomam posse também do prazer e do lazer, transformando-os em
mercadoria e dando a ilusão de que o indivíduo é valorizado, quando, na verdade, o que continua é
o controle das práticas sociais por grupos detentores de poder e movidos por interesses de
dominação econômica. Ícone: Texto filosófico
Observe como o texto de Marcuse se constrói por uma série de contraposições entre a filosofia da
razão e o hedonismo. Seu núcleo, porém, pode ser encontrado na contraposição básica entre
universalidade e individualidade, como fica bastante claro a partir das linhas 2-8 . A filosofia da
razão concentra-se na universalidade e, promovendo o “desenvolvimento das forças de produção, a
elaboração livre e racional das condições de vida, a dominação da Natureza”, concebe os indivíduos
apenas como seres socializados, quer dizer, vistos somente como membros da Sociedade. O
resultado disso é que a filosofia da razão perde os indivíduos realmente existentes, os indivíduos
“empíricos”, dotados de possibilidades e necessidades que não podem ser compreendidas apenas
com referência à vida social.
O hedonismo ou a “filosofia da felicidade” (expressão que Marcuse não usa, mas que parece
adequada como referência à sua análise) não cai necessariamente no individualismo. Como se pode
ler nas linhas 24- 28, Marcuse aponta para a possibilidade de associar o hedonismo ou a atenção à
individualidade com a universalidade. Para tanto, é preciso conceber e formar forças históricas que
permitam construir uma “verdadeira universalidade”, aquela que considere e faça justiça à base
individual (subjetiva) de toda visão geral (objetiva) sobre o ser humano. Caso essa nova
universalidade não seja encontrada, mesmo a crítica da universalidade que hoje se encontra
estabelecida(reificada ou transformada em coisa, como se ela fosse objetiva) só fará com que os
indivíduos caiam ainda mais no isolamento e no aprofundamento do que os desune.
Da perspectiva do trabalho de filósofos como Herbert Marcuse, dos demais membros da Escola de
Frankfurt, de Dilthey e de tantos outros, a reflexão filosófica permanece como uma testemunha da
importância de questionar conceitos como “conhecimento objetivo” ou “conhecimento natural” por
oposição à Cultura. A realidade humana é de tal modo complexa que somente uma abordagem
atenta aos seus vários aspectos pode ser menos inadequada.
Herbert Marcuse
A filosofia idealista da época burguesa tentou apreender sob o nome de razão o conceito universal
que devia realizar-se nos indivíduos. O indivíduo aparece como um Eu isolado dos outros em seus
desejos, pensamentos e interesses. [...] Na medida em que o indivíduo só pode participar dessa
universalidade enquanto ser dotado de razão e não com a multiplicidade empírica de suas 27
necessidades e faculdades , uma tal ideia de razão já implica o sacrifício do indivíduo. [...] O
28 29
forças de produção, a elaboração livre e racional das condições de vida, a dominação da Natureza, a
autonomia crítica dos indivíduos socializados. Quanto ao hedonismo, ele conserva o desabrochar e
a satisfação das necessidades humanas, a liberação de um processo de trabalho desumano, a
disponibilidade do mundo para o prazer. A ideia da razão visa a uma universalidade na qual os
interesses antagônicos dos indivíduos “empíricos” são suprimidos; mas, nessa universalidade, a
31
verdadeira satisfação dos indivíduos, sua felicidade, permanece um elemento estranho, exterior,
que deve ser sacrificado. Não há harmonia possível entre o interesse geral e os interesses
particulares, entre a razão e a felicidade: o indivíduo é vítima de uma ilusão quando acredita
perceber uma correspondência entre os dois gêneros de interesse: a razão desconsidera os
indivíduos. O verdadeiro interesse, o da universalidade, objetiva-se para os indivíduos e toma a
forma de uma potência que os domina. Com a ideia de felicidade, o hedonismo procura manter o
32
Mas o protesto contra a universalidade reificada e os sacrifícios desprovidos de sentido que ela
34 35
exige só pode nos fazer penetrar ainda mais no isolamento e antagonismo entre os indivíduos 36
enquanto não forem formadas e concebidas as forças históricas que poderão transformar a
sociedade existente em uma verdadeira universalidade. A felicidade permanece para o hedonismo
essencialmente subjetiva ; coloca o interesse particular do indivíduo, tal como aparece, como o
37
verdadeiro interesse e toma sua defesa contra toda forma de universalidade. Tal é o limite do
hedonismo, aquilo que o aparenta ao individualismo, produto da concorrência.
MARCUSE, Herbert. Cultura e sociedade. Tradução Olgária Matos. Apud: MATOS, O. A Escola de Frankfurt – Luzes e sombras do
Iluminismo. São Paulo; Moderna, 1993. p. 104-107. (Coleção Lógos)
Ícone: Glossário 27 Empírico: aqui, significa algo físico, corpóreo. Não é necessariamente uma referência ao
empirismo ( p. 336).
28 Faculdade: capacidade.
29 Implicar: resultar em.
31 Antagônico: contrário.
32 Potência: força.
35 Desprovido: vazio.
EXERCÍCIO G
Ícone: Remissão ao Manual do Professor p. 504
3. Considere o caso da Psicologia como exemplo que explica a diferença entre explicar e
compreender.
4. Explique por que Herbert Marcuse pode ser tomado como um representante do modo como
a Escola de Frankfurt se relaciona com o Iluminismo ou a razão iluminista.
EXERCÍCIOS COMPLEMENTARES
1 Dissertação A
Componha uma dissertação de problematização (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 106)
para apresentar as concepções racionalista e empirista do conhecimento. Nos três passos da
dissertação, considere o pensamento de Descartes como tese, o de Hume como antítese e o de Kant
como síntese.
2 Dissertação B
Componha uma dissertação de síntese filosófica (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 138)
para apresentar as concepções de conhecimento segundo Wittgenstein e Husserl.
3 Dissertação C
Componha uma dissertação de problematização (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 106)
para apresentar as concepções de conhecimento científico segundo Kuhn e Popper. Nos três passos
da dissertação, considere o pensamento de Kuhn como tese, o de Popper como antítese e o de
Lakatos como síntese.
4 Pesquisa
• UFPE: <https://www.ufpe.br/ufpenova>.
5 Comparação
Como forma de conhecer diferentes concepções de conhecimento na Filosofia, nas ciências naturais
e nas ciências humanas, sugerimos que você assista, em casa ou na escola, aos seguintes vídeos
(todos acessados em 20 jan. 2016):
Acesse:
• Os caminhos das ciências sociais, com alunos e professores da Fundação Getúlio Vargas e da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2013:
<https://www.youtube.com/watch?v=rBsICU0J7NE>.
Acesse:
Página 366
Ícone: Dica de filmes Dicas de filmes para você assistir tendo em mente o que trabalhamos
neste capítulo
No Japão do século XI, um lenhador, um sacerdote e um camponês procuram abrigo em um mesmo lugar
durante uma tempestade. O sacerdote conta os detalhes de um julgamento a que ele havia assistido. Nesse
julgamento, houve quatro testemunhos, que são reconstruídos pelo filme como quatro maneiras diferentes de
falar da consciência e da verdade. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=HUo fdNkjvyo>.
Acesso em: 20 jan. 2016.
Acesse:
Sociedade dos poetas mortos (Dead Poets Society), direção Peter Weir, EUA, 1989.
Em uma escola tradicional norte-americana, o novo professor de Literatura entra em choque com a direção
por escapar dos conteúdos “objetivos” e apresentar novas maneiras de pensar aos estudantes.
O filme reconstrói a história criada por Mary Shelley em seu livro Frankenstein. Perguntando-se sobre a
essência da vida, o Dr. Victor Frankenstein cria um ser vivo com tecidos de cadáveres e outros materiais.
Assustado com a feiura de sua criatura, ele a rejeita, considerando-a um monstro. O “monstro” passa, então, a
andar pelo mundo e sofre com a discriminação e o desgosto das pessoas. Torna-se mau por causa da rejeição,
mas, desesperado, procura seu criador e promete parar de fazer o mal caso uma companheira seja criada para
ele. A continuação da história é surpreendente e põe diante de todos nós a pergunta sobre o sonho humano de
poder “saber tudo” e controlar tudo.
Acesse:
Fenomenologia e existencialismo, CPFL, 2008. Disponível em: <https:// vimeo.com/62380957>. Acesso em: 9
dez. 2015.
Aula dada pelo professor e filósofo Franklin Leopoldo e Silva sobre o tema “Fenomenologia e existencialismo:
de Husserl a Sartre”.
Acesse:
Acesse:
Síntese das posições de alguns dos principais filósofos da ciência, concluindo com uma apresentação da
reflexão sobre os métodos em Ciências Sociais. O vídeo foi feito na disciplina Epistemologia das Ciências
Sociais, ministrada pela professora Marilis de Almeida, na UFRGS.
Vida de Galileu, de Bertold Brecht. In: Teatro completo de Bertold Brecht, v. 6, tradução Antonio Bulhões,
Roberto Schwarz e Geir Campos, Paz e Terra, 1991; Record, 2003.
O famoso dramaturgo alemão Bertold Brecht (1898-1956) apresenta alguns momentos da vida de Galileu para
refletir sobre as relações entre saber científico e vida social.
Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, tradução Lino Vallandro, Globo, 2015.
Romance que imagina um tempo em que as pessoas serão condicionadas biológica e psicologicamente a viver
em harmonia entre si e com as regras sociais. Livro clássico e de grande impacto.
Monumento da literatura mundial. O tempo, a consciência, a memória e a busca de si são os temas que
perpassam os diferentes volumes da obra. Recomendamos especialmente o primeiro, No caminho de Swann, e
o último, O tempo redescoberto.
Livro repleto de humor, explora caricaturas modernas de pessoas preocupadas com a saúde da mente.
Página 367
As palavras e as coisas, de Michel Foucault, tradução Salma Tannus Muchail, Martins Fontes, 2000.
Clássico da filosofia contemporânea. É uma apresentação das concepções de ciência que caracterizaram a
experiência ocidental desde o Renascimento e contém uma proposta original para entender a estruturação da
experiência.
Tudo que é sólido desmancha no ar, de Marshall Berman, tradução Carlos Felipe Moisés, Companhia das
Letras, 2007.
Estudo do pensamento moderno por meio das ideias de experiência histórica, Literatura e projeto filosófico.
Investiga as consequências da tensão existente entre a visão do conhecimento como experiência e como
construção.
Estudo de temas centrais na reflexão sobre o conhecimento, principalmente a distinção entre conhecer e ter
opinião verdadeira; evidência e justificação; critérios de conhecimento; aparência, realidade e verdade.
Visão filosófica que mostra como a tecnologia não se reduz à engenharia, mas afeta e desafia todas as áreas da
experiência humana, pois envolve visões de mundo, concepções de conhecimento, estética, ética e política.
p. 507
Sugestões bibliográficas
A verdade liberta, de Alice Miller, WMF Martins Fontes, 2004.
A obra explora a experiência da verdade na tradição psicológica e psicanalítica. Embora não se possa garantir
que a verdade reconstruída pelo paciente em análise corresponde a uma verdade “objetiva” sobre o que
ocorreu em sua história pessoal, também não se pode negar que a verdade por ele reconstruída traz resultados
impressionantes, rumo à sua pacificação. Desse ponto de vista, trata-se, portanto, de uma “verdade”.
O filósofo italiano Luigi Pareyson propõe uma compreensão da verdade imersa na História. Investiga o
conceito de interpretação como capaz de satisfazer exigências vindas das mais diversas filosofias e das ciências
humanas.
Indústria cultural e meios de comunicação, de Rodrigo Duarte, WMF Martins Fontes, 2014.
Coleção Filosofias: o prazer do pensar. Concentrando sua reflexão no fenômeno do entretenimento de massa, o
autor estuda os meandros da indústria de massa e a relaciona com o funcionamento dos meios de
comunicação, com a divisão do trabalho e com a realidade virtual.
Teoria e experiência, de Marcelo Carvalho, WMF Martins Fontes, 2013. Coleção Filosofias: o prazer do pensar.
O autor correlaciona teoria e experiência, partindo do pensamento aristotélico e chegando em questões atuais
suscitadas pela formação da ciência moderna e pela filosofia kantiana.
Percepção e imaginação, de Sílvia Faustino Assis Saes, WMF Martins Fontes, 2010. Coleção Filosofias: o prazer
do pensar.
Estudo das noções de percepção e imaginação segundo as tradições empirista e racionalista e um contraponto
com o pensamento de Wittgenstein.
O conhecimento científico, de Claudemir Roque Tossato, WMF Martins Fontes, 2013. Coleção Filosofias: o prazer
do pensar. Procurando clarear diferentes métodos usados nas ciências, o autor propõe uma definição filosófica
do conhecimento científico.
Sites com revistas gratuitas de Filosofia, centradas no tema do conhecimento (acesso para todas: 9 dez.
2015):
Acesse:
Acesse:
Acesse:
Acesse:
Quando vemos a Filosofia em sua história, percebemos como nossos amigos mais velhos, os
filósofos e as filósofas, abriram estradas que podemos percorrer em nossos dias, acompanhados
por esses homens e mulheres que se dedicaram à aventura de pensar sobre o pensamento!
Página 369
UNIDADE
história
3 A Filosofia e sua
Paul Gauguin (1848-1903), De onde viemos? Quem somos? Para onde vamos?, 1897-1898, óleo sobre tela.
Reelaborando elementos de diferentes culturas, Paul Gauguin chama a atenção para a inquietação filosófica –
materializada, segundo ele, nas perguntas Quem somos nós? De onde vimos? Para onde vamos? – que pode ser
vivida por mulheres e homens de todos os povos e épocas.
A História da Filosofia é a história das filosofias, registro das mais variadas reflexões filosóficas
desenvolvidas ao longo do tempo.
Adotaremos a divisão temporal que os historiadores aplicam à História Geral (História Antiga,
História Medieval, Renascimento, História Moderna e História Contemporânea), mas chamamos
desde já sua atenção para o fato de que essa divisão é problemática e precisa ser relativizada. Ela
contém incoerências como, por exemplo, a de fazer pensar em uma “evolução histórica” da
Humanidade, dos tempos antigos até hoje. Ora, nada permite afirmar que os seres humanos estão
realmente em um processo de “evolução”, como se em cada período histórico todos aprendessem
com o período histórico anterior e assim entrassem em um “aperfeiçoamento”. A própria ideia de
“período” é frágil, pois as unidades usadas para dividir a História da Humanidade (anos, séculos,
milênios) são simples convenções; e, se são convenções, caberia perguntar sobre o que justifica
dividir os tempos dos seres humanos em períodos: as mudanças políticas? Econômicas? Religiosas?
Artísticas? Científicas?
Aplicada à História da Filosofia, a divisão tradicional ocasiona ainda outras dificuldades. Por
exemplo, a expressão filosofia antiga pode dar a impressão de que os filósofos da Antiguidade
foram “ultrapassados” pelos que vieram depois. Nada mais ilusório, sobretudo quando se percebe
que ideias de filósofos antigos como Heráclito, Parmênides, os sofistas, Sócrates (Ícone: Conteúdo
tratado em outra página p. 157), Platão (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 82) e
Aristóteles (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 103) continuam vivas ainda hoje,
permitindo mesmo a pensadores contemporâneos estruturar partes de seus pensamentos.
Página 371
Por outro lado, ao falar de filosofia contemporânea, é difícil pretender que ela tenha alguma
identidade única. O que significaria dizer que filósofos tão diferentes como Hegel (p. 270), Husserl
(Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 353), Wittgenstein (Ícone: Conteúdo tratado em outra
página p. 76), Bergson, Merleau-Ponty (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 130), Sartre (p.
323), Derrida (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 114) e Deleuze pertencem à “filosofia
contemporânea”?
Em Filosofia, a divisão segundo períodos históricos funciona simplesmente como critério para
classificar os pensadores por meio de uma convenção temporal, facilitando lembrar quando eles
viveram. Ela não deve ser tomada como sinal de alguma “identidade” que os filósofos teriam em
função de seu tempo.
Naquele momento, os gregos já cultivavam uma forma de pensamento que se costuma chamar de
pensamento mítico ou mitologia: um pensamento baseado em narrativas que relacionavam os
vários aspectos da realidade procurando dar um sentido para a totalidade das coisas (o mundo, os
seres humanos, os amores, as guerras etc.). Essas narrativas chamavam-se mitos (mythoi, no plural;
mythos, no singular).
(2) elas tratavam do mundo em relação direta com o Sagrado (eram, portanto, religiosas).
Em vez disso, os gregos acreditavam que existiu um caos inicial, um material desorganizado e no
qual os deuses puseram ordem. De tempos em tempos tudo seria destruído, mas o material ou a
base de tudo continuava e dava origem a novos ciclos de existência. A esse material inicial os gregos
chamavam de phýsis; e ao princípio eterno ou ao dado que permite explicar a transformação das
coisas chamavam de arché.
Além da phýsis e da arché, os gregos acreditavam também em uma vitalidade ou uma força que se
manifesta em tudo, algo como uma “vida” que anima a phýsis. A essa vitalidade eles davam o nome
de psyché (que se traduz em português por psique ou alma). Tudo revela dinamismo,
principalmente os seres vivos, a cujo respeito se pode falar duplamente de arché: ela é phýsis e
psyché.
essa “origem” do mundo sem um “começo” ou uma “criação”, analisemos um exemplo: os gregos
falavam da “origem” da morte. Tratar da origem da morte não é algo fácil, pois a morte não é
exatamente uma coisa que existe; ela é a falta de alguma coisa, falta de vida. Ora, se a morte não é
uma coisa que existe, então ela não pode ser feita, começada ou criada. Até dizemos que a morte é
causada por uma doença, por um acidente ou por um desgaste natural do corpo. Nada disso, porém,
produz uma “coisa” que receberia o nome de morte. Assim, a morte não tem propriamente uma
origem em sentido material e temporal, porque ela simplesmente é o fim da vida e, como tal, ela não
é nada em si mesma.
Mas não resta dúvida de que a morte é um acontecimento: é a interrupção da vida individual tal
como a conhecemos. Ora, se ela é um acontecimento, pode-se perguntar por que ela ocorre ou por
que os seres vivos morrem. Em outras palavras: por que há morte no mundo? Responder a esse
porquê é encontrar o sentido ou a razão da morte, a sua origem entendida não como explicação de
casos particulares (“por que este indivíduo morreu?”) nem como começo material e temporal (as
causas físicas da morte), mas como procedência ou fonte de identidade (a causa que permite
explicar a morte em geral, o seu sentido ou razão).
HESÍODO. Os trabalhos e os dias. Tradução Mary de Camargo N. Lafer. São Paulo: Iluminuras, 1991. p. 29.
3 Alçando: levantando.
5 Égide: escudo; proteção. Porta-égide é quem carrega um escudo; por isso, é o símbolo da força de Zeus.
6Agrega-nuvens: que junta nuvens; título para representar o poder de Zeus, que conseguia transformar-se em
nuvens para visitar uma de suas amantes, Ió, filha de Ínaco, deus de um rio.
7 Pesar: sofrimento.
O poeta Hesíodo, que viveu no século VIII a.C., narrava o mito de Prometeu (Ícone: Conteúdo
tratado em outra página p. 313) para explicar a origem da morte. Ao ser trapaceado por Prometeu,
Zeus introduziu a morte na vida humana. Essa é a origem da morte. Em outras palavras, os
humanos morrem porque, um dia, foram punidos. Zeus, indignado, mandou o deus Hefesto (deus do
fogo e patrono dos artesãos) fabricar a primeira mulher, que seria oferecida aos homens para
agradá-los e enganá-los. Zeus conseguiu ainda que os outros deuses participassem nessa operação.
Assim, cada deus, segundo sua especialidade, ofereceu à primeira mulher um presente. Entre os
deuses estava Hermes, porta-voz dos deuses e criador das medidas. Ele ensinou a mentira e a
astúcia a essa mulher. Mas, ao ser dada aos humanos, ela não foi enviada diretamente a Prometeu,
que “via antes” e podia entender o plano dos deuses, mas a seu irmão Epimeteu, “aquele que só
pensa depois de agir”. Incapaz de prever as coisas e de adiantar os acontecimentos, Epimeteu só
entendeu quem era essa mulher quando ela começou a distribuir seus presentes aos humanos.
Ela se chamava Pandora, nome que significa “aquela que tem todos os dons, todos os presentes”. Os
presentes “todos” incluíam coisas boas e também más. Pandora carregava um jarro de onde tirou
tudo o que aflige os seres humanos, inclusive o sofrimento e a morte. No fundo do jarro havia a
esperança ou a expectação (espera de coisas negativas e positivas). Se fosse tirada do jarro, a
esperança ou a expectação
Página 373
suavizaria a vida humana. O caráter trágico do mito de Hesíodo está em que, na sua narrativa, todos
os “presentes” foram liberados, menos a esperança. Ícone: Texto filosófico
Especialistas como Werner Jaeger (1888-1961) explicam que, no mito de Pandora, o objetivo de
Hesíodo era dizer que há uma justiça no mundo, dada pela inteligência de Zeus, da qual ninguém
podia escapar, embora essa justiça não significasse que os seres humanos eram amaldiçoados. Ela
se dirigia a todos em geral, e não às pessoas individualmente.
Hesíodo representava, assim, a sabedoria grega desenvolvida ao longo do tempo. Em seus poemas,
principalmente Os trabalhos e os dias, ele também denunciava quem adquire bens de maneira
ilegítima. Assim, mesmo afirmando haver males que nem sempre dependem dos seres humanos
(recebidos de Pandora), há males produzidos pelos próprios humanos. Hesíodo ia além da simples
ideia de que todos os sofrimentos vêm dos deuses. A Natureza iguala a todos perante o sofrimento;
os humanos, porém, podem melhorar ou piorar essa condição. A morte vem da desobediência de
Prometeu e dos presentes de Pandora, mas a vida não é apenas sofrimento.
Hesíodo pretendia também defender a ideia de que uma vida justa, prudente e refletida é melhor do
que uma vida entregue à busca de bens ou uma vida sem reflexão. Como diz Werner Jaeger, Hesíodo
cantava a virtude do ser humano trabalhador, que percebe as variações da vida e não se ilude
diante dos bens (como fazem os ricos, ao confiar demais em sua própria força e ao não pensar na
morte).
2 O nascimento da Filosofia
A compreensão da origem como causa ou fonte de sentido, com o exemplo da origem da morte,
permite entender o nascimento histórico da Filosofia.
Vejamos este pequeno texto, escrito pelo filósofo Simplício. Ele viveu no século VI da Era Cristã e é
uma das fontes para conhecermos o pensamento do primeiro filósofo, Tales de Mileto (±625-537
a.C.), visto que os textos do próprio Tales se perderam:
SIMPLÍCIO. Commentaire sur la Physique d’Aristote. In: DUMONT, Jean-Paul (Éd.). Les écoles présocratiques. Paris: Gallimard, 1991.
p. 24. (Comentário à Física de Aristóteles. Tradução nossa.)
Você talvez se pergunte: o que esse texto sobre a água faz aqui se vínhamos falando da origem da
morte?
É exatamente isso que nos interessa. Você pode identificar, no meio do texto de Simplício, o modo
como ele narra a explicação de Tales de Mileto para a origem da morte: “os cadáveres que se
decompõem passam por um secamento” (linhas 9-10).
Tales deixa de fazer referência direta aos deuses. O processo que resulta na morte até pode ser
entendido como obra dos deuses; e Tales continuará a fazer referência a eles em outros textos. No
entanto, neste caso preciso, o da origem da morte, Tales procura outro tipo de compreensão: em
vez de recorrer à punição divina, ele busca observar a origem da morte no processo mesmo de
morrer. Ao constatar que algo morre porque perde umidade (seca), Tales conclui que o material ou
elemento básico (phýsis)
Página 374
que forma todas as coisas, o material do caos que os deuses organizaram, era a água.
Diferentemente da água que vemos sair da torneira ou correr nos rios, a água de que fala Tales é
uma água “pensada”, “imaginada”, quer dizer, transformada em sentido (arché) de tudo o que
existe. Se tudo o que é vivo tem alguma umidade e se tudo o que morre perde umidade, então a
umidade deve ser o elemento que constitui todas as coisas, inclusive as não vivas. A umidade passa
a ser vista como a “origem” de tudo.
Simplício lembra, ainda, que, para Tales, a Terra flutua sobre a água e a água é a origem material e
explicativa (phýsis/arché) que está por trás das aparências das coisas percebidas por meio dos
cinco sentidos.
Esse dado é fácil de compreender se tivermos em mente que Tales, em uma provável viagem ao
Egito, conheceu o modo como os egípcios (cuja mentalidade era formada pela importância da água,
principalmente por causa das cheias do Rio Nilo) representavam a Terra como um prato raso,
flutuando sobre a água.
Quanto à afirmação sobre a aparência das coisas, já na mitologia grega os poetas operavam com a
oposição entre a aparência e o princípio invisível que age por trás das aparências. Em continuidade
com o modo de pensar mítico, Tales introduz um elemento novo: o princípio invisível pode ser
encontrado por meio daobservação das aparências. Tal observação, por sua vez, pode ser entendida
e avaliada por todos aqueles que olham para o mundo com atenção.
Neste ponto, a Filosofia começa a ver a luz do dia, ou seja, começa a surgir de dentro da mitologia e
em continuidade com ela, para, aos poucos, percorrer um caminho lento que a levará a se descolar
dela.
O modo como o pensamento de Tales é construído permite que qualquer pessoa disposta a seguir
com atenção seus raciocínios obtenha compreensão do que ele defende. Tudo o que Tales afirma
pode ser discutido com base na vivência cotidiana. Tales inaugura, assim, um novo modo de olhar
para o mundo e explicá-lo. A mitologia já incentivava esse tipo de pensamento, levando a raciocinar
em termos de origem, causas, efeitos etc., mas ela sempre se referia ao Sagrado (algo que, a rigor,
não pode ser observado por meio dos cinco sentidos). Agora, com Tales de Mileto, esse modo de
pensar deixa de remeter diretamente aos deuses e começa a se fixar na observação do mundo.
Nasce a Filosofia.
O novo modo de captar o sentido das coisas por meio da observação daquilo que os cinco sentidos
conseguem colher passou a ser considerado a capacidade humana específica de conhecer: a razão.
Segundo o vocabulário dos primeiros filósofos, a razão é a capacidade e, ao mesmo tempo, o
caminho (método) para conhecer a razão das coisas, bem como para exprimir as coisas. Em grego,
uma mesma palavra, lógos, designa a razão como capacidade, método, sentido das coisas e
expressão das coisas.
Dessa perspectiva, se Tales podia dizer que a phýsis é a água ou o úmido, ele não precisava mais
recorrer aos deuses para explicar por que há vida e por que há morte. A origem da vida será o
ganho de água; a origem da morte será a perda de água. Se nada vem do nada nem vai para o nada,
então a morte não é o fim da vida para Tales, e sim uma transformação pela qual cada coisa perde
sua matéria básica, a água. Essa água, por sua vez, voltando ao caos original, pode manifestar-se
depois sob outras formas.
O texto de Simplício menciona outro filósofo da época de Tales, Hípon, que teria sido irreverente
em relação aos deuses. Hípon não negava a existência dos deuses; apenas não recorria a eles para
explicar o mundo. Sua “irreverência”, no fundo, era a mesma de Tales. Tratava-se de explicar o
mundo, tanto quanto possível, apenas com base no próprio mundo que se reflete na razão humana
e é observado na transformação das coisas. Ao processo de transformação constante Tales chamava
de movimento ou devir.
Essa forma de pensamento consagrada por Tales foi tão importante para o mundo antigo que o
filósofo Proclo (412-485), nascido em Bizâncio e falecido em Atenas, chegou a afirmar que Tales a
desenvolveu com base no procedimento matemático aprendido com os egípcios. Vejamos:
Página 375
PROCLO. Commentaire au premier livre des Éléments d’Euclide. In: DUMONT, Jean-Paul (Éd.). Les écoles présocratiques. Paris:
Gallimard, 1991. p. 22. (Comentário ao primeiro livro dos Elementos de Euclides. Tradução nossa.)
Observe que Proclo chama a atenção para a base empírica (Ícone: Conteúdo tratado em outra
página p. 336) da pesquisa de Tales e para a generalização abstrata. Enfatizando o que percebemos
pelos cinco sentidos e mostrando que a razão pode captar aquilo que faz as coisas serem do modo
como as percebemos (quer dizer, a phýsis), Tales fazia generalizações abstratas; não dizia coisas
que valiam apenas para cada situação particular, mas que eram válidas em qualquer lugar e em
qualquer tempo.
Seguindo a indicação de Proclo, exploremos um exemplo concreto: o modo como Tales, em sua
provável viagem ao Egito, teria observado as técnicas de medição das terras férteis deixadas pela
baixa das águas do Nilo. Ele teria surpreendido os anfitriões ao calcular a altura de uma pirâmide
sem precisar medi-la diretamente; em vez disso, ele teria feito um procedimento matemático que
ficou conhecido como o Teorema de Tales. Esse teorema permite calcular a medida de um triângulo
com base em outro triângulo semelhante, isto é, com ângulos iguais e lados diferentes.
A base do procedimento foi o fato constatado por Tales: se traçamos uma linha paralela à altura de
um triângulo, obtemos outro triângulo correspondente ao primeiro. Tales plantou, então, um
bastão na areia (ou ele mesmo ficou na posição desse bastão), de modo que a extremidade superior
do bastão atingia o triângulo de sombra desenhado pelo Sol atrás da pirâmide. Veja o desenho
abaixo.
pixabay
O triângulo menor MNA (sendo que o lado MN corresponde ao bastão que Tales pôs na areia ou à
altura do próprio filósofo) é semelhante ao triângulo ABC (BC corresponde à altura da pirâmide). A
relação entre a altura do bastão (ou a altura do próprio Tales) e a altura da pirâmide é a mesma
relação entre a base NA e a base CA. Como essas duas últimas medidas são conhecidas e como a
medida da altura do bastão (ou de Tales) é conhecida, Tales calculou a altura da pirâmide.
Essa história, talvez lendária, ilustra a diferença entre o modo como Tales e os gregos em geral
passaram a tratar os conhecimentos matemáticos aprendidos com os egípcios. Os egípcios eram
afiadíssimos nas técnicas para medir as terras que ficavam férteis depois que as águas do Nilo
baixavam; dispunham de tabelas de números que os auxiliavam, mas estudavam Matemática em
função de resultados práticos. Não se preocupavam com a exatidão ou com a universalização
abstrata que Proclo atribui a Tales.
A abstração dos gregos era justamente uma característica que os diferenciava no estudo da
Matemática. Abstrair significa tomar distância de situações particulares, concretas, a fim de tentar
entender e
Página 376
exprimir o princípio explicativo (arché) que está por trás dessas mesmas situações particulares. No
caso da pirâmide, enquanto os egípcios precisavam subir nela para medi-la com réguas, Tales
aplicou uma relação numérica abstrata e já conhecida e calculou a altura da mesma pirâmide.
Houve também uma invenção grega (nascida da mesma atitude de abstração) que contribuiu
decisivamente para o surgimento da Filosofia: a Política. Nesse quesito, os gregos foram realmente
inventores.
Pelo menos do século XVII até o século XI antes de Cristo, os gregos viveram segundo uma estrutura
social organizada em torno de palácios. A unidade sociopolítica e econômica era o génos, com um
chefe (geralmente o mais velho do grupo), chamado basileus, o “rei”; havia um sistema de
propriedade comunitária da terra, com uma economia de subsistência. Cada unidade ou génos era
autônoma. Com o passar do tempo, os membros de cada génos passaram a separar parcelas de terra
e a declará-las propriedade privada familiar. Por volta do século VIII, a igualdade primitiva estava
desfeita e os novos donos de terras contestavam a autoridade dos “reis”. Esses donos passaram a
formar o Conselho dos Anciãos; e os “reis”, aos poucos, passaram a ser figuras meramente religiosas.
Entre os séculos VIII e VI a.C., o Poder passou a ser exercido pela aristocracia agrária e a ser
transmitido por descendência no interior de cada génos. Com a aproximação dessas comunidades,
movidas pelo comércio, pela criação dos rebanhos e pela necessidade de proteção, formaram-se as
cidades, com governo próprio. Cada pólis (cidade) tinha seu governo e constituía um Estado. O
modelo de cidade-Estado (p. 206), porém, não é uma invenção grega, pois já os mesopotâmios e
fenícios o adotavam. No entanto, na Mesopotâmia, o poder era concentrado por um grupo de
sacerdotes que controlava as terras (chamadas depropriedades dos deuses). Com as cidades-Estados
gregas, ao contrário, o Poder era dividido entre os cidadãos; o rumo da cidade dependia das
decisões tomadas em comum.
Nem todos os habitantes das cidades-Estados eram considerados cidadãos, mas apenas os homens
adultos, gregos e livres. Mulheres, crianças, estrangeiros e escravos não tinham cidadania e,
portanto, não participavam do governo da cidade. Apesar dessa desigualdade, o sistema de governo
da pólis grega favoreceu o surgimento da Filosofia, pois a divisão do Poder entre os cidadãos e a
tomada comum de decisões contribuiu para a atividade de abstração.
Com efeito, pode-se afirmar que os gregos inventaram a Política, posto que eles desenvolveram
técnicas de pensamento para organizar a participação dos cidadãos nas decisões da cidade. Essas
técnicas e pensamentos constituíam um conjunto de regras previamente estabelecidas para a
realização dos debates que decidiam os rumos da cidade. Os gregos passaram, por exemplo, a
operar com a ideia de lei como manifestação do pensamento de um grupo; também elaboraram a
ideia de espaço público (a ágora ou praça), onde quem tomasse a palavra devia falar de maneira
convincente, apontando razões que pudessem ser avaliadas por todos.
A Política como prática desenvolveu, assim, uma atenção especial ao discurso de convencimento. Só
era ouvido e só tinha crédito quem respeitasse as regras do jogo político e apresentasse razões para
ser levado a sério. Torna-se compreensível, então, como a Política contribuiu para o surgimento
histórico do discurso filosófico, centrando-se nas questões humanas e visando sempre ao
convencimento com base em razões universais, debatidas e formuladas conjuntamente em público.
A mitologia, nesse contexto, continuou a existir. Foi por um longo processo de descolamento que a
Filosofia se separou dela.
3 As filosofias antigas
De modo geral, as filosofias antigas ou as filosofias praticadas na Antiguidade foram marcadas pelos
contornos desenhados pelos primeiros filósofos.
Foi central, nesse período, a pesquisa sobre a phýsis, o elemento material primordial que está na
origem de todas as coisas. Esse elemento, sendo explicativo, é também visto como arché, princípio,
origem ou regra que permite falar com coerência sobre tudo. As coisas eram entendidas como
dotadas de um constante
Página 377
movimento ou uma constante transformação; e tudo era concebido como manifestação da phýsis.
Alguns pensadores antigos farão a Filosofia nascente “rir” de si mesma, denunciando as ciladas que
a razão armava para si em sua tentativa de explicar tudo. É o caso dos cínicos, como Diógenes (404-
323 a.C.), da cidade de Sinope, também conhecido como “Diógenes, o Cão”, ou ainda Pirro (360-270
a.C.), da cidade de Élis, inspirador do ceticismo (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 340).
Ainda no contexto do mundo antigo surgiram duas formas filosóficas importantíssimas. Trata-se do
trabalho de dois gigantes do pensamento: Fílon (15 a.C.-50 d.C.), da cidade de Alexandria, e Plotino
(205-270 d.C.), da cidade de Licópolis, no Egito, mas que desenvolveu sua escola filosófica em
Roma.
Outro resultado do trabalho de Fílon foi a concepção do ser divino como um ser transcendente
(Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 80 e 339). Se Deus tem o poder de criar tudo o que
quer, então ele é diferente do mundo; ele ultrapassa o mundo em todos os sentidos. Essa é uma
ideia inteiramente nova no pensamento grego. Platão já havia apontado para o Bem como uma
realidade que dá o sentido de tudo e, portanto, ultrapassa -o (transcendência); porém, não o havia
entendido como criador, tal como fez Fílon de Alexandria.
Ideias semelhantes às de Fílon podem ser encontradas em Plotino, embora ele não fosse judeu nem
cristão. Homem de grande cultura, conhecia o trabalho dos primeiros filósofos, mas também o de
Platão, de Aristóteles, dos estoicos, dos epicuristas e dos céticos. Também conheceu as sabedorias
dos orientais e dos indianos, tendo mesmo visitado a Pérsia. Um de
Página 378
seus maiores méritos foi refletir sobre a total transcendência do princípio de todas as coisas,
diferentemente da forma como fez Fílon. Ele a tratou dentro dos padrões gregos de pensamento,
sem pensar o princípio ao modo de um criador.
Plotino produziu sua filosofia em diálogo com o pensamento de seus predecessores, mas,
sobretudo, em referência direta a Platão, motivo pelo qual ele ficou conhecido como neoplatônico.
Seu pensamento foi chamado de neoplatonismo ou de platonismo plotiniano. Outros “platonismos”
surgiram em continuidade com Plotino até, pelo menos, o século VI da Era Cristã. Mesmo nos
séculos VII a VIII é possível encontrar autores platônicos ou neoplatônicos, mas convencionou-se
dizer que o fim da filosofia antiga se deu no século VI, em 529, quando o imperador bizantino
Justiniano proibiu o ensino dos filósofos, que ele considerava como inimigos da fé cristã.
4 As filosofias patrísticas
Costuma-se chamar de Patrística o período filosófico compreendido entre o surgimento do
cristianismo e o século V.
Muitos historiadores da Filosofia consideram esse período como uma fase da filosofia antiga,
seguindo a classificação da História Antiga. Outros preferem dizer que esse período é o início da
filosofia medieval, seguindo a classificação da História Medieval. As características da atividade
filosófica nesse período são, porém, bastante específicas e justificam destacá-la tanto da filosofia
antiga como da filosofia medieval, embora guarde grandes semelhanças com ambas.
Nesse contexto, a ideia de criação ganha destaque. O mundo não é mais pensado como um caos
“organizado” por seres divinos, e sim como algo que simplesmente não existia e passou a existir (foi
criado) pela decisão livre de um ser que pode fazer tudo o que quer (Deus). Assim, se houve ou não
um material elementar (a phýsis de que falavam os gregos), agora esse material também passa a ser
considerado como algo que foi desejado e produzido por Deus. Por conseguinte, se o mundo resulta
de uma decisão livre do ser divino, segue daí uma consequência direta: só pode ter sido por um ato
de amor que Deus criou o mundo, pois, sendo Deus, ele não carecia de nada; se criou, foi por total
gratuidade. Por conseguinte, ainda, cada ser é desejado por Deus.
Os filósofos cristãos sabiam que os dados aprendidos na experiência religiosa eram impossíveis de
ser afirmados do mesmo modo como se podia falar da phýsis ou de outras realidades aprendidas na
observação do mundo. No entanto, eles também não viam sentido em abrir mão de sua experiência
de fé para poder filosofar. Se a fé se baseava em uma certeza interior adquirida pelo encontro
pessoal com o ser divino, eles consideravam razoável a tentativa de incluir no trabalho filosófico a
óptica ensinada pela fé.
Alguns filósofos, nesses períodos, eram platônicos por convicção e cristãos por experiência. Foi o
caso, por exemplo, dos “três capadócios” (hoje diríamos “três turcos”): Gregório de Nazianzo (330-
390), Gregório de Nissa (335-394) e Basílio de Cesareia (330-379). Assim, quando eles tinham de
explicar o movimento do mundo, a verdade ou o conhecimento, eles se baseavam em Platão.
Quando tinham de explicar o destino da alma após a morte, a criação do mundo ou a salvação,
recorriam à fé.
Os pensadores cristãos chegaram mesmo a justificar a possibilidade de o ser humano dizer “não” a
Deus. No mundo greco-romano, era impensável que alguém recusasse os seres divinos. Podia-se
recusar a visão supersticiosa sobre eles, mas era insensato pretender ir contra eles. Para diferentes
filósofos cristãos, o ser humano, mesmo submetido a tudo e a todos, não é obrigado em sua
consciência individual a sentir-se submisso a nada, nem mesmo a Deus. É justamente nesse poder
ou nessa raiz que os filósofos cristãos verão a base da liberdade.
Em resumo, os primeiros filósofos convertidos ao cristianismo ou os “pais” (patres) das primeiras
formas cristãs de pensamento (daí o nome Patrística) contribuíram para ampliar o campo de visão
que os pensadores greco-romanos já haviam aberto. Ao mesmo tempo, a Filosofia lhes possibilitou
maior clareza sobre a própria fé.
Além de pensadores convertidos, fazem parte da Patrística outros que já nasceram no ambiente
cristão e cujo trabalho filosófico consistia no diálogo com a cultura dos primeiros séculos de nossa
Era. É o caso, por exemplo, de Agostinho de Hipona (354- 430). O filósofo romano Boécio (475-525)
costuma ser chamado de o último dos antigos e o primeiro dos medievais, mas vários historiadores
o consideram também como representante da Patrística.
Página 380
5 As filosofias medievais
Chama-se de filosofia medieval o conjunto de filosofias produzidas entre o século VI e o século XIV
(ou início do século XV) de nossa Era.
Essa informação histórica é útil, porque permite explicar que a Filosofia, ao menos no Ocidente, já
terá assimilado, depois do século V, a novidade do encontro com o cristianismo e não será mais
marcada pelo ambiente, digamos, agitado dos séculos II a V, típico da Patrística. A partir do século
V, a Filosofia permanecerá em diálogo com a cultura da Idade Média e entrará numa fase diferente:
enquanto os autores patrísticos viam-se na urgência de justificar a combinação entre pesquisa
racional e adesão à fé, os pensadores medievais já partem do trabalho patrístico e dedicam-se a
aprofundamentos ou a tratamentos mais especializados de temas filosóficos e teológicos.
Por comparação, pode-se pensar no seguinte: em momentos de crise ou de algum dado social
urgente (uma guerra, uma descoberta, um acontecimento bom ou ruim etc.), os intelectuais
costumam aparecer na mídia, dar opinião, envolver-se em debates amplos etc.; em momentos
menos marcados por acontecimentos urgentes, é natural que os intelectuais apareçam menos e
dediquem-se mais às suas pesquisas. De certo modo, é possível dizer que os pensadores da
Patrística eram solicitados pela urgência dos tempos do declínio do Império Romano no Ocidente e
da necessidade de falar a língua filosófica como cristãos. Já os medievais não foram tão solicitados
por urgências desse tipo e puderam desenvolver trabalhos mais “técnicos”, quer dizer, voltados
para o próprio modo de operar da Filosofia e das outras áreas do saber. Mesmo nos temas
específicos da fé, os medievais sentiam menos a necessidade de justificá-la do que de aprofundá-la.
Sem risco de exagerar, é também possível afirmar que as filosofias medievais foram desenvolvidas
em ligação direta com a crença em Deus segundo o modo como Fílon de Alexandria já havia feito e
como os autores da Patrística desenvolveram. Isso explica também por que autores judeus
passaram a cultivar a Filosofia no século VIII. Na sequência, autores árabes muçulmanos também o
fizeram no século IX. Todos, em maior ou menor grau, refletiram sobre Deus. Além disso,
cultivavam os saberes tal como os gregos haviam sistematizado.
universidades europeias, quem ensinava eram os cristãos, pois o cristianismo era a religião
predominante e detentora do poder político. Mas as obras dos filósofos das três religiões eram
estudadas com igual respeito.
Laurentius de Voltolina (séc. XIV), ilustração para o livro de Ética escrito por Henrique de Alemanha (séc. XIV).
As universidades foram o principal ambiente em que se cultivou a Filosofia durante os últimos séculos da
Idade Média.
O ponto de partida dos pensadores da Idade Média eram, por um lado, as filosofias produzidas na
Grécia e em Roma, e, por outro, os textos sagrados de cada religião. Continuou, portanto, e
fortaleceu-se aquela combinação entre razão e fé ou entre Filosofia e religião própria da Patrística.
Os filósofos medievais, tanto quanto os gregos, também eram os cientistas da época. As bases da
Química, por exemplo, são construídas na Alquimia medieval. A partir do século XI há um impulso
nos estudos de Biologia e de Física, principalmente nas áreas da Botânica, da Óptica e da
Astronomia. Vários deles também se dedicaram ao Direito. No campo propriamente filosófico,
desenvolveram estudos relativos à linguagem, ao conhecimento de Deus, ao conhecimento do
mundo, à justiça e à ética.
Nos países europeus, o latim era a língua da cultura, mas, do século V ao XIII, formam-se as raízes
das línguas modernas, que, a partir do século XIV, sobretudo no XV, também começarão a ser
usadas em Filosofia, Teologia, Ciência e Literatura.
Esse movimento, digamos, de gestação de saberes e línguas diferentes mostra que a Idade Média foi
um período de transformações sociais e culturais de grande impacto a despeito da estrutura feudal
que era aparentemente estável e constante. Aliás, se há algo em que os historiadores concordam
quanto à classificação tradicional da História em períodos é que a nomenclatura Idade Média não
tem quase nenhum sentido, pois ela trata de modo excessivamente uniforme povos, geografias e
costumes muito diferentes.
Dessa perspectiva, costuma-se dizer que a Idade Média na Europa foi dominada pela Igreja Católica.
Do ponto de vista econômico, isso não deixa de ser verdade; culturalmente também, em certa
medida. No entanto, a presença das culturas judaica e muçulmana faz ver que essa dominação não
foi algo tão uniforme. Ademais, no próprio interior do catolicismo havia grandes diferenças. Mesmo
do ponto de vista da relação entre razão e fé ou Filosofia e Teologia, havia visões diferentes e
igualmente significativas. Alguns historiadores comentam ainda hoje que, durante a Idade Média, a
Filosofia estava a serviço da Teologia. Até certo ponto, isso é verdadeiro, porque alguns pensadores
medievais viam na Filosofia a possibilidade de justificar racionalmente as verdades reveladas pela
fé.
Porém, a função da Filosofia era mais do que a de um simples instrumento da Teologia ou da
religião. Essa visão histórica já está ultrapassada.
Do lado cristão, por exemplo, o pensador Tomás de Aquino (1225-1274), que defendia abertamente
a Filosofia como serva da Teologia, também insistia na utilidade de estudar a Filosofia por si mesma
e pensava que a Filosofia podia se prolongar na Teologia e não necessariamente como Teologia. Do
lado árabe, podemos citar Averróis (1126-1198) como exemplo semelhante e, do lado judeu,
Maimônides (1135-1204). Averróis teve um papel de grande destaque ao enfatizar certas áreas do
saber que, séculos depois, constituirão disciplinas filosóficas específicas: é o caso, por exemplo, da
Política e da distinção entre Lógica e Gramática, que já vinha sendo estudada por Anselmo de
Cantuária (1033-1109) e Pedro Abelardo (1079-1142), entre outros.
O desconhecimento da efervescência cultural desse longo período de mil anos é o que ainda faz
alguns historiadores falarem de “Idade Média”. Trata-se de um desconhecimento parecido com o
que esteve na base da imagem negativa que os autores renascentistas e modernos desenvolveram a
respeito do período “medieval”. Com efeito, no século XVII, o pedagogo alemão Christoph Keller
(1638-1707) criou a expressão Idade Média porque procurava realçar tendência de valorizar o
mundo greco-romano e de ver com reservas o período dos séculos V a XV, principalmente por causa
da importância que a religião recebeu nesse período.
Keller, que era filósofo especialista em línguas orientais, conhecia bem o modo como as religiões
Página 382
eram tomadas como motivo para justificar guerras e atrasos de mentalidade em várias partes da
Europa. O papel nocivo da Inquisição era algo inquestionável. A partir dessa percepção, Keller
seguiu a tendência de generalizar certo desprezo pelos séculos V a XV, chamando-os de
“intermediários” entre o mundo greco-romano (caracterizado pelo esplendor da razão filosófica) e
o mundo em que ele vivia, isto é, a passagem do século XVII ao XVIII.
Em continuidade com Keller, historiadores dos séculos XVII e XVIII, autointitulando-se modernos,
defendiam que os filósofos, cientistas e artistas dos séculos XV e XVI escapavam à “pobreza” da
Idade Média porque faziam renascer justamente a vitalidade do mundo greco-romano. No século
XVIII, quando essa classificação (“antigos”, “medievais” e “modernos”) foi estabelecida, os
historiadores se inspiraram em algumas críticas de Francesco Petrarca (1304-1374), que falava das
“trevas” do período em que vivia, e do cardeal César Barônio (1538-1607), que usou a expressão
período obscuro para se referir aos séculos V a IX. Eles, então, criaram a expressão Idade das Trevas
para se referir à Idade Média. O século XVIII, por sua vez, passou a ser visto como a superação das
trevas, inclusive porque suas filosofias e seus feitos políticos buscavam a luz da razão, como se
dizia. A Idade Média ficou, assim, marcada como o período de trevas ou noite de mil anos. Hoje,
porém, manter essa visão é sinal de desinformação histórica, filosófica, científica, artística e mesmo
religiosa.
6 As filosofias renascentistas
Algumas mudanças de ordem social, científica e religiosa permitem considerar as filosofias
desenvolvidas no século XV e XVI como dotadas de características próprias. As guerras de religião, a
Era dos Descobrimentos, o surgimento de novos modelos de conhecimento, além de outros fatores,
levarão a buscar outras visões de mundo.
Uma forte característica desses novos tempos foi a maior facilidade com que circulavam as
informações de todo tipo. Para termos uma ideia do que isso significou, façamos uma comparação
com o que o mundo viveu no final do século XX. Você já nasceu na era da Internet e do telefone
celular, mas tente imaginar o que era o mundo sem o uso geral desses recursos. O benefício que eles
trouxeram é incalculável, porque ampliou o acesso de milhões e milhões de pessoas a informações
de toda ordem (científicas, acadêmicas, culturais, sanitárias, políticas etc.) e a comunicação
interpessoal.
Embora em muito menor escala, algo parecido ocorreu nos séculos XV e XVI, com a invenção da
imprensa, por Johannes Gutenberg (1398-1468). Não pense que todos os europeus passaram
imediatamente a ter livros em suas casas... Correram séculos até que esse hábito se tornasse
amplamente difundido. No entanto, comparando a fabricação dos livros pela máquina inventada
por Gutenberg (a prensa) com as técnicas anteriores (os manuscritos ou cópias à mão em
pergaminhos de pele de animal ou em papel caseiro), você pode ter uma noção melhor do que
queremos dizer ao afirmar que passou a haver maior circulação de informações nos séculos XV e
XVI.
Um dos exemplos do que possibilitou a imprensa de Gutenberg foi a divulgação da Bíblia nas
línguas modernas, e não mais apenas em latim, como ocorria na Idade Média, quando o latim era
considerado a língua da cultura. Tudo indica que o primeiro a divulgar a Bíblia impressa em língua
moderna foi Martinho Lutero (1483-1546), um dos líderes da Reforma Protestante e tradutor da
Bíblia em alemão. Seu gesto teve impactos para além da prática religiosa: graças à divulgação da sua
tradução, começou-se
Página 383
a formar um padrão oficial de uso literário da língua alemã, bem como um movimento de incentivo
a traduções, sem falar do crescimento do interesse pelo aprendizado da leitura e da escrita.
Esse e outros fatores permitiram considerar os séculos XV e XVI como um período de ampliação de
horizontes para os europeus. Nesse movimento, a circulação de informações fez aumentar também
o conhecimento de autores antigos e intensificar o estudo não só de Filosofia e Teologia, mas ainda
de Literatura, ciências e artes. Assim, se há um sentido em falar de “Renascimento”, ele está
certamente ligado à maior divulgação do patrimônio antigo.
Convém esclarecer que os homens e as mulheres dos séculos XV e XVI não se chamavam de
renascentistas nem falavam de sua época como a do Renascimento. Eles simplesmente viviam a era
de nova efervescência cultural, social, política e econômica, embora a maioria das pessoas ainda não
tivesse acesso aos benefícios de tal efervescência. Levará séculos para que a Europa comece a criar
formas de promover a igualdade socioeconômica. É inegável, contudo, que os saberes, agora,
começam a ir além dos limites das instituições religiosas e universitárias.
Alguns pensadores “renascentistas” criam, então, o ideal do humanismo, ou seja, uma visão de
mundo centrada no ser humano e com medidas humanas. Eles sabiam que os gregos e os romanos
não olhavam ingenuamente para a Natureza e que os pensadores medievais não começavam suas
filosofias por Deus, mas pelo ser humano. Porém, eles queriam enfatizar um modelo de ser humano
universal, superior às diferenças culturais e ao mesmo tempo garantidor do valor de cada
indivíduo.
Nesse sentido, os renascentistas levam até o extremo o sentido daquilo que os medievais
chamavam de causas segundas, isto é, a concepção de que o ser humano e os outros seres da
Natureza são verdadeiros atores ou causas que agem no mundo, radicalmente diferentes de Deus (a
“causa primeira”). Dá-se atenção, agora, às estruturas particulares da Natureza e busca-se explicá-
las por meio da experimentação (a reprodução daquilo que se observa como natural). Desenvolve-
se uma forma de ver o mundo que, embora já com raízes nos pensadores medievais e antigos,
recebe nos tempos renascentistas uma importância sem igual: a matematização da Natureza. A
Natureza passa a ser vista como um grande “livro” escrito com proporções numéricas; além disso,
acreditava-se que, por meio da linguagem matemática, seria possível compreender o mundo e
interferir nele. Justifica-se o fato de a revolução da física moderna vir desse período, com a
consagração do heliocentrismo concebido pelo polonês Nicolau Copérnico (1473-1543).
Copérnico dizia abertamente que seu trabalho consistia em fazer renascer teorias antigas como a
do filósofo grego Filolau (séc. V a.C.) e a do poeta latino Marciano Capela (séc. V d.C.). A declaração
de suas fontes permite entender com mais clareza a especificidade do pensamento e da nova
metodologia que começa a ser adotada no Renascimento. Com efeito, Copérnico aprendeu com o
filósofo Filolau a possibilidade de ver o mundo como uma realidade formada por um centro ou um
núcleo composto por um fogo primordial (a phýsis) e em torno do qual giravam a Terra, o Sol e
todos os astros. Já no pensamento de Marciano Capela, Copérnico encontrou um esquema segundo
o qual Vênus e Mercúrio giravam em torno do Sol e, junto com o Sol, giravam em torno da Terra.
Mesmo considerando a Terra como centro, Capela fornecia a Copérnico outra maneira de explicar o
movimento dos astros. Copérnico aprende, então, que outros tipos ou modelos de explicação eram
possíveis para descrever o mesmo movimento dos planetas e dos astros. Dando atenção às
diferentes possibilidades de compreensão, Copérnico desenvolve o seu próprio modelo, segundo o
qual é a Terra que gira em torno do Sol. Mudando o tipo ou o modelo explicativo, ele obteve uma
descrição melhor para o que se observava no mundo.
Copérnico consagra, então, um procedimento de pesquisa filosófica e científica que marcará para
Página 384
sempre a História da Filosofia: o conhecimento que se constrói por modelos. Trata-se de conceber
mentalmente representações ou esquemas que são aplicados à realidade e passam a ser
considerados verdadeiros caso combinem bem com as observações e permitam, por um lado,
explicar aquilo que é observado e, por outro, prever o que pode acontecer em situações
semelhantes àquelas já observadas.
O conhecimento, agora, deixa de ser entendido como o resultado de um olhar direto para a
realidade (com objetivo de “traduzi-la” na forma do pensamento, tal como faziam, de modo geral, os
antigos e os medievais). Em vez disso, ele é entendido como um olhar que vê a mesma realidade por
meio de esquemas compreensivos (um conjunto de hipóteses) projetados na mesma realidade, a
fim de testar sua capacidade de explicá-la. Se o modelo explicativo funciona, ou seja, se ele permite
dar explicações razoáveis para aquilo que se observa no mundo e prever o funcionamento do
mundo, então passa a ser considerado como uma boa explicação ou uma boa teoria. No lugar de
“traduzir” diretamente o mundo, é como se agora os cientistas e filósofos “lessem” o mundo
(observação), elaborassem diferentes possibilidades de “tradução” e depois testassem essas
traduções a fim de chegar àquela que melhor exprime o mundo. Aplica-se ao mundo um modelo
compreensivo do mundo; deixa-se de acreditar que o mundo fornece a sua própria e única
tradução.
Na elaboração dos novos modelos de compreensão do mundo, a língua usada pela Matemática
exercerá um papel de enorme importância. Os dados observados são lidos em termos de números,
relações geométricas e proporções; e os modelos para exprimir o mundo são também escritos em
língua matemática. É por isso que se costuma considerar o novo procedimento ou a nova
metodologia consagrada no Renascimento como um modelo quantitativo (medição de porções da
matéria e da força que constituem as coisas do mundo), e não mais qualitativo (busca de
características do modo de ser das coisas, como faziam os antigos e os medievais). O filósofo e
cientista moderno René Descartes (1596- 1650) levará esse procedimento ao máximo, mostrando
que as qualidades das coisas podiam ser explicadas em termos de quantidade.
Alguns historiadores da Ciência e da Filosofia têm mostrado que o procedimento de conhecer por
modelos e de matematização da Natureza já vinha sendo elaborado muito antes de Copérnico.
Talvez ele tenha sido influenciado por trabalhos de astrônomos medievais árabes e persas, como os
modelos matemáticos utilizados pela Escola de Maragha (séc. XIII e XIV), principalmente a
decomposição do movimento linear em movimentos circulares, como já havia feito Al-Tusi (1201-
1274). Aliás, o modelo copernicano de explicação do movimento da Lua é praticamente idêntico ao
de Ibn Al-Shatir (séc. XIV); e a possibilidade de que a Terra girasse em torno de si mesma era
discutida desde o século X. Nesse sentido, Nicolau de Oresme (1323-1382) levantou a possibilidade
do movimento de rotação da Terra; e, indo mais longe, Nicolau de Cusa (1401-1464) rejeitava que a
Terra pudesse ser entendida como imóvel ou como centro do Universo.
Talvez Copérnico tenha estudado também o trabalho de dois outros pensadores: o astrônomo e
matemático austríaco Georg von Peuerbach (1423-1461) e seu aluno alemão Johannes Müller von
Königsberg (1436-1476), também conhecido pelo apelido de Regiomontano. Peuerbach teria
notado a correlação entre os movimentos dos planetas e do Sol, enquanto Regiomontano teria
escrito, no fim da vida, que “é preciso modificar um pouco o movimento das estrelas por causa do
movimento da Terra”.
Seja como for, o trabalho de Copérnico consagra um estilo de pesquisa filosófica e científica que se
tornará muito forte entre os renascentistas. Esse estilo será ampliado para outras áreas do saber,
como as artes e a Política. Podemos entender, por exemplo, por que a Política passa a ser tratada
como um saber e uma prática específica e não é mais vista como apenas uma parte da reflexão
sobre a ação moral ou ética: trata-se agora de compreender o funcionamento das estruturas
políticas e de prever as possibilidades de ação ou as estratégias para obter os efeitos desejados em
vista da obtenção e conservação do Poder. A atividade política é entendida como um “quebra-
cabeça” cujas partes podem ser dispostas e utilizadas segundo diferentes estratégias (modelos). Em
vez de debater, como faziam antigos e medievais, sobre a natureza da Política como arte do bem
comum ou como prática dirigida por ideais éticos, a Política é agora
Página 385
entendida como um saber específico, com objeto e regras próprios. O filósofo Nicolau Maquiavel
(1469-1527) (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 253) da cidade de Florença, será um dos
mais importantes autores na produção de um modelo de compreensão e planejamento do agir
político.
Nas artes há uma explosão de novidades durante o Renascimento, além de uma retomada de
modelos antigos. Na escultura e na pintura, por exemplo, desenvolve-se sobremaneira o estudo dos
materiais e das técnicas em termos matemáticos. Calculam-se as possibilidades e aplicam-se esses
cálculos à produção artística. O nome de Leonardo da Vinci (1452-1519) é referência obrigatória
entre os artistas-cientistas-filósofos do Renascimento.
Mesmo na religião o estilo renascentista exercerá grande influência. É possível entender a Reforma
Protestante, por exemplo, como um movimento cujas raízes estão nos séculos XV e XVI e mesmo
nos séculos XIII a XIV (final da Idade Média), quando se debateu intensamente o papel da liberdade
humana (a vontade livre) no ato de fé. Diante do risco de entender a prática religiosa como algo
fundado apenas na autoridade dos textos sagrados e de seus intérpretes institucionais (reduzindo-a
apenas a uma prática moral), diversos autores tanto do lado católico como do protestante
recuperam antigas tradições (da Patrística e da Idade Média) para defender que, acima de tudo, a fé
consiste em uma experiência pessoal de encontro com o ser divino, ao qual se adere de maneira
livre e inteligente.
Esse conjunto de novidades abria o caminho para o período que ficou conhecido como a
Modernidade em Filosofia ou a Filosofia Moderna.
7 As filosofias modernas
O conjunto das filosofias modernas corresponde à produção filosófica dos séculos XVII-XVIII.
Alguns historiadores fazem essa classificação avançar até o século XIX; outros a concentram apenas
no século XVII. Neste livro, por causa das características que veremos na sequência, preferimos
chamar de filosofia moderna ou de Modernidade em Filosofia aos séculos XVII e XVIII, associando o
século XIX ao XX.
No entanto, algo parecido com o que afirmamos sobre as filosofias medievais vale aqui para as
filosofias modernas ou a Modernidade: é inadequado tratar os séculos XVII e XVIII como um
período homogêneo e dotado de filosofias também homogêneas. Além disso, os limites temporais
(séculos XVII e XVIII) não são fixos: mais do que fronteiras rígidas, eles são móveis, como boias
postas no mar para indicar áreas que oscilam conforme o movimento das águas.
Pela linha temporal a seguir você pode notar que, em dois séculos, pelo menos quatro estilos
filosóficos foram produzidos na Modernidade e duram até hoje: o racionalismo, o empirismo, o
materialismo e o Iluminismo. Você também pode observar que as raízes das filosofias modernas
estão fincadas no pensamento antigo-medieval e renascentista e que o ceticismo, revalorizado
durante o Renascimento, constitui uma presença de grande importância para os autores modernos,
chegando até nossos dias.
Página 386
Entendemos, então, por que, no século XVIII, quando filósofos e historiadores (que, em geral, eram
os mesmos) procedem a uma classificação dos períodos históricos, eles se denominam modernos.
O poeta francês Arthur Rimbaud (1854-1891), no livro Uma temporada no inferno, escreve uma
frase que representa bem a convicção dos novos tempos. Embora ele tenha vivido no século XIX (e,
portanto, seja classificado pela historiografia como membro da Contemporaneidade), sua frase é
uma espécie de lema que simboliza o desejo de ruptura típico da Modernidade e de aposta em tudo
o que é novo, arrojado, imprevisível. Insistia Rimbaud: “É preciso ser absolutamente moderno”.
Rimbaud é conhecido por sua liberdade radical. Diríamos, segundo um ditado brasileiro, que ele
“não tinha papas na língua”. Era inteligentíssimo e ácido em suas críticas aos costumes individuais,
às práticas sociais e à falta de beleza na vida. Em geral, ele é caracterizado como alguém que viveu à
margem da Sociedade, antiburguês e libertário. Em sua época, o sistema econômico europeu já
havia passado do capitalismo comercial, típico do Renascimento, para o capitalismo industrial,
instalado desde o século XVIII; e a classe burguesa representava as pessoas que enriqueciam com o
comércio e a industrialização. Rimbaud não denunciava a existência da burguesia (ele mesmo se
tornou burguês), e sim a hipocrisia dessa classe que defendia valores nem sempre praticados por
ela mesma ou lutava para manter valores ultrapassados. Rimbaud encarnava, então, um sentimento
de denúncia e ruptura:
Posso dizer que a vitória está ganha: os rangeres de dentes, os assovios do fogo, os suspiros mau
cheirosos moderam-se. Todas as lembranças imundas apagam-se. Minhas últimas saudades fogem –
inveja dos mendigos, dos bandidos, dos amigos da morte, dos antiquados de todo tipo. Condenados,
ai se eu me vingasse!
Nada de cânticos: manter o ritmo conquistado. Dura noite! O sangue seco evapora sobre minha face
e não tenho nada atrás de mim, a não ser esse horrível arbusto!... O combate espiritual é tão brutal
como a batalha de homens; mas a visão da justiça é o prazer exclusivo de Deus.
Entretanto, é a vigília. Recebamos todos os influxos de vigor e de ternura real. E, à aurora, munidos
de uma ardente paciência, entraremos nas cidades esplêndidas.
RIMBAUD, Arthur. Une saison en enfer. In: Poésies & Une saison en enfer & Illuminations. Paris: Gallimard, 1984. p. 152. (Uma
temporada no inferno. Tradução nossa.)
Rimbaud teria dito à sua mãe que seu poema em prosa Uma temporada no inferno pode ser lido
literalmente e também em todos os sentidos. É por isso que o tomamos aqui como ilustração da
Idade Moderna: ele encarna a decisão de ser moderno. O adjetivo moderno surgiu na Idade Média,
com o sentido de “modo” e de “moderação”. Porém, modo e moderação eram tudo o que Rimbaud
detestava. Ele preferia a desmedida da aventura e da aposta na novidade. No texto acima, seu
vocabulário se refere a manter o ritmo para a frente e de não ter nada que mova para trás. Rimbaud
usa ainda expressões religiosas, ao mencionar o ranger de dentes e a justiça perfeita como algo que
somente Deus pode entender; e indica que nem seus conflitos interiores (religiosos) o prendiam
mais. Ele ficava fascinado pela vida despreocupada dos mendigos e dos ladrões.
Página 387
Numa palavra, era preciso ser moderno, olhar para a frente, pois estava em curso a gestação
(vigília) de uma nova era.
As amarras das práticas sociais e de algumas formas de pensamento obscuras precisavam, então,
ser desatadas. Era preciso decidir pela ruptura. Nascia o que alguns historiadores chamam de
projeto moderno: busca de formas mais seguras de conhecimento e de ação, para o que contribuía
enormemente a herança dos filósofos renascentistas e a nova concepção de conhecimento científico
baseada em modelos matemáticos. Esse “projeto” justificava historicamente a ideia de refundação
da Filosofia e também a revalorização do ceticismo, pois, diante da variedade de respostas
filosóficas, visões de mundo, teorias científicas, descobertas culturais (sobretudo com as
navegações que levaram às Américas), era natural pôr em questão a própria capacidade racional de
conhecer com segurança. Michel de Montaigne (1533-1592), por exemplo, mesmo sem se tornar
exatamente cético, foi um dos primeiros a conceber uma relativização cultural, tirando o modo de
pensar europeu do centro da reflexão e dedicando-se à tentativa de compreender populações
indígenas no contexto delas mesmas. Descartes, por sua vez, embora procurasse superar o
ceticismo, foi em grande parte influenciado por ele.
Diante, portanto, das inúmeras novidades que os tempos modernos traziam, os filósofos decidiram,
de modo geral, apostar em um “projeto” que pusesse em primeiro plano aquilo que, acima de
qualquer dúvida, caracteriza a experiência humana: o uso da razão. Até para contrariar os usos
tradicionais da razão é preciso servir-se dela; e a principal atividade da razão passa, agora, a ser
também a principal preocupação dos filósofos: o conhecimento. Antes de se dedicar à atividade de
conhecer o mundo, era preciso “conhecer o conhecimento”, investigar quais as reais possibilidades
de conhecer e os reais métodos para pôr essa atividade em prática. É por esse motivo ou por esse
projeto “moderno” que se costuma considerar a atenção ao conhecimento como marca central das
filosofias modernas.
Justificar o tipo e o modo de conhecimento praticado torna-se uma tarefa de primeira importância.
Tal preocupação está na raiz tanto do racionalismo como do empirismo, dois estilos filosóficos
típicos da Modernidade. O racionalismo dá prioridade ao papel da razão na atividade de conhecer.
Entende-se o ser humano como um ser dotado de consciência reflexiva, que lhe permite elaborar as
informações captadas por meio dos cinco sentidos (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p.
336). O empirismo, por sua vez, dá prioridade ao papel dos cinco sentidos e entende a razão como
um hábito desenvolvido pelo uso dos mesmos sentidos. Se o racionalismo afirma a existência de
uma capacidade humana (situada na alma) que possibilita a atividade dos cinco sentidos, o
empirismo prefere afirmar que a razão é apenas o nome do hábito gerado pela ativação dos
sentidos (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 337).
Em consequência direta do debate entre racionalismo e empirismo, surge outro estilo filosófico,
interessado em levar até o fim a análise das possibilidades
Página 388
O trabalho de Kant separa, de um lado, aquilo que pode ser conhecido de modo seguro, científico,
com base no entendimento, e, de outro, aquilo que não pode ser conhecido de modo científico
(embora, pela atividade da razão, possa fazer algum sentido para os indivíduos e os grupos).
Pensando em termos de modelos, é possível afirmar que o modelo moderno de Ciência (de raízes
renascentistas) passa a guiar a compreensão do conhecimento humano e a própria concepção da
razão. Conhecimento seguro e racional será o conhecimento produzido ao modo da Ciência (com
seu modelo matemático); e a própria razão será, aos poucos, associada com o procedimento de
observação, experimentação e tradução em termos matemáticos. Em alguns casos, chega-se mesmo
a adotar o padrão científico como orientador da concepção do ser humano e do mundo, que serão
vistos como mecanismos ou máquinas (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 235 e 237).
Nesse contexto, alguns filósofos desconfiarão de reflexões que recorrem a ideias como Deus, alma,
bem supremo etc., pois tais assuntos são considerados como externos ao campo que a razão,
concebida segundo o modelo científico, pode explorar. É compreensível, assim, que no século XVIII
tenham surgido propostas filosóficas comprometidas unicamente com a base material da
experiência e defensoras de explicações da Natureza somente em termos materiais, sem recorrer a
qualquer coisa não material. Desenvolvia-se o materialismo como doutrina filosófica, do qual surgiu
outra novidade, o ateísmo ou a postura cujo objetivo era negar a existência de Deus (Ícone:
Conteúdo tratado em outra página p. 317-323).
Rembrandt (1606-1669), Aula de anatomia do Dr. Tulp, 1632, óleo sobre tela.
A ênfase na luz da razão fez com que as filosofias produzidas no século XVIII recebessem o nome de
Iluminismo. Tratava-se de uma confiança irrestrita no poder da razão para explicar a experiência
humana. Chegou-se mesmo a crer que o ser humano pode se aperfeiçoar pela razão a ponto de
progredir sempre e encontrar a felicidade ética e política. A crença no progresso sem fim ou na
perfectibilidade do ser humano levou também à distinção entre Natureza e Cultura: a Natureza ou o
mundo físico-químico-biológico seria o campo da necessidade, das leis fixas; a cultura ou a
civilização seria o campo propriamente humano, lugar da autoconstrução e da liberdade.
Página 389
8 As filosofias contemporâneas
A Contemporaneidade ou o conjunto das filosofias contemporâneas nasceu de uma
problematização do “projeto moderno” de Filosofia.
Do ponto de vista da História Geral, acontecimentos como a Revolução Industrial, no fim do século
XVIII e início do século XIX, e a passagem do capitalismo comercial e pré-industrial (típicos dos
séculos XV a XVII) ao capitalismo industrial e financeiro acarretaram mudanças profundas na
organização socioeconômica e cultural.
Do ponto de vista da História da Filosofia, alguns elementos faziam pensar em uma nova era. Esses
elementos consistiam no trabalho de autocrítica que a própria razão começava a desenvolver.
Esse trabalho já havia caracterizado filósofos modernos, como Kant, ou mesmo Blaise Pascal (1623-
1662), que, embora fosse considerado um racionalista, dava grande importância à experiência
sensível como fonte de conhecimento. A primeira forma de autocrítica que se descola do “projeto”
moderno foi a dos autores pertencentes ao Romantismo (Ícone: Conteúdo tratado em outra página
p. 193). Discordando diretamente do pensamento iluminista, os românticos consideravam um
imperdoável estreitamento de horizonte o fato de associar a razão com o modelo científico. Em
outras palavras, considerar que uma pesquisa racional ou “verdadeira” seja apenas aquela
construída segundo os padrões da Ciência equivaleria a uma decisão de fechar os olhos para algo
óbvio: há outras fontes de sentido para a experiência humana (como a arte e a religião); nada
justificaria deixar essas fontes de lado quando se trata de conhecer o mundo e exprimi-lo.
Propositadamente, vários autores românticos abandonaram o tipo de escrita que se tornou
característico da redação filosófica principalmente depois de Kant. Eles passaram a adotar a
Literatura, principalmente a poesia, como forma de expressão. É o caso de Friedrich Schlegel (1772-
1829) e Novalis (1772-1801).
No esquema acima damos apenas alguns exemplos de filosofias contemporâneas (as de maior
impacto). Uma das críticas mais duras ao “projeto” moderno vieram de filósofos como Georg W. F.
Hegel (1770-1831), que propôs um tipo de trabalho filosófico como “consciência da consciência”
(Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 294-295), ao qual ele deu o nome de fenomenologia.
Algumas décadas depois, outro filósofo se servirá dessa palavra e dará uma visão semelhante da
filosofia como “consciência da consciência”, chegando, porém, a conclusões bastante diferentes
daquela de Hegel. Trata-se de Edmund Husserl (1859-1938), que, mesmo sendo um leitor atento de
Descartes e Hume, produziu uma crítica explícita do “projeto” moderno. Hoje, quando se fala em
fenomenologia simplesmente, é a Husserl que se faz referência em geral, não a Hegel.
No dizer de Husserl, era um equívoco fazer a Filosofia seguir o ritmo das ciências, pois as ciências
partem de pressupostos que somente a Filosofia pode esclarecer. Noções como a de matéria,
espaço, força, causa etc. são usadas pelos cientistas mas sem um exame radical do seu sentido. Cabe
à Filosofia analisá-las; ela possui, então, uma especificidade que merece ser respeitada, a de refletir
criticamente sobre o que é pressuposto pelas ciências. Inverter essa relação e obrigar a Filosofia a
seguir o modelo das ciências equivaleria à morte da reflexão filosófica.
Página 390
Você pode perceber, por essas poucas linhas, como o trabalho da razão humana, desde a passagem
do século XVIII ao XIX, enfraqueceu a confiança total na própria razão tal como entendida pelo
Iluminismo. Outro dado cultural que contribuiu para esse enfraquecimento foi a criação da
Psicanálise (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 124), com Sigmund Freud (1856-1939).
Embora Freud adotasse um modelo científico (ao modo da ciência moderna) para conceber o ser
humano, seu trabalho levantou um dado que abalou profundamente a crença na razão como
capacidade “ordenadora”: o ser humano, mesmo quando crê agir racionalmente, é influenciado por
uma dimensão de seu psiquismo que não obedece à razão, o Inconsciente. As consequências da
pesquisa freudiana foram de grande importância para diferentes filósofos. Concordando com ele ou
discordando dele, os pensadores viram-se na necessidade de considerar não apenas a possibilidade
de que a razão seja influenciada por forças irracionais (algo que, de certa maneira, sempre foi
percebido na História da Filosofia), mas também de que ela seja “produzida” por essas forças ou
motores.
Outro acontecimento na linha de uma crítica ao “projeto” moderno foi a atenção à historicidade das
organizações sociais e do pensamento. Levanta-se a hipótese de que o modo de os humanos
viverem depende das condições externas ou do momento histórico em que eles se encontram. O
próprio pensamento, dessa perspectiva, seria influenciado por tais condições. Hegel é um dos
grandes impulsionadores dessa visão, embora ele ainda afirmasse que a razão produz a Cultura. Um
de seus leitores, Karl Marx (1818-1883) (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 221),
praticamente inverte essa concepção e extrai uma conclusão mais radical: o pensamento é
resultado das condições materiais da existência, ou seja, de tudo aquilo de que os indivíduos
dispõem para sobreviver. Isso significa que não é o pensamento humano que constrói a História,
mas são as condições históricas que produzem o pensamento humano. Alguns filósofos do século
XX, como Max Horkheimer (1895-1973), Herbert Marcuse (1898-1979) (Ícone: Conteúdo tratado
em outra página p. 259) e Theodor Adorno (1903-1969), membros da Escola de Frankfurt (p. 362),
continuarão o trabalho de Marx e o aplicarão ao tratamento de temas típicos da vida no século XX.
Outro abalo sofrido pela crença irredutível na razão vem da teoria da relatividade geral de Einstein
(Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 16-19). Sendo uma teoria física inteiramente nova e
não uma simples evolução das teorias clássicas, a física de Einstein punha em questão a crença em
um progresso linear do conhecimento, terminando por permitir questionar a ideia de que a
humanidade se aperfeiçoa por meio de um progresso contínuo no conhecimento. Por outro lado,
consagra-se a ideia de modelo explicativo, fazendo ver que modelos mais eficazes podem surgir
para explicar as mesmas observações.
Ainda no contexto científico, outros modelos levantaram questões inteiramente novas. É o caso da
física quântica, que pôs em xeque a tese moderna de que a matéria compõe-se de unidades básicas,
os átomos ou as partículas sólidas, dotadas de peso, duras e impenetráveis. Nos anos 1920, a física
quântica identifica uma estrutura nos próprios átomos, chamando seus componentes de elétrons,
núcleos e partículas atômicas. Aliás, falar de componentes não é a maneira mais indicada para
retratar a concepção atômica da física quântica, porque oferece o risco de interpretar tais
“componentes” ao modo das partículas sólidas, pesadas, duras e impenetráveis, tal como fazia a
física moderna. Os “elementos” da estrutura atômica levam a definir o átomo como um processo
energético cuja massa (quantidade de matéria) depende de interações com um campo vazio.
O vazio, em termos clássicos, seria, de certa maneira, uma ausência de forças físicas. Mas, segundo
os físicos quânticos, muitos efeitos podem aparecer no vazio. O físico Richard Feynman (1918-
1988), por exemplo, falava de partículas virtuais (como os elétrons e os fótons) que surgem e
desaparecem do campo vazio. A propósito, a expressão campo vazio não indicaria exatamente um
“campo”, como se fosse uma “parte” do espaço, já que serve para explicar que a matéria é um
conjunto dinâmico de processos e eventos (incluindo alguns impossíveis de observar), e não um
“depósito” de moléculas ou de “componentes” químicos básicos, como se pensou nos séculos XVII a
XIX. Algumas das inúmeras reflexões filosóficas que nascerão dessa problemática podem ser
expressas pelas perguntas: a matéria é constante, quer dizer, não aumenta nem diminui, mas
corresponde à “quantidade” de que o mundo é constituído? O que impede de afirmar que a matéria
varia, aumenta e diminui? O mundo físico é como uma grande máquina que funciona
automaticamente ou como um grande organismo vivo? Se máquina e organismo vivo são metáforas,
em que uma metáfora é melhor do que a outra? Com base em que acreditamos na matéria como
conjunto de átomos ou como conjunto de processos energéticos?
Página 391
Da esquerda para a direita, começando do topo: Karl Marx, Ludwig Wittgenstein, Jean-Paul Sartre, Henrique
Cláudio de Lima Vaz, Edith Stein, Hegel, Henri Bergson, Rosa Luxemburgo, Maurice Merleau-Ponty, Michel
Foucault, Søren Kierkegaard, Simone Weil, Edmund Husserl
Por que a razão produz explicações diferentes para a mesma realidade? As explicações diferentes
têm o mesmo valor, de modo que não podemos decidir objetivamente por uma ou outra?
Reflexões desse tipo ampliaram-se e fizeram muitos filósofos constatar que por trás da objetividade
científica há, muitas vezes, visões pessoais ou subjetivas, sem mencionar os interesses econômicos
e políticos. O tema da produção dos dados científicos tornou-se um objeto de pesquisa central para
a Contemporaneidade, especialmente na área conhecida como filosofia da ciência (p. 358). Os
pensadores da Escola de Frankfurt, procederam a análises detalhadas dos mecanismos históricos
pelos quais o saber se articula com o Poder. Debruçaram-se ainda sobre a arte, a religião, as
tecnologias e os meios de comunicação, revelando a dependência das formas culturais (e dos
saberes em geral, inclusive das ciências) para com as contradições vividas em cada momento
presente (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 362-363). À sua maneira e antes da Escola de
Frankfurt, Friedrich Nietzsche (1844-1900) (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 172) já
havia procedido a uma aguda crítica da Cultura moderna centrada na razão cientificista e técnica.
Apontando também para a influência do meio sócio-histórico nos indivíduos, surgiu uma filosofia
extremamente influente nos modos contemporâneos de pensar: a filosofia da linguagem. Costuma-
se falar, por exemplo, de uma virada linguística (linguistic turn) promovida principalmente por
Ludwig Wittgenstein (1889-1951). Com efeito, da perspectiva do pensamento maduro de
Wittgenstein, a linguagem não é apenas uma capacidade humana (tal como se entendeu durante
muito tempo), mas é o modo mesmo de ser dos humanos; e esse modo de ser é configurado de
acordo com as práticas sociais dos grupos. Por defender ainda que muitos dos problemas filosóficos
nasceram do modo como a linguagem foi mal compreendida, Wittgenstein e outros filósofos da
linguagem investigam exatamente a relação entre linguagem, pensamento e “mundo” (Ícone:
Conteúdo tratado em outra página p. 343).
Outros filósofos, diante da ênfase na historicidade da razão, observarão que certas experiências
humanas não são explicáveis apenas em termos de influência do meio ou de cada momento
presente. Eles constituem pelo menos duas atitudes filosóficas distintas. Uma delas identifica, na
base ou nos fundamentos da razão humana, pressupostos universais que precedem o próprio
exercício racional em todos os tempos e lugares. Essa atitude filosófica defenderá que todas as
coisas têm um modo de se mostrar a nós e que isso não depende de circunstâncias históricas. Trata-
se da fenomenologia de Husserl, praticada também por autores como Max Scheler (1874-1928),
Edith Stein (1891-1942) e Hedwig Conrad-Martius (1888-1966). A segunda atitude procura ligar a
fenomenologia à recuperação do papel da História na constituição da experiência humana, como
fez, por exemplo, Martin Heidegger (1889-1976) (Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 235)
e Maurice Merleau-Ponty (1908-1961). Heidegger questionava o modo como a razão foi concebida
a
Página 392
partir de Sócrates ( Ícone: Conteúdo tratado em outra página p. 157) e defendia a necessidade de
recuperar uma existência atenta ao modo de ser do mundo, sem a interferência de explicações que
ocultam esse modo de ser. Ele denunciava ainda a maquinização da razão humana na
Contemporaneidade ou a sua transformação em algo de procedimento puramente mecânico e
voltado para o “fazer” coisas.
Outra atitude vai numa direção diversa e não vê entre experiências passadas e experiências
presentes uma necessária relação de causalidade, o mesmo valendo para experiências futuras. Quer
dizer, a experiência histórica não seria linear e cumulativa, mas pode passar a situações
completamente diferentes, dificultando comparar coisas passadas com coisas presentes. Por
exemplo, o que leva a declarar que os costumes gregos antigos são mais “atrasados” do que os
costumes atuais? Ou que a mitologia grega é “errada”? Para afirmar isso, teríamos de aceitar que a
Ciência explicou corretamente o que os gregos “fantasiavam”. Porém, essa conclusão equivaleria a
um preconceito cientificista, pois os gregos concebiam o mundo de um modo bastante diferente das
ciências modernas e sequer podiam, no seu tempo, comportar-se como os cientistas modernos.
Aliás, nem mesmo as ciências modernas representam a melhor imagem do mundo, acabada e
inquestionável. Seria inadequado tomá-las como régua para medir outras formas de conhecimento.
Esse exemplo faz ver que, em certas experiências, há uma estrutura de sentido que começa e
termina nas experiências mesmas, sem a necessidade de ser comparada com a estrutura de outras
experiências. Dito de modo diferente, a estrutura presente nessas experiências pode ser conhecida
em si mesma, desde que procedamos a uma análise interna ao seu próprio modo de funcionar. À
atitude que procura defender o modo como os sentidos culturais devem ser entendidos em sua
estrutura interna dá-se, em geral, o nome de estruturalismo. Um de seus representantes mais
importantes foi Claude Lévi-Strauss (1908-2009).
A fenomenologia e o estruturalismo não negam que a razão seja histórica. Eles procuram evidenciar
que nem tudo pode ser explicado em termos de desenvolvimento histórico ou mesmo de uso da
razão. Ademais, tal desenvolvimento nada tem a ver com progresso constante em relação a formas
anteriores de pensar. Haja vista o uso da razão segundo o modelo científico e os horrores por ele
produzidos no século XX, com a destruição de tantos inocentes nas duas guerras mundiais, no
nazismo e no stalinismo. Nessa linha de reflexão, o trabalho de Hannah Arendt (1906-1975) (Ícone:
Conteúdo tratado em outra página p. 117) é extremamente significativo.
Nos limites desta nossa apresentação resumida, é impossível retratar a inesgotável riqueza de
formas filosóficas na Contemporaneidade. Muitos filósofos não foram mencionados (como também
ocorreu na apresentação dos outros períodos históricos). Procuramos apenas indicar como uma
das principais marcas das filosofias contemporâneas é fazer a razão pôr a si mesma em questão,
sobretudo pela análise crítica da razão “moderna”.
Essa concepção atinge também o trabalho científico e a atividade política: os cientistas, com o que
produzem nos laboratórios, criam maneiras de ver o mundo que passam a funcionar como
“realidades”; os políticos, por sua vez, com seus discursos e ações, criam modos de ver as relações
humanas e fundam essas mesmas relações. O que moveria a todos – filósofos, artistas, cientistas,
políticos e assim por diante – é a paixão, essa energia que nos constitui por meio de desejos,
impulsos e instintos. Como o dinamismo da paixão não é homogêneo nem o mesmo em todos os
indivíduos, os pós-modernos, de maneira geral, enfatizam a diferença, mais do que a identidade.
Disso decorre uma grande valorização da intimidade individual e também uma visão da
singularidade como conjunto de fragmentos (não como uma
Página 393
unidade). Indivíduo, a propósito, sequer seria um termo adequado, pois, segundo pós-modernos
como Gilles Deleuze (1925-1995), não há indivíduos como seres autônomos, e sim “pontos” em que
o ritmo do conjunto se concentra. Num âmbito maior, o mundo e a Sociedade seriam dispersões de
fragmentos, sem correlação necessária. Mesmo no processo de criação artística, científica ou
filosófica, toda pretensão de encontrar um sentido geral, dar um sentido global para uma narrativa
ou chegar a alguma identidade por trás da diversidade será considerada uma ilusão ou um
resquício da atitude “totalizante” da razão moderna. Na Literatura, o estilo pós-moderno pode ser
encontrado na obra de autores como Jorge Luís Borges (1899-1986) e Julio Cortázar (1914-1984);
na dramaturgia, pode-se mencionar o Teatro do Absurdo e as peças de Samuel Bekett (1906-1989);
em Filosofia, Jean-François Lyotard (1924-1998), Gilles Deleuze, Gianni Vattimo (1936- ) e Julia
Kristeva (1941-). Mesmo na filosofia da ciência e na prática científica ou na reflexão sobre o
conhecimento ligado ao modelo científico (domínios em que a Pós-Modernidade pareceria nunca
entrar, por causa de seu “adeus” à razão), autores relevantes como Paul Feyerabend (1924-1994) e
Richard Rorty (1931-2007) deixam-se influenciar por elementos pós-modernos. Em Política, pode-
se mencionar Peter Sloterdijk (1947-), Slavoj Žižek (1949-) e Giorgio Agamben (1942-). O debate
sobre a Pós-Modernidade é de grande interesse filosófico e chega mesmo a ser polêmico, uma vez
que o pensamento pós-moderno pode parecer ilusório: para criticar a razão, a própria razão é
acionada; fazer a defesa da paixão, mas se servindo de um discurso que se pretende racional
(convincente, coerente e argumentativo), é dar prioridade novamente à razão. Seja como for,
debates como esse testemunham a grande vitalidade da Filosofia.
9 Filosofia no Brasil
Quando se estuda o desenvolvimento da Filosofia no Brasil, costuma-se, em geral, concentrar a
atenção no século XX, quando foram estruturadas as primeiras Faculdades de Filosofia e quando a
Filosofia foi profissionalizada pelo saber universitário. De fato, como também ocorreu em vários
outros lugares do mundo, o saber filosófico foi concentrado nas universidades durante o século XX.
A primeira faculdade de Filosofia no Brasil foi a Faculdade de São Bento, criada em 1908, no
Mosteiro de São Bento de São Paulo. Posteriormente, ela foi transferida à Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (nos anos 2000, o Mosteiro de São Bento abriu um novo curso, que funciona
até hoje).
Acesse:
No entanto, as raízes do trabalho filosófico no Brasil vêm de muito antes do século XX. Na realidade,
o cultivo da Filosofia iniciou já nos tempos da Colônia, não apenas no Brasil, mas em vários outros
pontos da América Latina, devido principalmente às práticas culturais implantadas pelos jesuítas e
por especialistas de Direito vindos da Europa. A esse respeito, afirmou-se, durante muito tempo,
que a atividade filosófica dessas personagens era voltada apenas para justificar a colonização e a
exploração do continente latino-americano. Hoje, porém, sabe-se que, apesar de terem existido
diferentes “pensadores colonialistas”, também houve professores e pensadores dedicados a criar
formas de
Página 394
Acesse:
Um aspecto delicado da prática filosófica brasileira – que, porém, deve ser sempre lembrado e
pensado – refere-se ao fato de que o estudo de Filosofia em nosso país foi tirado de nossas escolas
durante a ditadura militar. A disciplina de Filosofia era considerada inútil. O que se valorizava era a
formação técnica e tecnológica dos estudantes, pois, como diziam os líderes do governo, o Brasil
precisava entrar no cenário mundial dos países desenvolvidos. Eles acreditavam que os estudos
filosóficos eram perda de tempo porque não interessavam ao desenvolvimento do país e
simplesmente cancelaram as aulas de Filosofia nas escolas. Além disso, como o pensamento
filosófico dá liberdade a quem o pratica, não interessava cultivar Filosofia em um contexto
autoritário e violento como foi a ditadura militar. Apenas em 2008 foi retomada a obrigatoriedade
do ensino de Filosofia no Ensino Médio. A respeito da história do ensino de Filosofia no Brasil, é de
grande proveito a leitura do Capítulo 1 do livro organizado por Marcelo Carvalho, Gabriele Cornelli
e Márcio Danelon, Filosofia: coleção Explorando o Ensino (MEC, 2010), disponível gratuitamente em:
<http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman& view=download&alias=7837-2011-
filosofia-capa-pdf&category_slug=abril- 2011-pdf&Itemid=30192> (acesso em: 24 abr. 2016).
Acesse:
Índice analítico
Indicam-se aqui as páginas em que aparecem os termos e os nomes próprios mais recorrentes
(apenas termos filosóficos e apenas nomes de filósofas e filósofos). Para nomes modernos e
contemporâneos, começa-se pelo sobrenome; para nomes antigos e medievais, pelo nome. A
palavra latina passim indica que o termo ocorre em muitas páginas ao longo de todo o livro. Os
números em negrito indicam páginas com a biografia dos pensadores.
a posteriori – 270
a priori – 270, 273, 352
absoluto – 100, 101, 294, 295
abstração – 129, 193, 375, 376
absurdo – 83-85
acaso – 82, 308
admiração – 31, 32, 193
Adorno, Theodor – 362, 363, 390
aforismo – 345
Agamben, Giorgio – 393
ágape – 169
agnosticismo – 318
Agostinho de Hipona – 68, 161, 170, 239-243, 290, 326, 354, 379
Al-Farisi – 291
Al-Hazem – 291
Al-Tusi – 384
Alcorão – 83, 315
Alano de Lille – 183
alegria – 22, 23, 38, 39, 74, 101-103, 129, 133, 150, 165, 166, 264, 273, 277, 308, 320
alienação – 117, 221, 294
alma – 91, 92, 102, 190-193, 238-241, 272, 340, 343, 347, 349, 356, 371, 379, 387, 388
alteridade – 112
Althusser, Louis – 258, 259
amizade – 82, 101, 106, 108-119, 161-181
amor – passim
anacronismo/anacrônico – 186
analogia – 47-50, 317
Anaxágoras – 376
animalidade humana – 120-123, 132, 139, 187, 231
ANPOF – 393
Anselmo de Cantuária – 381
Antístenes – 42
antítese – 106, 107, 177, 264
Antropologia – 21, 233, 239, 274, 301, 361
antropomorfismo/antropomorfização – 122, 123, 323
aparência – 148, 152-160, 173, 175, 254, 291, 374
Apolo/apolíneo – 145, 148, 170, 171
aporia – 62
Arcesilau – 377
arché – 371, 374, 376, 377
Arendt, Hannah – 116, 117, 122, 123, 132, 139, 204, 259, 276, 392
argumento – passim
Aristipo de Cirene – 91
Aristóteles – 31, 32, 36, 47, 50, 52, 55, 66, 93, 97, 101-103, 112-114, 116, 161, 163-166, 187, 188, 191, 206-212, 264-269, 272, 273,
284, 289, 290, 324, 335, 370, 373, 377
arte – 16, 19-21, 76, 143, 214, 236, 282-305, 365, 382, 383, 384, 385, 391
ataraxía – 340
ateísmo – 317-323, 388
atenção (ato) – 198-200, 351, 356
ato de existir – 77-79
autocrítica – 193, 197, 199, 224, 389
autodeterminação – 214
autoridade – 47-49, 252, 253, 256, 257
autoritário/autoritarismo – 224, 317
autorreferência – 115-117
Averróis – 381
Avicena – 63, 355, 356
Bacon, Francis – 336, 337
Balibar, Étienne – 274
Basílio de Cesareia – 379
Bauman, Zygmunt – 203, 261
Baumgarten, Alexander – 293
Bazin, André – 284, 287
Beauvoir, Simone de – 196
beleza – 19-22, 40, 80, 81, 125-127, 133, 175, 185, 194, 269, 283-305, 339, 386
bem comum/bem público – 175, 224, 233, 247- 257, 384
Bem/Bem Supremo – 101, 164, 166, 187, 220, 288-290, 295, 377, 388
bem/bondade – 98-101, 132-134, 138, 146, 154- 156, 158, 164, 166, 170, 186, 187, 197, 214, 251, 256, 265-269, 290, 308, 326, 339
benevolência – 113-114
Bentham, Jeremy – 94, 95
Bergson, Henri – 66-69, 245, 389
Berzelius, Jöns J. – 87
Bíblia – 82, 83, 114, 168, 315, 361, 377, 382
Biblialatria – 315
Big Bang – 82, 87
Biologia – 87, 192, 381
Biran, Maine de – 67, 69
Bitbol, Michel – 241
Bobbio, Norberto – 251
Boécio – 30, 97, 111, 326, 327, 354, 379
Bornheim, Gerd – 393
Brentano, Franz – 351, 352
Butler, Judith – 196, 200
Camus, Albert – 41, 84, 85, 105
capital/capitalismo – 221, 263
caridade – 169, 170, 173
Carnéades – 341, 377
cartesianismo – 192
causa – 11, 205, 213-216, 264, 323-325, 336, 337, 361, 362, 389
cerne da alma – 242, 243
ceticismo/cético – 32, 33, 273, 340-344, 349, 352, 354, 356, 377, 385, 387
Chomsky, Noam – 233
Cícero (Marco Túlio Cícero) – 110, 111, 112, 117, 267
cidadania – 258, 259, 274, 276
cidadania em rede – 276
cidade-Estado – 251, 252, 376
cência/ciências – 17-19, 83, 96, 124, 126, 193, 198, 201, 234, 245, 261, 265, 269, 308, 309, 316, 327-329, 335, 344, 348, 353, 357-
364, 381, 384, 387-392
cinema – 38, 106
cinismo – 42, 43
Círculo de Viena – 77
cireneus/cirenaísmo – 90-93, 95
Clifford,William K. – 316
colaboração – 231-233
compaixão – 168, 169, 175
comparação (teoria) – 272-274
compreender (ciências humanas) – 361, 362, 365
Comte, Auguste - 361
comunitarismo – 224, 225
concorrência – 231-234, 244
concupiscência – 113
condição necessária/suficiente – 93
confiança – 155, 327-329
conhecimento – passim (principalmente 334-367)
Conrad-Martius, Hedwig – 391
consciência – 126, 187, 192, 264, 267, 309, 310, 348-356
consequência – 264, 275, 361, 362
Contemporaneidade/Idade Contemporânea – 192, 193, 196, 261, 327, 389-393
contradição – 61, 62, 172, 175, 210-212, 224, 229
contraposição – 152, 153
contrariedade – 210-212, 224, 229
Copérnico, Nicolau - 383, 384
coração – 243
corpo – passim (principalmente 237-241)
corrente vital (fluxo vital) – 129-135, 139
cortesia – 185, 186
cosmopolítica/cosmocidadania – 274
crença – 156, 195, 235, 276, 316, 342
criação (do Universo) – 82, 83, 166, 167, 290, 321-327, 371, 377-379
criacionismo – 82
Crise Iconoclasta – 291
cristianismo/cristão – 172, 175, 177, 192, 196, 267, 355, 371, 378-380
criticismo – 207, 388
cuidado (conceito psicanalítico) – 127, 139
culpa (sentimento de) – 173, 175, 177, 319
Cultura – passim (principalmente 206-217, 220-226, 230-245, 298, 351, 361-364, 388)
Da Vinci, Leonardo – 235, 292, 385
dadaísmo – 297
Danto, Arthur – 301, 302
Darwin, Charles – 231-233, 361
Dawkins, Richard – 73, 87
Debord, Guy – 228
decadência (décadence) – 172-175
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) – 258
Declaração dos Direitos Humanos (1948) – 276, 277
dedução – 47-50, 66, 360
deísmo – 323, 324
Deleuze, Gilles – 392, 393
Delumeau, Jean – 175
democracia/democrático – 117, 233, 236, 251, 258, 259, 330, 358
Demócrito de Abdera – 79, 82
demonstrar – 172
Derrida, Jacques – 14, 114, 115
Descartes, René – 67, 127, 190, 191, 192, 203, 213, 222, 234, 258, 291, 295, 336, 349, 354, 355, 365, 384, 387-389
desconstrução – 10-19, 30
desejo – 28, 84, 92, 93, 95, 146-148, 213, 289, 306-308, 392
desigualdade – 218-226
desindividualização – 218, 219
desumanização – 117, 264
Deus – 81-85, 89, 166-170, 172, 173, 178, 179, 184, 213, 253, 257, 290, 295, 297, 306-333, 339, 377-380, 383, 388
dever – 270, 271
dialética – 61-63, 156, 389
Página 396
388
Leibniz, Gottfried W. – 321, 324
Leucipo – 82
Lévi-Strauss, Claude - 392
Leviatã – 257, 258
liberalismo – 222-225
liberdade – 32, 41, 85, 197-198, 204-229, 234, 258, 261, 267, 275, 284, 296, 312, 320, 325-327, 330, 362, 379, 385, 388, 394
Lima, Vaz, Henrique C. – 295, 393
linguagem – 76, 77, 89, 344-347, 381, 391
Linguística – 115
Literatura – 13, 38, 40, 41, 115, 304, 305, 381, 383, 389, 392, 393
livre-arbítrio – 213, 214, 226
Locke, John – 222, 223
Lógica – 35, 50, 63, 198, 340, 381
lógos – 35, 374
luta de classes – 214, 216
Luxemburgo, Rosa – 251, 391
luz – 17, 99, 291
Lyotard, Jean-François – 393
machismo – 185, 186, 196, 263
Macintyre, Alasdair – 224, 225, 273, 279
Maimônides – 381
mal/maldade – 85, 326, 327
maniqueísmo – 176, 177
Maquiavel, Nicolau – 253-260, 385
Marcuse, Herbert – 97, 259, 362-365, 390
Marx, Karl – 25-29, 214, 216, 220, 221, 222-225, 251, 323, 390, 391
marxismo – 222-225, 259
massa – 16-17
Matemática/matemático – 13, 35, 43, 69, 115, 148, 155, 156, 192, 234, 266, 269, 288-291, 319, 347, 359, 360, 365, 374, 375, 383-
385, 387, 388
matéria – 79-81, 242, 243, 245, 388-391
materialismo – 79, 80, 308, 385, 388
mecanicismo/mecânico – 123, 192, 193, 235-237, 292, 336, 337, 357, 388, 391
Medicina – 123, 192
meio-termo/mediedade – 265-269
meios de produção – 221-224
melancolia – 32, 33, 193, 194
memória – 231, 245, 267, 348
mente – 192, 193, 241, 325, 347
mercado – 224, 363
Mercado, Tomás de – 394
mercadoria – 23-27, 220, 221, 362, 363
Merleau-Ponty, Maurice – 128, 129, 130, 139, 214-217, 228, 237-239, 242, 371, 391
Meslier, Jean – 333
Metafísica – 25, 31, 311, 312, 319
metáfora – 48, 49, 66, 69, 156, 175, 192, 202, 234-236, 243, 254, 291, 357, 390
método – 15, 19, 33, 40-44, 47, 62-69, 374
misericórdia – 168, 169, 173, 175
mistério – 82, 193, 194, 307-317
mito/mitologia – 40, 126, 144, 145, 313, 371-376
modelo/paradigma – 150, 152, 293, 358, 383-385, 388, 390
Modernidade/Idade Moderna – 191, 193, 207, 251, 254, 266, 292, 324, 335, 343, 357, 385-387
modus ponens – 56
modus tollens – 56, 360
Montaigne, Michel de – 228, 387
Montesquieu – 258
Moore, George E. – 98, 99-101
Moral – ver Ética morte – 72, 77, 85, 88, 89, 125, 161, 250, 284, 326, 372-374, 379
muçulmano – 166, 168, 185, 325, 355, 371, 380, 381
mundo – passim (principalmente 74-89, 322-329)
Murdoch, Iris – 41, 197, 198, 199, 200, 202
música – 38, 41, 63, 303, 363
Nagel, Thomas – 245
naturalismo – 96, 98
Natureza – passim (principalmente 204-207, 230-245, 298, 388)
natureza humana – 208
Neurociências – 201, 202, 245
Newton, Isaac – 16-18
Nicolau de Cusa – 384
Nicolau de Oresme – 384
Nietzsche, Friedrich – 97, 170, 171, 172, 173-177, 181, 285-287, 318, 319, 391
Novalis – 389
Numinoso – 314-317
Nunes, Benedito – 305, 393
objetivo (finalidade) – 11, 74, 205-207, 213-216, 250-254, 267, 270
objetivo (independente da vontade das pessoas) – 47, 49, 126, 193, 196-198, 214, 217, 230, 293, 294, 337, 338, 357-364, 391
objeto – 23, 65, 66, 194, 265, 314, 337
origem – 74, 75, 213, 371-376
origem do mundo (da existência) – 74-76, 82, 87, 167-168, 324-327, 371-377
Óptica – 291, 381
pacto social – 257
paixão – 92, 187-192, 196, 203, 214, 264, 272-274, 277-278, 285, 340, 387, 392
para-si – 294
paralogismo – 58
Parmênides de Eleia – 61, 370
Pascal, Blaise – 89, 191, 192, 324, 331, 389
Patrística – 166, 167, 181, 290, 291, 297, 354, 378-380, 385
Pedro Abelardo – 14, 63, 65, 98, 105, 202, 203, 264, 381
pensamento – passim pensamento do pensamento – 35, 36, 237, 283
pequena-burguesia/pequeno burguês – 214, 216
percepção – 65, 66, 193, 194, 202, 205, 231, 237, 240, 264, 288, 295, 310-312, 344-353, 358
perfeição/perfeito – 197-199
pessoa (conceito) – 239-243, 257, 290, 362, 378
philía – 116, 164, 169
phýsis – 371, 373-377, 379, 383
Pirro de Élis – 32, 340, 377
Pitágoras de Samos – 61, 289
pitagorismo – 288, 289
Platão – 14, 32, 33, 40-42, 61-64, 80, 81, 82, 97, 143, 166, 170, 175-177, 187, 188, 191, 198, 214, 251- 253, 256, 258, 267, 269, 273,
288-291, 295-297, 323, 335, 370, 377-379
Plotino – 36, 289, 290, 377, 378
Poder – 246-261, 376, 384, 391
poesia – 183, 193-195, 389
pólis – 116, 117, 210, 376
Política – 117, 177, 191, 218, 246-261, 273, 288, 318, 346, 358, 376, 384, 387, 392, 393
político (sentido) – 117
Popper, Karl – 337, 358-361, 365
Porchat Pereira, Oswaldo – 340, 342, 343
Porfírio – 97, 290
pós-modernidade – 392, 393
Prado Júnior, Bento – 393
prática/práxis – 264
prazer – 31-32, 61, 90-107, 121, 125, 146-149, 154, 155, 164-166, 169, 170, 173, 174, 184, 277, 283, 352, 363
preconceito/preconcepção – 213, 237, 392
premissa – 44-65
pressuposto – 44-46, 51, 327, 328
Princípio de Clifford/Outro Princípio de Clifford– 316, 317
princípio de identidade – 52, 54
princípio de não contradição – 52, 66, 327-329
princípio do terceiro excluído – 52
privado (subjetivo) – 197, 200, 293, 294
probabilidade – 341
problema do mal – 85, 326
progresso – 198-199, 388, 390, 392
propriedade privada – 221, 222, 376
prova – 77, 82-86, 91, 124, 126, 132, 172
prudência/prudente – 93, 94, 101, 103, 266-270
Psicanálise – 19, 124-134, 138, 139, 196, 245, 259, 274, 390
psicofisiologia/psicofisiológico – 237, 238
Psicologia – 19, 192, 301, 309, 361, 362, 365
psyché – 371 (ver alma)
público (objetivo) – 197, 200
pulsão – 124, 125-127
Quadrado das oposições/Quadrado lógico – 211, 212, 359
quaestio (questão) medieval – 113
quantidade e qualidade (proposição e termo) – 210
queer (teoria) – 196
Química – 74, 87, 126, 192
raciocínio – passim raciocínio a fortiori – 121
racionalismo/racionalista – 191, 193, 207, 213, 237, 336-338, 349, 385, 387-389
Rahner, Karl – 328
razão – passim (principalmente 33-35, 374)
realidade – passim reciprocidade – 113, 114
reconstrução – 13-15, 20-29
redução ao impossível – 61
regra – 43, 52-61, 96-98, 152, 156, 181, 196-198, 270, 335, 346, 349, 360, 376
Regra de Ouro – 270, 273
relação interpessoal – 145, 162-164, 186, 187, 196, 310
relatividade (teoria) – 17, 18, 390
relativismo cultural – 239, 387
relativismo ético – 266
religião – 16, 19, 20, 213, 233, 255, 269, 291-294, 306-333, 346, 379-382, 387
Renascimento – 188, 189, 253, 291-293, 297, 357, 382-387
representação – 335-343
responsabilidade – 85, 117, 127, 134, 219, 275, 327, 330
ressentimento – 172
revolta – 85, 86, 193, 201, 326
Romance da Rosa – 184, 203
romance de cavalaria – 185, 186
Romantismo/romântico – 193-195, 198, 201, 235, 286, 287, 295, 389
Rorty, Richard – 393
Rousseau, Jean-Jacques – 132, 272-274, 323
Rumi – 11, 13, 36, 41
Russell, Bertrand – 106, 322, 323
saberes – 16-19, 30, 35, 124
Sagrado – 314-317, 371
Sartre, Jean-Paul – 32, 40, 41, 228, 323, 391, 392
satisfação – 146-149, 192, 308
Scheler, Max – 391
Schelling, Friedrich W. J. – 67, 235
Schlegel, Friedrich – 193-195, 389
Schleiermacher, Friedrich – 311-314, 361
Schopenhauer, Arthur – 67, 84, 85, 86, 174, 196, 227
Searle, John – 241
seleção natural – 231
semelhança – 110-112, 121-123, 152, 234, 264, 325, 329
Sêneca – 55, 111, 340
sensível/sensação/sensibilidade – 152, 156, 164, 194-196, 240, 269, 288, 289, 293-295, 324, 336- 356, 359, 387-389
sentido – passim (principalmente 73-75)
sentido (cinco sentidos) – 78, 100, 102, 240, 269,
Página 398
288, 293, 309, 310, 324, 336, 338, 349, 355, 374, 387
sentido da existência – passim (principalmente 72-89)
sentimento – 193-195, 230, 308, 310-313
Sexto Empírico – 340, 341, 342
sexualidade – 120-141, 196
Sheldrake, Rupert – 87, 235, 236
significado – 73-75
silogismo – 47, 50-63
Simmel, Georg – 361
simpatia (teoria) – 272-274
Simplício – 373, 374
síntese – 14, 177
Sloterdijk, Peter – 393
soberania/soberano – 257
socialismo – 222
Sociedade – passim (principalmente 204-229)
Sociologia/sociólogo – 19, 21, 27, 148, 233, 274, 301, 361
Sócrates – 33-34, 41, 42, 61, 63, 64, 89, 156, 157, 158-161, 377
Sofistas – 14, 82, 83, 269, 377
sofrimento – 84, 85, 104, 125-127, 154, 161, 169, 233, 263, 264, 277, 326, 327
sonho – 126, 128, 161, 170-172, 184, 196, 261, 334
sorites – 55, 56, 250
Souza, Gilda de Mello e – 393
Spencer, Herbert – 361
Stein, Edith – 130, 131, 132, 133, 134, 139, 242, 243, 350, 391
Stuart Mill, John – 95, 322
subjetivo (ligado ao eu)/subjetividade – 200, 214, 217, 293, 294, 314, 337, 338, 343, 350, 351, 353, 363, 364, 388, 391
sublime – 193
substância – 22, 23, 213, 240, 319
sujeito – 214, 217, 351, 353
Superego – 125, 126
superstição – 213, 320, 321, 379
surrealismo – 143, 297
tabula rasa – 222, 337, 338, 349, 355
Tales de Mileto – 373-376
tautologia – 100, 101
tecnologia – 235, 391
tédio – 84
teísmo – 323-325
tempo – 17, 66, 68, 284, 337, 338
Teofrasto – 377
Teologia – 381
Teoria das Ideias (Formas/Essências) – 152, 153, 164, 251, 288, 289, 376
termo médio – 52-55
Tocqueville, Alexis de – 247, 248
tolerância – 308
Tomás de Aquino – 63, 112-114, 115, 117, 167, 267, 291, 324-329, 354, 355, 381
totalitarismo – 117, 276, 358
trabalho – 221
transcendência/transcendente – 79-83, 96-98, 155, 237, 295, 306-311, 316, 317, 319-330, 338, 339
transcendental – 317, 338, 339, 347, 388
Tristão e Isolda – 182, 183, 203
troca – 220-223
universais (problema dos) – 96-98, 105
universal (conceito, realidade) – 95, 96, 98
Universo – 83, 155, 188, 189, 235, 288, 290, 299, 312, 340
unívoco/univocidade – 215
Uno – 289, 290
utilitarismo – 94-96
utopia – 261
validade – 51
valor (ético) – 80, 193-195, 198, 230, 266, 275, 310
valor de uso/valor de troca – 221
variação – 351, 355
Vattimo, Gianni – 393
verdade – 50, 51, 80, 166, 167, 187, 193-195, 210-212, 340, 346, 354, 357-364
vício – 183, 186, 188, 265
Vieira, Antonio – 394
violência – 122, 123, 171, 178, 257, 263, 317, 330, 394
virtude – 62, 63, 93, 101, 102, 106, 169, 185-188, 265-273
visão (sentido corpóreo) – 31, 66, 67, 143, 161, 284
Viveiros de Castro, Eduardo – 278
Voltaire – 131, 132, 323
Von Hildebrand, Dietrich – 275
vontade – 190, 257, 352
Weil, Simone – 46, 198, 199, 251
Whitehead, Alfred North – 235
Wiesel, Elie – 86
Winnicott, Donald – 126, 127, 139
Wittgenstein, Ludwig – 32, 33, 75, 76, 77, 343-351, 365, 391
Xenófanes de Colofon – 311-323
Zenão de Cítio – 340
Zenão de Eleia – 61
Žižek, Slavoj – 393
As obras consultadas para a redação de nosso livro são aqui indicadas em edições acessíveis ao
público brasileiro (algumas delas remetem a edições não exatamente citadas ao longo do livro,
porém mais facilmente localizáveis). Quando não há tradução em português, indica-se uma
tradução em espanhol, língua estrangeira mais acessível aos leitores de língua portuguesa. Outras
obras, principalmente escritas em língua estrangeira, não são aqui registradas, mas suas referências
completas são dadas nos capítulos deste livro.
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução
Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
ADORNO, Theodor W. A indústria cultural. In: COHN, Gabriel.; FERNANDES, Florestan (Coord.). Sociologia. São
Paulo: Ática, 1986.
AGOSTINHO DE HIPONA. Confissões. Tradução Maria Luíza J. Amarante. São Paulo: Paulus, 2010.
AGOSTINHO DE HIPONA. Sobre as ideias (Questão 46 do Livro sobre oitenta e três questões diversas). Tradução
Moacyr Novaes. In: Cadernos de Trabalho CEPAME. São Paulo: Centro de Estudos de Filosofia Patrística e
Medieval de São Paulo, 1993, v. II , n. 1. p. 6-11. Disponível em: < http://cepame.fflch.usp.br/sites/cepame.
fflch.usp.br/files/u31/Cadernos%20Cepame%20II%201.PDF>. Acesso em: 23 maio 2016.
ALCORÃO SAGRADO: O significado do Alcorão Sagrado com comentários. Tradução Samy El Hayek. São Paulo:
Marsam, 2012.
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de Estado. Tradução Walter J. Evangelista e Maria Laura Viveiros de
Castro. Rio de Janeiro: Graal, 1983.
ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução Ricardo Raposo. São Paulo: Forense, 2007.
ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Companhia de Bolso,
2008.
ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Tradução André Duarte. São Paulo: Civilização Brasileira, 2009.
ARISTÓTELES. Da interpretação. Tradução José Veríssimo T. Mata. São Paulo: Ed. da Unesp, 2013.
ARISTÓTELES. De anima [Sobre a alma]. Tradução Maria Cecilia Gomes Reis. São Paulo: Ed. 34, 2006.
ARISTÓTELES. Ethica nicomachea I 3 – III 8: Tratado da virtude moral. Tradução Marco Zingano. São Paulo:
Odysseus, 2008.
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
(Coleção Os Pensadores).
ARISTÓTELES. Segundos Analíticos. In: ANGIONI, Lucas. Lógica e ciência em Aristóteles. Campinas: Phi, 2014.
Página 399
AVICENA. Livro da alma. Tradução Miguel Attie Filho. São Paulo: Globo, 2011.
BACON, Francis. Novo Órganon (Instauratio magna). Tradução Daniel M. Miranda. São Paulo: Edipro, 2014.
BARÃO DE HOLBACH. Sistema da Natureza ou Das leis do mundo físico e do mundo moral. Tradução Regina
Schöpke e Mauro Baladi. São Paulo: Martins, 2011.
BARNES, Jonathan. Filósofos pré-socráticos. Tradução Julio Fischer. São Paulo: Martins, 1997.
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Tradução Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. 2 v.
BENTHAM, J. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. Tradução Luís João Baraúna. In: Bentham
& Stuart Mill. São Paulo: Abril, 1974. (Coleção Os Pensadores).
BERGSON. Ensaio sobre os dados imediatos da consciência. Tradução João S. Gama. Lisboa: Edições 70, 1988.
BOÉCIO. Consolação da filosofia. Tradução William Li. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Tradução Renato Aguiar. São Paulo: Civilização Brasileira, 2003.
CAMUS, Albert. O homem revoltado. Tradução Valerie Rumanjek. Rio de Janeiro: Record, 1996.
CÍCERO. Sobre a amizade. Tradução João Teodoro O. Marote. São Paulo: Nova Alexandria, 2006.
DANTO, Arthur. O abuso da beleza. Tradução Pedro Sussekind. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2015. Coleção
Mundo da Arte.
DELUMEAU, Jean. O pecado e o medo: a culpabilização no Ocidente. Tradução Álvaro Lorencini. Bauru: EDUSC,
2003.
DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. Tradução Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2009.
DERRIDA, Jacques. Essa estranha instituição chamada Literatura: uma entrevista com Jacques Derrida.
Tradução Marileide D. Esqueda. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2014.
DESCARTES, René. As paixões da alma. Tradução Rosemary C. Abílio. São Paulo: Martins, 2009.
DIDI-HUBERMAN, George. Diante da imagem. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2014.
DIÓGENES LAÉRCIO. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Tradução Mário G. Kury. Brasília: EdUnB, 1988.
DUARTE, Rodrigo (Org.). O belo autônomo: textos clássicos de estética. Belo Horizonte: Autêntica & Crisálida,
2012.
EPICTETO. Manual. Tradução Aldo Dinucci e Alfredo Julien. In: DINUCCI, A. O Manual de Epicteto. Aracaju: Ed.
da UFSE, 2012.
EPICURO. Carta sobre a felicidade (A Meneceu). Tradução Álvaro Lorencini. São Paulo: Ed. da Unesp, 1999.
ESPINOSA, Baruch de. Ética. Tradução Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.
ESPINOSA, Baruch. Tratado político. Tradução Diogo Pires Aurélio. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.
FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer. Tradução Renato Zwick. Porto Alegre: L&PM, 2016.
FREUD, Sigmund. Novas conferências sobre a Psicanálise. In: Obras completas. Tradução Paulo César de Souza.
São Paulo: Companhia da Letras, 2010. v. 18.
GUILHERME DE OCKHAM. Brevilóquio sobre o principado tirânico. Tradução Luís Alberto de Boni. Petrópolis:
Vozes, 1988.
GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. Tradução Benno Dischinger. São Leopoldo: Unisinos,
1999.
HEGEL, Georg W. F. Fenomenologia do espírito. Tradução Paulo Meneses. Petrópolis: Vozes, 2011.
HEIDEGGER, Martin. Introdução à metafísica. Tradução Emanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1989.
HOBBES, Thomas. Leviatã. Tradução João Paulo Monteiro e Maria Beatriz N. da Silva. São Paulo: Abril Cultural,
1988. (Coleção Os Pensadores).
HUME, David. Investigações sobre o entendimento humano e sobre o princípio da moral. Tradução José Oscar A.
Marques. São Paulo: Ed. da Unesp, 2004.
HUME, David. Tratado da natureza humana. Tradução Déborah Danowski. São Paulo: Ed. da Unesp, 2000.
HUSSERL, Edmund. Meditações cartesianas & Conferências de Paris. Tradução Pedro M. S. Alves. São Paulo:
Forense, 2013.
IBN ARABI. Tratado del amor. Tradução Maurice Gloton. Madri: EDAF, 1996.
JONAS, Hans. O conceito de Deus após Auschwitz. Tradução Lilian Simone G. Fonseca. São Paulo: Paulus, 2016.
KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Tradução Valerio Rohden & Antonio Marques. São Paulo:
Forense, 2008.
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução Valerio Rohden e Udo B. Moosburger. São Paulo: Abril
Cultural, 1980. (Coleção Os Pensadores).
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução Guido A. Almeida. São Paulo: Barcarola
& Discurso, 2010.
KANT, Immanuel. Ideia de uma História universal de um ponto de vista cosmopolita. Tradução Ricardo R. Terra
& Rodrigo Naves. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2003.
KIERKEGAARD, Søren. O conceito de angústia. Tradução Álvaro M. Valls. Petrópolis: Vozes, 2010.
KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. Tradução Beatriz V. Boeira. São Paulo: Perspectiva, 2010.
LEÃO HEBREU. Diálogos de amor. Tradução Giacinto Manuppella. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
2001.
LIMA VAZ, Henrique C. Introdução à Ética filosófica. São Paulo: Loyola, 2006. 2 v. (Col. Escritos de Filosofia).
LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. Tradução Julio Fischer. São Paulo: Martins, 1998.
MACYNTIRE, Alasdayr. Justiça de quem? Qual racionalidade? Tradução Marcelo P. Marques. São Paulo: Loyola,
2010.
MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Tradução Lívio Xavier. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Coleção Os
Pensadores).
MARCUSE, Herbert. Homem unidimensional. Tradução Robespierre de Oliveira & Rafael C. Silva & Deborah C.
Antunes. São Paulo: Edipro, 2015.
MARX, Karl. O capital. Tradução Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Coleção Os
Economistas).
MARX, Karl. O capital. Tradução Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013. 2 v.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Tradução Carlos Alberto R. Moura. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2013.
Página 400
MONTAIGNE, M. Ensaios. Tradução Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 3 v.
MOORE, George E. Principia ethica [Princípios éticos]. Tradução Márcio Pugliesi e Divaldo R. Meira. São Paulo:
Ícone, 1998.
MURDOCH, Iris. A soberania do Bem. Tradução Julián Fuks. São Paulo: Ed. da Unesp, 2013.
NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. Tradução Paulo C. Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo. Tradução Paulo C. Souza. São Paulo: Companhia de Bolso, 2008.
NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano. Tradução Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril
Cultural, 1987. (Coleção Os Pensadores).
OTTO, Rudolf. O Sagrado: aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o racional. Tradução
Walter O. Schlupp. São Leopoldo: EST; Sinodal; Vozes, 2007.
PASCAL, Blaise. Pensamentos. Tradução Mario Laranjeira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2005.
PEDRO ABELARDO. Etica o conocete a ti mismo. Tradução Pedro Santidrián. Madri: Tecnos, 1990.
PLATÃO. A República. Tradução Anna Lia A. Almeida Prado. São Paulo: Martins, 2014.
PLATÃO. A República. Tradução Maria Helena R. Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993.
PLATÃO. O banquete. Tradução José Cavalcante de Souza. São Paulo: Abril, 1987. Coleção Os pensadores.
PLATÃO. Sofista. Tradução Jorge Paleikat e João Cruz Costa. São Paulo: Abril Cultural, 1980. (Coleção Os
Pensadores).
PLOTINO. Enéada III.8 [30]: sobre a natureza, a contemplação e o Uno. Tradução José Carlos Baracat Júnior.
Campinas: Ed. da Unicamp, 2008.
PLOTINO. Enéadas: Primeira Enéada. Tradução José R. Seabra Filho & Juvino A. Maia Júnior. Santos: Nova
Acrópole, 2014.
PLOTINO. Enéadas: Segunda Enéada. Tradução José R. Seabra Filho & Juvino A. Maia Júnior. Santos: Nova
Acrópole, 2015.
PORCHAT PEREIRA, Oswaldo. Rumo ao ceticismo. São Paulo: Ed. da Unesp, 2015.
PORFÍRIO. Isagoge. Tradução Bento Silva Santos. São Paulo: Attar, 2002.
PRADO JÚNIOR, Bento. Erro, ilusão, loucura. São Paulo: Ed. 34, 2004.
RAHNER, Karl. Curso fundamental da fé: introdução ao conceito de cristianismo. Tradução Alberto Costa. São
Paulo: Paulinas, 1984.
ROUSSEAU, J.-J. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Tradução Paulo
Neves. Porto Alegre: L&PM, 2008.
ROUSSEAU, J.-J. Emílio ou da Educação. Tradução Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.
RUSSELL, Bertrand. Por que não sou cristão. Tradução Mário Alves e Gaspar Barbosa. Disponível em:
<http://criticanarede. com/brussellporquenao-soucristao.html>. Acesso em: 26 jan. 2016.
SARTRE, Jean-Paul. A náusea. Tradução Rita Braga. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
SCHLEGEL, Friedrich. Dialeto dos fragmentos. Tradução Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1997.
SCHLEIERMACHER, Friedrich. Sobre a religião. Tradução Daniel Costa. São Paulo: Novo Século, 2000.
SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do amor & Metafísica da morte. Tradução Jair Barboza. São Paulo: Martins,
2004.
SCHOPENHAUER, Arthur. Vazio da existência. Tradução André Cancian. Disponível em: <
https://ateus.net/artigos/filosofia/ o-vazio-da-existencia>. Acesso em: 22 maio 2016.
SEARLE, John. A redescoberta da mente. Tradução Eduardo Pereira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 1997.
SEXTO EMPÍRICO. Hipotiposes pirrônicas: Livro I. Tradução Danilo Marcondes. O que nos faz pensar: Cadernos
do Departamento de Filosofia da PUC-Rio, n. 12, p. 115-122, 1997. Disponível em:
<http://www.oquenosfazpensar.com/ adm/uploads/artigo/traducao_hipotiposes_pirronicas/ n12traducao.
pdf>. Acesso em: 22 maio 2016.
SHELDRAKE, Rupert. Ciência sem dogmas. Tradução Mirtes F. O. Pinheiro. São Paulo: Cultrix, 2014.
STEIN, Edith. Estructura de la persona humana. In: Obras completas. Vários tradutores. Madrid: Monte
Carmelo, 2003. v. III.
STUART MILL, J. Sobre a liberdade. Tradução Pedro Madeira. São Paulo: Saraiva, 2011.
TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins, 2014. 2v.
TOMÁS DE AQUINO. Suma teológica. Vários tradutores. São Paulo: Loyola, 2000.
TOMÁS DE AQUINO. Verdade e conhecimento. Tradução Jean Luiz Lauand e Mario B. Sproviero. São Paulo:
WMF Martins Fontes, 2011.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais. São Paulo: Cosac Naify, 2015.
VON HILDEBRAND, Dietrich. Atitudes éticas fundamentais. Tradutor não indicado. São Paulo: Quadrante, 1988.
VOLTAIRE. Tratado sobre a tolerância. Tradução William Lagos. Porto Alegre: L&PM, 2008.
WEIL, Simone. Aulas de filosofia. Tradução Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 1991.
WINNICOTT, Donald. A natureza humana. Tradução Davi L. Bogomoletz. Rio de Janeiro: Imago, 1990.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Tradução José Carlos Bruni. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
(Coleção Os pensadores).
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico- Philosophicus. Tradução Luiz Henrique Lopes dos Santos. São
Paulo: EDUSP, 1994.