Claudia
Claudia
Claudia
ECOS DA SOLIDÃO:
UMA AUTOBIOGRAFIA DE
MAYA ANGELOU
SÃO PAULO
2008
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS E LITERÁRIOS EM INGLÊS
ECOS DA SOLIDÃO:
UMA AUTOBIOGRAFIA DE
MAYA ANGELOU
SÃO PAULO
2008
FOLHA DE APROVAÇÃO
Aprovado em ___/___/___
Banca Examinadora
Ao meu orientador Prof. Dr. Lynn Mário Trindade Menezes de Souza pela paciência e
valiosa orientação.
À Profa. Dra. Laura Izarra e Profa. Dra. Cielo Festino pelas valiosas contribuições por
ocasião do exame de qualificação.
Aos meus pais Antonio Fernandes e Maria da Conceição Nascimento Fernandes pela
presença companheira, pelo estímulo, pelas palavras de encorajamento quando tudo
parecia tão difícil, por cuidar de meu filho, mas, acima de tudo, pelas constantes orações.
Ao meu marido, Antonio José, pelo companheirismo, pela compreensão e ajuda em todos
os sentidos.
Aos meus irmãos Marco Antonio e José Luiz pelas palavras de encorajamento.
À minha tia Inez, tio Eduardo (In Memoriam), minha prima Maria Izaura, meus primos
Eduardo e Paulo Rogério pelas palavras de conforto durante a elaboração desse trabalho.
Às amigas de trabalho Cristina, Laís, Marli, Vanuza, Sônia pela ajuda durante a elaboração
desse trabalho e por se preocuparem. Sem sua inestimável ajuda, conforto e palavras
amigas eu não conseguiria.
À amiga Lucinda por me ajudar a ter momentos de tranqüilidade para a finalização deste
trabalho.
À amiga Cilmara “Nê” que trouxe alegria em momentos difíceis e que TANTO me ajudou
com os compromissos do trabalho.
À amiga Mônica e seu marido Bryan que cuidaram tão bem de mim quando eu estava
muito longe de casa. Mônica, muito obrigada pela cuidadosa revisão de meus trabalhos ao
longo do mestrado quando o tempo era tão curto. Thank you forever and always!
Ao Sr. Carlos e a Cléo por me ajudarem a chegar mais longe do que eu jamais pensei que
chegaria.
À Secretaria de Estado da Educação que por meio do programa Bolsa Mestrado concedeu-
me uma bolsa o que trouxe tranqüilidade financeira para a elaboração desse trabalho.
Ao Marx Santiago por me ajudar a formular as perguntas apropriadas e pela rica partilha
de lugares, falares e cantares por meio da literatura.
Ao meu filho Paulo Henrique Fernandes Corrêa pela leveza, pela alegria e carinho que
você me proporciona.
A meus pais
Antonio Fernandes
e
Maria da Conceição Nascimento Fernandes
RESUMO
Este trabalho centra sua atenção sobre a construção identitária por meio da palavra escrita,
refletindo sobre o passado por meio da narrativa autobiográfica I Know Why the Caged
Bird Sings (1970) da escritora afro-americana Maya Angelou.
Utilizamos a obra de Maya Angelou devido ao seu esforço pioneiro em confrontar
abertamente seu passado e fazer de suas mazelas pessoais um meio catártico: descer aos
infernos, ou à “morte” para retornar transformada.
This work focuses its attention on the construction of identity by means of the written word
using the autobiographical narrative I Know Why the Caged Bird Sings (1970) by the afro-
american writer Maya Angelou.
We have utilized the work of Maya Angelou due to her pioneering efforts to openly
confront her past and use her personal challenges as a cathartic means to descend to the
hells or to “death” so that she could be transformed.
INTRODUÇÃO....................................................................................................................1
CAPÍTULO I........................................................................................................................3
1. O PROCESSO DE ESCRAVIZAÇÃO DOS AFRICANOS...............................4
1.1 A DIÁSPORA AFRICANA PARA AS AMÉRICAS..........................................6
1.2 ALGUNS PONTOS DE VISTA ACERCA DA DIÁSPORA..............................7
1.3 A CHEGADA DOS AFRICANOS AOS ESTADOS UNIDOS
DA AMÉRICA..................................................................................................14
1.3.1 O IMPERIALISMO NORTE-AMERICANO.....................................20
1.3.2 LIBERDADE OU MORTE: OS ABOLICIONISTAS........................22
1.3.3 ABRAHAM LINCOLN: A ESPERANÇA DA NAÇÃO BRANCA
E O DESENCANTO DO POVO NEGRO......................................25
1.3.4 A PARTICIPAÇÃO DOS NEGROS NA GUERRA DA
SECESSÃO.......................................................................................27
1.4 A RECONSTRUÇÃO (1863-1877)...................................................................29
1.4.1 OS NEGROS E A RECONSTRUÇÃO...............................................31
1.4.2 A ECONOMIA NEGRA EM TEMPOS DE IBERDADE..................37
1.5 STAY IN YOUR CAGE NIGGER!: A SEGREGAÇÃO RACIAL
NOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA.................................................39
1.5.1 A KU KLUX KLAN..............................................................................44
1.6 OS NEGROS NA PRIMEIRA E NA SEGUNDA GUERRA
MUNDIAL....................................................................................................6
1.7 A LUTA PELOS DIREITOS CIVIS...................................................................7
CAPÍTULO II.....................................................................................................................62
2. INTRODUÇÃO..................................................................................................63
2.1 A NARRATIVA AUTOBIOGRÁFICA: ALGUMAS VISÕES.......................64
2.1.1 ELINOR OCHS & LISA CAPPS........................................................65
2.1.2 MARGARET R. SOMERS.................................................................66
2.1.3 JEROME BRUNER.............................................................................70
2.2 AS MARCAS DE UMA ESCRITA: A NARRATIVA AUTOBIOGRÁFICA
AFRO-AMERICANA FEMININA..............................................................73
2.2.1 A HERANÇA AFRICANA.................................................................78
2.2.2 O PODER DA PALAVRA CANTADA PARA OS AFRO-
AMERICANOS: A MÚSICA NEGRA............................................80
CAPÍTULO III..................................................................................................................89
3 MAYA ANGELOU: I KNOW WHY THE CAGED BIRD SINGS
E SEU CONTEXTO SOCIAL E LITERÁRIO………………..................…....90
3.1 CAGED BIRD: O MOVIMENTO PELOS DIREITOS CIVIS
E O MOVIMENTO FEMINISTA................................................................….91
3.2 CAGED BIRD E A NARRATIVA AUTOBIOGRÁFICA
NEGRA FEMININA..........................................................................................94
3.3 CAGED BIRD E SUA RELAÇÃO COM AS DEMAIS
AUTOBIOGRAFIAS DE MAYA ANGELOU................................................96
3.3.1 GATHER TOGETHER IN MY NAME (1974).....................................96
3.3.2 SINGIN’ AND SWINGIN’ AND GETTING’ MERRY LIKE
CHRISTMAS (1976)……………………….……………………………...97
3.3.3 THE HEART OF A WOMAN (1981)…………………….…………..98
3.3.4 ALL GOD’S CHILDREN NEED TRAVELING SHOES (1986)……..99
3.4 A ESTRUTURA DE CAGED BIRD…............................................................100
3.4.1 O CANTO DE UM PÁSSARO ENGAIOLADO.............................100
3.4.2 A VIOLÊNCIA INTERNA EM CAGED BIRD...............................106
3.4.3 A VIOLÊNCIA EXTERNA EM CAGED BIRD...............................111
3.4.4 A VIOLÊNCIA NO ESPORTE EM CAGED BIRD.........................115
3.4.5 OS PRESENTES DE NATAL EM CAGED BIRD...........................117
3.4.6 A “MORTE” DE MAYA EM CAGED BIRD..................................118
3.5 A “MORTE” EM CAGED BIRD.....................................................................123
3.5.1 O FLASHBACK EM CAGED BIRD..................................................123
3.5.2 A MORTE DAS PALAVRAS EM CAGED BIRD:
O SILÊNCIO.....................................................................................125
3.6 O MOVIMENTO GEOGRÁFICO EM CAGED BIRD: A BUSCA POR
FIXAR RAÍZES........................................................................................127
3.6.1. OS CASULOS EM CAGED BIRD: A LOJA DE MOMMA...........130
3.6.2 A RESSURREIÇÃO EM CAGED BIRD: VIAGEM DA MORTE
À VIDA..............................................................................................131
3.7 ELEMENTOS AFRICANOS EM CAGED BIRD...........................................134
3.7.1 O PODER DAS PALAVRAS...........................................................134
3.7.2 A QUEBRA DA LOUÇA EM CAGED BIRD: A REDEFINIÇÃO
DO “EU” PELA IMPORTÂNCIA DO NOME................................136
3.7.3 A FORMATURA DE MAYA EM CAGED BIRD E O PODER
DA PALAVRA CANTADA..............................................................139
3.7.4 A RELIGIÃO E A IMPORTÂNCIA DA COMUNIDADE EM
CAGED BIRD......................................................................................143
3.7.5 O PERTENCIMENTO EM CAGED BIRD.......................................145
3.7.6 O TRICKSTER EM CAGED BIRD: AS FIGURAS
MASCULINAS.................................................................................147
3.8 A RETOMADA DO CONTROLE EM CAGED BIRD...................................150
3.9 O CONFRONTO RACIAL E O PROTESTO
EM CAGED BIRD..........................................................................................153
3.10 O NATAL ÍNTIMO DE MAYA EM CAGED BIRD....................................156
CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................................160
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...........................................................................163
INTRODUÇÃO
Sobre viver. Duas palavras que ao serem reunidas, descrevem a trajetória das
escritoras afro-americanas em seu fazer literário.
Palavras e seu poder. Por meio do silêncio, essas escritoras aprenderam que as
palavras são veículos capazes de transformar a realidade e, em contrapartida, afetar outras
pessoas nesse processo, isto é, quando o indivíduo transforma-se, são desencadeadas
mudanças no tecido social.
Veremos que o desenvolvimento dessa relação se faz presente em Maya Angelou,
pois sua primeira obra, que é autobiográfica, expõe o ato de emergir da mera sobrevivência
ao ato de sobreviver pela palavra de modo à reconstruir a própria identidade enquanto
mulher e negra.
Em vista desses fatores, nosso trabalho foi estruturado partindo da relação
escravista dentro da história e suas conseqüências aos africanos desenraizados de sua terra
natal que foram enviados aos Estados Unidos tendo como bagagem suas crenças, sua
história e tradições (guardadas somente de uma forma: pela palavra falada e cantada) e um
coração carregado de morte, dor, angústia e sofrimento.
Mães e irmãs que, diante da visão do sofrimento lançaram filhos ao mar; mulheres
negras que foram violadas; mulheres negras que não puderam expressar sua dor. Uma dor
latente que impregnou seus descendentes no Novo Mundo, um mundo sem promessas a
serem cumpridas, sem sonhos, sem palavras. Um mundo de Silêncio.
Em um segundo momento, trataremos da primeira tentativa de articulação da voz
das mulheres afro-americanas. Tal processo foi pautado na liberdade e, para consegui-la,
uma guerra foi iniciada a fim de promover a mudança de senhores para as mulheres negras
que continuaram a ser negras, “escravas”, violadas, silenciadas.
Após o final da guerra, juntaram-se os destroços, recolheu-se o que estava disperso
e reconstruíram-se as instituições pertencentes a uma nação que não pertencia aos afro-
americanos e que, por conseguinte, não os reconhecia.
Restou a esse povo apenas a fé traduzida na adoração a Deus feito por meio de
cantos, sermões, da tristeza expressa pela palavra cantada, o Blues, e pela esperança de
alcançar a Terra Prometida que era traduzida pela alegria do jazz.
Destarte, no universo afro-americano feminino, a palavra começava a emergir nas
conversas e histórias faladas e cantadas pelas mães e avós às suas filhas, netas e bisnetas;
em primeiro lugar nas senzalas e, posteriormente, de forma mais intimista ainda, na solidão
das cozinhas. Essa palavra começa então a ganhar som e as afro-americanas filhas, netas e
bisnetas do sul segregado começaram o processo de (re)contar e (re)construir histórias não
apenas de si mesmas mas também daquelas que vieram antes delas.
A reflexão de Maya Angelou sobre a vivência, as palavras e seu poder refletem o
seu próprio passado, o passado de sua raça e das mulheres afro-americanas para resgatar
suas vozes e suas identidades de mulheres e negras, ou seja, é um processo de abandonar a
sobrevivência para iniciar a vivência.
CAPÍTULO I
1
THORNTON, John. A África e os Africanos na Formação do Mundo Atlântico (1400-1800). Rio de
Janeiro: Campus, 2004, p. 142.
5
2
“Termo técnico da língua inglesa, de uso internacional. Designa o estabelecimento agrícola que, em regime
de monocultura e sob direção centralizada, combina as atividades de cultivo e beneficiamento em larga escala
e com grande emprego de capitais, máquinas e pessoal. Na época escravista, designava as fazendas e os
engenhos de cana-de-açúcar, café, algodão etc. que, comandados por um único proprietário, exploravam a
mão-de-obra escrava.” (LOPES, Nei. Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana. São Paulo: Selo Negro,
2004, p. 536)
3
SAFRAN, William. “Diasporas in Modern Societies: Myths of Homeland and Return”. In: VERTOVEC &
COHEN, Robin (Editors). Migration,Diasporas and Transnationalism. UK & USA: Edward Elgar
Publishing Ltd, 1991.
7
terra de origem ou partir para outro local distante. Já outros povos tiveram a opção de
retornar ao país de origem em um contexto social mais favorável.
Dessa maneira, retirados à força da terra natal e coagidos a irem para um local
distante e desconhecido sem possibilidade de regresso, já que além de não possuírem
auspícios financeiros, a língua nacional, costumes sociais e religiosos haviam sido diluídos
na passagem do meio4 e também por não haver um lugar para retornar.
Alguns teóricos, mesmo diante desses fatos, não consideram o deslocamento
africano como uma diáspora par excellence5. Desta forma, Safran6 afirma que a diáspora
judaica configura-se como o tipo ideal de diáspora, e refere-se à diáspora africana como
uma quasi-diaspora7, por compartilhar apenas algumas das características encontradas na
diáspora do tipo ideal.
No entanto, nos parece inadequado ater-se somente às definições propostas por
Safran8, uma vez que tais definições não consideram a especificidade histórica de
conformação desse deslocamento. Portanto, o maior entrave no caso africano não reside
somente na saída, mas no desenraizamento e nos problemas oriundos por estar na terra do
Outro.
A rearticulação de uma identidade cultural nesse novo local de opressão e
delimitação de fronteiras é uma das questões que deve ser levada em consideração, antes
de excluir o caso africano que, em nosso entender, possui especificidades que transcendem
aquelas encontradas nas diásporas do tipo ideal.
O termo diáspora é originário do grego dia, que significa “através” e speirein, que
significa “semear”. A primeira referência ao termo é encontrada na Bíblia em
Deuteronômio9 com a noção de dispersão. Em seguida, a definição clássica de diáspora era
4
“Denominação dada na literatura sobre o tráfico de escravos, à longa e tenebrosa viagem dos navios
negreiros da África para as Américas.” (LOPES, 2004, p. 439).
5
SAFRAN, 1991, p. 84.
6
SAFRAN, 1991.
7
CLIFFORD, James. “Diasporas”. In: ___.Routes, Travel and Translation in the Late Twentieth Century.
Cambridge, Mass. & London: Harvard University Press, 1997, p. 249.
8
SAFRAN, 1991.
9
Deuteronômio. Português. In: A Bíblia Sagrada. Edição Pastoral. Tradução de Ivo Storniolo et alii. São
Paulo: Paulus, 1990, p. 193-238.
8
usada para referir-se de modo específico aos judeus, ao exílio da terra natal e consequente
dispersão para outras terras.
Nesse primeiro momento, o termo abarcava a ideia de opressão, degradação moral e
vitimização, sendo muitos termos relacionados à diáspora usados como sinônimos:
diáspora e comunidades diaspóricas, tornando-se uma generalização para designar todos
àqueles que estavam fora do lugar de origem.
Walter Connor segundo Safran,10 usa o termo para referir-se às pessoas que vivem
fora da terra natal. Essa definição foi ampliada por Safran11, que postula algumas
características para que um deslocamento se configure como uma diáspora do tipo ideal.
Safran13 compara algumas diásporas à judaica e revela que muitos movimentos são
considerados diaspóricos devido compartilhar algumas características apresentadas por ele.
Dentre as quais, menciona o caso dos ciganos que, segundo ele, confirmam a diáspora
clássica porque
10
CONNOR apud SAFRAN, 1991.
11
SAFRAN, 1991.
12
SAFRAN, 1991, p. 83-84.
13
SAFRAN, 1991.
14
SAFRAN, 1991, p. 83.
9
O desencrave africano para as Américas não é considerado pelo autor como uma
diáspora, mas como uma quasi-diaspora15, visto que não há elo cultural em relação a uma
fonte e, apesar de alguns africanos manterem o mito do retorno, não existe um foco claro
do que seja a herança cultural africana.
Portanto, não é possível restaurar um lar africano e assim o desejo por tal
restauração é traduzido em forma de solidariedade entre membros da comunidade, o que
levou à articulação de uma cultura que mantém, numa forma de hibridismo cultural, alguns
traços da cultura africana e da cultura americana.
Por outro lado, Clifford16 critica a visão reducionista de Safran17 ao afirmar que não
se pode esperar que as sociedades partilhem das mesmas qualidades, já que suas histórias
são díspares, visto que uma diáspora está relacionada a longas distâncias e também com a
separação, o que se assemelha ao exílio.
O discurso da diáspora relaciona-se à questão do re-enraizamento e à busca de
formas de identificação fora do espaço nacional e a tentativa de manter viva a memória dos
mitos, histórias e da cultura da terra de origem. Nesse sentido, a articulação da cultura
negra da diáspora procura outras formas de ser negro e ser outra coisa em relação à África
e às Américas, numa relação que é sempre tensa devido a constante ressignificação de si
perante o “Outro”.
Nessa relação “Nós” versus “Outros”, emergem traços da cultura de origem, o que
constitui a consciência diaspórica dos sujeitos de duas maneiras:
15
CLIFFORD, 1997.
16
CLIFFORD, 1997.
17
SAFRAN, 1991.
18
CLIFFORD, 1997, p. 256-257.
19
“DU BOIS, W. E.B. (1868-1963). Assinatura de William Edward Burghardt DuBois, líder pan-africano
nascido em Great Barrington, Massachusetts. Um dos homens mais influentes de seu tempo, foi o primeiro
negro a receber o título de doutor em Filosofia pela Universidade de Harvard. Em 1896 publicou o clássico
The Supression of the African slave trade e, sete anos depois, The soul of black folk, no qual consolida sua
10
At the heart of the notion of diaspora is the image of a journey. Yet not
every journey can be understood as diaspora. Diasporas are clearly not
the same as casual travel. Not do they normatively refer to temporary
sojourns […] diasporic journeys are essentially about settling down,
about putting roots ‘elsewhere’22.
oposição às idéias de Booker T. Washington, o fundador de Tuskegee. Em 1905, como conseqüência dessa
oposição, Dubois lidera o Niagara Movement, reivindicando igualdade de direitos para os negros em todos os
níveis. Durante mais de cinqüenta anos, até sua morte em Gana, para onde emigrara em 1961, atormentado
pelos segregacionistas brancos de seu país, que o forçaram a exilar-se e abdicar da cidadania norte-
americana, Dubois escreveu mais de quinze livros e engajou-se em vários movimentos, inclusive a favor dos
direitos das mulheres, afirmando-se como um dos líderes negros mais notáveis e progressistas.” (LOPES,
2004, p. 244).
20
BRAH, Avtar. Cartografies of Diaspora: Contesting Identities. London & New York:
Routledge, 1996. (Chapters 8 and 9), p. 178-248.
21
SAFRAN, 1991.
22
BRAH, 1996, p. 182.
23
BRAH, 1996.
24
CLIFFORD, 1997.
11
25
BRAH, 1996.
12
dependerá de certos fatores, tais como quem são os “Outros” e qual sua posição na
estrutura social.
Esses binarismos específicos são importantes na medida em que podem racializar
os discursos dentro de determinados contextos. Para isso, é preciso analisar como
determinados binarismos foram construídos e como tal construção afetará a estruturação do
poder.
As diversas formas de racialização conduzem um racismo que constituirá os
sujeitos e que suscitam reflexões sobre a construção do olhar dos americanos brancos em
relação aos negros, bem como sobre os mecanismos discursivos que legitimaram a
diferença e o estereótipo em se tratando do negro. É importante destacar que a diáspora é
discutida em dicotomias que envolvem Nós e Outros, Nativo e Estrangeiro, e ainda os
termos maioria e minoria.
Conforme Brah26, os conceitos maioria e minoria foram empregados por Mohamed
e Lloyd como uma articulação política e cultural como forma de subjugar a cultura
dominante. Sendo assim, o discurso das minorias, por sua vez, é marcado por histórias
ligadas ao cotidiano como dominação, subjugação, degradação, violência racial,
policiamento e inferiorização.
Esse discurso é emblemático por ensejar dicotomias e perpetrar as relações
assimétricas de poder. Por essas razões, Brah27 propõe um conceito de diáspora que
ofereça simultaneidade de posições para os sujeitos diaspóricos na constituição de suas
identidades:
26
BRAH, 1996.
27
BRAH, 1996.
28
BRAH, 1996, p. 189.
13
Nota-se que o conceito proposto por Safran34 não leva em conta a conformação da
diáspora, ao afirmar que a diáspora dos ciganos e poloneses se configura no tipo ideal de
diáspora. Assim, como os ciganos são um povo nômade, portanto, escolheram deixar o
país de origem de forma voluntária. Caso semelhante aconteceu com os poloneses.
Portanto, os dois povos podiam, se assim desejassem, retornar a seus países.
29
ANZALDÚA, Gloria. “Towards a New Consciousness”. In: Borderlands/La Frontera. The New Mestiza.
San Francisco: Aunt Lute Book Company, 1987; pp. 77-91.
30
BRAH, 1996.
31
GILROY, Paul. O Atlântico Negro: Modernidade e dupla consciência. Tradução de Cid Knipel Moreira.
São Paulo: Ed. 34; Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001.
32
GILROY, 2001.
33
GILROY, 2001, p. 354-355.
34
SAFRAN, 1991.
14
35
CLIFFORD, 1997.
36
CLIFFORD, 1997.
37
SAFRAN, 1991.
38
BRAH, 1996.
39
BRAH, 1996.
15
muitos milhões morreram na temível Passagem do Meio. Aprisionados em suas terras após
extenuantes caminhadas, os africanos eram examinados e enviados aos navios negreiros
que os transportariam ao Novo Mundo, rumo ao progresso para os brancos e para a
subjugação aos negros.
Os africanos eram acorrentados dois a dois, vindos de milhares de vilas e cidades,
de raças diversas, despidos, e com correntes nos pés. Esses povos aportaram na América e
foram mantidos escravos para ajudar a enriquecer uma elite branca, modelando as relações
econômica, racial, política, religiosa e legal do Novo Mundo.
As grandes propriedades rurais do sul dos Estados Unidos, denominadas
plantations, consistiam num sistema coercivo, nocivo e desumano construído para manter
a estrutura social estabelecida. Atrás da cortina de algodão, segundo Bennet40, milhões de
seres humanos foram sistematicamente privados de cada direito à humanidade,
prevalecendo nesse meio a brutalidade e a imoralidade institucionalizadas.
A santidade da família africana foi violada e crianças eram arrancadas de seus pais
e depois vendidas. O estupro consistia numa prática comum entre os senhores de escravos
e as escravas, gerando milhares de crianças órfãs e, por outro lado, os homens com uma
carga de trabalho, além do limite humano, não atingiam idade avançada.
Nas fazendas de anil, fumo e algodão, os escravos trabalhavam do nascer até depois
do pôr-do-sol. Segundo Bennett41, as plantations eram uma mistura entre fábrica e vila em
que as mulheres escravas normalmente não cuidavam do crescimento de seus filhos, pois
trabalhavam nos campos e deixavam os pequenos aos cuidados de outras mulheres.
Muitas crianças andavam em estado de semi-nudez, descalças e eram enviadas aos
campos já na idade de seis ou sete anos de idade; já os jovens, aos dez ou doze anos
também recebiam uma rotina regular de serviços; a maior parte dos escravos vivia em
senzalas com pessoas de todas as idades e condições de saúde.
Nas plantations de grande porte havia uma hierarquia entre os escravos: os negros
do campo — que trabalhavam no plantio e colheita do algodão — e os negros da casa —
que trabalhavam nos afazeres domésticos. Havia também artesãos, enfermeiras e
capatazes. Esses últimos eram responsáveis por manter a ordem e disciplina nos campos e
deveriam ser respeitados tanto pelo senhor de escravos quanto pelos outros escravos.
40
BENNETT, LERONE. Before the Mayflower: A History of the Negro in America (1619-1962). Chicago:
Johnson Pub. Co.,1964.
41
BENNETT, 1964.
16
Neste cenário, alguns escravos eram designados para aplicar castigos aos demais
sempre que qualquer ordem fosse desobedecida. Em algumas situações, esse castigo
consistia em trinta e nove chibatadas, entretanto, muitos escravos recebiam até cem
chibatadas ou mais em um dia. Tais punições, não dependiam do comportamento obediente
dos escravos que eram sempre caracterizadas com agressões e castigos aplicados com
requintes de perversidade.
O centro da sociedade escrava era a família, uma instituição frágil, dadas as
condições de vida dos escravos. Muitos casamentos entre escravos não possuíam valor
legal e o marido, a esposa e filhos podiam ser vendidos para outro senhor de escravos em
outro condado, cidade ou estado.
O tratamento dado às mulheres escravas também não era favorável. O cenário
desalentador no qual essas mulheres eram violentadas pelos senhores de escravos,
seduzidas e, algumas vezes, tornavam-se amantes e, por causa desse tratamento, vítimas da
ira de esposas traídas; outras eram vendidas devido aos seus dotes físicos para fins de
reprodução.
Para a maior parte dos escravos, a vida nas fazendas era deplorável: homens,
mulheres e crianças trabalhavam de forma ininterrupta. As mulheres cortavam árvores,
aravam a terra e semeavam; os mais idosos limpavam jardins, faziam pequenos reparos em
roupas ou tomavam conta das crianças e dos doentes.
No entanto, os escravos não estavam acomodados às surras, exploração e
humilhações constantes sem tentar resistir. Desde sua saída da África, várias estratégias de
resistência foram empregadas. A escravidão nos Estados Unidos provou que, sob certas
condições, os homens podem ser escravos, mas seu desejo por liberdade, ainda assim,
prevalece.
As very few of the negroes can so far brook the loss of their liberty, and
the hardships they endure [...] they are ever upon watch to take
advantage of the least negligence of their oppressors. Insurrections are
frequently the consequence […] Sometimes these are successful, and the
whole ship’s company is cut off42 […]
Nos navios negreiros, muitos faziam greve de fome; mulheres jogavam seus filhos
ao mar ou sufocavam as crianças por temer por suas vidas no mundo desconhecido. Os
suicídios também eram uma prática comum entre os escravos.
42
HERSKOVITS, Melville J. The Myth of The Negro Past. New York & London: Harper & Brothers
Publishers, 1941, p. 88.
17
Como observou Herskovits: “Ships had to be fitted up with a view to prevent slaves
jumping overboard; slaves on occasion would refuse sustenance, with a design to starve
themselves; at times they also refused to take medicines when sick, because they wished to
die43.”
Em se tratando do Haiti, em 1791, influenciados pelo ideal francês de Liberdade,
Fraternidade e Igualdade, os negros planejaram e executaram uma audaciosa empreitada.
Na noite de 14 de agosto, ao ouvir o som dos tambores, os homens se moveram de forma
silenciosa pelas plantations e se reuniram em Bois Cäiman. Depois de oito dias, liderados
por Boukaman, à meia-noite do dia 22 de agosto de 1791, uma surpresa chegou para os
brancos, que em pouco tempo tiveram plantações, prédios, máquinas e fazendas
destruídas; os proprietários foram perseguidos, caçados e mortos ou jogados às chamas
pelos negros e, nas três semanas seguintes, os negros mantiveram a revolta contra os
brancos, fato este sem precedentes e que teve larga repercussão nos Estados Unidos.
Neste contexto, muitos senhores de escravos dormiam com pistolas e com medo de
outras revoltas como do Caribe, da América do Sul e da América do Norte que foram
rapidamente controladas, mas a revolta do Haiti reabriu antigas feridas e intensificou a
aversão dos brancos em relação aos negros.
Nos Estados Unidos revoltas e insurreições eram uma constante nas plantations o
que contraria a visão romanceada de historiadores que acreditavam na docilidade do negro.
Com base nesse cenário, o medo e a culpa passa a dominar os brancos sulistas, que,
devido às pressões do negro escravizado, sucumbiam ao ataque cardíaco; outros
enlouqueciam com a possibilidade de uma revolta nas fazendas e esse medo teve
participação na precipitação da Guerra Civil.
As revoltas durante o período da escravidão, mesmo com pequenas proporções, são
peças-chave para compreender a configuração social do Sul do Estados Unidos,
desencadeando diversas insurreições e conspirações. Já em 1712, escravos de Nova York
se rebelaram e mataram, pelo menos, nove brancos; na Carolina do Sul, escravos rebelados
mataram vários brancos e atearam fogo em prédios; depois foram para a Flórida que,
naquela época, era território da Espanha. Lá, o grito de liberdade ecoou e durante o
percurso os escravos mataram vinte e cinco brancos.
Os ideais das revoluções americana e francesa ecoaram profundamente nas mentes
e nos corações dos escravos. Thomas Jefferson e Patrick Henry impressionavam os
43
HERSKOVITS, 1941, p. 87.
18
Então, com o fim da escravidão, em 1860, o Norte avançou definitivamente para a política
de industrialização e o Sul teve seu processo econômico estimulado pelo aumento da
exportação de algodão para a Europa.
Com o aumento da produção sulista, o Sul impôs tarifas de importação e exportação
baixas, enquanto o Norte alegava ser necessária a proteção tarifária para defender-se da
concorrência estrangeira, mas, na verdade, o Norte queria formar um mercado interno com
a compra de algodão do Sul para industrializá-lo e depois produzir manufaturas necessárias
ao país.
No centro dessas controvérsias estava a questão da escravidão que, inserida na
complexa rede de compra e venda, era parte da economia do país, sendo responsável pela
mobilização de milhões de dólares.
Os sulistas acreditavam que a solução seria expandir as áreas de trabalho escravo
que eram limitadas, porém eram impedidos pelos nortistas que queriam a ocupação dos
novos territórios pelo trabalho livre dos pioneiros e imigrantes, por ser mais barato. Além
disso, o Norte não queria a escravidão nos novos estados do oeste porque isso reforçaria os
grupos de políticos da aristocracia sulista.
A nação estava dividida e seria preciso reconstruir uma identidade nacional comum
que pudesse sustentar ideologicamente o país dividido por questões raciais e a solução para
o impasse estaria no imperialismo norte-americano.
Se o homem branco era responsável pelo progresso e deveria levar luz àqueles
povos atrasados e selvagens como os africanos e asiáticos, os norte-americanos brancos
abençoados e escolhidos por Deus para fazer cumprir o destino, qual seja: estabelecer-se e
conquistar povos mais fracos.
Para evidenciar a mentalidade da supremacia branca, o caso da anexação do Texas
ao território norte-americano é um exemplo importante. O México já era independente,
desde 1821, e herdara o Texas da Espanha, mas os norte-americanos desejavam esse
território; então, em 1823 um acordo garantiu o uso de grandes quantidades de terra e a
permissão de entrada dos americanos como agentes de colonização na região.
21
44
FERNANDES & MORAIS. “OS EUA NO SÉCULO XIX”. In: KARNAL, Leandro et al. História dos
Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo: Contexto, 2008, p. 127.
22
chicote; não era possível usar moderação ante a humilhação e degradação física e
psicológica a que o escravo era submetido; não era possível falar com moderação sobre
uma instituição que destroçava famílias, roubava filhos e privava um homem do seu direito
mais básico, o direito de ser um homem e ser respeitado como tal.
Garrison e outros abolicionistas organizaram a American Anti-Slavery Society na
Filadélfia em 1833, junto com outros proeminentes homens brancos que simpatizavam
com a causa como Robert Pivis, James McCrummell e James G. Barbadoes, um reformista
de Boston e os negros Samuel E. Cornish, um ministro de Nova York e Peter S. Williams,
um sacerdote episcopal. O movimento tomou como base a Declaração da Independência de
Thomas Jefferson e lutou com as armas tradicionais: panfletos, livros, petições e com a
própria oratória.
Milhares de negros ajudaram direta ou indiretamente ao movimento como o
estabelecimento da Underground Railroad, que consiste numa rede complexa de celeiros,
estábulos, casas e fazendas que conduzia à liberdade. Muitos escravos fugitivos escalavam
montanhas, atravessavam riachos, cortavam as florestas a pé e outros também iam pelo rio
Ohio até Chesapeake Bay.
Esses escravos, muitas vezes, eram ajudados por democratas, pelos Quakers e por
Batistas sulistas. O ato de ajudá-los forçava a opinião pública a posicionar-se contra ou a
favor da escravidão e, como argumentou Bennett48, isso fez com que a liberdade transitasse
entre as rotas de escravos que iam do Sul dos Estados Unidos ao Canadá.
Durante os anos de 1840, os ex-escravos estiveram na batalha abolicionista
mediante encontros organizados e convenções, visto que eram a prova viva da
expropriação da condição humana que os brancos haviam realizado contra os negros e que
se perpetuaria diante de outros escravos no Sul.
Desta maneira, a segunda geração de abolicionistas era composta por palestrantes
profissionais como Henry Highland Garnet49, Martin R. Delany50, William Wells Brown51;
48
BENNETT, 1964.
49
“Abolicionista americano nascido em New Market, Maryland, e falecido em Mouróvia, Libéria. Neto de
um chefe africano e nascido escravo em uma plantation , em 1824 foi para Nova York, com a família, em
fuga planejada e executada pelo pai. A partir daí, estudando e progredindo, formouse pastor presbiteriano e
foi um dos mias veementes defensores da causa abolicionista. Em 1864, já radicado em Washington, DC, no
aniversário da Emenda Constitucional que aboliu a escravatura, tornou-se o primeiro negro a discursar
perante o Congresso americano. Em 1881, foi nomeado embaixador na Libéria, onde faleceu no ano
seguinte.” (LOPES, 2004, p. 294)
50
“Abolicionista americano nascido em Charleston, Virgínia Ocidental. Recebeu as primeiras noções de
leitura com um vendedor ambulante de livros que também atuava como professor itinerante, num contexto
em que os negros eram proibidos de ler e escrever. Adulto, fundou um pequeno jornal abolicionista,
24
por mulheres negras como Sojourner Truth52 e Harriet Tubman53; por eruditos como J. W.
C. Pennington, Alexander Crummell e James McCune Smith.
Nesta segunda geração, destacou-se Frederick Augustus Washington Bailey, que
tornou-se conhecido como Frederick Douglass, um ex-escravo que escapou de Baltimore
em 1838 e que, três anos depois, contava a história da fuga realizada nas convenções
abolicionistas. Douglass conseguiu, por meio de palavras, levar a multidão às plantations,
que com discurso inflamado sensibilizava multidões, suscitando nos ouvintes indignação
ante a hipocrisia do senhor de escravos, que clamava por Deus e não cumpria os preceitos
cristãos.
Devido ao sucesso da oratória de Douglass, contrataram-no para proferir palestras,
mas que nem sempre era recebida de forma favorável pelo público. Sendo assim, Douglass
cresceu no meio abolicionista e com isso a Inglaterra cedeu ao brilhante orador e também
para outros abolicionistas espaço necessário para difundir ideias.
Nessa confluência abolicionista, nobres e plebeus ingleses receberam os americanos
que permaneceram durante dezenove meses na Inglaterra, despertando a simpatia do povo,
num contexto controverso, como a Guerra Civil na qual prevalecia convicções
antiescravocratas.
Ao regressar à América do Norte, até o ano da abolição da escravatura, Douglass
lutou em defesa do ideário abolicionista que influenciou a eclosão da Guerra Civil.
Também as mulheres negras tiveram papel relevante nesse movimento, dentre as quais
Sojourner Truth e Harriet Tubman, que eram religiosas importantes na época.
tornando-se, depois, co-editor do North Star, o jornal de Frederick Douglass. Iniciou estudos de medicina,
mas foi impedido de prosseguir por causa do racismo. Não obstante, por seus conhecimentos, em 1850
salvou centenas de vidas durante uma epidemia de cólera em Pittsburgh. Após a proclamação da
Emancipação, foi comissionado pelo presidente Lincoln como o primeiro major negro do Exército dos
Estados Unidos. Em 1879, partidário da volta dos negros para a África, publicou Princípios de etnologia: a
origem das raças de cor, no qual discute o papel do povo negro na civilização universal.” (LOPES, 2004, p.
232)
51
“Novelista e dramaturgo americano nascido em Lexington, Kentucky. Escravo fugido, viveu em Londres e
foi o primeiro afro-americano a publicar um livro de viagens, Three years in Europe (1852), um drama,
Brown’s clotel or the president’s daughter (1853) e uma novela, A leap to Freedom (1858).” (LOPES, 2004,
p. 143)
52
“Abolicionista e pregadora religiosa americana nascida Isabella Baumfree, em Ulster County,no estado de
Nova York, e falecida em Battle Creek, Michigan. Libertada em 1827, fixou-se na cidade de Nova York, de
onde, dizendo-se impulsionada pela palavra de Deus, de quem teria recebido o novo nome e a missão de
pregar a Verdade (Truth), viajou pregando a abolição da escravatura e a adoção dos direitos civis por todo o
país. Oradora carismática e convincente, além de prática e objetiva em suas ações, foi uma das grandes
figuras dos primórdios da luta negra nos Estados Unidos.” (LOPES, 2004, p. 628)
53
“Militante antiescravista americana. Desde 1849, ano em que fugiu de uma fazenda de Maryland, onde era
cativa, participou ativamente da Underground Railroad, conseguindo que mais de trezentos fugitivos da
escravidão encontrassem refúgio nos estados do Norte e no Canadá. Durante a Guerra da Secessão, serviu
como espiã da União junto ao exército da Confederação.” (LOPES, 2004, p. 659)
25
54
“Líder pan-africanista nascido na Jamaica e falecido no exílio em Londres. Grande orador, firme e
inteligente, foi o primeiro a formalizar a idéia pan-africanista de soberania política das nações negras e de
retorno da Diáspora ao continente de origem. Dentro desse propósito, em 1914 fundou a UNIA, Universal
Negro Improvement Association (Associação Universal para o Progresso do Negro), entidade que chegou a
ter entre 4 e 6 milhões de membros distribuídos por vários países. Em 1916, transferiu a sede da associação
para os Estados Unidos, onde publicou, a partir de 1918, o semanário The Negro World, órgão precursor na
divulgação das idéias do afro-centrismo. Em agosto de 1920, a UNIA realizava seu primeiro congresso de
âmbito nacional. Perseguindo o objetivo de criar um Estado negro na África, ante a constatada
impossibilidade de os descendentes de africanos gozarem de direitos plenos nos Estados Unidos, Garvey
criou a Black Star Shipping Line, uma companhia de marinha mercante que faria a rota Estados Unidos-
África, integrada por vários navios velhos, comprados a armadores brancos e que, ao que consta, não
chegaram a sair do estaleiro. Em 1928, o líder voltava deportado para a Jamaica acusado de “fraude fiscal”.
Derrotado e humilhado por seus adversários, exilou-se em Londres, de onde, em 1935, condenou a fraqueza
de Hailé Selassié diante da invasão da Etiópia pelo facismo italiano, o que afastou muitos de seus antigos
seguidores [...] Em 1964, seus restos mortais foram trasladados para a Jamaica e sua memória reabilitada
como a de um grande herói nacional.” (LOPES, 2004, p. 295)
26
A eleição de 1860 teve como grande questão a escravidão. Não tanto pelo aspecto
moral, sobretudo, pelas perdas econômicas que imporia.
Naquele ano, Abraham Lincoln foi indicado como candidato pelos Republicanos e
considerado como abolicionista moderado, defensor do solo livre, e da manutenção da
unidade nacional. Assim, a indicação de Lincoln não agradou aos sulistas, que o
chamavam de conservador por não defender abertamente uma luta para finalizar o regime
escravista no país.
Lincoln lidou por um período com pressões externas na administração do governo
dele e, mediante um “discurso ambíguo55”, defendia a superioridade da raça branca, com o
uso da força junto aos estados separatistas, e, por vezes, apresentava discurso em defesa
dos interesses dos escravos. Paralelamente, os sulistas queriam expandir a escravidão para
o lado oeste e, para estes, a ambiguidade de Lincoln era considerada abolicionista e
assemelhava-se ao jornal Liberator e ao abolicionista Frederick Douglass.
Em outras palavras, os sulistas reconheciam Lincoln como indivíduo contrário aos
ideais preconizados pela região Sul da América do Norte. Após assumir o comando do
país, o recém presidente declarou que não aceitaria a secessão e as hostilidades formais,
que foram no decorrer do tempo consideravelmente acentuadas.
Em 20 de dezembro de 1860, a Carolina do Sul desligou-se da União e
paulatinamente seis outros estados seguiram o mesmo destino. Os separatistas formaram os
Estados Confederados da América e o presidente provisório escolhido Jefferson Davis
contou com o vice-presidente Alexander Stephens.
Neste cenário, o estado de guerra sulista teve como plataforma interesses
econômicos e o repudio à campanha abolicionista. Com isso, os sulistas esperavam que o
Norte aceitasse de forma pacífica a separação, mas na falta de consenso não deixariam de
partir para uma guerra.
55
FERNANDES & MORAIS, 2008, p. 130.
27
56
BENNETT, 1964.
57
FERNANDES & MORAIS, 2008.
58
BENNETT, 1964.
59
BENNETT, 1964, p. 169.
28
O conflito serviu para libertar os escravos e criar o mito de Lincoln como grande
estadista e defensor da liberdade, forjando uma identidade nacional baseada na
superioridade do mundo do Norte ao delimitar a trilha histórica que a nação seguiria.
Com a Emancipação, os escravos passaram a ter um “sentimento de justificativa
moral para o enfrentamento60” e, com isso, a liberdade estava associada ao progresso e
prosperidade, favorecendo, no período pós-guerra, o surgimento de uma comunidade negra
no Norte que reivindicava nova posição social na vida americana.
Em face de tais fatos, era preciso rearticular a nação e reescrever uma história da
América baseada na unidade nacional, ancorada nos princípios de democracia e soberania,
entretanto, para os negros, naquele contexto, o trabalho de Emancipação ainda se constituía
de forma incipiente.
O período que se seguiu ao fim da guerra foi marcado por muitos questionamentos,
dentre eles, que caminhos a nação deveria seguir, como reincorporar territórios, e ainda
como lidar com o fim da escravidão no país. Do ponto de vista político, dois caminhos
foram propostos: um, apontava uma reconstrução radical dos territórios devastados, sem
nenhuma garantia aos antigos donos de escravos que queriam restituição financeira pelas
perdas, portanto, desejava-se que os negros do Sul tivessem direitos da cidadania
americana; o outro caminho, uma reconstrução mais moderada, que, por sua vez, não
garantiria aos ex-escravos nada, além da liberdade adquirida, fato que deixaria os sulistas
livres para empregar mão-de-obra escrava em um regime compulsório de trabalho.
O presidente Lincoln mostrava-se favorável à conciliação que favoreceria os
sulistas, e suscitou o embate entre o Congresso e a Presidência da República. Em
contraposição à proposta do Presidente Lincoln, com um projeto de Reconstrução mais
moderada, em julho de 1864, o Congresso aprovou mediante:
60
FERNANDES & MORAIS, 2008, p. 136.
30
Tal medida visava a retirada do poder político do Sul, mas a proposta foi
invalidada pelo Presidente, ocasionando rumores entre muitos congressistas. Logo após o
fim da guerra, o Presidente Lincoln foi assassinado sem conseguir ratificar um acordo com
o Congresso.
Após a morte de Lincoln, o Vice-Presidente Andrew Johnson assume o cargo e,
junto a ele, um Sul falido e muitos problemas por resolver, como a reintegração de terras
que incomodava sulistas e nortistas, e a falta de integração do negro na sociedade ainda
permanecia. Além dos fatores citados, a reconstrução era difícil porque
Para muitos sulistas os negros não saberiam o que fazer com a recém adquirida
liberdade e, por outro lado, muitos afirmavam que esses eram dignos de pena em
decorrência da falta de cultura e também pela ausência de conhecimento em relação à nova
condição de cidadãos livres. Contudo, a Emancipação era para muitos ex-escravos a
possibilidade de reencontrar e restabelecer laços de família, educar filhos e, mais que isso,
61
FERNANDES & MORAIS, 2008, p. 138-139.
62
FERNANDES & MORAIS, 2008, p. 139-140.
31
era o fim dos chicotes, das surras, dos estupros e assegurava direitos, como a qualquer
outro homem.
Com base nessas premissas, os negros, como observou Foner63, iniciaram aquela
que seria denominada comunidade negra moderna, calcada nos pilares da escravidão, mas
com uma estrutura e valores que refletiam as consequências da Emancipação. Dessa
maneira, após a libertação, as experiências da escravidão permaneceram na memória do
povo negro e, como forma de suplantar tais memórias do cativeiro, muitos ex-escravos
adotaram novos nomes numa atitude que apontava para novos tempos.
Em alguns casos, muitos negros exigiam ser tratados pelos brancos pelo título de
“senhor” ou “senhora”, algo que era reservado somente aos senhores brancos. Essa atitude
refletia para os brancos como um sinal de insolência e desobediência em se tratando dos
antigos códigos de conduta existentes durante a escravidão.
A presença das tropas da União reforçou junto aos recém libertos o sentimento de
segurança e muitos soldados negros da União difundiam aos ex-escravos os ideais de
liberdade e igualdade, culminando em disputas por fazendas e, às vezes, até no
aprisionamento de brancos.
A Emancipação trouxe a mobilidade física no território para os negros, que
anteriormente era condicionada à portabilidade de um passe para viajar. Sendo assim, os
autores Bennett64 e Foner65 apontaram que todos os negros estavam sempre indo de um
lugar a outro e, com a devastação do Sul do país, alguns homens partiram em busca de
abrigo em outras localidades.
Esse fenômeno também designado de grande êxodo ou migração começou por volta
de 1860 como notou Davie66 e perdurou até o final de 1870. Portanto, essa primeira
migração, haja vista que haveria outro grande fluxo após a Segunda Guerra Mundial, foi
composta por pequenos grupos de indivíduos ou famílias que migraram das fazendas para
as cidades do Sul e do Norte.
Desta forma, esses fluxos migratórios desencadearam o aumento de negros nas
regiões urbanas e um declínio nas populações do Cinturão Negro — a grande área de
fazendas no Sul dos Estados Unidos. Nota-se na grande migração o desconforto relativo
63
FONER, Eric. Reconstruction: America’s Unfinished Revolution 1863-1877. New York: Harper & Row,
1988.
64
BENNETT, 1964.
65
FONER, 1988.
66
DAVIE, Maurice Rea. Negroes in American Society. New York : McGraw-Hill, 1949.
32
67
DAVIE, 1949.
34
68
FONER, 1988.
69
FONER, 1988.
70
FONER, 1988.
71
FONER, 1988.
35
empregaram esforços e dinheiro para que igrejas fossem construídas e, antes mesmo dos
prédios estarem prontos, os negros congregavam.
Ao final do período de Reconstrução em 1877, a maior parte dos negros do Sul
saíram das igrejas dominadas por brancos e passaram a ter suas próprias igrejas e,
paralelamente, os negros da região Norte preferiam congregar com ministros de sua
própria raça.
Nesse momento de transição religiosa, as igrejas Batistas atraíram um grande
número de ex-escravos devido à estrutura descentralizada e democrática que apresentava,
bem como o fervor dos cultos também sinalizava que os pastores poderiam estabelecer
igrejas, sem o controle de bispos, possibilitando aos fiéis congregar de maneira menos
dogmática.
Segundo Foner72, a igreja na América configurou-se como primeira instituição
verdadeiramente controlada pelos negros e que assumiu diversas funções que denotam
centralidade e importância na comunidade. Além de se constituir como espaço de oração,
as igrejas também eram palco de eventos sociais e encontros políticos, como é o caso das
áreas rurais, em que as igrejas promoviam piqueniques, festivais e atividades de
entretenimento e ainda difundiam valores morais relativas à família.
Os ministros desempenhavam papel preponderante na conciliação de problemas
públicos e privados e também exerciam forte papel político na comunidade, tendo em vista
que grande parte dos membros não sabia ler ou escrever, os pastores atuavam como
escrivão de cartório de registros.
A religião reconfigurou a maneira como os negros compreendiam as experiências
de vida na América e o modo de expressar desejos por justiça e autonomia. Nessa
concepção, para os negros, a transposição dos africanos para a América fundamentava-se
na passagem do Velho Testamento em que Jesus — o redentor, puniria todos que fizeram
mal a seus filhos e ao povo, por ele, escolhido, configurando uma analogia entre os negros
e os judeus, que foram retirados do cativeiro no Egito.
Com a Emancipação e a derrota da Confederação, essa crença ficou ainda mais
acentuada, fundamentando a escravidão e a Reconstrução baseadas em preceitos bíblicos,
sendo que os tempos do apóstolo Paulo correspondiam à escravidão, e a Reconstrução
72
FONER, 1988.
36
correspondia ao período de Isaías73, na qual o profeta Moisés guiou o povo eleito para a
Terra Prometida, personificado na América pelo Presidente Lincoln.
Para os líderes negros, a Bíblia era o ponto de referência para o entendimento dos
acontecimentos e fonte de comprometimento em se tratando das inúmeras organizações
criadas pelos negros no processo de Reconstrução. Também foram criados casas
funerárias, clubes de debate, lojas de maçonaria, corpo de bombeiros e ligas pelos direitos
civis com a finalidade de melhorar a vida coletiva da população negra. Dentre alguns
aspectos, destaca-se a educação como elemento cerne de luta pela libertação, tendo em
vista que o ato de ler configurava-se como instrumento essencial para o desenvolvimento
econômico, bem como também estava atrelada à sede em ler a palavra de Deus.
Após a guerra, os negros das áreas urbanas mobilizaram-se para estabelecer escolas
e, em fins de abril de 1865, mais de mil crianças negras e setenta e cinco adultos
frequentavam escolas, criadas nas igrejas de Richmond e da Sociedade Americana
Missionária. Nas áreas rurais, o Freedman’s Bureau encontrou diversas salas de aula de
negros em igrejas, porões, e casas, que contavaM com a colaboração de agentes
multiplicadores, dentre eles, as próprias crianças que ensinavam aos pais.
Entre 1865 e 1866 os negros sulistas arrecadaram dinheiro para a compra de terras,
construção de escolas e pagamento de professores. Artesãos doavam sua mão-de-obra e
famílias negras ofereciam quarto e alimentação para complementar o salário dos
professores. Portanto, em 1870 os negros haviam investido mais de um milhão de dólares
em educação, fato esse que se mostrou um orgulho coletivo.
As escolas, segundo Foner74, representavam a emergência da comunidade negra à
medida que unia as pessoas já livres e os recém-libertos, aos negros do Norte e do Sul,
desencadeando a fusão entre esses dois mundos, possibilitando o surgimento da
comunidade negra moderna.
73
Referência à passagem bíblica, Isaías 66:15 “Porque Javé vem com fogo, e seus carros parecem furacão,
para desabafar sua ira com ardor e sua ameaça com chamas de fogo.” E também Isaías 66:22 “Da mesma
forma como durarão para sempre diante de mim os novos céus e a nova terra, que criarei — oráculo de Javé,
assim também durarão o povo e o nome de vocês.”
74
FONER, 1988.
37
75
FONER, 1988.
76
FERNANDES & MORAIS, 2008.
38
the conqueror, the conquered and the Negro but no one speaks with so
deep a meaning as the Negro [...] But [...] neither soldier nor fugitive
speaks with so deep a meaning as that dark human cloud that clung like
remorse on the rear of those swift columns, swelling at times to half their
size, almost engulfing and choking them. In vain were they ordered
back, in vain were bridges hewn from beneath their feet79 [...]
77
DAVIE, 1949.
78
DAVIE, 1949.
79
DU BOIS, W. E. B. The Souls of black Folk. New York: Dover Publications, INC., 1994/[(1903)], p. 12.
39
Nota-se que para a sociedade branca, os negros representavam uma ameaça que
precisava ser contida à medida que estes ganhavam relativo status de cidadãos, fato esse
que permitia direito a voto e a educação e, de forma controversa, traria resultados
insatisfatórios aos brancos sulistas. Paradoxalmente, o Congresso sinalizava para a
democracia ao comprometer-se com o cumprimento de leis, consolidando três pilares para
sustentar a liberdade dos ex-escravos:
Para manter o cumprimento dessas, o Congresso contava com a atuação das Cortes
de Justiça que, por sua vez, diziam que a questão era política e que caberia ao Congresso
resolvê-las. Sendo assim, o negro, na América, dependia de forma considerável do
Congresso, da opinião pública – branca – e da opinião mundial, para assegurar a
manutenção de grande parte de suas conquistas.
Na terceira e quarta metade do século XIX, no entanto, o mundo estava ocupado
com outros assuntos, enquanto a Europa explorava a África, na América, havia a
exploração do Caribe com o processo civilizatório dos negros por meio de dogmas.
80
BENNETT, 1964, p. 224.
40
Neste contexto, era necessário uma lei que assegurasse a separação de espaços
sociais para os negros. Nasce, então, o conjunto de leis Jim Crow81 que se referem à
segregação em espaços públicos.
O termo Jim Crow paulatinamente assumiu uma conotação pejorativa e passou a ser
usado como termo jurídico em se tratando da população negra. A Suprema Corte afirmava
que a Décima Quarta Emenda proibia que os estados, e não os indivíduos, praticassem a
segregação, disseminando uma aversão aos negros pelo país.
No estado do Tennessee, já em 1881, os bondes eram separados. Agora, todos os
estados do Sul, ao começar pela Flórida em 1887, possuíam uma política de separação nos
bondes. Desta forma, a Corte Suprema Americana estabeleceu, na lei americana, a doutrina
de separação racial e classificação, numa retomada do ideário do século XIX, no qual
predominava a hierarquização das raças.
Nessa época, a Suprema Corte julgou o caso Plessy versus Ferguson, no qual um
jovem negro, Homer Plessy, se recusou a ceder seu lugar num trem em Nova Orleans em
1892. A decisão da Corte, em 1896, abriu um precedente para que os estados
institucionalizassem a separação em acomodações públicas, apesar da decisão contrariar a
Décima Quarta e Décima Quinta Emendas.
O advogado de Plessy, o ativista Albion Tourgée, dizia que a lei da Louisiana era
uma afronta ao espírito das instituições republicanas porque legalizavam o sistema de
castas. Por conseguinte, sete votos difundiram que os direitos constitucionais de Plessy
não haviam sido violados. Em seguida, sete votos, em contraposição a um voto,
estabeleceram uma linha de separação que perdurou por vários anos no Sul dos Estados
Unidos, portanto, tal resultado institucionalizou e sedimentou o preconceito racial na
região Sul do país. O juiz Harlan divergiu da decisão afirmando:
Para reverter o mal instaurado, seriam necessários quase 60 anos, com o caso
Brown versus The Board of Education.
Logo após o caso Plessy, durante as três décadas seguintes, outros Estados aderiram
à lei Jim Crow nos bondes: em 1901 a Carolina do Norte e a Virgínia, a Louisiana em
1902, o Arkansas, a Carolina do Sul e o Tennessee em 1903, Mississipi e Maryland em
1904 e Flórida em 1905. Nesse processo lei após lei, negros e brancos foram separados no
transporte público, esportes, hospitais, casas funerárias, necrotérios e cemitérios.
Na cidade de Mobile no Alabama, negros deveriam estar fora das ruas às 22 horas.
Em Birmingham, também no Alabama, negros e brancos não podiam pagar as contas de
forma conjunta em restaurantes. Apesar da impossibilidade de criar setores residenciais
separados, por meio de acordos de cavalheiros, os piores lugares da cidade, longe dos
centros e facilidades eram reservados aos negros.
De forma semelhante, nasceu o bairro do Harlem em Nova York, em 1903, quando
um agente imobiliário teve a ideia de preencher as vagas em apartamentos com inquilinos
negros. Paralelamente, o conjunto de leis Jim Crow avançava pelo Sul do país,
direcionando olhares para o eleitor negro.
Para impedir e restringir a atuação do negro pelo voto, tendo em vista que muitos
não sabiam ler e escrever, adotou-se o seguinte mecanismo de exclusão:
If he could not read or write and if he were White, surely he had “good
character”. If the alphabet were foreign to him and if he were white,
surely he could understand and explain an article of the constitution. But
if he were black, the “read and write” and “understanding” clauses were
jigsaw puzzles83.
82
HARLAN apud BENNETT, 1964, p. 222.
83
BENNETT, 1964, p. 234.
42
brick by brick, bill by bill, fear by fear, the wall grew taller and taller.
The deaf, the dumb and the blind were separated by color. White nurses
were forbidden to treat Negro males. White teachers were forbidden to
teach Negro students. South Carolina forbade Negro and white cotton
mill workers to look out the same window. Florida required “Negro”
textbooks and “white” textbooks to be segregated in warehouses.
Oklahoma required “separate but equal” telephone booths. New Orleans
segregated Negro and white prostitutes84 […]
84
BENNETT, 1964, p. 221-222.
43
aos negros. Portanto, os organizadores eram jovens que, segundo Foner85, serviam aos
interesses do partido Democrata, dos fazendeiros e de todos aqueles lutavam pela
restauração da supremacia branca.
A organização possuía finalidade política, no sentido mais amplo da palavra,
porque a Klan desejava afetar as relações de poder, tanto público, quanto privado, na
sociedade sulista. O real intento era destruir a estrutura do partido Republicano, esgotar o
estado de Reconstrução, restaurar o controle da força de trabalho dos negros e impor
novamente a subordinação racial em todo o Sul.
Na etimologia, o nome deriva do grego klykos, que significa círculo; já a palavra
klan sugere a idéia de clã — um grupo com uma ancestralidade comum. Sendo assim, o
grupo era constituído por brancos extremistas, em sua maioria, soldados que retornaram da
guerra, sem emprego, sem dinheiro para começar um negócio e não tinham nenhum tipo de
diversão.
Para contemplar a rotina anterior à guerra, a seita parecia uma boa forma de
diversão para os membros, que usavam roupas brancas, um chapéu com ponta e uma
máscara branca. Logo após a constituição da organização, a primeira reunião ocorreu em
um bar em Pulaski e, mais tarde, as reuniões ocorreram fora da cidade em uma antiga
ruína.
A adesão aumentou rapidamente e, do Tennessee, a Klan estendeu seus domínios a
outras partes do Sul e, em 1867, transformou-se em grupo militar. Tal mudança de objetivo
do grupo ocorreu após a descoberta de que a organização poderia controlar e aterrorizar
negros supersticiosos.
Com esse novo propósito, em 1867 a seita reorganizou-se e realizou a primeira
grande convenção em Nashville, cujo território era chamado de Império Invisível e possuía
a seguinte divisão:
85
FONER, 1988.
86
DAVIE, 1949, p. 53.
44
The problem came to the surface not only because the dynamics of the
war forced it there, but because the ideological character of the war had
affected the entire population, and as this process developed, thousands
of Americans began to be acutely conscious of Negro discrimination and
increasingly determined to do something about it87.
87
DAVIE, 1949, p. 314.
45
88
DAVIE, 1949, p.314.
89
FONER, Eric. Nothing but freedom: Emancipation and its legacy. Baton Rouge & London: Louisiana
State University Press, 1983.
46
90
DAVIE, 1949.
47
91
DAVIE, 1949.
92
DAVIE, 1949.
48
na indústria bélica, no início da guerra, houve articulações legislativas para que os negros
não pudessem ocupar as posições oferecidas pela indústria.
Uma pesquisa realizada em 1942 entre os empresários sobre a contratação de
negros para suas indústrias, 51% declarou que em hipótese alguma contrataria negros93, e
apenas uma pequena parcela dos demais empresários contrataria os negros.
Posteriormente, com o avanço da guerra paulatinamente os negros foram contratados,
desencadeando efeitos diretos na segunda grande migração de negros para o Norte dos
Estados Unidos no período entre 1910 e 1940.
Nesse período, a população das cidades americanas do Norte do país dobrou e, em
contrapartida, a população do Sul diminuiu. Essa segunda migração deveu-se, em grande
parte, à Primeira Guerra Mundial, que culminou com a ida de americanos para a guerra,
implantando escassez de mão-de-obra.
Para resolver o problema da mão-de-obra, os empresários do Norte, inclusive,
enviavam agentes para o Sul para recrutar trabalhadores. Portanto, a segunda migração
começou por volta de 1915 e atingiu o ápice, em 1917, quando aproximadamente meio
milhão de negros havia se estabelecido no norte com salários altos.
A Primeira Guerra Mundial ofereceu aos negros maior oportunidade de ingresso na
indústria. Em princípio, esses trabalhadores eram mão-de-obra não especializada nas
indústrias de aço e ferro, fundições e empacotamento de carne. Mesmo com dificuldades
de adaptação, muitos trabalhadores mostraram-se competentes, fato que suplantou receios
dos empresários em se tratando da contratação da mão-de-obra negra.
Depois desse processo de contratação, as relações sociais entre trabalhadores
brancos e negros melhoraram. A região Sul dos Estados Unidos teve que aumentar os
salários e oferecer melhor tratamento aos negros, facilitando a obtenção de bons empregos.
Na Segunda Guerra Mundial, a migração dos negros é reiniciada. O cenário rural é
trocado pelos grandes centros industriais do Norte, do Sul e do Oeste. Estima-se que um
milhão de negros migrou neste período.
A indústria bélica no Havaí havia se expandido e havia empregos em diversos
centros urbanos. As áreas que receberam migrantes negros tinham tensões raciais e, apesar
de não ser a única razão para os tumultos raciais, foi um fator que contribuiu de forma
relevante.
93
DAVIE, 1949.
49
94
DAVIE, 1949.
95
DAVIE, 1949.
50
estava aliada a uma tradição autoritária, manifesta por meio do tratamento hostil reservado
os negros.
Todavia, a intolerância e a discriminação contra as minorias prejudicaria a tradição
democrática, enfraquecendo preceitos morais da nação e, como consequência, exporia a
face americana no mundo.
Em resumo, o assunto negro nos Estados Unidos ultrapassava as fronteiras da
nação, afetando alianças econômicas com países como China, Índia e África, por exemplo.
Por conseguinte, dentro e fora da nação, o problema de natureza racial tornou-se o teste
final, que mostraria se os americanos realmente aplicavam os fundamentos democráticos
comumente difundidos.
Os negros, por sua vez, tornaram-se mais conscientes a respeito da disparidade
entre o discurso e a aplicação efetiva da democracia. Dessa maneira, a Primeira Guerra
Mundial apresentou-se como uma desilusão para os negros, dentre as quais a ordem
expedida pelos oficiais do exército americano aos franceses direcionava como os negros
deveriam ser tratados.
A ordem direcionava o seguinte:
96
DAVIE, 1949, p. 330.
97
DAVIE, 1949.
51
mesmo tempo em que os negros lutavam pela democracia na América, também lutavam
por igualdade para eles mesmos.
A campanha promovida pelo Pittsburgh Carrier recebeu imenso apoio das massas
negras e, aliado às reações e protestos, cristalizou-se um programa de exigências que
expressavam as esperanças e expectativas dos negros como resultado da guerra. Dentre as
exigências destacavam-se: fim da segregação e discriminação nas Forças Armadas,
igualdade de oportunidades em empregos e treinamento; fim da segregação nas escolas,
nas habitações, no transporte e em outros serviços; remoção de todas as barreiras no
exercício do sufrágio; criação de uma lei federal contra a taxação para o voto; criação de
lei federal anti-linchamentos; representação negra na administração para elaboração dessas
leis. Em outras palavras, os negros reivindicavam direitos civis.
98
PURDY, Sean. “O Século Americano”. In: KARNAL, Leandro... [et al]. História dos Estados Unidos: das
origens ao século XXI. São Paulo: Contexto, 2008.
99
PURDY, 2008.
52
De acordo com Purdy100, nessa época o Produto Interno Bruto (PIB) cresce 250%,
entre 1945 e 1960, culminando com a elevação das taxas de emprego e com baixa na
inflação. Contudo, o sonho de expansão americano era branco e não incluía os negros.
O crescimento na economia foi inegável, mas para a grande maioria dos negros não
aconteceu. A distribuição de renda não havia mudado. Os mais ricos ainda controlavam
45% da riqueza; os mais pobres controlavam apenas 5%; e os índios, idosos, trabalhadores
rurais, negros e latinos ainda eram os mais pobres do país.
Nessa direção, algumas mulheres saíram em busca de representatividade fora do
espaço comumente conhecido: papel de esposa e de mãe. Contrário ao que se pensa,
Purdy101, mostra que havia mulheres casadas e que trabalhavam fora, desmistificando a
idéia do provento centrado nos salários dos homens chefes de família. Por conseguinte,
houve um aumento no uso de contraceptivos, abortos e mudanças nas atitudes referentes ao
sexo e, em contrapartida, a pressão por mudanças nas leis que regulavam tanto a
reprodução quanto a sexualidade. Com isso, o número de divórcio aumentou e famílias
não-nucleares surgiram.
Os sindicatos reivindicavam em defesa dos direitos das mulheres no trabalho e
combatiam o machismo. Logo, dentro desse cenário de transição e mudança, a perspectiva
das mulheres acerca do papel que exerciam na sociedade mudou, fomentando mudanças de
perspectiva também para os homens e para o governo e, dessa convergência de fatores,
surge a base do Movimento Feminista.
Nesse período, diversas associações surgiram baseadas no ideário de liberdade,
prosperidade e democracia da América branca e articularam-se para conformar o
Movimento pelos Direitos Civis – não que esse movimento não existisse antes das décadas
de 1950 e 1960. Pelo contrário, desde a captura na África, os escravos empreendiam
revoltas e rebeliões, apresentadas anteriormente, como forma de protesto ao processo de
escravização.
No período pré-emancipação, os abolicionistas protestavam contra um poder que
subjugava, matava e destituía os negros de sua humanidade, transformando-os em
produtos. Logo, nota-se que uma articulação na tentativa de assegurar direitos aos negros
já existia anteriormente. Nos anos de 1950-1960 a luta ganha relevo devido às leis de
100
PURDY, 2008.
101
PURDY, 2008.
53
segregação, institucionalizadas ou não, pelo contato entre negros e pelas ideias mais
liberais sobre liberdade aplicadas em países da Europa.
O status de Movimento lançou-se devido à organização dada: criação de diretórios,
bases e lideranças com uma estrutura hierárquica definida. As estratégias de resistência
pacífica advogadas pelo Dr. Martin Luther King Junior102, fundador da Conferência de
Liderança Cristã, em 1957, são frutos de uma releitura das ideias de Mahatma Gandhi e de
Henry Thoreau sobre a desobediência civil, conferindo ao Movimento uma política de
natureza moral e religiosa por meio do apelo à “retórica americana do valor da liberdade,
bem como à da justiça social bíblicas103”.
O centro dessas mobilizações foram as igrejas negras, que se destacaram em defesa
de questões políticas domésticas como: mobilizações contra a segregação; movimentos
anticolonialistas na África. Destaca-se, neste contexto, o SNCC (Student Nonviolent
Coordinating Committee) que possuía uma política inclusiva e democrática por meio da
cultura de protesto, isto é, canções, comícios e outras práticas de solidariedade criaram um
sentimento de comunidade entre os negros.
Os ativistas também mantiveram a tradição intelectual negra. Nesse momento, o
acesso de alguns negros ao ensino superior na América aumentou e, com isso, a
participação social cresceu, possibilitando o acesso ao mercado de consumo.
Esse acesso à educação superior passa a ser um commodity que consiste em um
bem, convertido depois no poder do conhecimento, que traz a capacidade de reflexão sobre
os contrastes de natureza social. Dentro desse cenário de luta de classes, derivadas das
102
“Líder do movimento pelos direitos civis, nascido em Atlanta e falecido em Menphis, Tennessee. Pastor
da Igreja Batista, seus ideais e métodos baseavam-se no amor cristão e na ação não-violenta. Tornou-se
famoso em 1955, ao liderar o movimento de protesto contra a segregação racial no ônibus, em Montgomery,
Alabama. Mais tarde, formou-se o Southern Christian Leadership Congress (Congresso das Lideranças
Cristãs do Sul), condutor da ala pacifista do movimento pelos direitos civis. Nos anos de 1960 esteve à frente
de várias importantes iniciativas, recebendo, por isso, em 1964, o Prêmio Nobel da Paz. Posicionando-se
contra a Guerra do Vietnã e ligando as vultuosas somas despendidas com ela a um pernicioso controle da
economia americana e ao crescimento da pobreza entre negros, índios e brancos dos Apalaches, King entrou
em rota de colisão com o governo americano e a indústria bélica, além de desagradar a alguns setores do
movimento pelos direitos civis, morrendo assassinado em 26 de agosto de 1968. Sua morte, embora tenha
demonstrado a não eficácia dos métodos pacifistas, contestados pelos Panteras Negras (Black Panther Party)
e Black Muslims, pregadores da ação violenta, granjeou grande simpatia e apoio aos seus ideais. Tanto que
hoje, em todos os Estados Unidos da América, o dia 15 de janeiro, data de seu aniversário natalício, é feriado
nacional.” (LOPES, 2004, p. 374)
103
PURDY, 2008, p. 244.
54
104
“Tradução da expressão Black Panthers, nome resumido do Black Panther Party for Self Defense, partido
revolucionário fundado em 1966 nos Estados Unidos, por Bobby Seale e Huey Newton, com o objetivo de
enfrentar e superar, por meio da luta armada, a discriminação sofrida pelos negros.” (LOPES, 2004, p. 512)
105
PURDY, 2008, p. 248.
106
“Cognome de Malcolm Little, político americano, nascido em Omaha, Nebraska, e falecido em Nova
York. Filho de um ministro batista militante da Unia, torturado e assassinado pela Ku Klux Klan, passou de
rufião, assaltante e traficante de drogas a líder político dos Black Muslims, pregadores da luta armada. Nos
anos de 1960, escrevendo seguidos artigos na imprensa e participando de inúmeros comícios e palestras,
inclusive no exterior, defendia o nacionalismo negro, baseado no orgulho étnico dos afro-descendentes. Por
seu próprio exemplo pessoal, tornava-se a prova de que era possível a um negro pobre e envolvido com o
crime sair da marginalidade e assumir lugar de destaque na vida nacional. Em abril de 1964 fez sua hadj
(peregrinação) a Meca e impressionou-se com a união de todas as etnias promovida pelo credo islâmico. De
volta aos EUA, incorporou o título El-Hadj (peregrino) ao seu nome muçulmano, Malik el-Shabazz; afastou-
se da Nação do Islã, que advogava a separação entre negros e brancos, e criou a Organização da Unidade
Afro-Americana, oq que pode ter levado ao seu assassinato, ocorrido durante uma palestra. Um dos
personagens mais polêmicos da história recente dos EUA, sua autobiografia, escrita com a colaboração de
Alex Haley, foi publicada no Brasil em 1964.”(LOPES, 2004, p. 410)
55
CAPÍTULO II
Maya Angelou
57
2 INTRODUÇÃO
A narrativa ressurgiu, após alguns séculos de esquecimento, como uma via por
meio da qual os sujeitos buscam compreender a si e ao mundo, conhecimento esse
mediado pelas narrativas pessoais e culturais.
A narrativa de forma injusta foi relegada à categoria de ficção ou invenção de
mentes desocupadas, que servia apenas para descrever situações ou histórias. Deste modo,
relegada à categoria de mero “faz de conta”, o papel central da narrativa junto aos demais
processos de pensamento, conhecimento, consciência e realidade foram deixados de lado
ou negados.
Tal negação levou muitos a falarem em uma crise na literatura, nas artes em geral e
também numa ruptura da organização temporal da vida dos indivíduos, chamada de
condição pós-moderna. Porém, é justamente devido a essa crise que ressurgiu o interesse
pela narrativa e, desse interesse, emergiu uma nova perspectiva adotada por alguns
teóricos.
Nessa retomada, Paul Ricoeur propiciou uma das mais completas caracterizações
sobre a narrativa mediante sua obra de três volumes intitulada “Tempo e Narrativa” (1994-
1995). O autor afirma que a narrativa é a estrutura básica de nosso tempo e propõe três
estágios da mimesis, sob os quais estão a identidade narrativa e toda a criatividade humana.
Esse trabalho é um marco nos estudos da narrativa, apesar de apresentar problemas
na proposição teórica e na composição da identidade narrativa, ao ser tomada em conjunto
com a natureza processual da narrativa e seus laços com outros processos humanos de
identidade, conhecimento, consciência e realidade.
Num primeiro momento, poderíamos afirmar que a narrativa é uma história real ou
ficcional que pode ser contada de forma escrita ou verbal, utilizando-se da arte, da
linguagem de sinais ou de gestos. Todavia, cabe ao sujeito que relata a história a função
59
Em uma análise sobre a narrativa Ochs & Capps afirmaram que essa é uma versão
da realidade, uma vez que não possui um ponto de vista objetivo, pois o passado é um
relato feito a partir de ângulos diversos, escolhidos pelo indivíduo para atender a
contingência do momento. Portanto, as narrativas são versões da realidade que incorporam
vários aspectos.
Com base nessa perspectiva, as autoras afirmam que um desafio importante para a
humanidade é reconhecer que as vidas dos indivíduos constituem-se de tempos passados,
contados a si mesmos, em que cada nova narrativa propicia a possibilidade de construir
novas identidades e exibe uma faceta do narrador. Por esta razão, as narrativas têm o
potencial de gerar identidades parciais que, posteriormente, serão unidas em uma
identidade transitória, uma vez que a narrativa cria o indivíduo ao mesmo tempo em que é
criada.
A dimensão cronológica da narrativa dá coesão a elementos que seriam, em outro
caso, díspares. Às vezes, a ordem cronológica é alterada para fins retóricos como, por
exemplo, quando os narradores usam flashbacks ou desvelam os fatos aos poucos para que
o suspense seja mantido.
As narrativas pessoais, mesmo ao tratar sobre o passado, criam uma ponte entre o
presente e o futuro. Por serem sempre narradas da perspectiva do presente, as narrativas
pessoais são também respostas às preocupações e conflitos de experiências passadas,
unindo o passado ao presente pelo caminho de mundos futuros.
Do ponto de vista linguístico, o tempo verbal passado no qual a narrativa é feita,
implica um tempo próximo ao presente e, por vezes, o narrador muda de passado para o
presente. Essa estratégia mantém a narrativa viva e cativante, para assinalar que o passado
não está morto, e que continua a invadir a consciência do narrador.
107
OCHS , ELINOR & CAPPS, LISA. “Narrating the Self”. Annual Review of Anthropology. Vol. 25.
(1996), p. 19-43.
60
108
OCHS & CAPPS, 1996, p. 25.
109
SOMERS, Margaret R. “The Narrative Constitution of Identity: A Relational and Network Approach.”
Theory and Society, Vol. 23, No. 5 (Oct., 1994), p. 605-649.
110
SOMERS, 1994.
61
111
SOMERS, 1994.
112
SOMERS, 1994.
113
SOMERS, 1994.
62
sujeito o que fazer ou encaminhar ações a serem tomadas, produzindo novas narrativas e
novas ações — o que é précondição para afetar a consciência e crenças dos sujeitos e vice-
versa, auxiliando na constituição da agência desses sujeitos.
Nesta perspectiva, as narrativas ontológicas vêm do curso da interação social e
estrutural ao longo do tempo, auxiliando os agentes a moldar suas histórias e, segundo
Somers114, esses sujeitos oferecerão via história uma versão da realidade que mudarão ao
longo do tempo.
A segunda dimensão das narrativas, as narrativas públicas, são aquelas ligadas às
formações institucionais e podem ser de natureza micro ou macro históricas, locais ou não
em relação à mobilidade social. Essas narrativas públicas abrangem, desde as histórias de
uma família, até as histórias de uma igreja, um governo ou uma nação. Como todas as
histórias, elas possuem enredo, drama, explicação e critério seletivo. Assim, uma família,
por exemplo, pode apropriar-se de eventos para reconstruir as raízes pobres e humildes de
sua família; a mídia pode organizar e ligar eventos de forma a criar o enredo da origem das
desordens sociais.
A terceira dimensão, denominada metanarrativa, refere-se às histórias das
ideologias, calcadas no Iluminismo, no Progresso, e na Decadência que constituem a
contemporaneidade. Nessa direção, as metanarrativas podem abarcar dramas épicos de
nossos tempos como a luta entre o Capitalismo e Comunismo, entre o Indivíduo e a
Sociedade. Tais narrativas podem ainda ser desdobramentos teleológicos como, por
exemplo, o Marxismo e a Luta de Classes.
Contudo, esta última narrativa, apresenta um aspecto paradoxal, que se configura na
capacidade de desnarrativização. Apesar de serem construídas em conceitos e esquemas
explicativos como sistemas sociais, entidades sociais, a desnarrativização consiste em
abstrações. Embora possua todos os componentes necessários à narratividade, a
transformação, enredo principal, personagens e ação não possuem o elemento principal de
uma narrativa conceitual.
A partir de tais proposições, Somers115 sugere que o conceito de identidade
narrativa caminhe unido à política identitária para realocar os indivíduos excluídos em
novas teorias de ação, para que novas identidades, não fixas sejam constituídas. Por
conseguinte, o propósito do “eu” será sempre reconstruído em relação a contextos internos,
114
SOMERS, 1994.
115
SOMERS, 1994.
63
Para Jerome Bruner, não existe algo com a vida vivida, mas a vida como uma
forma de construção criada por meio da autobiografia. Segundo o autor, uma autobiografia
é um modo de construir a experiência, que depende de nossas intenções e das convenções
interpretativas à disposição e dos significados impostos sobre nós, pelos usos de nossa
cultura e linguagem117.
O autor ainda afirma que um dos riscos da narrativa é o congelamento, no sentido
de que o contador da história pode tentar conformar sua vida a uma versão criada,
estagnando sujeitos pela restrição de mudanças e pela inibição do despertar para uma ação.
Isso se trata justamente das autobiografias literárias que abrangem momentos do despertar
e de mudanças para evitar a estagnação.
Devido a este aspecto, a autobiografia torna-se altamente instável, suscetível a
influências externas de todas as ordens. Em face de determinadas intervenções culturais, a
narrativa autobiográfica sofre influência de circunstâncias, por exemplo, religiosas e que
produzem efeitos na vida do indivíduo, causando o despertar do qual a narrativa
autobiográfica se vale118.
116
SOMERS, 1994.
117
BRUNER, Jerome. “The Autobiographical Process”. In: FOLKENFLIK, Robert (Editor). The Culture of
Autobiography: Constructions of Self-Representation. Stanford,California: Stanford University Press, 1993,
p. 38-56.
118
BRUNER, Jerome. “Life as Narrative”. Social Research. Vol 71 : No. 3 : Fall 2004, p. 691-710.
64
Por conseguinte, a autobiografia pode ser vista como uma expressão pessoal, como
uma narrativa que expressa a dinâmica interna, mas também como um produto cultural119.
O autor afirma também que a veracidade de tais histórias não é tão relevante nas
autobiografias, baseada no conceito de autoconhecimento e que, muitas vezes, está
subjacente e não revelado.
Tal afirmação, segundo Bruner120, remete à lógica freudiana de conhecimento
recebido sem questionamento, mas que precisa ser revisto. A ideia de autoconhecimento
está fundada na crença de que nossas mentes estão equipadas com um scanner que tem
acesso a todas às experiências e que, de alguma maneira, são restauradas na memória de
forma transparente.
Todavia, tudo que sabemos sobre a construção das experiências e do
armazenamento da memória assinala que tal proposição não procede porque o ato de
rememorar é uma construção e reconstrução e, aquilo que subjaz na memória, não é um
encontro original com um mundo real, mas altamente esquematizado. Assim, o ato de
recontar a própria vida não é um ato de realizar novas descobertas ou de revelar memórias
previamente escondidas; pelo contrário, é um ato de reescrever uma narrativa, ao longo de
diferentes linhas de interpretação e, nesse processo, escolhemos a perspectiva de narração
e, tudo que anteriormente poderia ser irrelevante e banal, torna-se novo e digno de nota.
De forma peculiar, as autobiografias assumem duas dimensões importantes: uma,
de natureza singular à medida que permite interpretar a vida de um sujeito; outra; de ordem
coletiva devido possibilitar que sua ação seja renovada mediante a leitura e interpretação
de diferentes sujeitos.
O discurso autobiográfico é um ato constitutivo destinado à construção de uma
possível realidade da vida em um tempo e espaço, negociada com alguém. Assim como a
autobiografia não poder ser desprendida de um lugar e tempo, sua composição não pode
ser destituída de interlocutores que constituem a dimensão dialógica do narrador121.
O processo autobiográfico envolve um narrador que está no presente, contando a
história de um protagonista que possui o mesmo nome no passado. Segundo Bruner122,
esse narrador deve recorrer à memória, para narrar situações do passado, que devem seguir
determinados critérios, criados no decorrer do enredo e organizados na sucessão dos fatos.
119
BRUNER, 1993.
120
BRUNER, 1993.
121
BRUNER, 1993.
122
BRUNER, 1993.
65
O testemunho [...] ele apresenta uma outra voz, um “canto (ou lamento)
paralelo”, que se junta à disciplina histórica no seu trabalho de colher os
traços do passado [...] A sua tese central afirma a necessidade de se
partir de um determinado presente [...] a memória é concebida como um
local de construção de uma cartografia [...] Ao invés de visar uma
representação do passado, [...] tem em mira a construção a partir de um
presente124.
123
SELIGMANN-SILVA, Márcio. “A história como trauma”. In: NESTROVSKI, Arthur & SELIGMANN-
SILVA, Márcio. Catástrofe e Representação: ensaios. São Paulo: Escuta, 2000, p. 82.
124
Seligmann-silva, 2000,, p. 90.
125
DOUEK, Sybil Safdie. Memória e Exílio. São Paulo: Escuta, 2003.
66
o acesso dessas mulheres à educação era restrito, mesmo com o final formal da escravidão
e com investimento das comunidades negras em escolas, a educação formal ainda era
privilégio reservado aos meninos e homens.
Devido a esses fatores, as vozes presentes na literatura foram masculinas: a voz do
escravo fugitivo, do orador, do abolicionista e do político e, por conseguinte, as vozes das
heroínas negras, bem como suas imagens foram suprimidas e adaptadas ao universo
masculino. Em face do exposto, não queremos afirmar que as mulheres afroamericanas
estavam conformadas com a situação de exclusão; pelo contrário, como afirmou
Washington126, as mulheres negras não estavam hibernando em buracos escuros,
meramente contemplando sua invisibilidade.
Dessa maneira, existia uma literatura feminina afroamericana que corria em
paralelo ao cânone afroamericano masculino e que se valia do pensamento, das palavras e
dos sentimentos, dos resquícios de elementos culturais africanos que sobreviveram e foram
rearticulados na América do Norte. Como elementos centrais das memórias discursivas
destacam-se em particular: o respeito aos ancestrais, o papel central das mulheres mais
idosas nas comunidades como guardiãs das tradições, a culinária, as religiões que sofreram
drásticas transformações e, principalmente, da música, numa constante e recorrente
tentativa de familiarizarem-se com a própria cultura.
Em outras palavras, ainda não havia uma tradição afroamericana autobiográfica
feminina. A presença feminina nas letras já existia, mas somente em outros gêneros
literários. A tradição autobiográfica afroamericana feminina surgirá na segunda metade do
século XX, como sinal da conscientização do povo afroamericano, em particular, das
mulheres afroamericanas e também como uma resultante dos Movimentos Feministas e do
Movimento pelos Direitos Civis.
Ao compartilhar uma experiência comum da escravidão, as mulheres negras, ao
contrário dos homens, se viam diante de questões de raça e gênero. Mais além, essas
mulheres tinham a experiência histórica de serem negras e serem mulheres, em uma
sociedade específica, em um momento específico, ao longo de diversas gerações,
fornecendo elementos de um discurso distinto dentro do corpo literário afroamericano.
126
WASHINGTON, Mary Helen. “The Darkened Eye Restored: Notes Toward a Literary History of Black
Women”. In: GATES, Henry Louis (Editor). Reading Black, Reading Feminist: A Critical Anthology. New
York: Meridian; Penguin Books, 1990, p. 7.
68
Para categorizar a autobiografia negra feminina mediante apenas fatores como raça
e gênero, delimita uma relação complexa entre o texto, o autor e a experiência deste. Como
apontou Genovese127, voltar à dupla opressão — raça e gênero —, não propicia uma nova
categoria teórica, visto que as mulheres negras e as mulheres brancas partilham a mesma
categoria sexual, embora não ocorra referência às relações de classe de forma particular ou
geral. Sendo assim, tanto o sexo quanto a raça prestam-se à representação, fabulação e
mito.
A autora observa ainda que as categorias homem e mulher, branco e negro são
apreendidas socialmente e são o resultado de atos ou formas de reconhecimento. Assim, o
gênero e a classe transformam o sexo e a raça em barreiras, portanto, em formas de
exclusão que tornam-se valores sociais positivos.
Uma análise centrada na autorepresentação das mulheres afroamericanas no gênero
e na classe não exclui a força do racismo e do sexismo que estruturam a experiência destas
mulheres; pelo contrário, isso repetirá os mitos que essas escritoras tentam dissipar.
Diante deste cenário, verifica-se que a autobiografia afroamericana feminina requer
uma justificativa para a sua existência, o que remete à ideia de classificação, princípios e
práticas de leitura, que, no caso das escritoras negras, deve considerar as condições extra-
textuais.
O princípio básico que norteia esta classificação é a história que começa com a
conscientização das mulheres negras e brancas sobre o espaço que ocupam na estrutura
social. Essa conscientização surge da percepção e observação que fizeram de suas
antecessoras: avós, tias, mães, irmãs e a própria condição de vida. Por exemplo, as avós
foram escravas, as mães, as tias e as próprias irmãs também e que carregavam na memória
e no corpo as marcas da opressão.
Ao olhar o contexto presente e futuro que as aguardava, a conclusão era de que,
como dissemos anteriormente, o senhor havia mudado, mas o castigo, não. Portanto, essas
filhas do Sul segregado notaram que, durante todo esse tempo, suas vozes não se faziam
ouvir de forma ampla e marcante; a violação e a degradação ainda eram ignoradas; sua
condição permanecia guardada como um segredo vergonhoso.
127
GENOVESE, Elizabeth Fox. “My Statue, My Self”. In: GATES, Henry Louis. Reading Black, Reading
Feminist: A Critical Anthology. New York: Meridian; Penguin Books, 1990.
69
128
CHRISTIAN, Barbara. “The Highs and the Lows of Black Feminist Criticism”. In: GATES, Henry Louis.
Reading Black, Reading Feminist: A Critical Anthology. New York: Meridian; Penguin Books, 1990.
129
CHRISTIAN, 1990.
130
CUDJOE, Selwyn. “Maya Angelou: The Autobiographical Statement Updated”. In: GATES Jr., Henry
Louis (Editor). Reading Black, Reading Feminist: A Critical Anthology. New York: Meridian; Penguin
Books, 1990, p. 280.
131
PRATT, Mary Louis. Imperial Eyes: Travel Writing and Transculturation. London; New York:
Routledge, 1992, p. 4.
70
Esta escrita torna-se lócus onde as mulheres negras se fazem copresentes por meio
da escrita, destituindo-se dos estereótipos criados e enraizados na sociedade pelos brancos
para revestirem-se de uma identidade que lhes reflita.
A representação das vidas das mulheres negras, bem como dos homens nas
autobiografias, evita o tom confessional adotado pelas escritoras brancas em suas
autobiografias. Para Genovese132, as escritoras afroamericanas parecem oscilar em suas
autobiografias entre o exibicionismo e o segredo; entre a autoexibição e auto-ocultação.
O público leitor está representado nas autobiografias afroamericanas femininas: se
por um lado essas escritoras desejavam expor a amargura da opressão e, em especial às
mulheres brancas sulistas, por outro lado, buscam também conquistar a simpatia do público
negro e, por consequência, elevar a consciência a respeito da condição de expropriação na
sociedade americana, clamando por uma solidariedade ativa.
Contrário aos homens afroamericanos que, segundo Awkward133, seguem o mesmo
padrão dos textos ocidentais tradicionais que estabelecem uma competição entre si, as
escritoras afroamericanas têm uma relação mais harmoniosa entre si e buscam modelos
femininos, numa tentativa de fusão simbólica com suas antecessoras.
Poderíamos afirmar que essa literatura se presta igualmente ao papel de recuperar
determinadas imagens e elementos africanos que, como afirmamos no início desse
capítulo, sofreram um processo de aculturação nos Estados Unidos, mas que
permaneceram no imaginário negro como parte constituinte de suas identidades.
132
GENOVESE, 1990
133
AWKWARD, Michael. Inspiriting Influences: Tradition, Revision, and Afro-American Women’s Novels.
New York; Oxford: Columbia University Press, 1989.
134
BAKHTIN apud AWKWARD. 1989.
71
135
CUDJOE. 1990.
136
CALLAHAN, John F. In the African-American Grain: Call-and-Response in Twentieth-Century Black
Fiction. Urbana; Chicago: University of Illinois Press, 2001.
72
jovens dependiam das idosas, tanto para cuidar dos filhos menores, enquanto trabalhavam
fora de casa ou, até mesmo, para aliviar-lhes as dores do parto e assegurar às crianças uma
entrada segura no mundo.
Os adultos também tratavam as avós, mesmo sem grau consanguíneo de parentesco,
como uma segunda mãe a quem era necessário devotar o mesmo respeito dado à mãe
biológica. A posição dessas mulheres nas famílias afroamericanas remonta à posição das
mulheres nas sociedades africanas.
Em famílias Yorubá, que adotavam a poligamia, após o falecimento do marido, os
bens do falecido eram divididos entre as diversas esposas que tivessem filhos. Uma mulher
que não tivesse filhos poderia ou não receber algum bem, para que pudesse manter-se até
que se casasse novamente. Entretanto, aquelas mulheres que, mesmo sem haverem se
casado, contribuíssem de forma significativa na sociedade, eram tratadas pelo título de
“Mãe”, haja vista que eram reconhecidas e respeitadas como as matriarcas da sociedade e
preservavam saberes da comunidade.
Em vista disso, as avós são personagens recorrentes nas autobiografias
afroamericanas femininas, representando senso de identidade às raízes ancestrais dos
afroamericanos e também laços de união dentro da rede familiar. Também a religião
sobreviveu nas Américas como um aspecto vital para os africanos.
Ainda que tenha havido a adoção de outras religiões diferentes das africanas nas
Américas, a religião era imprescindível aos africanos e afroamericanos, visto que era uma
forma complexa de compensação pela escravidão. Assim como na África, a religião para
os afroamericanos não estava separada da vida diária; pelo contrário, tudo o que acontecia
no cotidiano possuía uma explicação sobrenatural e divina.
Como não era permitido aos negros durante a escravidão reunirem-se em grupos no
Sul dos Estados Unidos, os escravos aderiram à religião Batista que era considerada a
igreja das massas, devido ao caráter mais democrático e autônomo. Essa era uma das
poucas igrejas que aceitavam a participação de negros, nos trabalhos religiosos, e em
cultos, que permitiam maior expressividade no louvor.
There was also greater liberality among the Baptists in giving Negroes
permission to preach while also in addition the Baptist method of
administering communion was not calculated to discriminate against
73
them. Finally the mode of baptism among the Baptists satisfied the
desire of the Negro for the spectacular137.
137
HESRKOVITS, Melville. The Myth of the Negro Past. New York & London: Harper & Brothers
Publishers, 1941, p. 210.
138
WILSON, OLLY. “It Don’t Mean a Thing IF it Ain’t Got That Swing”: The Relationship Between
African and African American Music”. In: WALKER, Sheila S. (Editor). African Roots/American Cultures:
Africa in the Creation of the Americas. Lanham; Boulder; New York; Oxford: Rowman & Littlefield
Publishers, Inc., 2001, p. 153-168.
139
FABRE, Geneviève. “The Slave Ship Dance”. In: DIEDRICH, Maria; GATES, Henry Louis;
PEDERSEN, Carl. (Editors)..Black Imagination and the Middle Passage. New York; Oxford: Oxford
University Press, 1999, p. 33-46.
74
sofrimento do longo período de permanência dos escravos nos navios e ainda diminuir a
taxa de suicídios a bordo dos navios de carga humana.
Os escravos eram oriundos de regiões distintas, esses momentos proporcionaram o
encontro de diversos grupos étnicos que partilhavam músicas com companheiros de
viagem. Essas trocas ocorreram inúmeras vezes nas diversas viagens da África para as
Américas e envolveu os mais distintos grupos étnicos africanos, configurando o Atlântico
uma zona de contato140 , mas de certa forma, um contato positivo entre os grupos étnicos
no sentido de manutenção de traços musicais dessas culturas.
Com relação às apresentações musicais, Wilson141 aponta que o papel da música
para os africanos ia além do entretenimento, haja vista que, esta, estava enraizada em todas
as atividades cotidianas da vida africana como no trabalho, nos cultos religiosos, e na
morte. Para tanto, a música consistia numa força, portanto, um agente causal que tinha
relação com a cosmologia africana.
Em determinadas religiões africanas, o universo é visto como possuidor de um
fluxo contínuo e dinâmico de forças que atuam constantemente e interagem entre si, ou
seja, todas as coisas possuem um grau de força. Segundo essa perspectiva, o universo
possui três níveis a saber: o nível da força suprema; o nível das divindades; e o nível da
possessão.
O primeiro nível, a força suprema, é o ser onipotente e onipresente criador de todas
as coisas e a fonte de toda força. Este ser não se interessa pelos problemas mundanos dos
seres humanos e, após ter criado todas as coisas, distanciou-se do mundo. O segundo nível,
ao contrário, detém as diversas forças da natureza que estão presentes no cotidiano,
interagindo com os seres humanos por meio das divindades. Portanto, cada divindade
preside sob um domínio, exercendo o poder e autoridade. Essas divindades é que os
humanos devem recorrer para conseguir determinados objetivos, mas para acessar o plano
das divindades é preciso atingir o terceiro nível da possessão.
A possessão ocorre quando o ser humano devoto de determinada entidade entra em
comunhão com a mesma. Esta possessão acontece no ápice de uma apresentação musical
— visto que cada divindade possui uma música própria—, quando o toque dos tambores,
os cânticos e a dança intensificam-se e os participantes são absorvidos pela música.
140
PRATT, 1992.
141
WILSON, 2001.
75
142
WILSON, 2001, p. 159.
143
“O mesmo que negro spiritual , espécie de música vocal de cunho religioso desenvolvida pelos negros do
Sul dos Estados Unidos desde os tempos da escravidão.” (LOPES, 2004, p. 631)
144
“Palavra inglesa que significa “evangelho”. Dá nome à forma mais moderna e conhecida da adaptação
musical do negro spiritual, surgida da adaptação de hinos evangélicos às concepções africanas de canto
coral, nos Estados Unidos do século XVIII. Até a Guerra da Secessão (1861-5), pouco se conhecia dos cantos
dos negros americanos; mas, durante e depois do conflito, esses cantos, e principalmente os spirituals,
despertaram interesse e atenção geral. [...]” (LOPES, 2004, p. 306)
76
menos solene, cujo canto coletivo “pode transformar-se em diálogo entre o indivíduo e o
coro”145.
Após a Guerra da Secessão, um novo tipo de música nasceu, denominado de
Blues146. Este surgiu como um ritmo musical, num momento, em que para a grande
maioria dos escravos recém libertos, o Sul dos Estados Unidos não era mais um lugar
seguro para viver. Os ex-escravos saíram em busca de um local seguro, onde a melancolia
da escravidão e da guerra não estivesse presente.
Deste modo, o Blues expressa a dor, a tragédia, a busca, por vezes, o desespero
usando o humor para mascarar as reais aflições dos ex-escravos. Como observou Wagner,
“Entre cada frase, com efeito, os cantores tocam nos seus instrumentos (guitarra, banjo,
harmônica e mais tarde piano) frases que libertam um swing intenso, tão intenso quanto
rude”147.
Embora o Blues possua o Sul dos Estados Unidos como berço, com o deslocamento
dos ex-escravos para o Norte do país, o Blues ganha um tom mais urbano mediante
mudança de temas, mas com a manutenção de uma base rítmica. O recurso pergunta e
resposta, fundamental na narrativa oral africana, torna-se mais intimista e individual no
Blues à medida que o cantor responde às próprias indagações verbalmente ou por meio de
um instrumento. Portanto, o Blues conta com a experiência partilhada da escravidão, das
injustiças e da segregação entre o cantor e o público, e o artista, por sua vez, espera que
tais histórias sejam passadas adiante.
Em contrapartida, o Jazz nasceu nos portos de Nova Orleans por meio do contato
entre afroamericanos e franceses. Devido ao excessivo número de estrangeiros, essa cidade
tornou-se um centro de entretenimento que precisava constantemente de atrações
diversificadas para atrair o público e, como o Blues não era uma música convidativa para a
dança por várias horas seguidas, portanto, era necessária música com sonoridade para atrair
clientes.
145
WAGNER, Jean. O guia do jazz: Iniciação à história e estética do Jazz. Portugal: Pergaminho, 1991, p.
29.
146
“Expressão musical, vocal e instrumental, dos negros do Sul dos Estados Unidos, caracterizada em geral
pelo andamento lento e pelo uso de acordes abemolados. Também, estilo de interpretação jazzística oriundo
dessa expressão. O termo é redução da expressão blue-devils, que dá nome a um sentimento de depressão e
tristeza comparável ao afro-brasileiro alundu. [...]” (LOPES, 2004, p. 125).
147
WAGNER, 1991, p. 30.
77
148
“Forma de expressão musical criada pelos negros norte-americanos. Tradicionalmente, caracteriza-se por
uma sólida e ao mesmo tempo flexível infra-estrutura rítmica, com solo e improvisações do conjunto sobre
melodias e acordes determinados. Mais recentemente, entretanto, adquiriu uma linguagem harmônica
altamente sofisticada. Nascido em Nova Orleans, do amálgama de spirituals, blues, canções de trabalho e
marchas militares, o jazz, levado pelos negros em suas migrações para Chicago, Nova York e outros centros,
dissemiou-se por todo o mundo [...]” (LOPES, 2004, p. 356)
149
WAGNER, 1991, p. 27.
150
WILSON, 2001.
78
151
CALLAHAN, 2001.
152
CALLAHAN, 2001.
153
CALLAHAN, 2001.
79
154
PRATT, 1992.
155
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis,
Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005, p. 20.
156
SOUZA, Lynn Mário T. M. “Hibridismo e Tradução cultural em Bhabha”. In: ABDALA, Benjamin
(Organizador) Margens da Cultura: mestiçagem, hibridismo & outras misturas. São Paulo: Boitempo, 2004,
p. 113-133.
157
hooks, bell. Talking Back: Thinking Feminist, Thinking Black.Boston, MA: South End Press, 1989.
158
hooks, 1989.
80
159
WASHINGTON, 1990.
160
CUDJOE, 1990.
81
deterioração dos centros urbanos; o crescimento do movimento feminista que fez com que
as mulheres afroamericanas se conscientizassem de serem mulheres e de serem negras; e as
crescentes tensões nas relações entre homens e mulheres negros161.
Como resultado essa convergência de fatores, as escritoras afroamericanas
introduziram uma nova dimensão na literatura americana e, dessa confluência de tensões,
Maya Angelou oferece ao público a primeira autobiografia intitulada I Know Why the
Caged Bird Sings, publicada em 1970, seguida por Gather Together in My Name (1974),
Singin’ and Swingin’ and Gettin’ Mery like Christmas (1976), The Heart of a Woman
(1981) e All God’s Children need Traveling Shoes (1986).
A escritora Maya Angelou oferece por meio de suas autobiografias profundo
significado para a vida das mulheres afroamericanas, mediante a busca pela autonomia e
pela conscientização do papel desempenhado na sociedade. Assim, ao analisarmos a
narrativa autobiográfica de Maya Angelou nota-se que é marcante a busca pela
individualidade, a luta pessoal imbricada com as condições gerais de vida dos
afroamericanos, a reivindicação de um papel representativo, não somente em relação aos
afroamericanos, mas também em relação à ideia de América.
161
CUDJOE, 1990.
82
CAPÍTULO III
Maya Angelou
83
O primeiro livro autobiográfico de Maya Angelou I Know Why the Caged Bird
Sings162 foi escrito na década de 1960 e teve sua primeira publicação em 1970. Maya
Angelou já era conhecida no meio literário devido seus poemas e mini-carreiras como
historiadora, atriz, cantora, poetisa e roteirista que seriam objeto de suas autobiografias.
Logo após sua publicação, Caged Bird transformou-se em uma série de televisão
em 1978. As produções da escritora mostram um mundo cercado de humilhações,
opressão, deslocamento e perdas, que, para os negros, apresenta um significado de crescer
e viver circunscrito aos limites impostos por uma sociedade desigual.
De forma particular, a questão de gênero tem relevância na produção de Maya
Angelou e, por meio de narrativas, a autora evidencia como as mulheres negras são
violadas por forças opressoras, inclusive da própria comunidade negra, o que confere à
obra um tom político.
Como Maya163 mostra ao longo da obra, a vida no Sul dos Estados Unidos repleta
de provações constantes, dificuldades, brutalidade e violência imposta, por exemplo, pela
Ku Klux Klan, que não apenas sodomizava, mas matava mulheres, homens e crianças
negras. Havia também a forte política Jim Crow de segregação e confinamento dos negros
aos piores lugares da cidade, e os episódios de degradação física e psicológica a que os
negros eram subordinados.
Nesse cenário, consolida-se a jornada de Maya que perpassa a inocência até o
momento de conscientização, da desfragmentação à identificação com as lutas do negro, da
ruptura com ‘as barras da gaiola’ que a aprisionavam, transformando seu lamento em um
canto forte e pulsante.
162
As próximas referências a obra I Know Why the Caged Bird Sings serão grafadas Caged Bird.
163
Para diferenciar a personagem da autora da obra utilizamos o termo “Maya” para nos referirmos à
personagem de Caged Bird e “Maya Angelou” para nos referirmos a autora.
84
O título da obra de Maya Angelou refere-se ao contexto social dos anos de 1960 e
as lutas por direitos e liberdades civis travada pelos afroamericanos. Ao analisarmos os
movimentos sociais dos anos de 1960, a saber, o Movimento pelos Direitos Civis e o
Movimento Feminista, verifica-se que tais Movimentos impulsionaram a escrita
autobiográfica afroamericana feminina que, como argumentamos no capítulo 2 desta
dissertação, ressurgiu com ênfase nesse período.
Esse ressurgimento deve-se em parte ao papel desses Movimentos como um lócus
para a criação de um discurso que se contrapôs ao discurso dominante. Durante os anos de
1960 e 1975, o Movimento pelos Direitos Civis atingiu o auge, ao passo que o Movimento
Feminista florescia, devido às reivindicações desses Movimentos, houve demanda por
livros sobre a experiência negra. Paralelamente, ressurgem as autobiografias escritas por
afroamericanas, sendo que tais obras retratavam questões sobre desigualdade e ainda sobre
a dupla opressão, sofrida por essas mulheres, ou seja, a opressão de raça e de gênero.
Naquele contexto histórico-social gênero, raça e classe tratavam-se de estruturas de
dominação que moldavam e condicionavam a experiência coletiva das mulheres
afroamericanas. Entretanto, mesmo ao possuir uma visão crítica sobre a posição de
marginalidade, isto é, o fato de serem negras em uma sociedade branca e ainda serem
mulheres em uma sociedade dominada por homens, existia uma diferença entre reconhecer
a opressão e articulá-la de forma discursiva.
O Feminismo Negro assume a existência de uma experiência negra partilhada pelas
mulheres afroamericanas e também pressupõe a existência de uma linguagem negra
afroamericana, que navega na contracorrente dos discursos dominantes da sociedade, por
abarcar a linguagem, numa determinada situação, relações de poder.
Dessa maneira, mesmo que uma escritora afroamericana mediante uma narrativa
exprima experiências, essas mesmas narrativas serão entrecortadas por ideologias
dominantes, portanto, as estruturas desiguais, as ações e experiências que as constituem
podem não ser transparentes, mesmo que sejam opressivas164.
Os Movimentos Civis e Feministas produzem discursos, que, por sua vez, desafiam
o discurso dominante sobre as construções de gênero e raça , de certa forma, propiciam a
emergência de um contradiscurso que apresenta uma nova identidade que redefine as
experiências pessoais em questões coletivas.
164
BRUSH, Paula Steward. “The Influence of Social Movements on Articulations of Race and Gender in
Black Women’s Autobiographies”. Gender and Society, Vol. 13, No. 1, Special Issue: Gender and Social
Movements, Part 2. (Feb., 1999), p. 120-137.
85
165
BRUSH, 1999.
87
166
McPHERSON, Dolly. Order out of Chaos: The Autobiographical Works of Maya Angelou. London:
Virago Press, 1998.
167
McPHERSON, 1998.
168
BUTTERFIELD, Stephen. Black Autobiography in America. Amherst: University of Massachusetts Press,
1974. Nesta obra sobre a tradição autobiográfica na América do Norte, Butterfield divide a autobiografia
negra em três períodos: o primeiro período, intitulado The Slave Narrative Period, compreende as
autobiografias escritas entre 1831-1895; o segundo, The Period of Search, compreende aquelas escritas entre
1901-1961 e o terceiro período, The Period of Rebirth, compreende as autobiografias contemporâneas e,
dentre elas, o autor incluiu as autobiografias de mulheres negras, entre elas Maya Angelou.
88
A autobiografia de Maya Angelou não retrata diversos anos de sua vida, pelo
contrário, há uma continuidade de diversos períodos da vida da autora que compõem as
obras subsequentes, dentre as quais, o primeiro livro, Caged Bird, e o segundo, Gather
Together in My Name, escrita num interstício de três anos e meio.
A obra Gather Together in My Name (1974) narra a maternidade precoce da autora,
sobre o uso de drogas, outras atividades ilícitas, bem como sobre a luta pela sobrevivência
econômica. De certa forma, a obra trata de uma narrativa de viagem à medida que abrange
diversas cidades americanas como São Francisco e Stamps.
O código de conduta, a rigidez dos princípios e costumes do Sul rural dos Estados
Unidos cede lugar à alienação e à fragmentação, características da vida urbana, e que estão
presentes na vida de Maya Angelou ao buscar situar-se na Califórnia entre os dezesseis e
dezenove anos de idade.
Nessa obra, Maya Angelou nos leva a um mundo de degradação, permeado por
prostitutas, vigaristas, mulheres mundanas, pelo vício e desintegração espiritual. Ainda
assim, a autora vive sem dignidade e propósito e, ao final do livro, afirma que não sabia o
que faria da vida.
Gather Together possui um tom mais intimista e revelador sobre a vida dos
afroamericanos ao buscar responder questões sobre o que significa ser uma mulher e
também ser negra nos Estados Unidos, e que lugar a escritora ocupa na ordem dessas
coisas. Contudo, o desenvolvimento da narrativa apresenta uma mulher confinada a
determinado momento histórico e sujeita às forças sociais, que assolam a vida de muitas
mulheres.
Maya Angelou, nesse momento, é uma mulher que vaga em busca de si mesma. O
sequestro do filho, que constituía-se numa grande realização, e o fim do uso de drogas,
proporcionam à escritora, um renascimento para a compreensão lógica da vida e dos fatos.
169
BRAXTON, Joanne M. Black Women Writing Autobiography: A Tradition Within a Tradition.
Philadelphia: Temple University Press, 1989.
89
3.3.2 SINGIN’ AND SWINGIN’ AND GETTIN’ MERRY LIKE CHRISTMAS (1976)
170
CUDJOE, Selwyn. “The Autobiographical Statement Updated.” In: GATES Jr., Henry Louis (Editor).
Reading Black, Reading Feminist: A Critical Anthology. New York: Meridian; Penguin Books 1990.
90
171
O Harlem Writers Guild é uma associação de escritores dedicada a apresentar as experiências dos
afrodescendentes por meio da palavra escrita. Disponível em: http://theharlemwritersguild.org/. Acesso:
julho/2008.
172
“Doutrina nascida nos Estados Unidos no final do século XIX. Exprimindo reivindicações dos negros
norte-americanos e caribenhos, tinha como foco o continente africano, entendido como a pátria de que a
escravidão os privou. Depois das ações altamente polemizadas de líder Marcus Garvey e com a realização
dos congressos pan-africanos (Paris, 1919; Londres 1921 e 1923; em Nova York, 1927), a doutrina
consolidou-se de forma mais conseqüente, baseada na igualdade etnorracial e na luta contra o colonialismo.
91
Com as idéias de W.E.B. Du Bois, e sobretudo após o Quinto Congresso, em Manchester, em 1945, a
doutrina se estrutura em movimento, e isso se dá por intermédio da atuação de líderes africanos como Jomo
Kenyatta, Sékou Touré, Kwame Nkrumah e Julius Nyerere, até a onda independentista que toma a África nos
anos de 1960. Alcançadas as independências, a ideologia continua a orientar o pensamento das lideranças dos
Estados recém-criados, as quais fundam, em 1963, a Organização da Unidade Africana. Enquanto isso, nos
Estados Unidos, intelectuais negros — como já fizera Du Bois — colocam o pan-africanismo na pauta das
discussões acerca dos direitos civis [...]” (LOPES, 2004, p. 512).
92
Na obra I Know Why the Caged Bird Sings, Maya Angelou faz uma reflexão sobre
a alegria, a tristeza, o desespero, tendo como primeira imagem evocada pelo título uma
gaiola que consiste num lugar que restringe, aprisiona e limita a mobilidade de um pássaro.
Entretanto, mesmo sem a possibilidade momentânea de sair da gaiola, o pássaro canta e,
esse canto, num primeiro momento, reveste-se da aura de lamento ao descobrir-se preso.
Nessa divisa de possibilidades entre escapar ou permanecer preso, o pássaro canta
para que o som transcenda a prisão e mostre-se mais forte em relação àquele que o
prendeu. Dessa forma, em Caged Bird, Maya Angelou retoma algumas técnicas narrativas
de seus antecessores, os primeiros escritores das narrativas de ex-escravos.
Podemos delinear três modos narrativos nessa obra: o primeiro, é o modo pessoal
que relata a história de vida do indivíduo, Marguerite Johnson (Maya), que cresce no
Arkansas com os demais membros da família; o segundo, o político, transforma a heroína
em um modelo das meninas negras do Sul dos Estados Unidos, cujo desenvolvimento é
afetado pela raça e pelo gênero. O modo político manifesta-se nas relações entre a
narradora e a protagonista, e entre a narradora e o leitor; o terceiro e último, o modo
poético, transforma o mundo da infância em um local de interação cultural situado entre o
mundo da imaginação e da intertextualidade.
Esses três níveis estão entrecruzados e interagem na estrutura narrativa por meio
das vozes das personagens, definindo a retórica de Maya Angelou como um gesto de
desafio à sociedade branca e como um ato de revalorização da experiência e da escrita
negra afroamericana.
Contrária às narrativas autobiográficas de escritores negros, cujo tema central em
suas narrativas retratavam a luta contra o opressor branco para a destruição da gaiola, ou
seja, do racismo e da escravidão173, o tema principal de Caged Bird não é a luta para
deixar a gaiola; é a descoberta gradual dos limites da gaiola, o afrouxar de certas barras, de
forma que seja possível à personagem deslizar para fora, portanto, por entre esses espaços.
A luta de Maya é de cunho mais pessoal que propriamente político ou social. O
livro está centrado na exploração do processo que leva o pássaro a aprender como e por
que cantar face à adversidade174. Trata-se de uma narrativa em primeira pessoa, mas com
duas vozes distintas: a voz da escritora adulta Maya Angelou e a voz da menina, foco do
173
BUTTERFIELD, 1974.
174
LIONNET, Françoise. Autobiographical Voices: Race, Gender, Self-Portraiture. Ithaca & London:
Cornell University Press, 1991.
93
175
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. Introdução e Tradução do russo Paulo Bezerra. São
Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 141.
176
BRAXTON, Joanne M. “Symbolic Geography and Psychic Landscape: A conversation with Maya
Angelou”. In: ___. Maya Angelou’s I Know Why the Caged Bird Sings: A Casebook. New York & Oxford:
Oxford University Press, 1999, p. 5-6.
94
consciously open rhetorical status, then, functions as a kind of writing, wherein rhetoric is
the writing of speech, of oral discourse” […]177
As questões de raça e gênero estão no centro da autobiografia da autora que, por
meio de um ensaio sociológico dessas relações, traduz a experiência negra no Sul dos
Estados Unidos, durante os duros anos da segregação e dos efeitos dessa ação tanto nos
negros quanto brancos. Portanto, Maya Angelou converte as experiências sofridas em uma
estratégia para sensibilizar os brancos e conscientizar os negros sobre sua condição de
exclusão e marginalização.
Na data de sua publicação, em 12 de fevereiro de 1970, Caged Bird recebeu
críticas favoráveis, sendo aclamada como o marco de conscientização de homens e
mulheres afroamericanas e também como uma obra que ganharia lugar de destaque na
tradição literária autobiográfica afroamericana178.
Dado o cenário em que as primeiras narrativas de escravos surgiram e o propósito
dessas obras, tornou-se quase indissociável a questão política dos textos escritos por
afroamericanos, mesmo quando tais textos eram destituídos de cunho político. Em face do
exposto, Caged Bird passou a ser considerado pelo público e pela crítica como um texto,
calcado nas primeiras narrativas de escravos e, como tal, um texto de protesto em
decorrência do cunho político e pelo momento histórico no qual foi escrito.
O tema central da obra trata como a protagonista passou à categoria de cidadã de
segunda classe — termo esse empregado pelos brancos, durante os anos da segregação
racial nos Estados Unidos —, e o processo pelo qual abandona a indignação passiva e
assume o protesto ativo.
A obra Caged Bird suscitou questionamentos sobre a forma pouco definida em ser
autobiográfica ou não. Maya Angelou respondeu:
177
GATES, Henry Louis. The Signifyin(g) Monkey: A Theory of African-American Literary Criticism. New
York & Oxford: Oxford University Press, 1988, p. 53.
178
McPHERSON, Dolly. “Initiation and Self-Discovery”. In: BRAXTON, Joanne M. Maya Angelou’s I
Know Why the Caged Bird Sings: A Casebook. New York & Oxford: Oxford University Press, 1999.
179
TATE, Claudia. “Maya Angelou: An Interview”. In: BRAXTON, Joanne M. Maya Angelou’s I Know
Why the Caged Bird Sings: A Casebook. New York & Oxford: Oxford University Press, 1999, p. 153.
95
Caged Bird é composto por episódios que se assemelham a contos construídos pela
justaposição de incidentes aparentemente sem relação entre si, mas que, na verdade, são
organizados de forma a se relacionarem com episódios do capítulo anterior e do capítulo
posterior da obra.
Dessa forma, o fluxo da narração é mantido, ainda que os eventos não se sucedam
em uma rígida ordem cronológica. Esse ponto levanta a questão dos critérios de seleção
dos eventos relatados em Caged Bird.
Maya Angelou relata que
Some events stood out in mind more than others. Some, though, were
never recorded because they either were so bad or so painful, that there
was no way to write about them honestly and artistically without making
them melodramatic. They would have taken the book off its course. All
my work, my life, everything is about survival. All my work is meant to
say, “You may encounter many defeats, but you must not be defeated.”
In fact, the encountering may be the very experience which creates the
vitality and the power to endure.180
180
TATE, 1999, p. 154.
181
CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Tradução de Viviane Ribeiro. Bauru: EDUSC,
2002, p. 182.
96
Sympathy
182
SVENSON apud VERSIANI. In: VERSIANI, Daniela Gianna Claudia Beccacia. Autoetnografias:
conceitos alternatives em construção. Rio de Janeiro:7 Letras, 2005, p. 127.
183
DUNBAR, Paul Laurence. The Collected Poems of Paul Laurence Dunbar. BRAXTON, Joanne M.
(Editor). Virginia: Virginia University Press, 1993, p. 102.
97
Destarte, em Caged Bird acompanhamos Maya, a partir dos três anos de idade até
os dezesseis anos, em uma viagem repleta de provações, que têm início com o divórcio dos
pais dela e que segue até grande parte de sua adolescência.
184
HAGEN, Lyman B. Heart of a Woman, Mind of a Writer and Soul of a Poet.: A Critical Analysis of the
Writings of Maya Angelou. New York: University Press of America, 1999, p. 54.
185
Cage Bird, 1993, p. 1
98
[…] the dress to be a plain ugly cut-down from a white woman’s once-
was-purple throe-away. It was old-lady-long too, but it didn’t hide my
skinny legs, which had been greased with Blue Seal Vaseline and
powered with the Arkansas red clay. The aged-faded color made skin
look dirty like mud, and everyone in church was looking at my skinny
legs186.
Após o esforço para recitar o poema, que foi sussurrado ao ouvido de Maya, a ela
pede para ir ao banheiro. No caminho, uma criança coloca o pé, Maya tropeça e cai.
Ao levantar-se, Maya consegue controlar a urina apenas até o jardim. Então, como
opção resta urinar, ali mesmo, e esperar o constrangimento diante das pessoas.
[...] I knew I’d have to let it go, or it would probably run right back up to
my head and my poor head would burst like a dropped watermelon, and
all the brains and spit and tongue and eyes would roll all over the place.
So I ran down into the yard and let it go. I ran, peeing and crying […]187
Maya afirma que aquele corpo que ali está, não era o seu verdadeiro “eu” e que
uma fada maldosa havia transformado a beleza de Maya em algo feio, excessivamente
grande e disforme. Maya acredita estar presa a um pesadelo “negro”. A cor dela é motivo
de vergonha e embaraço, mas, assim que ela acordar do pesadelo seus cabelos seriam
loiros e, como consequência, hipnotizaria a todos com a beleza.
186
Caged Bird, 1993, p. 2.
187
Caged Bird, 1993, p. 3
99
Wouldn’t they be surprised when one day I woke out of my black ugly
dream, and my real hair, which was long and blond, would take the place
of the kinky mass that Momma wouldn’t let me straighten? My light-
blue eyes were going to hypnotize the, after all the things they said about
“my daddy must have been a Chinaman” […] Then they would
understand why I had never picked up a Southern accent, or spoke the
common slang, and why I had to be forced to eat pigs’ tails and snouts.
Because I was really white and because a cruel fairy stepmother, who
was understandably jealous of my beauty, had turned me into a too-big
Negro girl, with nappy black hair, broad feet and a space between her
teeth that would hold a number-two pencil”188.
His face pulled down on the left side, as if a pulley had been attached to
his lower teeth, and his left hand was only a mite bigger than Bailey’s,
but on the second mistake or the third hesitation his big overgrow right
hand would catch one of us behind the collar, and in the same moment
would thrust the culprit toward the dull red heater, which throbbed like a
devil’s toothache.191
Momma era igualmente severa com as crianças quanto à religião, à limpeza e aos
deveres escolares, tarefas domésticas e as boas maneiras. Maya afirma que a avó era capaz
de acordar as crianças com pancadas caso notasse alguma sujeira nos pés das duas
crianças: “Momma was famous for pulling the quilts off after we had fallen asleep to
examine our feet. If they weren’t clean enough for her, she took the switch […] and woke
up the offender with a few aptly placed burning reminders.”192.
Nota-se que a violência a que Maya e o irmão eram submetidos, para a avó não se
configurava como violência; pelo contrário, o que Momma e o tio Willie faziam tratava-se
de um ato de amor, tendo em vista que somente, desta forma, as crianças aprenderiam boas
maneiras.
190
Caged Bird 1993, p. 52.
191
Caged Bird, 1993, p. 10.
192
Caged Bird, 1993,, p. 27.
101
A violência externa, isto é, dos brancos para com os negros, está presente em
diversos momentos de Caged Bird, relembrando aos negros o lugar onde deveriam ficar
confinados. Neste contexto, a segregação era intensa e Maya não acreditava na existência
de pessoas brancas; para ela, os brancos eram alienígenas, isto é, pessoas de outros
mundos, uma vez que as pessoas reais estavam ao lado da cidade em que Maya vivia.
O rígido código de conduta, devido às leis Jim Crow e da atuação da Ku Klux
Klan, determinavam como os negros deveriam agir em face do poder dos brancos. Com
isso, Momma temia os brancos e acreditava que não era possível estabelecer qualquer tipo
de contato, temendo perder a própria vida.
As perseguições da KKK aos negros eram constantes e Maya relata uma conversa
entre Momma e o xerife do condado que, num ato de “gentileza”, previne Momma que
alguns “rapazes” estavam procurando um negro suspeito de envolvimento com uma
mulher branca. Por causa da perseguição, o tio de Maya escondeu-se em um barril, sendo
posteriormente coberto por batatas, demonstrando a maneira indigna de submissão a que os
negros eram obrigados, mesmo sem cometer qualquer crime.
193
Caged Bird , 1993, p. 66.
102
O medo da morte, das surras e dos linchamentos eram realidades a que todo negro
no Sul dos Estados Unidos estava exposto por um único crime: haver nascido negro em
uma sociedade segregacionista.
Maya tem sentimentos ambivalentes quanto aos “rapazes” e o xerife: aquele era um
ato de “gentileza” ou uma amostra do poder de coação e imposição do medo aos negros
pelos brancos? E os “rapazes” eram os mensageiros da morte e do medo, que foi o
sentimento que Maya teve naquele momento.
I remember the sense of fear which filled my mouth with hot, dry air and
made my body light.
The “boys’? Those cement faces and eyes of hate that burned the clothes
off you […] Boys? No, rather men who were covered with graves’ dust
and age without beauty or learning. The ugliness and rottenness of old
abominations.194
194
Caged Bird, 1993, p. 17-18.
195
Caged Bird, 1993, p. 32.
103
repetição dos rituais de poder e dominação branca. No entanto, devido aos códigos de
conduta entre negros e brancos, Momma não pôde revidar, embora possuísse mais dinheiro
que os brancos e também fosse proprietária das terras onde vivia.
A vitória de Momma surge da dignidade pessoal, representada pela limpeza e pelas
boas maneiras. Sendo assim, a manutenção da ordem e da limpeza funciona como uma
tentativa de aviltar os opressores, e que é igualmente uma estratégia de resistência.
De certa forma, essa estratégia ecoa como crença de que era impossível dirigir-se
aos brancos sem arriscar a própria vida. Posteriormente, na obra, a própria Maya iniciará
seu protesto e combaterá o racismo de forma ativa.
Em outro momento da obra, Momma e Maya são insultadas em um consultório
dentário, quando esta precisa de um tratamento bucal. Contudo, diante desta impotência,
resta a Angelou fantasiar que a avó possuía poderes sobrenaturais.
A maneira encontrada por Maya para resolver o conflito interno foi fantasiar que a
avó possuía super poderes e que colocou o dentista no devido lugar. Assim, a heroína da
versão de Maya tem todos os traços da fortaleza, que não pôde ser demonstrada
publicamente. Além disso, Maya sente orgulho verdadeiro da avó.
Momma walked in that room as if she owned it. She showed that silly
nurse aside with one hand and strode into the dentist’s office. […]
“You knave, do you think you acted like a gentlemen, speaking to me like
that in front of my granddaughter?” She didn’t shake him, although she
had the power. She simply held him up. […] “I didn’t ask you to
apologize in front of Marguerite, because I don’t want her to know my
power, but I order you, now and herewith. Leave Stamps by sundown.
[…] “Now that brings me to my second order. You will never again
practice dentistry. Never! [...] On her way out she waved her
handkerchief at the nurse and turned her into a crocus sack of chicken
seed196
.
Sem conseguir o atendimento para Maya, Momma leva a neta em uma dentista de
uma cidade vizinha, Texarkana, onde o serviço realiza-se. De volta a Stamps, Momma
conta ao tio de Maya o fato ocorrido, mas a menina afirma secretamente preferir a própria
versão sobre a história.
196
Caged Bird, 1993, p. 189; 190; 191.
104
Momma novamente não pode revidar a ofensa do dentista, devido aos códigos de
conduta, e Maya, apesar da pouca idade, já percebe, como funciona a segregação, e o ódio
dos brancos em relação aos negros
Para Maya, importava, naquele momento, a proteção recebida de Momma,
portanto, esse episódio configura-se num exemplo explícito de racismo. Embora a avó,
seja forte, ao ser confrontada com o racismo, torna-se ou incorpora uma faceta de fraqueza.
On the Greyhound she took an inside seat in the back, and I sat beside
her. I was so proud of being her granddaughter and sure that some of her
magic must have come down to me. She asked if I was scared. I only
shook my head and leaned over her cool brown upper arm. There was no
chance that a dentist, especially a Negro dentist, would dare hurt me
then. Not with Momma there. The trip was uneventful, except that she
put her arm around me, which was very unusual for Momma to do197.
A fantasia de Maya reflete aquilo que de fato gostaria que a avó pudesse fazer a
uma pessoa racista, mas que não é possível, demonstrando limitações de uma resistência
pacífica como resposta à opressão racial. A fantasia também é um prenúncio do tipo de
conflito racial a que Maya seria exposta.
O irmão de Maya é igualmente confrontado com a violência, ao ser forçado, olhar o
corpo de um negro castrado e jogado em um rio: “Bailey couldn’t let go of the horror. “I
picked up a side of the sheet and walked right in the calaboose with the men. I walked in
the calaboose carrying a rotten dead Negro198.”
Bailey Jr. fica aterrorizado, mas não compreende o significado daquela morte e da
violência, e faz perguntas inquietantes ao tio sobre o motivo de tanto ódio dos brancos em
relação aos negros, tendo como resposta: “They don’t really hate us. They don’t know us.
How can they hate us? They mostly scared199.” Dessa maneira, o episódio leva Maya a
concluir amargamente que viver no Sul dos Estados Unidos significava criar filhos, netos e
sobrinhos e esperar o melhor, mas estar sempre preparada para o pior.
197
Caged Bird , 1993,p. 191-192.
198
Caged Bird , 1993, p. 198.
199
Caged Bird , 1993, p. 197.
105
No dia 25 de junho de 1935, o boxeador negro Joe Louis venceu o boxeador branco
Primo Carnera. Essa luta torna-se uma metáfora entre raças, mostrando a força e o poder
dos negros, em contraposição aos brancos. O sofrimento de Joe Louis, de maneira
mimética também representava o sofrimento de toda a sua “raça”, sintetizando tudo aquilo
a que os negros eram submetidos numa sociedade desigual.
My race groaned. It was our people falling. It was another lynching, yet
another Black man hanging on a tree. One more woman ambushed and
raped. A Black boy whipped and maimed. It was hounds on the trail of a
man running through slimy swamps. It was a white woman slapping her
maid for being forgetful.200
Nota-se que, nesse momento, Maya sente-se parte de um grupo — a “raça” negra
— e, por conseguinte, orgulhou-se disso, haja vista que os negros provaram serem fortes.
Champion of the world. A Black boy. Some Black mother’s son. He was
the strongest man in the world. […] It would take an hour or more before
people would leave the Store and head home. Those who lived too far
had made arrangements to stay in town. It wouldn’t do for a Black man
and his family to be caught on a lonely country road on a night when Joe
Louis had proved that we were the strongest people in the world201
A vitória de Joe Louis não foi meramente uma vitória individual; pelo contrário,
configurou-se em uma vitória coletiva e metafórica e Maya e os demais negros da
comunidade tinham consciência desse fato. Ademais, a vitória mostrou que, ainda que
houvesse sofrimento e abuso dos brancos para com os negros, de forma semelhante ao
povo escolhido por Deus, ao final, os negros sairiam vencedores e provariam serem fortes.
Por conseguinte, a luta acaba por metaforizar o constante embate entre negros e
brancos motivando orgulho, não apenas para Maya, mas para todo o seu “povo”. Contudo,
a luta expõe limites da transitoriedade da vitória, assim como no episódio entre Momma e
as meninas brancas.
200
Caged Bird, 1993, p. 135.
201
Caged Bird, 1993, p. 136.
106
202
Caged Bird, 1993, p. 52; p. 53
107
Ao chegar em Stamps, o pai ainda parecia alguém irreal para Maya, se considerava
uma órfã e, portanto, viver a fantasia parecia ser mais agradável que propriamente
enfrentar a dura realidade. Esse foi um importante momento de transição na vida de Maya.
Em um primeiro momento, a mudança foi apenas geográfica, mas, posteriormente,
desencadeou problemas identitários, haja vista que ao viver, durante quatro anos, num lar
estável, cercada pelo carinho e proteção da avó e do seu tio Willie, ir para Saint Louis
representou uma ruptura sem precedentes para viverem com uma estranha, a mãe, Vivian
Baxter Johnson.
O pai de Maya exerceu papel relevante ao unir o velho e o novo; entre o Black
Folklore do Sul e o Blues de Saint Louis. A própria Maya afirmou que Saint Louis era o
inferno e que, portanto, o pai assumia o cargo de demônio encarregado das entregas nesse
lugar: “Our father left Saint Louis a few days later for California and I was neither glad nor
sorry. He was a stranger, and if he chose to leave us with a stranger, it was all one
piece.”203
Para Maya, O pai era apenas um pai biológico, que não possuía emprego fixo sendo
um estranho para as duas crianças; um homem das estradas e por quem ela não sentia
lealdade alguma. Contudo, mesmo ao sentir ausência e vazio com relação ao pai, Maya não
descarta a importância da figura masculina.
O encontro com a mãe também não foi fácil. Segundo Maya, descrever a mãe era o
mesmo que descrever um furacão ou as cores do arco-íris, devido à beleza da mãe que era
estonteante.
My mother’s beauty literally assailed me. Her red lips (Momma said it
was a sin to wear lipstick) split to show even white teeth and her fresh-
butter color looked see-through clean. Her smile widened her mouth
beyond her cheeks beyond her ears and seemingly through the walls to
the street outside. I was struck dumb. I knew immediately why she had
203
Caged Bird, 1993, p. 60.
108
sent me away. She was too beautiful to have children. I had never seen a
woman as pretty as she who was called “Mother”204.
Nota-se que todas as palavras que Maya utiliza-se para descrever a mãe estão
relacionadas ao movimento: o furacão, o arco-irís, por conseguinte, são metáforas que
sugerem, de um lado, certa admiração e, por outro lado, exprimem apenas um sentimento
de contemplação que perderia o encanto se acaso a mãe fosse tocada.
Dessa maneira, o amor que Maya sente pela mãe é sincero, mas ainda está
reprimido devido ao abandono na primeira infância. Ainda assim, Vivian Baxter
representaria, posteriormente, um modelo para a filha por meio de seus ensinamentos à
Maya acerca da vida.
A vida urbana, até então desconhecida por Maya, difere drasticamente da cidade de
Stamps. Saint Louis revelou à Maya delícias da cidade grande como: “thin-sliced ham [...]
jelly beans and peanuts mixed, lettuce on sandwich bread, Victrolas205”.
A vida da mãe de Maya era agitada devido ao trabalho que exercia em salões de
jogos, com horários irregulares. O companheiro da mãe chamava-se Mr. Freeman que, era
um mero coadjuvante na vida de Vivian.
Numa manhã, após a saída da mãe, a menina acordou com o contato físico de
Mr.Freeman e, mesmo sem entender, o fato ocorrido, Maya ficou ansiosa em repetir aquela
situação. Mr. Freeman a abraçou e, momentaneamente, Maya sentiu-se em casa e, acima
de tudo, amada e protegida, sentimentos que foram negados por um pai ausente.
Finally he was quiet, and then came the nice part. He held me so soflty that I
wished he wouldn’t ever let me go. I felt at home. From the way he was holding
me I knew he’d never let me go or let anything bad ever happen to me. This was
probably my real father and we had found each other at last. But then he rolled
over, leaving me in a wet place and stood up206.
No entanto, Mr. Freeman a adverte: caso contasse a alguém o fato ocorrido, mataria
o irmão de Maya. No segundo encontro dos dois, a menina é violentada, desencadeando
uma dor lancinante, que gerou sentimento de cumplicidade, confusão, culpa e vergonha.
204
Caged Bird, 1993, p. 60.
205
Caged Bird, 1993, p. 62.
206
Caged Bird, 1993, p. 73.
109
“We was just playing before”. […] If you scream, I’m gonna kill you.
And if you tell, I’m gonna kill Bailey” […] Then there was the pain. A
breaking and entering when even the senses are torn apart. The act of
rape on an eight-year-old body is a matter of the needle giving because
the camel can’t. The child gives, because the body can, and the mind of
the violator cannot.
I thought I had died […]207
I couldn’t say yes and tell them how he had loved me once for a few
minutes and how had held me close before he thought I had peed in my
bed. My uncles would kill me and Grandmother Baxter would stop
speaking as she often did when she was angry. And all those people in
the court would stone me as they had stoned the harlot in the Bible. And
Mother, who thought I was such a good girl, would be so disappointed.
But most important, there was Bailey. I had kept a secret from him. […]
Everyone in court knew that the answer had to be No. Everyone except
Mr. Freeman and me. I looked at his heavy face trying to look as if he
would have liked me to say No. I said No.
The lied lumped in my throat and I couldn’t get air. How I despised the
man for making me lie. Old, mean, nasty thing. Old, black, nasty thing.
The tears didn’t soothe my heart as they usually did. I screamed, “Ole
mean, dirty thing, you. Dirty old thing.” Our lawyer brought me off the
stand and to my mother’s arm. The fact that I had arrived at my desired
destination by lies made it less appealing to me208.
Mr. Freeman é condenado a um ano e um dia na prisão, mas é solto naquele mesmo
dia. Mais tarde, foi encontrado morto, no que pode-se chamar de “crime de honra”, uma
vez que os tios de Maya, por ordem da avó materna, Grandmother Baxter, resgataram a
honra da menina Maya e de toda a família ao matar Mr. Freeman.
207
Caged Bird, 1993, p. 78.
208
Caged Bird, 1993, p. 85.
110
209
CUDJOE, 1990, p. 289.
210
hooks, bell.Talking Back: Thinking Feminist, Thinking Black. Boston, MA: South End Press, 1989.
211
hooks, 1989,, p. 89.
111
212
Lucas 18:25. Português. Bíblia Sagrada. In: A Bíblia Sagrada. Edição Pastoral. Tradução de Ivo Storniolo
et alii. São Paulo: Paulus, 1990, p. 1340.
213
Caged Bird 1993, p. 81.
214
SELIGMANN-SILVA, Márcio. O Local da Diferença: ensaios sobre memória, arte, literatura e
tradução.. São Paulo: Editora 34, 2005.
215
SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 85
216
SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 70.
112
O sobrevivente da catástrofe urge por contar e conhecer sua própria história, num
ato de lembrar, para, então, esquecer, visto que “A narrativa do testemunho [...] permite
que o sobrevivente estabeleça uma ponte com o “tu” ilhado que existe dentro dele217.”
O testemunho do sobrevivente é um ato de fala; é a transgressão dos limites do
próprio ato de testemunhar para que, mais adiante, o testemunho tenha uma dimensão
clínica de cura.
Maya sofreu a morte simbólica, após a perda da inocência, o que a conduz a um
insight, visto que “O testemunho é, precisamente, sobre a experiência do narrador de
atravessar repetidamente a linha divisória entre vida e morte [...] A história de
sobrevivência é, de fato, a narração incrível da sobrevivência da história na encruzilhada
entre vida e morte.”218
Maya é uma “testemunha-designada” e, como tal, não pode ser substituída para que
se alivie do fardo, que consiste em testemunhar, já que “ninguém testemunha pela
219
testemunha” . O sobrevivente quando está engajado nesse processo, é colocado face a
face com o evento traumático; portanto, “pelo fato do testemunho ser dirigido a outros, a
testemunha, de dentro da solidão de sua própria posição, é o veículo de uma ocorrência, de
uma realidade, de uma posição ou de uma dimensão para além dele mesmo.220”
O testemunho do trauma precisa de algum tempo para ser articulado, um período de
latência porque “só depois desse período a neurose traumática brota221”, como foi o caso
de Maya. As palavras simbolicamente morreram para Maya em Caged Bird.
Cada sobrevivente precisa, ao seu modo, encontrar maneiras de dar vazão à sua dor.
Para Maya ainda não era possível restabelecer a ponte entre o “eu” e o “tu” dentro dela. O
fato de permanecer, em silêncio total e enclausurada, como mostraremos a seguir,
propiciaram à Maya o controle do mundo e das situações à sua volta.
217
SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 71.
218
FELMAN, Shoshana.“Educação e Crise ou as Vicissitudes do Ensinar”. In: NEVSTROVSKI, Arthur &
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Catástrofe e Representação: Ensaios. São Paulo: Escuta, 2000, p 55; p.56.
219
CELAN apud FELMAN, 2000, p. 15.
220
FELMAN, 2000, p. 16.
221
SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 69.
113
O silêncio, nesse momento da narrativa de Maya funciona como uma metáfora para
recuperar o controle após a violação física. Portanto, o corpo, neste momento, é visto como
a caixa de Pandora, um receptáculo que continha uma força tão destrutiva que caso não
fosse controlada, poderia inundar o mundo e trazer a degradação e aniquilação completa.
Maya afirma que havia um poder destrutivo dentro dela e sua decisão de emudecer
tornou-se uma manifestação externa da confusão interna. A passividade e a apatia eram as
únicas formas de não machucar os outros, e o fato de estar fechada ao mundo também
implicava em não querer receber intervenções externas.
222
Caged Bird 1993, p. 87.
114
O ato de silenciar nos dois momentos assinala para a contenção de forças que
poderiam revidar contra as vítimas e causar até mais sofrimento. A família aceitou o
silêncio por algum tempo por considerá-lo como uma reação pós-traumática ao estupro.
De outra forma, com o passar do tempo, a própria Maya percebe que não consegue
voltar a ser a menina devido essa ruptura. Em face disso, as duas crianças são enviadas de
novo a Stamps, para a casa da avó paterna e para a passividade que Maya desejava, a
tranquilidade de Stamps depois da agitação de Saint Louis.
223
ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas: SP: Editora da
UNICAMP, 2007, p. 101.
224
ORLANDI, 2007, p. 102.
115
uma pessoa, contêm a ideia de múltiplas jornadas e têm relação com a construção
identitária do sujeito, que é feita discursivamente dentro dos espaços por onde transita.
O espaço acaba por tornar-se uma outra “zona de contato”225 e, no retorno a
Stamps, devido à estada em Saint Louis, Maya e o irmão são recebidos em posição de
superioridade por terem estado no lugar que, por muitos, poderia ser apenas imaginado.
Além de ser o lugar que mais se aproximou de um lar para Maya, Stamps foi o
lugar que lhe deu a segurança e a tranquilidade necessárias; era o casulo que a protegia e
que lhe permitiu enlutar para, no momento oportuno, livrar-se das amarras e iniciar a
erguer a voz; portanto, o eco do silêncio começou a fazer-se presente.
Estar em Stamps significava regressar a um quase-lar. O quase-lar, no entanto, não
se resume apenas ao espaço físico; pelo contrário, diversos são os discursos envolvidos que
o constituem: alianças, solidariedade, exclusão.
Um exemplo disso foi a maneira como as pessoas da cidade aceitaram o silêncio de
Maya.
Stamps foi o lugar em que Maya teve a experiência vivida de localidade, visto que
o lar é, também, uma construção discursiva impregnada pelas impressões e vivências do
sujeito.
Its sounds and smells, its heat and dust, balmy Summer evenings, or the
excitement of the first snowfall, shivering winter evenings, sombre grey
skies in the middle of the Day...all this [...] the varying experience of the
pains and pleasures, the terrors and contentments, or the highs and
humdrum of everyday227 […]
225
PRATT, Mary Louis. Imperial Eyes: Travel Writing and Transculturation. London & New York:
Routledge, 1992, p. 4.
226
PRATT, 1992, p. 92.
227
BRAH, Avtar. Cartographies od Diaspora: Contesting Identities. London & New York: Routledge, 1996,
p. 192.
116
Essa criação de casulos fez com que não fosse possível a representação do trauma,
visto que não ocorreu o despertar. Maya permaneceu presa a um “sonho dentro do
sonho232” no qual a realidade tinha a leveza de um sonho, devido à desconexão existente
entre o indivíduo e a realidade.
228
BRAH, 1996.
229
GILROY, Paul.“It ain’t where you’re from, it’s where you’re at. The dialects of diaspora identification”.
In:Small Acts. Thoughts on the Politics of Black Cultures. London: Serpent’s Tail, 1993.
230
Caged Bird, 1993, p. 1.
231
Caged Bird, 1993, p. 89.
232
SELIGMAN-SILVA,2000, p. 93.
117
A loja de Momma também solidariza-se com Maya no sofrimento, uma vez que
pulsa com o vigor dos trabalhadores, mas também compadece-se da solidão de Maya; os
odores e cores conhecidos davam-lhe a sensação de aconchego que sempre buscou.
De certa forma, a loja era uma extensão da avó, com toda a majestade e
grandiosidade; a loja sabia dos segredos tanto da avó quanto de Maya e guardava-os bem;
a loja sabia sobre o silêncio de Momma e também acerca do silêncio de Maya.
Em resumo, a loja tem papel duplo para Maya: se, por um lado, a loja a
compreende, por outro, acaba por tornar-se uma cripta, um refúgio para um corpo inerte,
sem vida, sendo também uma outra metáfora da gaiola que fornece segurança mas
aprisiona.
Contudo, a loja possui as portas abertas, mas o pássaro ali aprisionado ainda não
tem a força necessária para sair de lá completamente:
233
SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 69.
234
SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 69.
118
Após vagar por um ano pela loja, pela igreja e pela escola “like an old biscuit, dirty
and inedible236”, Maya conhece a pessoa que iria ajudá-la no processo de recuperação,
levando-a à “ressurreição”, fazendo com que, de certa forma, Maya renascesse das cinzas.
A aristocrata negra de Stamps, Mrs. Bertha Flowers, foi a pessoa que ajudou Maya
a reconstruir a identidade perdida em decorrência da infância sofrida e do estupro aos oito
anos de idade. Ao descrever a aristocrata, Maya deixa a impressão de referir-se à elegância
e majestade de rainhas africanas e a onipotência da avó, Momma, mesclando realeza e
grandiosidade.
Para Maya, Mrs. Bertha Flowers assemelhava-se às flores que pairavam acima dos
males, desgraças e intempéries da cidade de Stamps, sendo uma referência sobre tudo o
que um ser humano deve ser. Portanto, temos nela uma metáfora para o início do
desabrochar de Maya para o mundo:
I don’t think I ever saw Mrs. Flowers laugh, but she smiled often. A
slow widening of her thin black lips to show even, small white teeth,
then the slow effortless closing. When she chose to smile on me, I
always wanted to thank her. The action was so graceful and inclusively
benign.
She was one of the few gentle women I have ever known, and has
remained throughout my life the measure of what a human being can
be.237
Maya, que estava no casulo ao viver em luto, inicia o processo de cura. A lagarta
começa a transformar-se em borboleta para, então, realmente alçar vôos. Para Maya Mrs.
Flowers era uma personagem de um romance que foi, acidentalmente ou não, inserida na
tragédia pessoal de Maya, ou seja, sua própria vida.
235
Caged Bird, 1993, p. 92.
236
Caged Bird, 1993, p. 93.
237
Caged Bird, 1993, p. 92-93.
119
Mrs. Flowers estava acima das secas, das enchentes, dos linchamentos e ainda,
acima da morte. Assim, o efeito da atenção dedicada, por Mrs. Flowers à Maya, era
extremamente positivo, possibilitando a Maya superar a insegurança e crise identitária.
Dessa forma, Mrs. Flowers contribuiu de maneira decisiva para a afirmação da
identidade de Maya, como afirmou: “I was liked, and what a difference it made. I was
respected not as Mrs. Henderson’s grandchild or Bailey’s sister but just for being
Marguerite Johnson. […] It was enough to prove that she liked me.”238
Maya recebeu pela primeira vez o respeito e a atenção que sempre buscou de uma
pessoa mais velha, desencadeando um efeito de reversão nos sentimentos de culpa e
insatisfação, com relação a si mesma em decorrência do estupro. Doravante, esse é um dos
motivos pelos quais Maya disse que Mrs. Flowers lançou-lhe sua linha para a vida.
O fato de Maya usar a imagem da linha remonta à imagem do casulo ao ser
desfeito, pelo uso de imagens e referências bíblicas, presentes na obra: jogar a linha para
que Maya voltasse à vida é o mesmo ato do Cristo que chamou Lázaro quando este estava
morto e disse: “Lázaro, vem para fora.”239
De forma similar, Mrs. Flowers chamou a Marguerite pelo nome e disse:
“Marguerite, saia do casulo e volte à vida”. A insegurança de Maya advém do abandono
dos pais, que a mandaram para longe por duas vezes, configurando, assim, o banimento
para a própria morte, ou seja, para longe da Califórnia e da agitação de Saint Louis.
She appealed to me because she was like people I had never met
personally. Like women in English novels who walked the moors […]
with their loyal dogs racing at a respectful distance. Like the women
who sat in front of roaring fireplaces, drinking tea incessantly from
silver trays full of scones and crumpets. Women who walked over the
“heath” and read morocco-bound books and had two last names divided
by a hyphen. It would be safe to say that she made me proud to be
Negro, just by being herself.
She acted just as refined as whitefolks in the movies and books and she
was more beautiful, for none of them could have come near that warm
color without looking gray by comparison240.
Logo, Mrs. Flowers tornou-se referência para Maya, inclusive, para perceber-se de
maneira diferente como mulher negra, fazendo com que a escritora se sentisse orgulhosa e
238
Caged Bird, 1993, p. 101.
239
João 11: 43. Português. Bíblia Sagrada. In: A Bíblia Sagrada. Edição Pastoral. Tradução de Ivo Storniolo
et alii. São Paulo: Paulus, 1990, p. 1372.
240
Caged Bird, 1993,p. 95.
120
despertasse interesse pelo poder poético das palavras, que é tema central na literatura
afroamericana, desde as primeiras narrativas de escravos.
Esses momentos com Mrs. Flowers consistem em exteriorizações daquilo que de
positivo existia em Maya, mas que ainda estava por ser descoberto. A figura de Mrs.
Flowers estava ligada às questões do orgulho racial, da identidade e do poder das palavras.
“Now no one is going to make you talk — possibly no one can. But bear
in mind, language is man’s way of communicating with his fellow man
and it is language alone which separates him from the lower animals.”
That was a totally new idea for me, and I would need time to think about
it.
“Your grandmother says you read a lot. Every chance you get. That’s
good, but not good enough. Words mean more than what is set on paper.
It takes the human voice to infuse them with the shades of deeper
meaning241.”
Começa a surgir uma reversão na representação do papel das palavras para Maya
Angelou. Se de uma lado as palavras a aprisionaram, de outro modo, agora as palavras
passaram a exercer papel relevante para sair do casulo, confirmando, assim, a proposição
de hooks242 ao afirmar que a luta do oprimido é travada também na linguagem e tem por
objetivo recuperar o próprio sujeito: “to rewrite, to reconcile, to renew [...] Our words are
not without meaning. They are an action —a resistance. Language is also a place of
struggle.”243( Ênfase nossa).
Por conseguinte, essa é também uma estratégia de resistência e de construção
identitária, haja vista que essa voz libertária somente faz-se presente à medida que o
indivíduo oprimido inicia o processo de cura. Ao iniciar esse processo, o indivíduo passa a
ser sujeito, recolhendo fragmentos e fazendo-se todo novamente.
241
Caged Bird , 1993, p. 98.
242
hooks, 1989.
243
hooks, 1989, p. 28.
121
Act of resistance [that] is quite different than the ordinary talk, or the
personal confession that has no relation to coming into political
244
Caged Bird , 1993, p. 78.
245
Caged Bird, 1993, p. 100.
122
Maya mostra que internalizou as lições aprendidas com Mrs. Flowers ao quebrar a
louça de uma patroa branca, Mrs. Cullinan, que se recusava a chamá-la pelo nome correto.
Nesse momento, Maya age com base nos ensinamentos sobre a importância das palavras e
sobre a afirmação da identidade, elevando sua consciência sobre a realidade social e acerca
de seu valor como ser humano.
Aos onze anos de idade, Maya trabalho ou como empregada na casa de Mrs. Viola
Cullinan, uma rica e arrogante sulista branca que não respeitava os negros e que, além
246
hooks, 1989, p. 14-15.
247
McPHERSON, 1998.
123
disso, insistia em chamar Marguerite (nome verdadeiro de Maya) por outros nomes, devido
achar o nome verdadeiro muito complicado.
Para indignação de Maya, a patroa muda seu nome para Mary por conveniência:
“Every person I knew had a hellish horror of being “called out of his name.” It was a
dangerous practice to call a Negro anything that could be loosely construed as insulting
because of the centuries of their having been called niggers, jigs, dingers, blackbirds,
crows, boots and spook.”248
A importância do nome para Maya ecoa a importância dos nomes para os africanos.
Portanto, na cultura africana, os nomes são atribuídos aos indivíduos em rituais no decorrer
da vida, que devem ter relação com a personalidade da pessoa. Também o nome é dado à
criança, no momento do nascimento por um parente, e mantido em segredo para que
nenhum inimigo possa usá-lo para conjurar feitiço ou magia contra a criança249.
Por essa razão, o nome pode mudar ao longo da vida ou ser assumido após algum
evento marcante quando houvesse ritual de passagem para um novo estágio da vida. Após
a Emancipação, os escravos, que tinham seus nomes dados pelos seus donos, escolheram
novos nomes para si, o que é uma forma de recuperar a individualidade perdida durante a
escravidão.
Maya percebe que não poderia confrontar sua patroa diretamente e corrigi-la, e
também não poderia deixar o emprego, assim como a avó não pôde confrontar as meninas
brancas. Contudo, Maya não poderia também deixar que aquela situação continuasse.
Como forma de opor-se, Maya quebra propositalmente a louça favorita de Mrs.
Cullinan, retomando sua individualidade.
Her favorite piece was a casserole shaped like a fish and the Green glass
coffee cups […] I dropped the empty serving tray. When I heard Mrs.
Cullinan scream, “Mary!” I picked up the casserole and two of the green
glass cups in readiness. As she rounded the kitchen door I let them fall
on the tiled floor. […] She actually wobbled around on the floor and
picked up shards of the cups and cried, “Oh, Momma. Oh, dear Gawd.
It’s Momma’s china from Virginia. Oh, Momma, I sorry.” [...] Mrs.
Cullinan cried louder, “That clumsy nigger. Clumsy little black nigger.”
Old speckled-face leaned down and asked, “Who did it, Viola? Was it
Mary? Who did it?” […] Mrs. Cullinan said, “Her name’s Margaret,
goddamn it, her name’s Margaret!” […] I left the front door wide open
so all the neighbors could hear.
248
Caged Bird , 1993, p. 109.
249
HERSKOVITS, Melville J.. The Myth of the Negro Past. New York E London: Harper & Brothers
Publishers, 1941.
124
Mrs. Cullinan was right about one thing. My name wasn’t Mary250.
Percebe-se que quebrar a louça é uma metáfora que remete à ruptura com a tradição
de exclusão e a opressão do branco contra o negro. Serve também como metáfora para a
ruptura e o fim do silêncio. É como se Maya afirmasse que, após o longo luto, há a
ressurreição.
Romper com os grilhões que a seguravam propiciou à Maya a certeza de que já era
forte o bastante para seguir sozinha. Ao afirmar que “Mrs. Cullinam was right about one
thing. My name wasn’t Mary251”, Maya afirmou também que não aceitaria os valores
impostos pela sociedade branca segregacionista e livrou-se, psicologicamente, da
atmosfera desumanizante de seu ambiente.
Desse rompimento, veio o crescimento e emergiram dois pontos paradoxais:
“Paradoxically, while Angelou is growing in confident awareness of her strength as an
individual, she is also becoming increasingly more perceptive about her identity as a
member of an oppressed racial group.”252
O cenário que surge é o do indivíduo que resiste à opressão branca. Tal voz
somente surgirá quando o indivíduo iniciar o processo de recuperação e, no âmago, esse
processo:
[is] linked with the overall effort of the oppressed [...] to develop
awareness of those forces which exploit and oppress; with efforts to
educate for critical consciousness to create effective and meaningful
resistance, to make revolutionary transformation253”.
250
Caged Bird, 1993, p. 110-111.
251
Caged Bird, 1993, p. 111.
252
McPHERSON, 1998, p. 46.
253
hooks, 1989, p. 30.
125
254
Caged Bird, 1993, p. 170.
255
Caged Bird , 1993, p. 179.
126
thought I should like to see us all dead, one on top of the other. A
pyramid of flesh with the whitefolks on the bottom, as the broad base,
then the Indians with their silly tomahawks and teepees and wigwams
and treaties, the Negroes with their mops and recipes and cotton sacks
and spirituals sticking out of their mouths. The Dutch children should all
stumble in their wooden shoes and break their necks. The French should
choke to death on the Louisiana Purchase (1802) while silkworms ate all
Chinese with their stupid pigtails. As a species, we were an abomination.
All of us[…]256.
256
Caged Bird, 1993, p. 180; 181.
257
Caged Bird, 1993, p. 4.
258
CUDJOE, 1990, p. 288.
127
While echoes of the song shivered in the air, Henry Reed bowed his
head, said “Thank you,” […] The tears that slipped down many faces
were not wiped away in shame.
We were on top again. As always, again. We survived. The depths had
been icy and dark, but now a bright Sun spoke to our souls. I was no
longer simply a member of the proud class of 1940; I was a proud
member of the wonderful, beautiful Negro race260.(Ênfase nossa)
Dentro desse episódio, a música serve como uma estratégia de manutenção dos
laços comunitários. Ao cantar, todos uniram-se em uma única voz dirigida ao opressor. O
que atua nesse momento é o poder da palavra cantada.
Maya e a comunidade deixam o eco de suas vozes reverberar pelo ginásio,
mostrando que o opressor não pôde amordaçar os negros e que o canto sobreviveria através
dos tempos.
Oh, Black known and unknown poets, how often have your actioned
pains sustained us? Who will compute lonely nights made less lonely by
your songs, or by the empty pots made less tragic by your tales?
If we were a people given to revealing secrets, we might raise
monuments and sacrifice to the memories of our poets, but slavery cured
us of that weakeness. It might be enough, however, to have it said that
we survive in exact relationship to the dedication of our poets (include
preachers, musicians and blues singers)261.
Para descrever a dor e o sofrimento, qualquer pessoa que usa o poder da palavra
pertence à categoria dos poetas. De acordo com esta definição, a própria Maya Angelou
259
Caged Bird, 1993, p. 183; 184.
260
Caged Bird, 1993, p. 184.
261
Caged Bird, 1993,, p. 184.
128
adulta é uma cantora de Blues262 e uma poeta, visto que em Caged Bird, Maya relata o
motivo pelo qual um pássaro preso na gaiola consegue cantar. Sendo assim, a poesia, em
todas as suas formas, configura-se num ato de resistência e isso fica evidente nos episódios
em que Maya ou a comunidade resistem à opressão branca.
Maya observa também a relação entre os negros e a religião. Essa observação está
relatada em um encontro de reavivamento, em um capítulo permeado por descrições das
emoções vividas pelos negros que, momentaneamente, esqueceram-se das agruras da
realidade da vida no Sul dos Estados Unidos.
Diante do sofrimento, como pregava o pastor, haveria júbilo e cada um receberia o
que merecia. Por meio de metáforas que falavam sobre a caridade, o pastor conscientizava
os negros e condenava o modo como os negros eram tratados.
“Charity don’t go around saying ‘I give you food and I give you clothes
and by rights you ought to thank me.’” The congregation knew whom he
was talking about and voiced agreement with his analysis. “Tell the
truth, Lord.”
[…] ‘Because I pays you what you due, you got to call me master.’ It
don’t ask me to humble myself and belittle myself. That ain’t what
charity is.” […] The means whitefolks was going to get their
comeuppance. Wasn’t that what the minister said, and wasn’t he quoting
from the words of God Himself? […] The Lord loved the poor and hated
those cast high in the world. Hadn’t He Himself said it would be easier
for a camel to go through the eye of a needle than for a rich man to enter
heaven? […] All the Negroes had to do generally, and those at the
revival especially, was bear up under this life of toil and cares, because a
blesses home awaited them in the far-off bye and bye[…] Folks going to
get what they deserved263 [...].
O reavivamento pode ser visto como o renascimento das palavras para Maya que se
deixa contagiar pela atmosfera eletrizante da igreja Batista. A cena é relatada com ironia e
humor.
262
WALKER,Sheila S. (Editor). African Roots/American Cultures: Africa in the Creation of the Americas.
Lanham; Boulder; New York; Oxford: Rowman & Littlefield Publishers, Inc., 2001.
263
Caged Bird, 1993, p. 127; 129.
129
When the main crowd of worshipers reached the short bridge spanning
the pond, the ragged sound of honky-tonk music assailed them. A
barrelhouse blues was being shouted over the stamping of feet on a
wooden floor. Miss Grace, the good-time woman, had her usual
Saturday-night customers. The big white house blazed with lights and
noise. The people inside had forsaken their own distress for a little
while264.
Passing near the din, the godly people dropped their heads and
conversation ceased. Reality began its tedious crawl back into their
reasoning. After all, they were needy and hungry and despised and
dispossessed, and sinners the world over were in the driver’s seat. How
long, merciful Father? How long?
A stranger to the music could not have made a distinction between the
songs sung a few minutes before and those being danced to in the gay
house by the railroad tracks. All asked the same questions. How long, oh
God? How long?265
264
Caged Bird, 1993, p. 131.
265
Caged Bird, 1993, p. 132.
130
Aos treze anos, Maya juntamente com o irmão foram levados à Califórnia pela avó,
após um incidente que envolveu Bailey Jr. e o resgate do corpo de um homem negro,
castrado e jogado no rio. Após esse fato, Momma decide que a violência está próxima
demais das crianças e resolve partir para Los Angeles.
Maya, ao mudar-se para São Francisco, percebe o visível impacto da guerra na
cidade na qual o “império” muda de mãos e lojas, que antes pertenciam aos japoneses,
passam a ser compradas por bem sucedidos negros empreendedores. Maya narra:
266
Caged Bird, 1993, p. 209.
131
267
Caged Bird, 1993, 211; 212.
268
BRAH,,1996.
269
Caged Bird, 1993, p. 216.
132
Após ganhar uma bolsa de estudos para a California Labor School, Maya passa a
estudar drama e dança, aprendendo assim a ocupar espaços270 e, mais uma vez, a
reaprender a transformar sua identidade. Todos esses elementos alinhados resultaram na
renovação da persona de Maya.
Daddy Clidell é uma das poucas figuras masculinas que Maya apresentou como
alguém em quem confiou, descrevendo-o como um homem simples, sem complexo de
inferioridade sobre sua falta de educação escolar e por ter conseguido sucesso, apesar dessa
baixa escolaridade. Em silêncio e cada um a seu modo, os dois se aceitaram e
completaram-se.
Maya encontrou, então, o pai que não teve, e Daddy Clidell viu em Maya uma filha.
Daddy Clidell taught me to play poker, blackjack, tonk and high, low,
Jick, Jack and the Game. […] One afternoon, I was invited into our
smoke-filled dining room to make the acquaintance of Stonewall
Jimmy, Just Back, Cool, Clyde, Tight Coat and Red Leg. Daddy
Clidell explained to me that they were the most successful con men in
the world, and they were going to tell me about some games so that I
would never be “anybody’s mark”271.
Maya fala do modo como a sua linguagem divergia dos colegas brancos.
In the classroom we all learned past participles, but in the streets and in
our homes the Blacks learned to drops’s from plurals and suffixes from
past-tense verbs. We were alert to the gap separating the written word
from the colloquial. We learned to slide out of one language and into
another without being conscious of the effort273.
By all accounts those storytellers, born Black and male before the turn of
the twentieth century, should have been ground into useless dust. Instead
they used their intelligence to pry open the door of rejection and not only
became wealthy but got some revenge in the bargain.
It wasn’t possible for me to regard them as criminals or be anything but
proud of their achievement.
The needs of society determine its ethics, and in the Black American
ghettos the hero is that man who is offered only the crumbs from his
country’s table but by ingenuity and courage is able to take for himself a
Lucallan feast. Hence the janitor who lives in one room but sports a
robin’s-egg-blue Cadillac is not laughed at but admired, and the
domestic who buys forty-dollar shoes is not criticized but is appreciated.
We know that they have put to use their full mental and physical powers.
Each single gain feeds into the gains of the body collective.
Stories of law violation are weighed on a different set of scales in the
Black mind than in the white. Petty crimes embarrass the community
and many people wistfully wonder why Negroes don’t rob more banks,
embezzle more funds and employ graft in unions. “We are the victims of
the world’s most comprehensive robbery. Life demands a balance. It’s
all right if we do a little robbing now.” This belief appeals particularly to
one who is unable to compete legally with his fellow citizens274.
273
Caged Bird, 1993, p. 225.
274
Caged Bird, 1993, p. 224; 225.
134
A viagem que Maya realizou com o pai, ao México, teve grande influência em sua
reconstrução identitária. Após haver ingerido grande quantidade de tequila, em um bar, à
beira da estrada, o pai sai com uma mulher, deixando Maya sozinha e sem dinheiro.
Ainda no México, Maya vê projetada, no pai, a mesma negação encontrada na mãe
e ambos buscavam um caminho para sair da gaiola. Tão solitário quanto à filha, Bailey
Johnson Sr. procurava consolo nas mulheres e na bebida.
O pai de Maya era um homem dado às coisas mundanas e também ele era um
pássaro aprisionado, que não pertencia à cidade de Stamps, tampouco à morosidade,
passividade e submissão da família Johnson, portanto, deslocado: um homem pequeno com
grandes pretensões.
Em nenhum dos lugares onde Momma ou Maya encontrava consolo, o pai
encontrou. A “terra natal”, Stamps, não propiciava satisfação. Essa somente foi encontrada
na terra dos “Outros”, o México, um lugar neutro, onde a cor não contava desde que
houvesse dinheiro para dissimulá-la com várias doses de tequila.
Maya percebe que o pai não sabia como dar sentido à vida, como segue:
275
Caged Bird, 1993, p. 233.
135
abstractions of a concrete reality, metaphors are part of the discursive materiality of power
relations.”276
Depois de algum tempo, Maya encontra o pai alcoolizado e sem condições de
dirigir. Em seguida, a jovem decide, mesmo sem saber, dirigir E leva-los de volta aos
Estados Unidos.
With a generous gesture the tall boy, who said he was Bootsie,
welcomed me, and said I could stay as long as I honored their rule: not
two people of the opposite sex slept together. In fact, unless it rained,
everyone had his own private sleeping accommodations. Since some of
the cars leaked, bad weather forced a doubling up. There was no
stealing, not for reasons of morality but because a crime would bring the
276
BRAH ,1996, p. 198.
277
Caged Bird, 1993, p. 238.
136
police to the yard; and since everyone was underage, there was the
likelihood that they’d be sent off to foster homes or juvenile delinquent
courts. Everyone worked at something. Most of the girls collected
bottles and worked weekends in greasy spoons. The boys mowed lawns,
swept out pool halls and ran errands for small Negro-owned stores. All
money was held by Bootsie and used communally278.
Nosso argumento vai ao encontro daquele proposto por McPherson, ao dizer que as
alianças vão além das questões de raça; é uma experiência comum e, por meio dela, Maya
learns that, beyond the barriers of race, all men and women are the same;
they share the same fears, the same loneliness, and the same hopes. The
commune experience also confirms Angelou’s determination to exercise
further control over her being and helps her to establish a valuable new
direction for her personal growth280”.
Aos quinze anos Maya decidiu ser condutora de bondes em São Francisco.
Convencer sua mãe foi tão fácil quanto ela imaginava, dada a própria instabilidade e
mudanças pelas quais passava o mundo: “The world was moving so fast, so much Money
was being made, so man people were dying in Guam, and Germany, that hordes of
strangers became good friends overnight. Life was cheap and death entirely free. How
could she have the time to think about my academic career?”281
A princípio a mãe disse a Maya que a empresa não admitia negros e este foi o
maior desafio que poderia ser proposto a alguém como Maya. No primeiro momento, ela
ficou desapontada, mas depois sua mãe lhe diz:
That’s what you want to do? Then nothing beats a trial but a failure.
Give it everything you’ve got. I’ve told you many times, ‘Can’t do is
like Don’t Care.’ Neither of them have a home.”
Translated, that meant there was nothing a person can’t do, and there
should be nothing a human being didn’t care about. It was the most
positive encouragement I could have hoped for282.
A tarefa, porém, se mostrou mais difícil do que Maya esperava. Ela foi a Market
Street Railway Company, mas recebeu a desculpa de que o responsável não estava. Neste
encontro com a secretária da pessoa responsável ela observa a reprodução do racismo que
acompanha seu povo e a imagem da cena final de “Hamlet”, de Shakespeare, vem a sua
mente:
The secretary and I were like Hamlet and Laertes in the final scene, here,
because of harm done by one ancestor to another, we were bound to duel
to the death. Also because the play must end somewhere.
I went further than forgiving the clerk, I accepted her as a fellow victim
of the same puppeteer. […] All lies, all comfortable lies. The
receptionist was not innocent and neither was I. The whole charade we
had played out in that crummy waiting room had directly to do with me,
Black, and her, white283 […]
281
Caged Bird, 1993, p. 265.
282
Caged Bird, 1993, p. 265.
283
Caged Bird, 1993, p. 267.
138
A reflexão de Maya sobre seu lugar na sociedade e os jogos raciais entre negros e
brancos é resultado da somatória de suas experiências de vida e, ainda que de forma
inconsciente, ela sabe porquê deseja aquele emprego: “Why did I insist on that particular
job? […] The struggle expanded. I was no longer in conflict only with the Market Street
Railway but with the marble lobby of the building which housed its offices, and elevators
and their operators.”284
Em sua luta pessoal, Maya era acompanhada por sua mãe, que não pedia
explicações mas a apoiava porque compreendia a perversidade do confronto. A mãe
esperava que Maya desse o máximo de si.
As palavras, que anteriormente poderiam matar, também curaram, e agora oferecem
alento, conforto e força. Para Maya as palavras assumem a função de motivar e se tornam
um instrumento com poder de transformar sua vida: “Strangely, as bored as I was with
clichés, her inflection gave them something new, and set me thinking for a while at
least285”.
Após três semanas de visitas diárias ao escritório, Maya conseguiu o emprego,
quebrando a barreira de cor anteriormente imposta aos negros, tornando-se a primeira
mulher negra condutora de bondes e, conseqüentemente, conquista sua independência
financeira.
Quando Maya retorna às aulas, reconhece seu amadurecimento. Segundo ela, as
mudanças em sua identidade são visíveis.
284
Caged Bird, 1993, p. 268.
285
Caged Bird, 1993, p. 269.
286
Caged Bird, 1993, p. 270-271.
139
Em retrospectiva, Maya percebe que tudo o que ela havia passado, sua via-crucis, a
levou à ressurreição e rearticulação do seu “eu” e também à consciência dessas mudanças.
Sua libertação trouxe o reconhecimento do seu valor, do seu potencial e da grandiosidade
de seu povo.
O relato e a reflexão foram feitas por uma sobrevivente dos obstáculos raciais e de
gênero. Ela fecha essa fase de sua vida numa clara referência a esses momentos,
posicionando-se quanto ao sofrimento das mulheres afro-americanas: “The Black female is
assaulted in her tender years by all those common forces of nature at the same time that she
is caught in the tripartite crossfire of masculine prejudice, White illogical hate and Black
lack of power.”287
Todavia, Maya mostrou que é justamente dessa luta que vem a força das mulheres
negras: “[...] The fact that the adult American Negro female emerges a formidable
character belligerence. It is seldom accepted as an inevitable outcome of the struggle won
by survivors and deserves respect if not enthusiastic acceptance.288”
Nesse momento Maya incorpora as falas e ensinamentos de suas predecessoras —
Momma, Grandmother Baxter, Vivian Baxter, Mrs. Flowers, Miss Kirwin — e ela sabe
porque sobreviveu e de onde veio a força para que isso ocorresse.
I noticed how heavy my own voice had become. It droned and drummed
two or three whole tones than any schoolmates’ voices. My hands and
feet were also far from being feminine and dainty. […] For a sixteen-
year-old my breasts were sadly undeveloped. […] The line from my rib
cage to my knees fell straight without even a ridge to disturb its
direction. […] There was also a mysterious growth developing on my
body that defied explanation. It looked totally useless.
287
Caged Bird, 1993, p. 272.
288
Caged Bird, 1993, p. 272.
140
Then the question began to live under my blankets: How did lesbianism
begin? What were the symptoms289?
Maya planeja, então, seduzir um rapaz que é seu vizinho. Depois do encontro,
Maya reavalia o fato e conclui que as dúvidas quanto a sua sexualidade persistiam. Três
semanas mais tarde, Maya descobre que está grávida, aos dezesseis anos, após um único
encontro furtivo.
Ainda sem associar a gravidez ao nascimento de um bebê, Maya esconde o fato da
mãe. Depois da formatura, aos oito meses de gravidez, decide contar sobre a gravidez a
Daddy Clidell, por meio de um bilhete, e ele, por sua vez, conta para a mãe de Maya o que
havia ocorrido. Nas semanas seguintes:
I had a baby. He was beautiful and mine. Totally mine. No one had
bought it for me. No one had helped me endure the sickly grey months. I
had had help in the child’s conception, but no one could deny that I had
had an immaculate pregnancy292.
289
Caged Bird, 1993, p. 274.
290
Caged Bird, 1993, p. 280.
291
Caged Bird, 1993, p. 288.
292
Caged Bird, 1993, p. 288.
141
O nascimento do filho assinala novas possibilidades tanto para Maya quanto para a
mãe. Embora fosse jovem, Maya possuía atributos necessários para criar e sustentar o
filho. Contudo, ainda havia seu receio em segurar o bebê, dependendo, portanto, das
orientações de sua mãe. Uma noite sua mãe leva o bebê de três semanas para dormir com
Angelou, que protesta veementemente com medo de rolar sobre o bebê e matá-lo”. Porém,
sua mãe foi insistente e deixou o bebê a seu lado.
À noite Maya foi acordada por sua mãe, que mandou que ela se levantasse para ver
o que havia feito. Quando ela levantou, viu o bebê dormindo calmamente a seu lado.
“See”, sua mãe disse, “you don’t have to think about doing the right thing. If you’re for the
right thing, then you do it without thinking293”. Sua mãe, por meio dessas palavras, atesta a
Maya sua identidade de mulher adulta.
O nascimento de seu filho assinala novas possibilidades tanto para ela quanto para
sua mãe. Mesmo sendo tão jovem ela já possuía os atributos necessários para criar e
sustentar seu filho.
Ao final de Caged Bird, Maya não se sente mais inferior, pois sabe quem ela é e
sabe como responder à violência do racismo e da opressão de forma a preservar sua
dignidade, sua vida. Enfim, Maya conhece e tem o poder das palavras a seu favor.
O som que emana de dentro da gaiola é o lamento do pássaro ferido que eleva sua
voz em uma prece por liberdade. De um fraco eco, Maya começou, por meio de sua luta e
tragédias pessoais, a encontrar forças para erguer sua voz, pois o pássaro somente alçaria
vôo quando estivesse forte o bastante e quando esse pássaro — ou seja, Maya — cantasse.
Seu canto reverberou a história e a trajetória de alguém que, após sua jornada, pôde
olhar para a gaiola vazia e afirmar que sabia o porquê dos pássaros engaiolados e solitários
cantarem: eles cantam por terem a esperança de, um dia, serem verdadeiramente livres.
293
Caged Bird, 1993, p. 289.
142
CONSIDERAÇÕES FINAIS
294
SALGUEIRO, Maria Aparecida Andrade. Escritoras Negras Contemporâneas: Estudos de Narrativas
Estados Unidos e Brasil. Rio de Janeiro: Caetés, 2004, p. 65.
143
Destarte, a obra de Maya Angelou supera o estatuto de relato para tornar-se também
um relato-testemunhal e, desse entrelaçamento, ergue-se a voz do subalterno para que se
faça justiça, não apenas para ele, mas para todos aqueles que ela representa.
Observamos que a obra de Maya Angelou conforma esta proposição, visto que
Maya percorreu um caminho semelhante a uma via-crucis que tem seu início com o
sofrimento, por não ser aceita pelos outros ou por si própria, numa espécie de Paixão que
desembocará na catástrofe que foi a Morte de sua inocência, devido ao do estupro sofrido
aos oito anos. Esse episódio desencadeou o Luto gerado pelo sentimento de perda e que a
confinou a um casulo no qual imperava o silêncio, mas graças à uma terceira pessoa, há a
saída do casulo de silêncio autoimposto, numa forma simbólica de Ressurreição.
Ao longo da obra, acompanhamos a autora-personagem em uma reflexão sobre a
vida e os efeitos de suas experiências na construção de sua identidade, bem como a
maneira como Maya conseguiu reverter sua autoimagem negativa por meio das palavras.
Por meio delas, travou e venceu batalhas, tornando-se senhora de seu “eu”.
Ao final de sua obra, Maya incorpora os ecos de ancestrais, de suas avós, de sua
mãe e das mulheres que conheceu, ao longo de sua infância e adolescência, ampliando-os.
Ela torna-se o coro dessas diversas vozes que nela habitam, mas que falam em uníssono
sobre o significado de ser uma mulher negra nos Estados Unidos.
Com maestria, Maya Angelou evoca em sua prosa as cores, as lutas, as alegrias e as
tristezas de seu povo, isto é, a própria condição humana de lutar pela sobrevivência. Deste
alinhamento e da fusão com a personagem do passado, que é acessado pela escrita do “eu”
feita pela autora-personagem-testemunha, foi construída a identidade de mulher e
afroamericana de Maya Angelou.
Contudo, ao mesmo tempo em que esse processo é concluído, ele abre
possibilidades para o surgimento de novas identidades, num constante processo de vir-a-
tornar-se. Observa-se que, por meio de Maya Angelou, o sofrimento, mas também a força
para se transformar assumem uma voz e passam a ter um rosto que testemunha em favor de
outros pássaros engaiolados.
Pelas palavras, Maya Angelou conseguiu trilhar um caminho rumo à liberdade,
livrando-se dos grilhões que a prendiam na gaiola e, ao final da jornada, ela pôde olhar
para trás e erguer-se com a convicção de uma sobrevivente que passou por tudo, mas que
agora, era livre para seguir seu caminho.
144
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