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0

MARIA VICTÓRIA ESPIÑEIRA GONZÁLEZ

DANILO UZÊDA DA CRUZ (ORGS.)

DEMOCRACIA NA AMÉRICA

LATINA

Democratização, tensões e aprendizados

2018

1
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

D45 Democracia na América Latina [recurso eletrônico] : democratização, tensões e


aprendizados / Maria Victória Espiñeira González, Danilo Uzêda da Cruz,
organizadores. – Buenos Aires: CLACSO; Feira de Santana: Editora Zarte, 2018.
387 p.: il.

E-book
ISBN: 978-85-93230-30-1

Elaboração: Luis Ricardo Andrade da Silva – Bibliotecário – CRB 5/1790


1. Democracia – América Latina. I. Espiñeira González, Maria Victória, org.
II. Cruz, Danilo Uzêda da, org.
2
CDU: 321.7(7/8)
SUMÁRIO

PREFÁCIO....................................................................................................... 6
Wagner de Melo Romão

INTRODUÇÃO................................................................................................12
Democracias e Latino-américa: percursos, recuos e aprendizados
Maria Victória Espiñeira González e Danilo Uzêda da Cruz

SOBRE AS AUTORES E AUTORES..................................................................20

PRIMEIRA PARTE: DEMOCRACIAS E DEMOCRATIZAÇÃO:


PERCURSOS EPSTEMOLÓGICOS E QUESTÕES MÉTODO.........26

1. COLONIALIDADE DO SABER, DEPENDÊNCIA EPISTÊMICA E OS LIMITES


DO CONCEITO DE DEMOCRACIA NA AMÉRICA LATINA.............................28
Fabricio Pereira da Silva, Paula Baltar, Beatriz Lourenço

2. MUITO ALÉM DE DIREITAS E ESQUERDAS: OS GIROS E A DENSIDADE


DOS REGIMES DEMOCRÁTICOS NA AMÉRICA DO SUL...............................52
Renata Peixoto de Oliveira

3. DEMOCRACIAS, IMPASSES, CRISES E ALTERNATIVAS.............................72


Danilo Uzêda da Cruz

SEGUNDA PARTE: TENSÕES, RECUOS E CRISE..........................96

4. A PRODUÇÃO DO GOLPE NO BRASIL......................................................................98


Luis Felipe Miguel

5. O ESTADO É DE EXCEÇÃO: A REVOLTA POPULAR E A REPRESSÃO NO


BRASIL (2013-2016)........................................................................................118
Camila Oliveira do Valle

6. DESCONSOLIDAÇÃO DEMOCRÁTICA NA AMÉRICA LATINA.................136


Fidel Terenciano

7. CENÁRIO PÓS DITADURAS CÍVICO-MILITARES: UMA ANÁLISE


COMPARATIVA ENTRE ARGENTINA E BRASIL...........................................156
Laís Siqueira Ribeiro Cavalcante

8. IMPEACHMENT SEM CRIME É GOLPE: CONSIDERAÇÕES SOBRE O


PROCESSO DE DEPOSIÇÃO DE DILMA ROUSSEFF....................................168

3
Silvio César Oliveira Benevides, Thais Joi Martins,
Maurício Ferreira da Silva, Ana Quele Passos

9. EL ESTANCAMIENTO DE LA DEMOCRACIA MEXICANA.........................190


Ricardo Espinoza Toledo

10. OBSTÁCULOS PARA LA DEMOCRACIA EN PARAGUAY: LA EXCLUSIÓN


DE LOS PUEBLOS INDÍGENAS....................................................................206
Sara Mabel Villalba

TERCEIRA PARTE: INSTITUIÇÕES, PARTICIPAÇÃO SOCIAL,


APRENDIZADOS E ENFRENTAMENTOS....................................226

11. MINISTÉRIO PÚBLICO, REPRESENTAÇÃO E RESPONSABILIZAÇÃO....228


Maria Victória Espineira González
Ruy Aguiar Dias

12. CONSELHOS GESTORES E POLÍTICAS PÚBLICAS: O CONSELHO


ESTADUAL DAS CIDADES DA BAHIA E A ELABORAÇÃO DA POLÍTICA
ESTADUAL DE RESÍDUOS SÓLIDOS...........................................................246
Diego Matheus Oliveira de Menezes

13. DEBATES SOBRE PARTICIPAÇÃO E POLÍTICAS PÚBLICAS NO BRASIL E


NA VENEZUELA............................................................................................264
Alessandra Maia Terra de Faria
Mayra Goulart Silva

14. DEMOCRACIA E REBELDIA POPULAR NO BRASIL


CONTEMPORÂNEO.....................................................................................286
Mônica Dias Martins

15. DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO NO RIO GRANDE DO SUL - UM


BALANÇO DE 25 ANOS DE EXPERIÊNCIAS..................................................304
Tarson Núñez

16. GOVERNOS DE ESQUERDA E QUALIDADE DA DEMOCRACIA:


AVALIANDO A PARTICIPAÇÃO NO BRASIL, CHILE E VENEZUELA............334
Kátia Alves Fukushima

17. “ALGUMA COISA ESTÁ FORA DA ORDEM”: PARTICIPAÇÃO,


REPRESENTAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS NO BRASIL
CONTEMPORÂNEO (2013-2018)...................................................................362
Cláudio André de Souza
Rodger Richer

4
Para Ruy e Lilian,
nossos companheiros nessa jornada.
5
PREFÁCIO

Wagner de Melo Romão

Pensar a democracia na América Latina nos tempos que correm, mais do que a
segurança dos cânones, exige ousadia. O feliz leitor e a feliz leitora tem em mãos a
possibilidade de ampliar seu referencial teórico e seu conhecimento sobre como
este continente tão carregado de autoritarismo sonhou com a ampliação da
democracia nos últimos anos e, no entanto, acordou sobressaltado. Este livro traz
reflexão sobre o que se passou e busca lançar luzes sobre um futuro ainda incerto
e indefinido.

Este livro consegue ainda a proeza de combinar a contribuição generosa de autores


e autoras mais experimentados com a criatividade de uma nova geração de
intelectuais que, não restringem seu estar no mundo às fronteiras seguras da
academia, mas lançam-se à difícil tarefa de descortinar o amanhã. Mesmo sabendo
dos limites do experimento democrático no Brasil e no continente - como lembra
Luis Felipe Miguel no início de seu capítulo - a situação atual é a de que passou a
ser recorrente que maiorias de ocasião se formem nos Legislativos para acossar
presidentes, com o beneplácito da mídia e dos mercados. Trata-se de outro
patamar na violência política que caracteriza a história de nossa América Latina.

Enfim, o que gostaria de ressaltar é que estes jovens autores não se limitam a
analisar a conjuntura política - com base em seus trabalhos de mestrado,
doutorado e papeis apresentados em congressos - mas também se propõem a
iluminar caminhos de resistência a partir dos aprendizados que nossa experiência
histórica nos reservou.

O livro compõe-se de três partes. Na primeira parte “Democracias e


democratização: percursos epistemológicos e questões de método”, reúnem-se os

6
capítulos que dão o enquadramento analítico mais geral do livro e que coloca em
suspenso as teorias hegemônicas sobre a natureza da democracia. A busca por uma
outra episteme relacionada ao Sul e não àquela produzida a partir dos centros
europeus de produção do conhecimento dá o tom do debate sobre a democracia
no continente latino-americano.

A crítica se coloca mais diretamente às limitações de certa visão institucionalista


da democracia que coloca as democracias liberais como a meta a ser alcançada
pelos países latino-americanos. Permito-me salientar, ademais - com Fabrício
Pereira da Silva, Paula Baltar e Beatriz Lourenço, -que mesmo o “sarrafo" liberal
desde há muito encontra-se rebaixado mesmo nos países europeus. A visão de que
as democracias mantém suas instituições “funcionando”, como se fossem
máquinas, falha em esconder que, na verdade, há uma enorme insatisfação com os
regimes políticos, que permanecem protegendo e gerando desigualdades e são
cada vez mais incapazes de promover dissensos e conduzi-los a consensos
mínimos, razoáveis para os agentes sociopolíticos.

A segunda parte do livro “Tensões, recuos e crise” trata da política “a quente”, neste
conturbado período de refrega e de gradativo aumento da desconfiança nas
instituições políticas, chamado provocativamente por Fidel Terenciano, em seu
capítulo, de “desconsolidação democrática” da América Latina. Esta parte se
concentra sobre o período recente do processo político no Brasil, desde 2013 e que
culmina com a destituição de Dilma Rousseff em 2016, tema de alguns dos
capítulos. Porém, não se trata de pensar apenas o Brasil: os textos vão além e, numa
perspectiva comparativista, propõem pensar também Argentina, México e
Paraguai em um cenário de dificuldades para as democracias.

O terceiro momento “Instituições, participação social, aprendizados e


enfrentamentos”, debruça-se sobre aquele conjunto de iniciativas que ampliam a
dimensão estritamente “representativa" da democracia - ou ao menos aquela
relacionada à política que se dá nos parlamentos e nos executivos nos diversos
níveis federativos. Embora estas iniciativas - em parte voluntárias, em parte

7
previstas em constituições e leis inferiores - tenham se originado ainda nos anos
1980 e 1990, foi no período dos governos à esquerda que se fortaleceram. Vivemos
um momento propício para uma profunda reflexão sobre estes mecanismos e os
capítulos aqui presentes captaram esta necessidade.

No caso dos conselhos, orçamento participativo e outros mecanismos de


participação e representação política, é interessante observar como o livro expressa
bem a evolução da literatura. Cada vez mais os trabalhos trazem para a cena a ação
dos agentes sociopolíticos - partidos, movimentos sociais, organizações da
sociedade civil e outras formas de organização da sociedade - para o centro da
análise. Além disso - como é possível verificar no estudo sobre os casos da
Venezuela e do Brasil, realizado por Alessandra Maia de Faria e Mayra Goulart
Silva; no capítulo de Tarson Núñez, sobre participação e democracia no Rio Grande
do Sul; e, ainda, no texto de Kátia Alves Fukushima sobre a participação no Brasil,
Chile e Venezuela - avança-se também ao articular a arquitetura participativa ao
sistema político mais amplo de cada país, inclusive relativo às divisões de
competência sobre a gestão do território. Aí se podem perceber os limites das
inovações democráticas, algo antes pouco percebido pela literatura, o que levou a
equívocos e frustrações tanto no âmbito acadêmico como no âmbito político.

O que deu errado? Por que se frustraram as expectativas de aprofundamento de


nossas democracias? Como foi possível que arcabouços institucionais
democráticos, firmado após acordos realizados após o período autoritário, fossem
nos render tão pouco, na comparação com nosso ideal de sociedade? Qual a
herança do período das esquerdas e centro-esquerdas no poder no período
recente? De mais a mais, por que nós mesmos erramos em nossas análises?

Não por acaso, o ponto de chegada do livro se refere às experiências participativas


e casos de governos de esquerda no continente. No nosso campo de estudos sobre
a democracia, esta certamente foi uma das confluências que mais nos animaram.
Perceber motivos para sucessos e fracassos, comparar o comprometimento dos
grupos políticos de esquerda com estas inovações, compreender como estes

8
mecanismos participativos alteravam o comportamento de movimentos sociais
foram alguns dos desafios que uniram nossa torcida pela “democratização da
democracia” com nossas preocupações teórico-analíticas.

Até que ponto houve insucesso destas experiências é algo a permanecermos


discutindo. Talvez seja prematuro imputar as derrotas recentes ao fracasso das
tentativas que articularam - e permanecem articulando - a sociedade civil e o
Estado em espaços comuns. É verdade que tem sido forte a reação dos setores
políticos à direita, sendo alguns deles francamente autoritários e
descomprometidos com a democracia. No entanto, a política tem mostrado que há
muita resistência e que os ganhos em termos de direitos sociais, protagonismo
popular e fortalecimento de setores e segmentos da sociedade antes excluídos e
invisibilizados pode tornar essa tormenta mais breve do que os mais pessimistas
supõem.

Recuperando o capítulo de Claudio André de Souza e Rodger Richer, nosso “tempo


de incertezas” é também sobre a possibilidade de que as forças sociopolíticas
progressistas e democráticas possam recuperar terreno e, em um confronto mais
aberto com as forças autoritárias, colocar em patamar mais alto a construção de
sociedades calcadas em direitos de cidadania. Talvez isto já esteja acontecendo.

No México, a vitória de Andrés Manuel López Obrador é um sintoma de que o


regime político do país não está imune a uma alternância de poder de fato. A
rarefeita democracia mexicana chegou em um momento de inflexão e há muita
esperança no futuro. Porém, isso não pode nos fazer esquecer das dificuldades
apontadas no artigo de Ricardo Espinoza Toledo, sobre o estancamento da
democracia mexicana. Na maioria dos casos, a vitória das esquerdas em eleições
presidenciais não geraram alterações substantivas no regime político, e mesmo as
mudanças propostas foram duramente combatidas pelas forças políticas
conservadoras, muitas delas aliadas ocasionais dos governos à esquerda. O que
acontecerá no México nos próximos anos?

9
Por fim, gostaria de observar que a leitura do livro levanta também a urgência em
problematizarmos, de maneira comparada, os desafios pelos quais a democracia
passa nos próprios países centrais. Haveriam peculiaridades na Europa, na
comparação com a América Latina? Certamente sim. Haveria algo comum a estas
experiências tão distintas. Também certamente sim. É certo que o livro já executa
bem a tarefa hercúlea de discutir democracia em um contexto tão diverso como o
latino-americano. Mas, talvez algo de nossas interrogações sobre a democracia no
mundo de hoje se perca ao focarmos exclusivamente nosso olhar por meio das
epistemologias do Sul. Esta, porém, é tarefa para outro momento. Cabe agora à
feliz leitora, ao feliz leitor, aproveitar esta obra e refletir sobre este nosso agora.

Campinas, 19 de agosto de 2018.

10
11
INTRODUÇÃO

Maria Victória Espiñeira González e Danilo Uzêda da Cruz

Esse livro trata de um problema contemporâneo. Um amplo espectro de


experiências democráticas alcançou a América Latina nos últimos 30 anos, período
em que as ditaduras militares foram vencidas pelos movimentos sociais ou por
reclames do capital internacional a deixarem de existir no cone sul. Ao menos em
sua expressão mais agressiva e cruel, passaram de ditaduras militares para
democracias eleitorais, regidas por constituições que instalaram Estados
democráticos de direito. A democracia liberal parecia apaziguada na América
Latina, como fora na europa ocidental após o segundo quartel do século XX. Essa
expressão pôs de lado o ideário (ou o engodo) de uma democracia total, como nos
adverte Bobbio (2001).
Dentre as incompletudes da democracia liberal, a literatura consolidou a ausência
de democracia econômica. As teorias democráticas, desse modo, de Bobbio a Dahl,
passando por Donws e Rahls admitiam que em seu proejto político societário que
a democracia liberal falhara naquele aspecto central para o materialismo histórico,
a igualdade economica. Miguel (2016) destaca como o liberalismo aceita e separa
as diversas desigualdades e diferenças. Assim as desigualdades de gênero e
interétnicas não são somente aceitas pelo liberalismo como justificadas. Mesmo a
desigualdade de classe é observada por um viés das diferenciações individuais,
sendo portanto “aceitável” aos olhos do liberalismo (MIGUEL, 2016). Essa
perspectiva quando enxergada no mundo real se depara com uma lógica ainda mais
perversa: o ódio ao outro, completada recentemente pelo ódio a qualquer noção
de diversidade, igualdade e democracia, alimentada (verbal e materialmente) por
grupos economicos que detém o controle do capital, portanto dos “aparelhos”
formais de educçaão, informação e comunicação. Se tomarmos parte do
pensamento gramsciano poderíamos até dizer que a democracia eleitoral é, ela
mesma, comprometida com a construção de uma hegemonia e dela deriva o atual
ódio à democracia.

12
A extensão do proejto político antidemocrático portanto alcança de forma resouta
dimensões societais, com o avanço do pensamento (não formulado) conservador
em (mero) ataque as liberdades e condições mínimas alcançadas pelo próprio
modelo liberal democrático. Ainda que concordemos com parte da análise de
Safatle (2017), quando afirma que a dificuldade das esquerdas e da própria prática
democrática em demonstrar alternativas para modelos em convulção ou crise, não
podemos concordar quando afirma que a origem dessa crise pode estar nas revoltas
estudantis e populares de 1968, em que se pregava a liberdade e ausência de
controles partidários, políticos, etc. (SAFATLE, 2017). A matriz dessa conjuntura
de crise da democracia tem outros contornos, que diz respeito, claro, a dificuldade
da esquerda de apresentar um projeto político de alcance societal, mas também ao
apromoramento das táticas e técnicas de manipulação da informação, da
ampliação do controle do capital sob os mecanismos formais de comunicação, a
pobreza estrutural de populaões inteiras, as promessas não cumpridas pela
democracia liberal, entfim, por um conjunto histórico de acúmulos, contando
ainda com os processos e disputas nacionais e de classe, que alcança de forma
diferenciada cada sociedade e formação social.
Mas não é somente essa dimensão não alcançada por esse projeto político. Ao
ensejar ser possível dar conta da igualdade econômica, o projeto liberal deixou de
lado por um século inteiro as desigualdades sociais presentes e derivadas do
conflito de classe, relegando milhões a permanecerem em condições não
democráticas de vida, porque não alcançavam acesso a bens e serviços, mas
também porque não tinham consolidadas as necessidades mínimas de cidadania –
e dignidade. Permaneciam em um modo de vida alienado do tecido social,
submetidas e submetidos que foram (e são) a condições de seres humanos de
“segunda linha”.
Outras desigualdades, como nos alerta Miguel (2016), parecem anteceder ao
conflito de classe, pela escolha de grupos sociais que serão desacreditados pela
democracia liberal (ora, já estamos falando de classes!), como mulheres, negros,
crianças, velhos, homossexuais, transexuais, e em outros momentos populações
inteiras de indígenas ou sertanejos. É, portanto, produto de uma decisão política
tomada no curso da história de quem é ou não é merecedor de mais ou menos

13
cidadania, de maior ou menor democracia. Essas desigualdades passaram ao longo
da teoria democrática como “desigualdades” e não como tema da democracia. Esse
elemento distintivo é de fundamental importância para compreendermos, de
algum modo, a dimensão tomada do momento contemporâneo, onde o impasse
tornou-se crise, para utilizar a expressão de Avrtizer (2016).

***

As relações de dependência e exploração econômica e social – também cultural! –


transbordam o universo das relações sociais, alcançando, como não poderia deixar
de ser, a esfera acadêmica. Mais profundo ainda: alcançando epistemicamente a
produção do conhecimento e a prática política dos sujeitos sociais. Essa é a
abordagem central do artigo Colonialidade do saber, dependência epistêmica
e os limites do conceito de democracia na América Latina, em que Fabricio
Pereira da Silva, Paula Baltar e Beatriz Lourenço discutem a dimensão dos limites
e os problemas de análise derivados dessa perspectiva. Esse artigo abre o primeiro
bloco Democracias e democratização: percursos epstemológicos e questões
método.
De certa maneira essa também é a procupação presente em Muito além de
direitas e esquerdas: os giros e a densidade dos regimes democráticos na
América do Sul, da pesquisadora Renata Peixoto de Oliveira. Ao longo do texto a
autora atualiza o debate acadêmico sobre o distanciamento e as aproximações
entre os campos de esquerda com a inauguração dos regimes democráticos após
anos de ditaduras militares. A autora enfatiza a ancessidade de compreender o
fenômeno democrático e sua densidade, a partir da consolidação das democracias
no cone sul. A compreensão, portanto, passa por uma necessária revisão conceitual
e epistemológica.
Em Democracia, impasses, crises e alternativas, o pesquisador Danilo Uzêda
da Cruz nos apresenta um panorama das democracias na América Latina, e as
implicações teóricas de análise. O autor busca estabelecer a compreensão ampliada
para o processo de impasse/crise das democracias latinoamericanas, sem contudo

14
deixar de observar a dimensão histórica e os desenvolvimentos particulares das
democracias em curso.

Os artigos seguintes reunidos no bloco Tensões, recuos e Crises, encontramos as


abordagens em torno das tensões geradas por processos dialéticos de
aprendizagem e retrocessos nas democracias latino-americanas. Impedimentos,
golpes parlamentares e jurídicos parecem ter tomado o lugar dos golpes militares,
sem a devida legitimação entre as instituições nacionais e internacionais.
O artigo do pesquisador Luis Felipe Miguel, A produção do golpe no Brasil, abre
esse conjunto de artigos, com uma análise do processo de deposição da Presidenta
Dilma Rousseff no Brasil, inserindo em um processo mais amplo que alcança as
manifestações populares de 2013 até o ano 2015, como parte de uma mesma
construção. Reposiciona, o autor, o golpe parlamentar estabelecido como uma
construção que envolveu diversos atores e instituições, bem como as oções
políticas da então dirigente e seu partido.
Partindo de outro prisma para anlisar o contexto brasileiro, Camila Oliveira do
Vale, em O Estado é de exceção: a revolta popular e a repressão no Brasil
(2013-2016), dialoga com o conjunto de revoltas populares que no período citado
tensionaram com o Estado em busca de direitos e mais democratização, em
particular os casos do Movimento Passe Livre (MPL), analisando inclusive os
movimentos concorrentes, causas e o processo de enfrentamento ao Estado. A
autora utiliza o conceito de Estado de exceção para cacterizar a ação estatal
repressora e criminalizadora dos movimentos sociais, com o uso da força policial e
de ações judiciais para controlar protestos e constranger a democracia.
O artigo Desconsolidação democrática na América Latina, de Fidel
Terenciano, nos apresenta os contornos e os marcos históricos de um processo de
desdemocratização a partir de uma análise comparativa dos países da América
Latina. A abordagem conclui que houve (e está em curso) um processo de
desconsolidação das estruturas democráticas latinoamericanas, em que pese o seu
funcionamento, e que nos casos de Brasill Paraguai, México e Argentina há uma
percepção da sociedade que essas instituições e seu funcionamento não concorrem
paraque a democracia seja plena.

15
Partindo também de uma análise comparativa entre Brasil e Argentina, a
pesquisadora Lais Siqueira Ribeiro Cavalcante, em Cenário pós ditaduras cívico-
militares: uma análise comparativa entre Brasil e Argentina, nos oferece uma
importante compreensão e contribuição para as democracias que se formaram a
partir e após findados os empreendimentos ditatoriais nesses países. Para autora
os contextos pós-ditaduras foram possíveis devido a uma intensa mobilização
popular que empurrou o Estado para processos democratizantes, bem como a luta
contra o esquecimento histórico, acentuando as distindas posições e orientações
em Brasil e Argentina.
Ao analisar o processo jurídico-político do impedimento da presidenta Dilma
Rousseff, os autores Sílvio C. O. Benevides, Thais J. Martins, Maurício F. da Silva e
Ana Q. Passos, buscam remontar em perspectiva históric0-política os
acontecimentos políticos que antecederam o golpe parlamentar. O artigo
Impeaschment sem crime é golpe: considerações sobre o processo de
deposição de Dilma Rousseff, reconstrói com bases empíricas o percurso do
golpe parlamentar, buscando demonstrar a ausência de crime de responsabilidade,
o que invalidaria o processo deflagrado com a admissibilidade na Câmara dos
Deputados. Os autores argumentam que a presença de poderes político-
econômicos (latifundiários, empresários, grande mídia), a perseguição política ao
Partido dos Trabalhadores, e uma articulada estratégia política foram
fundamentais para a deposição da presidenta.
A estagnação da democracia no México, em El escancamiento de la democracia
mexicana, o pesquisador Ricardo Espinoza Toledo expressa a preocupação o
contexto democrático no México, sobretudo o silencio internacional em torno do
problema. Acentua ainda que, diferente de países onde as instituições
democráticas estão consolidadas ou passaram por processos democratizantes, no
México além do parco desenvolvimento econômico, as instituições democráticas
vêem-se com obstáculos substanciais para seu pleno desenvolvimento e, portanto,
para a garantia dos direitos.
A autora Sara Mavel Villalba, em Obstáculos para la democracia em Paraguay:
la exclusion de los pueblos indígenas, analisa a questão da exclusão social e
política das populações indígenas no Paraguai e a ausência de direitos como um

16
obstáculo para o processo democrático naquele país. Argumenta que, a despeito
da existência de marcos legais internacionais e nacionais, acordos bilaterais e da
existência de políticas públicas voltadas para populações indígenas, a efetivação da
cidadania e dos direitos dessas populações encontra-se paralisada ou com baixa
efetividade.
Em um terceiro bloco de artigos emerge experiências de democratização e
aprendizados que configuram o ambiente democrático latino-americano. Assim
em Instituições, participação social, aprendizados e enfrentamentos, as
experiências apresentadas não são de processos em que houve uma ampliação ou
“democratização da democracia”. Como todo processo social, idas e vindas – por
vezes contornos e enfrentamentos diretos – são necessários para a compreensão
do fenômeno democrático.
Já alertamos mais acima das dificuldades históricas do empreendimento
democrático e de como ele encontra-se em crise ante o acanço de medidas
restritivas de direitos trabalhistas e sociais, e ainda em casos de ataque a
instituições democráticas, ao estado de direito, e mesmo àquelas instituições
criadas para garantir à sociedade a participação.
Esses aprendizados nos remetem a um campo de análise que questiona inclusive a
existência e o lugar da democracia na contemporaneidade, posto que
permaneceram de fora do jogo democrático populações inteiras até aqui. Mesmo
aqueles que tiveram sua inclusão democrática parcial (a eleitoral), tem encontrado
dificuldades em manter a validade da expressão de sua vontade política.
O artigo Ministério Público, representação e responsabilização dos
pesquisadores Maria Victória Espineira González e Ruy Aguiar Dias abrem essa
seção debatendo a ação do Ministério Público. A perspectiva democrática, como
representantes da sociedade e instituição de controle do executivo, das instituições
e das garantias constitucionais da coisa pública, razão de ser do MP, são debatidas
e questionadas empiricamente a partir da atuação do ministério Público e sua
atuação política na operação do direito público. A análise empírica revai sobre o
caso do licenciamento ambiental na Bahia e a implantação do Porto sul.
As instituições participativas, particularmente o conselho estadual das cidades da
Bahia é analisado em Conselhos gestores e políticas públicas: o conselho

17
estadual das cidades da Bahia e a elaboração da política estadual de resíduos
sólidos, pelo pesquisador Diego Matheus Oliveira de Menezes. A perspectiva
democrática da elaboração dap olítica estadual de resíduos sólidos, tendo como
premissa a participação social por meio da instância (deliberativa) participativa
que tem como atribuição definir os planos diretores das cidades, assim com sua
política de resíduos sólidos. Em uma análise fartamente documentada, nos
demonstra as idas e vindas do conselho, suas fragilidades e enfrentamentos (nem
sempre bem sucedidos) mas sobretudo apresenta o papel democrático e
participativo dessa instância.
Debates sobre participação e políticas públicas no Brasil e na Venezuela, é o
artigo das pesquisadoras Alessandra Maia Terra de Faria e Mayra Goulart Silva, em
que apresentam as configurações do poder e do espaço em Brasil e Venezuela na
perspectiva da participação social e a inserção das demandas nas políticas públicas.
As autoras estão preocupadas ao longo do texto em discutir as relações do espaço
com as perspectivas políticas do cidadão comum e os retrocessos ou perda de
legitimidade das instituições democráticas.
Os processos de resistência e rebeldia popular são abordados pela pesquisadora
Mônica Dias Martins em Democracia e rebeldia popular no Brasil
contemporâneo. A partir da análise da ação da imprensa a autora nos apresenta
uma importante contribuição sobre as formas de enfrentamento do Estado e aos
autoritarismos, observando e contraditando a alcunha de letargia ou de paralisia
dos movimentos sociais e políticos. Situa ainda os diversos grupos políticos que, à
margem da política tradicional, continuam a protestar e enfrentar o capital e os
processos econômicos excludentes, propondo uma mudança societária mais
abrangente.
À guisa de um balanço Tarson Núñes discute em Democraica e Participação no
Rio grande do Sul – um balçanço de 25 anos de experiências, o acúmulo
histórico, político e social das experiências da sociedade civil a partir da adoção de
processos participativos por governos de esquerda
O último artigo de Governos de esquerda e qualidade da democracia:
avaliando a participação no Brasil, Chile e Venezuela, de Kátia Alves
Fukushima, analisa a “participação” nos governos de esquerda de Lula da Silva no

18
Brasil (2003-2010), Michelle Bachelet no Chile (2006-2010) e Hugo Chávez na
Venezuela (1999-2013) e como suas gestões fortalecem ou não a dimensão da
participação social.

***

A coletânea enseja contribuir com o estudo e análise da conjuntura política na


América Latina, a partir de diversas dimensões e perspectivas teóricas e
metodológicas. Tem ainda o desafio de analisar no conjunto a realidade latino-
americana, compreendendo como o fenômeno democrático se articula no cone sul,
assumindo contornos distintos daquelas democracias do norte.

19
SOBRE AS AUTORAS E AUTORES

Alessandra Maia Terra de Faria é doutora em Ciências Sociais pela Puc-Rio,


professora de Teoria Política junto ao Departamento de Graduação em Ciências
Sociais e na especialização Lato Sensu em Sociologia Política e Cultura, na
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Contato:
alessandramtf@gmail.com

Ana Quele Passos, é Cientista Social pela Universidade Federal do Recôncavo da


Bahia (UFRB). Pesquisadora do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação
Científica (PIBIC/UFRB) vinculada ao Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq) e pesquisadora do Grupo de Estudo e Pesquisa em
Política e Sociedade (GEPPS/UFRB).

Beatriz Lourenço é Mestra em Ciência Política pelo PPGCP da UFF.

Camila Oliveira do Valle, Professora de Direito da Faculdade Internacional


Signorelli. Membro do Laboratório de Estudos sobre Hegemonia e Contra-
Hegemonia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Foi professora
substituta do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal
Fluminense (UFF). Foi Coordenadora adjunta e professora do Curso de Direito da
Faculdade Interamericana de Porto Velho (UNIRON). Possui doutorado (2013) e
mestrado (2009) em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense, com
período de doutorado sanduíche na École des Hautes Études en Sciences Sociales
(EHESS). É bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC). Participa de eventos acadêmicos internacionais e nacionais, tendo
apresentado artigos científicos em diferentes países, entre eles, Áustria, França,
Espanha, Hungria, Colômbia, Chile e El Salvador. Reali za pesquisas
interdisciplinares, com ênfase em Teoria Política e Social, Teoria do Direito e
Teoria do Estado, Organização do Estado e dos Poderes.

Cláudio André de Souza Possui Graduação com habilitação em Ciência Política


(2009), Mestrado (2011) e Doutorado (2016) em Ciências Sociais pela Universidade
Federal da Bahia (UFBA). Atualmente é Professor Adjunto da Universidade da
Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), Campus dos
Malês (BA). Possui experiência de pesquisa nos seguintes temas: democracia,
participação, movimentos sociais, representação, partidos políticos e protestos.

Danilo Uzêda da Cruz, Doutorando em Ciências Sociais - Universidade Federal


da Bahia - UFBA; Mestre em Desenvolvimento Regional e Urbano - Universidade
Salvador - UNIFACS; Especialista em Docência do Ensino Superior, Faculdade de
Ciências e Tecnologia - FTC; Graduando em Ciências Sociais, Universidade Federal
da Bahia - UFBA; e, Graduado em História, Universidade Estadual de Feira de
Santana - UEFS. Tem experiência na área de História com ênfase em História
Contemporânea, e em Ciência Política com pesquisas em Políticas Públicas,
Desenvolvimento Territorial e Planejamento de Políticas Públicas. Lecionou como

20
professor substituto no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal
da Bahia. Atuou como técnico em desenvolvimento rural no Movimento de
Organização Comunitária - MOC e em projetos de formação de trabalhadores
como o INTEGRAR/CNM e SESI. Foi professor substituto da Universidade Federal
da Bahia/Departamento de Ciência Política. Nos últimos anos vem desenvolvendo
atividades de assessoria, acompanhamento e elaboração de projetos junto ao
Governo do Estado da Bahia, atuando nas Secretarias de Ciência, Tecnologia e
Inovação, Planejamento e Desenvolvimento Urbano, quando foi Secretário
Executivo do Conselho Estadual das Cidades e no Ministério do Desenvolvimento
Agrário - MDA. Desenvolve pesquisa sobre Políticas Públicas, Planejamento
Territorial, Pobreza e Participação Política. Atua como Coordenador de Projetos
de Inclusão Produtiva na Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional -
CAR/SDR.

Fabricio Pereira da Silva Professor Adjunto do Departamento de Estudos


Políticos e Professor do Quadro Permanente do Programa de Pós-Graduação em
Ciência Política da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
Colíder do Centro de Análise de Instituições, Políticas e Reflexões da América e da
África (CAIPORA), Grupo de Pesquisa sediado na UNIRIO. Investigador Associado
do Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane (CEA-UEM)
de Moçambique. Professor da Maestría en Estudios Contemporáneos de América
Latina da Universidad de la República (UdelaR) do Uruguai. Professor do Quadro
Permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade
Federal Fluminense (UFF). Graduou-se em História pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ), fez o Mestrado em História Social pela UFRJ e o Doutorado
em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro
(IUPERJ), no qual foi premiado com a bolsa Faperj Nota 10. Trabalha com os
seguintes temas: pensamento político na África e na América Latina; participação
popular; teoria democrática; governos de esquerda na América Latina.

Fidel Terenciano, Doutorando (PhD) em Ciência Política e Instituições Públicas


na Universidade Federal de São Carlos - UFSCar – Brasil. Politólogo, Mestre e
Analista Politico. Pesquisador no Centro de Estudos de Partidos Políticos -
UFSCar/CNPq – Brasil e no Centro de Investigação da UCM - Pemba. Consultor
independente e Assessor Politico do Presidente do Município de Pemba. Professor
nas turmas de Pós Graduação em Administração Publica e Gestão de Recursos
Humanos – Universidade Católica de Moçambique – FGTI; e na Escola Superior de
Economia e Gestão – ESEG – Pemba (Disciplinas: Trabalho fim de Curso e Gestão
Publica). Publicou artigos: Avaliação da Qualidade de Ensino Superior em
Moçambique – Revista REID (2016); Democracia e Democratização na África –
Revista Estudos Africanos – Brasil (2017), Liberdade e Igualdade em Tocqueville –
Revista Amazonas em Foco – Brasil (2015); Papel de Lideres de opinião na
Estruturação das ações sociais e politicas – Revista Kulumbela – UP (2017). Livros
Organizado e Publicado: Sociedade, Política e Democracia Eleitoral em
Moçambique: 2013 – 2014 (2016). Revisor da revistas (REVISTA AMAZONIA EM
FOCO: Ciência e Tecnologia – Universidade Amazônia. E-mail:
fideldeanarosa@gmail.com / fidelt@ufscar.br.

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Kátia Alves Fukushima: Doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de
São Carlos/UFSCar. Atualmente é membro do Núcleo de Estudos dos Partidos
Político Latino-americano (NEPPLA) da UFSCar e pesquisadora do Centro de
Política Comparada da Universidade Federal do Espírito Santo (CPC/UFES). Suas
áreas de pesquisa são: Instituições Políticas; Teoria democrática; Governos de
Esquerda; Qualidade da democracia, Participação e América Latina.

Laís Siqueira Ribeiro Cavalcante, graduada em Relações Internacionais pela


Universidade Estadual Paulista – UNESP (2014). Mestra em Políticas Públicas pela
Universidade Federal do ABC – UFABC (2017). Fez curso de extensão em nível de
mestrado em Desenvolvimento Humano Sustentável pela Università Degli Studi
Milano Bicocca, Milão, Itália (2015). Atualmente é professora voluntária do curso
de Controle Social das Políticas Públicas da Escola Superior de Gestão e Contas
Públicas Conselheiro Eurípedes Sales do Tribunal de Contas do Município de São
Paulo.

Luis Felipe Miguel, é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, professor


titular do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília e pesquisador
do CNPq. Foi vice-presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores em
Comunicação e Política (gestão 2013-2015). É autor dos livros Revolta em
Florianópolis (Florianópolis: Insular, 1995; 2ª edição: Brasília: Edições Demodê,
2016); Mito e discurso político (Campinas: Editora Unicamp, 2000); Política e mídia
no Brasil (Brasília: Plano, 2002); O nascimento da política moderna (Brasília:
Editora UnB, 2007; edição revista e ampliada, Brasília: Editora UnB, 2015); Mídia,
representação e democracia (organização com Flávia Biroli; São Paulo: Hucitec,
2010); Coligações partidárias na nova democracia brasileira(organização com
Silvana Krause e Rogério Schmitt; São Paulo: Editora Unesp, 2010); Caleidoscópio
convexo: mulheres, política e mídia (com Flávia Biroli; São Paulo: Editora Unesp,
2011); Teoria política e feminismo: abordagens brasileiras (organização com Flávia
Biroli; Vinhedo: Horizonte, 2012); Teoria política feminista: textos
centrais (organização com Flávia Biroli; Niterói: Eduff, 2013); Democracia e
representação: territórios em disputa (São Paulo: Editora Unesp, 2014); Feminismo
e política: uma introdução (com Flávia Biroli; São Paulo: Boitempo, 2014); A
democracia face às desigualdades: problemas e horizontes (organização com Flávia
Biroli, Danusa Marques e Carlos Machado; São Paulo: Alameda,
2015); Desigualdades e democracia: o debate da teoria política (organização; São
Paulo: Editora Unesp, 2016); Aborto e democracia (organização com Flávia Biroli;
São Paulo: Alameda, 2016); Notícias em disputa: mídia, democracia e formação de
preferências no Brasil (com Flávia Biroli; São Paulo: Contexto, 2017); Coligação e
disputas eleitorais na Nova República (organização com Silvana Krause e Carlos
Machado; São Paulo: Editora Unesp, 2017); Encruzilhadas da
democracia (organização com Flávia Biroli; Porto Alegre: Zouk, 2017, no
prelo); e Consenso e conflito na democracia contemporânea (São Paulo: Editora
Unesp, 2017, no prelo).

Mayra Goulart Silva Professora de Teoria Política e Política Internacional do

22
Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais (PPGCS) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) da
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Coordenadora do
Observatório dos Países de Língua Oficial Portuguesa (OPLOP/UFF),
Pesquisadora Visitante e Pós doutoranda do CIES (ISCTE/IUL). Possui graduação
em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2006) e em
Relações Internacionais pela Universidade Estácio de Sá, mestrado em Ciência
Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (2008) e
doutorado em Ciência Política (2013) pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos
(IESP-UERJ). Tem experiência na área de Ciência Política, com ênfase em América
Latina, Teoria Política e Política Comparada.

Maria Victória Espineira González. Possui aperfeiçoamento em estudos


avançados em teoria política (IUPERJ-CAPES),mestrado em Ciências Sociais pela
Universidade Federal da Bahia (1990) e doutorado em Filosofia e Ciência da
Educação pela Universidade de Santiago de Compostela (2000)e Pós Doutorado na
Universidade de Buenos Aires- UBA. Atualmente é professora titular da
Universidade Federal da Bahia. Tem experiência na área de Ciência Política e
Sociologia Política, com ênfase em Representação Política e Participação; Interface
entre o Estado e Sociedade, atuando principalmente nos seguintes temas:
democracia contemporânea, esfera publica e a relação estado, partidos políticos e
movimentos sociais. Participa da linha de pesquisa Esfera Publica e Atores Políticos
que compõe o Grupo de Pesquisa/ CNPQ Espaço, Poder e Desigualdades

Maurício F. Silva, Professor Adjunto Associado da Universidade Federal do


Recôncavo da Bahia (UFRB). Vinculado à Graduação e Pós-Graduação em Ciências
Sociais, atua como docente e pesquisador nas áreas de Teoria Política, Sociologia
Política, Poder e Política e Mídia. Coordena o Grupo de Estudo e Pesquisa em
Política e Sociedade (GEPPS-UFRB).

Mônica Dias Martins, Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do


Ceará. Professora da UECE, lecionando no programa de pós-graduação em
sociologia e no doutorado em Políticas Públicas. Coordenadora da rede de pesquisa
Observatório das Nacionalidades e editora da revista Tensões Mundiais
(www.tenseosmundiais.net).

Paula Baltar Mestranda em Ciência Política pela Universidade Federal


Fluminense (UFF). Possui graduação em Ciência Política pela Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro (2015). Pesquisadora no CAIPORA (Centro de Análise
de Instituições, Políticas e Reflexões da América e da África). Passou um período
como pesquisadora visitante na Universidad Nacional de Cuyo (Argentina) no
Programa de Investigaciones sobre Dependencia Académica en América
Latina.Tem experiência na área de Ciência Política, com ênfase em Teoria Social e
Política Brasileira e Pensamento Político Latino-Americano e Estudos Pós-
Coloniais.

23
Renata Peixoto de Oliveira, é Cientista Política pela UFMG e Professora adjunta
do curso de Relações Internacionais e Integração e dos Programas de Pós-
Graduação PPG-ICAL e PPG-PPD da Universidade Federal da Integração Latino-
Americana (UNILA). Coordenadora do Grupo DALC-ALACIP e CESPI-América do
Sul (UNILA). Correio institucional: renata.oliveira@unila.edu.br

Ricardo Espinoza Toledo, Profesor Investigador da Universidad Autónoma


Metropolitana - Unidad Iztapalapa do Departamento de de Ciencias Sociales y
Humanidades / Departamento Sociología/ Área de Ciencia Política
Doutor em Ciencia Política por Centre d´Analise Comparative des Systèmes
Politiques, Ecole Doctorale des Sciences Politiques, Universidad de París I-
Sorbona. Mestre em História Política por la Ecole des Hautes Etudes en Sciences
Sociales, París, França. Licenciado em Ciência Política por la Universidad
Autónoma Metropolitana, Unidad Iztapalapa, Membro do Sistema Nacional de
Investigadores nivel I, Especialista nos temas: Relaciones Ejecutivo-Legislativo; La
representación política y partidos políticos

Rodger Richer de Santana Rocha, Graduado em Ciências Sociais na UFBA (2017)


e mestrando em Ciência Política (UNICAMP), foi bolsista do Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (2011-2012), estagiário na
Câmara Municipal de Salvador (2013-2015) e membro do Conselho Nacional de
Promoção da Igualdade Racial (CNPIR) (2015-2017).

Ruy Aguiar Dias, Sociólogo, Possui graduação em Sociologia pela Universidade


Federal da Bahia (1989) e doutorado em Filosofia y Ciencias de La Educación -
Universidad de Santiago de Compostela (1999). Atualmente é professor titular da
Universidade do Estado da Bahia. Tem experiência na área de Ciência Política, com
ênfase em Opinião Pública, Atitudes e Ideologias Políticas, atuando
principalmente nos seguintes temas: novas tecnologias, educação ambiental,
relações públicas, Representações Sociais, valores e opinião pública e pesquisas de
opinião

Sara Mabel Villalba es investigadora activa del Consejo Nacional de Ciencia y


Tecnología (CONACYT), de Paraguay. Profesora titular de la Universidad Católica
(UCA) y profesora contratada de la Universidad Nacional de Asunción (UNA).
Posee un Doctorado en Procesos Políticos Contemporáneos y Máster Universitario
en Ciencia Política (Universidad de Salamanca, España). Es Máster en Ciencia
Política y Licenciada en Ciencias de la Comunicación (Universidad Nacional de
Asunción, Paraguay).

Silvio César Benevides, Professor Adjunto da Universidade Federal do Recôncavo


da Bahia (UFRB). Desenvolve pesquisas na área de Sociologia e Política, com ênfase
em movimentos sociais, movimento estudantil, movimentos artístico-culturais,
cultura política, participação política e juventude. Coordena o Grupo de Estudos e
Pesquisa em Política e Sociedade (GEPPS-UFRB).

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Tarson Núñez, Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (2016), possui mestrado em Ciência Política e graduação em
Licenciatura em História pela mesma universidade (1984). Tem experiência prática
profissional na área de Gestão Pública e assessoria a movimentos sociais na área
sindical e junto a movimentos sociais urbanos. Foi assessor da CUT RS, assessor
parlamentar na Assembléia Legislativa do RS, coordenador do Gabinete de
Planejamento da Prefeitura Municipal de Porto Alegre (1993), Diretor do
Departamento de Desenvolvimento Regional e Urbano da Secretaria de
Planejamento do estado do Rio Grande do Sul (2000/2002) e coordenador da
Assessoria de Cooperação e Relações Internacionais do Gabinete do Governador
do estado do Rio Grande do Sul (2011/2014). Atuou como consultor do Programa
de Gestão Urbana para a América Latina e o Caribe da UN-Habitat e em projetos
para o Banco Mundial, para a University College, de Londres e para a FAO. Atuação
acadêmica e profissional focada nos seguintes temas: relações internacionais,
economia criativa, indústria cultural, movimentos sociais, políticas públicas,
participação popular na gestão pública, orçamento participativo, greves e história
da América Latina. Atualmente atua como analista pesquisador em Ciência Política
na Fundação de Economia e Estatística (FEE) do estado do Rio Grande do Sul.

Thais Joi Martins, Professora Adjunta da Universidade Federal do Recôncavo da


Bahia (UFRB). É pesquisadora - NESEFI (Núcleo de Estudos em Sociologia
econômica e das finanças), do NESPOM (Núcleo e Estudos de Pesquisa sobre
Sociedade, Poder, Organização e Mercado) e integra o Grupo de Estudos e Pesquisa
sobre Política e Sociedade (GEPPS-UFRB).

25
DEMOCRACIAS E DEMOCRATIZAÇÃO: PERCURSOS
EPSTEMOLÓGICOS E QUESTÕES MÉTODO
26
27
1. COLONIALIDADE DO SABER, DEPENDÊNCIA EPISTÊMICA E OS
LIMITES DO CONCEITO DE DEMOCRACIA NA AMÉRICA LATINA

Fabricio Pereira da Silva


Paula Baltar
Beatriz Lourenço

Introdução

Esse trabalho discute as noções de “democracia” e de “golpe”, a partir de uma


reflexão sobre a dependência epistêmica – e consequentemente acadêmica –
vivenciada pelas ciências sociais na América Latina, particularmente pela ciência
política. Isso será realizado partindo-se de uma abordagem baseada na teoria
crítica, entendida de forma ecumênica – o que implica em recolher contribuições
analíticas de teorias marxistas, dependentistas, pós-coloniais, pós-estruturalistas,
decoloniais, entre outras fontes. Lançaremos mão mais especificamente aqui das
noções de colonialidade (do saber) e de dependência (epistêmica). A produção
acadêmica latino-americana de um modo geral é atravessada por diversos fatores
relacionados a seu passado colonial e posterior posição dependente no sistema
internacional. Desde o início do processo de conquista e colonização da América,
as relações de poder desenvolvidas na região engendraram um processo de
constrangimento, silenciamento e subordinação que se manteria e se reinventaria
mesmo após o fim formal da colonização. Mesmo que independentes, as nações
latino-americanas se viram influenciadas por inúmeras estruturas de poder
derivadas das relações coloniais. Dessa maneira, a colonização na América finda,
mas estruturas de dominação e dependência internacional são mantidas.
Nas sociedades latino-americanas em formação, se mantiveram distinções
originadas das relações coloniais, bem como uma relação de subordinação de suas
nascentes intelectualidades em relação a seus congêneres dos países centrais. Desde
o próprio momento de constituição dessas intelectualidades, deu-se o (auto)
reconhecimento delas enquanto periféricas. Elas foram marcadas desde o princípio
por uma “consciência de ser periferia” (Devés Valdés, 2014). As ciências sociais

28
latino-americanas herdam esse lugar periférico, estando permeadas por
problemáticas relacionadas ao seu lugar de desenvolvimento e às suas condições de
legitimação externa e interna. A partir das noções de colonialidade do saber e de
dependência epistêmica (e acadêmica), tentaremos entender as limitações das
ciências sociais latino-americanas e particularmente da ciência política, de seu
espaço e de seu poder analítico – em contraposição a um sistema valorativo do
conhecimento baseado numa particular localização geopolítica do saber que se
apresenta como “universal”. Procuraremos fazê-lo a partir da ideia de “democracia”
e a possibilidade de sua ruptura (o “golpe de Estado”) exatamente porque
consideramos que os estudos em torno do tema constituem a preocupação central
da ciência política da região nas últimas décadas.
Na primeira parte do trabalho, será defendido brevemente que há uma relação
entre a colonialidade do saber e a dependência epistêmica (e consequentemente
acadêmica) de um lado, e limitações e insuficiências teóricas e conceituais
vivenciadas pelas ciências sociais latino-americanas (particularmente pela ciência
política) de outro. Na segunda e na terceira partes, nos concentramos na reflexão
sobre teoria democrática e as democracias latino-americanas. Discutiremos
especificamente as noções de democracia e de golpe, de modo a mostrar como uma
compreensão desses dois conceitos restrita e inadaptada a realidades e a
temporalidades distintas se mostra problemática para a compreensão de diversos
aspectos da realidade latino-americana contemporânea. Essa inadequação fica
particularmente evidente ao se estudarem fenômenos como a crise das instituições
representativas, bem como os neogolpismos. Ao discutir os conceitos de
democracia e de golpe, serão mencionadas algumas reflexões e conceitos de
autores que vêm trabalhando a partir de teorias contra-hegemônicas1 e menos
eurocêntricas da democracia e da política de um modo geral. Estes esforços
poderiam constituir-se em embriões de uma reflexão democrática desde o Sul
Global.

1
O texto é atravessado pela noção de hegemonia e de contra-hegemonia em sentido gramsciano. Optou-se
por essa terminologia em lugar de outras de aparência mais “neutra” como por exemplo “majoritária” e
“minoritária”, exatamente para explicitar que a reflexão política está atravessada por conflitos e disputas
que eventualmente geram aparentes consensos temporários, como em qualquer outro campo. O
fundamental é que essas disputas sejam agônicas e não antagônicas, ou seja, entre posições adversárias e
não inimigas (no sentido definido por Mouffe, 2005).

29
Colonialidade do saber e dependência epistêmica

Com o desenrolar dos séculos, o colonialismo se consolidou na América Latina de


tal forma que, mesmo com a independência e formação de Estados nacionais, a
lógica colonial permaneceu nas estruturas sociais, imbricada com a expansão e
impacto do imperialismo e do capitalismo no subcontinente. Esta lógica, que foi
construída no imaginário dos colonizados ao longo do tempo, se naturalizou na
forma de uma colonização internalizada. O que resulta desse longo processo é
claramente visível nos dias de hoje. Como exemplo temos a manutenção da
colonialidade do poder e de uma dependência cultural (não apenas social e
econômica), que implicam na hegemonia eurocêntrica como perspectiva de
conhecimento.
Neste contexto de colonialidade do poder, as populações dominadas têm suas
identidades submetidas à hegemonia eurocêntrica, que define o que é
conhecimento. Assim, o imaginário construído ao longo da formação de um sistema
colonial/moderno resulta na mutilação epistemológica, a partir da dominação
hegemônica do pensamento eurocêntrico, restringindo progressivamente a ecologia
de saberes e estabelecendo linhas abissais entre eles (Santos, 2010).
Ao longo de toda a modernidade foi se estabelecendo uma soberania em relação à
forma como se pensava e se produzia conhecimento. Essa soberania era pautada em
modelos epistemológicos hegemônicos dentro da ciência moderna, de forma a
subalternizar as formas desviantes daquela institucionalizada, impedindo sua
emergência ou cerceando seu desenvolvimento. Ao contemplarmos a relação
intrínseca entre modernidade e colonialidade, é difícil não pensar nas relações entre
nações na modernidade sem levar em consideração a dimensão colonial. É pari-
passu com a modernidade e o imperialismo colonial das nações europeias,
associados intrinsecamente à expansão do capitalismo, que a colonialidade do
poder e do saber se originam (Quijano, 2005).
A teoria de Quijano sobre a colonialidade propõe uma concepção da diferenciação
colonial e epistêmica, onde a colonialidade se transfere do âmbito do poder para o
campo do saber, construindo a colonialidade do saber que age de forma a manter a

30
hegemonia eurocêntrica como perspectiva superior do conhecimento. A formação
do contexto internacional de sistema-mundo e do paradigma moderno/colonial faz
com que o fim do colonialismo não resulte no fim da colonialidade. Mesmo após a
independência do jugo colonial de outras nações, ela permanece permeando as
relações. Desse modo, o jogo de poder e dominação em diversos aspectos se
mantém, como no âmbito do conhecimento. As ciências sociais se constroem neste
espaço de dominação e são atravessadas por essas relações de poder. O
conhecimento se desenvolve dentro do espaço que lhe é “disponibilizado”, e a partir
da episteme “oferecida”. Essa episteme está sustentada numa estrutura de poder que
garante a hegemonia dos dominantes, ao mesmo tempo que deslegitima as
manifestações contra-hegemônicas. Desta forma, o conhecimento está organizado
segundo os centros de poder e subordina as regiões periféricas. Ao mesmo tempo,
esse conhecimento hegemônico se constrói e difunde segundo a ideia moderna de
ciência universal, ou seja, se propaga na periferia de forma a criar a ilusão de um
conhecimento abstrato e universal (Tirado, 2009).
A ideia de conhecimento universal legitima o pensamento eurocêntrico como único,
da mesma forma que se deriva dele. O estabelecimento dessa proposição opera de
forma silenciosa a calar formas de pensar à margem do padrão. Esta forma de
genocídio intelectual pode ser considerada uma violência epistêmica. Esta atinge a
episteme de um indivíduo/povo e está principalmente ligada ao contexto histórico
da modernidade e do colonialismo. Se apresenta como a violência relacionada a
determinado conhecimento, podendo ser entendida como uma forma de exercício
de poder simbólico de um indivíduo, grupo ou nação sobre um outro através do
conhecimento científico, como forma de invisibilizar este outro (Spivak, 2010). A
violência epistêmica se apresenta como uma relação de poder e dominação
perpetrada no campo do conhecimento, permitindo que determinada visão de
mundo se imponha sobre outras, impossibilitando sistemas de conhecimento e
produção de saberes alternativos e alterando as visões dos povos colonizados
(Gnecco, 2009).
Dessa maneira, cometer o ato de violência epistêmica seria obstruir e diminuir
deliberadamente a validade de métodos e tentativas de produção de conhecimento
distintos dos ocidentais. Muitas vezes as epistemologias não-hegemônicas são

31
consideradas insuficientemente elaboradas e ingênuas, além de provincianas ou
específicas, sem valores universalizáveis, sendo relevantes no máximo para a
compreensão de fenômenos locais. Essa atitude resulta no não reconhecimento de
reflexões que não se adéquem ao padrão instituído. Ao negar a determinada
produção um espaço de reconhecimento, além de manter leituras hegemônicas há
o impedimento de que sejam reconhecidas leituras autônomas produzidas na
periferia.
Consideramos então que,

“ainda que o pós-colonialismo não tenha sido capaz ou


preocupado com a elaboração de uma teoria da democracia,
suas contribuições são fundamentais para sua
de(s)colonização. Como se sabe, a teoria política
democrática contemporânea pouco assimilou aquilo que
genericamente pode ser enquadrado como os olhares e as
vozes do Sul Global – uma categoria por certo essencialista
e talvez ultrapassada, mas que ainda representa as relações
de subalternidade e colonialidade dos poderes político,
econômico e cultural, no plano da metáfora hemisférica que
remete à própria noção de desigualdade em nível mundial
(Ballestrin, 2016, p. 394)”.

Observar os processos que resultam em uma dominação no campo da produção de


conhecimento é vital para que se compreenda a situação na qual as ciências sociais
latino-americanas (parte daquele Sul Global) se encontram. Essa tarefa tem sido
enfrentada por estudiosos latino-americanos desde a segunda metade do século XX,
a partir de perspectivas críticas diversas como a marxista, dependentista, pós-
estruturalista, pós-colonial, decolonial, etc. Como resultado do legado cultural,
histórico e político do colonialismo, foi desenvolvida uma relação de dependência
no âmbito da produção de saber, resultante de uma estrutura de dominação que no
campo do conhecimento se manifesta através da colonialidade do saber. O que
resulta deste processo é o que chamamos de dependência acadêmica. Trata-se de
uma relação que no campo das ideias implica na dominação de padrões de
investigação, ensinamento e estudo. Essa dependência, apesar de não impedir a
produção de conhecimento fora da perspectiva hegemônica, nega espaço para o seu
reconhecimento e desenvolvimento.

32
De forma não heterônoma, a dependência acadêmica se constrói a partir do legado
eurocêntrico que deslegitima o conhecimento periférico em nome da manutenção
de um conhecimento dito universal, mas circunscrito geo-historicamente. Se
constrói a partir de uma estruturação desigual tanto da produção quanto da
distribuição do conhecimento no âmbito científico internacional, ou seja, a partir
uma imposição externa de divisão do trabalho científico a partir da relação centro e
periferia (Beigel, Sabea, 2014).
Conceitos, ideais, temáticas e métodos são definidos e controlados a partir das
ciências sociais dos países centrais. A institucionalização desses padrões torna as
ciências sociais não hegemônicas dependentes da importação de modelos
produzidos em outras realidades, mas “dotados” de aparente universalidade.
Entretanto, quando se observa que a relação de dependência acadêmica não é
heterônoma, há que se dedicar à observação da produção autóctone de
conhecimento, e a produzir discursos alternativos com base em experiencias
históricas locais e regionais.
A desconstrução desta relação e o questionamento da ordem instituída no meio
acadêmico se faz necessária para o desenvolvimento da pesquisa científica em países
periféricos, fazendo com que as discussões em torno das ciências sociais não sejam
realizadas de forma unilateral desde o centro, mas que observe também as
contribuições originárias das periferias sem que estas sejam deslegitimadas ou
subalternizadas. É necessária a compreensão de que o mundo é um lugar complexo,
diversificado e multicultural. Entretanto, a modernidade se apresenta como um
lugar histórico no qual a produção do conhecimento científico é ditada segundo um
modelo único de epistemologia, o que resulta na descontextualização do
conhecimento e impossibilita a emergência de outras formas de conhecimento para
além das definidas por este paradigma.
O predomínio de modelos teóricos e analíticos produzidos para outras
realidades explicita a necessidade das ciências sociais latino-americanas pensarem
de forma mais autônoma, ou seja, produzirem seus próprios modelos teóricos
segundo suas experiências e realidades. Se mostra cada vez mais difícil encarar as
mudanças e os processos sociopolíticos ao redor do globo a partir de modelos
analíticos predefinidos, autodotados de universalidade. Isso daria espaço para a

33
produção de modelos analíticos a partir de experiências relacionadas às realidades
nas quais tais modelos serão aplicados, contribuindo para o desenvolvimento de
Epistemologias do Sul e para o incremento da ecologia de saberes (Santos, op. cit.).
Vamos procurar entender então de que modo a colonialidade do saber e o fenômeno
da dependência epistêmica (e acadêmica) afetam as reflexões da ciência política
latino-americana, tomando como base o debate dos conceitos de democracia e de
golpe – na medida em que a reflexão sobre a democracia (e sua ruptura) tem sido
central para a disciplina na região nas últimas décadas.

Democracia, democracias

Nas últimas décadas, a democracia se tornou um significante com sentido positivo,


bem como um elemento central para as reflexões da maior parte da literatura
produzida pela ciência política na América Latina. Estas reflexões passaram por
distintas fases. De forma resumida, pode-se afirmar que, de meados dos anos 1970
a meados dos 1980, o debate se concentrou no tema da “transição” democrática
(O’Donnell, Schmitter, Whitehead, 1986). Do final dos anos 1980 ao final dos 1990,
multiplicaram-se as formulações acerca da “consolidação” democrática
(Mainwaring, O’Donnell, Valenzuela, 1992; Linz, Stepan, 1999). Finalmente, desde
os anos 2000, tem se refletido sobre meios de se avaliar e medir a “qualidade” das
democracias (Altman, Pérez-Liñan, 2002; Diamond, Morlino, 2005; Levine,
Molina, 2007; Alcántara Sáez, 2009). Grosso modo, é como se a preocupação em
meio às ditaduras em quase toda a região tivesse sido encontrar caminhos para sair
delas na direção de regimes democráticos. Posteriormente, como estabilizar esses
novos regimes. Finalmente, como melhorá-los.
No entanto, há diversos problemas nesse tipo de reflexão. Ela parece estar sempre
a sugerir que há um caminho unívoco a ser percorrido, que iria desde as autocracias
até as “melhores” democracias. Nesse argumento está implícita uma noção de
progresso típica dos paradigmas da modernidade, e eventualmente uma ideia de
irreversibilidade evolutiva. Também está implícito qual é o parâmetro a definir as
melhores democracias: os regimes políticos dos países centrais da modernidade.
Para definir o que é democracia e o que é uma “boa” democracia, supõe-se que há

34
um único modelo de democracia, e a partir dele define-se quando os regimes
podem ser considerados democracias, quando são democracias “estáveis” e
“irreversíveis” (como se isso fosse possível), e finalmente entre estas quais são as
“melhores” e as “piores”.
Ademais, essas análises são amplamente calcadas na avaliação e comparação de
instituições. Tal abordagem institucionalista é limitadora, mas isso não deve
surpreender nesse caso, na medida em que as instituições vêm a ser a principal
(para não dizer exclusiva) preocupação de quase toda a ciência política, em seu
centro e consequentemente na América Latina. Talvez mais problemático seja
constatar que, a partir do momento em que se parte de um modelo implícito (as
democracias dos países centrais) para definir o que é democracia e quais dentre
elas são as melhores, não é muito difícil imaginar quais serão as instituições
consideradas essenciais para a constituição de democracias – instituições que
devem ser replicadas em todas as partes.
Consideramos então que os estudos sobre democracia na região se inserem num
campo de preocupações excessivamente delimitado pela ciência política latino-
americana hegemônica – que é epistemologicamente dependente da ciência
política dos países centrais. Em nossa região, depois de uma “transitologia” e de
uma “consolidologia”, temos uma “qualitologia” a definir como nossas democracias
estão se portando, e como deveriam se portar.
No entanto, devemos defender alternativamente que democracia é mais do que
instituições de representação, mediação, seleção de elites: é também um conjunto
de crenças e valores e um modo de vida, carregados de potencial igualitário. Isso
permite recorrer a concepções de democracia mais expandidas e substantivas,
incluindo elementos de justiça redistributiva (Pereira da Silva, 2015). Democracia
é uma noção polissêmica e em constante desenvolvimento e disputa que, no
entanto, foi padronizada (logo empobrecida) nas últimas décadas – e os setores
hegemônicos da ciência política no centro e na periferia têm responsabilidade
nesse processo. Em suma, deve-se expandir a noção de democracia, reconhecer a
pluralidade do conceito e de suas práticas, bem como aceitar sua historicidade (a
democracia assumiu diversos sentidos e formas no passado, e adquirirá outros mais
no futuro). Trata-se de ideias contra-hegemônicas no campo, hegemonizado por

35
uma perspectiva analítica institucionalista e de viés liberal, ademais pouco afeita
ao reconhecimento de que democracia é um significante em disputa, definido
pelos conflitos sociais e simbólicos, que por isso terá significados diversos de
acordo com o lugar e ao longo do tempo.
Para o debate sobre quais regimes latino-americanos são democráticos, e quais
entre estes apresentam democracias de mais “qualidade”, reconhecer as premissas
acima mencionadas não é pouco. Essas abordagens alternativas interfeririam em
suas principais premissas, em suas metodologias e consequentemente na produção
de seus resultados. Desconhecer a “demodiversidade” de ideias e instituições em
torno do que é democracia implica em consequências sérias para os regimes
democráticos realmente existentes – particularmente se estes são periféricos e se
fomentam projetos e alianças internacionais alternativas. Sua legitimidade interna
e externa, o tratamento que recebem da mídia, sua capacidade de financiamento,
mesmo a inviolabilidade de suas fronteiras, tudo isso passa a ser determinado a
partir de um “sarrafo” (o ponto preciso em que um regime se torna democrático, e
a partir dele em que nível ele se constitui numa boa democracia). A literatura sobre
democracia e “qualidade da democracia” define de que material é feito e que
formato tem o sarrafo, bem como qual deve ser sua altura. Isso está em disputa
como em qualquer questão política, o que por vezes é encoberto sob a aparência
de uma objetividade científica. Para Santos e Avritzer (2009), a

“comparação entre os estudos e debates sobre a democracia


nos anos [19]60 e na última década leva-nos facilmente à
conclusão de que em nível global se perdeu demodiversidade
nos últimos trinta anos. Por demodiversidade entendemos a
coexistência pacífica ou conflituosa de diferentes modelos e
práticas democráticas. Nos anos [19]60, se, por um lado, o
modelo hegemônico de democracia, a democracia liberal,
parecia destinado a ficar confinado, como prática
democrática, a um pequeno recanto do mundo, por outro
lado, fora da Europa ocidental e da América do Norte
existiam outras práticas políticas que reivindicavam o status
democrático e o faziam à luz de critérios autônomos e
distintos dos que subjaziam à democracia liberal.
Entretanto, à medida que essas práticas políticas alternativas
foram perdendo força e credibilidade, foi-se impondo o

36
modelo de democracia liberal como modelo único e
universal (pp. 71-72)”.

Em suma, definições formais e atravessadas por valores liberais do que seria


democracia são propostas hegemonicamente pela ciência política em todo o globo
como se fossem os únicos parâmetros possíveis, realistas e científicos (Schumpeter,
1976; Downs, 1999; Sartori, 1994; Bobbio, 2004), e tal visão é replicada pela ciência
política latino-americana. Nessa visão, a democracia é basicamente um sistema de
instituições para a eleição de representantes ou formação de decisões, enquanto os
direitos individuais e grupos minoritários são respeitados. Como na definição de
Schumpeter: “o método democrático é aquele arranjo institucional para chegar a
decisões políticas pelas quais indivíduos adquirem o poder de decidir por meio de
uma disputa competitiva pelo voto do povo” (1976, p. 269). Ou na de Bobbio:
“[democracia é] um conjunto de regras de procedimento para a formação de
decisões coletivas, em que está prevista e facilitada a participação mais ampla
possível dos interessados” (2004, p. 22).
Definir o formato do sarrafo, seu material e sua altura é um problema
particularmente para avaliar a o que é democracia e sua “qualidade” em governos
de esquerda, e o problema aumenta quanto mais à esquerda eles estiverem. Se
temos uma concepção de democracia e do que sejam instituições democráticas
basicamente calcada em valores liberais, será muito difícil considerar que um
governo de esquerda (se ele for efetivamente de esquerda) fará muito pela
democracia. Não é muito difícil observar, por exemplo, que um modelo de
avaliação de “qualidade da democracia” calcado em valores liberais interpretará
como déficits na qualidade quaisquer déficits da estabilidade, que necessariamente
ocorrerão em processos de transformações sociais estruturais. Compreenderão
como ataques às liberdades individuais as eventuais tentativas de pluralizar uma
mídia empresarial oligopolizada e de intervenção estatal. Avaliarão como ameaças
à democracia modificações que afetem o desenho institucional, ainda que sejam
sustentadas por amplas maiorias em plebiscitos ou referendos. Não saberão
valorizar a expansão da participação nas decisões coletivas e na formulação e
implementação de políticas públicas. E assim sucessivamente.

37
Estes governos serão geralmente tratados como “populistas”, no limite como
“autoritários”. “Populista” é uma terminologia de combate, utilizada para atacar
tudo que alguém não gosta politicamente. Geralmente, para atacar tudo que na
periferia se afasta do que observadores do centro e a intelectualidade liberal-
cosmopolita da própria periferia (formada nos cânones do centro) esperam da
representação, das instituições, das lideranças e dos partidos. A única formulação
destacável de populismo com um caráter distinto, a de Laclau (2009), é
interessante mas confunde mais do que explica, se 1) quando falamos de populismo
sempre se compreende outra coisa que não a que Laclau propunha, e se 2) a ideia
laclauniana de significante vazio a ser preenchido implica no limite que toda a
política possa ser populista. Deve-se questionar então a validade de um conceito
que para todos significa algo negativo, e que nessa nova formulação proposta é tão
amplo que pode significar tudo.
Quanto à compreensão desses governos como autoritários, ela parte de uma
concepção elitista, minimalista, procedimental e a-histórica de democracia, na
qual um padrão de instituições e relações entre elas deve ser replicado em todos os
países e em todos os tempos. Se desconsidera a “demodiversidade” espacial e
temporal que sempre existiu, e que está em vias de extinção exatamente por visões
como essa (Santos, Avritzer, op. cit.). E se afasta da concepção histórica da
democracia como o governo do povo, das maiorias, potencialmente e quase
consequentemente dos pobres, na direção de uma ideia da “democracia” como
disputa regulada entre elites ou na melhor das hipóteses entre grupos (se o autor
é respectivamente elitista ou pluralista).
Estudar nossas democracias se apresenta como uma reflexão ainda mais complexa
num momento em que boa parte delas passa por um momento crítico. O que
parecia ser um pressuposto da transitologia e da consolidologia – haveria um ponto
de não retorno no qual as democracias se estabilizam, ponto no qual elas se
aproximariam numa escala evolutiva de seus referentes do Norte – vem se
mostrando questionável. E O’Donnell (2004), um dos grandes referentes daquela
literatura, desenvolveu muito cedo essa crítica (que no seu caso era autocrítica) ao
afirmar que as democracias da região encontram institucionalidades próprias, que
a literatura da qual foi um dos principais referentes não conseguia observar por

38
estar atravessada por aquela referida teleologia. Não se deveria então assumir que
haveria uma direção unívoca que vinha sendo seguida pelas “novas” democracias,
e que estas deveriam ser consideradas “em processo de consolidação” enquanto
isso. Foi uma reflexão como essa que começou a pôr termo ao debate da transição
e da consolidação. Mas que levou ao debate da qualidade: se já temos democracias
“estáveis”, porém distintas das democracias “melhores” dos países centrais,
devemos entender a partir de quais parâmetros as nossas se distinguem daquelas,
e como suas “insuficiências” poderiam ser supridas de modo a torna-las
democracias “melhores”. Não é muito difícil imaginar os problemas associados a
esse raciocínio – problemas que remetem à colonialidade do saber em nosso
campo, e que a aprofundam.

Golpe, novas modalidades de golpes

A estabilidade e a institucionalização de parâmetros mínimos do que é democracia


dentro da concepção hegemônica de democracia produziram uma sensação de
segurança que se mostrou equivocada. Diversos regimes latino-americanos
passaram por recentes rupturas democráticas. Com isso, os cientistas políticos da
região deverão voltar a debater o que define as autocracias, o que determina a
entrada e a saída nesses tipos de regime, como são as novas formas de golpe – e já
se pode observar a emergência de novos conceitos para a compreensão desses
fenômenos, como “golpe institucional”, “golpe parlamentar”, “neogolpismo”,
“golpes do século XXI” (Tokatlian, 2009, 2012; Soler, 2015; Perissinotto, 2016;
Miguel, 2017). Para a melhor compreensão dessas transformações que vamos
vivenciando, será essencial partirmos de noções contra-hegemônicas, menos
eurocêntricas de democracia. Refletir sobre os sentidos e dimensões da democracia
se torna ainda mais premente nesse momento em que, para além de pretensas
democracias “melhores” e “piores”, teremos que retomar os debates sobre as
passagens de democracias a autocracias (e vice-versa), num quadro de golpes
institucionais e de seus desdobramentos. Se nenhuma democracia é satisfatória, se
toda democracia pode ser democratizada, elas também podem passar (e
efetivamente estão passando) por processos de “desdemocratização” (Tilly, 2013).

39
O que grande parte da literatura da ciência política sobre golpes de Estado
apresenta como característica comum é o questionamento da legitimidade ou
legalidade do ato (Martínez, 2014). Métodos, justificativas, protagonistas e a
temporalidade se alteram, a partir do elemento central da exceção, ou seja, de um
momento extra-institucional que é aberto. Os estudos sobre golpes na América
Latina ganharam seu primeiro grande impulso com o ciclo de golpes e ditaduras
militares a partir da década de 1950, no qual as Forças Armadas adquiriram o papel
de protagonistas tanto do ato em si quanto do governo a ser instaurado. Os meios
utilizados eram abertamente violentos, num contexto internacional de Guerra Fria.
Havia a retirada do poder de titulares legítimos com o argumento de resolução de
uma conjuntura caótica pelo estabelecimento de um governo militar de transição.
Como foi dito, grande parte dos Estados latino-americanos viveu nas últimas
décadas um ciclo historicamente excepcional de continuidade político-
institucional fundada em regimes democráticos. No entanto, mesmo com os
processos de redemocratização, houve certa recorrência de quedas presidenciais
na região, por exemplo as de Fernando Collor no Brasil (1992), de Carlos Andrés
Pérez na Venezuela (1993) e de Abdalá Bucaram no Equador (1997). E mais
recentemente começou a se manifestar uma nova forma de ruptura institucional,
divergente das mais tradicionais em método e protagonistas. A queda de Manuel
Zelaya em Honduras (2009), o impeachment de Fernando Lugo no Paraguai (2012)
e o impeachment de Dilma Roussef no Brasil (2016) levaram ao resgate de teorias
sobre golpes e a um debate comparativo com os fenômenos ocorridos durante a
Guerra Fria.
É importante frisar que as teorias sobre instabilidade presidencial divergem do
novo resgate de conceitos relacionados a golpes de Estado, porque se baseiam nas
tentativas de se institucionalizar os governos democráticos na região durante o
período de redemocratização a partir da década de 1980. Eram cunhados termos
como “presidências interrompidas” (Valenzuela, 2004), “caídas presidenciais”
(Hochstetler, 2008), ou “remoção do presidente” (Pérez Liñán, 2007), que não são
suficientes para entender os fenômenos mais recentes, porque ainda carregam a
percepção de um ideal democrático estável, em uma análise da suposta existência
de problemas majoritariamente institucionais atribuídos ao presidencialismo na

40
América Latina. De acordo com Soler (op. cit.), os golpes deste século2 possuem
algumas diferenças substanciais em relação à queda dos presidentes da década de
1990, produzidas no contexto de crise do neoliberalismo. Naquele momento, a
instabilidade política pensada a partir do contexto latino-americano não precisaria
obrigatoriamente ser entendida em chave negativa, mas sim constituinte de um
momento crítico na abertura de um processo de mudança social.
A partir dessa perspectiva, incluir a realidade latino-americana nas tentativas de
teorização sobre golpe de Estado, preservando sua característica mais central, se
torna fundamental para entender a ocorrência recente de tal fenômeno na região.
A onda democrática anteriormente mencionada foi marcada por um período de
aprofundamento e ampliação da generalização do neoliberalismo em toda a
América Latina (Ansaldi, 2014). Tal processo criou um regime democrático em
sentido político, mas não econômico e social:

“Es decir, las sociedades y economías centroamericanas se


han caracterizado por una sistemática exclusión y
pauperización de las amplias mayorías populares, que no
solo no fue abordada adecuadamente por los acuerdos de
pacificación, sino que fue profundizada por las políticas
aplicadas en la fase denominada de “democratización”
(principalmente los años 90) (Aguilar, 2009, p. 703)”.

Isso pode se justificar a partir do estabelecimento do neoliberalismo, enquanto


prática e teoria hegemônica, atrelado a esse processo de redemocratização. A crise
de implementação da lógica neoliberal impulsionou a possibilidade do surgimento
de governos de esquerda na região. Além da desigualdade, a crise econômica no
período de 1998 a 2002, que colocou as políticas neoliberais sob grande crítica, e o
boom das commodities depois de 2002, facilitaram à esquerda latino-americana
conseguir chegar e manter-se no poder por determinado tempo (Levitsky, Roberts,
2011). Apesar das diferenças que podem ser observadas entre os movimentos,
partidos e governos de esquerda, observa-se de maneira evidente a existência de
um ciclo (Pereira da Silva, op. cit.). Mesmo os novos golpes de estado são

2
Ela considera ter havido golpes de Estado contra Jean Bertrand Aristide no Haiti (2004), Manuel Zelaya
em Honduras (2009) e Fernando Lugo no Paraguai (2012), e tentativas de golpes contra Hugo Chávez na
Venezuela (2002), Evo Morales na Bolívia (2008) e Rafael Correa no Equador (2010).

41
indicativos de que esse ciclo de fato ocorreu, exatamente porque podem ter criado
a necessidade de retirada destes governos por parte das elites políticas associadas
às classes dominantes que, na possibilidade de sua continuidade ou por conta do
simples fato de sua existência, orquestraram uma ruptura político-institucional
que pudesse restaurar um novo governo mais diretamente correspondente a seus
interesses políticos e econômicos. Soares de Lima (2012) argumenta que o maior
incentivo do neogolpismo reside na possibilidade de que um presidente
minimamente comprometido com mudanças estruturais no país seja eleito e
consiga aplicar tais mudanças dentro dos parâmetros das instituições existentes.
Tal é a conjuntura da ocorrência dessa nova modalidade de golpes.
De acordo com Bianchi (2016) os novos golpes tiveram outros protagonistas que
não os militares, o que levaria a um alargamento deste conceito de golpe, sendo
necessário para uma análise mais aprofundada sobre o fenômeno a identificação
dos protagonistas, os meios característicos da ação e os fins almejados. De acordo
com o autor,

“Os meios são excepcionais, ou seja, não são característicos


do funcionamento regular das instituições políticas. Tais
meios se caracterizam pela excepcionalidade dos
procedimentos e dos recursos mobilizados. O fim é a
mudança institucional, uma alteração radical na
distribuição de poder entre as instituições políticas,
podendo ou não haver a troca dos governantes.
Sinteticamente, golpe de estado é uma mudança
institucional promovida sob a direção de uma fração do
aparelho de Estado que utiliza para tal de medidas e
recursos excepcionais que não fazem parte das regras
usuais do jogo político”.

Tokatlian (2009) utiliza o conceito de “neogolpismo” para argumentar que tal


fenômeno é diferente dos golpes tradicionais, porque se caracterizavam pela
usurpação ilegal, preconcebida, violenta e repentina do poder por parte das Forças
Armadas e setores sociais de apoio. Para ele, o novo fenômeno tem como
protagonistas os civis, com o apoio tácito ou uma conivência explícita das Forças
Armadas. A violação da constituição do Estado é feita recorrendo a uma violência
menos ostensiva, cujo objetivo é preservar uma imagem institucional mínima e

42
resolver um impasse social sem fundar uma nova ordem duvidosa. Por sua parte,
Soler (op. cit.) define os “golpes de Estado do século XXI” como ocasiões de crise
em que atores do próprio Estado usam de seus mecanismos com o objetivo de
mudar o governo. Buscam anular, inibir ou eliminar, de acordo com a correlação
de forças e a habilidade em impor uma nova vontade política, um processo em
marcha que aparece como uma ameaça à ordem estabelecida, afetando os
interesses dos setores econômicos e políticos concentrados nela. São ações que
visam substituir os produtores da ordem social, alterando o direcionamento dos
processos constituintes originados da crise do neoliberalismo. No conflito entre os
poderes Legislativo e Executivo, também características desse fenômeno, os
parlamentos funcionavam como “refúgios institucionais” objetivando a
reorganização das diferentes posições dos partidos e seus políticos conservadores.
O surgimento de uma “ideologia parlamentarista” marcava uma desvalorização do
poder Executivo (Salas Oroño, 2010).
Nesta nova modalidade, a violência reacionária e física se torna uma linha auxiliar
em comparação com o papel desempenhado pelos grandes meios oligopolizados
na construção de narrativas de crise, centrais para a construção de um quase
consenso a favor do golpe. Dentre os elementos mais comuns desse discurso estão
a ideia de um governo “ilhado” e incapaz de solucionar a “crise”, e a necessidade de
colocar fim ao conflito entre “cidadãos da mesma nacionalidade” (Goldstein, 2012).
Reduz-se, portanto, os elementos que se encontram escondidos, que são o conflito
entre classes e diferentes concepções societárias, pelos discursos de falta de
flexibilidade ou de capacidade de direção do Estado por parte do governo vigente,
bem como das “exageradas” solicitações dos movimentos sociais. Há uma
construção gradual de instabilidade política até que surja um motivo central, um
gatilho, um “acontecimento”: o “mensalão” ou “petróleo” no Brasil, o referendo
tentado por Zelaya no Equador, o enfrentamento de Caraguaty no Paraguai. O
objetivo é a erosão completa da legitimidade do mandatário antes que o ato seja
completado. Os autores do golpe tendem a invocar e fazer uso da opção de uma
saída constitucional e levam o governo ao máximo possível de tensão, com o
objetivo de apresentar discursivamente a destituição como uma alternativa para a
resolução dessa encruzilhada político-social (Soler, op. cit.).

43
Isso quer dizer que ocorre uma transformação na justificativa, quando
consideramos os golpes ocorridos na América Latina no período anterior em
comparação com a nova modalidade de golpe. O que visava a legitimação de ações
consideradas ilegais passa a buscar demonstrar que a manobra é legal ou
constitucional. Tais transformações não mudam o fato de que tal prática segue

“en la agenda de las clases dominantes latinoamericanas, que


nunca han desaparecido […] Las Fuerzas Armadas no
requieren al menos por el momento, implantar el terror. Los
golpes exclusivamente militares, perpetrados por la gran
autonomía concedida a las Fuerzas armadas en tiempos de
Guerra Fría desaparecen, ceden su lugar a los golpes
constitucionales, más limpios y efectivos (Roitman
Rosenmann, 2013, p. 200)”.

Tal característica que remonta ao “efetivo” e ao “limpo” justifica o fato de que o


“golpe tradicional” aparece em retrocesso (Martínez, op. cit.). As conspirações
contra o poder Executivo têm se sofisticado, apesar de não mudarem seu objetivo
central: a queda do chefe do Executivo. Tais atos atuam contra a legitimidade e
golpeiam os fundamentos do Estado de direito, atacando a soberania popular.
Em suma, se deve entender então o neogolpismo como formas de golpe legais na
aparência, e que buscam seu processamento preferencialmente por meio das
instituições vigentes. O ponto principal é que são formas mais processuais e mais
sutis no uso concentrado da força, pois é isso o que dificulta sua condenação aberta
pela comunidade internacional – e por contraste facilita seu reconhecimento por
governos de países centrais que esperaram ou apoiaram essas mudanças de regime.
Todos os golpes de Estado necessitaram de uma institucionalidade para legitimá-
los antes e depois de sua consecução, e geralmente produzem suas
institucionalidades próprias no processo de construção de seu novo regime. O que
se reforçou agora é a utilização das instituições vigentes em sua consecução, que
depois podem ser mudadas ou não. Características do neogolpismo já apareciam
em alguns golpes anteriormente, mas provavelmente nem todas concentradas. O
neogolpismo é novo particularmente em perspectiva histórica e em comparação
com os casos da América Latina no século XX.

44
Como se viu, essas novas modalidades de golpe têm sido nomeadas de muitas
maneiras. Por exemplo, golpe “brando” ou “branco”, termos que não definem
muito mais além de que esses processos buscam ser sutis. Ou golpe “parlamentar”,
tomando como um dado central que o Parlamento seria o caminho principal de
sua consumação, o que talvez não seja correto dado o papel também central do
poder Judiciário em sua posta em prática e reconhecimento, e o próprio caráter de
judicialização do processo. Deve-se insistir então que essas são modalidades de
“neogolpismo” para marcar suas diferenças com o padrão anterior do
subcontinente, e também se poderia defini-las mais precisamente como golpes
“institucionais”, dado seu processamento por meio das instituições vigentes. Talvez
essa insistência nas instituições e nos procedimentos guarde relação com a
concepção hegemônica de democracia enquanto nada mais que instituições e
procedimentos, e particularmente instituições e procedimentos que devem se
reproduzir globalmente de forma acrítica. Desse modo, preservados formalmente
certos simulacros de instituições e procedimentos, não se poderia afirmar que a
democracia foi abandonada. Nossos neogolpistas afinal aprenderam algo com as
concepções hegemônicas eurocêntricas de democracia, impostas a partir dos
países centrais às ciências sociais das periferias, mas ao mesmo tempo abraçadas
com gosto por estas.

Considerações Finais

O debate sobre democracia entre nós terá que lidar com o reconhecimento de que
a ideia de democracias estáveis na região foi superada pela atual conjuntura, de
que em muitos casos teremos que lidar com o avanço de diversos tipos de “pós-
democracias”, e de que a abordagem meramente institucionalista e formalista do
tema não dará conta de seus novos desafios – se tornando ainda mais limitada do
que já vinha sendo para compreender nossa realidade. Isso reforça entre nós a
secular necessidade de produzirmos reflexões locais para a compreensão e
resolução de nossos problemas. Deve-se depreender dessas observações a opção
pelo abandono da possibilidade de um debate universalista em torno das
democracias e da política em geral? Reconhecer o pluralismo institucional e

45
societário que pode estar contido nas diversas formas de democracias, golpes,
autocracias e formas híbridas implica na impossibilidade de se realizar
comparações e se de produzir conceitos de alcance universal ou próximo disso?
Não necessariamente. É fundamental buscar o diálogo crítico com a literatura
sobre teoria democrática e política em geral, não polarizações infrutíferas. Pode-se
aceitar a premissa de que os regimes políticos do mundo são comparáveis, na
medida em que integram um mesmo período histórico e estão atravessados
minimamente pelo capitalismo e pela modernidade de um modo geral. Negar isso
seria cair no extremo analítico de um relativismo que levaria a uma compreensão
fragmentária da realidade, chegando no limite à absolutização radical da alteridade
e à impossibilidade de se produzir e acumular conhecimento científico em
qualquer sentido. In extremis, seria como afirmar, por exemplo, que qualquer coisa
poderia ser uma democracia, pois quem somos nós para questionar a classe
dirigente do país X se eles insistem categoricamente que são uma democracia – e
a melhor que poderia haver?
Reconhecer que a ciência política e as ciências sociais em geral são hegemonizadas
por uma visão restrita do que é democracia e seu “combo” institucional,
atravessada por uma relação de dependência entre um centro e uma periferia
acadêmica deve levar à busca de uma complexificação conceitual, historicizante e
interdisciplinar do nosso campo de estudos – mas não à sua potencial implosão em
fragmentos incomunicáveis. Espera-se então que reconhecer e buscar superar a
dependência epistêmica em nossa área e a de(s)colonização do saber de um modo
geral, através da produção de conceitos e ideias próprias, não implique
necessariamente na proposição de um relativismo em moldes “pós-modernos”.

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50
]

51
2. MUITO ALÉM DE DIREITAS E ESQUERDAS: OS GIROS E A
DENSIDADE DOS REGIMES DEMOCRÁTICOS NA AMÉRICA DO SUL3.

Renata Peixoto de Oliveira4

Introdução

Com este trabalho, pretende-se aprofundar a reflexão acerca dos regimes


democráticos latino-americanos inaugurados entre as décadas de 1980 e 1990, após
período de ditaduras militares ou de liberalização de regimes híbridos ou
democracias pactuadas.
Em verdade, a análise aqui pretendida constituirá o marco teórico de uma
investigação mais ampla que, inicialmente, será dedicada à análise da densidade
democrática de alguns países da região. Para uma melhor compreensão, em um
trabalho recente, a definição dada ao termo foi a seguinte:
Neste ponto, ganha relevo a noção de densidade democrática, no sentido de se
averiguar o aprofundamento, consolidação e avanço de uma institucionalidade
democrática. Por densidade, a acepção mais fidedigna ao termo pretende
considerar não meramente questões que remetem a dimensão constitucional,
procedimental, institucional e formal destes regimes democráticos, mas
igualmente a capacidade destes regimes de atenderem demandas de ordem sócio-
política e econômica. A partir disto, um regime com alta densidade democrática,
apresentaria, por um lado, significativo avanço em sua constitucionalidade
democrática, avanço em seu sistema de representação e mecanismos de
participação política, observação e avanço quanto aos direitos civis e direitos
humanos, institucionalização do sistema partidário e condições de
governabilidade. Por outro lado, um regime densamente democrático, também

3
Artigo anteriormente publicado na Revista Debates.
http://seer.ufrgs.br/index.php/debates/article/view/74712/43497
4
Cientista Política pela UFMG e Professora adjunta do curso de Relações Internacionais e Integração e dos
Programas de Pós-Graduação PPG-ICAL e PPG-PPD da Universidade Federal da Integração Latino-
Americana (UNILA). Coordenadora do Grupo DALC-ALACIP e CESPI-América do Sul (UNILA).
Correio institucional: renata.oliveira@unila.edu.br

52
incluiria uma dimensão socioeconômica, inclinada na garantia do bem-estar social,
na qualidade de vida, no desenvolvimento socioeconômico, na inclusão política e
social de setores marginalizados da sociedade. (Oliveira, 2017.p.118).

Trabalhar com a noção de densidade democrática nos permitirá caracterizar


melhor as democracias de nossa região compreendendo suas singularidades e
aspectos condizentes a sua qualidade e o déficit democrático. Posto isto, a tarefa
seria entender os distintos giros democráticos que presenciamos ao longo das
últimas décadas, para além de seus ciclos mais a esquerda ou mais a direita. A
proposta que aqui se formula buscaria romper com algumas análises, entendendo
como estas mudanças cíclicas representariam mais bem partes de uma
engrenagem maior, ou seja, mais do que uma oscilação entre Direita e Esquerda
estaríamos diante de crises do próprio regime democrático ou até do
republicanismo5.
Para dar início a esta discussão, a primeira parte deste artigo realizará uma revisão
da literatura especializada na temática redemocratização e consolidação
democrática na América Latina, com especial atenção para autores e abordagens
célebres6. O objetivo será dialogar com trabalhos clássicos sobre as novas
democracias na região, trazendo a tona suas análises, termos e conceitos básicos.
De tal maneira, que possamos vislumbrar sua validade e até a necessidade de se
superar e avançar em algumas reflexões considerando-se o fato de que já
ultrapassamos três décadas desde as transições.
Na sequência, terá espaço uma discussão sobre os distintos ciclos hegemônicos, ou
ondas, com a ascensão política da esquerda ou da direita ao longo do século XX,
principalmente a finais dele, e essencialmente, no início do século XXl. Nos últimos

5
Essencial para as reflexões e conclusões por ora aqui aventadas foi a brilhante exposição de Marcelo
Cavarozzi (CONICET-UNSAM) no painel Especial “Después de lastransiciones: actualidad y desafios de
las nuevas democracias ” no Xll Congreso Nacional Sobre Democracia na UNR, Rosário, em 12 Setembro
de 2016. O eminente cientista político se referiu a existência de giros democráticos que sinalizam crises e
fracassos de governos na região.
6
Este artigo é originário de um trabalho elaborado para apresentação no painel Entre giros y recesión:
estudios comparativos del escenario democrático actual en Latinoamérica y Caribe, organizado pelo Grupo
Democratización en América Latina en perspectiva Comparada ( DALC-ALACIP) no âmbito do 9º
Congresso da Associação Latino-Americana de Ciência Política, ALACIP, realizado na cidade de
Montevidéu entre os dias 26 e 29 de Julho de 2017.

53
anos, a centralidade foi dada ao debate em torno da ascensão de partidos, líderes
e plataforma política da esquerda, enquanto a discussão recente se volta para uma
possível guinada à direita do espectro político ideológico na região. Nessa seção,
visa-se recuperar esta discussão com vistas a encontrar suas limitações para a
compreensão de um fenômeno mais abrangente e que será destacado na última
seção deste artigo, qual seja, a crise da própria democracia e os desafios
enfrentados pelo regime republicano na América Latina. A hipótese central de que
estaríamos presenciando giros democráticos fruto de crises representadas pela
falta de densidade democrática de nossos sistemas políticos seria tratada nesta
parte.

Estudos clássicos sobre redemocratização e consolidação democrática: um


enfoque sobre a América Latina

Há um pouco mais de três décadas e coincidindo com o retorno da ordem


democrática na Península Ibérica e na América Latina, teve início uma tradição
que se tornou uma área de estudos no âmbito da Ciência Política: a Transitologia
e a Consolidologia. Autores como Marcelo Cavarozzi, Manuel Garretón, Juan Linz,
Laurence Whitehead, Alfred Stepan e Arturo Valenzuela discorreram sobre os
processos de redemocratização e consolidação dos regimes democráticos no
período que se convencionou designar por terceira onda de democratização, em
referência aos célebres estudos realizados por Samuel Huntington na obra “The
Third Wave: Democratization in the Late Twentieth Century”, publicada em 1991.
Para este autor, basicamente, presenciamos três ondas que representam avanços
quanto ao número de regimes democráticos no mundo. A primeira delas se deu
entre 1828 e 1929, sendo seguida por um movimento contrário, uma onda reversa
de regimes autoritários e totalitários. O segundo avanço democrático se deu após
a Segunda Grande Guerra sendo contraposto ao avanço de regimes autoritários,
notadamente, militares ao longo das décadas de 1960 e 1970. Por fim, a análise dá
conta de que a partir da Revolução dos Cravos de 1974 em Portugal, se deu a
terceira e mais recente onda de redemocratização compreendendo um avanço
significativo de regimes democráticos em todo o mundo a partir dos anos 1980 e

54
1990. Este movimento cíclico e pendular entre autoritarismo e democracia, na
América Latina, teve início com a transição Equatoriana de 1979 (Oroño, 2012. p.17)
A discussão proposta nesta parte do artigo visa, tão somente, alicerçar o debate em
torno das novas democracias latino-americanas compreendendo os debates
estabelecidos ao redor deste tema.
O debate que versou sobre os processos de redemocratização primaram por
reflexões sobre o trânsito de regimes autoritários e fechados para a pluralidade
democrática. Neste âmbito, o termo democracia se refere a um método de governo
superior quanto a seus resultados e sua adoção se daria por pragmatismo (Cabrera
& Gomez, 2007, p.27). De acordo com Weffort (1992, p.6) estas novas democracias
erigidas a partir de 1974 seriam, na verdade, construções inacabadas que em meio
ao processo transitório combinaram elementos do novo regime com outros
oriundos do passado autoritário.
Este último ou mais recente ciclo democrático na região apresentou alguns déficits
consideráveis o que não apenas mereceu atenção dos pesquisadores no tocante a
passagem de regimes autoritários para democráticos, bem como sobre a
manutenção e persistência da ordem democrática nos países da região.
No avançar desta reflexão, a literatura especializada engendrou a tarefa de definir,
minimamente, o conceito de democracia a ser trabalhado e os desafios para a
manutenção destes regimes. É dessa forma que a transitologia abriu espaço para
os estudos de consolidologia, quando os especialistas passaram a se preocupar com
a estabilidade e continuidade da ordem democrática. Autores como Andreas
Schedler (1998) frisaram aspectos essenciais para a consolidação democrática tais
como: processos para prevenir o colapso das instituições; processos para prevenir
a erosão do colapso democrático; processos para completar a expansão
democrática; processos para aprofundar a democracia; processos para organizar a
institucionalidade democrática. Linz (1990) considerara como democracias
consolidadas aquelas em que a maioria dos cidadãos e dos principais atores
políticos assume este regime como a única forma concebível. Este seria o princípio
da aceitação autônoma da democracia, quando esta é considerada “the only game
in town”, por assim dizer. Estes estudos surgiram na década de 1990 destacando a
preocupação em torno da manutenção dos regimes democráticos diante de alguns

55
recuos ou risco de desestabilização democrática (Monclaire, 2001, p.64). Estas
abordagens acabaram por exacerbar o caráter institucional valorizando o grau de
institucionalização e de assimilação das regras do jogo democrático, em uma
interpretação que privilegia os aspectos procedimentais de uma democracia
eleitoral. Também conferem centralidade aos pactos da transição e ao papel das
elites em todo o processo. Ademais, é muito comum nestas análises o
estabelecimento de uma chamada economia do voto que procura associar
diretamente as crises econômicas com a crise democrática.
Naquela época instaurou-se uma espécie de desencantamento democrático tanto
pelos cidadãos quanto pelos expertos da academia. É importante salientar que as
democracias que surgiram ao longo dos anos 1980 presenciaram uma das mais
drásticas crises econômicas da história do continente e ainda ressentiram os efeitos
das políticas de ajuste neoliberal que foram justificadas como método para
solucionar a recessão e modernizar as economias dos países da região. Os efeitos
da crise que foram exacerbadas pela ortodoxia neoliberal, tiveram graves impactos
sociais. As expectativas geradas no período pós-transição de que a participação
seria mais ampla e que ocorreriam melhorias quanto às desigualdades sociais e
pobreza, não se cumpriram e isto acabou se tornando condição para a própria
legitimação da democracia (Sunkel, 2008.p.13).
A partir disto, tem-se todo um debate ao redor das condições ideais para o
surgimento da democracia e manutenção destes regimes. A contribuição destes
teóricos se dá pela construção de uma verdadeira economia política da transição
(Ortiz, 2006, p.275). Em certa medida, esta nova tradição teórica reforça o que
Monclaire definiu como tradição teórica condicionalista (2001, p.61) que desde
meados do século XX já destaca elementos centrais como condicionantes a ordem
democrática, a saber, o nível de desenvolvimento econômico, as formas de
estrutura social e o tipo de cultura dominante. Trata-se de visões carregadas de
economicismo, historicismo e culturalismo que praticamente consideram inviável
a existência de regimes democráticos no continente americano.
A partir do exposto, tem-se que a literatura especializada concentra-se em alguns
pontos como a definição de democracia; as condições para a democracia e as
características da democracia Latino-Americana.

56
No que tange a definição de democracia, grande parte destas análises partiram de
definições submínimas, como antes afirmado, privilegiaram aspectos
procedimentais e eleitorais dos regimes democráticos. A literatura especializada
procura estabelecer como critérios os seguintes: existência de eleições livres para
o executivo e legislativo; o direito de voto inclusivo; o respeito às liberdades civis;
condições de governabilidade para autoridades eleitas (Mainwaring; Brinks &
Peréz-Liñan, 2001. P.657-660). Fica claro que estas são definições de democracia
no sentido político do termo, caminhando em consonância com a análise clássica
de Robert Dahl sobre as condições da Poliarquia. Oroño (2012) alerta sobre os
riscos de definições mínimas abrirem espaço para que outros regimes possam se
definir como democráticos, principalmente, se o peso maior for dado ao aspecto
eleitoral (p.18).
Já quando o foco da discussão são as condições de um regime democrático o ponto
passa ser a correlação entre o apoio dado à democracia e a satisfação com seus
resultados (Cabrera & Gomez, 2007, p.29). Assim, o risco à desestabilização
democrática se relaciona a extrema pobreza, desigualdades extremas e exclusão
social (Ortiz, 2006, p.270). Quanto ao aspecto político, chega-se mesmo a defender
modelos de instituições em que se acreditam existir maiores condições para a
estabilidade política, como sistemas partidários bipartidaristas ou o regime
parlamentarista. Estas abordagens, além de um caráter muito determinista
costumam estabelecer modelos ideais de instituições que simplesmente possam
não se adequar a uma determinada realidade histórica e social como a dos países
deste continente. Neste quesito, percebe-se que a discussão em torno das
condições para a democracia nos leva ao ponto anterior: de que democracia está se
falando? Claramente, o conceito e os ideais estabelecidos se referem à democracia
liberal tal qual se originou e estabeleceu-se no continente Europeu (porção
ocidental) e nos Estados Unidos da América.
Sendo assim, a discussão culmina em seu terceiro aspecto que versa sobre as
características das democracias latino-americanas e, obviamente, destas novas
democracias. Seriam estes regimes democráticos genuinamente? Teríamos as
condições para a estabilidade, perpetuação e consolidação da ordem democrática?

57
A América Latina adentrou uma era de democracia com adjetivos (COLLIER e
LEVITSKY, 1997). Apesar de as eleições nacionais terem se tornado abertas e
competitivas, as unidades políticas democráticas na região são frequentemente
descritas como incompletas, parciais, ocas ou rasas (dependendo da metáfora que
se prefira). A autoridade para tomar decisões parece se revelar superconcentrada,
hiperpresidencialista ou delegatória; a representação política padece com a
fragmentação dos partidos políticos e com sistemas partidários “rudimentares”;
ordenamentos jurídicos e instituições judiciais tendem a ser subservientes, parciais
ou incompetentes; políticas públicas adotadas para fazer frente a problemas
candentes - pobreza, desigualdade, criminalidade - parecem profundamente
inadequadas (O’DONNELL, 1994; MAINWARING & SCULLY, 1995; LUSTIG, 1995;
DIAMOND, 1999). Em meio a essa cacofonia de adjetivos, existe uma preocupação
comum: avaliar a qualidade da vida democrática (O’DONNELL, CULLELL &
IAZZATA, 2004; DIAMOND & MORLINO, 2005). Todos se sentem tentados a
perguntar: que tipo de democracia vem se formando na América Latina? ( Smith &
Ziegler, 2009.p.357)

Segundo Ortiz (2006; p.264-268) as democracias latino-americanas se apoiam em


um significante vazio e um universal abstrato, posto que estes regimes na região
careçam do conteúdo cidadão. Citando a Carlos de la Torre, o autor afirma que o
caminhar democrático na região promoveu a inclusão de setores populares de
maneira bastante seletiva, excluindo a muitos. O acesso aos recursos do Estado se
deu de maneira limitada e constituíram-se privilégios para algumas classes através
do estabelecimento de redes corporativas e clientelistas. Os impactos do
neoliberalismo em países cuja formação social original estava vinculada ao Estado
ou a tradição gerou resultados decepcionantes diante das grandes expectativas
com os resultados da nova ordem democrática vigente, dessa forma, a legitimidade
destas novas democracias sofreu forte abalo na região. Consideradas as não
condições e infortúnios da tradição democrática em nossa região as classificações
e denominações começaram a surgir. Talvez a mais conhecida delas seja a cunhada
por O´donnell que convencionou chama-las de democracias delegativas por não
se tratarem de democracias representativas como as do ocidente, mas democracias

58
inacabadas marcadas pelo discrecionismo de seus líderes. Em verdade, a ordem
pós-autoritária mais do que significar liberalização política implicou em
liberalização econômica. Dessa forma, mais do que a passagem para uma ordem
verdadeiramente democrática, as transições significaram a legitimação da
acumulação capitalista periférica (p.270).
Justamente enquanto reação ao avanço neoliberal, paulatinamente ao processo de
redemocratização, o giro a “la izquierda” verificado a partir de 1999 com a ascensão
de Chávez na Venezuela poderia ser visto não como mera questão ideológica, mas
produto da necessidade de busca de resultados para as questões econômicas e
sociais que não foram satisfeitas com a mudança de regime político ( Cabrera &
Gomez, 2007.p.36).

Sobre os Ciclos hegemônicos Direita x Esquerda

Em distintos períodos da História, e, em particular no caso Latino-Americano que


é o que nos convém, passamos por diferentes períodos hegemônicos. Desde o
período das independências até os dias atuais, distintos ciclos hegemônicos
tiveram lugar se sucedendo. Basicamente, pode-se identificar ao longo da História
ciclos alternados entre forças conservadoras e progressistas na arena política, entre
políticas nacionalistas e modelos liberais na esfera econômica.
Nas três primeiras décadas do século XX, passamos por um período marcado pelo
modelo liberal, agroexportador, com a presença das oligarquias no poder. Entre a
Crise de 1929 e a Segunda Guerra Mundial, estabeleceu-se um novo modelo, uma
matriz pautada no forte papel do Estado na economia.
O nacional desenvolvimentismo surge da crise da hegemonia Britânica e de sua
divisão internacional do trabalho, que especializava os países centrais em
atividades industriais e os países periféricos na produção de mercadorias primário-
exportadoras. Essa especialização era legitimada pela teoria das vantagens
comparativas formulada por David Ricardo. (...) no enfoque ricardiano, capital e
trabalho possuemmobilidade internacional residual e limitada e o comércio seria
a forma exclusiva de difundir a elevação da produtividade. (...) A perda da renda,
gerada por esse processo, dos países periféricos criou barreiras cada vez maiores

59
para a sustentabilidade do crescimento econômico. (...) As tensões sociais se
acumularam e deram lugar a movimentos revolucionários que buscarão
redirecionar o Estado nacional para impulsionar a industrialização na América
Latina (ou na Ásia e na África), conquistar o direito à autodeterminação e
impulsionar a partir do Estado nacional a modernização do país. (Martins, 2011.
Pag. 215-17)
Para alguns, um período conhecido como “populista”, mas que se pode denominar
por Nacional-Desenvolvimentismo. Basicamente, esta era esteve compreendida
entre as décadas de 1930 e 1980 quando cedeu lugar para outro modelo, diante de
seu próprio desgaste e crise. Assim, entre os idos de 1980 e1990 deu-se a chamada
reconfiguração neoliberal, agora acompanhada pelo fenômeno da globalização vis
a vis a vitória do bloco ocidental com a crise e dissolução do bloco soviético.

(...) A dinâmica central do capitalismo sob o neoliberalismo tanto nacional quanto


internacionalmente, foi determinada por novos objetivos de classe que operaram
em benefício das camadas mais altas de renda, isto é, os proprietários capitalistas
e as frações superiores da administração. (...) A nova configuração da distribuição
de renda foi o resultado de várias tendências convergentes. Forte pressão foi
aplicada sobre a massa de trabalhadores assalariados, o que ajudou a reerguer as
taxas de lucro dos baixos níveis atingidos nos anos 1970 (...). A abertura das
fronteiras do comércio e do capital inaugurou o caminho para grandes
investimentos nas regiões do globo onde as condições sociais prevalentes
permitiam altas taxas de retorno, gerando fluxos de capital na direção das classes
altas dos Estados Unidos (e de grupos maiores que, até certo ponto, conseguem se
beneficiar das rendas de capital). (...) O neoliberalismo corrigiu o declínio anterior
da liderança norte-americana durante a década de 1970, pelo menos em relação à
Europa e ao Japão. (...) A ordem neoliberal internacional – conhecida como
globalização neoliberal – foi imposta a todo o mundo, desde os principais países
capitalistas do centro até os países menos desenvolvidos da periferia, geralmente
ao custo de severas crises, como na Ásia e na América Latina durante as décadas
de 19990 e 2000. (Duménil & Lévy,2014, pag.18-19)

60
Em meio ao avanço das políticas neoliberais, ocorreram privatizações em massa,
desregulamentação dos mercados, flexibilização das leis trabalhistas, políticas
focalizadas no lugar de políticas universalistas, apenas para citar f algumas das
características marcantes do novo modelo. Entre 1994, com a crise em Chiapas no
México, e 2001, com a crise Argentina, o neoliberalismo vivenciou enfrentamentos
sociais e passou por questionamentos. O desgaste se concretizou com a ascensão
de líderes políticos progressistas em vários países da região. A primeira experiência
que decretaria o fechamento do ciclo foi marcada pela ascensão de Hugo Chávez
Frías na Venezuela, em 1999.
Algumas experiências de governos desta onda progressista ainda persistem em
países da região, mas estes já cederam espaço para o que consideram ser uma
avalanche conservadora, marcada pelas vitórias eleitorais de partidos de direita.
Ao longo da última década, proliferaram debates e análises sobre uma onda
progressista, com a chegada de partidos de esquerda e líderes com discurso contra
hegemônico e, na sequência, teve início um novo debate que considera o avanço
da direita, do discurso conservador, como um novo ciclo.
A reflexão que aqui ganha espaço tem o intuito de inserir esta discussão em um
marco analítico mais amplo, considerando-se, não apenas as guinadas e
alternâncias entre os polos distintos do espectro político-ideológico, mas os giros
referentes aos próprios processos inerentes ao regime democrático e republicano.
Para além das oscilações políticas que na América Latina em especial, nunca
primaram por forte identificação ideológica, pretende-se realizar uma reflexão que
considera a recessão, crise, limitação dos regimes democráticos e o esgotamento
do modelo republicano em voga. Estas oscilações e mudanças de liderança, de
partidos e orientação ideológica das forças que alçam o poder, podem ser mais bem
compreendidas como uma expressão do fenômeno de esgotamento destas
repúblicas, de crise de seus sistemas políticos e de falta de densidade de suas
democracias.

Giros e densidade democrática na região

61
A partir do antes aqui exposto, estas reflexões apresentadas a seguir têm por intuito
contribuir para as indagações recentes sobre nossa conjuntura democrática atual e
o futuro das democracias em nossa região.
Primeiramente, é fundamental resgatar a ideia de que aqui não se procura tratar a
democracia como um ponto de chegada cujo caminhar em linha reta levaria a um
modelo ideal pautado nas características das democracias Estadunidense e
Europeias, mas tampouco se pretende adotar uma perspectiva determinista de que
a democracia seria impraticável e inalcançável em nosso continente pelos fatores
históricos, culturais e sociais dados.
Obviamente, é necessário um exercício teórico que nos leva ás origens da
Democracia e, para os modernos esta conceptualização não pode fugir aos
elementos trazidos pelas revoluções burguesas e pela tradição liberal, mas também
não pode desconsiderar as revoluções proletárias e os elementos que se somaram
até que a democracia atual primasse por abarcar mais classes sociais e mais direitos
sócio-políticos.
Talvez entender o avançar democrático nos leve a visualizar o movimento de uma
pedra atirada na água. A perturbação gera ondas que se propagam em
circunferência. As agitações sociais, as demandas antes não atendidas, os direitos
silenciados dos excluídos criam as condições para a perturbação e a democracia só
avança à medida que propaga continuamente a inclusão de mais setores e mais
direitos.
Aqui não caberia a ideia de transição de maneira linear, delineando um destino
certo, um ponto de chegada determinado. Os momentos de inauguração de uma
ordem democrática, de restauração da mesma ou liberalização de regimes
oligárquicos, na maior parte das experiências, não designam a existência de um
roteiro certo. Muitas vezes, a bandeira democrática é levantada como um ideal
abstrato, carente de muitas de suas substâncias palpáveis, visando alcançar um ou
outra de suas características. Assim, poderíamos nos perguntar que ordem
pretendia-se alcançar com o fim das ditaduras na América Latina nos idos de 1980?
O ruir da antiga ordem não representaria mais um desejo de uma ordem pós-
autoritária do que necessariamente democrática?

62
Isto posto pelo grau de incertezas, pelo fato de que os cidadãos não possuem um
plano definido de voo. A falta de legitimidade agora conferida ao regime
autoritário, pode se dar por insatisfações econômicas, pelo efeito da mídia e de
outras experiências de governo na região, ou pelo anseio do componente eleitoral
da Democracia. Isto quer dizer que não necessariamente exista um modelo de
democracia a ser perseguido no momento da transição e o regime a ser erigido não
encontra consenso entre cidadãos e setores da elite. Por isto, destacar o
desencantamento ou o fracasso das democracias latino-americanas entre os anos
1980 e 1990 é algo extremamente delicado, pois parte do pressuposto de que existe
um modelo a ser seguido, de que existia consenso sobre o tipo de democracia e de
que tudo isto estava claro quando da queda do regime autoritário.
As democracias latino-americanas poderiam e podem ser satisfatórias em diversos
aspectos, sem necessariamente, ser uma cópia fiel do modelo ocidental. Não que
qualquer regime possa se passar por democrático, em um relativismo extremado,
sem critérios ou noções mínimas, não se trata disso. O fato é que gera considerável
desconforto a posição de modelo ideal democrático recair justamente sobre a
experiência estadunidense, um regime que durante a década de 1960 ainda não
reconhecia os direitos civis da população negra e que a inícios do século XXl realiza
eleições indiretas para presidente. O que também não falarmos da Índia
considerada a maior democracia do mundo, mas apresentando uma sociedade
marcada por castas sociais e por um nível considerável de pobreza.
Não existe um modelo ideal de democracia e se é assim quando analisamos as
tradicionais, por que seria distinto com as novas democracias na região?
Sem modelos ideais e trajetórias definidas, como saber se temos democracias ou
democracias de “boa” qualidade?
Talvez o melhor caminho, mais seguro, seja a busca de uma definição de
democracia que considere seu elemento mínimo essencial e elementar. Não, não
se tratam de eleições e das características de um regime representativo, a
representação não nasceu com a democracia, mas com o liberalismo que em sua
origem não tinha nada de democrático. Esta acepção mínima a qual se refere esta
análise, em verdade, é extremamente abarcante, pois se refere à inclusão e a
igualdade. A definição fidedigna do governo do povo é a de um regime que prima

63
pela busca da inclusão e igualdade. O que se amplia, desde a Grécia antiga, é a
noção de povo. Retomando a visualização da pedra que perturba a água gerando
ondas, estas últimas representam a cidadania se alargando, abrangendo setores,
contemplando atores. A cada luta, a cada grito, a cada direito que busca ser
atendido, seja por questões econômicas, políticas, civis, sociais ou identitárias,
democracia é o regime que tal como a água reage à perturbação da pedra
alargando-se e propagando-se. Isto é incluir e igualar. O avançar da democracia é
o avançar da cidadania. Democrático nunca será um regime no tempo e espaço
definidos, estáticos e consolidados. Uma democracia não se consolida e não se
limita a determinados padrões fixos e rígidos, pois se deve adaptar a seu tempo,
aos seus anseios, às suas lutas. Uma democracia não segue um modelo
estabelecido, pois precisa se adaptar e considerar sua própria cultura, sua
diversidade de povos e nações. Entender sua história e a partir dela e não sobre ela
erigir seu modelo de igualdade e liberdade.
As democracias latino-americanas sejam “velhas” ou “novas” jamais cumpririam
com o requisito mínimo da inclusão e igualdade entre cidadãos se não reconhecer
sua história colonial, seu passado escravocrata, o genocídio indígena, a diáspora
africana, suas mazelas sociais, as desigualdades entre o campo e a cidade, o
patriarcado, o patrimonialismo e o clientelismo.
Por isto, aos elementos centrais deste verdadeiro liberalismo democrático outros
elementos podem e devem se somar para termos mais do que a uma desejável
Democracia Liberal.
A democracia, frequentemente, foi sinônima de economia de mercado ou regime
representativo com competição entre elites. As novas democracias latino-
americanas cumpriram este papel e aceitaram estas vestes e o que mais se esperava
delas é que fossem regimes estáveis. A estabilidade e governabilidade foram
sinônimas de sucesso, enquanto a cidadania parecia banal componente alegórico.
As democracias são vivas e inquietantes e estão em constante movimento. O seu
fracasso não se deve apenas às instituições, pois a instabilidade decorre, em grande
parte, da exclusão e da desigualdade. Um regime pode ser estável e não
democrático, ao passo que uma verdadeira democracia se acostuma as convulsões
e mudanças.

64
Em um continente com um histórico maior de regimes excludentes, oligárquicos,
autoritários e com um nefasto passado colonial, tivemos mais experiências com
regimes autoritários do que democráticos. Em nossos interregnos democráticos,
muitas vezes, verificamos a inclusão de alguns novos setores, não necessariamente
em uma ampliação de direitos, mas em um contexto de garantias de privilégios
para novas classes a conferir legitimidade. É inegável que muitos destes avanços
ocorridos em meados do século XX, foram primordiais para a cidadania em nossos
países, mas não suficientes, deixando às novas democracias a oportunidade de
avanço.
É por isto que no bojo desta reflexão se prefere trabalhar com o termo densidade
democrática, antes que consolidação democrática. O termo consolidada é
empedrada e rígida, enquanto densidade nos traz uma ideia mais fluída,
comparável, permeável e que considera o seu ambiente ou contexto. Mas também,
mesmo aqui, a discussão não seria inédita tendo em vista que reflexões sobre a
qualidade da democracia na região acabam primando por estes aspectos e
características.
Talvez o ponto mais difícil para as democracias no continente, seja o que se refere
a sua tradição republicana. A grande dificuldade das democracias na região reside
no fato de que a grande batalha está inserida na luta entre o componente
democrático e oligárquico de nossas repúblicas.
Por isto, mais do que nos atermos a giros que vão da direita à esquerda do espectro
político ideológico, de tempos em tempos, de acordo com dissabores
momentâneos, deveríamos nos ater ao ponto nevrálgico da discussão que são os
giros democráticos no continente.
Claramente, vivemos, na atualidade, um período de inflexão em nossas
democracias, mais isto não se deve ao simples movimento pendular entre partidos
de direita e esquerda. Até por que as agendas programáticas dos partidos não são
mais muito bem definidas, existe uma descrença generalizada no sistema político
e a identificação ideológica entre eleitores e partidos é muito débil na região. Em
verdade, esta oscilação faz parte de um movimento, um giro maior.
Por isto, nesta seção a ideia central é trabalhar com a noção de que ao passo em
que um regime democrático se torna menos denso, não se ampliando para

65
acompanhar as perturbações que incitam a ampliação da cidadania em termos de
igualdade e inclusão, movimentos internos e pequenas rupturas podem ocorrer
gerando mudanças significativas.
Durante o avanço das reformas de ajuste neoliberal, entre as décadas de 1980 e
1990, a cidadania foi afetada fortemente pelos impactos da crise econômica e destas
medidas. A resposta, ou perturbação, significou uma guinada política com a
ascensão de novos líderes e partidos, gerando movimentos em busca de inclusão e
igualdade. O fim deste ciclo de governos de esquerda significa as limitações
daquele projeto, por um lado, pelos setores populares ávidos por maiores
transformações e para que a dinâmica de ampliação da cidadania _ inclusão e
igualdade_ avançassem enquanto, por outro lado, as classes médias e as elites, em
um ambiente econômico não mais favorável, não encontravam motivos para a
perpetuação de projetos políticos que já tinham avançado suficientemente em
termos de cidadania. Com o passar dos anos, estes governos perderam base de
sustentação dos dois lados, dos setores populares e dos ainda excluídos, e das elites
não propensas ao avanço das conquistas democráticas dos setores populares, bem
como as classes médias ressentidas com os efeitos da crise econômica.
Mais do que uma análise conjuntural, tem-se uma análise sobre os trinta anos das
novas democracias latino-americanas. O retorno à ordem democrática no período
conhecido como terceira onda de democratização significou a ruptura com um
regime autoritário por parte das elites ávidas pela competição, por uma classe
média ansiosa pela modernização e crescimento da economia e de setores
populares esperançosos pela expansão da cidadania em suas diversas acepções.
Contudo, o que se presenciou foi o retorno da dinâmica eleitoral e a liberalização
que se deu foi a do mercado. O avançar democrático não se completou se estagnou
ou as condições para a democracia se degradaram consideravelmente. A solução
não completa, não estrutural, foi a guinada para a esquerda. Atingido o ápice destes
projetos progressistas, que tiveram inegável êxito em muitos aspectos, seu
esgotamento se evidenciou. Interpretar este momento como mero movimento
pendular que se redireciona para o lado oposto implica em uma análise precipitada
cujo foco é apenas a alternância esquerda x direita. Aqui se tem o movimento maior
e mais complexo, um giro democrático e não um giro à direita. O que significaria

66
isto e por que teríamos um giro democrático e não um giro compreendido e
inserido neste regime?
Um giro democrático representa uma profunda oscilação ocorrida no próprio
regime democrático, em seu direcionamento e existência. Em nossa região, em
diferentes momentos, este movimento foi percebido como reação conservadora ou
onda contrária ao avanço da democracia. Este giro ocorre quando surgem à tona
elementos historicamente enraizados no tradicionalismo, elitismo, moralismo, que
compõem uma tradição republicana conservadora e oligárquica. A problemática
central da política latino-americana desde as independências é justamente o
enfrentamento entre o conservadorismo e o liberalismo, entre a tradição
oligárquica e o ímpeto democrático. O pacto se deu entre as elites e com apoio de
classes médias, mas o teor deste pacto garante privilégios. Nunca se teve um pacto
com a Democracia. Mas longe de chegar a uma visão determinista, fatalista de que
nunca poderíamos avançar rumo a regimes democráticos mais densos, procura-se
chamar a atenção apenas para a peculiaridade dos nossos giros democráticos, dos
nossos enfrentamentos. Enquanto os países ocidentais apresentam determinadas
lutas, nós temos as nossas. A democracia estadunidense enfrenta os obstáculos
interpostos pelo grande capital, pelo lobby da indústria bélica, pela centralidade
da questão energética e por sua presença imperial global. Enquanto isto, países
como o Brasil, por exemplo, encontram barreiras para atingir um grau mais elevado
de densidade democrática na perpetuação e manutenção de padrões de poder
advindos do período colonial, imperial e republicano oligárquico.
De uma maneira geral, é visível que as democracias latino-americanas encontrem
dificuldades para se tornarem mais densas pelo fato de persistirem questões,
conflitos, desigualdades e exclusões referentes aos seguintes temas: concentração
de terras, a questão indígena e africana, o direito as cidades e etc. Questões estas
que remetem a uma história de exclusão, luta de classes e falta de acesso à
cidadania. E, particularmente, a uma herança advinda não apenas de nosso
processo colonizador e pretensamente civilizatório, mas, sobretudo do caminho
seguido no processo de formação destas nações independentes. O que se presencia
no cenário político de vários países da região atualmente não é uma guinada para
a direita, simplesmente, mas uma crise republicana na qual o giro democrático

67
representa justamente os desacertos de engrenagem entre uma república
democrática em construção e uma tradição republicana oligárquica por que
excludente e desigual. Durante anos, a grande preocupação da transitologia e da
consolidologia foi com os elementos de continuidade com o autoritarismo
burocrático militar. Hoje é justamente a forte tradição oligárquica, o elitismo, a
meritocracia, o patrimonialismo e o patriarcalismo que comprometem não apenas
o elemento democrático de nossos regimes, mas, sobretudo, a própria tradição
liberal solapada pela evidencia de uma única liberdade desejável, a econômica.

Conclusões
Passadas três décadas do colapso dos regimes militares na América Latina, nossas
democracias passam por um período de inflexão. Este momento está sendo
interpretado como um giro à direita do espectro político ideológico, talvez uma
guinada mais conservadora em termos morais e de costume do que o vivenciado e
propagado pelo liberalismo nos idos de 1990. Neste trabalho buscou-se evidenciar
que o giro que presenciamos é maior, um giro democrático como bem se referiu
Marcelo Cavarozzi em sua fala (2016). Aqui a ideia de giro democrático foi
desenvolvida visando destacar que nos países desta região isto representa um
contra fluxo, uma reação ou emergência de elementos e fatores muito peculiares
de nossa tradição republicana. Tem-se com este giro o grande enfretamento entre
uma tradição republicana que visa avançar em termos de densidade de nossos
regimes e valores democráticos e uma tradição republicana reacionária,
conservadora, elitista e oligárquica. Mais do que um momento particular em que
nossas democracias presenciam um giro entre posições situadas no espectro
político ideológico de nossos sistemas, teríamos um giro mais abrangente que
configuraria um momento ímpar, um giro democrático, em movimento inverso
que sinaliza uma trajetória rumo a um regime democrático menos denso ou uma
república não tão democrática.
Para realizar esta discussão foi necessário resgatar o debate realizado no âmbito
dos estudos sobre transição e consolidação democrática das novas democracias,
além da reflexão sobre os períodos recentes que representaram ora a emergência e
hegemonia das forças progressistas ora das forças conservadoras.

68
Neste momento no qual estas novas democracias se esgotaram, finalizando um
período e, sinalizando um momento de profunda mudança, nos preparamos para
a próxima onda, ainda cheios de incertezas e com poucas convicções. Não sabemos
muito sobre onde este giro democrático vai nos levar, tampouco podemos
assegurar a densidade de nossos regimes democráticos. A sensação é de que nos
escorrem pelos dedos. A intuição, pelo menos nos diz, que tudo isto vai muito mais
além do que direitas e esquerdas.

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70
71
3. DEMOCRACIAS, IMPASSES, CRISES E ALTERNATIVAS

Danilo Uzêda da Cruz

À maneira de introdução: pesquisar a democracia em tempos de golpe

Nosso artigo busca discutir questões da teoria democrátia, particularmente temas


que retornam à centralidade das pesquisas, sobretudo em tempo de crise e
impasses na democracia liberal.

O problema central desse artigo, portanto, tenta encontrar elos e nexos entre três
grandes temas da ciência política: democracia e participação; políticas públicas e
desenvolvimento; desigualdades e democracia, a fim de que possamos ir
construindo explicações para o contexto mais controverso dos últimos 20 anos
para as democracias latino-americana. Acreditamos que sejam temas em disputa
não apenas na forma de projetos políticos dos governos como também na
sociedade civil.

Contudo, em tempos de eclipse da democracia brasileira (e ao que parece latino-


americana), precisaremos anotar a dificuldade permanente em pesquisa temas
como esse, de democracia substantiva. Três problemas aparecem como de difícil
transposição nesse contexto de golpe parlamentar o Brasil, muito próximo, aliás,
daqueles vivenciados no Paraguai, Guatemala e Nicarágua. O primeiro refere-se ao
refluxo na sociedade na forma da política e na crença na democracia participativa,
analisado como impasse por Avritzer (2015) em recente estudo de conjuntura; o
segundo encontra-se nas crenças do pesquisador, que percebe esse impasse em
forma de crise, na sociedade e nos governos; e, por fim o suposto apagamento do
objeto de pesquisa quando os públicos participativos de mostram apáticos ou em
compasso de espera ante os retrocessos políticos e a perda substantiva de direitos
sociais.

72
O primeiro problema parece aprofundar ainda mais o impasse, à medida que se
desnuda, a cada dia, a cada denúncia, os imbróglios do sistema político, empresas
privadas e políticos individual e partidariamente, com sistemas complexos de
corrupção envolvendo emaranhados e novelos que alcançam as reservas públicas
e o patrimônio público. Esse ciclo de desvelamento do sistema de corrupção ainda
não se findou, mas também não é novo como se apresenta. Ainda que se renove,
constiui o marco fundador da burguesia nacional o princípio da usurpação de bens
coletivos. O segundo problema nos parece mais complexo ainda, porque trata-se
de uma necessária condição à pesquisa acadêmica que se desloque da realidade
para promover análise substantiva, ou seja: o pesquisador precisa necessariamente
acreditar que seu problema de pesquisa é possível ser resolvido no diálogo com a
realidade, empreendendo assim os métodos de análise necessários para essa
compreensão. Portanto, quanto mais a crise se aprofunda na forma de refluxo ou
contextos de grande paralisia política, refreia-se ou desloca-se nosso olhar para o
estático, onde antes era movimento. Torna-se difícil distinguir a figuração do ódio
à democracia (RANCIERE, 2015), daqueles limites da democracia (BOBBIO, 2001)
ou ainda daquilo que ela nunca se propôs a ser (ZIZEK, 2007).

Por fim, a sociedade em geral, e organizações da sociedade civil em particular,


parecem também aguardar com ceticismo os desdobramentos dessa conjuntura
perversa, seja na forma eleitoral (ainda uma dúvida para 2018 e anos seguintes),
seja na forma de reestabelecer um novo diálogo com as bases sociais que lhes dão
sustentação. Em todo caso o cenário brasileiro é de incerteza, crise e revolta. As
análises de conjuntura correm risco de se mostrarem insossas no fim do dia, dado
o aparente dinamismo da política nacional. Contudo esse dinamismo é mesmo
aparente já que circula em torno de uma mesma classe econômica que deflagra
uma guerra sem limites e padrões, onde o que aparece de forma imperiosa é o
futuro sombrio e incerto, sempre a amedrontar as classes sociais empobrecidas e
miseráveis.

Ainda assim, em tentanto demonstrar que mesmo em uma conjuntura


desfavorável é possível pensar alternativas democráticas que possibilitem a

73
sociedade participação e inserção de demandas e agendas de políticas públicas que
sejam mais coerentes e exequíveis para a melhoria da qualidade de vida e
erradicação da pobreza, ao menos como horizonte. E mais: como nos alerta
SAFATLE (2017), pensar novos projetos sociais que tenham como fundamento
formas e dinâmicas sociais renovadas e renovadoras, que sejam mais includentes e
que se disponha a remodelar sistemas políticos e sociais em frangalhos.

Democracia, participação e desigualdades: conceitos em disputa

Ao longo dos anos 1970 e 1980 os temas “democracia” e “participação” foi


vastamente utilizados na literatura da teoria política, tanto porque houve uma
prática e experiência democrática em contraposição aos excessos dos
totalitarismos, quanto porque uma crítica as democracias clássicas parecia afastar
a sociedade dos processos decisórios. Pateman (1992) em sua pesquisa matiza essa
afirmação, nos informando que sua popularização não significa uma concordância
com a ampliação da democracia, e em alguns casos até mesmo contradita com essa
perspectiva; a “democracia” esteve pautada por movimentos sociais, atores
políticos, governos e teóricos, que buscavam compreender e explicar os fenômenos
que lhes eram contemporâneos de crítica ao autoritarismo e por uma ampliação
da participação social (PATEMAN, 1992). Outro autor destaca que nos anos 1980
nenhum governo, partido, ou movimento social de massa, declarou-se não
democrático, ou não incluiu em seus documentos a defesa da democracia
(HOBSBAWM, 1998), acentuando inclusive o ceráter violento de qualquer Estado
como forma política, mas que a experiência histórica demonstrara que sua
ausência também levada a vácuos democráticos. Em outro trabalho, o mesmo
Hobsbawm (2001) destaca que ao longo do século XX a democracia foi a principal
motivação dos grupos sociais, em suas mais variadas formas, na busca por mais
justiça social, distribuição de recursos e liberdade civil (HOBSBAWM, 2001).

Outros pesquisadores reproduzem essa afirmação, identificando outros elementos


distintivos do período, olhando ora para o Estado e sua “democratização”, ora para

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a sociedade e sua “resistência”, ou ainda atestando ou não a melhoria da qualidade
da democracia em perspectiva comparada. Com efeito, o debate em torno da
democracia e a teoria democrática contemporânea, ao longo dos últimos 50 anos,
são reafirmadas e testadas a partir das dinâmicas sociais e políticas.

Definida como a conjunção de fatores políticos e sociais que possibilitam direitos


civis, direitos políticos e igualdade de voto, a democracia como tema de pesquisa
tem encontrado no campo acadêmico perspectivas de análise mais distintas. O viés
analítico e o tipo de pergunta dizem muito sobre o que a pesquisa e o pesquisador
querem saber sobre seu tema de pesquisa. E as questões sobre a democracia no
mundo passam, via de regra, pelo axioma minimalista ou pela democracia eleitoral.
Raras as pesquisas, ainda hoje, que situam a questão democrátiva como uma
questão de distribuição econômica ou na amplitude do termo entrecortando
questões étnico-raciais, de gerero e geração (MIGUEL, 2016).

Entre nós latino-americanos, esse tema sempre esteve em pauta, seja por nosso
passado colonial e o modelo de colonização implantado, seja pelo processo de
formação dos Estados Nacionais latinoamericanos (VIANNA, 2004), ou por nossa
história recente de golpes militares. A resistência e enfrentamento aos períodos
militares ensejaram olhares sobre a democracia que ultrapassam o formalismo
proposto e estampado na democracia liberal, hegemônica nas análises europeias,
de esquerda e de direita. Ainda que tentássemos importar teorias europeias e norte
americanas sobre a “democracia”, tínhamos (e temos) nossa realidade diversa a
gritar por uma análise política que enxergasse, com olhos abertos, os dilemas da
história vivida. Ou seja, era preciso em algum momento que a ciência política lêsse
a democracia brasileira e latino-americana enxergando as diversidades e
adversidades culturais, econômicas e a própria formação social.

Para autores como Bobbio (2000) a democracia tornou-se um denominador


comum a todas as questões políticas relevantes. Ela encerra proposições de
governos, hábitos sociais, contextos econômicos e modos de fazer. Esse complexo
quadro que a democracia assume na contemporaneidade, expressando “a forma
padrão de organização da dominação política no interior da modernidade

75
ocidental” (AVRITZER, 2005. p.563) mas, para uma definição mínima, para que
possamos operacionalizar o conceito, o mesmo Bobbio (2000) nos propõe olhar a
democracia em contraposição a qualquer autocracia, balizada por um conjunto de
regras onde está estabelecido quem está autorizado a tomar decisões coletivas e
com quais procedimentos (BOBBIO, 2000), ou decisões vinculatórias para as quais
todos os membros da coletividade estarão dispostos a obedecer ou seguir.

Apesar de insuficiente para compreender os sistemas democráticos no mundo real,


esse olhar panorâmico nos coloca uma questão fundamental, porque para
compreender a democracia é preciso estabelecer relações históricas onde a
democracia emerge, na modernidade, como modelo político-social, senão
incontestável, de difícil oposição. Ainda que possamos estabelecer no plano teórico
que toda forma de Estado é uma expressão violenta da forma de poder, portanto
de sustentação ou confirmação da sociedade de classes, ele aparece também, na
sociedade moderna, pelo menos como o mediador desse conflito, senão o
garantidor de que as desigualdades não beirem a babárie (MARX, 2012;
ANDERSON, 1995). Assim, a igualdade é uma opção política encontrada na crítica
marxista do Estado, como momento de transitório no caminho a sociedade
igualitária, assim como as possiblidades de garantir, gradativamente, ampliação de
direitos e inserção social (FRASER, 1997). O encontro teórico do marxismo clássico
(em que o Estado é o comitê de negócios da burguesia) e o marxismo do século
XXI está na possibilidade de, em se perpetuando a forma política do Estado, fazer
dele um aparelho voltado para as transformações necessárias no caminho de uma
sociedade economicamente igualitária. Pressupõe então participação social nas
decisões do Estado, ou seja, em políticas públicas.

Esse encontro já estava presente em Lenin (1902), e no marxismo do próprio Marx


(MARX, 1997; 2000; 2011; 2012). Mas a dinâmica tornou ainda mais necessário
pensar o Estado (real) como imantado pela sociedade civil, e vice e versa. Portanto
a “tarefa” de pensar a democracia alcança novos contornos na contemporaneidade.

Por um lado, a democracia nos termos da sociedade moderna ocidental expressa a


participação efetiva, igualdade de voto, entendimento esclarecido entre os

76
cidadãos, controle do programa de planejamento, e a inclusão máxima de todos os
adultos (DAHL, 2009). Esses critérios, para Dahl, oferece o máximo de participação
e o mínimo de custos individuais, uma vez que os custos são assumidos
coletivamente. Seu modelo concebe ainda, à luz da sociedade europeia, as
instituições necessárias para que a democracia se concretize: funcionários eleitos;
eleições livres, justas e frequentes; liberdade de expressão; fontes de informação
diversificadas; autonomia para associações; e, cidadania inclusiva (DAHL, 2009).

Contudo, temos condições de avaliar a democracia como um fenômeno histórico


(TILLY, 2013) não linear ou unidimensional. Devem existir elementos que
permitam potencialmente a inclusão e a liberdade de expressão como valores
intrínsecos, medidas protetivas garantidoras dessas premissas. Para Tilly (2013),
seria preciso ainda que as consultas sejam vinculantes, de entrega obrigatória do
compromisso assumido. A experiência histórica dos Estados e das sociedades
devem assegurar elementos que permitam, como regra, a inclusão permanente por
meio dos direitos políticos e civis, mas também sociais e econômicos. Tilly (2013)
demonstra que experiências históricas não democráticas podem acelerar processos
democráticos a partir de pactos entre governantes e sociedade civil, que fogem a
modelos europeus de valores e instituições preexistentes para a democracia efetiva
(SANTOS, 2005). Os países do cone sul apresentam diversos exemplos desses
processos, com ou sem o Estado, em que os valores democráticos e instituições
democráticas são conjuntamente formados.

Uma leitura alternativa, no âmbito de um projeto epistemológico


contrahegemônico, proposto por Santos e Meneses (2010), democracia pode
refletir antagonismos regionais significativos, contrastando inclusive com modelos
já consolidados na literatura. Reafirma, portanto, a historicidade de qualquer
definição de democracia e vai além permitindo análises em que as próprias relações
locais reconfiguram os valores democráticos ou reinventam processos
emancipatórios (SANTOS, 2005), mobilizando para isso projetos políticos
libertários, contrahegemônico e plurais.

Os impactos sociais e políticos do processo de democratização no Brasil, por

77
exemplo, nos apresentam reflexões importantes para pensar “nossa democracia”.
Instituições participativas (conselhos, colegiados, comitês) iniciam uma
democratização da democracia ampliando em muito os horizontes de
possibilidades das populações envolvidas, seja pelo aprendizado político seja por
avanços concretos de implantação de políticas a partir da inserção de demandas
coletivas em políticas públicas, produto do processo decisório daquela instituição
participativa. Espaços participativos (conferências, fóruns) ensinam e organizam
demandas coletivas além de permitir a participação política direta de grupos
demandantes, consolidando a experiência democrática em contornos não
previstos. Os públicos participativos, em espaços não deliberativos ampliam o
aprendizado do diálogo e da escuta, mas também do empoderamento de grupos e
atores sociais antes não atendidos na esfera pública.

Se, ao longo do século XIX, a democracia foi considerada como uma forma de
governo comandada nos quadros do liberalismo, no século seguinte essa definição
se alarga a partir da própria experiência de participação promovida pelos processos
democráticos. Como nos assegura Bobbio (2009) a democracia transbordou as
perguntas “quem governa?” e “como governa?”, sendo necessário compreende-la
como o conjunto de instituições e exercícios de procedimentos que permitam a
efetiva participação dos interessados na deliberação dos assuntos coletivos
(BOBBIO, 2009). A democracia substantiva, portanto diz respeito a superação das
promessas não cumpridas do liberalismo, superando os paradigmas tradicionais e
modernos de democracia, seja pelainsuficiência em resolver os problemas
engendrados por ela mesma, seja por não garantir a efetiva inclusão e participação
nos processos decisórios para todos (LESSA, 2002). Uma democracia
contemporânea deve, portanto, passar pela ampliação da participação social nas
decisões coletivas, mas também, e de forma substantiva, na ampliação de sua
própria definição, alargando a esfera do político e do social, para uma
democratização não apenas normativa.

Desse modo, a democracia no Brasil contemporâneo, ainda que partamos de


premissas previstas nas teorias políticas contemporâneas, assume na experiência
histórica caminhos não previstos (AVRITZER, 2009) que devem ser analisados a

78
partir de experiências concretas de e com a participação social. Que esteja presente
uma construção histórica, política e pedagógica, de processos de democracia em
que o que está em disputa é o projeto político democrático societal muito mais do
que as instituições isoladamente ou os procedimentos stricto sensu. (DAGNINO,
OLVERA e PANFICHI, 2006). Ler “democracia” exige-nos, portanto, no campo
teórico-metodológico uma leitura de mundo (FREIRE, 1988).

Desenvolvimento, políticas públicas e o alargamento da questão


democrática

Por outro lado, enquanto as democracias em geral se debatem com a incapacidade


de resolver a questão das desigualdades econômicas e sociais (ainda que tenham
resolvido parcialmente as questões das desigualdades políticas e dos direitos civis),
encontramos ao longo dos anos 1990 e 2000, sobretudo na América Latina e, no
Brasil em particular, um tensionamento da sociedade civil para ampliar a escuta
estatal no que diz respeito a suas demandas políticas.

Com o retorno da “mormalidade” eleitoral o olhar da sociedade volta-se para as


políticas públicas e a questão do desenvolvimento (DURIGUETTO, 2007). Assim,
as questões acerca do desenvolvimento e das políticas públicas passam a compor
um quadro crítico da participação social, portanto, do que estamos chamando aqui
de alargamento democrático, em concordância com o que Avritzer (2005) vem
sinalizando em suas pesquisas recentes sobre participação social. Em que pese o
aprofundamento da tensão entre democracia total e parcial, ou da disputa entre
projetos políticos democrático-participativo e neoliberal, a sociedade tem
tensionado o Estado para que sejam observadas novas e renovadas formas de
participação social no que tange a política pública e estratégias de
desenvolvimento, sobretudo aquelas que possibilitem reinventar a democracia.

Uma questão inicial se coloca após essa breve abordagem dos processos de
desenvolvimento: quais processos de globalização e desenvolvimento local?
Globalização e desenvolvimento local estão em campos distintos de um mesmo

79
processo dialético, complexo e contraditório, exercendo-se mutuamente agregação
e desagregação na dinâmica das relações internacionais. Santos (2005) nos chama
a atenção para percebermos que o fenômeno da globalização não é a supressão dos
“localismos”, mas a hegemonia de um “localismo” sobre os outros. As interações
dialéticas entre os processos globais de desenvolvimento e as estratégias locais
configuram a dinâmica das relações internacionais.

Por outro lado, a globalização é parte do processo de internacionalização do


capital, exacerbado pela tecnificação e pela cientificização da relação homem x
natureza. Condições muito particulares expressam essa nova fase do processo
secular de globalização, seja pela intensidade e velocidade impressas dos processos
produtivos, seja pelo processo de precarização e fragilização das relações de
trabalho. São, assim, características que se ampliam se pensarmos os processos
informacionais, tecnológicos e produtivos.

O momento histórico da globalização, por esse prisma, não é somente uma fase da
internacionalização do capital, mas sua explicação paradigmática desse processo
mais amplo (SANTOS, 2005): um novo paradigma que emerge sob o domínio da
precarização do trabalho, velocidade informacional, exacerbação da técnica e
uniformização da cultura. A globalização opera num universo de diversidades,
desigualdades, tensões e antagonismos. Operações articuladas com a dimensão
global, abrange e subsumi, recriando singularidades e localidades.

Ao mesmo tempo, a globalização exerce um efeito contraditório sobre a


organização espacial, demandando uniformização e padronização dos mercados,
produtos e culturas, recriando e reproduzindo diversidades que conflitam com
padrões, mercados e culturas locais não hegemônicas. Essa tensão coloca em
articulação o local e o global, ou, como tem nos convidado a pensar Santos (2003),
encaminhandopnos para aproximações, conformando o que denominou de glocal.

A uniformização, contraditoriamente, pode difundir processo de resistência e


valorização cultural a partir do local, construindo um discurso contra-hegemônico
à padronização e à uniformização, seja do ambiente das relações sociais ou das

80
relações políticas de com “a política”. Decorrem daqui diversos movimentos que
buscam reinventar processos de emancipação e resistência, não apenas no campo
da cultura, mas da economia e da política. De um lado, o processo hegemônico
globalizante; de outro, os processos de resistência e confronto, reafirmando
valores, hábitos, costumes, modos de fazer e de agir diante de fenômenos sociais.

Como parte do projeto de internacionalização do capital, a padronização


pressupõe a desestruturação e a desorganização das economias locais, tanto
quanto o capital necessita abrir novos espaços e mercados. Fraciona e fragmenta,
assim, a economia local, interligando, com ou sem incorporação, os mercados e
economias locais e regionais.

De que desenvolvimento, então, estamos falando? Associados a que processos de


globalização? Como considerar as dimensões locais? Qual o projeto político em
questão? Outros problemas surgem ainda quando partimos de realidades locais
específicas, onde a história de concentração de renda e de exploração foi mais
intensa, como é o caso dos países da América Latina.

Contudo, algumas condicionantes desse processo possibilitaram uma ampliação


de “oportunidades” econômicas que influenciam, ou mesmo determinam, esse
cenário: a democratização da comunicação, com o barateamento e a ampliação de
redes sociais; o mesmo para o transporte; o mercado, a virtualidade e o
desenvolvimento de instrumentos de comunicação digital que possibilitam o
acesso a mercados e comunicam, por meio informatizado, compradores e
vendedores em espaços distantes, com menor custo e volume de capital. Nesse
sentido, os processos de globalização em curso associam centralização econômica
e descentralização produtiva, fazendo interagir sistemas de redes produtivas e
atores específicos. Interessa-nos, aqui, o potencial aberto pelo sistema e a
fragilidade na estrutura produtiva que esse processo promove.

Contraditoriamente, como falamos acima, essa integração de mercados e


economias globais e locais se dá de forma destrutiva, posto que, na mesma medida
que integra, também desfragmenta e desterritorializa as economias locais, além de

81
fragilizar o Estado-nação como unidade unificadora, contribuindo, dessa forma,
para o aparecimento de espaços subnacionais, territoriais e locais que viabilizem
interações outras. Apesar da relação fragilizadora, o que se percebe, na prática, é
um Estado cada vez mais forte e interventor das relações produtivas, sempre a
serviço do capital.

Aqui se encontram as perspectivas de desenvolvimento local eglobalização,


democracia e participação social. Os processos de desenvolvimento local no
cenário da globalização estão cada vez mais dependentes das estratégias de
mobilização e intervenção dos atores políticos externos. As perspectivas, portanto,
para a efetividade do desenvolvimento local, ou nos territórios, estão cada vez mais
dependentes da ampliação da participação social nas instituições e espaços
participativos. As instituições participativas assumem um papel crucial porque
possibilitam uma maior inserção das demandas sociais, que podem interferir em
maior ou menor grau as estruturas produtivas.

Na perspectiva do empoderamento das economias locais, dos grupos sociais e dos


processos políticos, processos de desenvolvimento, descentralização e localidade
assumem outro papel na construção do projeto político. Complementam-se
mutuamente, mas distinguem-se quanto aos públicos participativos.

Podemos dizer que, ao falar de descentralização, estamos conversando sobre


aspectos político-institucionais e processos decisórios que permeiam as formas de
organização e cultura política de uma sociedade determinada e a administração
pública na condução de políticas e programas. Ainda assim, é nesse momento que
compreendemos a relevância desse processo para o desenvolvimento local ou do
que estamos chamando de projetos locais ou localismo. Essas iniciativas, muito
comuns em projetos políticos de gestões progressistas, mas não exclusivamente,
reformulam a própria estrutura da administração pública para dar conta da
descentralização. As experiências que observamos no capítulo anterior são
exemplos dessas iniciativas. Na dinâmica fica difícil saber se a origem se deu a
partir da pressão da sociedade civil ou como iniciativa mesma da gestão da
administração pública, seja como produto de uma mobilização anterior de

82
movimentos e forças políticas progressistas, seja como uma conjuntura política em
que mesmo projetos conservadores descentralizam políticas para aproximar a
sociedade de seu projeto. Um governo conservador pode, dada uma conjuntura
política, adotar medidas como planejamento participativo ou audiências públicas
para referendar suas intenções, ou vincular orçamentos a prefeituras por bairro,
etc. Do mesmo modo, um governo progressista pode restringir a consulta e a
deliberação de públicos participativos em um dado momento, ante a
impossibilidade de atendimento às demandas sociais apresentadas, frustrando
grupo e movimentos. Teremos, aí, algumas distinções no processo e nos resultados,
mas que fogem ao escopo desse trabalho, pois não teríamos condições de avaliar
essa assertiva nos casos específicos e concretos.

No entanto, ainda que seja um ato político gerador ou produto, a descentralização


das políticas e programas pode representar um importante começo para o
desenvolvimento local e a ampliação da esfera democrática, recriando
institucionalidades, promovendo arranjos institucionais democratizantes e
criando ambiência favorável para que o processo decisório aconteça com efetiva
participação social, autonomia e empoderamento coletivo (SANTOS, 2005).

Em outra perspectiva, não menos relevante, a descentralização representa uma


mudança nas relações de poder presentes em todos os lugares. Foi a constituição
de 1988 que proporcionou a descentralização da autoridade política, conferindo às
administrações municipais recursos suficientes e independência política para
reestruturar o processo de produção de políticas públicas (COELHO e NOBRE,
2004). Uma nova relação de poder é estabelecida, possibilitando aos atores
políticos maiores reflexão e interesse sobre os assuntos da política, orçamento
municipal e contas públicas. Para Wampler e Avritzer (2004), os processos de
democratização e descentralização não pararam mais, impulsionando a agenda de
governos para a criação de procedimentos cada vez mais amplos e democráticos
(COELHO E NOBRE; NOBRE, 2004). As instituições participativas se ampliam,
recolocando a relação de poder para os atores locais. Essa observação que
encontramos nos autores citados também é confirmada por pesquisas mais

83
recentes (SANTOS, 2005; HOCHMAN, ARRETCHE E MARQUES, 2007;
AVRITZER, 2009, 2010; GOHN, 2014).

Os espaços participativos (fóruns, assembleias, audiências públicas, conferências


etc.) e as instituições participativas (conselhos, colegiados, fóruns etc.) concorrem
cada vez mais na agenda política das organizações sociais e articulam políticas
públicas com maior e mais efetiva participação social nos diversos setores. Avritzer
(2009, 2010) nos traz um conjunto de experiências de participação social, com ou
sem processos deliberativos. Coelho e Nobre (2004) também nos informam, a
partir de experiências institucionais no Brasil contemporâneo, que os processos de
deliberação constituem uma experiência inovadora na sociedade brasileira, com os
limites socioculturais e históricos.

Para compreender essa mudança nas relações de poder e sua relevância política
para poderes públicos e para a sociedade, é fundamental fazer a distinção entre
descentralização e desconcentração. A literatura em torno do tema tem tratado
essa distinção necessária sob três aspectos: a abrangência e a intensidade na
transferência de funções e os espaços de participação (ou de poder) entre
instâncias superiores hierarquicamente na estrutura administrativa brasileira. De
certo modo, estamos falando basicamente da União, estados e municípios.
Enquanto a descentralização representa a transferência de autonomia e poder
decisório entre essas instâncias (seja ela entre União e estados ou União e
municípios, ou o inverso, partindo de municípios para a União e estados), a
desconcentração diz respeito somente a uma certa distribuição de
responsabilidades executivas em programas, projetos ou atividades ordinárias, sem
que isso represente transferência de autoridade ou garanta autonomia decisória.
Essa confusão do pacto federativo se estendeu por mais de dez anos após carta de
1988, sobretudo para as políticas sociais e garantia de direitos (SILVA, YAZBEK,
2008; BEHRING e BOSCHETTI, 2011). Descentralização de políticas constitui-se,
dessa forma, como uma mudança profunda na estrutura da administração pública.
Distribui poder decisório e responsabilidades políticas entres os atores políticos,
ultrapassando o mero repasse de tarefas. Veremos mais adiante como essa

84
distinção é assaz relevante para a compreensão mesma do que é o planejamento
participativo na esfera das organizações, dos poderes públicos etc., posto que não
se trata de “dividir” atividades e tarefas, e sim uma compreensão mais profunda da
partilha do poder decisório, dos objetivos comuns ou coletivos, assumidos e
pactuados coletivamente.

Importante perceber que a descentralização pode constituir uma dupla leitura.


Estando em compasso com os processos de globalização, representa uma
fragilização do Estado como unidade unificadora, reduzindo seu poder na
organização, intervenção e definição do “projeto de desenvolvimento”. Por outro
lado, constrói novas institucionalidades e novos arranjos políticos comprometidos
com a unidade administrativa, dessa vez consolidada na estrutura social. A
fragmentação abre uma indeterminação no processo decisório, no qual têm se
consolidado processos participativos mais amplos.

Como informamos mais acima, os processos de descentralização têm acontecido


na história recente em dois níveis, distintos e complementares, conforme o agente
que recebe as responsabilidades e a arena decisória das instâncias públicas
hierarquicamente superiores. Então, temos:

QUADRO 1 RELAÇÃO ESTADO E SOCIEDADE: CENTRALIZAÇÃO X DESCENTRALIZAÇÃO


ESTADO-ESTADO ESTADO-SOCIEDADE
Transferência de funções e Democratização da gestão e
responsabilidades da gestão interna ao transferência para a sociedade o
setor público processo decisório e execução de
atividades, gestão de recursos e
prestação de serviços anteriormente
nas mãos dos poderes públicos
União para os Estados; Estado para Estado para a sociedade civil
municípios; ou ainda entre unidades organizada, ONGs, Associações
governamentais Cooperativas
Ex: Descentralização de recursos via Ex: Implantação de políticas públicas,
FUNDEB para a educação ou SUS no projetos educacionais, definição
caso da saúde; Transferências diretas orçamentária, PPA etc.
de recursos;
Fonte: Elaboração do autor a partir de modelos de análise nas referências.

A descentralização pode, ainda, ganhar contornos mais profundos no segundo

85
caso, pois, além do repasse das ações antes executadas pelo Estado, há um repasse
de responsabilidades de decisão e deliberação, como no caso das instâncias
participativas (conselhos, colegiados etc.). Por meio das organizações sociais, a
sociedade assume a deliberação por políticas, característica fundamental para
compreender a ampliação da democratização das políticas.

Outros exemplos são a municipalização e a territorialização de políticas públicas


como forma de descentralização administrativa. A União ou os estados transferem
para as unidades administrativas municipais e territoriais os recursos e o poder
decisório. Para o caso dos municípios e territórios já existem, consolidados na
constituição e legislação complementar, procedimentos e regulação própria. Ainda
assim, necessita de regulação o caso das instâncias colegiadas nos territórios de
identidade, por exemplo. Essa dinâmica amplia o processo de democratização das
políticas porque nas instâncias colegiadas territoriais estão atores políticos dos
mais diversos, inclusive os poderes públicos, conforme analisamos em outro
trabalho (CRUZ, 2015).

As formas, portanto, de descentralização para a esfera municipal ou territorial


possibilitam uma partilha de recursos e poder entre os entes públicos, mas com
alguma ampliação das dependências entre esses atores políticos. É distribuída não
somente a responsabilidade decisória, mas a priorização das ações. Os formatos
nos municípios e territórios, a partir dessa descentralização, dependerão das
disputas e da correlação de forças nos municípios e territórios, dos grupos de
pressão, da arena decisória e das instituições nos territórios.

A descentralização não é um fenômeno de países em desenvolvimento; é, antes,


um fenômeno mundial, em maior ou menor escala, alcançando fortemente aqueles
cujos arranjos institucionais locais ainda são frágeis. Com certa incongruência, é
justamente onde os Estados se mantêm como unidade centralizadora que esse
processo se dá, sem que isso represente falência do mesmo ou uma debilidade
institucional, conforme observamos anteriormente. No Brasil, esse processo,
iniciado com a Constituição de 1988 a partir do fortalecimento dos municípios e
das organizações da sociedade civil, combinou descentralização política e decisória

86
e desconcentração de programas e políticas públicas. A participação social
ampliou-se, contribuindo fortemente para que os processos democráticos – e com
eles uma nova geração de políticas públicas – pudessem estar no horizonte
(AVRITZER, 2010).

Pode, então, a descentralização de políticas públicas ampliar a participação social


nas diversas arenas decisórias, contribuindo para “democratizar a democracia”?
Santos (2005) afirma que é possível. Sob outro ângulo, a descentralização constitui
uma abertura democratizante no centro do aparelho burocrático, contribuindo
para um atendimento mais eficaz das demandas sociais. Além disso, diminui a
distância entre atores políticos e os problemas reais da sociedade ou entre o
próprio aparelho burocrático e os governos, permitindo a criação de instâncias
participativas mais efetivas e com maior poder decisório. Amplia a ação política de
fora para dentro do Estado, para além dos momentos de mobilização social e
pressão por ampliação de direitos e acesso a bens e serviços. Promove, portanto,
um maior interesse pela esfera pública.

Importante lembrar que, no caso do processo histórico brasileiro, remontando à


nossa forma de colonização e mesmo ao período republicano, os localismos
encontraram formas de regionalização da política, formando elites políticas locais
que controlavam de forma privada a esfera pública. Atuando de forma patrimonial
e patriarcal, as elites políticas, que quase sempre eram também elites econômicas,
mobilizavam recursos suficientes para controlar amplo tecido social com vistas a
garantir a hegemonia local (FAORO, 2008). O coronelismo é um fenômeno datado,
mas com marcas culturais ainda presentes.

Esse processo de ampliação da participação social e descentralização não pode,


contudo, ser confundido com a recriação dessas estruturas locais de mandonismo
e coronelismo, sendo necessária uma vigilância constante dos atores políticos, no
sentido de garantir uma uniformidade de procedimentos e uma ampla e irrestrita
participação social, impedindo que oligarquias locais se coloquem à frente do
processo decisório manobrando, controlando e às vezes obstaculizando a tomada
de decisão por parte dos atores políticos representativos ou eleitos.

87
Por fim, democracia e participação associadas à descentralização de políticas
tornam-se complementares: de um lado, viabilizam a participação social de atores
políticos compartilhando tomada de decisão (processo decisório) e transferência
de poder; de outro, contribuem para a formação de novos arranjos políticos locais,
fortalecendo o interesse e a politização de atores políticos locais, comunidades e
territórios (DAGNINO; OLVERA; PANFICHI, 2006; AVRITZER, 2007, 2010).
Fundamentalmente, contribuem para a mudança da cultura política local,
semeando novas formas de organização, enfrentamento político e relação com os
poderes públicos.

Considerações do processo: participação além dos espaços e das


instituições participativas

Ao longo de nosso artigo buscamos identificar os contornos teóricos da crise


instalada nas democracias latinoamericanas, bem como possíveis alternativas a um
cenário adverso.

O ódio à democracia, como procedimento e como objetivo societal (RANCIERE,


2016), aparecem como crises locais fruto de processos históricos das formações
sociais nacionais. Ela emanam de uma elite político-economica que controla, em
geral, os maiores veículos de comunicação e empresas. Trata-se de uma
contestação aos desdobramentos dos anos anteriores que ampliaram a
participação social nas políticas públicas, no sentido expressado por Santos (2005),
da democratização da democracia (SANTOS, 2005), e que parecia fazer parte de
um projeto político consolidado. Em nossa compreensão esse panorama, abordado
por outros autores nessa coletânea, demonstra que o cenário é de igual relevância
para toda a América Latina, com retrocessos significativos nas políticas de
democratização e inserção de populações nos direitos sociais, econômicos e
políticos.

De certo modo, o cenário para uma alternativa nos remonta a década anterior,
onde as democracias alcançaram seu ápice até então nas históricas republicanas.

88
A crise das democracias, sobretudo as latinoamericanas, não devem ser
subestimadas. Do ponto de vista analítico, onde se debruçam os pesquisadores do
tema para compreender as causas, os processos e aprendizados, essa perspectiva
deve ser inserida em uma análise ao menos regional, observada a dimensão que ela
(a crise) repercute nos governos e na sociedade.

Até então o que observamos é que os governos latinoamericanos tem optado por
redirecionamentos não democráticos ou menos democráticos do que o período
anterior, dada as dificuldades geradas pelos sistemas eleitorais para participação,
economias nacionais em crise, aumento das dívidas públicas, redução das políticas
sociais e endividamento das unidades federadas. Exceção temos Uruguai, onde a
Frente Ampla já encontra problemas para manutenção no governo, e Bolívia, em
que medidas não democráticas começam a ganhar justificativa econômica. O
Equador prepara-se para um conjunto de cortes nos direitos sociais.

O caso do Brasil é emblemático. A maior economia do continente, enfrenta um


golpe parlamentar que, pelo visto, deverá se perpetuar até as próximas eleições. Os
resultados desse golpe acompanham reformas trabalhistas e previdenciárias com
perda de direitos conquistados ao longo dos últimos 50 anos pelos trabalhadores.
Não só isso: as restrições aos programas sociais passam por redução de cortes
orçamentários, alterações administrativas (como o fim do Ministério do
Desenvolvimento Agrário e do Desenvolvimento Social), além de alterações nas
políticas sociais de habitação e transferência de renda.

Contraditoriamente, as populações não parecem ter acompanhado passivamente a


esses retrocessos e restrições não democráticas. Tomarmos Brasil, Argentina, Peru
e México, observamos uma densidade significativa de movimentos políticos e
protestos acontecendo todos os dias. Mas perderam seu potencial organizativo
com a fragilidade dos partidos, sindicatos e dos movimentos sociais. Parte dessa
fragilidade está mesmo na dificuldade econômica e de oferecer respostas ao
contexto de crise. Mas, sobretudo, pelo ataque constante dos meios de
comunicação (como no caso do Brasil e Argentina).

89
A alternativa política para enfrentamento a esse retrocesso, no âmbito da
democracia liberal está no aprendizado da ampliação dos espaços participativos e
decisórios de políticas públicas. Essa pode ser uma alternativa onde a sociedade
possa construir políticas públicas nos diversos setores, inclusive os estratégicos
como energia e infraestrutura, tensionando para a ampliação desses espaços.

É de onde também somos instados a pensar que a união estável entre democracia
e capitalismo está fundada, desde sempre, em um modelo que alcança o limite
sempre que as democracias ensaiam libertar-se do capital. Esse limite não quer
dizer fim da história, antes pelo contrário.

Se os processos de transformação e resistência estão relacionados a participação


política e social a indeterminação que nos falamos mais acima, e encetada a partir
das intensas mobilizações retomadas nos últimos cinco anos, nos colocamos em
um momento de crise que acena para uma tentativa de construção de um novo
cenário político, em que a participação política ultrapasse as eleições (como de fato
tem acontecido em toda América Latina) e que se renove com novas proposições
de alargamento democrático. O limite desse alargamento, como já posto, sempre
será a superação das desigualdades inaceitáveis.

As saídas para a crise não podem estar alheias à mobilização popular.

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96
97
4. A PRODUÇÃO DO GOLPE NO BRASIL

Luis Felipe Miguel

O experimento democrático iniciado no Brasil na segunda metade da década de


1980 sempre foi limitado. O acesso à cidadania política é igualitário apenas
formalmente, uma vez que os recursos para influenciar nas decisões públicas,
como o poder econômico ou o acesso aos meios de comunicação, estão
concentrados nas mãos de poucos. Estes poderosos estão acostumados a impor
restrições, tácitas ou explicitadas, ao exercício da soberania popular. São
problemas comuns a todos os países em que as regras democráticas precisam se
adaptar às estruturas de dominação que organizam a sociedade – capitalismo,
sexismo, racismo. Mas eles se tornam mais agudos quando, como é o caso
brasileiro, os grupos privilegiados são muito ciosos das hierarquias sociais e
mostram baixa tolerância à igualdade.
O PT no poder demonstrou ter entendido que estes limites estavam em vigor e
optou por se curvar a eles, priorizando mudanças de baixa intensidade, que
permitissem enfrentar as privações mais graves das populações despossuídas sem
ameaçar a reprodução da dominação social. Mesmo assim, foi apeado do governo,
em ação extraordinária que desrespeitou a legalidade. Sua prudência foi
insuficiente. Talvez seja possível afirmar, sobre os limites que os grupos
dominantes impõem à democracia, algo similar ao que Offe disse sobre o poder
que a burguesia tem de definir o nível mínimo aceitável para a remuneração do
capital: “o que eles consideram uma carga [tributária] insuportável é efetivamente
uma carga insuportável, que conduzirá de fato a uma baixa da propensão a
investir”7. Não há um critério externo à sensação de satisfação ou risco.
O motor do impeachment foi essa percepção, por parte dos grupos dominantes, de
que era necessário interromper o ciclo petista. Não pretendo aqui reconstituir os
fatos que levaram à deposição de Dilma Rousseff, nem como, ao longo desta trama,

7
Claus Offe, “De quelques contradictions de l’État-providence moderne”, em Les démocraties modernes
à l’épreuve (Paris: L’Harmattan, 1997), p. 84. A publicação original é de 1984).

98
foram muitas vezes rompidos os limites da lei, da ética e do decoro – as fragilidades
da peça jurídica que embasou o processo, as motivações de Eduardo Cunha, as
manobras de Michel Temer. Pretendo, isso sim, identificar uma sequência de
quatro movimentos que levaram à ruptura da conciliação petista, culminando com
a ruptura da própria democracia.
(1) No início de seu primeiro mandato, Dilma Rousseff julgou que poderia
introduzir algumas mudanças no pacto que herdara de Lula, acendendo sinais de
alerta e revigorando a hostilidade de grande parte dos aliados de ocasião. (2) Os
protestos populares de 2013, conhecidos como “jornadas de junho”, revelaram a
crescente fissão entre o PT e uma larga fatia de sua presumida base eleitoral. (3)
No ano seguinte, a derrota eleitoral da direita, em certa medida surpreendente,
ampliou sua frustração com as regras vigentes. (4) A capitulação de Dilma, no
início do segundo mandato, minou o apoio da base social que ela poderia mobilizar
em defesa da legalidade. A esses quatro movimentos, é preciso acrescentar o papel
dos interesses internacionais e também a atuação seletiva do aparato repressivo do
Estado. É esse conjunto de fatores que será analisado neste capítulo.
Dilma Rousseff chegou à presidência por efeito do escândalo do mensalão, que
atingiu em cheio a cúpula petista e retirou do páreo os principais pretendentes do
partido à sucessão de Lula. Ministra de perfil mais técnico, apesar da longa
militância na esquerda, ela conquistou a estima do presidente por seu desempenho
no governo. Sem nunca ter concorrido a uma eleição antes, enfrentava a
desconfiança da elite política em geral, incluindo seus próprios correligionários,
diante dos quais sofria ainda com o agravante de não ser petista de raiz – havia sido
filiada inicialmente ao PDT de Leonel Brizola. Sua vitória em 2010 foi em geral
creditada ao patrocínio de Lula, uma interpretação que por vezes é tingida de
sexismo, mas que encontra fundamento na realidade: ela entrou na campanha
como uma quase desconhecida, ele era o maior líder popular da história do país.
No governo, Dilma julgou que era possível introduzir algumas mudanças em
relação ao arranjo lulista que herdara, sempre com prudência. Uma delas foi
confrontar alguns dos esquemas de corrupção presentes em áreas sensíveis do
Estado brasileiro. A faceta mais visível foi a chamada “faxina ética”, que levou à
demissão de vários ministros sobre os quais pesavam denúncias de corrupção –

99
foram seis só no primeiro ano de governo. A presidente construiu a imagem de
enérgica no combate à corrupção, o que lhe valeu ganhos de popularidade. Ao
mesmo tempo, permanecia o loteamento dos cargos entre os partidos da base
aliada. O horizonte parecia ser o de um governo “limpo” (sem roubalheira) mas
sustentado pela política “suja” (do toma-lá-dá-cá): a classe política podia continuar
a parasitar o Estado, mas dentro de certos limites. Sem tanta visibilidade quanto
as mudanças ministeriais, mas prenhe de maiores consequências, foi o afastamento
de alguns dos principais operadores dos esquemas de corrupção nas empresas
estatais.
A relação de Dilma com os integrantes da elite política nunca foi fácil, pelo perfil
técnico, por traços de personalidade da presidente e mesmo pelo fato de ser
mulher, dificultando a integração num ambiente tão marcado por um éthos
masculino e sexista – de fato, junto às lideranças políticas, tanto quanto nas ruas,
nas redes sociais e na mídia, houve um significativo traço misógino na
desqualificação da presidente. A situação só se deteriorou com a tentativa de mexer
em alguns dos esquemas consolidados de rapinagem e com a pouca disposição para
demonstrar solidariedade aos abatidos por denúncias.
A outra mudança que Dilma tentou introduzir foi na política econômica. Como
avanço em relação ao período anterior, ela tentou promover o que André Singer
chama, prudentemente, de um “ensaio desenvolvimentista”8 – um ensaio, já que a
chamada “nova matriz econômica” não representou um enfrentamento cabal com
o rentismo, nem um mergulho numa política desenvolvimentista plena, mas uma
espécie de tateio para verificar as possibilidades de caminhar nessa direção. Seja
como for, houve um esforço para reduzir a taxa de juros, que no Brasil permanece
em patamares estratosféricos há décadas. O objetivo era favorecer o investimento
produtivo em detrimento da especulação financeira, cuja remuneração seria
reduzida. Para tanto era necessário também trabalhar com metas inflacionárias
mais elásticas, a fim de não restringir a capacidade de intervenção do governo, e
desvalorizar a moeda, duas medidas que facilmente seriam vendidas ao público
como indícios de “descontrole” da economia.

8
André Singer, “A (falta de) base política para o ensaio desenvolvimentista”, em André Singer e Isabel
Loureiro (orgs.), As contradições do lulismo (São Paulo: Boitempo, 2016).

100
Nessa queda de braço com o sistema financeiro, Dilma pensava contar com o apoio
dos dois setores objetivamente beneficiados com a nova matriz econômica: a classe
trabalhadora e a burguesia industrial. O apoio dos trabalhadores foi tímido, o que
reflete tanto a incapacidade de mobilização popular, que é uma das características
definidoras do lulismo, quanto a ambivalência das cúpulas sindicais gestoras de
fundos de pensão em relação ao enfrentamento com o rentismo. Mas o principal
percalço foi a ausência de apoio dos industriais, reencenando a tragédia
permanente da esquerda brasileira: ela prepara tudo, mas a burguesia sempre falta
ao encontro. Quer por suas vinculações com o capital financeiro, quer por seu
temor diante de um governo que se mostrava capaz de orientar eficientemente a
economia, a burguesia industrial não se empolgou com a mudança na política
econômica. Singer anota que, ao mesmo tempo em que enfrentava a batalha da
taxa de juros, o governo colidiu com empresas do setor produtivo, impondo limites
aos ganhos de concessionárias em setores como energia elétrica ou transporte.
Com isso, reduziu sua base potencial de apoio e “catalisou a solidariedade
intercapitalista”9.
O enfrentamento ao rentismo foi dificultado também pelo fato de que seus
interesses e a crença nas receitas da ortodoxia econômica estavam enraizadas em
setores do governo, levando a medidas contraditórias. A batalha já estava
praticamente perdida quando eclodiram os protestos de rua que sinalizaram que,
para largas parcelas da população, as reformas restritas do lulismo eram
insuficientes. As “jornadas de junho” foram um fenômeno complexo, cujo primeiro
resultado foi revelar que os modelos com os quais os analistas políticos em geral
trabalham, restritos às instituições, são insuficientes para apreender a dinâmica do
conflito social10.
As manifestações contra o aumento nas passagens do transporte coletivo
ganharam dimensão maior do que a esperada, num processo que é possível dividir
em três momentos (ainda que a cronologia não seja rígida). Primeiro, a adesão
superou, e muito, a capacidade de organização do Movimento Passe Livre (MPL).

9
Id., p. 51.
10
Cf. Luis Felipe Miguel, “Democracia fraturada: o golpe, os limites do arranjo concorrencial e a
perplexidade da ciência política”, em Luis Felipe Miguel e Flávia Biroli (orgs.), Encruzilhadas da
democracia (Porto Alegre: Zouk, 2017).

101
Depois, a pauta foi ampliada, demonstrando a insatisfação não só com o
transporte, mas com os serviços públicos em geral. Por fim, os protestos foram
parcialmente colonizados por uma pauta antipolítica e de combate à corrupção,
própria do registro discursivo mais conservador, com a adesão de setores da classe
média.
Do primeiro para o segundo momentos, ocorre a indicação de que a base social dos
governos petistas queria mais do que estava sendo oferecido a elas. Embora haja
um toque de exagero na imagem apresentada por Ruy Braga, de trabalhadores em
condições cada vez mais precárias sendo tantalizados pela perspectiva de fazer um
curso superior privado noturno com financiamento pelo FIES11, o fato é que o
arranjo lulista tanto privilegiou a oferta de empregos de baixa qualificação e baixo
salário quanto tinha dificuldade de prover melhorias expressivas nos serviços
socializados. A opção pela inclusão pelo acesso ao mercado satisfazia o
compromisso de não interromper a privatização do fundo público. Mas o morador
da periferia que comprou uma geladeira nova com subsídio governamental
continuava precisando de educação, saúde e transporte.
Do segundo para o terceiro momentos, o que intervém é a compreensão, por parte
da oposição de direita, que há uma fissura a ser explorada. A mudança na cobertura
jornalística é reveladora. O registro da “baderna” foi substituído pelo da
“mobilização cívica”. Houve um grande esforço para separar a “minoria” de
manifestantes violentos, que precisavam ser reprimidos, da maioria pacífica e
respeitosa – desde então, a estigmatização dos adeptos das táticas de autodefesa
black bloc serve para legitimar a repressão policial aos movimentos de rua12. Os
atos passaram a ser praticamente convocados por jornais e emissoras de televisão
(prática que se repetiu durante o processo do impeachment de Dilma), que por
vezes os transmitiam ao vivo e davam destaque desproporcional mesmo a
pequenas passeatas com poucas dezenas de pessoas. Embora as redes sociais

11
Ruy Braga, “Terra em transe”, em André Singer e Isabel Loureiro (orgs.), As contradições do lulismo,
cit.
12
Há um misto de desinformação e má fé na construção dos black blocs como adeptos de um culto à
violência. Seu resultado é também a invisibilização seja da violência estrutural, seja da própria violência
policial. Para um exemplo academicamente sofisticado do enquadramento da direita sobre as manifestações
de 2013, cf. Eugênio Bucci, A forma bruta dos protestos (São Paulo: Companhia das Letras, 2016). Para a
discussão sobre a relação entre violência aberta e violência estrutural, cf. Luis Felipe Miguel, Dominação
e resistência (São Paulo: Boitempo, 2018), cap. 4.

102
tenham sido ferramentas importantes na construção das mobilizações, o peso
predominante da mídia tradicional na construção dos sentidos foi indiscutível.
Foi aberta uma disputa pelo sentido das manifestações, em que os organizadores
iniciais, MPL à frente, tentavam reafirmar seu caráter progressista, ao passo que a
mídia as enquadrava como uma demonstração de descrédito na política, com foco
na corrupção dos funcionários do Estado. Elas teriam como pauta a derrubada da
Proposta de Emenda Constitucional nº 37, que restringia o poder do Ministério
Público na condução de investigações criminais – o que impediria abusos, na visão
de seus defensores, e protegeria os malfeitores, segundo seus adversários. O foco
na PEC 37, algo bizarro, uma vez que era um assunto de interesse corporativo e
localizado, serviu de teste para o discurso do “combate à impunidade”, que
desqualifica elementos do Estado de direito, como a presunção de inocência, o
direito de defesa, o direito à privacidade e as regras para produção legal de provas,
como sendo artifícios que servem apenas para impedir ou protelar a devida
condenação dos corruptos.
Os grupos mais à esquerda viram nas jornadas de junho a possibilidade de
construção de uma mobilização de massa com pauta radical, que desafiasse a
moderação petista. A direita animou-se com o que indicava o declínio da “mágica”
do lulismo. No meio do tiroteio, o PT ficou paralisado. Os movimentos populares
sob influência petista se viram na obrigação de blindar o governo e, com isso,
perderam a oportunidade de dialogar com os manifestantes. Ganhou corpo a tese
de que eram mera massa de manobra da direita, deixando patente que, para muitos
dos intelectuais do petismo, o caminho era não atrapalhar o trabalho do governo
com reivindicações intempestivas. Junho de 2013 marca o aprofundamento da
cesura entre o PT e os movimentos populares aos quais ele se propunha a dar voz
quando nasceu.
De maneira similar, o governo Dilma Rousseff foi incapaz de encontrar sua posição
nesse novo cenário. Sua resposta às manifestações foi sempre ziguezagueante;
quando a presidente se manifestou em rede nacional de televisão, em 17 de junho
de 2013, propôs “cinco pactos”, uma mixórdia que incluía uma reforma política
potencialmente democratizante, mas também aderia ao receituário conservador
da “responsabilidade fiscal”. Fora isso, promessas genéricas em favor da educação,

103
saúde e mobilidade urbana. A preocupação da presidente e de seu círculo era
reduzir os danos até as eleições presidenciais do ano seguinte – quando, se
esperava, tudo voltaria à “normalidade”.
A oposição de direita também viveu 2013 com os olhos postos em 2014. O desgaste
da presidente, cujos índices de “popularidade” medidos por pesquisas de opinião
caíram vertiginosamente, justificava a esperança de uma vitória nas eleições
presidenciais. Em suma: toda a elite política tradicional, independentemente da
coloração partidária, leu as manifestações pela chave do cálculo eleitoral.
O longo período no poder também desgastara a coalizão governante. No segundo
mandato de Lula, já se desgarrara a senadora petista Marina Silva, preterida pelo
partido para a sucessão presidencial. Ela se construiu como candidata com um
discurso focado em dois eixos. Um, a denúncia da decadência ética da política,
levava à ideia de superar a dicotomia esquerda-direita e, em particular, a
polarização PT-PSDB. O outro era a defesa da ecologia. De fato, as administrações
do PT apresentavam um registro muito negativo nessa agenda, espremida entre as
concessões feitas ao capital e o desenvolvimentismo de quem desejava uma política
econômica menos ortodoxa. Marina, que fora ministra do Meio Ambiente por mais
de um mandato, tinha assistido de forma quase passiva a este embate. Como
candidata, apostou na ideia plástica do “desenvolvimento sustentável”, que é a
improvável compatibilização entre capitalismo e preservação da natureza13.
Já no final do primeiro mandato de Dilma, quem abandonou a coalizão foi o
Partido Socialista Brasileiro (PSB), para viabilizar a candidatura de seu chefe, o
governador pernambucano Eduardo Campos, à sucessão presidencial. Apesar do
nome, era um partido eclético, como tantos outros, reunindo posições à esquerda
e à direita. Campos se aproximou de grupos empresariais, adotou uma plataforma
liberal e, para efeito de campanha, também o discurso de superação da polarização
PT-PSDB. Como se sabe, um conjunto de circunstâncias fez Marina Silva compor
chapa com Campos e, com a morte do candidato em acidente aéreo, assumir a
candidatura presidencial do PSB.

13
Romain Felli, Les deux âmes de l’écologie (Paris: L’Harmattan, 2008).

104
A presença de Eduardo Campos ou de Marina Silva permitia que uma parte do
eleitorado abandonasse o PT sem ter que imediatamente cair nos braços de seu
principal opositor. A cobertura da mídia subira o tom várias vezes, tanto sobre a
corrupção, com os desdobramentos da Operação Lava Jato, quanto sobre a piora
dos indicadores da economia, apresentada como consequência direta das medidas
heterodoxas adotadas no início do governo Dilma. Os protestos de junho de 2013
permitiam que fosse explorado o argumento de que os serviços públicos não
atendiam às expectativas da população, deslizando, no discurso da direita, para um
flerte com o anti-estatismo. Os setores da elite política tradicional que se haviam
acomodado com o petismo migraram em grande medida para o outro campo,
sentindo que os ventos mudavam, situação que ganhou uma imagem icônica
quando o ex-presidente José Sarney foi flagrado na cabine eletrônica, portando um
adesivo de Dilma, mas votando em seu adversário. Um adversário, Aécio Neves,
que combinava a aparência “jovem” e “moderna” com a reputação, indevida mas
solidamente sustentada na mídia, de grande administrador, por seus dois
mandatos à frente do governo de Minas Gerais.
As eleições foram renhidas, com Dilma ganhando no segundo turno por uma
diferença de pouco mais de três pontos percentuais. Para a direita, foi um balde de
água fria: mesmo com a conjuntura favorável, com a erosão da base social petista
e com o cerco da mídia e do aparato repressivo do Estado sobre o governo
alcançando o zênite, a presidente se reelegeu. Em 2014, a derrota de Aécio foi mais
importante do que a vitória de Dilma. Ao se ver batida pela quarta vez seguida, a
direita se desiludiu da via das urnas. Rompeu-se o consenso procedimental, aquele
que diz que não há alternativa a não ser jogar o jogo democrático – e se os
resultados são frustrantes, o jeito é envidar esforços para melhorar a própria
posição na próxima rodada, não encontrar alguma maneira de virar a mesa. Esse
consenso, que parecia ser uma grande conquista do regime que emergiu das ruínas
da ditadura militar, mostrou-se frágil diante do novo revés tucano.
No dia seguinte ao segundo turno, com a vitória de Dilma já declarada, começaram
as movimentações para impedir seu governo. No início, havia divisão entre os que
queriam derrubá-la e aqueles que, julgando que este caminho era implausível,
pensavam em mantê-la no cargo, mas sem condições de comandar o país,

105
rejeitando suas propostas no Congresso e mantendo o acosso pela mídia e pelo
judiciário – conforme disse em março de 2015 o senador Aloysio Nunes Ferreira,
candidato derrotado a vice-presidente na chapa de Aécio Neves, “não quero que
ela saia, quero sangrar a Dilma”. As ações pela destituição e a mobilização de rua
serviriam a qualquer das duas opções. Prosperando, levariam à queda da
presidente; caso contrário, mantê-la-iam acuada.
O PSDB acusou o resultado de ser fraudado, exigindo recontagem de votos. Logo
em seguida, pediria à Justiça Eleitoral a cassação da chapa vitoriosa e iniciaria a
articulação dos pedidos de impeachment. Subitamente, o Brasil voltava à situação
de seu experimento democrático anterior, em que os partidos conservadores não
se conformavam com os resultados das urnas e tentavam impedir a posse dos
eleitos. Carlos Lacerda falava de Getúlio Vargas, em 1950: “Esse homem não pode
ser candidato; se candidato, não pode ser eleito; se eleito, não deve tomar posse;
se tomar posse, não deve governar”. Com Dilma já reeleita, tratava-se de obstruir
sua posse ou seu governo14.
Diante da agressividade crescente da direita, Dilma reagiu no modo automático do
lulismo em ação: fazendo mais concessões. Foi notável o contraste entre o discurso
adotado nos momentos finais da campanha, com clara guinada à esquerda, e as
medidas anunciadas logo após a vitória, apontando para um ajuste fiscal recessivo
e impopular. Não é novidade que haja essa décalage entre o que se promete no
palanque e o que se faz no poder. Mais do que uma expressão da célebre boutade
do ex-governador de Nova Iorque, Mario Cuomo, de que a campanha é poesia e o
governo é prosa, há aí um indício da distância entre o princípio da soberania
popular e a realidade das democracias limitadas, em que interesses minoritários
têm enorme capacidade de influência. Em 2014, porém, a contradição se mostrou
tão grande que autorizou falar em “estelionato eleitoral”.
Já durante a campanha, porém, Dilma fizera acenos para acalmar o “mercado”,
anunciando, de maneira insólita, que no segundo mandato substituiria o ministro
da Fazenda, Guido Mantega, principal expressão da nova matriz econômica no

14
Não por acaso, José Aníbal, então suplente de senador e condestável do PSDB, reproduziu a frase de
Lacerda em sua conta do twitter em outubro de 2014, faltando menos de uma semana para o segundo turno
das eleições (https://twitter.com/jose_anibal/status/524697787116830721; acesso em 12 fev. 2017).

106
governo. E antes ainda, na composição dos apoios para a eleição, fragilizado pela
defecção do PSB, o PT radicalizou sua opção de sempre, que era ceder tudo para
garantir a presidência. Isso incluía das alianças para os governos estaduais ao
financiamento das candidaturas para o legislativo. Como resultado, junto com
Dilma foi eleito o Congresso Nacional mais conservador da história.
Assim, o início do segundo governo Dilma foi marcado pela capitulação ao
programa de seus adversários, com o duro ajuste fiscal comandado pelo novo
ministro da Fazenda, um ortodoxo vinculado ao sistema financeiro; pela abertura
do ministério a políticos conservadores e de menor expressão; e pela passividade
diante da ofensiva retrógrada no legislativo, tanto no campo dos direitos quanto
da soberania nacional. Mas as concessões não alcançavam mais seus objetivos. A
fragilidade do governo deflacionava sua principal moeda de troca com a elite
política, os cargos nos ministérios, autarquias e estatais. Era necessário conceder
fatias cada vez maiores do Estado para obter apoios cada vez mais vacilantes,
gerando um círculo vicioso.
A burguesia também mantinha posição ambígua sobre o PT. A combinação de
lucros elevados, reprodução da acumulação intocada e paz social era atraente. Ao
mesmo tempo, ela possui relações umbilicais com os dirigentes da oposição de
direita e nunca deixou de desconfiar da vinculação histórica dos petistas com um
programa político igualitário. A política de pleno emprego dava vantagens aos
trabalhadores nas negociações com os patrões e a redução da vulnerabilidade
social extrema prejudicava os vastos setores que se apoiam na superexploração da
mão de obra. Creio que é incorreto ler a disputa PT-PSDB como sendo apenas “pela
representação política do mesmo bloco burguês hegemônico, capitaneado pelo
rentismo e suas alianças com os industriais e o agronegócio”15. Ainda que o PT
tenha se curvado à ideia de que não era possível uma substituição radical do bloco
no poder, ele apontou (com Dilma) para uma mudança das posições relativas das
diferentes frações da burguesia e (desde Lula) buscou redimensionar a fatia da
riqueza destinada ao apaziguamento do conflito social. Tais divergências não são
irrelevantes.

15
Felipe Demier, “A revolta a favor da ordem”, em Felipe Demier e Rejane Hoeveler (orgs.), A onda
conservadora (Rio de Janeiro: Mauad, 2016), p. 54.

107
A Fiesp, cujo peso declinante na vida social leva a que se escore cada vez mais em
sua presença junto à elite política paulistana, foi pioneira no estímulo às
manifestações pela deposição da presidente, financiando-as generosamente e
endereçando-as à defesa da redução do Estado e de uma política tributária
regressiva. Os banqueiros foram mais cautelosos, não desprezando a possibilidade
de manter o governo ainda mais rendido. Porém, no momento em que ficou claro
que sua substituição estava ao alcance da mão – e que o PT estava cada vez menos
capaz de fornecer a paz social –, a ambivalência se desfez e todo o capital se colocou
a favor do golpe.
Se a capitulação não foi capaz de comprar os apoios pretendidos, por outro lado
impediu que a base potencial do governo se mobilizasse em seu apoio. O lulismo
sempre se caracterizou por seu caráter deliberadamente desmobilizador. E os 54
milhões de eleitores de Dilma não se sentiam motivados a defender uma presidente
que implantava um programa recessivo e antipopular. O estelionato eleitoral
também reduzia a força do discurso da legalidade. Dilma devia governar porque
recebera um mandato popular: mas como justificar que ela estivesse governando
no sentido contrário ao prometido ao povo? A posição possível para os apoiadores
do governo – traduzida na faixa vista em algumas manifestações, “fica, Dilma, mas
melhora” – exigia uma sofisticação política que não estava ao alcance da maioria.
A presidente só alterou o rumo quando o impeachment já se mostrava inevitável,
reconquistando parte da militância e assumindo uma postura de resistência ao
golpe que pode engrandecer sua biografia, mas não mudou a história.
Um fator cuja importância no golpe ainda está por ser plenamente desvendada é a
influência dos interesses estadunidenses. É certo que fundações privadas
estrangeiras financiaram grupos de destaque na mobilização pelo impeachment.
Além disso, muitos dos operadores da Lava Jato participaram de programas de
cooperação com os organismos repressivos dos Estados Unidos. É certo também
que Washington se desagradou da política externa do governo Lula, que concedia
maior atenção para as relações Sul-Sul e, em especial, para um bloco de
“emergentes” com Rússia, China, Índia e África do Sul, com potencial para desafiar
a hegemonia estadunidense. O toque nacionalista que tingiu políticas de
investimento em infraestrutura ou de exploração do petróleo, sem falar no

108
estímulo à criação de “campeãs nacionais” capazes de concorrer no mercado global
(nos moldes coreanos), era outro ponto de discórdia. O episódio da espionagem
sobre a presidente Dilma Rousseff revelou que o governo estadunidense agia em
favor dos interesses econômicos que se sentiam ameaçados por decisões
brasileiras. Por fim, cabe lembrar que figuras de proa do governo golpista, a
começar pelo dois ocupantes sucessivos do ministério das Relações Exteriores, José
Serra e Aloysio Nunes Ferreira, têm ligações fortes com os EUA e assumem um
discurso claramente entreguista.
As condições de 2016 diferem daquelas de 1964, mas não é demais anotar que os
últimos anos testemunharam uma reversão da presença de governos
independentes na América Latina. A onda de regimes nacional-reformistas caiu
por meio de golpes parlamentares (Paraguai, Honduras e Brasil) e de reveses
eleitorais (Argentina) ou está sob fortíssima pressão (Venezuela, Bolívia e
Equador). Sem ignorar o papel desempenhado pelos conflitos internos ou os
muitos problemas na condução dos governos ditos “progressistas”, é fato que pelo
menos as fundações privadas ligadas aos interesses empresariais estadunidenses
têm agido intensamente em todos estes países e que, em espaço de tempo
relativamente curto, verifica-se um realinhamento latino-americano com
Washington. Tampouco se pode desprezar os fortes indícios tanto da preocupação
dos Estados Unidos com o fortalecimento da Petrobrás, alvo principal das
denúncias de corrupção, quanto de sua ligação com vários dos principais
operadores da Lava Jato. Para alguns analistas, o caso brasileiro se encaixa com
perfeição no modelo de “guerra não-convencional”, adotado pelas forças armadas
estadunidenses e que privilegia ações de desestabilização de regimes considerados
hostis, sem intervenção militar16.
Todos os fatores descritos até aqui confluíram para viabilizar o golpe, mas para que
ele fosse efetivamente desfechado era necessário contar com operadores dentro do
aparelho de Estado. Setores do legislativo, do judiciário e do próprio executivo –
como a Polícia Federal (PF) e o Ministério Público (MP) – trabalharam em conjunto
para derrubar a presidente. O caso brasileiro ilustra tanto os limites da doutrina

16
Pepe Escobar, “O Brasil no epicentro da Guerra Híbrida”, Outras Palavras, 30 de março de 2016.

109
liberal da separação de poderes quanto o erro de conceber o Estado como estrutura
piramidal, com um cume que, uma vez conquistado, garante o controle de todo o
resto.
A separação de poderes foi introduzida na engenharia institucional como
mecanismo para impedir a tirania, em oposição direta à doutrina absolutista da
unicidade da soberania, por meio de freios mútuos que garantem a conservação do
sistema político vigente. Mudanças teriam que ser obtidas de forma consensual.
Por isso, é possível pensar que o integralista ensandecido, que foi a uma das
primeiras manifestações pelo impeachment e fez um discurso deblaterando contra
Montesquieu17, não estava tão fora da realidade. Afinal, a divisão de poderes é
entendida convencionalmente como um anteparo de proteção da legalidade.
Montesquieu é visto como o pai da separação de poderes, mas, de fato, sua visão é
bem mais complexa. Para ele, o impedimento da tirania repousava antes na
sobreposição de instituições que exerciam o poder legislativo, que ele julgava,
acompanhando o pensamento de sua época, que era a sede da soberania. O
parlamento bicameral e o poder de veto real garantiam que cada uma das três
potências (puissances) da sociedade – povo, nobreza e rei – tivesse capacidade de
impedir a adoção de políticas que contrariassem seus interesses. Qualquer lei, para
ser adotada, precisaria da anuência de todas as três potências. É evidente o caráter
conservador do arranjo: na ausência do consenso entre rei, nobreza e povo,
permanece o status quo. Como observou Louis Althusser, aqui, uma vez mais, o
autor d’O espírito das leis revelava sua posição favorável à aristocracia, concedendo
esse poder de veto a uma classe decadente, que assim garantiria seus privilégios
tanto contra o rei quanto contra o povo18.
Mas nossa divisão de poderes descende, muito mais do que de Montesquieu, da
Constituição estadunidense, que inspirou também nosso presidencialismo e nosso
federalismo. A principal fundamentação doutrinária da Constituição dos Estados
Unidos foi feita a posteriori, nos escritos federalistas, produzidos para defendê-la
nos plebiscitos que a ratificaram. Eles explicam que o objetivo da separação de

17
Fabiano Maisonnave, “Integralista xinga Montesquieu e pede fim da divisão dos Poderes”, Folha de S.
Paulo, edição online, 12 de abril de 2015.
18
Louis Althusser, Montesquieu, la politique et l’histoire (Paris: Presses Universitaires de France, 1992).
A edição original é de 1959.

110
poderes é criar um sistema de freios e contrapesos, baseado na máxima humeana
de que “só o poder controla o poder”. O executivo, o judiciário e as duas casas do
legislativo, cada qual com seu fundamento próprio de legitimidade, deteriam
recursos de poder suficientes para impedir a tirania de um deles. O motor é o
interesse individual de cada um dos integrantes dos poderes; trata-se, como disse
James Madison no Federalista nº 51, de “fazer com que a ambição se contraponha à
ambição”19.
A engenharia institucional da Constituição dos Estados Unidos é sofisticada, muito
mais sofisticada do que a doutrina da separação de poderes de Montesquieu. Mas
sua sociologia é muito mais primária. Enquanto para o pensador francês nós temos
forças sociais em conflito, a serem acomodadas com a capacidade de veto mútuo,
os constituintes estadunidenses pensavam sobretudo em termos de ambições
individuais.
Assim, a doutrina federalista toma como pressuposto a neutralidade do Estado.
Mas, quando se leva em conta seu caráter de classe (e, podemos acrescentar aqui,
seu caráter “patriarcal” e racializado), a separação de poderes ganha outro
entendimento. Ela opera, sim, cotidianamente como forma de evitar abusos e
prevenir a tentação de um despotismo pessoal. Nos momentos de crise, porém,
funciona como mecanismo de proteção dos interesses dominantes. Isso é possível
graças ao deslocamento do centro do poder (por exemplo, do executivo para o
legislativo, deste para o judiciário e daí, por vezes, para as forças armadas):
A unidade centralizada do Estado não reside numa pirâmide, na qual bastaria
ocupar o topo a fim de assegurar seu controle. Há mais: a organização institucional
do Estado permite que a burguesia transfira o papel dominante de um aparelho a
outro, no caso de que a esquerda, ocupando o governo, consiga controlar o
aparelho que até então desempenhava o papel dominante. Dito de outra maneira,
esta organização do Estado burguês permite que ele funcione por meio de
transferências e deslocamentos sucessivos, permitindo a mudança do poder da
burguesia de um aparelho a outro: o Estado não é um bloco monolítico, mas um

19
Alexander Hamilton, James Madison e John Jay, The Federalist (Chicago: Encyclopædia Britannica,
1990), p. 163. A publicação original é de 1788).

111
campo estratégico20.
A advertência de Poulantzas atinge um dos erros da estratégia petista, que era
sacrificar tudo para garantir a presidência – levando a que o partido se tornasse
cada vez mais dependente de seus aliados de ocasião. Em 2014, a fragilização do
partido e as concessões arrancadas pelos aliados fizeram o PT eleger 18 deputados
federais a menos do que nas eleições anteriores (e perderia outras 12 cadeiras, em
geral por migrações de legenda, em 2015 e 2016). Quando Dilma Rousseff agiu para
tentar reduzir o peso do PMDB, que fizera bancada quase igual à petista, mas
incorporava partidos menores de centro-direita como seus satélites, foi derrotada
– tanto na eleição para a presidência da Câmara dos Deputados quanto na
pretensão de criar um grande partido conservador subordinado ao governo, sob a
liderança de Gilberto Kassab, então tido por aliado fiel. Não foram apenas as
derrotas; mesmo a mera iniciativa de buscar um caminho para se desvencilhar do
PMDB foi creditada à inabilidade política do governo. O PT estava preso numa
armadilha que ele mesmo criara.
Reduzida a cerca de 20% do Congresso, em contagem generosa, a esquerda não
tinha força para barrar o golpe – o governo dependia de sua capacidade de atração
da maioria de parlamentares oportunista, capacidade que, como se viu, estava
diminuída. Ao mesmo tempo, o Poder Judiciário ganhou crescente protagonismo
na crise, de forma mais visível pelo ativismo de juízes de primeira instância, mas
de forma crucial pela tolerância das cortes superiores.
Fala-se muito da chamada “judicialização da política”. Por um lado, os atores
políticos recorrem com frequência crescente ao Judiciário para resolver suas
querelas – o que, no caso brasileiro, foi fomentado pelo instituto da Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADIn), previsto na Constituição de 1988. Por outro lado, as
instâncias judiciais superiores passam a invocar uma capacidade de interpretação
da lei que se torna verdadeiramente um novo poder legislativo. Exemplos, no caso
brasileiro, são a chamada “verticalização” das coligações partidárias determinada
pelo Tribunal Superior Eleitoral em 2002, a perda de mandato parlamentar por
desfiliação partidária decidida também pelo TSE em 2007, a extensão do direito de

20
Nicos Poulantzas, L’État, le pouvoir, le socialisme (Paris: Les Prairies Ordinaires, 2013), pp. 204-5. A
edição original é de 1978.

112
aborto no caso de anencefalia fetal por decisão do Supremo Tribunal Federal em
2012 ou a proibição do financiamento empresarial de campanhas novamente pelo
STF em 2015. Independentemente do mérito das decisões, elas com certeza
extrapolam o que era a intenção original do legislador. A judicialização da política
tem como contraface, assim, o que alguns chamam de “politização do judiciário”,
expressão pouco feliz por assumir a ideia de que, em alguma condição ideal de
“normalidade”, o exercício da justiça não seria contaminado pela política.
O ativismo judiciário não é privilégio das cortes superiores. Até mesmo juízes de
primeira instância podem tomar decisões de enorme repercussão coletiva – os
casos de bloqueios de aplicativos de smartphones com milhões de usuários servem
de exemplo. Na crise política brasileira, o juiz paranaense Sérgio Moro ocupou
posição central, ao liderar a Operação Lava Jato. Embora a justificativa para o
impeachment da presidente Dilma Rousseff nada tivesse a ver com a operação,
apoiando-se em operações de crédito junto a bancos estatais (as chamadas
“pedaladas fiscais”), ela foi instrumental para criar o clima de opinião que
sustentou a derrubada do governo. Declaradamente inspirado na operação italiana
Mãos Limpas, Moro julga que é importante dar grande visibilidade midiática e
obter o “apoio da opinião pública” ao combate à corrupção.
A Lava Jato revelou parte da corrupção sistêmica da política brasileira, por meio de
operações espetaculares que, no entanto, atingiram quase só os partidos da base
do governo Dilma Rousseff. Seu modus operandi privilegiado, a “delação
premiada”, dá grande margem a que o agente da lei oriente o curso da
investigação21. Foram frequentes as acusações de que denúncias que alcançavam
os governos anteriores e/ou atingiam os líderes da oposição de direita não eram
levadas adiante. Em vários momentos, a atuação do juiz Sérgio Moro se mostrou
claramente casada com o cronograma da derrubada da presidente, culminando na
divulgação do áudio de uma escuta telefônica ilegal, com uma conversa entre
Dilma e Lula. Embora o juiz tenha sido obrigado a um pedido de desculpas e ao

21
Moro é o tradutor do artigo de um juiz estadunidense que ensina como coagir acusados para que
denunciem seus cúmplices. Stephen S. Trott, “O uso de um criminoso como testemunha”, Revista CEJ, nº
37, 2007. A edição original é de 1996.

113
reconhecimento de que a divulgação da conversa fora “equivocada”22, continuou
chefiando a operação.
Como um juiz de primeira instância acumula tamanho poder? A resposta se
vincula tanto às peculiaridades da organização do Poder Judiciário no Brasil
quando à bem-sucedida ofensiva do juiz Sérgio Moro junto à opinião pública, com
o apoio entusiástico e unânime dos meios de comunicação hegemônicos. Ele se
tornou o emblema vivo do combate à corrupção e, portanto, intocável. E por que
as instâncias superiores do Judiciário não intervieram, diante de abusos tão
patentes nas investigações? A questão é mais intrigante quando se lembra que, dos
11 ministros do Supremo Tribunal Federal no período, oito foram nomeados por
Lula ou por Dilma. Ao que parece, o STF não ficou imune ao clima de opinião
formado a partir da Lava Jato – e a vulnerabilidade aumentada à pressão da
“opinião pública” e da mídia é uma das características do Judiciário ativista. O que
é ainda mais importante, os governos petistas não foram capazes de apresentar
indicações para o Supremo que estivessem à margem do establishment jurídico e
político. Pelo contrário, optaram, quase sempre, por demonstrar moderação,
preferindo juristas conservadores e com trânsito nos partidos de direita. Também
aqui a política de conciliação cobrou seu preço.
Algo parecido pode ser dito do Poder Executivo. É bem verdade que seu cume – a
presidência da República – foi o alvo do golpe de 2016. O golpe se consumou com
a deposição da presidente escolhida pelo voto popular nas eleições de 2014. Isso
não quer dizer que o executivo tenha estado alheio à trama golpista. Duas de suas
instituições, o Ministério Público Federal e a Polícia Federal, desempenharam
papéis centrais.
Tanto o MPF, que se tornou quase um novo poder, tantas foram as prerrogativas
que ganhou com a Constituição de 1988, quanto a PF agiram com enorme
autonomia nos governos do Partido dos Trabalhadores, que também concedeu a
eles melhores condições para o exercício de suas atividades. A não-interferência,
que chegava ao ponto de fazer com que os chefes dos órgãos fossem eleitos por
seus integrantes, contrastava com a gestão dos governos anteriores – Geraldo

22
Gil Alessi, “Sérgio Moro pede desculpa por “polêmica” de áudios de Lula e isenta Dilma”, El País Brasil,
online, 31 de março de 2016.

114
Brindeiro, o procurador-geral da República durante os mandatos de Fernando
Henrique Cardoso, foi apelidado de “engavetador-geral”, uma vez que não dava
prosseguimento a nenhuma denúncia contra o governo.
A independência concedida ao MPF e à PF foi simultaneamente uma concessão
(diante das dificuldades do PT para controlar setores nevrálgicos do aparato de
Estado), uma forma de responder às acusações de “aparelhamento” do governo e
um reflexo da permanência de um ideal republicano em parte da liderança do
partido. De um ponto de vista abstrato, tal ideal é inatacável. Na prática, porém, as
ações do Ministério Público Federal e da Polícia Federal são influenciadas de
diferentes maneiras. Há os interesses corporativos, que se manifestaram em
exigências por carreiras ainda mais privilegiadas, salários ainda mais altos e
autonomia operacional ainda maior e que – ao não serem atendidas – geraram
oposição ao governo. (O fato de que essa insatisfação não se manifestava de forma
tão aguda nos governos pré-petistas parece corroborar a velha tese da “espiral
ascendente das expectativas”.) Tanto quanto muitos dos juízes, estes delegados e
procuradores aderem a um discurso meritocrático arrevesado, que Jessé Souza bem
caracterizou como “legitimação pelo ‘concurso’” e que é sintetizado na ideia de que
as vantagens do cargo são a justa paga pelos sacrifícios realizados para passar em
seleções públicas muito disputadas23. Há também a posição de classe deles,
solidários aos setores médios que se sentiram ameaçados com o pequeno avanço
que os mais pobres tiveram sob os governos de Lula e Dilma. O fato é que, de
dentro do Poder Executivo, setores importantes do MPF e da PF participaram
ativamente, em colaboração com o Judiciário, da trama que levou à derrubada do
governo eleito.
Foi nestas circunstâncias que se produziu o golpe. Sua forma específica se deve às
peculiaridades da conjuntura, às características de seus protagonistas, aos
equívocos do momento. Mas suas raízes estão nas fragilidades do arranjo
democrático brasileiro, sua vulnerabilidade aos vetos das classes dominantes. O PT
buscou o caminho de maior prudência, para introduzir transformações sociais
muito modestas, e chegou a este resultado. Não se trata de dizer que uma opção

23
Jessé Souza, A radiografia do golpe (São Paulo: Leya, 2016, p. 121).

115
pelo confronto venceria: o avesso do errado não necessariamente dá certo. É
preciso entender quais são esses obstáculos, extrair as lições que a experiência
petista fornece e, a partir daí, tentar uma vez mais dar resposta à velha questão: o
que fazer? E o que é mais grave, essa reflexão tem que ser feita concomitantemente
à ação política, porque a destituição de Dilma Rousseff não foi o ponto de chegada
de um processo. Ao contrário, foi o ponto de partida para o retrocesso acelerado,
nos direitos e na democracia, que o Brasil vivencia hoje.

116
117
5. O ESTADO É DE EXCEÇÃO: A REVOLTA POPULAR E A REPRESSÃO NO
BRASIL (2013-2016)

Camila Oliveira do Valle

O Brasil e as revoltas populares

Protestos contra o aumento das tarifas de transporte e pela melhoria dos serviços
públicos acontecem no Brasil antes mesmo de 2013. Em 2003, a revolta do Buzú
ocorreu em Salvador. Em 2004 e 2005, a Revolta da Catraca ocorreu em
Florianópolis, levando milhares de pessoas às ruas durante dias. O povo exigia a
redução do valor da tarifa, o passe livre e um transporte público, gratuito e de
qualidade. Diferentes grupos, movimentos e coletivos organizaram essas
manifestações. Em Florianópolis, na revolta da Catraca de 2005, militantes do
Movimento Passe Livre já se apresentavam dessa forma. Segundo documento do
Movimento Passe Livre, o MPL adotou esse nome na Plenária Nacional pelo Passe
Livre, em janeiro de 2005, em Porto Alegre1. Em Natal, em 2012, também ocorreram
protestos contra o aumento da tarifa, onde os manifestantes enfrentaram a polícia.
Em 2013, a revolta popular atingiu níveis diferentes daqueles que se costuma ver.
A pesquisa analisa os conflitos que estão ocorrendo no Brasil, compreendendo os
processos que desencadearam as revoltas populares de 2013 a 2016 e verificando a
repressão e a criminalização dos movimentos sociais, das organizações e dos
militantes que aconteceram nesse período. Realiza um estudo das jornadas de
junho de 2013, das greves e manifestações dos profissionais da educação, dos garis
e dos rodoviários, das mobilizações contra a Copa do Mundo da FIFA e contra a
Olimpíada e das ocupações de escolas e Universidades.

A revolta popular

1 Ver em: http://tarifazero.org/mpl/

118
No ano de 2013 manifestações massivas ocorreram por todo o Brasil, cujo estopim
teria sido o aumento da tarifa. A partir de um resgate histórico2, verifica-se que, no
Rio de Janeiro, em 2012 já ocorriam protestos contra o aumento das tarifas. Somado
a isso, distintas manifestações, como as realizadas pelo movimento indígena,
ocorriam no Brasil e, em especial, no Rio de Janeiro. Em 2013, o 1º ato contra o
aumento da passagem ocorreu no dia 3 de junho. Em São Paulo, o 1º ato ocorreu
em 6 de junho, sendo composto por mais manifestantes que os atos do Rio de
Janeiro. No dia 14 de junho, em Brasília, ocorreu um protesto contra a Copa das
Confederações, que iniciaria no dia seguinte.
No dia 17 de junho ocorreram manifestações em todo o Brasil. Manifestantes
ocupam a Esplanada, em Brasília. No Rio de Janeiro, ocorreu a marcha dos 100 mil
e a tomada da ALERJ. Em uma publicação na página do coletivo Operação Pare o
Aumento aparecem duas imagens da ALERJ, uma às 20h16m, onde estão as forças
de repressão, e outra às 21h12m, onde o povo toma a Assembleia. Em São Paulo,
ocorre o 5º ato. O MPL/SP lança a nota 8, falando sobre o ato do dia 17 de junho e
chamando para o ato do dia 18. No dia 20 de junho ocorre a marcha de um milhão,
no Rio de Janeiro. Ocorre a batalha da Presidente Vargas. Em São Paulo, no dia 20,
ocorre o 7º ato. O MPL/SP lança a nota 11, falando sobre os atos. No dia 21 de junho,
ocorrem manifestações na zona leste de São Paulo. As manifestações estão se
espalhando por todo o Brasil.
No dia 30 de junho, na final da Copa das Confederações, durante a partida, os
manifestantes enfrentaram a polícia nas redondezas do Maracanã. No dia 19 de
julho, uma manifestação na Rocinha denuncia o desaparecimento de um morador.
Foi o caso de tortura e assassinato do pedreiro Amarildo. Outras manifestações
continuaram ocorrendo no Rio de Janeiro e em distintas cidades do país ao longo
de 2013. No dia 07 de setembro, a manifestação organizada pela Frente
Independente Popular (FIP-RJ) interrompe o desfile dos militares, de 7 de
setembro, e o povo enfrenta as forças da repressão, com seus escudos. Em outubro,
dois atos impulsionados pelos profissionais da educação, que seguiam em greve,

2 Esse resgate histórico dos protestos contra o aumento das tarifas, que irão culminar nas jornadas
de junho pode ser visto no artigo “As manifestações políticas no Brasil contemporâneo de 2013 a 2016”,
publicado nos Anais do 9 Congresso Latino-americano de Ciência Política.

119
levaram milhares de pessoas às ruas do Rio de Janeiro. Em 7 de outubro, muitos
ônibus foram queimados e agências bancárias destruídas. O povo enfrentou as
forças da repressão. No dia 15 de outubro, a greve é mantida e ocorre nova
manifestação.
Famílias que passam por processo de remoção forçada estão respondendo à
violência do Estado com manifestações e ocupações. Em janeiro de 2014, a
comunidade do Metrô-Mangueira estava para sofrer com o processo de remoção,
quando sua população se ergueu em luta, fazendo barricadas e protestos. Uma
parcela da população ainda reside no local, alguns moradores vivem em casas
parcialmente destruídas e a beira de entulhos e lixos, produzidos pela própria
Prefeitura. Em abril de 2014, a polícia invade o prédio que ficou conhecido como
“OI-TELERJ”, com o uso de armamentos pesados. Algumas dessas famílias foram
ocupar a frente da Prefeitura, uma praça pública. Ainda assim, foram expulsas do
local pelas forças repressoras. Tiveram que andar pela cidade com os pertences que
tinham e foram se abrigar na Catedral mas, impedidas de entrar na Igreja,
acamparam no estacionamento.
No início de 2014, durante o carnaval do Rio de Janeiro, os garis iniciaram uma
greve. Tentaram pressionar a direção sindical para organizar e deflagrar a greve,
mas diante do boicote que o sindicato deu ao movimento, iniciaram uma
organização independente. Manifestações e piquetes ocorreram durante toda a
greve. Com a pressão popular, os garis conquistaram sua pauta, a partir de um
diálogo entre os garis da comissão e a base que não conseguiu entrar na reunião
por proibição do governo.
Dias antes do início da Copa do Mundo da Fifa, de 2014, os rodoviários realizaram
paralisações de um dia, deixando a cidade com poucos ônibus. Chegaram a votar
uma greve por tempo indeterminado, mas por intervenção de dirigentes “CSP-
Conlutas”, contrários a essa proposição, a votação foi refeita, a greve não ocorreu e
o movimento não avançou. Desde o início de 2014, a FIP-RJ organizou protestos
“Não vai ter Copa!”, mantendo a palavra de ordem que ganhou força em 2013. Atos
no centro da cidade e em favelas, como no Alemão, foram realizados. Em distintas
cidades essas manifestações ocorreram, organizadas por diferentes grupos e
movimentos sociais. Antes da Copa iniciar, os profissionais da educação do Rio de

120
Janeiro iniciaram nova greve e, no dia em que o ônibus da seleção brasileira chegou
na capital, uma manifestação conseguiu impedi-lo de sair do local durante um
período.
A abertura da Copa do Mundo foi em São Paulo, em 12 de junho, onde ocorreram
manifestações e o povo enfrentou as forças de repressão. No Rio de Janeiro, durante
a manhã, aconteceu uma manifestação dos profissionais da educação, no centro da
cidade, que resultou em enfrentamento com a polícia e em prisão de professores.
À tarde, na praia de Copacabana, onde estava instalado o telão para exibição dos
jogos, ocorreu outra manifestação. No dia 15 de junho, quando ocorreria o primeiro
jogo no Maracanã, com escudos e máscaras, os manifestantes enfrentaram a polícia
e conseguiram chegar muito próximo do estádio. Os agentes da repressão foram
atingidos por coquetéis molotov e agência bancárias próximas do Maracanã foram
destruídas.
Durante toda a Copa do Mundo da FIFA ocorreram protestos em todo o Brasil e,
especialmente, nas cidades em que ocorrem jogos, como São Paulo, Rio de Janeiro,
Belo Horizonte, Fortaleza, Porto Alegre e Curitiba. No dia 19 de junho, em
Fortaleza, os manifestantes enfrentaram a polícia, que estava, inclusive, com a
tropa de Choque e a cavalaria, nas redondezas do estádio Arena Castelão, onde o
Brasil enfrentou o México. Eram milhares de manifestantes. Policiais ficaram
feridos. Nesse mesmo dia, ocorreram protestos em outras cidades brasileiras.
Manifestações contra o aumento das passagens aconteceram em 2014, 2015 e 2016.
No início da 2015, nova greve dos garis ocorreu e, ao longo do ano, distintas
categorias profissionais realizaram greves contra os ataques do governo, como os
profissionais da educação das Universidades Federais. Ao final do ano, em São
Paulo, inicia um movimento de ocupação de escolas, em defesa da educação. O
movimento estende-se por todo o Brasil em 2016. Em diferentes estados, como no
Rio de Janeiro, no Paraná, no Rio Grande do Sul e no Ceará, escolas são ocupadas
pelos estudantes. Os profissionais de educação realizam greves, unindo as ações
grevistas, as manifestações de rua e as ocupações de escolas. Os secundaristas
organizam manifestações em diferentes cidades. A Secretaria de Educação do
Estado do Rio de Janeiro (SEEDUC) foi ocupada pelos estudantes. Distintas
manifestações organizadas pelos profissionais da educação e pelos estudantes

121
ocorreram antes do início da Olimpíada, no Rio de Janeiro. A greve é encerrada
antes dos Jogos começarem. Em dezembro de 2016, algumas escolas e institutos
federais ainda seguiam ocupados, especialmente, contra a reforma do ensino
médio e a PEC 241 (ou 55), a “PEC do Teto”, implementadas pelo governo Temer,
que congela os gastos públicos em saúde e educação.
Desde o início de 2016 são realizados protestos contra a Olimpíada. Em 3 de maio,
a tocha chegou no Brasil, passando por mais de 300 cidades, sob protestos,
incluindo, ações populares para apagar ou mesmo tomar a tocha. Mais de uma vez,
manifestantes enfrantaram as forças de repressão. Em junho de 2016 ocorrem
manifestações organizadas pelas mulheres, diante de mais um caso de estupro
coletivo que ocorreu no Rio de Janeiro.
O ano de 2017 teve novas manifestações. Março tem protestos de rua. Em 28 de
abril, ocorre um dia de greve geral, com paralisações em todo o Brasil. No Rio de
Janeiro, ocorre confronto entre os manifestantes e a polícia. Ônibus serão
queimados, agências bancárias atacadas. Em maio, novas manifestações,
especialmente após as denúncias contra Temer. Em 30 de junho, outro dia de greve
geral e novos conflitos. Os manifestantes atacam a polícia do Rio de Janeiro com
morteiros, pedras e bombas.

Os processos desencadeadores

Distintos fatores impulsionaram as revoltas populares de 2013 a 2016, de modo que


as causas ou motivos que fizeram com que o povo fosse para as ruas, organizasse
greves e protestos não se restringe a uma ou outra questão. Há algo de fundo que
produz as mazelas sociais, em qualquer governo burguês que se tenha: o sistema
capitalista e suas relações sociais de produção baseadas na exploração do povo. No
caso do Brasil, relações construídas a partir da colonização e de relações
imperialistas.
Segundo Dos Santos (2000), o imperialismo bloqueia o desenvolvimento das forças
produtivas das nações colonizadas, decepa seu poder de crescimento econômico e
de desenvolvimento educacional. A teoria da dependência mostra a tendência à
exclusão social crescente, ao aumento da concentração econômica e da

122
desigualdade social. Concentrador e excludente estas eram as características
básicas do desenvolvimento dependente, associado ao capital internacional. A
teoria da dependência evidencia a divisão entre um centro econômico, tecnológico
e cultural, uma periferia subordinada e dependente e formas de semi-periferia.
A partir de um estudo histórico, Quijano (2005) relaciona o processo de expansão
do capital com a colonização da América e a divisão racial do trabalho. O autor
afirma que a globalização em curso é a culminação de um processo que começou
com a constituição da América e do capitalismo colonial/moderno e eurocentrado
como um novo padrão de poder mundial, a partir do qual foi classificada a
população da América e do mundo. Com a América, estabelecia-se uma nova,
original e singular estrutura de relações de produção na experiência histórica do
mundo: o capitalismo mundial. O processo de independência dos Estados na
América Latina sem a descolonização da sociedade não foi um processo em direção
ao desenvolvimento dos Estados-nação modernos, mas uma rearticulação da
colonialidade do poder sobre novas bases institucionais. Na América Latina a
perspectiva eurocêntrica foi adotada pelos grupos dominantes como própria e
levou-os a impor o modelo europeu de formação do Estado-nação para estruturas
de poder organizadas em torno de relações coloniais.
O Brasil, portanto, seguiu produzindo e reproduzindo relações de exploração.
Miséria e fome nunca foram superadas. Continuou o genocídio do povo negro e
dos indígenas. Pessoas sem casa e sem terra. Serviços públicos precarizados e
precários. Os governos federais, inclusive os petistas, e os distintos governos
estaduais e municipais não alteraram essa situação, fortalecendo as relações de
produção capitalistas, inclusive, em setores centrais, como saúde e educação.
A melhora das condições de vida está na base dos protestos de 2013. O
impulsionador desses protestos foi a redução das tarifas de transporte, que atingem
uma grande parcela da população. O fato de as pessoas sentirem direta e
imediatamente esse ataque diário, permite gerar uma resposta mais imediata. Mas
a questão é: já em 2012 ocorreram protestos contra o aumento. E há muito tempo
o sistema de transporte é precarizado e caro. Além disso, a redução do aumento
das tarifas de ônibus foi alcançada rapidamente e as pessoas continuaram nas ruas.
Então, a questão não é só essa.

123
Os protestos iniciais de 2013 foram duramente reprimidos, no Rio de Janeiro, em
São Paulo e mesmo em Brasília, logo que inicia a Copa das Confederações,
chamando a atenção da população. A violência policial, agora mais noticiada
diante da visibilidade da Copa, contribuiu para mobilizar ainda mais as pessoas.
Entretanto, essa violência policial é diária, mesmo contra protestos. De modo que,
em 2013, isso contribuiu para impulsionar a luta, mas não teria sido o único fator
determinante.
A realização dos megaeventos no Brasil, gerando visibilidade internacional, é um
fator novo. A aparência de um país que “melhorou” soma-se ao mito de “governos
populares”, em um contexto de investimento em obras que são caras e atendem a
um público restrito. O que o governo brasileiro fez e teve que fazer para que o
Brasil fosse sede dos megaeventos? Quais as consequências? Quem “ganhou” com
esses governos, com a Copa e a Olimpíada? Qual o significado do avanço dos
protestos de 2013 exatamente logo após o início da Copa das Confederações, em 15
de junho? E da tomada da ALERJ no dia 17, um dia após manifestantes serem
duramente reprimidos na proximidade do Maracanã? Qual o impacto para o povo?
A escolha do Brasil como país sede para a Copa do Mundo de 2014, em 2007, trouxe
obrigações internacionais para o governo brasileiro, que incluem tornar o Brasil
um “espaço seguro” para o capital. Para que a Copa ocorresse no Brasil, seria
necessário aprovar leis e adotar medidas que garantissem a realização do evento e
os lucros da FIFA e seus apoiadores. Entre elas, a elaboração da lei geral da Copa.
Além de abordar aspectos comerciais e industriais, garantindo proteção à FIFA, e
de atribuir responsabilidades ao Estado brasileiro, a lei impõe diversas restrições
aos direitos constitucionais de manifestação, de ir e de vir.
Somado a essa lei, o projeto de lei 728, de 2011, visava aperfeiçoar a segurança
durante os megaeventos, prevendo diferentes infrações administrativas e penais.
Além de criar o crime de terrorismo, causava interdições e limitações ao direito de
greve. Esse projeto de lei foi duramente criticado e não chegou a ser aprovado até
o início da Copa do Mundo. Mas, em 2015, o governo Dilma propôs e aprovou a lei
antiterrorismo.
Por outro lado, foi aprovada em 2 de agosto de 2013 a lei 12.850, cujo projeto foi
proposto em dezembro de 2009. Ela, inclusive, “define organização criminosa e

124
dispõe sobre a investigação criminal”, tipifica a conduta de “promover, constituir,
financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização
criminosa”, altera o artigo 288 do Código Penal, passando a chamar de associação
criminosa a antiga “quadrilha ou bando”, reduzindo o número de associados
(bastam três) para formar a associação e criando uma nova causa de aumento de
pena: a participação de crianças ou adolescentes. Com essa nova causa de aumento
de pena, o crime que, anteriormente, permitia a concessão de fiança passa a ser
inafiançável. Ainda, a lei 12.850 prevê diferentes meios de obtenção de prova, entre
eles, a ação controlada, a interceptação telefônica e a infiltração de agentes.
Além das medidas legais, o governo aproveitou a ocasião da Copa do Mundo para
implementar medidas repressivas de controle da população pobre e negra que já
faziam parte de seus planos e que se tornaram viáveis com a escolha do Brasil como
país sede, como a implantação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP). A
primeira UPP foi instalada no morro do Santa Marta, em 2008. Com a UPP, os
policiais controlam a vida de quem mora na favela, com incursões armadas
frequentes que, de forma cotidiana, resultam em morte de moradores. Revistas e
invasões de domicílios são práticas comuns. Nas vésperas da Copa do Mundo, o
governo ampliou o número de UPPs, avançando em áreas que sempre teve
dificuldade de entrar. Na Maré, foi necessário o apoio do Exército Brasileiro, que
fez uma intervenção militar na favela juntamente com a polícia.
Os governos de diferentes cidades brasileiras, com o apoio do governo federal,
retiraram inúmeras famílias de suas moradias, realizando remoções forçadas.
Poucas alternativas foram apresentadas para essas famílias que ficavam
desabrigadas e todas essas alternativas mostraram-se insuficientes. Em alguns
casos, eram oferecidos alugueis sociais, temporários e com valor muito baixo, que
não permitiam que as famílias conseguissem alugar novos locais. As casas próprias,
por vezes, prometidas pelos governos não eram entregues.
Essas remoções visavam entregar o território a especuladores, empreiteiros e
empresários. A construção de novos prédios virou prioridade do governo, em
detrimento de atender as necessidades básicas da população. O modelo de
transporte adotado pelo governo do Rio de Janeiro, por exemplo, não atendeu às
regiões que necessitavam dos transportes de massa e, sim, privilegiou locais de

125
interesse da especulação imobiliária, como a Barra da Tijuca. O governo era a
própria máfia dos transportes.
O custo de vida ficou mais elevado. De um lado, tarifas de transporte altas com
serviços precários, escolas em péssimas condições, hospitais com problemas de
atendimento, alugueis caríssimos. De outro lado, salários baixos e profissionais mal
remunerados. Com os megaeventos, outras questões vieram à tona: os gastos
exorbitantes, as obras atrasadas, o aumento da repressão, a criação de “elefantes
brancos” que não tem utilidade, a construção de cidades para “turistas”. Isso
mostrou que a prioridade não é a melhora das condições de vida do povo, mas o
lucro, impulsionando os protestos e fazendo com que distintas categorias
organizassem greves buscando melhores salários e condições de trabalho. As
políticas de austeridade aplicadas em todo o mundo, para garantir e mesmo
aumentar a extração de mais-valia da burguesia, também impõem ao Brasil a
adoção de políticas que retiram direitos do povo. Situação que se agrava ainda mais
em 2017.
A alternativa institucional apresentada pelo Partido dos Trabalhadores e outros
partidos mostrou-se ineficaz para resolver os problemas do povo. As vias
institucionais, o parlamento, a elaboração de leis sob o Estado burguês não
resolvem e não revolveram os problemas sociais. Isso fez gerar, em boa parte da
população, um descrédito nas instituições e nos partidos políticos, que se reflete
no boicote eleitoral.
Os megaeventos colocaram o Brasil no centro do mundo, sem que ele fosse do
“centro do mundo”. Suas questões sociais permaneciam. Com os holofotes voltados
para ele, o povo brasileiro saiu às ruas. Em diferentes cidades do país, os
megaeventos foram questionados. Mas, dessa vez, a independência da luta e a
ruptura com os aparatos construídos para amortecer a revolta impulsionaram a
radicalidade.
As manifestações de 2013, a greve dos professores, garis e rodoviários, a campanha
“Não vai ter copa!” e contra a Olimpíada são marcadas pela revolta popular e pela
luta pela melhora das condições de vida. Não há dúvidas que, em 2013, eram tantas
pessoas na rua que não cabe reduzir as reivindicações a uma ou outra pauta. Da
luta por direitos ao ataque ao Estado e ao capital, havia pessoas nas ruas com as

126
mais diferentes pautas, ainda que o foco inicial tivesse sido a tarifa. Situação que
se diferencia dos movimentos grevistas e das campanhas contra os megaeventos,
quando pautas mais específicas aglutinavam os setores em ação. Sem dúvida, a
crítica às instituições, aos partidos e aos governos marcaram os protestos. No Rio
de Janeiro, o “Fora Cabral” impulsionou muitas manifestações. Nesse aspecto,
tanto o governo do PT, como diferentes governos estaduais (PSDB em São Paulo,
PMDB no Rio de Janeiro, etc) e municipais foram diretamente questionados.
Consequência da responsabilidade que possuem diante das questões sociais.
De ações espontâneas que levavam milhões de pessoas às ruas à atuação
organizada de grupos, movimentos e categorias profissionais, as manifestações
avançavam em radicalidade quando rompiam com os aparatos de controle do
Estado. O ano de 2013 e as manifestações seguintes significam uma ruptura com a
institucionalidade e a abertura de um período de tencionamento ainda maior entre
as diferentes frações da cúpula e, especialmente, entre as classes dominantes e o
povo. Essas manifestações diferenciam-se daquelas que ocorreram em 2015, que
pediam o impeachment de Dilma, cuja interferência da Rede Globo e dos setores
reacionários restava evidente. O impeachment de Dilma significa uma briga de
cúpulas, conforme expressão de Lênin (1987), entre diferentes frações das classes
dominantes. Os protestos populares que reivindicam direitos e lutam contra o
sistema tem motivações e envolvem atores sociais diferentes daqueles que
convocam manifestações que buscam apenas garantir privilégios, ainda que haja
setores sociais que posssam circular em ambos os lados.

A repressão e a criminalização

Os distintos protestos foram reprimidos de forma violenta pelos governos, que


mantiveram uma política de criminalização e perseguição aos movimentos sociais,
às organizações políticas e aos militantes. Os gastos do Estado com instrumentos
para reprimir aumentaram: mais bombas são compradas, novos aparatos policiais
são usados. As manifestações são acompanhadas por policiais militares bem
equipados.

127
Prisões para averiguação viraram prática constante: as pessoas são conduzidas
para a delegacia apenas para “sarqueamento”, ou seja, para identificação. As
autoridades policiais estão alimentando, com novos nomes, um cadastro de
militantes. A lei de organizações criminosas é usada para criminalizar
manifestantes. Sem conseguir atribuir condutas típicas a ativistas, os delegados
realizam manobras, juntamente com os depoimentos policiais, buscando
enquadrar os manifestantes em algum tipo penal. Diante da ineficiência e
impossibilidade de atribuir a eles a prática de crime, frequentemente os delegados
enquadram os presos em associação criminosa. Legitimando essas ações
arbitrárias, o Ministério Público acusa os manifestantes além de requerer a prisão
preventiva sob a alegação de “manter a ordem pública”, sem justificar a necessidade
da prisão cautelar. Ainda, oferecem denúncias pré-fabricadas e sem base concreta.
O Judiciário, comprometido com suas relações de Poder, defere os pedidos com
“decisões padrões” e sem argumentos.
Os trabalhadores, em suas distintas greves, sofreram perseguição, incluindo
demissão. As manifestações dos profissionais da educação eram acompanhadas
pela polícia e, diversas vezes, foram reprimidas com bombas de gás, cassetetes e
prisões. Professores são retirados de suas turmas, como aconteceu, novamente, em
2017, com a professora Flávia, do Município do Rio de Janeiro, que colocou um
cartaz em sua escola mencionando, entre outras questões, que os alunos estão sem
material escolar e os servidores sem reajustes e sem décimo terceiro.
O Estado buscou colocar fim à greve dos garis através do Judiciário, ao afirmar a
ilegalidade da greve. A polícia buscou impedir as assembleias, que ocorriam na rua,
nas praças. Tentou escolher os membros da comissão de negociação e só através
da pressão os garis conseguiram colocar membros escolhidos por eles para dentro
da Prefeitura. Ameaças de demissão, constrangimento para obrigar a trabalhar
(alguns garis trabalharam com escolta armada), mensagens enviadas com ameaças
– foram distintas as formas de coerção.
Na manifestação de 15 de outubro de 2013, organizada pelos profissionais da
educação, a polícia efetuou a prisão de inúmeras pessoas. Uma das intenções da
polícia e do governo era retirar uma ocupação que ocorria em frente à Câmara de
Vereadores do Rio de Janeiro. Através de um cerco policial, a polícia prendeu o

128
equivalente a três ônibus de manifestantes, conduzindo-os para a delegacia.
Acusou-os de associação criminosa. Os manifestantes que estavam em um desses
ônibus foram presos e conduzidos para Bangu, um presídio de segurança máxima.
Ficaram alguns dias, até serem postos em liberdade. Entretanto, um dos
manifestantes presos nesse dia – acusado de associação criminosa e dano –
permaneceu preso por quase dois meses, em um processo que se intitulou de
“Black bloc”. A prisão desses ativistas em 15 de outubro ocorreu com uma evidente
intervenção do Executivo – governador e Secretário de Segurança - na atuação dos
delegados de polícia, uma vez que a chefe da polícia civil esteve nas delegacias para
garantir que as prisões fossem realizadas.
No final de 2013, para reforçar a repressão nas ruas, o governo federal, através do
Ministério da Defesa, aprovou uma portaria normativa que regulamenta a atuação
das Forças Armadas, classificando movimentos sociais e organizações como “forças
oponentes”, demonstrando a intenção de usar todo o aparato repressivo para
garantir a realização da Copa do Mundo. As Forças Armadas são usadas como
polícia, no combate a própria população. Na favela da Maré, meses antes de iniciar
a Copa do Mundo, o Exército iniciou uma “ocupação” para implantação da UPP.
A área do Maracanã foi duramente atingida pela realização dos Megaeventos, com
desocupações violentas. O Museu do Índio, onde indígenas de diferentes etnias
ministravam aulas e viviam, a conhecida “Aldeia Maracanã”, foi invadido pela
polícia militar em dezembro de 2013, sem ordem judicial. A polícia prendeu as
pessoas que ali estavam de forma violenta e um indígena, após ficar mais de 24
horas resistindo em cima de uma árvore, foi retirado de forma violenta por policiais
e bombeiros. A partir de então, o local é ocupado pela polícia militar carioca. A
biblioteca indígena e tudo o que estava dentro do Museu foi destruído.
No metrô-mangueira, a polícia agrediu os moradores com sprays de pimenta e
bombas. Algumas casas começaram a ser destruídas com pessoas ainda dentro
delas. Outras casas foram destruídas logo que as pessoas saíram, sem levar seus
pertences. No caso da “OI-TELERJ”, a desocupação foi feira pela polícia militar com
o uso de armamentos pesados. Os policiais entraram gritando e acordando as
pessoas com violência, expulsando-as de sua casa. Essas pessoas perderam tudo,

129
muitas delas saíram apenas com a roupa do corpo. Crianças, mulheres grávidas
tiveram que sair sob o spray de pimenta e gás lacrimogêneo lançado pela polícia.
Além da tradicional repressão realizada pela polícia – com bombas, gás
lacrimogêneo, spray de pimenta, armas com munição não letal e mesmo armas
com munição letal – percebeu-se o incremento da repressão através de outras
táticas e do uso de mais agentes de segurança, especialmente nas manifestações
contra os megaeventos. O “kettling” – cerco de manifestantes – foi usado em São
Paulo, antes mesmo da Copa do Mundo começar. Diversas pessoas foram cercadas
e presas, apenas por estarem na rua, durante uma manifestação. Advogados foram
ameaçados e agredidos. Considerado ilegal em tribunais alemães e britânicos, o
“kettling” impede o direito de manifestação. Durante a Copa, o “kettling” foi usado
em outras cidades, como Belo Horizonte e Rio de Janeiro. A prática era cercar todos
os manifestantes, impedindo que a manifestação pudesse circular pelas ruas da
cidade. Em Belo Horizonte, mais de mil pessoas ficaram cercadas durante todo o
jogo que ocorria naquela cidade. Apenas após o final da partida, manifestantes
puderam sair em caminhada.
No Rio de Janeiro, a polícia tentou usar o “kettling” no dia 28 de junho, tendo
insucesso. Como consequência, iniciou uma dura repressão contra os
manifestantes, agredindo a esmo os que estavam na manifestação. Quebrou
câmeras de jornalistas e mídias e realizou a prisão de algumas pessoas. Durante a
final da Copa do Mundo, a polícia carioca também aplicou o “kettling”. Em
princípio, cercou a praça, fechando todas as saídas. Entretanto, alguns
manifestantes furaram o cerco, o que deu início a agressões policiais e a uma dura
repressão contra os ativistas: muitas bombas, sprays, armas com munição não letal,
cavalaria com espadas, Tropa de Choque e cassetetes foram usados contra os que
tentaram protestar. Chutes, socos e agressões discricionárias e sem motivações
foram realizadas pela polícia. Os manifestantes enfrentaram a polícia, que manteve
a praça cercada até o final da partida.
Um dia antes da final da Copa, vinte e seis mandados de prisão temporária – com
o prazo de cinco dias - foram cumpridos contra diferentes ativistas na manhã do
dia 12 de julho. Além disso, dois adolescentes foram internados. Policiais civis
invadiram casas e conduziram pessoas para a Delegacia de Repressão em Crimes

130
de Informática – ainda que a acusação fosse de associação criminosa armada3.
Ainda em 2017, o processo aguarda decisão judicial.
O caso do Rafael Braga, preso pela primeira vez em 2013, também evidencia a
arbitrariedade das forças repressoras. Ele foi condenado a quase seis anos de prisão,
acusado de portar artefato explosivo em junho de 2013. É negro e morador de rua.
Portava apenas água sanitária e Pinho Sol, embalagens plásticas. O próprio laudo
pericial mostra a impossibilidade dos materiais apreendidos causarem explosão.
Mesmo assim, foi condenado. Chegou a ir para o regime semi-aberto. Entretanto,
uma foto em que ele aparecia em frente a um muro pixado circulou na internet e
Rafael é enviado à prisão, dessa vez, para uma “solitária”, onde é isolado em
condições extremamente precárias. Foi posto em liberdade e preso novamente,
quando saía para comprar pão. Estava com a tornozeleira eletrônica e os policiais
o acusaram de tráfico. Essa nova armação policial levou Rafael à prisão. Apenas em
2017, por conta de uma tuberculose, foi posto, temporariamente, em liberdade.
Dois jovens estão sendo acusados de homicídio qualificado: um artefato explosivo
atingiu a cabeça de um cinegrafista durante uma manifestação e levou-o à morte.
Contrariando as evidências, a prisão preventiva foi decretada. Os jovens ficaram
presos por mais de um ano e só saíram com uma decisão do Tribunal de Justiça do
Rio de Janeiro, que também desclassificou o crime de homícidio doloso
triplamente qualificado para explosão seguida de morte. Os jovens ficaram
submetidos a medidas restritivas ainda mais gravosas que os 23 ativistas. Esse caso
foi amplamente usado pela mídia burguesa para criminalizar os movimentos
sociais e para diminuir as manifestações de rua. Entretanto, os responsáveis pela
morte do cinegrafista não são os dois jovens, mas a violência estatal, o ataque
policial e a emissora, que não oferece ao trabalhador os equipamentos de proteção
necessários.
Novas perseguições e prisões acontecem. Em novembro de 2017, seis jovens e dois
adolescentes foram presos em uma praça, próximos a uma manifestação, acusados

3 Sobre a perseguição política e o processo contra os 23, ver o artigo “Prisões e processos políticos:
a violação de direitos no Rio de Janeiro”, publicado nos Anais do 55 Congresso Ingternacional de
Americanistas.

131
de associação criminosa, porte de explosivo e corrupção de menores. Os seis jovens
foram liberados apenas dois dias depois, após uma audiência de custódia.

Estado “de exceção” e direito de resistência

O Brasil estabeleceu o que a Ciência Política chama de “instituições democráticas”,


como o Poder Legislativo, Executivo e Judiciário, eleições “livres”, partidos políticos
e uma Constituição com garantias e direitos. Entretanto, essas instituições mantém
a dominação de classe, reproduzindo desigualdades e privilégios históricos.
A república democrática, em nenhum país (mesmo os considerados mais
democráticos), permite a participação diretiva da classe trabalhadora nos rumos
da história. Democracia e ditadura são dois lados antagônicos do mesmo Estado
de classe. Lênin (1987) já questionava a democracia “de uma minoria”,
desenvolvida na sociedade capitalista, afirmando que os escravos assalariados de
hoje, em consequência da exploração capitalista, vivem “acabrunhados” pelas
necessidades e pela miséria, não tendo tempo para se ocupar da “democracia” ou
da “política”.
O “Estado de Exceção” e o “Estado Democrático de Direito” são sua organização
jurídica. O Estado, portanto, é de exceção, ao basear-se na violência e na força de
uma classe contra a outra. Para as classes dominantes, é Democrático de Direito.
Para o povo, os explorados, é Exceção. As garantias e direitos afirmados nas Cartas
de Direitos sequer são efetivadOs ou logo são suspensos, de modo a permitir a
manutenção e o restabelecimento da ordem.
Essas dicotomias - demobracia-ditadura burguesa e Estado Democrático de
Direito-Estado de Exceção - transparecem na atualidade brasileira, conferindo
privilégios para empresários e governantes, de um lado, e oferecendo repressão
para explorados e oprimidos, de outro lado. A FIFA e os patrocinadores tiveram
lucros exorbitantes com a Copa do Mundo, a mais lucrativa da história. Os jogos
foram garantidos e realizados. Mas o aspecto ditatorial da democracia burguesa
ampliou-se e veio à tona.
Se não podemos considerar qualquer governo opressor como fascista - já
que o Estado burguês, por sua própria essência e existência, baseia-se na violência

132
e na repressão – também não podemos silenciar ou deixar de perceber o avanço de
medidas reacionárias que levam o sistema político para o fascismo, como afirmou
Dimitrov (1954). No Brasil de hoje, vemos claramente a realização, de forma cada
vez mais escancarada, de práticas reacionárias, que fortalecem e ampliam a
“exceção”.
Medidas que não são aceitas pelo que se afirma ser um “Estado Democrático de
Direito” estão sendo cada vez mais adotadas: prisões para averiguação, imputações
criminosas sem fundamento, revistas policiais ilegais, interferência de altos cargos
do executivo nas decisões de delegados de polícia, uso de armas letais em
manifestações, tiros com munição “não-letal” com a intenção de ferir e matar e
munição letal usada durante protestos, perseguições e prisões políticas, inquéritos
secretos, interceptação telefônica de ativistas e advogados, tortura nas prisões,
depoimentos forçados em delegacias apontam que sequer os princípios e valores
democráticos – ainda que a democracia esteja nos moldes do Estado burguês -
estão sendo respeitados. Somado a isso, avançam medidas de auteridade que
retiram direitos do povo.
Em 2016 e 2017, o governo Temer intensificou os ataques contra o povo. Em 11 de
julho de 2017, o Senado aprova a reforma trabalhista, retirando conquistas
históricas do direito dos trabalhadores. Em resposta, distintas categorias
organizaram greves gerais e diferentes manifestações e ações de rua estão sendo
realizadas. Entretanto, novamente, há um boicote realizado pelas centrais sindicais
e pelos partidos políticos que querem levar a luta para a institucionalidade e para
a saída eleitoral. A atuação das centrais sindicais é bastante diferente da atuação
dos garis de 2014, que fizeram greve por tempo indeterminado, com piquetes e
manifestações diárias, impulsionados por uma cidade que estava cheia de lixo. É
diferente, também, das manifestações de junho, constantes e radicalizadas.
Enquanto distintos grupos e movimentos clamam pela organização da greve geral,
de manifestações de rua radicalizadas e do enfrentamento à guerra que o Estado
está travando contra o povo (as chacinas nas favelas são diárias em 2017), os
burocratas e adeptos da política da conciliação, que inclui partidos políticos e
dirigentes sindicais, pedem “diretas já”, buscando levar o conflito para a

133
institucionalidade e para a saída eleitoral. Algo que 2013 e as manifestações que se
seguiram já mostraram que não resolverá os problemas do povo.

Referências

DIMITROV, Jorge. La ofensiv del fascismo y las tareas de la Internacional en la


lucha por la unidad de la clase obrera contra el fascismo. Editorial del PCB, 1954.

DOS SANTOS, Theotônio. A Teoria da Dependência – Balanços e Perspectivas. Rio


de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

LENIN. O Estado e a Revolução. São Paulo: Hucitec, 1987.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do Poder, Eurocentrismo e América Latina.


Clacso - Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2005.

134
135
6. DESCONSOLIDAÇÃO DEMOCRÁTICA NA AMÉRICA LATINA

Fidel Terenciano

Introdução

É bem sabido que a década de 1970-80 foi à acompanhada de um conjunto de


transformações do status quo social, econômico e politico na América Latina. Das
diversas transformações, foram notáveis os entraves do sistema politico, que
passam de autoritarismo (MALLOY, 1976; COLLIER e CARDOSO, 1979; FOWLER,
1996; BERMEO, 2004), e a presença de algum tipo de movimento que tendeu a
transição para uma democracia. Adicionalmente, desde 1980-90, existe uma vasta
literatura (HOSKIN, 1997; KARL, 1990; AGUERO e STARK 1997; DRAKE e SILVA,
1986; LIJPHART, 1990; CAMMACK, 1994; WHITEHEAD, 1996; LITTLE, 1997;
SMITH, 1994; HURRELL, 1996; SELIGSON, 1987; OXHORN e DUCATENZEILER,
1998), que teve em vista responder duas questões chaves na região da América
Latina: [1] compreender as dinâmicas funcionais, que levaram a substituição dos
regimes autoritários para democráticos (MAINWARING, 1989; LIJPHART, 1990;
HIGLEY E GUNTHER, 1992; KARL E SCHMITTER, 1991; LINZ E STEPAN , 1996).
[2] pensar o mapa das transições na América Latina (AL) que segue a 3ª ou 4ª fase
da onda da democratização no mundo (HUNTINGTON, 1993, NORRIS, 2011,
WARREN, 1999, DALTON, 2004, KURZMAN, 1998, DOORENSPLEET, 2000,
SCHMITTER, 1995, CRESCENZ E ENTERLINE, 1999, MARKOFF, 1994, SHIN, 1994,
DIAMOND, 1996).
Neste artigo, lidamos com as dinâmicas funcionais da consolidação da democracia
nos países da América Latina, ao mesmo tempo que ilustram alguns elementos de
desconsolidação. Fazendo uso da dimensão longitudinal e sistêmica do debate, são
consideradas algumas equações explicativas. Especificamente, o modelo segue 4
(quatro) variáveis para identificar a desconsolidação democrática nos países
selecionados e suas propriedades: Participação Politica e Eleitoral; Estabilidade das

136
Regras do Jogo Politico e Eleitoral; Confiança nas Instituições e na Democracia;
Corrupção e Financiamento Politico/Partidário.
O modelo que propusemos (desconsolidação democrática) tem recebido um
conjunto de contribuições recentes: Welsch e Carrasquero (1995); Mccoy e Smith
(1995); Oyugi (2003); Hellyer (2014); Conradt (2006); Aning e Danso (2012); Mares
(2015); Foa e Mounk (2016), (2017); Agh (2016); Dias (2016); Moloney e Krislov
(2016); Roberts (2016); Howe (2017); Alexander e Welzel (2017), que visa
fundamentalmente trazer explicações em amplos países no mundo e AL em
particular, e algumas formas de aperfeiçoar o modelo.
Uma das referencias principais da linha argumentativa do problema abordado
neste artigo (desconsolidação democrática na América Latina), é tratado com
profundeza em (FOA E MOUNK, 2017; ALEXANDER E WELZEL, 2017; HOWE,
2017; ANING E DANSO, 2012). Para lidar com isso, evidenciamos que esta além do
alcance deste trabalho, fornecer um conjunto de resultados abrangentes sobre as
problemáticas da transição e consolidação na América Latina. No que diz respeito
à discussão especifica da democracia e transição, destacamos o estudo de Pastor
(1989), que ilustra a democracia como impossível numa situação em que o governo
exerce controle completo da economia e da sociedade. Diamond e Linz (1989)
utilizam o termo democracia na dimensão politica em sentido restrito, para
significar um sistema politico, separado do sistema econômico, social e cultural ao
qual se juntam. De certeza, ela (a democracia) pode ser um conceito e o processo
sócio histórico (TERENCIANO, BRAGA E SOUZA, 2016). Na sua dimensão
conceitual, ela se dá por meio dos princípios de delegação (O'DONNELL, 1991)
representação (FERES, Jr. e POGREBINSC, T, 2010; HAWKINS, 2016; PITKIN, 1967;
PRZEWORSKI, STOKES E MANIN, 1999) ou em sua dimensão sócio histórica, que
depende das transformações sociais, politicas, econômicas e culturais do Estado.
Depois de que se dispõe a transição, a qual assume de acordo com Foa e Mounk
(2017) a democracia como único jogo na sociedade, segue o grau “consolidação”
que depende de três características: (a) o grau de apoio popular à democracia como
sistema de governo preferível; (b) o grau em que os partidos e movimentos do
sistema e antissistema são fracos ou inexistentes; (c) o grau em que as regras
democráticas são aceitas.

137
Um breve resumo do artigo segue. Na Seção 2, apresentamos a metodologia
(métodos e dados), seção 3 segue justamente com as demonstrações do modelo
analítico e alguns dos nossos resultados. Na seção 4, seguem-se os resultados
principais do nosso estudo, e à prova da ocorrência na AL (da desconsolidação).

Metodo e dados

Feita discussão teórica, a metodológica geral deste trabalho procura identificar nos
4 países selecionados, os processos de desconsolidação da democracia desde 2000.
A classificação em quatro dimensões que construímos (o modelo de analise)
apresentada o seguir, será testada nos 4 países em estudo. Nosso modelo de analise
resulta de uma classificação e construção detalhada das variáveis de analise, por
meio de dados categóricos, disponíveis no WAPOR, LAPOP, LATINO-
BAROMETER, e os dados do projeto PARTY Law.
Adicionalmente, trata-se de um trabalho exploratório e descritivo. Consideramos
a analise de dados agregados e desagregados secundários (DONNELLAN E
RICHARD, 2013), numa escala comparativa de “n” casos, e seguiu a realização de
um mix das medidas de produtividade qualitativa e quantitativa, para avaliar os
processos políticos em termos de democratização e (des) consolidação nos quatro
Países. Analisamos a democracia e (des) consolidação, a partir das dinâmicas
funcionais do sistema politico, tendo como base [a] Participação Politica e
Eleitoral; [b] Estabilidade das Regras do Jogo Politico e Eleitoral; [c] Confiança nas
Instituições e Democracia; [d] Corrupção e Financiamento Politico/Partidário.
No que diz respeito à escala espacial e temporal, o estudo analise o processo de
desconsolidação nos países (Brasil, Paraguai, México e Argentina), e compreende
desde o processo de transição das democracias da terceira onda em 1980 até 1990,
e a partir ai, segue o foco do estudo, post 2000. Recorremos ao enfoque
comparativo (LANDMANN, 2008) e longitudinal (WEI WU, SELIG E LITTLE, 2013)
que busca entender as realidades em estudo a partir da abordagem de comparação
de mais de dois casos.

138
ANALISE E DISCUSSÃO
A luz dos estudos desenvolvidos sobre a desconsolidação democrática, a qual nas
ultimas duas décadas ocupa os espaços da discussão dos processos de democracia
em países em processo de consolidação, verifica-se um processo que exige uma
nova conceptualização da democracia e das altas expetativas sobre (consolidação
democrática) e o paradigma de transição ao qual foi considerado um fim em si
mesmo. A principal contribuição do nosso estudo é construir variáveis explicativas
na América Latina, como segue:
Modelo Analítico
Participação Politica e Eleitoral Estabilidade nas Regras de jogo politico e
eleitoral
Voto Branco, Nulo e Abstenção Leis, Reformas e suas consequências
Pelo fato do voto ser obrigatório, as pessoas Numero de reformas positivas - excludentes
participam, mas não escolhem nenhum dos ou negativas – excludentes dos demais atores
candidatos, partidos ou grupo de candidatos; políticos;
As pessoas sentem que não são representados; Numero de reformas para fechar ou abrir o
Voto branco (inexistência de candidato sistema politico a novos atores ou
preferível); representantes;
Voto Nulo (falhas na hora da escolha ou poderia Atores que pressionam as reformas (por
ter alguma escolha, mas todos na lista são dentro ou por fora)
ilegítimos para representar seus interesses ou Escala de analise: numero de reformas “*R” {0,
coletividade que faz parte); 1}, onde 0 estável e 1 instável, dentro da
dimensão positiva e negativa.
Corrupção e Regras de financiamento Politico e Confiança nas instituições e democracia
partidário excludentes
Nível de corrupção (Baixa, media e alta) e Dualidade entre Preferencia e
tipologia e regras de financiamento descontentamento com a democracia
Índices de corrupção em media mundial; Público apático à democracia e as suas
Formas de arrecadação de financiamento instituições mais importantes – partidos;
politico e partidário; O publico sabe que a democracia é preferível,
Tipologia de financiamento (Público, privado ou mas cépticas em suas benesses;
misto) Expetativas mal realizadas e cidadãos
insatisfeitos com suas performances;
Fonte: O autor (2017)

139
Reportamos que Desconsolidação Democrática (DD) = < Participação
Politica/Eleitoral (< PE) + < Confiança nas instituições e democracia (< C) – Pouca
estabilidade nas Regras de jogo politico e eleitoral (ERJ) + Aumento dos níveis de
Corrupção e Regras de financiamento Politico e partidário excludentes (^C e RFE).
Nestes termos, por conveniência, temos a seguinte simplificação:
Formulação 1:
DD = {< PE + < C – ERJ + C e RFE}.
Fase 1: < PE + < C
Fase 2: < PE + < C + ^C e RFE
Fase 3: < PE + ^C e RFE
Fase 4: < C + ^C e RFE ou ERJ
Fase 5: ^C e RFE + ERJ

Por via disso, estamos em posição de classificar os pais se estão em processo de


desconsolidação alta, se a simplificação ter uma tendência positiva em todas as
fases indicadas na formulação 1. A desconsolidação é media, se a Fase 1 e 2 forem
negativas; e desconsolidação baixa, se nenhuma das fases se verificar, ou apenas
verificar-se ocorrência da fase 4 e 5.

Desconsolidação Democrática na América Latina: Contexto Sócio-Político e


Partidário dos Países

Brasil

Primeiro de tudo, entre 1964 e 1985, Brasil experimentou um regime militar mais
antigo da história do país (CASTRO, 2000; STEPAN, 1988; CARVALHO, 2005;
HAGOPIAN, 1990; PINHEIRO, 1994). Este regime autoritário promulgou nova
Constituição em 1967 e a modificou em 1969 em uma abordagem centrada no
estado que consagrou a doutrina da segurança nacional. Na analise do Brasil,
verifica-se que o primeiro problema para resolução das questões é concernente à
transição, que teve seus pontos iniciais em 1972, quando o regime demostrava
algum tipo de mudanças, mas prioritariamente em 1982, é que o Brasil atual

140
apresentou elementos explicativos da liberalização para a democratização,
abertura das bases sociais algo que não sucedeu na atuação do regime autoritário.
Neste contexto, em 1988, como parte da transição negociada no Brasil do
autoritarismo para a democracia, desde 1986 com a realização da Assembleia
Constituinte, e aprova nova Constituição, que veio a ser chamado de (Constituição
Cidadã).

Tabela 1: Historia Eleitoral do Brasil


Pais Eleição 1º ou 2º % Presidente Maioria no
Turno Congresso
[4] ^ * Sarney PMDB
1989 2º 53.03% Collor (PRN) PMDB
Brasil * * * Franco (PSDB/PFL) *
Transição 1994-5 1º 54.24% Cardoso (PSDB/PFL) PMDB
Democrática 1998-9 1º 53.06% Cardoso (PSDB/PFL) PMDB
(1985) 2002-3 2º 61.27% Lula (PT) PMDB
2006-7 2º 60.83% Lula (PT) PMDB
2010-11 2º 56.05% Dilma (PT) PMDB
2014-15 2º 51.64% Dilma/Temer (PT) PT
Fonte: TSE. International IDEA, 2017. Adaptado pelo autor (2017)
* Indisponibilidade acessível de dados para compilar.

É preciso contextualizar que no Brasil a problemática do presidencialismo de


coalizão surge à restituição do quadro multipartidário com amplo leque de
partidos ou legendas, e isso veio a se confirmar com a eleição presidência, que
confirmou a tendência à proliferação de siglas, apresentaram-se 22 candidatos, a
maioria dos quais pertencentes a partidos sem representação no então Congresso
Nacional, de outro lado, mostrou a fragilidade dos partidos com força congressual
(Sadek, 1993; Avritzer, 2016). Para compreender a estrutura do campo político, é
necessário compreender primeiramente a maneira como se estrutura a competição
política.

Paraguai

141
A história é tida como cíclica no sentido em que envolveu a alternância de regimes
semi competitivos e não competitivos, pelo qual se redesenhou a competição entre
1870-1930 (ABENTE, 1988; OLIVEIRA, 2014). Para começar, antes do Stronismo, o
Paraguai, viveu um conjunto de transformações, mas que tenderia a manutenção
do status quo, isto, da tendência semi-competitica e a República incorporou
políticas e economia liberal e liderança civil. Dois dos principais partidos: os
Liberais (Partido Liberal Radical Auténtico, PLRA, en la actualidad) e os Colorados
(Asociación Nacional Republicana, ANR), ambas fundadas em 1887 (HICKS, 1971;
VARA, 1989; POWERS, 1992), isto é, La Asociación Nacional República (ANR) veio
controlando o poder executivo durante um total de 84 anos (1880-1904 e 1948-
2008), e o partido liberal ficou durante 35 anos (1904-1936 e 1937- 1939), isso
significou um ciclo do bipartidarismo (LACHI 2009).

Tabela 3: Partidos e Desempenho Eleitoral no Paraguai

Pais Eleição Partido do % Presidente Maioria no


Presidente Congresso
1989 - 74,2% Rodriguez -
Paraguai (ANR)
Transição 1993 Colorado 39.91% Monti (ANR) Colorado
Democrática 1998 Colorado 54.06% Grau (ANR) Colorado
(1989) 1999 Colorado 45.83% Macchi Colorados
2003 Colorado 37.14% Duarte (ANR) Colorado
2008 Aliança 40.83% Lugo Colorado
Patriótica
2012 Liberal Impeachment Franco -
Radical
2013 Colorado 45.83% Cartes (ANR) Colorado
Fonte: Tribunal Superior de Justiça Eleitoral do Paraguai (http://www.tsje.gov.py)

Desde as eleições de 2002, houve ventos de esperança que acabariam então com o
modelo clientelista e patrimonial de gestão do Estado, e Duarte Frutos foi o
primeiro presidente após a abertura política de 1989 que não fazia parte do
ambiente stronista.

142
México

A historia politica de México se confunde com a do Partido Revolucionário


Institucionalizado (PRI) que traça suas raízes desde a Revolução Mexicana (1910-
1917). A revolução começou quando Francisco Madero pediu um popular
levantamento contra o presidente Porfirio Díaz, que governou o México por mais
de 30 anos. Despois de muito tempo, apenas em meados de 1980, inicia o processo
de mudanças e transações sociais e politicas.
O incremento as eleições competitivas, reflete o envolvimento da nação no
processo de abertura do sistema politico democrático. Mas nos anos 1980, a
transição política no México tem sido mais gradual do que a América Latina
transições em parte devido à (1) o grau de institucionalização alcançado por o
regime político, e (2) o regime amplamente inclusivo, que era menos severo em
termos de atuação autoritária (JUÁREZ, 2017). Dentro disso, México não alcançou
um desenvolvimento democrático completo no século 21, e o processo de reforma
e liberalização iniciado pela elite política do país em 1977, parcialmente concluído
com o triunfo eleitoral do PAN, partido conservador de oposição que ganhou as
eleições presidenciais no ano 2000.

Historia Politica e Eleitoral de México


Pais Eleição Partido do % Presidente Maioria no Congresso
Presidente
1982 PRI 72% La Madrid PRI
1988 PRI 50% Gortani PRI
1991 PRI - Gortani PRI
México 1994 PRI 48% Zedillo PRI
Transição 1997 PRI - Zedillo PRI
Democrática 2000 PAN 42.50% Fox Aliança P. Cambio e PAN
(1917) 2003 PAN - Fox Aliança p Cambio
2006 PAN 35.89% Calderon PAN
2009 PAN - Calderon PAN e Aliança p Cambio
2012 PRI 38.15% Nieto PRI

143
2015 PRI - Nieto PRI e VERDE
Fonte: International IDEA, 2017.

Desde o ano de 2000, O México desfrutou pela primeira vez em sua história, uma
eleição democrática que levou a queda do partido PRI, que governou o país por
quase 70 anos. Para alguns autores (MENDEZ DE HOYOS, 2012; TAGIRA, 2012;
SCHEDLER, 2002). Adicionalmente, houve continuidade e um conjunto de
mudanças relevantes em um sistema de partidos quase fechado.

Argentina

Após a experiência na mais recente ditadura (1976-1983), a sociedade argentina


atravessou um período de consolidação da restauração democrática. Segmentos
esperançosos da sociedade viram seu sonho democrático, afogar-se naqueles anos
transatos (SARLO, 2005; STEINKE, 2011). Embora pareça razoável concordar que a
transição argentina foi iniciada pelo colapso do regime militar, alguns autores
marcam o início da abertura ou fase de liberalização em torno de 1980-1981. Ernesto
López, postulou o início da transição em março de 1980, quando o general Videla
pediu o diálogo político e colocou o fim dele com a adoção de um governo
democrático em dezembro de 1983 (SARLO, 2005; SAEZ, 1988; MAZZEI, 2011).

Eleições e Historia da estrutura da competição politica da Argentina


Eleição Presidente Partido do % Maioria no
Pais Presidencial* Presidente Congresso ( - ou + 2
Legislativa ** anos da eleição
presidencial)
1983 Alfonsín UCR 51,75% UCR – 1983
1989 Menem Peronismo 47.49% Justicialista – 1987
Argentina 1995 Menem Peronismo 48.9% Justicialista – 1993
Transição 1999 De la Rúa Alianza UCR 48.37% Justicialista – 1997
Democrática 2001 Duhalde Justicialista - Justicialista – 2001
(1983) 2003 Kirchner* FPV 22.25% FPV - 2005
2007 Kirchner M Alianza FPV 44.92% FPV – 2009
2011 Kirchner M Justicialista 54.11% FPV - 2013

144
2015 Macri Cambiemos 51.34% -
Fonte: International IDEA. Adaptado pelo autor (2017).

O período que ele teve que governar Néstor Kirchner (desde 2003), foi um dos mais
difíceis na história política e econômica que a Argentina viveu, por varias razoes:
país estava imerso em uma profunda crise econômica, política e social (Calvo e
Escolar, 2005). Na visão conjuntural, verifica-se que Argentina apresenta um
número efetivo de partidos legislativos que medem a concentração de assentos no
Congresso numa escala de dois.

Discussão

A discussão sobre desconsolidação deve ser embasada a luz do nosso


entendimento sobre a democracia, transição e consolidação, conforme indicado
acima, é evidente que boa parte dos cidadãos em vários países democráticos, estão
insatisfeitos com seu sistema politico (NORRIS, 2016). Adicionalmente, a confiança
com as instituições democráticas, como parlamento, partidos, estão cada vez mais
baixando em todo mundo. Por conveniência, evidências preliminares sugerem que
a interpretação desconsolidação esta cada vez mais evidente, que sinaliza um
perigo real para a estabilidade da governança democrática (FOA E MOUNK, 2015;
2017; INGLEHART, 2016).
A tese chave que Foa e Mounk, demostraram em julho de 2016, no Journal of
Democracy, é que os cidadãos não estão apenas insatisfeitos com o desempenho
do governo democrático, também demonstram-se critico a própria democracia.
Três elementos chaves assinalam que uma democracia está desconsolidada: [1]
Apoio popular à democracia; [2] Alargamento da "lacuna de apática política"
(interesse pela política); [3] Aumento da lacuna na atividade política, inclusive na
atividade política "não convencional"; [4] Aumento do apoio a alternativas
autoritárias (FOR E MOUNK, 2017). Vagarosamente falando, a discussão sobre
desconsolidação é ampla, e mesmo nas democracias consolidadas como Estados
Unidos e a França, permanecem em um estado incipiente, e isso permite denotar

145
que as práticas da politica moderna nas sociedades pós capitalistas e industriais e
com a globalização tardia, estão se movendo para novas formas distintivas, no que
foi chamado de "desconsolidação da democracia" ou na fala de Colin Crouch (2000)
a pós-democracia.

(a) Participação Politica e Eleitoral


Ate onde sabemos, a literatura na ciência política inclui vários estudos que
examinam os elementos basilares da participação e a teórica clássica da
democracia, indica que o ato de participação não só influencia os resultados
eleitorais, mas também desempenha um papel educativo, oque permite a
promoção do envolvimento cívico e os valores democráticos, portanto, criando um
ciclo onde o envolvimento na participação melhora os tipos de atitudes e
comportamentos (ver PATEMAN 1970; THOMPSO 1970).

Gráfico 1: Participação Eleitoral na América Latina

60%

50%
1985
40%
1990

30% 1995
2000
20%
2005
2010
10%
2015
0%
Abt VN VB Abs VN VB Abs VN VB Abs VN VB
Brasil Paraguai Mexico Argentina

Fonte: Elaboração do autor (2017)


Obs: Os dados apresentados, agregam 5 em 5 anos, contudo, não significa necessariamente que as
eleições foram realizadas nestes anos. Contudo, pelo mix de diferença de anos eleitorais, foram
agregados em 2 anos + ou – do ano eleitoral (em todos casos).

146
Denotamos que o baixo nível de participação eleitoral nas eleições recentes em
todos países em analise é talvez o motivo mais óbvio por que lá parece ser uma
crise de democracia ou algum tipo de desconsolidação, no sentido em que, cada
vez mais as pessoas estão se afastando das regras que definem o jogo democrático.
Isso levaria a uma situação de dislegitimidade do sistema, como pode se notar para
o caso do México, nas eleições de 2010, e Paraguai, nas eleições de 1989. Embora
muitas análises de participação eleitoral abordem o voto compulsório na região da
América Latina (ELKINS, 2000 E OLIVEIRA, 1999), nestes países, ele não
influenciou diretamente na maior participação. Norris (2002) indicou que o voto
compulsório tem efeito apenas em democracias mais velhas, onde as instituições
são mais fortes. Para este ponto, verificamos que todos os países em analise,
seguem mesma tendência, de baixar os níveis de participação politica, com algum
tipo de oscilação, mas de todo, seguem o caminho da desconsolidação, onde cada
vez mais o publico não vê nos políticos espaço de representação.

(b) Estabilidade nas Regras de jogo politico e eleitoral


A primeira vista, a discussão sobre a regulamentação partidária deve constituir um
denominador comum nas leis sobre partidos políticos, financiamento politico, leis
eleitorais, campanha eleitoral e outras. A primeira vista, a regulamentação
partidária deve ser entendida como sugere Van Biezen (2008) como o trabalho
legislativo sobre os partidos incorporado em leis dos partidos, constituição, sobre
financiamento, eleitorais, estatutos, etc. Ate onde sabemos, existe um conjunto de
pesquisas que visam evidenciar a proliferação de produção das leis partidárias e no
sentido de como indica (KARVONEN 2007, VAN BIEZEN 2012, ZOVATTO, 2006)
de torna-lo um instrumento dos partidos dentro das democracias (MOLENAAR,
2013).

Regulamentação partidária na AL
Crise de Reformas para Estabilização do Alta Fragmentação
Legitimidade do baixar os custos de Sistema Politico resultante das
Sistema Partidário formação de – post crise Reformas (1988-
(1988-2014) 2015)

147
partido (1988-
2022)
Brasil Sim Não Sim/Não Sim
Paraguai Sim Não Sim Não
México Sim Sim Sim Não
Argentina Sim Sim Sim Não
Fonte: Scherlis (2014) Adaptado pelo Autor.

O que se verifica na tabela, é a dimensão de que o caráter da regulamentação dos


partidos e das regras do jogo difere e tem um papel chave na abertura ou
fechamento do sistema politico e competitivo na democracia contemporânea
(VAN BIEZEN 2012; SCHERLIS, 2014). Este tipo de regulamento é chamado de
regulação permissiva, ou seja, pela equação {< PE + ERJ} pode levar
necessariamente ao processo de desconsolidação. Dos países analisados, todos
apresentam algum tipo de instabilidade das regras de jogo, com exceção a México,
que apresenta algum tipo de impedimento na abertura e continuo instabilidade
das regras. Do mesmo modo, estas reformas foram validas para corrigir algumas
falhas de um passado recente, principalmente antes da democratização (Brasil e
Argentina) e algum tipo de inclusão e cooptação social (México e Paraguai) este
ultima mais moderado, apesar de existir uma forte ligação entre: Estado, partido e
Militares (NICKSON, 2005; LACCHI, MARCELLO, 2003).

Mudança na regulamentação partidária nos 4 países (2000 – 2015)


Última Constituição Modificação da Lei existente
 Brasil – 1988; - Argentina – 1994; -  Argentina – 2002, 2006, 2007, 2009
México – 1917; - Paraguai – 1992  Brasil – 2006, 2009, 2010, 2015, 2017
Reforma Constitucional  Paraguai – 2001, 2007, 2012;
México – 2007; - Paraguai – 2017  México – 2003, 2005, 2011
Substituição da lei existente pela nova lei Adoção de Lei adicional
 México – 2008  Argentina – 2002, 2016
 México – 2007, 2013, 2014, 2017
Fonte: Molennar, 2012. Adaptado pelo autor (2017).

148
Um conjunto de reformas desenvolvidas ao longo do tempo, dos quais, incidem
mais na modificação da lei existente, como uma faceta do incrementalismo. De
qualquer das formas, Paraguai e Brasil que apresentam alguma estabilidade nas
reformas de regulamentação partidária, o que ao nosso modelo de analise, este
ponto não segue firme ao processo de desconsolidação nestes dois países (Paraguai
e Brasil). Os dois países estão numa escala de [*-0,3.24] da escala [0 – 1].
(c) Corrupção e Regras de financiamento Politico e partidário excludentes
Muita das vezes, a corrupção é geralmente definida como uma violação das normas
do cargo público para ganho pessoal (NYE,1967), ou, ela tem sido conhecida como
elemento que dificulta o crescimento econômico, enfraquecer a qualidade da
governança e reduzir o nível de confiança que os cidadãos colocam nas instituições
políticas (MAURO, 1995; ANDERSON E TVERDOVA, 2003). Desde então, a
corrupção e a democracia tem sido relacionados numa escala complexa
(JOHNSTON 2005; WARREN, 2004):

Percepção sobre Corrupção


Pais 2004-06 2007-10 2011-15 Variação 2004-06/11-15
Brasil 10.5% 8% 13.0% 2.5
Paraguai 8.4% 9% 8.1% -0.3
México 9.2% 8% 6.3% -2.9
Argentina 8.8% 5.5% 5.5% -3.3
América Latina 8.0% 6.8% 8.4% 0.4
Fonte: Latino barómetro. Adaptado pelo autor (2017).
Obs: A escala 0 (muita corrupção) – 10 (menor corrupção). A escala de -2.5 (mais baixo nível) para
2.5 (mais alto nível).

Vale a pena mencionar três fatores adicionais estão afetando a legitimidade


democrática na América Latina: (1) percepções crescentes que as instituições
democráticas não representam cidadãos (2) os partidos são frágeis e voláteis e (3)
uma percepção crescente da corrupção e da incapacidade governamentais para
reduzir e controlar a corrupção (CANACHE e ALLISON, 2004). De certeza que a
corrupção é um dos elementos principais do desengajamento popular e descredito
as instituições politicas (MORRIS, 2008). Aliado a isso, é notório que o processo de

149
desconsolidação democrática no Brasil, México, e Paraguai, tem correlação com a
percepção sobre corrupção, e ela afeta diretamente a confiança nas instituições e a
crise dos partidos tem vinculação com os escândalos provocados pelo
financiamento ilegal (ZOVATTO, 2005).

Características do Financiamento Politico e Partidário


Variáveis
Financiamento Distribuição do Limites Prestação Proibição Isenção
publico direto Financiamento das de Contas de apoios de
Publico e doações anônimos imposto
Países Privado s
Brasil Sim Misto Sim Sim** sim Não
Paraguai Sim Misto Sim Sim Sim* Sim
México Sim Misto Sim Sim Sim Sim
Argentina Sim Misto Sim Sim Sim** Sim

Fonte: Adaptado de Mollenar (2012) Zovatto (2005). Elaborado pelo autor (2017)
Obs: Misto quer dizer: entre a proporcionalidade da sua força eleitoral e ou repartir entre todos
partidos de igual forma, ou mix.
* Permitem a arrecadação de fundos de origem anônima quando feita na forma de coletas
populares.
** Cobram prestações de contas antes e depois das campanhas eleitorais.

As descrições seguem dois eixos: fraca accoutability do fundo tanto publico ou


privado, e as regras de distribuição dos fundos públicos bem diferentes em todos
os países analisados. No entanto, estas reformas que tendem cada vez mais a criar
barreiras institucionais com base nos critérios de distribuição dos fundos
partidários públicos (VIANELLO 2011), são per si excludentes para entrada de
novos atores políticos no caso do Brasil e México. Este último observa-se que
durante a reforma de 2007-08, o financiamento privado é regulado para mudar a
principal fonte de renda dos partidos para publico (CÓRDOVA VIANELLO 2009,
SERRA 2009). Este mesmo desenvolvimento é visível também no caso de Argentina
(GUTIÉRREZ E ZOVATTO 2011).

(d) Confiança nas instituições e democracia


Estamos interessados em evidenciar que como sugere Della Porta (2000), a
corrupção política piora o desempenho do governo, ou seja, a percepção sobre
corrupção na a confiança nas instituições, reduzindo a confiança na capacidade do

150
governo para atender às demandas dos cidadãos. Por via disso, a confiança será
menor quando a corrupção for percebido como generalizado.
Gráfico 2: Confiança na Democracia e suas instituições

17%
Argentina 90%
71%
45%
Mexico 66%
48%
39%
Paraguai 85%
55%
34%
Brasil 81%
32%

0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 80% 90% 100%
Democracia sem Partidos (1995-2013) Preferencia pela democracia (1995-2014)
Apoio a Democracia (1995 - 2016)

Fonte: Latino barômetro 1995-2013

Como adverte Dahl (2000), uma sociedade democrática cujo há constante violação
das normas constitucionais, fraca resposta as demandas sociais e abuso dos
recursos políticos, podem continuamente construir uma desconfiança ao regime,
sobretudo nas democracias da 3ª ou 4ª onda. O estudo avança a hipótese de que
quanto menor a confiança, maior é a tendência da desconsolidação, cujo suporte
esta nos dados sobre confiança na democracia e suas instituições. A confiança
política (a confiança que as pessoas colocam nas instituições políticas) parece ser
crítico para a democracia, pois ela liga os cidadãos com os governos e as
instituições que representam, e aumenta a legitimidade do governo democrático
(BIANCO 1994; CITRIN E MUSTE, 1999).

Conclusão
O processo de consolidação democrática, não chegou ao fim, e no meio deste
processo, esta ocorrendo o reverso. Tal dimensão reversa, os estudos recentes
apelidam de desconsolidação democrática. Neste artigo lidamos com o processo
de desconsolidação na América Latina, e a priori evidenciamos que não era a

151
intenção, trazer uma discussão que se pretende geral, mas alguns pontos e formas
atuais de pensar a desconsolidação. Seguindo a linhagem argumentativa de Foa e
Mounk (2017, 2016), nosso resultado complementou este estudo acima citado, e
incluímos mais 2 variáveis explicativas do processo de desconsolidação, as quais, o
financiamento e corrupção e a estabilidade das regras de jogo entre atores
políticos.
As últimas três décadas existiu debate sobre a consolidação considerando o seu
contexto e a estrutura social que determina as transformações politicas dos países
analisados. Desta forma, é evidente, pelo modelo de analise desenhado, com os
problemas que os países democráticos vivem em termos de (des) consolidação da
democracia, isto é, reversão da consolidação. Nestes termos, os fatores adicionais
que influenciam diretamente no processo de desconsolidação democrática na
América Latina (Brasil, Paraguai, México e Argentina), são: o fato de no seio da
sociedade cada vez mais existir uma percepção de que as instituições democráticas
não representam os cidadãos adequadamente; que os partidos e demais
instituições da democracia são frágeis, e que a democracia mesmo sem eles pode
funcionar e finalmente a percepção crescente da corrupção e alianças em termos
de financiamento partidário, mais evidente para o caso de México e Brasil.
E isto nos permite dizer que a tendência de aumento da desconfiança entre o
público e as instituições democráticas, foi uma das principais alavancas da
desconsolidação. Mas ela per si só não é única explicativa, por isso, a
complementação das 4 variáveis que foram objeto de analise ao longo do trabalho.

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155
7. CENÁRIO PÓS DITADURAS CÍVICO-MILITARES: UMA ANÁLISE
COMPARATIVA ENTRE ARGENTINA E BRASIL

Laís Siqueira Ribeiro Cavalcante

Introdução

No decorrer das décadas de 1960 e 1970, havia uma grande mobilização por parte
dos movimentos sociais na América Latina, que lutavam pelo aperfeiçoamento do
sistema democrático, por uma melhor distribuição das riquezas e das terras de suas
regiões, bem como da ampliação e da disseminação dos direitos trabalhistas para
os trabalhadores do campo, dentre outras demandas (MENDES, 2013, p. 7-8). Neste
contexto, e tendo como pano de fundo a Revolução Cubana de 1959, tamanha
articulação gerava incômodo nas classes mais abastadas e conservadoras, que em
conjunto com outros fatores e com características singulares de cada país, permitiu
que ditaduras civil-militares se espalhassem pela região.
Neste período, emergiram ditaduras civil-militares no Cone Sul. O primeiro país
da região a ter seu presidente constitucionalmente eleito destituído foi o Brasil, no
ano de 1964, posteriormente vieram Argentina (1966 e novamente em 1976), Chile
(1973) e Uruguai (1976). É importante destacar que ainda que esses processos
tenham sido liderados pelas Forças Armadas de seus países, setores conservadores,
membros da sociedade civil e partidos políticos também apoiaram esses regimes
(MENDES, 2013, p.8).
As Forças Armadas apoderaram-se do governo constitucional, na Argentina, em
1976. E o regime militar se autodenominou como Processo de Reorganização
Nacional, e a partir desse momento uma política de terror foi instaurada. Os que
se opunham ao governo militar eram sequestrados, torturados e muitos morriam
nos campos de tortura. Esta realidade deixou um número extremamente
expressivo de mortos, na Argentina, foram trinta mil pessoas desaparecidas e
privadas de sua liberdade (CAVALCANTE, 2017, p. 39). Segundo Mendes (2013, p
10), mais de duzentas mil pessoas exilaram-se fugindo deste regime.

156
Em 1964, iniciou-se a ditadura no Brasil, dando início à um período de graves
violações dos direitos humanos, de perseguição política, de prisões ilegais e
arbitrárias, de torturas e sequestros. O cenário de perseguição obrigou muitas
pessoas a se exilar, a abandonar seus empregos e viver na clandestinidade. Este
cenário se perpetuou por vinte e um anos, e de acordo com o volume III do
Relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), o número total de pessoas
mortas e de desaparecidos políticos, no período de 18 de setembro de 1946 a 5 de
outubro de 1988, é de 434 pessoas (BRASIL, 2014, p. 26).
A ditadura na Argentina chegou ao fim em 1983, e no Brasil em 1985, porém
tardaram-se anos para que essa responsabilidade fosse de fato reconhecida pelo
Estado. Na Argentina, somente em 2001, quando Néstor Kirchner assumiu a
presidência da República é que essa temática voltou a ser discutida, o então
presidente ordenou a retirada dos quadros com as fotos de Reynaldo Bignone e de
Jorge Rafael Videla1 do prédio da “Escuela de Mecánica de la Armada (ESMA)”, e na
ocasião pediu perdão em nome do estado nacional, por terem se calado durante
vinte anos de democracia, e repudiou todos8 os envolvidos, chamando-os de
assassinos (VÁZQUEZ, 2009, p. 138). No Brasil, a temática voltou a ser pauta de
discussão somente em 2010, quando o atual presidente da República, Luiz Inácio
Lula da Silva, encaminhou o projeto de lei de criação da Comissão Nacional da
Verdade (CNV), que iniciou seus trabalhos em 2012, já no mandato de Dilma
Rousseff. No entanto, no Brasil, a Lei de Anistia é vigente, e ainda que comprovadas
as práticas de tortura e de desaparição deste período os envolvidos não poderão
ser julgados por seus crimes.

O cenário pós ditaduras cívico-militares

Finda a ditadura na Argentina em 1983, e a postura dos primeiros governos


democráticos foi de omissão com relação aos crimes de lesa-humanidade. O que
fez com que diversos movimentos de resistência ganhassem destaque durante o
período neoliberal, como é o caso dos movimentos em prol dos direitos humanos.

1
Videla (1976-1981) e Bignone (1982-1983) ocuparam a presidência da Argentina durante o regime cívico-
militar.

157
Para compreender o processo pelo qual a Argentina passou, não se pode deixar de
lado os processos sócio-históricos. Segundo Retamozo (2011), os processos de
mobilização social dos anos 1990 são fruto do projeto político, econômico e cultural
da última ditadura cívico-militar argentina (1976-1983). Este cenário afetou
diretamente a forma como as coletividades se manifestavam, participavam da vida
política e de suas formas de militância. A retomada do processo de participação
cidadã através de formas mais institucionalizadas foi efetivada pela criação de um
sistema de partidos políticos que deu origem às eleições de 1983 (RETAMOZO,
2011).
As eleições foram vistas como um primeiro passo para a estabilização democrática
e para uma mudança na direção da política na Argentina, porém, em pouco tempo
o governo se mostrou incapaz de cumprir com as promessas de estabilização
monetária e de resolução dos problemas sociais, que foram agravados com a crise
da dívida de 1982. O primeiro governo democrático, de Raúl Alfonsín, deixou de
lado questões sobre a ditadura, e propôs a “Lei de Ponto Final”, que visava
estabelecer um prazo para receber denúncias e para iniciar o processo de
julgamento dos acusados, os que não fossem citados para depor em 60 dias
corridos, não poderiam mais ser processados no futuro. Em 1987, o parlamento
argentino sancionou a “Lei de Obediência Devida” que amparava os militares
subalternos, com a afirmação de que eles estavam sob ordens de seus superiores e
que não tinham poder de decisão, e por isso teriam sido isentos de
responsabilidade. Neste período o movimento sindical voltava a ganhar
protagonismo, e passou a se mobilizar, mas as demandas que surgiam em
decorrência do regime militar transbordavam o poder de atuação restrito aos
sindicatos e aos partidos políticos.
Os protestos e movimentos sociais que se desenvolveram na década de 1990 não
foram somente os que estavam ligados às relações de trabalho/capital, também
ganharam destaque movimentos que lutavam por questões ambientais, de gênero,
igualdade racial, questões indígenas, dentre outras. Dentre os movimentos que se
destacaram nesse momento, pode-se citar os que estavam ligados aos direitos
humanos, que cobravam dos governos não mais a aparição com vida de seus
desaparecidos, e sim a punição para os culpados. O governo de Raúl Alfonsín

158
promoveu o que ficou conhecido como as “leis da impunidade”, as já mencionadas
“Lei de Obediência Devida” e a “Lei de Ponto Final”, que visavam silenciar os crimes
e abusos que foram cometidos durante o governo ditatorial. No ano de 1996, surge
o movimento “Hijos por la Identidad y la Justicia, contra el Olvido y el Silencio
(H.I.J.O.S)2”, que agrupava os filhos dos desaparecidos durante a ditadura. Essa
agrupação de jovens renovou o debate acerca dos direitos humanos, consolidou e
deu apoio a outros grupos que já existiam, como as “Madres de Plaza de Mayo3” e
as “Abuelas de Plaza de Mayo4”. As “Madres de Plaza de Mayo” promoviam eventos
anuais, as Marchas de Resistência, evento no qual ocorriam diversas formas de
manifestações artísticas, como shows de rock, grupos de teatro, saraus, etc; o que
fazia com que os jovens cada vez mais se acercassem da luta dessas mulheres, e de
certa maneira, assumissem o compromisso de não deixar esta luta ser esquecida
pelos governantes.
Fernando de la Rúa foi eleito presidente em 1999, e tinha como bandeira manter
as bases do modelo econômico e combater a corrupção, porém este modelo já dava
indícios de esgotamento, pela desestruturação econômica, política e social que
provocou (RODRÍGUEZ, 2013). No ano de 2001, estava tramitando uma tentativa
de corte dos gastos em educação, o que trouxe os estudantes universitários para as

2
O H.I.J.O.S. foi criado em 1995, pelos filhos dos desaparecidos durante a ditadura militar. O grupo surgiu
com o intuito de reivindicar a luta de seus pais e mães, de tentar encontrar seus irmãos que foram
apropriados pelos militares e lutar contra a impunidade e o esquecimento. Desde a sua criação o grupo
busca a punição de todos os envolvidos na ditadura cívico-militar. A organização está presente em toda a
Argentina e conta com 16 sedes internacionais. A Rede Nacional da organização se reúne em encontros
periódicos e em congressos anuais para discutir políticas, eles atuam de forma horizontal e por meio de
comissões temáticas, como as de “Memória”, “Juízo e Castigo”, “Irmãos”, etc. Para maiores informações
consultar: <http://www.hijos.org.ar/>.
3
Movimento popular composto por mães que buscavam os desaparecidos políticos na Argentina. Em sua
grande maioria, as mães procuravam por seus filhos sozinhas e nessas tentativas acabavam se conhecendo,
porque iam aos mesmos lugares, foi então, que elas começaram a tentar localizar os desaparecidos juntas,
e quando resolveram fazer reuniões para organizar as buscas. As Madres perceberam que procurá-los todos
os dias em diferentes locais não estava trazendo resultado e que precisavam ganhar maior visibilidade. E,
a partir desse momento começaram a caminhar em silêncio na Plaza de Mayo, atitude que trouxe a elas
visibilidade dentro e fora da Argentina.
4
As Abuelas de Plaza de Mayo têm como objetivo localizar e restituir as suas legitimas famílias as crianças
que foram desaparecidas durante a ditadura, além de lutar pela verdade e pela justiça. As avós desses bebês
criaram um banco de dados genético, no qual constam informações dos pais das crianças desaparecidas, e
qualquer pessoa que tenha dúvidas sobre sua identidade pode buscar a organização para realizar um exame
de DNA, sendo todo o procedimento sigiloso e gratuito, e somente têm as suas identidades reveladas os
netos que permitem a divulgação dessa informação. Ao todo, as Abuelas já encontraram 121 netos
desaparecidos, que tiveram acesso à sua verdadeira identidade e história. Para mais informações sobre os
netos que foram restituídos as suas verdadeiras famílias consultar:
<https://www.abuelas.org.ar/caso/buscar?tipo=3>.

159
ruas, e que logo conseguiram apoio dos servidores públicos, professores
universitários, movimentos dos trabalhadores desempregados, etc. Na ocasião,
trinta e três ativistas foram assassinados e centenas de pessoas feridas, incluindo
sete Madres que sofreram algumas lesões (BORLAND, 2006). Segundo Rodríguez
(2013), neste momento há uma crise das formas tradicionais de participação, como
os sindicatos e os partidos políticos, é o momento em que a hegemonia neoliberal
é posta em cheque.
Em 2002, Eduardo Duhalde assumiu a presidência da Argentina, porém era um
momento de fortes protestos e de instabilidade política e econômica, sua gestão
foi curta, e em 2003, Néstor Kirchner assumiu a presidência, com pouco mais de
vinte por cento dos votos. Em um curto período de tempo, Kirchner foi capaz de
reorganizar o cenário político, e de certa forma, se aproximar do diálogo com os
movimentos sociais, para que assim pudesse governar. Kirchner foi o primeiro
presidente a tratar das questões relacionadas à ditadura, ele apoiou a revogação da
“Lei de Ponto Final” e da “Lei de Obediência Devida”, também recuperou o prédio
da “Escuela de Mecánica de la Armada (ESMA)5”, e ordenou a retirada dos quadros
com fotografias dos ex-ditadores das instituições militares, tais atitudes
aproximaram os movimentos mais destacados no campo dos direitos humanos,
como as “Madres de Plaza de Mayo”, “Madres de Plaza de Mayo - Línea Fundadora”
e as “Abuelas de Plaza de Mayo”.
Com a saída de Néstor Kirchner, Cristina Fernández Kirchner assume a presidência
da Argentina, e ela deu continuidade aos projetos iniciados pelo seu antecessor.
Por meio do decreto presidencial 4/2010, a presidenta Cristina Fernández de
Kirchner ordenou que fossem desclassificados todos os documentos que
estivessem vinculados às ações das Forças Armadas na última ditadura, a fim de se
buscar, revelar e publicar os chamados “arquivos da repressão” (BALARDINI;
ROCHA, 2015, p. 104). Segundo Balardini e Rocha (2015, p. 104-105), a recuperação
desse material teve início em 1999, por meio de um trabalho coordenado pela
“Cámara Federal de La Plata” sobre o arquivo da “Dirección de Inteligencia de la

5
A ESMA foi um centro clandestino de detenção, tortura e extermínio durante a ditadura militar. E após a
recuperação do prédio se tornou um museu chamado “Espacio Memoria y Derechos Humanos”, que
promove a memória, valores democráticos e os direitos humanos. Para mais informações acessar:
<http://www.espaciomemoria.ar/index.php>. Acesso em: 10 nov. 2015.

160
Policía de la Provincia de Buenos Aires (DIPBA)”, “que fue seguida por experiencias
como la del Archivo Provincial de la Memoria de Córdoba y el archivo del
Departamento de Inteligencia de la Provincia de Mendoza (D-2), entre otras”.
Ainda que com as devidas ressalvas, o processo argentino de julgamento pelos
crimes de lesa humanidade é um exemplo internacional, pois contou com o apoio
do Estado para a liberalização de documentos sigilosos e pelo fim das Leis de
Anistia, que permitiram o julgamento e a punição dos envolvidos nos crimes. Este
é um desafio para outros países do Cone-Sul, como é o caso do Brasil, onde a Lei
da Anistia ainda vigora. Tratar de questões que envolvam diversos atores é uma
tarefa complicada, uma vez que estão presentes interesses muito contraditórios, e
por inúmeras vezes opostos. De certa forma, a burocracia dos processos judiciais
atrelada à defesa de interesses individuais é um dos problemas que são enfrentados
pelos organismos de direitos humanos que buscam verdade e justiça.
No caso brasileiro, ainda durante a ditadura, em 28 de agosto de 1979 foi aprovado
o projeto de lei para a edição da Lei n° 6.683, a Lei de Anistia. A lei anistiou os
militantes políticos e também todos os crimes cometidos pelos agentes da
repressão política, no período entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979.
No entanto, não se beneficiaram da anistia pessoas que foram condenadas “pela
prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal” (artigo 1°,
parágrafo 2°) (BRASIL, 2014 p.24). Houveram mobilizações no sentido de frear o
processo de anistia no Brasil, como foi o caso da greve de fome realizada por presos
políticos durante um mês em 1979, mas que não foi eficaz (BRASIL, 2014, p.24).
Ainda no sentido de não permitir que a questão fosse abafada, já passando pelo
processo de redemocratização, o projeto “Brasil nunca mais” foi coordenado pelo
cardeal D. Paulo Evaristo Arns e pelo reverendo Paulo Wright, que visava
denunciar as graves violações de direitos humanos que foram cometidas durante o
regime militar, e também evitar que os processos judiciais pudessem ser destruídos
(BRASIL, 2014, p. 24), porém, estas tentativas também não evitaram que a Lei de
Anistia fosse aprovada.
Nos anos de 1983 e 1984, por pressão popular a campanha pelas “Diretas Já” foi
ganhando destaque, tratava-se de uma emenda constitucional que assegurava
eleições diretas para a Presidência. Em 1985, o Colégio Eleitoral elegeu Tancredo

161
Neves para dirigir a transição democrática, porém este faleceu, passando o cargo
ao vice-presidente eleito José Sarney (BRASIL, 2014, p. 24).
Apesar de a Lei de Anistia estar vigente, o Brasil passou por um processo de luta
pela verdade e pela memória. Em 1995, foi publicado o “Dossiê de mortos e
desaparecidos políticos a partir de 1964”, uma tentativa por parte dos familiares de
reunir em um único documento informações que estavam presentes no “Brasil:
nunca mais”, em diversos acervos de institutos médicos legais, em delegacias de
ordem política e social, e em documentos de militares, familiares e ex-presos
políticos, tanto em âmbito nacional quanto internacional (BRASIL, 2014, p. 25). No
mesmo ano, também foi instituída a “Comissão Especial sobre Mortos e
Desaparecidos políticos (CEMDP)”, que visava “identificar aqueles que, em razão
de participação ou acusação de participação em atividades políticas, no período de
2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979, faleceram em dependências policiais
ou assemelhadas, por causas não naturais” (BRASIL, 2014, p. 25).
Os familiares de pessoas desaparecidas tiveram um prazo de até 120 dias a contar
da publicação da Lei n° 9.140/1995, que responsabilizava o Estado pelas graves
violações dos direitos humanos que foram praticadas durante a ditadura, para
solicitar indenização a título reparatório. O valor a ser pago para cada família era
de R$ 3 mil multiplicados pelo número de anos correspondente à expectativa de
vida, sendo considerada à idade com que a pessoa foi morta ou a data de seu
desaparecimento, no entanto havia um valor mínimo a ser pago de R$ 100 mil
(BRASIL, 2014, p. 26).
Somente em maio de 2010 a temática voltou a ser abordada pelo Estado, quando o
atual presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, encaminhou o projeto de
lei de criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que foi aprovada pelo
Congresso Nacional sendo a Lei n° 12.528 sancionada pela presidenta Dilma
Rousseff em novembro de 2011. A CNV iniciou suas atividades em maio de 2012, e
foi uma tentativa de somar a todos os esforços anteriores e de proporcionar não
somente aos familiares e amigos dos desaparecidos, mas a prestar contas à
sociedade depois de quase 30 anos que havia chegado ao fim a ditadura no país. O
período de análise da CNV vai de 1946 a 1988. Segundo o relatório da CNV (2014,
p. 22), foi fundamental para as suas atividades a aprovação da Lei n° 12.527/2011, de

162
Acesso à Informação (LAI), pois esta permitiu maior transparência à administração
pública e restringiu a possibilidade de classificação das informações, tornando
estas públicas. “Com efeito, o dispositivo da LAI que veda a restrição de acesso a
informações ou documentos versando sobre violações de direitos humanos,
praticadas por agentes públicos, foi, por vezes, utilizado pela CNV” (BRASIL, 2014,
p. 22).
Segundo D’Araujo (2012), alguns fatores contribuíram para que a Lei da Anistia não
fosse revista no Brasil, a grande autonomia militar, durante e depois da ditadura;
os baixos níveis de respeito aos direitos humanos; e o baixo interesse do Congresso
e do governo pela temática. Outro ponto apontado pela autora é o de que com o
fim da ditadura, uma outra agenda foi privilegiada, como a reforma agrária, direitos
de gênero, questões étnicas, meio ambiente, etc; e esta gama de temas fez com que
pouca atenção fosse dada ao tema da justiça de transição. No entanto, é importante
destacar que países como o Uruguai e o Chile ainda que tivessem leis de anistia em
vigor, se utilizaram de leis ordinárias para punir torturadores (D’ARAUJO, 2012).

Conclusão
Um dos fatores que permitiu com que os desfechos de Argentina e Brasil fossem
distintos se deve à grande mobilização social que ocorreu no primeiro país.
Diversos movimentos sociais surgiram, estes buscavam inicialmente pelos
desaparecidos políticos. Quando a ditadura chegou ao seu fim, eles fizeram pressão
durante anos, exigindo do Estado políticas que fossem além da memória, eles
buscavam a verdade e o julgamento efetivo dos envolvidos nessas atrocidades.
Neste cenário, os argentinos contaram com uma convergência de fatores que
aceleraram o processo de julgamento. Durante a presidência de Néstor Kirchner,
ele reconheceu a dívida do Estado com a população e se posicionou perante o
silenciamento de anos. Kirchner retirou os quadros dos militares da ESMA, e pediu
perdão em nome do Estado, por ter se calado durante tantos anos. Cristina
Kirchner deu continuidade a esse trabalho, criou comissões e leis que favoreciam
essa temática, bem como se aproximou de movimentos como o das Madres de
Plaza de Mayo e Abuelas de Plaza de Mayo, reconhecendo sua luta histórica e papel
social.

163
Em contraposição, no cenário brasileiro, uma agenda distinta foi priorizada no
período de transição democrática, o que fez com que as questões de direitos
humanos ficassem em segundo plano. E o fato de não ter ocorrido uma mobilização
social no decorrer dos anos, ou a presença de movimentos sociais que lutassem
pela verdade e punição dos envolvidos, também fez com que a temática fosse
silenciada durante anos. É importante destacar que tentativas isoladas
aconteceram, mas não ganharam força ao ponto de punir os envolvidos nas
atrocidades cometidas durante o período ditatorial. Somente com a criação da
CNV a população teve acesso à verdade, porém, este esforço não tinha como
finalidade julgar, e tampouco a sociedade se mobilizou para que outras ações
fossem tomadas após a emissão dos relatórios.
Assim sendo, pode-se afirmar que a mobilização dos movimentos sociais foi
essencial para que esta temática não se perdesse ao longo dos anos na Argentina,
enquanto que no Brasil, não se verificou a existência de movimentos tão
articulados e durante tantos anos. Em ambos os casos, com o regresso da
democracia, os primeiros governos se omitiram com relação aos crimes de lesa-
humanidade, mas no caso argentino, os movimentos sociais se converteram em
organizações que até hoje lutam pela busca da verdade e da punição aos
envolvidos, consequentemente, pressionando as figuras políticas a se posicionar
perante estes acontecimentos.

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8. IMPEACHMENT SEM CRIME É GOLPE: CONSIDERAÇÕES SOBRE O
PROCESSO DE DEPOSIÇÃO DE DILMA ROUSSEFF

Silvio César Oliveira Benevides


Thais Joi Martins
Maurício Ferreira da Silva
Ana Quele Passos

Discorrer sobre os acontecimentos políticos de 2016 que levaram à queda da


presidenta Dilma Rousseff se configura numa empreitada difícil por duas razões
básicas. Primeira, não há, ainda, um distanciamento temporal que nos permita
tecer análises mais precisas acerca desses fatos. Segunda, seus desdobramentos
para o Brasil e, em especial, para as instituições públicas brasileiras, não são de
todo conhecidos. Ademais, deve-se considerar, também, que os referidos eventos
continuam em curso. Sendo assim, as observações aqui perpetradas possuem um
caráter parcial.
O segundo mandato de Rousseff, iniciado em janeiro de 2015, foi marcado por
significativas atribulações no campo político, que dificultaram, sobremaneira, o
exercício do seu mandato. As forças de oposição que disputaram com ela as
eleições de 2014, inconformadas com a derrota (ou sucessivas derrotas desde o
pleito de 2002), encetaram, por um lado, uma série de questionamentos nas
instâncias judiciais, a exemplo da ação junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE)
para cassar a chapa Dilma-Temer; e, por outro, passaram a preencher a agenda do
legislativo com as chamadas “pautas bombas”, projetos de lei cuja matéria pode
impactar diretamente as contas públicas, pois dificulta a redução de gastos prevista
para cumprir o determinado pela meta fiscal. Estas ações articuladas entre os
opositores do governo acabariam por fragilizar o executivo federal a ponto de
inviabilizar sua governabilidade.
O trabalho que ora se apresenta tem dois objetivos norteadores. Primeiro, analisar
o processo que depôs Dilma Rousseff sob três perspectivas: a inexistência de crime
de responsabilidade; o processo legislativo, sobretudo das sessões deliberativas; e
as articulações dos grupos oposicionistas capitaneados pelas forças políticas
representadas pelo Michel Temer, tanto na condição de vice-presidente como de

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presidente empossado. Segundo, e como consequência do primeiro, abordar o
fortalecimento da chamada “nova direita”, que se coaduna a movimento
semelhante na América Latina.
O processo de impeachment de Dilma Rousseff teve início com a admissibilidade
na Câmara dos Deputados da Denúncia por Crime de Responsabilidade (DCR
nº1/2015) apresentada por um grupo de juristas. Tal denúncia acusa a presidenta de
“prática de crime de responsabilidade”, pelo fato de, segundo os denunciantes, por
meio de decretos, ter autorizado em 2015 (assim como autorizou no ano de 2014)
“a abertura de crédito com inobservância à LOA [Lei Orçamentária Anual] e à
Constituição Federal, justamente por permitir a abertura de recursos
suplementares quando já se sabia da inexequibilidade das metas de superávit
estabelecidas por lei” (Brasil. Câmara dos Deputados, 2015).
O documento acusatório, com 3740 páginas argumentativas e anexos, sustenta que
Dilma Rousseff cometeu crime de responsabilidade precisamente por conta da
manobra fiscal envolvendo o Plano Safra e o atraso no repasse do Tesouro Nacional
ao Banco do Brasil, administrador do programa, manobra esta conhecida no
contexto político brasileiro como “pedalada fiscal”. A denúncia também imputa
como crime o fato de a presidenta ter autorizado decretos orçamentários sem
autorização expressa do congresso nacional, como manda a lei. Estas são, em suma,
as duas principais matérias relativas à acusação contra Rousseff.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 em seu Art. 85 tipifica o
crime de responsabilidade como ações perpetradas pelo/pela Presidente da
República que não obedeçam ao que nela está escrito, isto é, que atentem contra
seus preceitos, e, especialmente, contra as matérias relacionadas pelos incisos de I
a VII, a saber:

[...] a existência da União; o livre exercício do Poder


Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos
Poderes constitucionais das unidades da Federação; o
exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; a
segurança interna do País; a probidade na administração; a lei

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orçamentária; o cumprimento das leis e das decisões judiciais.
(Brasil. Constituição, 1988, 2012:60).

Como se pode ver, a Constituição não é detalhada, mas, sim, exemplificativa. Por
essa razão, no parágrafo único do artigo supracitado, o texto constitucional
ressalta: “Esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas
de processo e julgamento” (Idem). A descrição do que vem a ser crime de
responsabilidade está estabelecida na Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950, que define
os crimes de responsabilidade e regula o respectivo processo de julgamento. A
referida lei, sancionada pelo então presidente da república Eurico Gaspar Dutra,
confirma o que diz o Art. 85 da Constituição Federal referente à definição de crime
de responsabilidade, porém, detalha cada um dos incisos fixados na Carta Magna.
No que tange, por exemplo, aos incisos V e VI, a probidade na administração e a
lei orçamentária, respectivamente, a Lei nº 1.079 em seu Art. 9º define:

São crimes de responsabilidade contra a probidade na administração: 1 - omitir ou


retardar dolosamente a publicação das leis e resoluções do Poder Legislativo ou
dos atos do Poder Executivo; 2 - não prestar ao Congresso Nacional dentro de
sessenta dias após a abertura da sessão legislativa, as contas relativas ao exercício
anterior; 3 - não tornar efetiva a responsabilidade dos seus subordinados, quando
manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrários à Constituição; 4
- expedir ordens ou fazer requisição de forma contrária às disposições expressas da
Constituição; 5 - infringir no provimento dos cargos públicos, as normas legais; 6 -
Usar de violência ou ameaça contra funcionário público para coagi-lo a proceder
ilegalmente, bem como utilizar-se de suborno ou de qualquer outra forma de
corrupção para o mesmo fim; 7 - proceder de modo incompatível com a dignidade,
a honra e o decoro do cargo (BRASIL. Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950).

Já no seu Art. 10, a Lei nº 1.079 define como crimes de responsabilidade contra a lei
orçamentária as seguintes matérias:

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1- Não apresentar ao Congresso Nacional a proposta do orçamento da República
dentro dos primeiros dois meses de cada sessão legislativa; 2 - Exceder ou
transportar, sem autorização legal, as verbas do orçamento; 3 - Realizar o estorno
de verbas; 4 - Infringir, patentemente, e de qualquer modo, dispositivo da lei
orçamentária (BRASIL. Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950).

No segundo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso, a Lei nº 1.079


passou a vigorar com as seguintes alterações no seu Art. 10, instituídas pela Lei nº
10.028, de 19 de outubro de 2000:

5) deixar de ordenar a redução do montante da dívida consolidada, nos prazos


estabelecidos em lei, quando o montante ultrapassar o valor resultante da
aplicação do limite máximo fixado pelo Senado Federal; 6) ordenar ou autorizar a
abertura de crédito em desacordo com os limites estabelecidos pelo Senado
Federal, sem fundamento na lei orçamentária ou na de crédito adicional ou com
inobservância de prescrição legal; 7) deixar de promover ou de ordenar na forma
da lei, o cancelamento, a amortização ou a constituição de reserva para anular os
efeitos de operação de crédito realizada com inobservância de limite, condição ou
montante estabelecido em lei; 8) deixar de promover ou de ordenar a liquidação
integral de operação de crédito por antecipação de receita orçamentária, inclusive
os respectivos juros e demais encargos, até o encerramento do exercício financeiro;
9) ordenar ou autorizar, em desacordo com a lei, a realização de operação de
crédito com qualquer um dos demais entes da Federação, inclusive suas entidades
da administração indireta, ainda que na forma de novação, refinanciamento ou
postergação de dívida contraída anteriormente; 10) captar recursos a título de
antecipação de receita de tributo ou contribuição cujo fato gerador ainda não tenha
ocorrido; 11) ordenar ou autorizar a destinação de recursos provenientes da emissão
de títulos para finalidade diversa da prevista na lei que a autorizou; 12) realizar ou
receber transferência voluntária em desacordo com limite ou condição
estabelecida em lei (BRASIL. Lei nº 10.028, de 19 de outubro de 2000).

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No senado, a comissão especial do impeachment que apreciou a admissibilidade da
Denúncia nº 1, de 2016 (DEN nº1/2016), por crime de responsabilidade da presidenta
Dilma Rousseff, referente à abertura de créditos suplementares por decretos
presidenciais, sem autorização do Congresso Nacional, apoiou-se no Art. 85, inciso
VI e Art. 167, inciso V da Constituição Federal; nos Art. 10 e 11 da Lei nº 1.079, item
4 e item 2, respectivamente; e, da mesma forma, no Art. 11, item 3 da Lei nº 1.079
concernente a contratação ilegal de operações de crédito.
O inciso VI, do Art. 85 da Constituição Federal, como já mencionado, versa sobre
a lei orçamentária. Já o inciso V do Art. 167 da mesma Carta Magna trata da
abertura de crédito suplementar ou especial sem prévia autorização do poder
legislativo e sem indicação dos recursos correspondentes. Do mesmo modo, o texto
do Art. 10, item 4, e do Art. 11, itens 2 e 3, da Lei nº 1.079, tratam, respectivamente,
sobre o ato de “infringir, patentemente, e de qualquer modo, dispositivo da lei
orçamentária”, assim como sobre a abertura de “crédito sem fundamento em lei ou
sem as formalidades legais”, e, também, da ação de “contrair empréstimo, emitir
moeda corrente ou apólices, ou efetuar operação de crédito sem autorização legal”.
No que tange aos decretos de crédito suplementar, a Junta Pericial designada pelo
senado no âmbito da Comissão Especial do Impeachment 2016 concluiu que tais
créditos provocaram um impacto negativo nas metas orçamentárias da União.
Ademais, por terem sido abertos sem autorização expressa do congresso nacional,
conforme determina a legislação em vigor, a presidenta, de fato, feriu os já
mencionados dispositivos jurídicos acima citados. Diz o laudo pericial: “Como
esses decretos não se subsumem às condicionantes expressas no caput do art. 4 da
LOA/2015, sua abertura demandaria autorização legislativa prévia, nos termos do
art. 167, inciso V, da CF/88” (Brasil. Senado Federal, 2016). Para os defensores do
impeachment, esta conclusão dos peritos se configurou como um argumento
inconteste que comprovaria o crime de responsabilidade, o que, segundo eles,
neutralizava, de uma vez por todas, a narrativa de golpe de estado construída e
sustentada pelos apoiadores da petista. Afeitos em realizar malabarismos jurídicos
para enquadrar esse processo de impedimento numa lógica regimental e, portanto,
legal, tais grupos, finalmente, encontravam respaldo num parecer técnico e

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imparcial, o que não ocorreu durante todo o período em que a denúncia foi
apreciada pela câmara dos deputados.
Entretanto, a mesma junta que atestou o descumprimento da norma
constitucional e legal por parte do executivo, fez duas importantes ressalvas. A
primeira diz respeito ao fato de Dilma Rousseff não ter sido alertada pela Secretaria
de Orçamento Federal (SOF) do Ministério do Planejamento sobre a
incompatibilidade dos decretos emitidos com a meta fiscal estabelecida: “Segundo
as informações apresentadas pela SOF (DOC 121 e seus anexos), nos processos de
formalização dos Decretos não houve alerta de incompatibilidade com a meta
fiscal” (Brasil. Senado Federal, 2016). A segunda ressalva mostra que os tais
decretos, mesmo sendo incompatíveis com a meta fiscal vigente à época,
consideraram a meta fixada no Projeto de Lei do Congresso Nacional 5/2015 (PLN
5/2015), convertido em lei em dezembro de 2015, conforme nos diz o texto pericial:

No momento da edição dos Decretos, a meta vigente era aquela originalmente


constante da LDO/2015. Contudo, a meta considerada à época, inclusive para fins
de definição e operacionalização das limitações de empenho e movimentação
financeira, foi a constante do PLN 5/2015, que só foi convertido na Lei nº 13.199/2015
em 3 de dezembro de 2015 (Brasil. Senado Federal, 2016).

Logo, o laudo pericial dos técnicos designados pela Comissão Especial do


Impeachment 2016, aponta para o fato de que os parlamentares referendaram os
atos do executivo, o que, na prática, se configura numa autorização expressa do
congresso nacional aos atos presidenciais, conforme preconiza a Constituição
Federal, assim como a Lei nº 1.079.
No que tange às chamadas pedaladas fiscais, o já mencionado laudo pericial
informa que o atraso nos repasses das subvenções do Plano Safra ao Banco do Brasil
se constituíram, na prática, numa operação de crédito, tendo a União como
devedora. Conforme elucidaram os peritos, esta prática vai de encontro à Lei de
Responsabilidade Fiscal (LRF), que proíbe, em seu Art. 36 “operação de crédito
entre uma instituição financeira estatal e o ente da Federação que a controle, na
qualidade de beneficiário do empréstimo” (Brasil. Presidência da República, 2000).

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Esta conclusão foi baseada no Art. 29, inciso III e § 1º, da LRF, que define operação
de crédito como:

Compromisso financeiro assumido em razão de mútuo, abertura de crédito,


emissão e aceite de título, aquisição financiada de bens, recebimento antecipado
de valores provenientes da venda a termo de bens e serviços, arrendamento
mercantil e outras operações assemelhadas, inclusive com o uso de derivativos
financeiros”. Equiparado “a assunção, o reconhecimento ou a confissão de dívidas
pelo ente da Federação, sem prejuízo do cumprimento das exigências dos arts. 15 e
16 (Brasil. Presidência da República, 2000).

Entretanto, a despeito da constatação acima, os peritos também são taxativos em


afirmar que não foi possível identificar, por parte da presidenta, nenhum ato
comissivo, isto é, uma ação que pudesse imputá-la como agente causador imediato
do dano. Para os peritos, na “análise dos dados, dos documentos e das informações
relativos ao Plano Safra, não foi identificado ato comissivo da Exma. Sra. Presidente
da República que tenha contribuído direta ou imediatamente para que ocorressem
os atrasos nos pagamentos” (Brasil. Senado Federal, 2016).
Como é possível notar, o crime imputado a Dilma Rousseff no exercício da função
presidencial e que serviu de base para o seu impeachment não pode ser sustentado
de maneira irrefutável e indubitável. A defesa da presidenta nas suas alegações
finais enfatiza que, após uma minuciosa análise de toda a documentação arrolada
ao processo (testemunhos de funcionários públicos, relatórios e pareceres técnicos
assinados e atestados por servidores públicos lotados em diversos órgãos da
administração pública federal), não é possível atribuir “à Sra. Presidenta da
República a intencionalidade, a voluntariedade de praticar qualquer ato ilícito”
(CARDOZO, 2016). Para a defesa da presidenta, quatro são os elementos que
comprovam de forma irrefragável a absoluta inexistência da intencionalidade
acima assinalada e, portanto, a inexistência de dolo por parte dela. São eles:

1. a Presidenta não determinou previamente o atendimento a quaisquer demandas


de órgãos da Administração, tampouco impôs a adoção de meios inadequados aos

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órgãos técnicos para atingir a sua consecução, ou seja, agiu por provocação e não
determinou meios ilícitos para consecução das finalidades por ela prescritas; 2. a
Presidenta agiu pautada pelo expresso posicionamento dos órgãos técnicos,
inclusive os jurídicos, que afirmaram a regularidade jurídica dos atos; 3. A
Presidenta seguiu a rotina ordinária de despacho dos atos não tendo sido
formalizado em nenhum dos expedientes por ela analisados a existência de dúvida
razoável quanto ao eventual desrespeito à Lei orçamentária; 4. O posicionamento
divergente ao tradicionalmente adotado pela Administração Pública e referendado
pelo Tribunal de Contas da União, desde 2001, apenas se tornou definitivo, no
âmbito deste 251 órgão, após a Presidenta praticar o ato, ou seja, ainda que fosse
de seu conhecimento referida divergência ela ainda estava em debate entre as áreas
técnicas do TCU e do Poder Executivo (Idem, p.263).

Sendo assim, a defesa de Dilma Rousseff assevera em suas alegações finais não
haver como sustentar a ideia de ação dolosa praticada por Chefes dos Executivos
quando estes levam a efeito atos jurídicos, apoiados em solicitações, pareceres, e
manifestações jurídicas, amparadas em atos administrativos expedidos por
servidores de órgãos técnicos, uma vez que tais atos administrativos se encontram
inteiramente sob o abrigo constitucional da presunção de legitimidade que envolve
todos os atos administrativos em geral. Desta maneira, o processo de impeachment
julgado pelo senado havia sido contaminado pelo que a defesa denominou de
desvio de poder, pois não visava atender ao interesse público, mas, sim, “interesses
torpes” de lideranças políticas, agentes públicos e privados, como, também, de
pessoas físicas em prol de um “pacto imoral pela consagração da impunidade
absoluta”, assim como em favor de um projeto político sucessivamente rejeitado
pelas urnas desde 2002 (CARDOZO, 2016).

[...] ao contrário do que se apregoa, o objetivo deste processo de impeachment não


foi, e nem nunca será, aplicar à Presidenta Dilma Rousseff sansões hipoteticamente
devidas em decorrência da prática de eventuais crimes de responsabilidade. Os
objetivos pretendidos são outros. Pretende-se afastar da Presidência da República
uma pessoa digna e honesta, porque possibilitou que as investigações de corrupção

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no país (operação “Lava Jato” e outras) fossem realizadas com absoluta autonomia
pelos órgãos e instituições responsáveis pela sua realização. Pretende-se refazer,
sem que a população seja ouvida, o segundo turno da eleição de 2014, para que um
novo governo siga um programa radicalmente diferenciado, em todos os aspectos,
daquele que foi escolhido nas urnas (Idem, 2016: 420).

A natureza do instituto do impeachment é controversa. Alguns juristas sustentam


que se trata de um instituto de natureza jurídico-criminal. Outros, porém, reputam
ao instituto do impeachment uma feição essencialmente política, cujas origens se
encontram em causas políticas, objetivando resultados políticos, embora se utilize
de critérios jurídicos. Há, também, aqueles que defendem sua natureza mista, de
caráter criminal e político simultaneamente. A despeito das divergências no campo
jurídico, defender qualquer tipo de natureza para o impeachment, segundo
Queiroz Filho (2016), não parece razoável, pois tal instituto se configura, na
verdade, como julgamento cujas decisões, ainda que se valham de critérios
jurídicos, são tomadas com base puramente política, de acordo com a conveniência
ou não de manter um governante no cargo. Para ele, basta que os atos do
denunciado sejam enquadrados na Lei nº 1.079/50, que define os crimes de
responsabilidade, e estes tenham procedido “de modo incompatível com o decoro,
a honra e a dignidade do cargo”, para permitir “ao julgador uma discricionariedade
tão ampla que só pode ser decidida a punição com base em critérios políticos”
(p.06).
Diante do exposto, cabe aqui tecer duas considerações. Primeiro, trata-se de uma
ação política, como qualquer processo desta natureza. Quem julga e decide nesses
casos são os atores políticos, que constituem a Câmara dos Deputados e o Senado
Federal. Sendo assim, tais processos não estão inteiramente isentos dos mais
diversos interesses políticos, dos mais nobres aos mais torpes. Segundo, se
considerarmos os fatos, escândalos e denúncias que vieram à baila logo após a
consumação do impeachment no senado e mesmo durante a apreciação deste pelas
senadoras e senadores, poderemos concluir que os interesses que moveram o
processo desde a sua admissibilidade na câmara dos deputados não eram, de modo
algum, nobres, o que nos remete imediatamente à célebre frase proferida por

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Hamlet, o clássico personagem da tragédia shakespeariana: “há algo de podre no
reino da Dinamarca”.
Inúmeras e robustas provas de corrupção envolvendo diretamente alguns dos
protagonistas do processo vieram à tona, a exemplo de contas secretas em bancos
suíços de titularidade do deputado Eduardo Cunha, e de áudios contendo
conversas entre os principais nomes da cúpula do Partido do Movimento
Democrático Brasileiro (PMDB) vazados à imprensa. Exemplo acabado disto
ocorreu com o senador Romero Jucá, então ministro do planejamento do governo
provisório de Temer, e o ex-presidente da Transpetro, Sérgio Machado, no qual o
primeiro sugere ao segundo que uma mudança do governo federal resultaria em
um pacto voltado para “estancar a sangria” supostamente provocada pela operação
lava jato. Esses e outros fatos comprovariam, na opinião de quem defendia a
narrativa do golpe, o caráter estritamente político e golpista de todo o processo de
impeachment desde o seu início na câmara dos deputados.
Em pouco mais de um mês de governo, Michel Temer, ainda como interino, perdeu
três de seus ministros: Romero Jucá, do Planejamento, afastado em 23/05/2016, em
função dos áudios vazados em que propunha “estancar a sangria” provocada pela
operação lava jato; Fabiano Silveira da Transparência, afastado em 30/05/2016,
também devido a áudios vazados nos quais ele tece críticas à lava jato e orienta
investigados sobre como se comportar em relação à Procuradoria Geral da
República (PGR); e Henrique Eduardo Alves, do Turismo, afastado em 16/06/2016,
por ter sido acusado em delação premiada de Sérgio Machado, ex-presidente da
Transpetro, de ter recebido a quantia de R$ 1,55 milhão a título de propina.
Mesmo após a posse definitiva na presidência, os ministros de Temer continuaram
a cair. Marcelo Calero, da Cultura, pediu demissão em 18/11/2016 alegando ter sido
pressionado pelo então ministro da Secretaria de Governo, Geddel Vieira Lima,
para que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), órgão
subordinado ao Ministério da Cultura, aprovasse o projeto do empreendimento
imobiliário de luxo, La Vue Ladeira da Barra, localizado nas imediações de uma
área tombada na cidade do Salvador. A denúncia do ministro da cultura acabou
por derrubar, em 25/11/2016, o ministro da Secretaria de Governo, Geddel Vieira

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Lima, acusado de tráfico de influência, haja vista possuir interesse particular no
empreendimento citado.
Recentemente, com as acusações do empresário Joesley Batista, dono da JBS S.A.,
uma das maiores empresas do ramo alimentício do mundo e do Banco Original, o
próprio Michel Temer passou a ocupar o centro das denúncias e escândalos de
corrupção. Em acordo de delação com a PGR e o Ministério Público Federal, o
empresário afirmou que Temer deu apoio para que ele comprasse o silêncio do ex-
deputado Eduardo Cunha, preso em Curitiba pela força tarefa da operação lava
jato, garantindo, assim, que nenhum dos dois, Temer e Joesley Batista, seriam
delatados por Cunha. Ademais, Batista acusa Temer, em entrevista à revista
semanal Época (Edição nº 991), de ser o líder da “maior e mais perigosa organização
criminosa do Brasil”. Além de Temer, integram a chamada “organização
criminosa”, ainda segundo o empresário, os já mencionados Eduardo Cunha,
Geddel Vieira Lima, Henrique Eduardo Alves, e, também, Eliseu Padilha e Moreira
Franco, todos membros do PMDB.
Tais episódios, relacionados a outros envolvendo nomes fortes do Partido da Social
Democracia Brasileira (PSDB), como o senador Aécio Neves, candidato derrotado
no pleito presidencial 2014, que em conversa gravada com o empresário Joesley
Batista revela, em meio a outras declarações escabrosas, ter entrado com ação junto
ao TSE para cassar a chapa Dilma-Temer “só para encher o saco”, leva-nos a
corroborar a narrativa de que o impeachment de Dilma Rousseff foi, na verdade,
um golpe parlamentar voltado, também, para “estancar a sangria” provocada pelas
investigações sobre corrupção.
O próprio Michel Temer, em entrevista à TV Bandeirantes realizada em 15/04/2017,
nos dá indícios de que a narrativa do golpe é deveras procedente quando revela aos
jornalistas uma história “curiosa” sobre o impeachment. Diz ele: “Que coisa curiosa!
Se o PT tivesse votado nele [Eduardo Cunha] naquele comitê de ética, seria muito
provável que a senhora presidente continuasse”. Em outras palavras, Temer
confirmou em rede nacional o que Rousseff e seus apoiadores sempre sustentaram,
isto é, de que seu governo foi vítima de uma chantagem perpetrada pelo então
deputado Eduardo Cunha para se livrar do processo de cassação que corria no
Conselho de Ética da Câmara, por haver mentido a respeito de suas contas

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bancárias na Suíça. Como nem o governo e nem o PT cederam à chantagem, o
então presidente da câmara dos deputados, que teve o mandato cassado em
Setembro de 2016, levou adiante o projeto golpista, acolhendo um dos pedidos de
impeachment contra Rousseff, preparado, como já mencionado, por um grupo de
juristas com apoio de partidos de oposição, movimentos sociais que apregoavam
em protestos de rua o “fora Dilma”, “fora PT”, a exemplo do Vem Pra Rua e do
Movimento Brasil Livre, além do apoio irrestrito do empresariado e da grande
mídia.
Cientistas sociais e especialistas em comunicação afirmam que o golpe de estado
de natureza parlamentar sofrido pelo Brasil em 2016 não teria ocorrido sem a
conjunção de forças entre atores sociais internos e externos à sociedade brasileira,
estimulados por uma conjuntura política notadamente marcada pelo que Avritzer
(2016) denomina de “impasses da democracia no Brasil”. Segundo tal
entendimento, este mecanismo é caracterizado por cinco elementos centrais: os
limites do chamado presidencialismo de coalização, que obriga o chefe do
executivo a negociar com os pequenos partidos a fim de viabilizar a
governabilidade; os limites da participação popular na política, que, apesar dos
avanços, não foi capaz, ainda, de modificar sua relação com os representantes
políticos; os paradoxos do combate à corrupção, cujas ações acabam
deslegitimando o sistema político e passa a ideia de que o mercado é uma
alternativa ao Estado; a perda de status da classe média brasileira, especialmente
após a implementação das políticas de inclusão dos governos do PT; o novo papel
do judiciário na política brasileira. Em função destes elementos, diz Avritzer (2016),
deve-se considerar que não haverá estabilização possível nem aprofundamento da
democracia sem o enfrentamento de tais questões. Pior, “indo ainda mais longe
uma nova direita [mais conservadora, mais reacionária, mais violenta] ou um
colapso do projeto de esquerda que governa o Brasil desde 2003 são possíveis, caso
esses problemas não sejam resolvidos” (p.9), alerta.
Para o cientista político e ex-secretário de Imprensa da Secretaria de Comunicação
Social da Presidência da República do governo Dilma, Rodrigo de Almeida (2016),
as vicissitudes enfrentadas pela presidenta em seu segundo mandato se
assemelhavam às bíblicas pragas do Egito, que, no contexto social, político e

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econômico brasileiro, segundo ele, poderiam ser traduzidas como inflação e
desemprego em dois dígitos, recessão econômica, o desastre ambiental no
município de Mariana (MG) resultante do rompimento da barragem do Fundão
(pertencente à Samarco Mineração S.A), a proliferação do mosquito Aedes aegypti
e, por conseguinte, do zika vírus e da febre chikungunya, a operação lava jato, a
delação premiada do senador Delcídio do Amaral, as controvérsias ligadas à
compra da refinaria de Pasadena, a ação no TSE que pedia a cassação da chapa
Dilma-Temer e o processo de impeachment no congresso nacional, capitaneado
pelo próprio vice-presidente Michel Temer em conjunto com o então presidente
da câmara dos deputados, Eduardo Cunha.
As adversidades advindas da conjunção desses fatores, associadas ao que alguns
cientistas sociais denominam de crise do presidencialismo de coalização, típica da
cena política brasileira após o processo de redemocratização, mergulharam o país
num profundo colapso institucional, político, econômico e social poucas vezes
visto na história republicana brasileira e aprisionaram o governo, dificultando em
demasia o cumprimento da sua agenda política.
Muito se fala sobre o perfil dos atores políticos que se mobilizaram em prol da
deposição de Rousseff. Para Jessé Souza (2016), este perfil se resume em três
categorias básicas, ou tipos ideais, caso queiramos utilizar um vocabulário
weberiano. Primeiro, a chamada elite do dinheiro, isto é, a elite financeira
proprietária dos grandes bancos e dos fundos de investimento. Por conta do seu
poder econômico proveniente do absurdo acúmulo de capital, esta elite detém
meios para comprar outras elites econômicas, assim como, parcelas significativas
das elites políticas e intelectuais, que lhe dão respaldo científico e ideológico. Seu
interesse imediato e, talvez, único é a máxima lucratividade no menor espaço de
tempo possível. Para isso, não hesita em trocar um projeto de fortalecimento da
nação por uma subordinação subserviente ao capital financeiro internacional. Não
por acaso, a perseguição implacável ao PT e ao projeto político que os governos
Lula e Dilma representavam, se acirrou após o anúncio da descoberta de reservas
petrolíferas na escala de dezenas de bilhões de barris de petróleo na denominada
camada do pré-sal, que se estende do litoral do Espírito Santo ao de Santa Catarina.
Esta, talvez, tenha sido a principal razão responsável por atiçar o interesse das

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elites econômicas e financeiras internacionais na política brasileira, assim como,
do governo estadunidense, que passou a espionar, via National Security Agency
(NSA), não só a presidenta Dilma Rousseff como seus ministros, assessores e a
própria Petrobrás, conforme denunciaram a organização Wikileaks e o jornalista
Gleen Greenwald, do The Intercept.
Mas, para atingir e perpetuar seus interesses imediatos, a “elite do dinheiro” não
age, nem agiu sozinha. Nem poderia, pois precisa de respaldo social para dar ar de
legalidade e legitimidade às suas ações. No que tange especificamente ao golpe
parlamentar de 2016, ela precisou se associar a outros dois importantes atores
golpistas, a saber, os operadores jurídicos e a grande mídia, que sob o mantra de
uma suposta imparcialidade propagou um discurso em defesa da moralidade na
política com forte viés conservador, subsidiando grupos oposicionistas, dentro e
fora das instituições políticas.
Alvo de muitas críticas dos apoiadores de Rousseff, a parte da mídia nacional que
detém o controle dos maiores veículos de comunicação não apenas apoiou a
deposição como se empenhou na cobertura massiva deste processo. Apesar da
repercussão negativa, principalmente no exterior, esses conglomerados familiares
atuaram em todas as etapas do processo, como demonstram, por exemplo, os
editoriais de três dos importantes jornais de circulação diária do país: O Estado de
São Paulo (Estadão), Folha de São Paulo e O Globo.
Em 12 de Maio de 2016, dia da votação de aceitação de instauração do
processo no Senado Federal – o que culminaria no afastamento da presidenta por
180 dias para a fase de análise e julgamento – três “duros” editoriais defenderam
enfaticamente sua saída. O Estadão afirmou que “o impeachment de Dilma tornou-
se imperativo. Tratava-se de colocar um ponto final em uma trajetória que
arruinava o Brasil e os brasileiros e ameaçava a democracia”. (Editorial O Estado
de São Paulo, 2016).
Este editorial caracterizou-se, sobretudo, pelo fato de ampliar os ataques para além
da questão em julgamento, tendo como mira o ex-presidente Lula, o PT e o campo
da esquerda. Os termos pejorativos alinham-se a uma visão ideológica propagada
nas manifestações de rua de 2016, reforçando preconceitos e alimentando uma
visão disforme da realidade: “chefão do PT; abutres; aloprados de seu partido;

181
lulopetismo; conto de terror; criatura; linhagem stalinista”. (Editorial O Estado de
São Paulo, 2016). Ao mesmo tempo concebe, em tom depreciativo, a insígnia
fortemente marcada por visão misógina, que “Dilma só se tornou importante por
ter arruinado o país. Começa a voltar, agora, para sua irrelevância”. (Editorial O
Estado de São Paulo, 2016)
A Folha de São Paulo e O Globo mantiveram a mesma linha crítica, com
algumas diferenças. Optando por viés editorial mais técnico, a Folha afirmou que
o modelo de governo “que Dilma representou com singular inabilidade provou-se
contraditório: regressivo e cínico, enquanto se fazia de progressista e imaculado”.
Afirma, ainda, que o modelo se caracterizou como “imobilista e acomodatício,
enquanto se fazia de reformador e fiel a princípios”. (Editorial Folha de São Paulo,
2016)
Através de uma perspectiva mais direta e, desta forma, mais truculenta em
termos das acusações, o jornal O Globo, ao comparar os processos de Rousseff e de
Fernando Collor de Mello, presidente que sofreu impeachment no ano de 1992 por
acusação de vinculação a esquema de corrupção, afirma que o teste mais duro para
as instituições condiz com a análise da deposição de Rousseff, visto que esta se
relaciona, de alguma maneira, a uma estrutura criminal organizada, “criada pelo
lulopetismo para desviar dinheiro público de estatais, a fim de financiar o projeto
de poder do PT e seus aliados”. (Editorial Jornal O Globo, 2016). Propriedade da
“Família Marinho”, o jornal compõe amplo conglomerado midiático – o maior do
país – administrado por longo período por Roberto Marinho. Em suma, os três
veículos carregam a alcunha de apoio ao golpe de 1964 e ao regime militar que
vigorou no país por mais de 20 anos.
Por fim, é importante ressaltar que em nenhum momento os editoriais
citam o termo “golpe”. Abrigam suas teses sob o manto da constitucionalidade do
processo de impeachment, dispositivo que, como afirmamos, está previsto na
Constituição Brasileira.
Para Jessé Souza (2016), “não há mais quem possa dizer onde está o limite entre o
que é jurídico e o que é político no Brasil de hoje” (p.131). Durante todo o processo
de desestabilização do governo Dilma e de sua posterior deposição, parcela
significativa e bastante influente do judiciário brasileiro nas mais variadas

182
instâncias se comportou como verdadeiro partido político, interferindo
diretamente em atos e ações do legislativo e, também, do executivo, a exemplo da
decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, contra a
nomeação do ex-presidente Lula para chefiar a Casa Civil no governo Dilma,
atendendo, assim, a mandados de segurança apresentados pelo PSDB e pelo
Partido Popular Socialista (PPS), ambos ferrenhos defensores da destituição da
presidenta Rousseff. Do mesmo modo, os vazamentos seletivos de juízes de
primeira instância são indícios da partidarização do judiciário brasileiro. O caso
que melhor ilustra esse fato foi a divulgação de conversa telefônica entre o ex-
presidente Lula e a então presidenta da república Dilma autorizada pelo juiz Sérgio
Moro, responsável pela operação lava jato na vara federal criminal de Curitiba,
passando por cima da prerrogativa legal exclusiva do STF em casos de foro
privilegiado. Mesmo infringindo a lei, Sérgio Moro não foi punido. De acordo com
Jessé Souza (2016), “o golpe não teria acontecido sem a politização do judiciário;
ninguém guardou ou defendeu efetivamente a Constituição” (p.131).
A articulação entre os setores partidarizados do judiciário e a mídia corporativista,
foi fundamental para a divulgação de conteúdos de depoimentos, gravações e
ligações telefônicas estrategicamente vazadas por servidores do judiciário para
sedimentar, junto à opinião pública, a imagem de que o governo da presidente
Dilma Rousseff e o PT eram de natureza corrupta, pois estavam profundamente
envolvidos em esquemas escandalosos de corrupção jamais vistos; assim como
construir a ideia de que a incompetência do governo havia imergido o país em uma
grave crise econômica e a saída para esta seria a deposição da presidenta. Por conta
disso, muitos foram às ruas vestidos de verde e amarelo gritar “fora Dilma”, “fora
PT”, bateram panelas em suas varandas gourmet, deixando-se manipular feito
“patos” por uma narrativa midiática corporativista, clientelista e avessa aos valores
democráticos.
Os “patos” em questão são, na verdade, os integrantes de amplos setores da classe
média e classe média alta brasileira. Estes setores foram os mais atingidos pelos
desacertos das políticas econômicas dos governos do PT. Espremidos entre os mais
pobres e os mais ricos, tinham renda suficiente para não serem contemplados pelas
políticas públicas de inclusão social implementadas pelo governo; porém, renda

183
insuficiente para não serem atingidos pelos revesses na economia. Adicione-se a
esse fator o ingrediente do preconceito de classe.
A despeito das suas falhas e limites, as diversas políticas de inclusão
implementadas pelos governos do PT, como o Bolsa Família, por exemplo, que
desde o seu lançamento em 2003 retirou cinco milhões de brasileiros da extrema
pobreza e reduziu a taxa de pobreza em oito pontos percentuais, segundo relatório
de 2015 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD),
abalaram as estruturas que perpetuavam os privilégios da classe média. Graças a
esses dados concretos, os mais pobres ganharam um protagonismo político jamais
visto na história republicana brasileira, o que garantiu as sucessivas vitórias do PT
nas urnas desde 2002.
A visão contrária às pautas sociais e ao formato de governo popular evidenciou-se
em críticas nacionais e internacionais, na medida da associação entre os governos
petistas e seus “congêneres” ideológicos latinos. O discurso contra a esquerda
cresceu e serviu de justificativa, inclusive, a votos de parlamentares durante a
sessão legislativa de aceitação do pedido de impeachment na Câmara dos
Deputados:
“Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, em um momento este
País escolheu a bandeira vermelha, mas viu que errou e quer
novamente o verde-amarelo, a ordem e o progresso. Esse povo
que está aí fora não veio da Venezuela, não veio da Coreia do
Norte. Eu queria aqui, em nome da minha família, em nome
da minha região noroeste do Estado de São Paulo, da minha
cidade natal, votar “sim” e registrar que William Woo, que é
suplente, se estivesse aqui, também votaria “sim”, por um
Brasil mais forte, um Brasil independente, um Brasil sem
corrupção. (FAUSTO PINATO: PP-SP)”
“Pela coerência com os meus eleitores e respeito à minha
família, aos meus pais, que me deixaram um legado, e aos
meus filhos, a quem eu quero transmitir o legado de respeito
ao meu País, contra um partido que aparelhou o nosso
País, que se utiliza da política externa nacional para financiar

184
ditaduras bolivarianas sanguinárias com recursos do País,
contra aqueles que se utilizam da educação para doutrinar e
assediar as nossas crianças, por melhores dias para o nosso
País, livre dessa quadrilha que se entranhou em nosso seio,
com todo o coração voto “sim”. Fora, Dilma! (ROGÉRIO
MARINHO: PSDB-RN)”
Não se trata, pois, de um ataque apenas ao Partido dos Trabalhadores, ao qual
Dilma Rousseff é filiada. A estruturação e divulgação do discurso conservador
eleva-se à categoria de crítica à esquerda politica nacional e internacional. Os
“riscos” imaginados com a ascensão de governos de perfil esquerdista na América
Latina e o alinhamento iniciado por estes durante as décadas de 1990 e 2000,
sobretudo após a eleição de Lula em 2002, contribuíram de forma decisiva para o
“descortinamento” de preceitos políticos silenciados durante o período de maior
desenvolvimento social do país.
João Pereira Coutinho (2014) demonstra que os conservadores recorrerem a
estratégias irracionais para se defenderem. Essas estratégias perpassam por
“sentimentos naturais”, inquietação com a “iniqüidade, injustiça”, “decências
fundamentais da vida”, “obrigações de justiça”. Ou seja, uma gama de elementos
morais que seriam indispensáveis para se pensar qualquer sociedade “civilizada”.
Em certo sentido, a tendência desse tipo de discurso é gerar propostas e soluções
para os problemas sociais que se alicercem em torno da noção de Estado e
institucionalidade.
Manipulando os discursos anti-corrupção e o ressentimento e ódio de amplos
setores da classe média em relação às políticas de inclusão dos governos do PT, por
ter sido obrigada a interagir com os “de baixo” em espaços outrora exclusivos para
os seus, das universidades aos aeroportos, as elites econômicas e políticas
configuraram os principais artífices do golpe que depôs Dilma Rousseff. Sua ação
nefasta teve início ainda no episódio do “mensalão” e viu nas chamadas “jornadas
de junho”, em 2013, a possibilidade de arrebanhar para suas fileiras o elemento que
faltava para encerrar o projeto político do PT: o povo.
Apesar do conceito impreciso, esse “povo”, que serviu de base social para o golpe,
foi a classe média, representada por movimentos sociais como o Movimento Brasil

185
Livre (MBL), o Vem Pra Rua e o Revoltados Online. Contudo, menos de um ano
após a consumação do golpe no senado, a população brasileira que o apoiou foi
surpreendida com diversas denúncias contra os atores do golpe, resultando,
inclusive, em prisões. É possível aferir que tal segmento da população sentiu-se
“traído”, ou, como afirma Jessé Souza (2016), “quem apoiou [o golpe] de fora, nas
ruas, se achando protagonista de alguma coisa, foi coxinha no começo, depois se
sentiu trouxinha, e, finalmente virou escondidinho na piada popular; a sensação
geral na sociedade é de ressaca depois de um grande engodo” (p.135).
Pode-se ainda afirmar, contudo, a condição atual de todo este processo, o que
reduz as margens interpretativas e conclusivas sobre seu fechamento, como prova
a prisão de outro ator do golpe que ocupou cargo no ministério de Temer: Geddel
Vieira Lima. De concreto é possível referendar a tese de que o golpe possui alvo
certo, sobretudo através de sua vertente do judiciário: a cassação dos direitos
políticos de Lula, tornando-o inelegível e, com isto, “equilibrando” as forças no
cenário eleitoral de 2018 que, como mostram as recentes pesquisas, inclinam-se em
todos os cenários para vitória do petista.

Referências
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Rousseff. São Paulo: Leya, 2016.

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186
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7 de dezembro de 1940 - Código Penal, a Lei n o 1.079, de 10 de abril de 1950, e o
Decreto-Lei n o 201, de 27 de fevereiro de 1967. Diário Oficial da República
Federativa do Brasil. Brasília, DF, 20 out. 2000. Disponível em:
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finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal e dá outras
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https://www.cartacapital.com.br/revista/857/os-alvos-do-tio-sam-9756.html.
Acesso em: 22 jun.2017.

188
189
9. EL ESTANCAMIENTO DE LA DEMOCRACIA MEXICANA

Ricardo Espinoza Toledo

México atraviesa un período complicado. Sin avances reales, su proceso de


democratización se encuentra estancado. La alternancia, de los años 2000 a 2012,
no impulsó el cambio prometido. Con el regreso del Partido Revolucionario
Institucional (PRI) a la presidencia de la República, en 2012, se acentuó la
centralización política. Las oposiciones tradicionales del Partido Acción Nacional
(PAN) y Partido de la Revolución Democrática (PRD), por su lado, se desactivaron
desde que se comprometieron en un pacto político con el gobierno surgido del PRI,
en diciembre de 2012. Escasos mecanismos de contrapeso al Poder Ejecutivo y la
adhesión de gobernadores y de la mayoría del Congreso con las que cuenta el
Presidente fue la respuesta a la convicción compartida por la clase política, de que
la ausencia de mayoría legislativa del Presidente lo debilitan por obra de un
Congreso “obstructor”, mayoritariamente opositor. Así, una pregunta es si la
democracia mexicana es precaria o es disfuncional o, simplemente, no existe un
auténtico orden democrático.
Los críticos de la democracia han observado que el sistema representativo presenta
límites que requieren ser superados en favor de hacer más amplios los canales de
participación de los ciudadanos en los asuntos públicos. La lista de autores
convencidos de la crisis del sistema representativo y de la democracia es tan vieja
y extensa como la democracia misma. Tampoco es nueva la discusión acerca de
democratizar la democracia. Esto se debe, siguiendo a Rosanvallon (2004), a que
la democracia se presenta como un régimen siempre marcado por carencias e
incumplimientos en cuanto al bienestar de los ciudadanos, admitido como su gran
objetivo.
Sartori (1991) sostiene que “el ideal democrático no define la realidad democrática
y, viceversa, una democracia real no es ni puede ser una democracia ideal.” En una
primera aproximación, la democracia se caracteriza por un gobierno mediante la
discusión, en el que los ciudadanos controlan a los gobernantes y éstos últimos
tienen que ser responsables ante aquellos. Se trata del conjunto de decisiones

190
políticas colectivizadas que buscan el bienestar, y están definidas por medio del
método de formación del órgano decisorio y por las normas que rigen la toma de
decisiones, comprendidos sus costes y riegos. Un gobierno democrático, a su vez,
debe poder gobernar como resultado de la combinación adecuada de
representatividad y eficacia (Sartori, 1984). De acuerdo con Dahl (1987), las
democracias son sistemas en los que el poder sobre los cargos públicos está
ampliamente repartido por medio de un grado de control relativamente acentuado
del ciudadano sobre los gobernantes, lo que conlleva responsabilidades políticas
de estos últimos ante los ciudadanos, y abarca normas, procedimientos e
instituciones definitorias del gobierno en democracia.
La situación es diferente cuando en un país no se ha conquistado un estadio
mínimamente satisfactorio de desarrollo democrático, entendido como
participación social, transparencia, rendición de cuentas y Estado de derecho.
Mientras los países desarrollados llegaron al punto alto de democracia y, tal vez,
ya tocaron sus límites, las nuevas democracias están apenas en camino de
conquistar el pluralismo político como forma de gobierno. El desarrollo político de
los consolidados no se corresponde con el de los emergentes y menos cuando se
observan las enormes diferencias en el ejercicio efectivo de los derechos sociales y
civiles.
La experiencia mexicana da cuenta de los obstáculos que encuentra la democracia
para su implantación y desarrollo. El más relevante de ellos se expresa en una vieja
práctica que consiste en hacer de la política decisiones cerradas al público. Los
ingredientes principales de esas prácticas son la falta de transparencia, la
corrupción y la impunidad. La alternancia del PAN en la presidencia de la
República (2000-2012), la primera de toda la historia moderna mexicana, que se
alzó con el compromiso de impulsar el cambio político, no solo incumplió su
promesa, sino que acrecentó las disparidades sociales.
México, país de democracia incipiente y débil, con una sociedad poco organizada
y participativa, en que la mitad de la población vive en condiciones de pobreza y
pobreza extrema y donde la política y el sistema institucional parecen capturados
por intereses particulares, la acción política está reservada a los que toman las
decisiones gubernamentales. La base vital de un Estado democrático, asegura

191
Sartori (1993), es la democracia social, entendida como igualdad de estatus, modos
y costumbres. Para este autor, las democracias en sentido social y económico
extienden y completan la democracia en sentido político y son también, cuando
existen, democracias más auténticas. La democracia política como método, o
procedimiento, debe preceder a cualquier logro sustantivo que pidamos de la
democracia: los resultados presuponen el método que los produce. Así, para
obtener resultados democráticos, el procedimiento debe ser democrático. Pero en
las condiciones en que se encuentra México, la sociedad es convertida en un
conjunto de grupos–objetivo, en el que el programa de gobierno y las reformas
constitucionales y legales no tienen efecto político significativo alguno.
Para su análisis, este texto aborda: 1/ El Congreso pluralista como problema; 2/La
centralización política como solución; 3/ Derechos y libertades afectados; 4/
Reflexiones finales.

1/ El Congreso pluralista como problema


Con el regreso del PRI a la Presidencia de la República, en diciembre de 2012, se
firmó un “Pacto por México”, el 2 de diciembre de 2012, respaldado por el PAN, el
PRD, el PRI y el Presidente de la República. Este acuerdo se presentaba como el
vehículo para hacer efectivos los derechos que reconoce la Constitución en un país
marcado por la enorme desigualdad social y la falta de equidad. Este gran principio
era suficiente justificación para un acuerdo entre fuerzas políticas divergentes que
se habían mantenido enfrentadas durante los gobiernos encabezados por el PAN,
entre los años 2000 y 2012. El acuerdo entre las tres fuerzas políticas más
importantes y el Presidente se quería también la expresión de una nueva forma de
gobernabilidad, incluyente y pluralista, que los gobiernos panistas de la alternancia
ofrecieron, pero no impulsaron.
Para el año 2012, en México se habían construido nuevos equilibrios de fuerzas
gracias a la evolución y fortalecimiento de dos partidos opositores: PAN y PRD,
este último surgido en 1989, luego del proceso electoral de 1988. Hacia el año 1997,
se había logrado hacer realidad el principio de división de poderes reconocido en
la Constitución de 1917, como parte de un proceso de transición democrática que
había permitido superar el dominio de un solo partido, el PRI. En 1997, por primera

192
vez, después de más de setenta años, el partido “casi único” perdió la mayoría en
la Cámara de Diputados y, en el 2000, perdió también la mayoría en el Senado y la
Presidencia de la República. El PRI recuperó el poder presidencial en 2012, luego
de una ausencia de 12 años. Pero desde las elecciones de 1997, los partidos del
Presidente no han logrado tener la mayoría en las Cámaras. México había entrado
a la era del pluralismo político.
Durante los gobiernos surgidos del PAN, se impulsó la idea de que el cambio
prometido no llegaba debido a los bloqueos de la oposición, mayoritaria en el
Congreso. En las elecciones legislativas intermedias que afrontaron los presidentes
Fox (2003) y Calderón (2009), inundaron los medios electrónicos pidiendo el
respaldo de los ciudadanos para llevar una mayoría panista a la Cámara de
Diputados, algo que presentaban como condición del cambio prometido. No
tuvieron éxito.
Debido a la confrontación sin visos de solución del Ejecutivo con el Legislativo
durante la segunda mitad de esos gobiernos, entre legisladores, políticos y analistas
se propagó la convicción de que el pluralismo generaba presidentes débiles por no
disponer de mayoría propia en el Congreso. Para solucionar lo que se consideraba
el problema -la debilidad del Presidente-, se presentaron propuestas de reformas
que por vías artificiales diversas buscaban situar al Presidente por encima del
Congreso “obstructor”. Artificiales, debido a que el tripartidismo o las tres
tendencias políticas en que desembocó la democratización se consideraba el origen
del problema; artificial, también, porque se hacía a un lado la gran conquista social
fundamento del pluralismo: el voto libre como expresión de la decisión ciudadana.
El movimiento que promovía el fortalecimiento del Presidente, tampoco prosperó.
El Pacto de 2012, sin embargo, fue un mecanismo poderoso para superar la
trabazón de las relaciones del Ejecutivo con el Legislativo, registrada durante los
gobiernos encabezados por el PAN (2000-2012). Sin disposición de llegar a
acuerdos con la oposición política y parlamentaria, la inacción de esos dos
presidentes también dejó el espacio abierto a “poderes fácticos” (la delincuencia
organizada y las televisoras) en detrimento del Estado y el derecho. Fue así que, en
su primer mensaje a la Nación, Enrique Peña Nieto, Presidente electo, surgido del
PRI, deslizó una crítica frontal a los gobiernos que sucedía en el cargo: “Los

193
mexicanos demandan un Presidente que asuma su responsabilidad con la
República y que cumpla a cabalidad con sus deberes. […] Y aseguró: Trabajaré por
un Gobierno eficaz […]”.6
Para el propósito del Presidente electo en 2012, no tener mayoría propia en ninguna
de las cámaras del Congreso, planteaba un reto formidable. Sin las reformas que le
hubieran permitido controlar al Congreso y a los partidos de oposición, era tiempo
de echar mano del recurso de la política. El imperativo, entonces, se volvió la
construcción de mayorías ampliadas como base de la gobernabilidad, consistente
en la formación de una coalición que comprendía tanto al PAN como al PRD, los
polos políticos opuestos, sustento del Pacto por México.
En dirección contraria al estancamiento de la relación entre Ejecutivo y Legislativo
que caracterizó los dos sexenios de presidencias panistas, el nuevo Presidente
empezó por convertir en ventaja su presencia minoritaria en el Congreso. El Pacto
por México expresaba la pluralidad política del país y se presentaba como un paso
necesario para recuperar la rectoría política del Estado. El horizonte definido en
ese acuerdo era la transformación de México con base en el consenso de las fuerzas
políticas y el gobierno. El PAN y el PRD, los principales partidos de oposición, eran
dos de sus pilares centrales.
En un período corto (de 2013 a 2014), el Pacto permitió procesar acuerdos que se
convirtieron en reformas sustantivas a la Constitución y a las leyes en materias
antes intocables. Esas reformas sentaron las bases jurídicas para modificar la
política educativa, establecieron los nuevos principios de la competencia en
materia de telecomunicaciones e inversiones y abrieron las puertas a la inversión
privada en ámbitos hasta entonces reservados al Estado, como el petróleo y la
electricidad. Las nuevas disposiciones transformaron la tradición constitucional
mexicana que veía en el Estado al representante de la Nación en el manejo de los
recursos naturales y lo situaban como el garante de la utilidad pública por encima
de los propietarios privados. Eso cambió con las nuevas reformas. Para lograrlo, se
requirió de una operación política que no fue posible llevar a cabo durante los

6
Mensaje de Enrique Peña Nieto, Presidente Constitucional de los Estados Unidos Mexicanos, 1 de
diciembre de 2012. http://www.presidencia.gob.mx. Excelsior, 1 de diciembre de 2012.

194
“gobiernos del cambio” (2000-2012), y se consideraba poco probable con
presidentes sin mayoría propia en el Congreso.
La inclusión del PRD en ese gran acuerdo era parte de la novedad. Este partido era
no solo la gran hechura de la democratización, sino el opositor radical. Las
relaciones de colaboración entre el PRI y el PAN venían desde el gobierno
encabezado por Carlos Salinas de Gortari (1988-1994) y se prolongaron a lo largo
de los años hasta llegar, incluso, a los Presidente surgidos del PAN. En medio de
sus discrepancias, entre ellos siempre encontraron formas de arreglo. No había
ocurrido lo mismo con el PRD. Desde su fundación, este partido siguió una línea
de confrontación con los Presidentes de la República y con las otras fuerzas
políticas, al grado que gobiernos priistas y panistas los combatieron por igual.
Aunque integraba una fuerza política importante en la LXII Legislatura del
Congreso (2012-2015), el PRD no contaba con grupos legislativos lo suficientemente
grandes en capacidad de bloquear las decisiones de los otros, como para suponer
indispensable su inclusión en aquel acuerdo político. Con 114 diputados (de un
total de 500) y 22 senadores perredistas (de 128), la alianza PRI-PAN era suficiente
para construir la mayoría calificada que requieren las reformas a la Constitución:
ambos sumaban 327 diputados y 90 senadores, a lo que había que agregar los de
sus aliados del Partido Verde (PVEM) y del Partido Nueva Alianza (PANAL). La
importancia del PRD en el Pacto deriva de la estrategia presidencial. Su presencia
era necesaria como contrapeso del PAN para permitirle al Presidente
desempeñarse como “fiel de la balanza” y dejarlo en libertad tanto para impulsar
los temas de su prioridad en el menor tiempo posible como para hacer la
promoción pública de los acuerdos y decisiones que comprometían a panistas y
perredistas con el Presidente. En eso se cimentó la eficacia buscada por el
Presidente a través del Pacto por México.
El Pacto de diciembre de 2012 prometía un procesamiento democrático de las
decisiones. Sin embargo, se refugió en la secrecía y en la premura. Por esa razón,
se desacreditó el significado y la relevancia de un acuerdo político que ofreció
democratizar el país y mejorar las condiciones de vida de los mexicanos. Su logro,
si así puede llamarse, consistió en una serie de reformas constitucionales y
secundarias decididas sin consulta ni participación social (Espinoza, 2016). En

195
consecuencia, ninguna organización las tomó como suyas: el Sindicato de
Trabajadores de la Educación no se identificó con la reforma educativa; el Sindicato
de Pemex ve como una amenaza la reforma energética; los empresarios mexicanos
se sienten afectados por la reforma a las telecomunicaciones y por la reforma fiscal.
Ni PAN ni PRD, pilares del acuerdo, reivindicaron las reformas aprobadas. Por lo
visto, el origen y procesamiento en secreto del Pacto marcó su destino, el del
Congreso y el de la oposición, debido a la centralización presidencial que propició.

La centralización política como solución


La base vital de un Estado democrático es la democracia social, asegura Sartori
(1993). Entendida como igualdad de estatus, modos y costumbres, las democracias
en sentido social y económico extienden y completan la democracia en sentido
político y las hacen democracias más auténticas. Así, la política en democracia se
entiende como el conjunto de decisiones políticas colectivizadas que buscan el
bienestar. Pero cuando ese objetivo no se logra y el método para la búsqueda de
ese propósito falla, se pierde el respaldo social a las instituciones.
A más de un siglo de decretada la Constitución mexicana de 1917, los objetivos
sociales de la Revolución quedaron muy lejos de los propósitos declarados de
justicia social; la pobreza y la pobreza extrema siguen siendo la nota dominante en
México, pues más de la mitad de la población se encuentra en esa situación (Cepal,
2017). El Consejo Nacional de Evaluación de la Política de Desarrollo Social
(Coneval) recordó que, según la medición de 2014, 55.3 millones de mexicanos vive
en situación de pobreza, con ingresos insuficientes para adquirir la canasta
alimentaria y afligidos por al menos una carencia social (Coneval, 2017).
El retiro del Estado de sus originales compromisos sociales, que lo concebían como
un Estado nivelador y protector de las mayorías en situación de desventaja, ha
acrecentado esa problemática: desapareció el papel nivelador del Estado, pero la
situación de desventaja de las mayorías continúa, mientras la corrupción aumenta.
Adoptado el libre comercio por los gobernantes mexicanos como el gran proyecto
de modernización del país, la estrategia ha consistido no en combatir la corrupción
que corroe al sistema político, sino en acelerar el deterioro de las instituciones
inadecuadas para el libre mercado.

196
A principios de los años ochenta, la plataforma económica mexicana era muy débil,
la productividad prácticamente inexistente y el ingreso de los trabajadores
excesivamente bajo. La inflación galopante, a su vez, se acompañaba de protestas
sindicales y sociales y del enfrentamiento entre el empresariado mexicano y el
gobierno. La opción fue mirar al norte. El nuevo rumbo económico y político del
país decidido por el gobierno se instituyó luego bajo las siglas del TLCAN, el
Tratado de Libre Comercio de Norteamérica. Lo moderno, el nuevo pilar del
desarrollo, fue desaparecer los compromisos sociales del Estado y dejar que la libre
acción del mercado y los inversionistas privados, nacionales y extranjeros, entraran
sin restricciones para convertirse en el motor de la productividad y resolver los
pendientes. La ecuación era sencilla: los gobernantes no debían ocuparse en
resolver los problemas, sino en hacer los cambios constitucionales necesarios para
abrir la puerta a la entrada de los capitales privados en sectores reservados al
Estado. Engancharse al mercado norteamericano era la clave.
En esa dirección, las reformas promovidas en 2012-2013 cierran el ciclo de los
cambios de rumbo del Estado. El último jalón para modificar los contenidos
constitucionales fundamentales requirió de un nuevo arreglo entre los grupos de
poder que no lograron los gobiernos anteriores. Bajo el manto del Pacto por
México, primero, y por su inercia, después, las reformas en materia de
telecomunicaciones y competencia económica (2013), la reforma energética (2013)
y, finalmente, las reformas al artículo 123 de la Constitución, de 2012 y 2017,
borraron los originales mecanismos de protección estatal sobre los recursos de la
nación y la función niveladora del Estado.
El presente, caracterizado por la ausencia de estado de derecho, con
infraestructura insuficiente e inadecuada, desempleo e inseguridad desbordada y
educación de bajo nivel, se asemeja a un hoyo que sencillamente quedará tapado
por el influjo de la modernización deseada. Por obra de las fuerzas ciegas de la
economía, creen sus promotores, se acabará la corrupción gubernamental, la
impunidad, el abuso de autoridad, la delincuencia y la desigualdad. Para la
tecnocracia gobernante, no hay necesidad de afectar los intereses de los grupos que
lucran con los recursos públicos; lo decisivo es romper las ataduras con un pasado
que se considera desfasado, y la modernidad vendrá como por ensalmo. Se plantea,

197
así, la construcción de un futuro sin atender los problemas del presente con el
argumento de que hay que ajustar cuentas con el pasado.
En México, dos terceras partes de los activos físicos y financieros existentes (93 por
ciento) se hallan en manos de 10 por ciento de las empresas. No obstante, el uno
por ciento posee más de un tercio de dichos activos. Los datos del Panorama social
sobre desigualdad en América Latina 2016, de la Cepal (2017), muestran la
inadecuación del modelo económico de libre mercado en México. El principio de
desregulación deja hacer al libre mercado para que éste fije su propio equilibrio.
Pero la autorregulación y la libre competencia no pueden funcionar cuando entre
los participantes existe una desigualdad como la mexicana. Y en un espacio donde
un pequeño porcentaje de agentes económicos concentra la inmensa mayoría de
los recursos y todos los demás poseen una parte mínima, sin la participación
efectiva del Estado, no pueden acomodarse los factores de la economía productiva
como la inversión, el costo, el precio y el beneficio, en otras palabras, en esas
condiciones no es posible el libre mercado, menos, aún, combatir las desigualdades
sociales.
La acción de los grupos gobernantes mexicanos ha sido instrumentar
interminables reformas a la Constitución para adecuarla a los requerimientos del
libre cambio, sin apuntalar ni fortalecer el ejercicio efectivo de los derechos
sociales y civiles de la mayoría de la población adulta. El TLC creó un régimen
especial para incentivar la llegada de inversiones y proteger a los empresarios de
los abusos y condicionamientos del gobierno, las divisas de los migrantes
fortalecieron la economía popular y el dinero del petróleo sustituyó el desarrollo
de un sistema legal que evitara enriquecimientos ilícitos, la corrupción y la compra
de votos. Cuando el TLC es cuestionado por el gobierno norteamericano de Donald
Trump, se imponen mayores barreras a la migración y prácticamente se remató el
petróleo, se desvela el manto que oculta la realidad de gobiernos sin compromiso
con el desarrollo nacional. Programas del Poder Ejecutivo como Solidaridad y sus
sucedáneos, hasta llegar a Prospera, de ayuda directa a las personas, ocuparon el
vacío dejado por el Estado, a niveles de mucha menor profundidad y beneficio,
desde luego, aunque de mayor impacto político en favor del gobierno.

198
El intervencionismo del Estado debe concebirse como un acto de justicia social,
pero también como la única forma efectiva de asegurar la paz y el mejoramiento
de las clases pobres. La liberalización del mercado, sin embargo, va en sentido
contrario a los requerimientos sociales de bienestar. El gobierno mexicano diseñó
e impulsó sus reformas en un entorno globalizador que está siendo duramente
cuestionado y ha descartado el fortalecimiento del mercado interno como opción
de desarrollo. Eso afecta la vida política. El mantenimiento de las instituciones
democráticas necesita un cuerpo de normas, creencias y hábitos que garanticen el
apoyo a las instituciones, asegura Dahl (2003). La existencia de algunos derechos,
libertades y oportunidades fundamentales y efectivos, que encarnan y promueven
las auténticas instituciones políticas, es la fuente de su respaldo social. Pero en
México se han afectados los derechos de la ciudadanía.

Derechos y libertades afectados


Muchos cambios formales han hecho que se piense que los mexicanos son
Presidentes reformadores. En cierta forma, lo son, porque modifican
incesantemente el texto de la Constitución y las leyes. Como esas modificaciones
se reducen a acuerdos entre los mismos grupos de poder y no miran el bienestar
colectivo ni la protección de los recursos nacionales, las reformas son solo la
cortina que esconde la realidad de Presidencias no democráticas. El reformismo
formal mexicano es un conjunto de acciones que niega la participación social y que
pretende frenar toda forma de disidencia política. En todo ello se despliega el
carácter autocrático de presidencias que no encuentran enfrente contrapesos
efectivos ni en el Congreso ni en los gobiernos de los estados ni en los partidos
tradicionales, PAN y PRD, principalmente.
Esas reformas tienen en contra no ofrecer certezas a los propios aliados ni haber
sentado las bases para resolver los problemas que dicen combatir. Son
contraproducentes en razón de que, una vez aprobadas, tampoco encontraron
defensores ni entre sus promotores: así ocurrió con la reforma fiscal de 2013, con
las del pacto (la de educación fue cuestionada por el PRD y, desde luego, por la
Coordinadora Nacional de Trabajadores de la Educación, CNTE) o las electorales
de 2007 y 2014.

199
Contrariamente a los objetivos declarados, las acciones del gobierno y las
decisiones del Congreso mexicano no contribuyen a la igualdad política y van en
detrimento de la calidad democrática del Estado y del apoyo ciudadano a las
instituciones. La igualdad política necesita de los derechos y las libertades
fundamentales como anclas de las instituciones democráticas, escribe Robert Dahl
(2003). La democracia es un “sistema político diseñado, idealmente por lo menos,
para ciudadanos de un Estado que están dispuestos a tratarse entre sí, con fines
políticos, como iguales políticos.” Si supusieran que todos los ciudadanos poseen
iguales derechos para participar, directa o indirectamente a través de la elección
de sus representantes, en la confección de las políticas, reglas, leyes u otras
decisiones que se espera o exige que los ciudadanos respeten y obedezcan,
entonces el gobierno de su Estado tendría que satisfacer, idealmente, diversos
criterios, agrega el autor.

“[…] Para ser plenamente democrático, un Estado debería ofrecer: derechos,


libertades y oportunidades para la participación efectiva; igualdad de voto; la
posibilidad de adquirir una comprensión cabal de las políticas y sus consecuencias;
y los medios a través de los cuales el cuerpo ciudadano podría obtener un adecuado
control sobre la agenda de las decisiones y políticas del gobierno. Por último, para
ser plenamente democrático, un Estado debería asegurar que todos los residentes
adultos permanentes bajo su jurisdicción, o en todo caso la mayoría, gocen de los
derechos de la ciudadanía”. (Dahl, 2003).

Si bien la Constitución General de la República mexicana reconoce los derechos


sociales, civiles y políticos de los ciudadanos, su ejercicio efectivo está limitado por
la ancestral desigualdad y, más recientemente, por el libre mercado. La pobreza
predominante, a su vez, se vuelve el gran obstáculo para el acceso a las escasas
oportunidades y, debido a los mecanismos de inducción de los votantes, se niega
la igualdad de voto y la libertad de decisión de buena parte de los ciudadanos. Los
arreglos entre los mismos grupos que detentan el poder cierran las puertas a la
participación de las organizaciones sociales en el diseño de las políticas y, desde
luego, a su comprensión. Más aún, el diseño de la ley y de las reformas a la

200
Constitución omiten deliberadamente la evaluación de las consecuencias de su
instrumentación; lo único que importa es su aprobación por el Congreso. En este
escenario queda descartado cualquier mecanismo de control ciudadano sobre la
agenda de las decisiones y las políticas del gobierno.
“Como ideal y como conjunto real de instituciones políticas, la democracia es
entonces, necesariamente, un sistema de derechos, libertades y oportunidades”.
Para cumplir con esas exigencias hasta donde sea posible, se requiere de
instituciones políticas para el gobierno del Estado. “Los vínculos entre igualdad
política y democracia, por un lado, y las oportunidades, libertades y derechos
fundamentales, por el otro, están profundamente imbricados”, sostiene Dahl
(2003).
De acuerdo con el Índice de Percepción sobre Corrupción 2016, que realiza
Transparencia Internacional, México se encuentra en el lugar 123 entre 176
naciones. En el espejo de la corrupción se encuentra igual que Kosovo, Mali,
Filipinas y Albania. En la tradición nacional, que existan otros países peor
evaluados se presenta como algo positivo (Forbes México, 19 de mayo de 2014).
Socialmente, la corrupción se percibe como un mal endémico; el gobierno lo
entiende como un asunto cultural. A esta percepción se suma el valor de la
corrupción como aceite de la maquinaria económica, engrane del sistema de
justicia y factor para que las cosas funcionen. En la práctica, sin embargo, la
corrupción se traduce en falta de seguridad jurídica, en el encarecimiento de cada
trámite o contrato, en el aumento de los costos de producción y de la rentabilidad
de las empresas. Si se toman en cuenta las estimaciones del Banco Mundial, la
corrupción le cuesta a México 10% del PIB cada año. En las evaluaciones del Centro
de Estudios Económicos del Sector Privado (CEESP), la cifra alcanza el 20% del
PIB. En otras palabras, entre el diez y el veinte por ciento de lo que se produce en
México se diluye y filtra en corruptelas.
El Instituto Nacional de Estadística y Geografía (INEGI) reveló que, en México, 12.1
por ciento de la población tuvo una experiencia de corrupción cuando realizó
algún trámite, solicitó servicios y en otros contactos con servidores públicos
durante 2013. Los resultados de la Encuesta de Calidad e Impacto Gubernamental
(ENCIG) 2013, muestran que 89.7 por ciento de la población percibe a los policías

201
como el sector donde más corrupción hay, seguido de los partidos políticos con
84.4 por ciento y el Ministerio Público (encargado de la procuración de justicia)
con 78.4 por ciento.7 La ENCIG estima que la prevalencia de corrupción fue del
12.1%, mientras que la incidencia de corrupción por cada 100,000 habitantes fue de
24,724, lo que hace, a nivel nacional, una tasa de incidencia de corrupción de 24,7
% (Unonoticias, 16 de junio de 2014), solo en lo que se refiere a la relación de las
personas con funcionarios públicos.
Se explica entonces el malestar con la nueva democracia, el poco aprecio por la
clase política y por el sistema plural de partidos y la percepción negativa del Estado
de derecho y la justicia. Entre quienes han sido víctimas de algún delito, 61% no
presenta denuncia, y cuatro de cada diez personas refieren haber tenido malas
experiencias con la autoridad. Hay fuertes razones por las cuales los ciudadanos
desconfían del legislador, del alcalde, del político y, en general, de las instituciones.
(Informe País del Instituto Nacional Electoral de México, 2014). No puede extrañar,
por tanto, que 82% de los mexicanos esté poco o nada satisfecho con la naturaleza
de la democracia (Latinobarómetro, 2017).

Reflexiones finales

En México, las condiciones políticas de la democracia se habían construido antes


de 1997 y, desde luego, antes de la primera alternancia presidencial, del año 2000.
Pero esos logros se han acompañado de un déficit de derechos sociales y civiles.
Por esa razón, la sociedad mexicana tiene problemas que dan cuenta de una
democracia incompleta: corrupción, impunidad, abuso de autoridad y desigualdad
revelan la falta de condiciones (civiles y sociales) para ejercer efectivamente los
derechos reconocidos por la Constitución y las leyes.
La alternancia en la presidencia de la República y en gobiernos de las entidades
federativas desde el año 2000, ha tenido la virtud de permitir la circulación de
partidos en el poder de manera pacífica. Sin embargo, también ha traído a los
cargos de elección a grupos y personajes que hacen de los recursos públicos su

7
La Consulta Nacional sobre el Modelo de Procuración de Justicia 2017, confirma la crisis de la justicia
en México. www.construyamosjusticia.mx (consultado el 2 de noviembre de 2017)

202
patrimonio personal y de la autoridad conferida un mecanismo para imponer su
punto de vista por medio de contratos, la corrupción o la intimidación. Además,
eso se da en un período en que el Estado ha abandonado la atención de las mayorías
sociales en condiciones de pobreza y se ha extendido la violencia criminal a todo
el territorio nacional.
El proceso de tránsito democrático consistió en abrir el cauce para la expresión y
recreación de la pluralidad política. Se acabó el sistema de partido hegemónico y
las elecciones se convirtieron en momentos sustantivos para decidir quién debía
gobernar y quién legislar; y los medios, a su vez, empezaron a recrear cierta
pluralidad al tiempo que emergieron medios independientes. En otras palabras, se
acabó la tradición de las unanimidades políticas ficticias.

“No obstante, no se ha logrado edificar un orden democrático. Contamos con la


cara expresiva de la democracia, pero no con la que logra que la diversidad de
apuestas coexista en un marco de civilidad, permitiendo el gobierno y generando
un orden. Están los poderosos sujetos que actúan al margen de la ley […], pero
muchos de los actores institucionales operan también como si sus intereses y
proyectos fueran los únicos en el escenario y no se sienten comprometidos con el
resto. Son expresiones del fracaso por construir un orden pluralista”. (Woldenberg,
25 de mayo de 2017).

En esas circunstancias, la incipiente democracia no ha impulsado la extensión de


los derechos pues ni siquiera ha podido garantizar el ejercicio efectivo de los
vigentes; las oportunidades quedan reservadas a pocos mientras los más tienen que
emigrar a Estados Unidos o vivir en la economía informal o pasar a las filas del
crimen, y las libertades se restringen cuando no se protege la seguridad legal y
física de la población. Surge la pregunta de si el mantenimiento de ese estado de
cosas desde hace décadas es un acto deliberado de los gobernantes para asegurar
rentabilidad política. El desarrollo de las organizaciones de la sociedad civil ha sido
una respuesta a la falta de apertura gubernamental, aunque con muchos obstáculos
por remontar.

203
La inexistencia de auténticas políticas públicas marca el largo camino que falta
para consolidar la democracia en México. En el pantano de la democracia
mexicana, la presidencia de la República ha impulsado la centralización de las
decisiones para asegurar mecanismos de control político, así como la privatización
de los recursos nacionales, el gran proyecto de estos gobernantes desde los años
ochenta. A todo ello podemos atribuir el estancamiento de la democracia en
México.

Referencias
Coneval (2017). La evolución del ingreso de los hogares mexicanos en los últimos 25
años.

Dahl, Robert (2003). ¿Es democrática la Constitución de los Estados Unidos?,


Argentina, FCE.

Dahl, Robert (1987). Un prefacio a la teoría democrática, México, Gernika.

Espinoza Toledo, Ricardo (2016). “El fortalecimiento del Presidente de la República


en el Pacto por México” en Zamitiz, Héctor (coord.). Pacto por México, Agenda
Legislativa y Reformas 2013-2014, México, UNAM.

Informe País del Instituto Nacional Electoral de México, 2014.

Rosanvallon, Pierre (2004). “Las dimensiones social y nacional de la democracia:


hacia un marco de comprensión ampliada” en PNUD. La democracia en América
Latina. Hacia una democracia de ciudadanos y ciudadanas. El debate conceptual
sobe la democracia, 2ª ed., Buenos Aires, Aguilar-Altea-Alfaguara.

Sartori, Giovanni (1984). Ingeniería constitucional comparada: una investigación de


estructuras, incentivos y resultados, México, FCE.

Sartori, Giovanni (1991). Teoría de la democracia. 1. El debate contemporáneo,


Alianza Editorial.
Sartori, Giovanni (1993). ¿Qué es la democracia?, México, TRIFE/IFE.
Woldenberg, José (25 de mayo de 2017). “Ni carnaval ni quirófano”, Reforma.

204
205
10. OBSTÁCULOS PARA LA DEMOCRACIA EN PARAGUAY: LA
EXCLUSIÓN DE LOS PUEBLOS INDÍGENAS

Sara Mabel Villalba

Introducción
El objetivo de este capítulo es examinar la situación de exclusión de los pueblos
indígenas en Paraguay, como uno más de los muchos obstáculos para la afirmación
de un sistema democrático en el país.
El tema es cuestión es planteado dentro del marco analítico de la democracia
intercultural y teniendo en cuenta el factor de ciudadanía inclusiva. A su vez, la
democracia intercultural forma parte de los cambios institucionales al interior de
los Estados, que constituyen una combinación entre la construcción de nuevas
instituciones y la ampliación de las existentes (Mayorga, 2016: 89). El objetivo
principal es responder a las demandas de los nuevos actores políticos, entre los
cuales se encuentran los pueblos indígenas.
En efecto, desde la década del 90, en varios países de América Latina se registraron
sucesivas y masivas movilizaciones indígenas y la creación de organizaciones
indígenas, que contribuyeron a visibilizar la problemática que afectaba a los
pueblos indígenas. La consecuencia principal fue el fortalecimiento de un marco
legal internacional en favor de sus derechos. Esta situación se tradujo en la
aprobación de constituciones nacionales multiculturales, que reconocieron
derechos indígenas.
También en Paraguay, en el periodo posterior al régimen dictatorial de Alfredo
Stroessner (1954-1989), durante el proceso de transición a la democracia, el Estado
paraguayo buscó su reintegración a la comunidad internacional y suscribió una
serie de acuerdos internacionales referentes a los derechos humanos y
específicamente a los derechos indígenas. A la vez aprobó por primera vez una
constitución de carácter multicultural, que reconoce la existencia y los derechos
de los pueblos indígenas. No obstante, a pesar de este reconocimiento
constitucional y de la legislación en general, persiste la exclusión socioeconómica
que afecta a toda la población indígena del país y que se traduce en situaciones de

206
pobreza y extrema pobreza. Además, continúan ciertos vacíos legales y desidia
institucional, especialmente para propiciar la participación de los pueblos
indígenas en los procesos electorales y en la formulación e implementación de
políticas públicas que les atañen.
La exclusión de los pueblos indígenas, y de otros grupos sociales, del sistema
político en Paraguay constituye una de las falencias principales para la
consolidación de un régimen democrático. En efecto, la ciudadanía inclusiva se
constituye una de las instituciones políticas necesarias para el establecimiento de
la democracia a gran escala (Dahl, 1999).
En este capítulo, en primer término se abordarán brevemente los conceptos de
ciudadanía inclusiva y democracia intercultural, como parte de un marco teórico
que analiza las nuevas relaciones entre los Estados y los pueblos indígenas. A
continuación se presentará un panorama general sobre la situación de los
instrumentos del régimen jurídico internacional que promueven los derechos de
los pueblos indígenas.
En una segunda parte se presentan los principales datos cuantitativos sobre la
situación de exclusión socioeconómica que afecta a los pueblos indígenas en
Paraguay. Posteriormente se analizarán, de manera exhaustiva, las principales
barreras institucionales y legales para la participación de los pueblos indígenas en
los procesos electorales y en la formulación y ejecución de políticas públicas
dirigidas a este grupo social. Se argumentará sobre el modo en que esta situación
implica su exclusión del ámbito político nacional.

Desde la ciudadanía inclusiva hacia la democracia intercultural

La ciudadanía inclusiva constituye uno de los requerimientos principales para la


legitimidad democrática (Levine y Molina, 2007: 19) e implica que “el cuerpo de la
ciudadanía de un Estado gobernado democráticamente debe incluir a todas las
personas sujetas a las leyes de dicho Estado” (Dalh, 1999: 91).
El autor (ídem: 97 y ss) sostiene cuando un país avanza desde un gobierno no
democrático a otro democrático, en primer lugar existen arreglos provisionales,
que gradualmente se convierten en prácticas y posteriormente en instituciones.

207
Entre estas últimas figura la ciudadanía inclusiva, que implica que todos los adultos
residentes en el país tengan la posibilidad de ejercer una serie de derechos. Entre
ellos figuran los derechos al sufragio, a concurrir a cargos electos, a la libertad de
expresión, a formar y participar en organizaciones políticas independientes, a tener
acceso a fuentes independientes de información. También se incluyen derechos a
otras libertades y oportunidades necesarias para el funcionamiento efectivo de las
instituciones políticas de la democracia a gran escala. Todos los derechos
mencionados se enmarcan dentro de los “derechos políticos” y se encuentran
aprobados en instrumentos del régimen jurídico internacional.
Asimismo, para el éxito de la democracia a largo plazo se considera esencial
proteger los derechos de las minorías y mejorar la situación de los grupos
marginalizados (IDEA, 2017: 11). En los últimos años, en América Latina se ha
generado un debate en torno a la democracia que comprende cuestiones referentes
al régimen político, al diseño de nuevos modelos que reflejen la complejidad actual
de las sociedades y a las transformaciones de los mecanismos de representación
política. Estas discusiones temáticas están enmarcadas dentro de la perspectiva
teórica del “nuevo pluralismo” o pluralismo cultural, el cual busca la construcción
de una sociedad a partir de la diversidad cultural y el cambio de estructuras
institucionales (PNUD-IDEA, 2010: 8-11).
En esta línea, en los ámbitos académico y político se ha incorporado el concepto
de democracia intercultural8, como una innovación procedente del surgimiento de
los nuevos actores sociales que plantean nuevas y variadas demandas a los Estados,
así como la ampliación de la representación y la participación. Implica, además,
nuevas prácticas políticas que permitan la inclusión de los nuevos actores, entre
los cuales se encuentran los pueblos indígenas.
Por tanto, el concepto de democracia intercultural se refiere a la ampliación y
combinación de formas institucionales de representación y participación para
cumplir el objetivo de mejorar la capacidad y calidad del desempeño del Estado. El
fin consiste en responder a las necesidades y demandas de la sociedad. De manera

8
La democracia intercultural todavía carece de una definición precisa y sus rasgos institucionales están
en proceso de confección (Mayorga, 2016: 87).

208
específica, constituye una respuesta al desafío de combinar distintas modalidades
de democracia, brindando especial atención a las instituciones indígenas y a la
noción de Estado Plurinacional (Mayorga, 2016: 86-87).
En la dimensión empírica, la noción de democracia intercultural tiene sus
antecedentes en las reformas estatales de carácter integral que tuvieron lugar en
Venezuela, Bolivia y Ecuador, desde principios del siglo XXI. Dichas
modificaciones incluyeron la aceptación del carácter pluricultural de la sociedad,
expresada en el reconocimiento de derechos colectivos indígenas y el
establecimiento de vínculos entre democracia, diversidad social e interculturalidad
(Idem: 85).

Pueblos indígenas y marco legal internacional


La irrupción de los pueblos indígenas en el ámbito político, en varios países de
América Latina, se originó debido a que sus espacios, sus formas de vida y su
organización se veían amenazadas por el modelo económico predominante en el
siglo XXI. Este modelo está basado en la explotación y exportación de recursos
naturales, muchos de los cuales se encuentran en territorios indígenas (Meentzen,
2007: 9).
Por otro lado, desde la década del 90 se registró el fenómeno denominado
“internacionalización de la causa indígena” (Zuñiga, 2004: 44), que se evidenció
principalmente a través de sucesivas y masivas movilizaciones indígenas en varios
países del continente. Las principales demandas han sido la restitución de
territorios ancestrales y el libre acceso a los recursos naturales. También hubo
reclamos del reconocimiento oficial de las lenguas indígenas; la adaptación del
sistema educativo a sus necesidades culturales; el cese de los abusos, la
discriminación y el racismo por parte del Estado y de los no indígenas. Otra
exigencia concreta ha sido el reconocimiento de su autonomía, entendida como
unidad política diferenciada dentro de un Estado multiétnico, que posibilite su
participación en las esferas de decisiones (Bengoa, 2000; Martí i Puig, 2004; Brysk,
2009; Stavenhagen, 2010).
Además del surgimiento de movimientos y organizaciones indígenas, más tarde
también se formaron partidos indígenas, en países con elevada proporción de

209
población indígena - Bolivia, Ecuador, Guatemala- y también con población
indígena minoritaria –Venezuela, Colombia, México, Brasil- que han podido
ocupar cargos electivos sobre todo a nivel subnacional9.
Uno de los resultados del fenómeno mencionado ha sido la consolidación de un
marco legal internacional que incluyó los principales derechos indígenas. Una de
sus expresiones fue la sanción y promulgación de constituciones nacionales de
carácter multicultural en varios países. Estas reformas registradas en la década del
90 fueron producto de la denominada “Tercera ola democrática”10.
Además de modificar los mecanismos de gobierno, de representación y
participación, las nuevas constituciones trazaron el camino para la relación entre
los Estados y los pueblos indígenas. Este hecho marcó el nacimiento del
denominado “constitucionalismo multicultural” (Van Cott, 2000; Carbonell, 2004),
como una variante del paradigma cultural vigente en ese entonces. Como su
nombre lo indica, este modelo enfatizaba en los derechos culturales que
comprendían la diversidad lingüística y étnica e incluyó el reconocimiento de los
pueblos indígenas y sus derechos a la autonomía y al territorio, entre otras
reivindicaciones, dependiendo de cada país11. Estas constituciones multiculturales
marcaron una ruptura con la concepción monoétnica y monocultural de los
Estados latinoamericanos y legitimaron la presencia activa de los indígenas en la
esfera política. Son varios los países del continente que poseen constituciones con
diversos grados de multiculturalidad (Van Cott 2002; Bengoa 2003; Martí y Villalba
2012).
Además de las constituciones multiculturales, ha desempeñado un papel
fundamental el Convenio 169 sobre Pueblos Indígenas y Tribales en Países
Independientes de la Organización Internacional del Trabajo (OIT), aprobado en
1989 y constituido en el instrumento jurídico más importante para la defensa de
los derechos indígenas. Aunque no posee carácter vinculante, la Declaración de los

9
Existe una extensa literatura sobre este tema: Van Cott, 2005; Madrid, 2005; Alcántara y Marenghi, 2007;
Burguete, 2007; Villalba, 2007; Martí i Puig, 2008.
10
Este proceso se registró en 15 países de América Latina en el periodo 1978-1990. La excepción fueron
México, Costa Rica, Cuba, Colombia y Venezuela.
11
A excepción de Chile, todas las constituciones de América del Sur tienen carácter “multicultural”, dado
que reconocen la existencia de los pueblos indígenas, así como varios derechos.

210
Derechos de los Pueblos Indígenas también se encuentra vigente desde 2007,
además de otros convenios en general.

Marco legal de derechos indígenas en Paraguay


El marco legal internacional sobre derechos indígenas se ha plasmado en varios
países y Paraguay no ha sido la excepción. En la Constitución Nacional de 1992 fue
incluido el Capítulo V De los pueblos indígenas que comprende seis artículos, del
62 al 67, el primero de los cuales sostiene que “reconoce la existencia de los pueblos
indígenas, definidos como grupos de cultura anteriores a la formación y
organización del Estado paraguayo”. Se reconocen, además, los derechos de
preservación de la identidad étnica, sistemas de organización, la propiedad
comunitaria de la tierra, el derecho consuetudinario, la participación, la
exoneración de la prestación de servicio militar, social y civil.
La inclusión de este capítulo obedeció a la presión de los mismos indígenas y de
organizaciones sociales aliadas. En efecto, unos 134 indígenas representantes de 64
comunidades de ambas regiones del país reclamaron su participación en la
Convención Nacional Constituyente. Ante la negativa de los poderes Ejecutivo y
Legislativo, representantes de 14 pueblos presentaron este pedido directamente a
los convencionales electos. Finalmente, se aceptó la participación de cuatro
indígenas -dos representantes de la Región Oriental y dos de la Occidental- en
carácter de observadores y consultores (Kowalski 1993, 102-103)12.
Asimismo, en Paraguay el proceso de transición a la democracia también implicó
la reintegración a la comunidad internacional. En esta línea, la primera ley
nacional, 1/89, aprobaba y ratificaba la Convención Americana sobre Derechos
Humanos o Pacto de San José de Costa Rica. De manera paulatina también ratificó
o suscribió otros acuerdos internacionales referentes a los derechos humanos,
tanto a nivel general como específicos. En la Constitución se estipuló que los
tratados internacionales “relativos a los derechos humanos no podrán ser

12
Los indígenas contaron con la ayuda de un Grupo de Apoyo conformado por el Equipo Nacional de
Misiones (ENM) (de la Iglesia Católica), la Misión de Amistad y la Universidad Católica. En 1991 se realizó
el primer encuentro general con líderes e integrantes de comunidades, donde se hizo un relevamiento de
derechos que debían ser incluidos en la Carta Magna. Los análisis y planteamientos de dicha reunión
fueron grabados y los materiales distribuidos a las comunidades indígenas (Kowalski 1992, 99, 101).

211
denunciados sino por los procedimientos que rigen para la enmienda de esta
Constitución” (Art. 142). En el nivel regional, el Paraguay ha reconocido la
jurisdicción de la Corte Interamericana de Derechos Humanos y en 2007, votó en
la Asamblea General de las Naciones Unidas a favor de la adopción de la
Declaración de las Naciones Unidas sobre los Derechos de los Pueblos Indígenas.
Asimismo, el Art. 143 de la Carta Magna estipula la aceptación del derecho
internacional por parte del Paraguay y también la Constitución admite el orden
jurídico supranacional que “garantice la vigencia de los derechos humanos, de la
paz, de la justicia, de la cooperación y del desarrollo, en lo político, económico,
social y cultural” (Art. 145).
En suma, el Estado paraguayo ratificó numerosos convenios y acuerdos
internacionales referentes a los derechos de los pueblos indígenas.

Tabla N° 1. Principales instrumentos jurídicos referentes a derechos


indígenas
Instrumento Carácter Ámbito Año
Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos Vinculante Internacional 1966
Convención Internacional sobre la Eliminación de Vinculante Internacional 1965
todas las Formas de Discriminación Racial
Convenio 169 Sobre pueblos indígenas y tribales en Vinculante Internacional 1989
países independientes
Declaración de los Derechos de los Pueblos No vinculante Internacional 2007
Indígenas
Constitución Nacional Vinculante Nacional 1992
Ley 904/81 Estatuto de las Comunidades Indígenas Vinculante Nacional 1981
Ley N° 05/92 Que aprueba la adhesion de la Vinculante Nacional 1992
República al "Pacto Internacional de Derechos
Civiles y Políticos", adoptados durante el XXI period
de sesiones de la Asamblea General de la
Organización de las Naciones Unidas, en la ciudad
de Nueva York el 16 de diciembre 1966
Ley Nº 2128/92 Que aprueba la Convención Vinculante Nacional 1992
Internacional sobre la Eliminación de todas las
formas de discriminación racial
Ley 234/93 Que ratifica por parte del gobierno Vinculante Nacional 1993
paraguayo el Convenio 169 de la OIT.
Ley Nº 253/93 Que aprueba el convenio sobre Vinculante Nacional
Diversidad Biológica
Ley N° 2.128/03 Que ratifica la Convención Vinculante Nacional 2003
Internacional sobre la Eliminación de todas las
Formas de Discriminación Racial
Fuente: Elaboración propia

212
Exclusión de los pueblos indígenas en Paraguay
A pesar del marco legal favorable a los derechos de los pueblos indígenas, en
Paraguay uno de los grupos más afectados por la pobreza y la exclusión constituyen
los pueblos indígenas. Sus tasas de pobreza y extrema pobreza serían del 75% y el
60% respectivamente, mucho mayores que la media nacional. Esta situación se
encuentra estrechamente vinculada con la pérdida o la falta de acceso y control
sobre sus tierras, territorios y recursos naturales, que ha implicado la pérdida de
sus medios y modos de vida sin proporcionarles a cambio acceso al sistema
económico general (ONU, 2015). Esta situación se traduce en falta de acceso a
fuentes de agua potable, energía eléctrica, vivienda propia, y principalmente en el
acceso a la tierra. De acuerdo con el mencionado censo, unas 134 comunidades, de
un total de 493, no cuentan con tierra propia.
El nivel de educación formal se constituye en uno de los focos de inequidad entre
población indígena y no indígena del Paraguay. El porcentaje de analfabetismo es
del 37,6%, el promedio de años de estudio de la población indígena es de 3 años,
mientras que del resto de la población es de 7. El 29% de comunidades indígenas
no cuenta con local escolar y el 71% de las que poseen carece de aulas suficientes,
el 54% no cuenta con suficiente mobiliario y el 53% no posee energía eléctrica.
En cuanto al acceso al servicio de agua potable, apenas el 2,5% de la población
indígena puede acceder a este recurso (la mayoría solo tiene acceso a tajamar o río)
y solo el 31,2% accede a fuentes de energía eléctrica, de acuerdo con datos de la
Encuesta Permanente de Hogares 2013.
Asimismo, en Paraguay el acceso a la justicia está limitado para los pueblos
indígenas. Existen problemas procesales, estructurales y sustantivos. Persiste una
actitud de racismo y discriminación principalmente en tribunales de primera
instancia y tribunales departamentales. A esta situación se suma el
desconocimiento generalizado, por parte de los funcionarios, de los estándares
internacionales de protección de los derechos humanos y de las sentencias de la
Corte Interamericana de Derechos Humanos (CIDH). Además, existe escasez de
los defensores públicos para garantizar el acceso a la justicia de los pueblos
indígenas (ONU, 2015).

213
Actualmente en Paraguay la población indígena comprende a 112.848 personas, de
acuerdo con datos del III Censo Nacional de Población y Viviendas para Pueblos
Indígenas del 2012. En total son 19 pueblos indígenas, agrupados en cinco familias
lingüísticas. Con referencia a su distribución demográfica, gran parte de la
población se concentra en la Región Occidental del país. En los departamentos de
Boquerón, Alto Paraguay y Presidente Hayes la población indígena es del 40%, el
37% y el 24%, respectivamente según el censo. En la Región Oriental la población
indígena se encuentra principalmente en los departamentos de Amambay (12,1%),
Canindeyú (11,1%) y Caaguazú (8%).

Participación en políticas públicas


Además de la exclusión socioeconómica de los pueblos indígenas en Paraguay,
evidenciada con los indicadores oficiales mencionados, el Informe de la Relatora
Especial sobre los derechos de los pueblos indígenas sostiene que en el país se
registra un incumplimiento generalizado del deber estatal de consultar antes de la
adopción de medidas legislativas, políticas y administrativas que afectan
directamente a los pueblos indígenas. Agrega que la mayoría de los programas y
proyectos institucionales para pueblos indígenas no habían sido consultados
(ONU, 2015).
Una de las causas de esta situación constituye la debilidad institucional y el cambio
de políticas registrado con cada cambio de autoridades. Si bien las políticas
públicas conforman el acervo jurídico del país, usualmente en los diferentes países
de América Latina su elaboración, implementación y vigencia se encuentra
condicionada al gobierno de turno (Meentzen, 2007:20). Siguiendo esta línea
argumental, en Paraguay, con cada nuevo gobierno se han registrado cambios en
las políticas públicas dirigidos a los pueblos indígenas.
En general, el relacionamiento del Estado paraguayo con los pueblos indígenas se
ha caracterizado por la ausencia de un enfoque de derecho y por implementar
políticas indígenas desde un modelo asimilacionista e integracionista. De manera
prioritaria, los programas y planes han buscado integrar a los indígenas a la
sociedad nacional y no han logrado brindar respuestas a sus principales demandas
de tierras y territorios (Benítez y Castillo, 2012: 117-118)

214
El Instituto Paraguayo del Indígena (INDI)13, organismo encargado de la política
indígena, cuenta con líneas básicas de acción, pero elaboradas sin participación de
los pueblos indígenas y por tanto no brindan respuestas apropiadas a sus
necesidades, principalmente en cuanto a la legalización de sus tierras. De hecho,
se ha constatado que en general las directrices desde el Poder Ejecutivo, del cual
depende el organismo, se limitaban a la resolución de problemas coyunturales.
Además, se han denunciado a través de la prensa varios casos de corrupción al
interior de la institución, a través de la compra de tierras. Muchos funcionarios
tampoco están capacitados ni responden a un perfil institucional adecuado, sino
que son incorporados como parte de una red clientelar del Estado. La escasez del
presupuesto ha sido otra de las muchas dificultades para responder a las demandas
de los pueblos indígenas (Idem., 9, 89, 92-93).
La mayoría de los gobiernos que se han sucedido en el periodo posterior al régimen
dictatorial de Alfredo Stroessner (1954-1989) han implementado principalmente
programas asistencialistas. El gobierno de Fernando Lugo (2008-2012) intentó
construir una política pública articulada en materia indígena, mediante la creación
de instituciones estatales para la coordinación y monitoreo, como por ejemplo el
Programa Nacional de Atención a los Pueblos Indígenas (PRONAPI)14. El objetivo
de este emprendimiento interinstitucional fue el diseño de una política indígena y
de mecanismos institucionales de atención integral, con la participación de los
pueblos afectados a través de consultas permanentes (Ayala, 2009: 233).
También en 2009 fue implementado el Proyecto de Desarrollo de Comunidades
Indígenas del Paraguay, coordinado por la Secretaría de Acción Social y el Instituto
Paraguayo del Indígena (INDI), con apoyo de la Japan Social Development Fund.
Fueron beneficiadas las comunidades de los departamentos de Amambay,

13
El Instituto Paraguayo del Indígena (INDI) es una institución autónoma, creada por la Ley 904/81
“Estatuto de las Comunidades Indígenas”. Entre varias más, sus principales funciones son: Establecer y
aplicar políticas y programas; Coordinar, fiscalizar, y evaluar a las actividades indigenistas del sector
público y privado; Prestar asistencia científica, técnica, jurídica, administrativa y económica a las
comunidades indígenas, por cuenta propia o en coordinación con otras instituciones y gestionar la
asistencia de entidades nacionales o extranjeras (Artículo 42).
14
Fue creado por Decreto 19545 del 30 de abril de 2009, conformado por ministerios del Poder Ejecutivo
y bajo la coordinación del INDI.

215
Presidente Hayes, Caaguazú y Canindeyú. Su propósito fue apuntalar la seguridad
alimentaria y el desarrollo de capacidades de producción en las comunidades.
Incluyó la regularización de tierras, acceso a los servicios de educación, salud y
vivienda, el apoyo productivo en la generación de ingresos, las transferencias, la
participación ciudadana y el acceso a la justicia (Idem: 234).
Asimismo, otra de las reformas en la política indigenista registradas bajo el
gobierno de Lugo fue la formulación y ejecución de la Política Nacional de Salud
Indígena. Sus objetivos incluyeron: la articulación de instituciones privadas y
públicas, un enfoque intercultural, la formación de promotores y promotoras de
salud indígenas y no indígenas, y el fortalecimiento de la medicina indígena (Idem:
235).
En cuanto a políticas públicas de la memoria, la comisión Verdad y Justicia también
organizó una audiencia pública denominada “Pueblos Indígenas y Dictadura” para
analizar las violaciones de derechos de los pueblos indígenas durante el gobierno
dictatorial de Alfredo Stroessner (1954-1989). En esos días se escucharon un total
de 50 testimonios de indígenas de los pueblos Enxet, Ayoreo, Maskoy, Toba Qom,
Nivaclé, Avá Guaraní, Mbya, Aché y Pai Tavyterá (Barrios, 2008: 540-542).
Ante la existencia de escasos espacios institucionales para la participación en la
formulación de políticas públicas, la Federación Autónoma de Pueblos Indígenas
(FAPI) ha elaborado y presentado al Estado paraguayo, el documento “Propuestas
de Políticas Públicas para Pueblos Indígenas”, que plantea un cambio en la forma
de intervención y relacionamiento de las instituciones gubernamentales con los
pueblos indígenas (Benítez y Castillo, 2012: 85). Entre sus principales propuestas se
encuentran la autonomía, la participación de las organizaciones indígenas en todos
los proyectos que les atañen; la capacitación de los funcionarios estatales sobre las
leyes referentes a pueblos indígenas. También reclaman la creación de un
Ministerio Indígena dependiente del Poder Ejecutivo y el establecimiento de la
jurisdicción indígena especializada para garantizar judicialmente la restitución de
tierras indígenas.
Por su parte, la Mesa Coordinadora de Organizaciones Indígenas del Paraguay
(MCOIP) ha presentado al Poder Ejecutivo el “Plan para el Buen Vivir”. Los
fundamentos de esta propuesta se relacionan con la utilización racional de los

216
recursos naturales, el respeto a los derechos humanos, incluyendo el derecho de
los pueblos indígenas. Esta cuestión se fundamenta en el cumplimiento de las
leyes, la Constitución Nacional y los convenios internacionales (Ídem: 86-87).
En resumen, en Paraguay los pueblos indígenas poseen un marco legal favorable
en general y también en cuánto a su participación en políticas públicas, no
obstante existe una brecha entre las leyes y su implementación, debido a la falta
de mecanismos de participación. Las acciones de los diferentes gobiernos, salvo
excepciones puntuales, “se han caracterizado por no contar con políticas públicas,
con una visión clara hacia donde orientar las acciones y desde que perspectivas”
(Ídem: 118).

Participación en procesos electorales


En Paraguay, específicamente el Código Electoral contiene obstáculos de ingreso
al sistema de competición a movimientos y partidos que representen a sectores
minoritarios. Esta situación afecta de manera negativa especialmente a los pueblos
indígenas, puesto que el marco legal nacional no menciona ni establece medidas
afirmativas o mecanismos de representación especial para los pueblos indígenas.
Los mecanismos de representación especial se enmarcan dentro de los
denominados “sistemas electorales inclusivos” (Van Cott, 2003) y pretenden
impulsar la participación de los pueblos indígenas en los cuerpos legislativos
locales, regionales o nacionales, cuando ésta no puede lograrse a través de las vías
regulares de los sistemas electorales. En suma, se constituyen en los principales
medios para expresar la multiculturalidad en los diferentes países.
Estos mecanismos parten de la premisa de que las relaciones desiguales en las
sociedades inciden negativamente en el sistema político. Como consecuencia
muchas personas no pueden competir en igualdad de condiciones para hacer
efectivo su derecho ciudadano a ser elegido. “Su finalidad es contrarrestar estos
sesgos para asegurar o acelerar el acceso a cargos de decisión política de grupos
sociales histórica y culturalmente marginados, excluidos o desfavorecidos” (Niki
Johnson y Alejandra Moreni, 2009: 18).
En varios países latinoamericanos estos mecanismos fueron introducidos en las
constituciones durante los procesos de reformas constitucionales mencionados

217
anteriormente15. Entre los mecanismos de representación especial, utilizados en
referencia a los pueblos indígenas, figuran cuatro principales: las cuotas
electorales, los escaños reservados, las circunscripciones especiales y los umbrales
electorales excepcionales.
a) Cuotas electorales: consisten en el establecimiento de un número mínimo
de candidatos con ciertas características demográficas pertenecientes a
grupos étnicos, de género, religiosos, etc. que los partidos políticos deben
integrar para las elecciones (Htum, 2004). El objetivo es la nominación de
candidatos en sistemas electorales mayoritarios y proporcionales (Ríos,
2015: 24). Para el caso indígena y en términos operativos, la cuota indígena
implica que los partidos políticos deben reservar un mínimo de lugares para
candidatos de estos pueblos a cargos electivos.

b) Escaños reservados: se constituyen en un mecanismo especial que define


un determinado número o porcentaje de curules en los cuerpos legislativos
“que pueden ser ocupados únicamente por individuos que cumplen con un
cierto criterio adscriptivo, tal como la religión, la lengua, la etnia o el género
del candidato o candidata” (Reynolds, 2007). Para el caso de los pueblos
indígenas los escaños reservados pretenden garantizar una representación
mínima indígena en los organismos legislativos, en niveles local, regional o
nacional, de acuerdo con la legislación específica. Se parte del principio
básico de representación de todos los sectores sociales en un sistema
democrático y también de la idea de que los pueblos indígenas constituyen
colectivos con intereses distintivos dentro de los constructos estatales
(Angosto, 2012: 154).

c) Circunscripciones especiales: La creación de estas circunscripciones está


estrechamente vinculada al redistritaje, que consiste en la modificación del
mapa electoral, la conformación misma de distritos electorales con

15
Una tendencia de las reformas constitucionales de los últimos 30 años fue la aprobación de reglas
electorales que facilitan una competencia electoral multipartidista (Negretto, 2009: 7).

218
determinados objetivos políticos (Reynolds, 2006: 11). Se lleva a cabo
mediante un trazado especial de los distritos para que en algunos de ellos
exista presencia mayoritaria de un grupo considerado minoritario en
referencia a la población general (Ríos, 2015: 39). Se crean así las llamadas
circunscripciones especiales con el objetivo de promover la representación
de estos grupos minoritarios. En varios países de América Latina se ha
realizado el redistritaje para la creación de circunscripciones indígenas. No
obstante, para que esta medida sea efectiva y cumpla su función, la
población indígena debe tener un alto grado de concentración geográfica y
una cierta unidad política para asegurar los votos a favor de los candidatos
de dichos distritos electorales (Reynolds, 2006).

d) Umbrales electorales excepcionales: corresponden al nivel mínimo de


apoyo que un partido político necesita para obtener representación en los
diferentes organismos legislativos. Dicho nivel de apoyo se expresa
generalmente en el porcentaje de la votación total que obtiene un partido
(Reynolds, 2007). Los cambios que puedan realizarse en estos umbrales se
constituyen en un mecanismo utilizado para la representación de minorías
políticas. Las fórmulas de asignación que adjudican las curules a los partidos
que ganen votos deben correlacionarse con la formación y la viabilidad
electoral de los nuevos partidos (en este caso los partidos indígenas). El
punto de partida es la idea de que los partidos indígenas obtendrían pocos
votos. Por lo tanto, los umbrales menores les permitirán tener acceso a
cargos políticos y también a los recursos estatales (subsidios partidarios)
que servirían para aumentar su votación en las siguientes elecciones (Van
Cott, 2003: 32).

En Paraguay, a pesar de que la misma Constitución Nacional reconoce la


participación de los pueblos indígenas16, no se hace referencia específica a su

16
El artículo 65 señala que “Se garantiza a los pueblos indígenas el derecho a participar en la vida
económica, social, política y cultural del país, de acuerdo con sus usos consuetudinarios, ésta Constitución
y las leyes nacionales”. Además, la ley 904/81 Estatuto de las Comunidades Indígenas, declara que “Esta
Ley tiene por objeto la preservación social y cultural de las comunidades indígenas, la defensa de su

219
participación en los procesos electorales. En el marco legal electoral no se
menciona siquiera a los pueblos indígenas17. Esto implica que el Código Electoral
no posee ninguna cláusula especial sobre la inscripción y el voto de los indígenas
y el Padrón Electoral, en ninguna circunscripción, no incluye distinciones respecto
de la condición de los sufragantes y los resultados de las votaciones. Por tanto, no
es posible contar con datos exactos de la participación electoral de los pueblos
indígenas en el país. Este desconocimiento total de información sobre el voto
indígena y su nula visibilidad limita la capacidad de negociación de los pueblos
indígenas, tanto en el ámbito partidario como en el sistema político en general
(Prieto, 2013: 85-86).
Por otro lado, el ingreso a la arena electoral de los pueblos indígenas también se
encuentra restringido por los numerosos requisitos existentes para el
reconocimiento de los partidos políticos y los trámites necesarios se realizan de
manera centralizada en el Tribunal Electoral de la Capital18. Además, la misma
Constitución Nacional prohíbe la formación de partidos regionales –solo se
permiten alianzas y concertaciones transitorias- lo cual es un obstáculo para la
formación de partidos indígenas en zonas geográficas de elevada concentración
indígena. En general, la formación de partidos regionales implica menores recursos
(transporte y publicidad, organización de campañas, etc.) y la posibilidad de una
posterior proyección a nivel nacional.
Otro inconveniente sumado a los obstáculos mencionados es que los locales de
votación no tienen una localización especial que tome en cuenta las características

patrimonio y sus tradiciones, el mejoramiento de sus condiciones económicas, su efectiva participación


en el proceso de desarrollo nacional…”.
17
El marco regulatorio de las elecciones en Paraguay incluye a: 1) la Constitución de 1992; 2) el Código
Electoral (Ley n. 834/96); 3) la Ley de Justicia Electoral (Ley n. 635/95); y 4) las resoluciones del Tribunal
Superior de Justicia Electoral. Además, el Código Penal (Ley n. 1160/07) sanciona la violación del secreto
de voto, la compra de votos, los casos de intimidación, voto fraudulento, falsificación de resultados y
violaciones del Código Electoral.
18
De acuerdo con el Código Electoral, para que un nuevo partido sea reconocido por la Justicia Electoral
debe presentar el acta de fundación, la declaración de principios, los estatutos y la nómina de la comisión
directiva. Además, los partidos en formación deben contar con un número de afiliados no inferior al 0,5%
de los votos válidos emitidos en las últimas elecciones al Senado y deben probar que cuentan con
organizaciones en Asunción y en, al menos, cuatro ciudades capitales departamentales del país. Estos
requerimientos dificultan el registro de partidos por parte de grupos regionalmente concentrados o
minoritarios y poblaciones indígenas (MOEUE, 2013:18).

220
de la población indígena (López, 2015: 19). En efecto, el informe del MOEUE 2013
sostiene que debido a la elevada concentración de mesas receptoras de voto en
ciertos locales muchos electores se ven obligados a recorrer largas distancias para
el ejercicio del derecho a voto. Recomienda la habilitación de más mesas receptoras
en las cercanías de núcleos de población en las zonas rurales (MOEUE, 2013: 8).
En líneas generales, la ausencia de medidas especiales en el marco electoral
paraguayo se ha traducido especialmente en un escaso número de indígenas que
ocupan cargos electivos en los diferentes departamentos y en su nula presencia en
cargos nacionales. Esta situación implica un déficit en la representación de estos
pueblos a nivel nacional.

Consideraciones finales
Paraguay ha ratificado los más relevantes tratados internacionales para garantizar
la no discriminación en el goce y ejercicio de los derechos humanos en general y
de manera específica de los derechos de los pueblos indígenas. Sin embargo, sigue
vigente la exclusión de los pueblos indígenas en múltiples dimensiones
socioeconómicas y políticas.
Además de la exclusión socioeconómica, traducida en indicadores de pobreza y
acceso nulo o limitado a servicios públicos, los pueblos indígenas en Paraguay
también deben enfrentar obstáculos para su participación en la formulación de
políticas públicas y en los procesos electorales.
El análisis realizado permite apreciar que aún existen múltiples y complejos
desafíos en torno de la participación electoral indígena, así como espacios para su
intervención en la formulación, ejecución y evaluación de políticas públicas. A
pesar de los avances en materia de derechos y de iniciativas de involucramiento en
espacios estatales, todavía se requiere promover acciones efectivas que aseguren
una integración plena de los pueblos indígenas.
La situación mencionada incide de manera negativa en el sistema político
paraguayo, pues excluye a un grupo social que posee una importancia histórica y
cultural en el proceso de formación de la nación paraguaya. Una sociedad, cuya
pluriculturalidad está estipulada en la misma Constitución Nacional, requiere la

221
incorporación de los pueblos indígenas como sujetos de ciudadanía plena, para el
fortalecimiento de una democracia intercultural.

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224
225
INSTITUIÇÕES, PARTICIPAÇÃO SOCIAL, APRENDIZADOS
E ENFRENTAMENTOS

226
227
11. MINISTÉRIO PÚBLICO, REPRESENTAÇÃO E RESPONSABILIZAÇÃO

Maria Victória Espineira González


Ruy Aguiar Dias

O Ministério Público

Influenciados pelo momento de redemocratização do país, e no bojo dos


movimentos sociais, os constituintes de 1988 procuraram instrumentalizar a
Constituição Brasileira em construção, com diversos mecanismos participativos ou
do tipo "checks and balances" voltados para o controle do Executivo, das
instituições, do Estado na defesa constitucional dos cidadãos e na fiscalização do
cumprimento das leis, da democracia e da ampliação da participação política de
uma forma geral. A proposta constituinte procurava de certo modo, desenvolver
instrumentos com vistas a superar as deficiências do sistema democrático
representativo.
Com as mesmas premissas, parte do Ministério Público aproveita este momento
histórico para fazer lobby junto aos constituintes, para aumentar suas
competências e autonomia. Os avanços neste sentido não se limitaram ao período
de construção da nova Constituição, tendo se expandido durante os governos
petistas de 2002 a 2014.
Como observa Fabio Kerche em entrevista:
Os procuradores da República estão mais poderosos por
conta de instrumentos que não foram previstos na
Constituição, mas que foram introduzidos durante os
governos petistas. Uma delas é a nova forma de indicação do
Procurador Geral da República, com base no compromisso
de que o primeiro colocado numa lista tríplice irá assumir o
cargo que tem a prerrogativa de apresentar denúncia contra
o presidente, ministros de Estado, parlamentares federais.
Mais tarde, tivemos a nova lei de delação premiada, que deu
um poder tremendo ao trabalho de investigação, cobrando
um preço equivalente em matéria de direitos e garantias

228
individuais. Numa demonstração enorme de poder,
a liberdade de cada cidadão, este valor que gostamos de
acreditar que não tem preço, é negociada em função de sua
disposição para delatar. Quem não perdeu a memória do
regime militar sabe que isso não tem preço19.

O objetivo do empoderamento do MP era conceder aos cidadãos um mecanismo


que garantisse a defesa de seus interesses difusos, o que sem dúvida torna a questão
mais nebulosa. No final as mudanças nas competências do MP acabaram
resultando numa ampliação sem precedentes do grau de autonomia dos membros
do Ministério Público, sem que este estivesse vinculado ao Legislativo, Executivo e
Judiciário, e sem uma vinculação direta com os públicos, e vem contribuindo para
a judicialização da Política (Kerche, 2009).
A legitimidade do sistema democrático, segundo Almeida, vai depender da busca
da qualidade do processo representativo. Diz a autora que:
Esta qualidade depende tanto da capacidade dos atores da
sociedade civil de apresentar demandas e questões expressas
diretamente pela sociedade, as quais não estão sendo
adequadamente tratadas na esfera eleitoral, como de criar o
que deve ser representado. A criação não é arbitrária, na
medida em que as “demandas representativas”, construídas
no fórum deliberativo ou a partir da interação dos atores em
distintas esferas, precisam convencer aqueles a quem se
destinam, depois de serem expostos publicamente os
argumentos por seus representantes. A redefinição de quem,
o que e como se representa sugere que na prática a
legitimidade democrática precisa ser avaliada a cada caso, no
processo de inclusão dos atores, na maneira em que os
fóruns ou esferas deliberativas apresentam a pluralidade de
demandas e no controle exercido internamente e
externamente ao fórum, na sua abertura e interação com
outros atores, espaços e esfera pública. (2015:271).

Segundo Kerche, aparentemente os constituintes de 1988 não consideraram a


"premissa básica da democracia em relação aos promotores e procuradores", ou seja,
"todos os atores políticos, eleitos e não eleitos, precisam prestar contas de seus atos

19
Disponível em <
https://www.brasil247.com/pt/blog/paulomoreiraleite/250414/%E2%80%9CMinist%C3%A9rio-
P%C3%BAbico-n%C3%A3o-%C3%A9-feito-de-anjos%E2%80%9D.htm> Acesso em janeiro de 2017.

229
e serem passíveis de punição por eventuais desvios20". O atual MP permite a seus
membros uma grande liberdade de atuação até mesmo frente ao Procurador Geral
da República.
De fato, o MP criado poderia vir a assumir, em abstrato, um papel de
representação política da sociedade. Bruno Rei (2014) citando Wampler, observa
que vem ocorrendo uma multiplicação
de instâncias políticas no âmbito das quais se exerce
representação de parcelas da população junto ao Estado no
Brasil, nas esferas municipais, estaduais ou federal. Contudo,
mesmo aquilo que se apresenta como novidade no modus
operandi da política no Brasil, não necessariamente irá
constituir-se em inovação relevante quanto ao repertório
institucional e, sobretudo, o modus operandi da democracia
mundo afora. Embora moderado e cauteloso na avaliação da
natureza e do alcance dos novos experimentos, Gurza
Lavalle compartilha - a seu modo - a ambição teórica
presente na literatura, ao afirmar que as novidades recentes
nos forçariam a uma reformulação do próprio conceito de
representação política.

Luis Felipe Miguel também questiona se a mídia poderiam se caracterizar como


uma forma de representação. Nesta perspectiva, o MP poderia vir a ser considerado
como uma forma de representação política de um novo tipo, como classifica Reis
(2006) se referindo a uma representação não formal, no sentido de não
autorizadas, e que se assemelharia ao de certas organizações civis nas quais a
identificação entre os representantes e representados não se baseia na ideologia ou
na situação de classes ou categoria profissional?
Esta representação estaria limitada no tempo e a uma determinada questão
específica, cessando quando a população retira seu apoio ou a questão é superada
e permitiria mobilizações esporádicas ideologicamente vazias. Mas, para uma
representação inserida na tradição contratualista seria necessário, como observa
Almeida (2015), a ideia de consentimento voluntário individual, muda e uma
conexão entre representante e representado. Em outras palavras, alguma forma de
participação.

20
Idem nota anterior

230
Portanto, a concepção de representação que existe entre parlamentares e eleitores
ou movimentos sociais é diferente da que poderia existir entre o MP e os públicos,
uma vez que os integrantes do MP não são eleitos, não possuem “autorização”
formal ou informal dos públicos, não se assemelham, não pertencem à mesma
classe social ou não são recrutados, necessariamente, junto aos eleitores ou
movimentos sociais e não mantém relação representante-representado. O caso do
MP, portanto, é significativo, uma vez que o poder do MP não decorre do apoio
esporádico ou permanente dos grupos envolvidos na questão, pois seu poder é
institucional, muito embora também possa haver disputas internas dentro da
instituição uma vez que o Procurador Geral é escolhido.
Essa nova forma de representação do MP de certo modo significa um retrocesso,
uma vez que se assemelha ao modelo de representação pré-burguesa, que segundo
Habermas não seria uma representação dos públicos e sim uma "representação do
poder", uma representação teatral que se sustentaria com as pompas e liturgias
muito comuns ao judiciário com togas e até cabeleiras postiças.
Embora não estejam vedadas as iniciativas populares dirigidas ao MP, os seus
membros não se identificam necessariamente e não se assemelham aos
representados, e suas ações (ou a falta delas) não podem ser cobradas pelo público.
Também não existem mecanismos de "accountability", uma vez que seus
promotores não são eleitos, e sim aprovados em concursos públicos, são vitalícios
e não prestam contas de suas escolhas e “nem de responsividade que estaria
relacionada”, como define Almeida, “com a sensibilidade do representante frente
ao representado” (2015:248).
Assim, nas últimas décadas, desenvolveu-se entre os membros do MP um poder
discricionário considerável, criando uma situação sui generis, que vem
demandando inúmeras discussões e estudos acadêmicos.
Enquanto as ações por iniciativa da população representam um grande ganho em
termos de participação política, colocando os demandantes no mesmo nível de
intervenção que os poderes públicos, as ações de iniciativa do próprio MP teriam
origem nos agentes públicos, o que tem dado motivos a questionamentos,
principalmente pelo seu papel nas recentes investigações sobre políticos, tendo

231
ficado claro que o mesmo empenho investigativo não envolve todos os partidos da
mesma forma.
Com base em pressupostos defendidos por alguns teóricos, como KERCHE, chega-
se à conclusão de que esse modelo criado pela Constituição de 1988 e intensificado
por gestões petistas permite que os procuradores, "tomem decisões motivadas,
muitas vezes, por valores e crenças pessoais, e não baseados em obrigações
institucionais". Aparentemente, esse comportamento poderia ser observado
também em alguns órgãos de controle ambiental, tanto no nível estadual, quanto
no federal.

Sem um controle institucional e administrativo rígido, um agente do MP pode


conduzir um processo com base nas suas visões de mundo, suas condições
ideológicas, o que resulta no absurdo como este agente "público" age, conforme
seus interesses pessoais ou corporativos.
A perspectiva weberiana defende que as instituições devem moldar o
comportamento da burocracia, mas acreditamos que existe um grande
distanciamento de uma burocracia de Weber, onde prevaleçam as ações racionais
e impessoais, com relações formais e de autoridade no interior da organização.
Segundo Weber,

Os princípios de hierarquia de cargos e de diversos níveis de


autoridade implicam um sistema de sobre e subordinação
ferreamente organizado, onde os funcionários superiores
controlam os funcionários inferiores. Este sistema permite
que os governados possam apelar, mediante procedimentos
pré-estabelecidos, a decisão de uma repartição inferior à sua
autoridade superior (p.61).
Ou

A necessidade objetiva do aparelho já existente, com o seu


especial caráter “impessoal”, implica que – contrariamente
ao que ocorre no caso de ordens feudais baseadas na lealdade
pessoal (p.61)
Os corpos colegiados foram um dos primeiros órgãos que
facilitaram a expansão do moderno conceito de “instituições
públicas” no sentido de entidades duradouras e impessoais.
(p.75)

232
Kerche observa que "A experiência de todos os países mostra que todas as
burocracias e agências estatais desejem mais autonomia e mais poder"21. Mas, como
afirma esse mesmo autor, esses desejos nem sempre obtêm resultados positivos.

A autonomia ampliada do MP, aliada a um vício de ordem institucional, permite


que uma parcela do funcionalismo público desfrute de um poder discricionário
sem limites, assegurado por uma estabilidade funcional muito expressiva.

Estudos como o de Goés (2014), voltados para identificar possíveis tendências do


MP frente a temas de relevância pública relacionados a problemas sociais,
demonstram que houve variações expressivas nos níveis de atenção dos
promotores para determinados assuntos. Goés indica que entre os temas elencados
pela população como importantes foram negligenciados. O Programa "O MP e os
Objetivos do Milênio: saúde e educação de qualidade para todos" focalizava 75
cidades, mas entre 2008 e 2013 apenas oito haviam sido visitadas, sendo que a maior
parte das escolas fiscalizadas ficava em Salvador. Já no campo do Meio Ambiente,
Segurança Pública e Saúde, a quantidade de eventos em 2013 se tornou bastante
significativa em comparação aos anos anteriores (2014:36). Conclui o autor que o
tratamento das demandas não tem no MP um tratamento igualitário.

Da mesma forma, o empenho nas ações dos promotores também não apresenta
um tratamento que possa ser considerado equânime. Tomando como experiência
a participação do MP nos dois últimos grandes processos de licenciamento
ambiental da Bahia, Porto Sul, em Ilhéus, e Ponte Salvador-Itaparica, é possível
perceber a grande diferença de tratamento dado a cada um, como veremos a seguir.
Não se trata de esvaziar os mecanismos de participação ou denunciar, como
menciona Luis Felipe Miguel a respeito da democracia, a inutilidade do
estabelecimento de direitos formais, na ausência de condições sociais para seu
usufruto, pois "eles ao menos afirmam normativamente um ideal de equidade (...)
(...) mas,e preciso entender que existem diferentes potenciais de apropriação dos
espaços de participação política, regulados pelas assimetrias sociais" (MIGUEL,

21
Idem nota anterior.

233
2013:14). Esses direitos e espaços, como os Conselhos, favorecem a inclusão dos que
se encontram em posição subalterna.

O Ministério Público e o licenciamento Ambiental


O licenciamento para a implantação do Porto Sul em Ilhéus foi um processo muito
complexo e de longa duração, iniciado em 2009 e concluído em 2015. Inicialmente,
foram desenvolvidos dois processos paralelos de licenciamento: o Terminal
Privado-TUP, da Bahia Mineradora-BAMIN, com Estudo de Impacto Ambiental -
EIA finalizado e audiência pública realizada em 15 de abril de 2010, e o Terminal
Público cujo EIA foi licitado pelo o DERBA. Os terminais tinham locação inicial
prevista na Ponta da Tulha, no município de Ilhéus.
O estudo da BAMIN previa uma localização numa área mais ao norte, enquanto o
Estado ocuparia a parte sul. Porém, antes da finalização do processo do EIA do
DERBA, o IBAMA emitiu uma notificação pós-audiência pública sobre o
licenciamento da BAMIN. O parecer recomendava a utilização da área da Ponta da
Tulha como Unidade de Conservação e sugeria que o empreendimento fosse
realizado em outra área, que a BAMIN tinha como alternativa locacional. Nesta
nova alternativa sugerida pelo IBAMA, o projeto seria todo localizado na orla do
distrito de Aritaguá.
Ao tomar conhecimento deste parecer do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e
dos Recursos Naturais Renováveis-IBAMA rejeitando a área de Ponta da Tulha em
favor da área de Aritaguá, o Governo do Estado/Departamento de Infraestrutura
de Transportes da Bahia-DERBA22, entrou em contato com o IBAMA, suspendendo
o EIA que estava sendo elaborado para o terminal público e passou a estudar a nova
área, uma vez que os impedimentos ambientais apontados pelo IBAMA para a área
de Ponta da Tulha inviabilizava, por consequência, o empreendimento do
Estado/DERBA.
Deste ponto em diante foram realizados diversos entendimentos com o IBAMA,
que recomendou que os processos de licenciamento da BAMIN e do DERBA fossem

22
O Derba foi extinto em 2015 sendo substituído pela Superintendência de Infraestrutura de Transportes
da Bahia (SIT).

234
um só. Assim, deu-se entrada num novo processo, que até então não contou com
a participação do Ministério Público. Somente após a entrega do EIA e a realização
de duas das três audiências públicas (Ilhéus e Itabuna) previstas no novo processo
de licenciamento, o MP (MPE + MPF) passou a interferir, protocolando pareceres
conjuntos. O MP solicitou mais sete audiências (em toda Área de Influência
Indireta - AII) e em seguida mais duas, totalizando nove, além das que estavam
estabelecidas no Edital de Licenciamento.
A equipe responsável pelos estudos de impacto e a BAMIN responderam a todos
os pareceres e notificações, tendo sido assinado, em 03 de outubro de 2013, um
Termo de Ajuste de Conduta (TAC), pelo governo e MP (Federal/Estadual), para
cumprimento de uma série de exigências formuladas por esse último.
As alegações giravam em torno de aspectos vagos ou já apresentados nos estudos,
como a existência de Mata Atlântica na área, poucos estudos e poucas audiências.
Algumas destas alegações continham erros legais ou de avaliação evidentes. No
TAC havia uma ressalva de que o MP não estaria vinculado ao posicionamento do
órgão ambiental (que possui competência legal para o licenciamento) e tampouco
com os conteúdos do EIA, que foi objeto de um edital de licitação e que seguiu
rigorosamente um termo de referência acordado entre o IBAMA e os
empreendedores.
Aos poucos, a situação de cobranças foi aumentando, apesar de o empreendedor
cumprir o TAC, tendo sido realizado em Ilhéus um seminário de três dias, com a
participação e condução pelo MP e alguns agentes sociais da região. Neste
seminário, após terem sido respondidas todas as questões colocadas pelos
representantes das comunidades e entidades presentes e concluídos os trabalhos,
o representante do MP declarou, em conversa com membros da equipe responsável
pela elaboração do Estudo de Impacto Ambiental, que as dúvidas apresentadas
pelos participantes foram devidamente dirimidas, mas que "eu, pessoalmente, sou
contra a criação do Porto Sul".
Em seguida, houve um endurecimento por parte do MP, tendo por base um estudo
de botânica realizado em paralelo por um professor da UESC. Apesar da fragilidade
deste estudo, foram ajuizadas ações (quatro ou cinco) e foram cobradas novas
inspeções e audiências com juiz. Isso acabou fazendo com que os empreendedores

235
e o IBAMA trabalhassem juntos para as respostas. A BAMIN inclusive acabou
contratando o escritório de advocacia de Édis Milaré, um reconhecido jurista em
direito ambiental. Por ultimo, o juiz responsável considerou as ações contra o
DERBA, BAMIN e IBAMA improcedentes.
Um Estudo de Impacto Ambiental apresenta um custo extremamente elevado e
envolve diversos consultores, cuja competência e experiência são avaliadas e
pontuadas no processo de licitação. Ao se analisar as pendências apontadas pelo
MP, que consistiam dos 39 grupos de indagações e 29 grupos de recomendações
que compuseram o documento apresentado pelo MP, a serem sanadas antes da
concessão da Licença Prévia de Localização, percebeu-se que parte considerável
destes questionamentos era equivocada.
Um exemplo foi a solicitação de apoio financeiro por parte dos empreendedores,
para que os municípios do entorno elaborassem seus Planos Diretores. Na
realidade, a exigência de elaboração de Planos Diretores já existia em função dos
Conselhos de Cidades e uma boa parte já se encontrava pronta, como o do
município de Uruçuca, ou em processo de finalização, como era o caso do de
Itacaré. Esses dois municípios foram mencionados no texto do MP como
necessitados de PDDU.
Algumas das notificações do MP tinham caráter voluntarista e particularizado para
complementar a análise do meio sócio econômico. A despeito do estudo de
impacto ter seguido rigorosamente o Termo de Referência que norteia o EIA e ter
analisado mais de 50 indicadores e variáveis consagrados como PIB, IDHM, IDE,
IDF, Índice de Vulnerabilidade Social, natalidade, mortalidade, morbidade,
longevidade, o MP sugeriu que se empregasse também um indicador heterodoxo e
muito pouco usado: o Índice de Felicidade Bruta ou GNH23. (MPF/MPE, 2013:62).
Este índice foi criado por um soberano do Butão em contraposição ao PIB. Sua
construção envolve diversos dados subjetivos, e seu uso só tem sentido quando
relacionado numa série histórica. No entanto, não existem dados a respeito no
Brasil e muito menos no nível micro que corresponderia à Área de Influência do

23
World Hapiness Report

236
empreendimento. A inexistência deste dado para a região inviabilizaria qualquer
resultado prático que se pudesse agregar ao estudo.
O estudo do MP também faz exigências sobre fatos pouco previsíveis, como a
indicação específica das empresas que poderiam ser atraídas para a região, em
função do empreendimento. Da mesma forma, solicitou-se também o
detalhamento das condições e valores e compensações seriam pagas às populações
que viessem a ser reassentadas, sem considerar que as negociações entre as partes
não haviam sido iniciadas, e que qualquer acordo resultaria desta negociação caso
a caso em função de benfeitorias, condições dos ocupantes etc. Outra solicitação
no mínimo estranha foi a de informar, previamente, a origem de determinados
produtos (fertilizantes e etanol). que seriam transportados pelo porto, como se o
fato destes produtos virem do sul ou do norte mudasse seu potencial de impacto
ambiental.
Mas a principal questão levantada pelo MP esteve relacionada aos trechos de Mata
Atlântica em estágio de recuperação (MPF/MPE, 2013:3). Segundo estabelece a
legislação ambiental conhecida como Lei da Mata Atlântica (Lei 11.428/16) no seu
artigo 14, a supressão deste tipo de vegetação primária e secundária no estágio
avançado só pode ocorrer "em caso de utilidade pública, sendo que a vegetação
secundária em estágio médio de regeneração poderá ser suprimida nos casos de
utilidade pública e interesse social, em todos os casos devidamente caracterizados
e motivados em procedimento administrativo próprio, quando inexistir alternativa
técnica e locacional ao empreendimento proposto”. Ora, desde a escolha da área,
na Ponta da Tulha, o Estado declarou o empreendimento como de utilidade
pública, tendo, com base neste decreto, desapropriado a área do 1o projeto do Porto
Sul. O MP, no entanto, exigiu que a declaração de utilidade pública fosse decretada
em nível federal, o que não está explicitado na lei. Não obstante, em 23 de outubro
de 2015, o Governo Federal inclusive já havia declarado a área do Porto Sul como
de utilidade pública.
Ainda com relação à Mata Atlântica, exigia o MP que o empreendimento
compensasse a parte que seria suprimida da mata. Curiosamente, o MP parecia não
ter conhecimento que o estado da Bahia já havia destinado uma área cinco vezes

237
maior do que a que seria utilizada24, muito embora essa proposta do Estado tivesse
sido claramente explicitada nas reuniões e na audiência pública.
O empreendedor realizou uma malha de inspeção de grande porte, que comprovou
que o estudo que fundamentava as notificações do MP estava errado quanto às
dimensões e à importância da mata a ser suprimida.
A 4a ação, empreendida pelo MP, questionou a propriedade da transferência, para
o município de Ilhéus, da responsabilidade do licenciamento para requalificação
da estrada local de Itariri, uma via municipal 2,7 km que serviria como acesso
complementar ao porto. Contudo, o juiz responsável para julgar o pedido, Dr.
Lincoln Pinheiro Costa, negou a liminar em 16 de setembro de 2014, por não ficar
demonstrado que a requalificação da estrada incorreria em riscos potenciais.
(Canário, 2014). Segundo Canário, editor da revista Consultor Jurídico25:

O juiz (...) (...) deu a entender que precisaria de mais


informações além da alegação de danos ambientais
potenciais. Segundo quem esteve presente à reunião da
quinta, os pedidos do MP são genéricos e contraditórios.
Falam de erro e irresponsabilidade do IBAMA e da BAMIN,
mas no outro pedido de liminar tece elogios à conduta dos
processos de estudo ambiental e de licenciamento,
conduzidos tanto pela autarquia quanto pela empresa.

O número de falhas neste processo do MPF/MPE é bastante extenso para ser


detalhado em poucas páginas, mas, por esses equívocos mencionados, tem-se uma
dimensão do empenho do MPF para interromper o processo e suspender a licença
concedida pelo IBAMA, empenho que sugere voluntarismo e só se torna possível
diante do grande poder discricionário dos agentes institucionais envolvidos, que
não são responsabilizados pelos inúmeros equívocos e os prejuízos decorrentes
destes.

A participação e a opinião pública

24
Área da Ponta da Tulha, inicialmente destinada ao Porto Sul, que acabou sendo abandonada.
25
Disponível em <http://www.conjur.com.br/2014-out-18/potencial-briga-judicial-torna-porto-sul-belo-
monte-bahia#author>, Acesso em setembro de 2016.

238
Desde os projetos localizados em Ponta da Tulha, os empreendimentos dividiram
a opinião pública tanto no nível local quanto no nacional, com posicionamentos
de ONGs nacionais e internacionais, com lobby de grandes empresas como a
Natura e a TV Globo e a presença expressiva de moradores do entorno da área do
projeto.
No primeiro projeto, localizado na Ponta da Tulha, a mobilização da população
contra o empreendimento foi expressiva, mas apesar da polêmica inicial e da
presença evidente dos grupos em disputa, não houve nenhuma ação do MPF/MPE.

Foto 1. Grupos a favor e contra ao projeto do Porto Sul- Juerana, Ilheus.. Foto do
autor

Com a transferência do projeto para a área de Aritaguá, houve uma mudança


significativa na condução do processo. Em consonância com o IBAMA, prefeituras
e grupos locais, foram realizadas inúmeras modificações no projeto inicial, que foi
ajustado para um terço do original. Foram realizadas inúmeras reuniões com as
comunidades do entorno, e o número de medidas mitigadoras ou compensadoras
foi extenso e acima da média em processos semelhantes. Com isso, houve um
aumento do apoio por parte da maioria dos segmentos da sociedade civil e da
população das Áreas de Influência, que passaram a se manifestar favoravelmente

239
ao projeto26. Neste momento, o MPF se apresenta sem que haja uma solicitação
formal da sociedade, com o MP assumindo a sua função de fiscal da observância
das leis.
A audiência pública de Ilhéus, que iria ser considerada insuficiente pelo MP, reuniu
mais de duas mil pessoas (recorde estadual em número de participantes em
atividades desta natureza) e se estendeu pela madrugada para que todos os
inscritos colocassem seus pontos de vista. Este evento foi bastante polarizado entre
grupos pró e contra o empreendimento, mas não surgiu nenhum questionamento
expressivo. Em seguida foram realizadas mais duas audiências, conforme previsto
no edital do IBAMA - com menos interesse por parte do público - e não houve um
debate acirrado, uma vez que a maioria dos participantes se mostrou favorável ao
empreendimento. Após as audiências e um aparente consenso entre os discursos
em disputa pela hegemonia, o IBAMA, órgão responsável pelo licenciamento,
concedeu a licença de localização para o empreendimento.
Com a interferência do MP, o empreendedor foi obrigado a promover as nove
audiências adicionais solicitadas. Apenas a que foi realizada em Itacaré contou com
uma oposição mais significativa ao empreendimento, sendo que as demais
ocorreram em clima morno, sem grandes questionamentos. Na última, ocorrida na
cidade de Itabuna, houve uma intervenção de um membro do MP que discorreu
sobre sua posição contrária à instalação do porto, ultrapassando o tempo de três
minutos estabelecido inicialmente entre o MP e os participantes para cada
intervenção. Ao ser alertada sobre o tempo de exposição, esta agente do MP alegou
que falava em nome da sociedade, embora a maioria dos participantes da audiência
tenha se mostrado favorável à concessão do licenciamento.
Em relação a esse ponto é interessante observar que autores como Bourdieu (1983)
e Habermas (2003) destacam a importância da igualdade de condições entre os
participantes para um correta atuação no espaço público. Do mesmo modo Hanna
Arent (2007) ao discutir a participação cita o exemplo da Polis Grega onde todos
eram necessariamente considerados "iguais". Essa autora defende que não cabe nos

26
As Organizações apoiadas pela Empresa Natura e o Green Peace continuaram se posicionando contra o
projeto.

240
processos participativos que ocorrem nos espaços públicos qualquer tipo de
distinção entre governantes e governados ou qualquer outro tipo de
hierarquização
Estes fatos ocorridos na audiência pública de Itacaré indicam uma verticalização
inadequada por parte do MP no processo citado e levanta a questão de como uma
maior responsividade poderia tornar o MP mais afinado com o segmento da
sociedade que se propõe a representar.
No licenciamento da Ponte Salvador-Itaparica, o nível de mobilização de setores
contra e a favor teve um perfil diferente. Na academia, a questão ensejou tanto a
participação de pesquisadores ligados ao Projeto de Pesquisa Pronex27, envolvendo
professores do CRH, FAU/UFBA e UCSAL, quanto a estudiosos independentes28.
De uma forma geral, a questão se mostrou extremamente polarizada. Contudo, a
participação do MP, neste caso, foi bastante discreta fortalecendo a impressão que
a atuação do órgão depende mais de posições pessoais do que de procedimentos
institucionais. A primeira audiência foi suspensa devido à inadequação do seu local
de realização. Depois de diversas manifestações de desagrado com o sistema de
som e com o calor, a população tomou a iniciativa e pediu a suspensão dos
trabalhos. Uma nova audiência foi marcada, na qual a representante do MP
conduziu os trabalhos com o mínimo de intervenção.. Com duas audiências
concluídas, a licença foi concedida sem nenhuma contextação por parte do MP.
Esses dois casos foram escolhidos para demonstrar diferentes formas de condução
do MP em assuntos de extrema relevância para o Estado e para a população. O fato
de o MP por em dúvida conteúdos técnicos, uma vez que a instituição possui
equipe própria especializada, é bastante questionável. Dada a complexidade de um
estudo de impacto de grande porte, é possível por em dúvida se o órgão dispõe da
expertise para dar parecer em campos da ciência tão amplos como Sociologia,
Economia, Biologia (Flora e Fauna terrestres e marinhas), Geologia, Oceanografia,
tendo em conta que existem órgãos específicos para esse fim como o IBAMA e o
Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos - INEMA, no nível estadual, que

27
“Metrópoles na Atualidade Brasileira: a região metropolitana de Salvador”
28
Prof. Paulo Ormindo e Profa. Angela Gordilho

241
analisaram o EIA- Estudo de Impacto Ambiental e não apontaram os erros
elencados pelo MP, nas questões técnicas.

Considerações Finais
Estes dois casos demonstram atuações do MP totalmente diferentes, em situações
aparentemente iguais. Em ambos os casos existia uma polarização entre dois
discursos em busca de legitimação nas audiências públicas e a presença do MP era
esperada pela convocação de algum dos grupos em disputa, o que aparentemente
não aconteceu.
Os processos deliberativos, como os que ocorrem em conselhos ou audiências
públicas, têm entre seus pressupostos uma razoável pluralidade e a “igualdade
procedimental”, sendo que em relação a esta ultima talvez coubesse ao MP o papel
estimular e preservar. No entanto, a conduta demonstrou que representantes do
MP utilizaram de sua autoridade na tentativa de intervir de forma pessoal no
processo, mesmo havendo um consenso básico entre os participantes a partir das
recomendações e programas de compensação pactuados. Essa postura do MP
também põe em dúvida a capacidade de representação dos grupos sociais da
instituição, pois representou uma ruptura entre a vontade dos representantes e
representados, que segundo Luis Felipe Miguel se deve as suas características
sociais distintas e os mecanismos de cooptação presentes nas instituições como o
MP que induzem a geração de um espírito de corpo entre os seus membros
distanciando-os ainda mais dos representados. (MGUEL, 2013:16)
Constatou-se que não houve, durante todo processo, qualquer forma de
responsividade dos agentes do MP para com os grupos que eles poderiam estar
representando, assim como não existe qualquer forma de reparação ou
accountability diante de medidas que representaram prejuízos consideráveis às
partes interessadas do processo de licenciamento ambiental. Embora a
"autorização e o accountability eleitorais não garantam uma relação de
representação" como observa Luiz Felipe Miguel (2017:10), a ausência destes
elementos, de certo modo, elimina qualquer tentativa de se tomar o MP como uma
forma de representação política de um novo tipo.

242
Criar o MP foi uma iniciativa bem intencionada e, parafraseando Renato Lessa,
podemos dizer que toda instituição tende à oligarquização. O caso do MP não
deixa de nos remeter à ideia de "animal artificial" da concepção de Hobbes,
apresentada na introdução do Leviatã. Acontece que, depois de criado, o animal
tem vida própria, se desenvolve e se volta para sua preservação. Com isso, perde-
se a capacidade da instituição assumir um papel complementar de representação
política. E se observarmos o texto de Hobbes, notamos que no caso do MP faltam
elementos como recompensas e castigos, "pelos quais, ligados ao trono da
soberania, todas as juntas e membros são levados a cumprir seu dever" (Hobbes,
2003). Seus membros, como observa Baraúna, (2016: 12) se aproximam da
concepção de Tocqueville de "moderna aristocracia", num sistema político como o
nosso já suficientemente elitizado.
O MP atualmente aparentemente representa um elemento importante no processo
de judicialização da política no Brasil.

Referências
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fronteiras entre Estado e Sociedade. Jundiaí: Paco Editorial, 2015.

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Campinas, Brasil, set. 2006.

REIS, B. Da democracia participativa à pluralidade da representação: breves


notas sobre a odisseia do PT na política e na ciência política brasileira, disponível
em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
69922014000100007> Acesso em janeiro de 2017

244
245
12. CONSELHOS GESTORES E POLÍTICAS PÚBLICAS: O CONSELHO
ESTADUAL DAS CIDADES DA BAHIA E A ELABORAÇÃO DA POLÍTICA
ESTADUAL DE RESÍDUOS SÓLIDOS.

Diego Matheus Oliveira de Menezes

Desde a redemocratização do Brasil os instrumentos participativos têm sido os


principais mecanismos institucionais voltados para a ampliação da participação da
sociedade civil nos processos decisórios. Um destes, o conselho gestor de políticas
públicas, chama atenção por ter como promessa possibilitar um diálogo constante
e permanente entre sociedade civil organizada e o Estado.
Na Bahia foi criado em 2006 o Conselho Estadual das Cidades da Bahia
(ConCidades/Ba). Nestes onze anos de conselho inúmeras políticas públicas foram
formuladas dentro de sua estrutura, como por exemplo a Política Estadual de
Resíduos Sólidos. Torna-se pertinente, portanto, aprofundar as análises acerca da
capacidade deste instrumento participativo de proporcionar uma maior
participação nos processos decisórios para agentes antes excluídos dos mesmos.
Este artigo tem como objetivo apresentar os resultados obtidos a partir de um
estudo de caso sobre Conselho Estadual das Cidades da Bahia (ConCidades/Ba) e
a atuação dos conselheiros representantes da sociedade civil no processo de
elaboração da Política Estadual de Resíduos Sólidos. Nessa perspectiva, a
metodologia adotada está fundamentada na análise documental de atas, relatórios,
documentos oficiais e análise bibliográfica. Para tanto, foram analisadas as 25 atas
das reuniões do Grupo de Trabalho da Política Estadual de Resíduos Sólidos, grupo
este responsável por acompanhar o processo de elaboração da lei. Além destas,
foram analisadas também as atas das reuniões da Câmara Técnica de Saneamento
e reuniões do Pleno, documentos oficias e a minuta do projeto de lei da Política
Estadual de Resíduos Sólidos.
Os estudos nesse campo tem apontado os conselhos como uma das experiências
de participação mais enraizadas em nossa democracia (Gohn, 2000; Tatagiba &
Teixeira, 2007; Lavalle, 2011). Dessa forma, estudos sobre conselhos são essenciais
para compreender as experiências brasileiras de participação.

246
Os conselhos gestores de políticas públicas foram inseridos na conjuntura
brasileira como espaços institucionais de participação da sociedade civil com a
redemocratização do Brasil, a partir das pressões dos movimentos sociais que
garantiram já na Constituição de 88 a exigência constitucional de estruturas
colegiadas em diversos níveis da administração pública (Gohn, 2000). Apesar da
ampliação da discussão em torno das demandas públicas e de uma maior inserção
dos movimentos sociais na agenda política do Estado, com algumas exceções, os
conselhos gestores passaram a cumprir funções meramente fiscalizadoras. A
escassez de recursos e a dependência dos municípios ao estado e ao governo
federal, fizeram com que os conselhos municipais, por exemplo, não consigam
exercer seu papel de intervenção. Ao longo do tempo, pareceres oficiais foram
limitando cada vez mais seu poder deliberativo e vinculando a um caráter
consultivo. A análise das experiências práticas demonstrou a fragilidade da
representatividade e capacidade deliberativa dos conselheiros (Carvalho, 1998;
Teixeira, 2000).

Entretanto, a partir de 2002 houve uma nova onda de criação de conselhos gestores
e a partir disso uma nova tentativa de alargar a democracia brasileira com o auxílio
desse instrumento. Trata-se de uma experiência política de reformulação que passa
pelo fortalecimento da atuação dos conselhos gestores articuladas com as
conferências municipais, estaduais e federais (Avritzer, 2009; Cunha & Pinheiro
2009). A partir delas as demandas da sociedade civil são debatidas com o Estado,
metas são indicadas e os conselheiros são eleitos. Além disso, os conselhos
estaduais passam a ser responsáveis por organizar, estimular e fortalecer os
conselhos municipais. Com isso a academia volta a se debruçar sobre o tema em
questão, analisando se de fato há uma reformulação na estrutura dos mesmos e até
onde seus vícios e insuficiências são mantidos. Repensar o papel dos conselhos e
superar entraves que impediram a plena execução dessa importante inovação
democrática passa a ser tarefa imprescindível, tendo-se em vista essa nova onda de
criação e da tentativa do fortalecimento do seu papel no espaço político nacional.
O debate, portanto, sobre a efetividade deliberativa dos conselhos gestores tem
sido central nas análises sobre o tema (Almeida, 2006; Cunha, 2007). As pesquisas

247
têm indicado que alguns fatores, tais como o desenho institucional, o projeto
político dos governos e o padrão associativo são importantes para explicar as
variações na qualidade do processo participativo (Avritzer 2002; Luchman, 2002).
Como se constitui a ação dos diversos agentes políticos dentro dos conselhos,
também é uma importante pauta. Nessa perspectiva as disputas políticas na
sociedade civil podem ter impacto nos processos ocorridos dentro desses espaços.
Segundo Dagnino, Olvera e Pafinchi (2006) dentro da sociedade civil existe uma
pluralidade de atores sociais organizados a partir de construções identitárias e
projetos políticos muito diferentes e muitas vezes antagônicos. Essa perspectiva se
coloca em oposição ao conceito já arraigado no senso comum de que a sociedade
civil é unitária e virtuosa, em contraposto ao Estado que é corrompido. Para os
autores a sociedade civil seria uma arena de disputa de diversos atores sociais com
perspectivas e projetos políticos dos mais diferentes, dos mais autoritários aos mais
libertários. Da mesma forma, combatem o mito de que o Estado seria homogêneo,
ao defender o conceito de heterogeneidade do Estado. Assim, ao compreender a
disputa pela construção democrática, é importante levar em conta a diversidade
de projetos políticos que perpassam a sociedade civil e o Estado, que segundo os
autores seriam projetos coletivos que contém visões do que deve ser a vida em
sociedade, vinculados com a ação política, orientando as diversas formas que
assume. (Dagnino, Olvera & Panfichi, 2006).
Dentro dessa perspectiva é necessário, portanto, ao estudar os conflitos e os
processos de construção de consenso dentro de espaços participativos como
conselhos gestores se atentar a conjuntura de disputas de projetos políticos que
perpassam os agentes que compõe o conselho. A trajetória e as relações entre os
diversos atores sociais e estatais dentro de um conselho gestor pode ser um
elemento importante que influencie nas construções e condução do processo de
elaboração e acompanhamento de políticas públicas, favorecendo ou dificultando
consensos, dependendo dos projetos políticos compartilhados pelos conselheiros.
Em 2004, com prerrogativa de fiscalizar e deliberar sobre políticas públicas nas
áreas de saneamento, habitação, planejamento territorial e mobilidade urbana, foi
criado pelo Ministério das Cidades o Conselho Nacional das Cidades (ConCidades).
Composto de forma paritária por representantes da sociedade civil e Estado, tem a

248
tiragem dos conselheiros feita a partir da Conferência Nacional das Cidades. Esta,
por sua vez, é um ciclo de debates instituído pelo Ministério das Cidades desde
2003, que tem o intuito de, através do diálogo com a sociedade civil e o Estado,
estabelecer diretrizes para as políticas públicas de desenvolvimento urbano.
Sucede-se ao marco de criação no âmbito nacional do ConCidades um processo de
regionalização de versões municipais e estaduais de conferências e conselhos
gestores na área de desenvolvimento urbano. Nessa perspectiva, a Conferência
Estadual das Cidades do Estado da Bahia foi realizada pela primeira vez em 2006,
deliberando diretrizes para as políticas que seriam realizadas pela Secretaria de
Desenvolvimento Urbano (SEDUR), elegendo delegados para a III Conferencia
Nacional das Cidades e elegendo os conselheiros para o recém-criado Conselho
Estadual das Cidades da Bahia (ConCidades/Ba).
Compõe o ConCidades/Ba nove representantes do Poder Público Estadual, dois do
Poder Público Municipal, dezesseis das entidades de movimentos populares e
sociais, seis de entidades da área empresarial, seis de entidades de área de
trabalhadores, três de organizações não-governamentais e quatro representantes
da área profissional, acadêmica e de pesquisa. Computando ao todo sessenta e um
conselheiros, os representantes são eleitos na Conferência Estadual das Cidades,
cumprindo mandato de 3 anos.
Além dos conselheiros o ConCidades/Ba é composto por uma Secretaria-Executiva.
Esta é formada pela secretária-executiva e por três membros do corpo técnico da
SEDUR. Nenhum deles têm direito a voto, sua função no conselho é organizar,
viabilizar estrutura, redigir as atas e garantir junto com a SEDUR possíveis
demandas de estrutura que surjam.
O conselho é dividido entre quatro câmaras técnicas (saneamento, mobilidade
urbana, habitação e planejamento e gestão territorial urbana). Cada conselheiro
participa de uma dessas câmaras, onde discutirá e elaborará os pontos de pauta
que serão apresentados na reunião do Pleno, espaço máximo de deliberação do
conselho. Nela são apresentados todos os pontos levantados pelas câmaras técnicas
para a discussão e votação. As reuniões são mensais, acontecem na cidade de
Salvador e são divididas em dois dias.

249
Antes de adentramos ao recorte de análise desse artigo, torna-se pertinente
algumas considerações gerais sobre o funcionamento do ConCidades/ba e seu
desenho institucional. Para analisar o desenho institucional de uma instituição
participativa primeiro é importante verificar primeiro as características
relacionadas ao formato do tipo de instituição participativa. No caso estamos
falando de um conselho gestor de políticas públicas. Segundo Tatagiba conselhos
gestores são:

“instituições participativas permanentes, definidas legalmente como parte da


estrutura do Estado, cuja função é incidir sobre políticas públicas em áreas
específicas, produzindo decisões (que algumas vezes podem assumir forma de
norma estatal) e que contam em sua composição com a participação de
representantes do Estado e da sociedade na condição de membros com igual
direito à voz e a voto.” (TATAGIBA, 2007, p.62 e 63 caderno 29).

O ConCidades/ba tem composição paritária. Por ser um conselho gestor de


políticas públicas na área de desenvolvimento urbano tem como prerrogativa
deliberar, fiscalizar e ser consultivo sobre políticas de desenvolvimento urbano.
Algumas características são importantes para verificar que tipo de conselho
estamos tratando.
Formato de IP Conselho Gestor de Políticas Públicas
Prerrogativa Deliberativo, consultivo e fiscalizador
Área Desenvolvimento Urbano
Esfera Estadual
Composição Paritária – Estado e Sociedade Civil
Tabela elaborada pelo autor

A tabela acima explicita as principais características que definem o tipo do


conselho. Estamos tratando portanto de um conselho gestor paritário e
deliberativo que propõe atuar sobre Políticas de Desenvolvimento Urbano na
Bahia. Tendo dito isso, o ConCidades/Ba busca se inserir na estrutura do governo
estadual e por ser paritário, possibilita a atuação da sociedade civil.

250
Definindo o tipo de conselho que estamos abordando é essencial verificar as
características mais específicas do conselho em questão a partir de suas regras
internas. Para isso as separamos em 2 grupos: Regras sobre dinâmica da
participação e regras sobre estrutura. Assim poderemos verificar indícios sobre a)
garantia da ampla participação b) grau de dependência ao poder estatal.

Regras sobre dinâmica:


Espaço de decisão Reunião da Plena
Espaço de discussão Plena, câmaras técnicas e Grupos de Trabalho
Possibilidade de criar Grupos de Trabalho Qualquer participante pode propor, entretanto
tem que ser aprovado na câmara técnica e na
Plena
Espaço de deliberação sobre as regras Reunião da Plena
Possibilidade de perda de vaga 4 faltas consecutivas
Remuneração Não
Ajuda de custo Transporte e alimentação para os conselheiros do
interior
eleição dos conselheiros Conselheiros eleitos na Conferência Estadual de
Desenvolvimento Urbano
Possibilidade de falar Todos conselheiros podem falar. Não
conselheiros só podem falar se houver
autorização
Releição de conselheiros Somente uma reeleição
Tempo de mandato 2 anos
Possibilidade de propor pautas Somente conselheiros
Programas de Capacitação Sim
Tabela elaborada pelo autor

A tabela acima expõe as principais regras e características relacionadas coma


dinâmica da participação. O ConCidades/Ba é pensando a partir de uma dinâmica
de Grupos de Trabalho, Câmaras Técnicas e Reuniões da Plena. Os Gts debatem e
acompanham temais mais específicos como por exemplo os Gts de pós ocupação,
cadastros do Minha Casa Minha Vida e Urbanização. Estes estão relacionados com
uma das câmaras técnicas. As câmaras técnicas organizam a atuação dos GTs e
debatem todos temas relacionados com sua alçada, para posteriormente serem
discutidos e deliberados na Reunião do Plena. Nesse sentido o ConCidades/Ba é

251
composto por um grande número de espaços, possibilitando uma grande
permeabilidade de temas.
Os conselheiros podem repetir o mandato de 2 anos somente uma vez, garantindo
alguma rotatividade. Estes, por não receberem remuneração do ConCidades/ba
não tem qualquer vínculo financeiro com a entidade, evitando dependência.
A dinâmica de discussão e proposição do ConCidades/Ba é exclusiva dos
conselheiros, podendo os não conselheiros participar somente sob aprovação da
Plena. A participação de não conselheiros acontece quando é necessário alguma
explanação ou apresentação de órgãos externos ao conselho.
A partir das regras sobre a dinâmica é possível verificar que o ConCidades/Ba tem
as condições mínimas necessárias para garantir a participação de seus membros.
Rotatividade, garantia das condições mínimas para presença, não vinculação
salarial, diversidade de espaços para a participação, são bons indicativos.
Além da dinâmica, também analisamos as regras sobre a estrutura:

Recursos Recursos oriundos da SEDUR

Presidência do conselho Automaticamente o presidente é o secretário da


SEDUR

Secretaria-Executiva secretaria-executiva formada por membros da


SEDUR

Direção das câmaras técnicas Automaticamente o respectivo superintendente.

Estrutura de comunicação Blog mantido pela pasta de comunicação da


SEDUR

Estrutura fixa Sala de reuniões do Conselho dentro da SEDUR

Tabela elaborada pelo autor

Em relação à estrutura, as regras desenham um conselho dependente da SEDUR.


Não só a presidência e a secretaria-executiva e a direção das câmaras técnicas ficam
por cargo da SEDUR, quanto toda estrutura mínima é garantida por essa secretaria.
Nesse sentido as regras indicam um conselho consideravelmente dependente da
estrutura da SEDUR. Pelas regras que constroem o lugar institucional ocupado
pelo ConCidades/ba, este acaba por se consolidar como um órgão da secretaria em

252
questão. Com isso, se por um lado as regras do conselho o dotam de potencial para
garantir ampla participação de seus membros, por outro, indicam uma profunda
dependência da estrutura da SEDUR. Tendo em vista os elementos supracitados
acerca do desenho institucional do conselho, aprofundaremos nossa análise na
política pública referente ao recorte proposto por esse artigo.

A Política Estadual de Resíduos Sólidos

A Política Estadual de Resíduos Sólidos (PERS) começou a ser elaborada em 2009


a partir da Secretaria de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia – SEDUR,
por meio do Grupo de Trabalho (GT) Persólidos, instituídos em agosto de 2009
pela Resolução 009/2009 do Conselho Estadual das Cidades da Bahia
(ConCidades/Ba).
Vinculada à Política Nacional de Resíduo Sólidos (PNRS), a PERS é um anteprojeto
de lei estadual que visa nortear todas as ações associadas com a gestão de resíduos
sólidos na Bahia. Sendo assim, trata-se de uma política importante para o Estado e
para a sociedade civil, principalmente os relacionados à causa ambiental,
movimentos de catadores e saneamento. A PERS, portanto, é a lei que cria dentro
do estado da Bahia um marco regulatório e todas as diretrizes, objetivos e
instrumentos para a gestão dos resíduos sólidos.
Formulada pela SEDUR a partir do Conselho Estadual das Cidades da Bahia tem
como instrumento para sua elaboração o GT Persólidos. Este, foi um grupo de
trabalho composto por todos os membros da Câmara Técnica de Saneamento do
ConCidades, de dois representantes das demais Câmaras Técnicas (Habitação,
Mobilidade e Planejamento Territorial Urbano) e outros representantes da
sociedade civil e Estado, sendo responsável por construir o processo de elaboração
da PERS, sempre sob a orientação das deliberações do ConCidades/Ba.
Desde a criação do GT PerSólidos, em todas as 25 reuniões houve representantes
dos movimentos sociais, sobretudo de organizações de catadores e da área de
saneamento. Posteriormente, após todo o processo de construção da minuta final,
a Política Estadual de Resíduos Sólidos teve que ser aprovada na câmara de
saneamento e na reunião plena do ConCidades/BA.

253
A minuta inicial do anteprojeto teve como maior colaborador o Estado, a partir de
consultoria contratada pela Secretaria de Desenvolvimento Urbano e seguindo as
orientações da Política Nacional de Resíduos Sólidos. Entretanto, com o passar das
reuniões, os movimentos sociais passaram a ser os agentes mais ativos do GT. Com
o término do processo de construção da minuta e a aprovação da mesma no
ConCidades/BA, o PERS entrou em processo de consulta pública. O maior número
de contribuições foi enviado por organizações de catadores (Cooperativas,
MNCR/Ba, Fórum Lixo e Cidadania/Ba), em um total de 48, superando até mesmo
as enviadas por órgãos públicos. Foram ao todo 148 contribuições que foram
avaliadas por uma comissão especial com a participação de conselheiros
representantes dos movimentos sociais.
O sistema de construção da PERS, a partir de um GT que apresentava seus
encaminhamentos para o ConCidades se mostrou eficiente no diálogo com os
conselheiros. Criar um GT e envolver os representantes dos movimentos sociais no
processo de construção da lei possibilitou que a PERS fosse construída a partir do
diálogo constante com os conselheiros envolvidos. Reflexo disso é a participação
constante dos movimentos sociais nos espaços do conselho. Entretanto, nota-se na
análise das atas que as decisões ocorridas nas 25 reunião foram consensuais.
Decerto, apesar da participação dos conselheiros em todos os espaços de
construção da política pública, desde o GT, até a comissão que analisou as
propostas oriundas da consulta pública fortalecer o processo de envolvimento dos
movimentos sociais com a lei e beneficiar assim a identificação dos representantes
com aquilo que está sendo construído, não explica tal resultado. A dinâmica
construída em conjunto com os representantes da sociedade civil organizada de
debater as pautas no GT extensivamente, abrir rodadas de consulta pública,
debater as proposições em conjunto, aumentou as possibilidades dos conselheiros
chegarem ao consenso, entretanto, não é suficiente para explicá-lo. Nem mesmo o
grande número de reuniões que resultaram em mais de 1 ano de construção da
PERS explicam tal fenômeno.
Torna-se pertinente, portanto, verificar a “qualidade” deste consenso. Ou seja, se
as demandas dos diversos atores foram atendidas ou se foi um consenso fictício,
onde nenhuma das pautas levantadas pelos representantes foi contemplada. Com

254
esse intuito, fizemos uma minuciosa análise das atas na perspectiva de verificar a
dinâmica das discussões ocorridas no espaço de construção da referida política.
Nota-se que em quase todo processo de construção a principal função do GT do
PERS foi de adaptar a Política de Resíduos Sólidos Nacional para a realidade baiana,
não havendo assim, na maioria das reuniões, nenhuma grande pauta apresentada
pelos representantes dos movimentos sociais. Todavia, na reunião de 08/04/2010
(11a reunião) foi apresentado pelos conselheiros representantes dos movimentos
sociais a necessidade de aprofundar o debate com os movimentos de catadores.
Como consequência, na reunião do dia 10/04/2010 (13a reunião) foi realizado um
seminário com cooperativas de catadores.
Além disso, as pautas relacionadas aos catadores foram fortalecidas pelo
Movimento Nacional de Catadores na consulta pública. Essa articulação dos
representantes dos movimentos sociais com as cooperativas e movimentos de
catadores possibilitaram a conquista de duas pautas que não eram previstas até
então na minuta do PERS: condicionar a erradicação dos lixões com a inclusão
social e emancipação dos catadores que dependiam do mesmo. Assim, a
incineração só poderá ser utilizado depois de um analisa técnica das condições
ambientais e sociais que este método poderá causar nas cooperativas de catadores
que utilizariam desses materiais. A inclusão das demandas de organizações de
catadores e inserção da emancipação destes como uma diretriz relevante para a
PERS, não estava previsto pela SEDUR. Entretanto, ao apresentar essas pautas e
pressionar os conselheiros representantes do Estado, estas foram aprovadas por
consenso.
Nesse sentido, um dos principais argumentos desse artigo é que os conselhos
gestores podem funcionar como janela de oportunidade para a inserção de pautas
no processo de formulação de políticas públicas, sobretudo, a partir da dinâmica
incremental ocorrida na adaptação de políticas nacionais em políticas estaduais ou
municipais. Segundo Lindblom, “o incrementalismo consiste em mudança política
por meio de pequenos passos” (LINDBLOM, 2013). Decerto, o processo de
adaptação de uma política federal para a estadual, no caso estudado, se assemelhou
ao o que o autor denomina de “sucessivas comparações limitadas” (LINDBLOM,

255
2013), no qual uma política ou medida é construída a partir da comparação
sucessiva de pontos de políticas anteriores, executadas pela burocracia.
O processo de criação da Política Estadual de Resíduos Sólidos ocorreu com a
reformulação de uma política anterior a partir da sucessiva comparação com
pontos já testados em políticas públicas na área (sobretudo a Política Nacional de
Resíduos Sólidos) e da necessidade de adequação em normas já previamente
definidas, limitando assim a potencialidade de vigorosas reformulações. Todavia,
o processo de adaptação a nível estadual também possibilita alterações de
diretrizes ou a inclusão de novos artigos, mesmo que pontuais. Portanto, é a partir
da disputa por mudanças incrementais que a dinâmica de interação e negociação
entre os atores se concentra.
O segundo elemento do nosso argumento está relacionado com a potência de um
conselho gestor em possibilitar a inserção de certos atores no processo de
negociação na perspectiva incremental. O ConCidades/Ba ao estabelecer que a
PERS seria formulada a partir de espaços internos, com a participação de diversos
conselheiros representantes da sociedade civil construiu arena institucional
favorável para o envolvimento de movimentos sociais na disputa dos “pequenos
passos” que a lei estadual daria em relação a nacional.
A formulação de uma política a partir da dinâmica conselheirística opera como
janela de oportunidade para o que denominamos de “participação incremental”.
Nesta, apesar da limitada capacidade de construções de “marcos zeros” ou
restruturações imediatas em leis, o processo participativo possibilitaria a inserção
de atores com reduzido acesso a atores da burocracia, a participar e influenciar na
reformulação de políticas públicas de maneira incremental.
O terceiro ponto do nosso argumento dialoga com a discussão levantada por
Sartori sobre a capacidade de em determinados espaços atores terem maior
estímulo a “jogos de soma positiva” em vez de “jogos de soma zero” (Sartori, 1994).
No caso da PERS, a limitação da disputa em pontos específicos, o número elevado
de reuniões e a possibilidade da política ser rejeitada no Pleno, potencializa o
estímulo à negociações consensuais, tendo em vista que é mais proveitoso para os
atores garantir alguma conquista do que arriscar um jogo de “tudo ou nada”. Para
os atores estatais esse processo resulta em maior segurança na aprovação da

256
política, enquanto para atores da sociedade civil possibilita a inserção de diretrizes,
artigos e pontos no anteprojeto de lei.
A construção da Política Estadual dos Resíduos Sólidos se deu portanto, a partir da
construção conjunta com os representantes da sociedade civil, envolvendo-os no
processo de condução e elaboração da lei. O ConCidades/ Ba e mais
especificamente o GT Persólidos tem conseguido manter uma cultura de diálogo e
construção conjunta, respeitando a capacidade de tomada de decisão do conselho
gestor.
O ConCidades/ Ba conseguiu ter real capacidade de ampliação da participação na
Política Estadual de Resíduos Sólidos por causa do bom funcionamento dessa
dinâmica de construção conjunta entre os conselheiros representantes da
sociedade civil e do Estado. A capacidade dos conselheiros, inclusive dos
representantes de movimentos sociais, de participar do processo de deliberação
acerca dos métodos que seriam utilizados na condução de todo processo de
elaboração da PERS, também contribuiu para a garantia de uma dinâmica
participativa, onde os movimentos sociais (representados ou não no conselho)
tivessem a possibilidade real de interferir na Política Estadual de Resíduos Sólidos.
A ampla participação, principalmente dos movimentos de catadores, nas consultas
públicas demonstra o êxito do Concidades/Ba de mobilizar, inclusive, movimentos
sociais que não tem representação no conselho. Os conselheiros tiveram a
capacidade de garantir que as demandas dos movimentos de catadores fossem
apresentadas e incluídas na minuta da PERS, a partir de um seminário dentro do
GT. Esta, portanto, foi a maior conquista do GT da PERS: possibilitar a condução
conjunta da elaboração da PERS entre os conselheiros representantes de diversos
setores da sociedade e do Estado, garantindo assim, a participação e inclusão de
demandas tanto dos movimentos sociais representados no conselho, quanto de
movimentos sociais sem representantes.
Além do exposto, a dinâmica de disputa em torno de distintos projetos políticos
na Bahia pode ter fortalecido a capacidade do conselho de construção de
consensos. A esse respeito, Dagnino, Olvera e Panfichi (2006) utilizam o termo
projeto político para designar “os conjuntos de crenças, interesses, concepções de
mundo e representações do que deve ser a vida em sociedade, que orientam a ação

257
política dos diferentes sujeitos” (DAGNINO, OLVERA e PANFICHI 2006, p. 38).
Os projetos políticos são projetos coletivos que contém visões do que deve ser a
vida em sociedade, vinculados com a ação política e orientando as diversas formas
que assume (DAGNINO, OLVERA e PANFICHI, 2006). Os autores defendem a
existência de três projetos políticos mais gerais: o projeto político autoritário
relacionado com a repressão e autoritarismo; o projeto neoliberal que prega o
estado mínimo e a livre iniciativa do mercado; o projeto democrático-participativo
construído a partir dos novos atores políticos da esquerda na redemocratização do
Brasil e relacionado com as lutas da democratização dos espaços públicos e
igualdade social. No contexto histórico baiano o projeto neoliberal era
representado pelo PFL, dentro da égide do carlismo. A oposição foi, com a
liderança do Partido dos Trabalhadores e com a inserção nos movimentos sociais
mais representativos do estado, polarizando contra o projeto neoliberal do
carlismo e se organizando a partir do projeto democrático participativo. Inúmeros
movimentos sociais da área de habitação e saneamento construíram forte oposição
ao governo carlista. O Sindicato de trabalhadores de Águas e Esgoto (SINDAE),
que tem representante no ConCidades, por exemplo, fazia forte oposição ao
projeto carlista de privatização a EMBASA.
A polarização e a disputa entre essas frentes desembocaram na vitória do Partido
dos Trabalhadores para governador da Bahia. Assim, o projeto que estamos
chamando de democrático participativo tem ressonância tanto na sociedade civil
quanto no Estado. Os representantes dos movimentos sociais presentes no
ConCidades BA tem referência nesse projeto relacionado com a democratização
dos espaços públicos e políticas públicas inclusivas. O Movimento Nacional de
Luta por Moradia, a União Nacional por Moradia Popular na Bahia, a Central dos
Movimentos Populares e o Sindae, por exemplo, são movimentos sociais que
tiveram atuação destacada na construção desse projeto. Da mesma maneira,
representantes do Estado têm referência nesse processo de enfrentamento ao
carlismo na Bahia.
Historicamente, diversos movimentos sociais da Bahia, juntamente com grupos
políticos que alçaram o poder, fizeram uma dura oposição ao governo carlista.

258
Avritzer discorrendo sobre o contexto participativo da Bahia no período carlista
afirma:

“devido à dominação política de longo prazo exercida pelo


grupo ligado a Antonio Carlos Margalhães, a Bahia acabou se
tornando um estado com uma administração
antiparticipativa. Houve resistência por parte tanto da
prefeitura de Salvador quanto do governo do estado em
implementar efetivamente políticas participativa, (...) A
participação no caso da Bahia, foi se dando em cidades de
oposição ao carlismo” (AVRITZER, 2007, p. 20 – 21).

Nota-se portanto, que segundo o autor, a luta anti-carlista na Bahia também tinha
como referência a luta pela democracia participativa. Diversos movimentos se
organizaram em torno desse processo de derrota do carlismo. Nesse sentido, o
diálogo entre esses movimentos ou grupos, se dá, portanto, há muito tempo antes
da criação do ConCidades/Ba.
Todavia, em um contexto adverso o GT e o ConCidades/Ba não teriam garantias
de conseguir alcançar os resultados positivos obtidos. É na conjuntura e na
construção do mesmo projeto político que está o principal sustento dos avanços
democráticos obtidos no ConCidades/Ba que possibilitaram a disputa no processo
incremental supracitado. A estrutura, portanto, que mantém a participação do
conselho é frágil, no sentido em que os avanços em sua construção na esfera do GT
PerSólidos e o ConCidades/Ba são vulneráveis à conjuntura. Apesar da garantia do
diálogo, o mesmo se dá mais por causa de um contexto favorável do que da
expressão de uma cultura democrática e participativa.
O ConCidades/Ba apesar ter se apresentado como um instrumento importante
para uma maior participação da sociedade civil nas políticas públicas, como a
Política Estadual de Resíduos Sólidos demonstra uma grande dependência do
poder público e da conjuntura política, como já citado. Contudo, o envolvimento
dos conselheiros representantes da sociedade civil na estrutura do GT garantiu
uma maior participação e controle social.

259
A opção de construir todo processo de elaboração dessa política pública a partir do
ConCidades e de um GT com representantes dos movimentos se mostrou acertada.
Envolver os conselheiros desde o início, construindo em conjunto os mecanismos
que seriam responsáveis pela elaboração da lei, garantiu a efetiva participação dos
movimentos sociais na PERS. Assim, construindo inúmeras reuniões para debater
e elaborar a PERS, repassando e discutindo os avanços não somente no GT, mas
também nas reuniões da câmara técnica de saneamento e do ConCidades/Ba e
possibilitando a participação dos conselheiros na condução das consultas públicas
garantiu tanto que os movimentos sociais tivessem a capacidade de apresentar e
debater suas demandas com profundidade, quanto que as deliberações
provenientes das reuniões fossem respeitadas. Entretanto, apesar de contribuir
para o fortalecimento da prática democrática na coisa pública, o Conselho Estadual
das Cidades da Bahia apresenta alguns limites e fragilidades consideráveis.
Apesar dos limites apresentados, o fato desse conselho ter a capacidade de elaborar
políticas públicas expressivas possibilita não somente resultados diretos na política
pública em questão, mas também tem o potencial de proporcionar um maior e
gradual aprofundamento da participação na cultura política relacionada a este
conselho em questão. O acúmulo de experiências participativas pode possibilitar a
construção de um contexto favorável para aprofundar as experiências já existentes.

Referências

ALMEIDA, D.C.R. Conselhos Municipais de Saúde e Educação: distintos


padrões de participação política. Dissertação de Mestrado em Ciência Política,
Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro 2006.

AVRITZER, L. Teoria Democrática, Esfera Pública e Participação Local in:


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262
263
13. DEBATES SOBRE PARTICIPAÇÃO E POLÍTICAS PÚBLICAS NO
BRASIL E NA VENEZUELA

Alessandra Maia Terra de Faria


Mayra Goulart Silva

Introdução
O objeto deste artigo é a perspectiva do espaço e sua intersecção com as dinâmicas
de transformação do poder, através da comparação entre os casos de Venezuela e
Brasil. Conforme a hipótese que orienta este trabalho, na Venezuela, a ideia de
participação traduziu-se diretamente no empoderamento do cidadão comum, sem
mediação de instâncias representativas, originando um processo que levará a uma
radical reconfiguração territorial, tendo em vista a implementação de um Estado
Comunal. No Brasil, por sua vez, o mesmo ímpeto includente e participativo fora
conciliado à ênfase nas estruturas de representação eleitoral e funcional, dando
origem a diferentes instituições participativas relacionadas à implementação de
políticas públicas, intimamente ligadas à organização da vida nas cidades, como é
o caso dos Conselhos de Saúde, Educação ou Assistência Social. Deste modo,
recorrendo ao enquadramento teórico oferecido pelo conceito de "fricção do
espaço" (Harvey, 2005), buscar-se-á contrastar as formas pelas quais o ímpeto
constituinte de transformar as relações de poder se enraizou espacialmente,
engendrando novas dinâmicas e espaços para a participação popular.
A intensa atividade política na cidade antiga foi o ponto de partida para a reflexão
acerca do papel da participação no Estado moderno, ainda que de forma
antagônica, na qual a democracia direta ateniense é apresentada como nêmesis da
boa ordem em um governo representativo. A oposição entre liberdade positiva e
negativa parecia desacreditar a centralidade da participação.29 A perspectiva de

29
“O objetivo dos antigos era a partilha do poder social entre todos os cidadãos de uma mesma pátria. Era
isso o que eles denominavam liberdade. O objetivo dos modernos seria a segurança dos privilégios
privados; e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas instituições a esses privilégios”.
CONSTANT, 1985, p. 4. Em tese, com “menos tempo” para participar, o cidadão moderno, segundo
Constant, deveria vigiar os representantes.

264
drástica revisão da ideia de participação, (antes entendida como a maior possível,
de todo o povo no governo), acrescida da preocupação com a estabilidade do
sistema político nortearam ponderações dos teóricos modernos da democracia
(Pateman, 1970). A participação pode ser situada no centro da contestação à
democracia por parte da teoria elitista e sua refutação faz parte de argumentações
que compreendem desde a crítica da democracia clássica até a necessidade de
estabilidade dos modernos sistemas políticos.
Segundo observa Robert Dahl, a união entre democracia e representação é a marca
do estado democrático moderno. Complexas instituições políticas tomaram o lugar
da Assembleia soberana antiga e foram essas mesmas instituições que aumentaram
a distância entre a população e as decisões políticas importantes.30 O tamanho dos
estados modernos e sua complexidade institucional justificaram a representação
política enquanto organização da participação. Para Dahl, o arranjo representativo
foi o resultado de uma ampliação da democracia, onde “a teoria e a prática da
democracia tiveram que romper os limites da pólis”31. Esse processo recente de
análise sobre interações possíveis, mas também tensões entre participação e
representação faz parte deste artigo na medida em que se propõe o
acompanhamento dos casos brasileiro e venezuelano. Sabe-se que já foi objeto de
discussão teórica o antagonismo entre democracia representativa e democracia
direta, o que culmina na oposição entre os termos participação e representação.
Por outro lado, o objetivo do trabalho é analisar como a gradação de tal
antagonismo em direção ao seu arrefecimento se estrutura, tendo em vista que a
metodologia adotada não será uma história dos conceitos insulada na teoria, mas
uma abordagem comparativa que almeja alcançar como tais conceitos são
significados e ressignificados em contextos políticos específicos.
Dessa maneira, a primeira e a segunda seção tratarão, respectivamente, da
dinâmica histórica recente da democracia no Brasil e na Venezuela; ambas as
análises dedicadas à trajetória delineada pelo conceito de participação no século
XX. O propósito de tal divisão é suscitar uma comparação que ressalte as diferenças
entre ambos os percursos, de modo a demonstrar a hipótese que estrutura nosso

30
DAHL, 2012, p. 29, 45.
31
Ibid, p. 34.

265
trabalho. Esta, por sua vez, diz respeito à impertinência de associações que,
mediante uma aproximação dos dois casos, visam criticar os mecanismos
participativos adotados (ou propostos) no Brasil, tendo em vista uma possível
ameaça aos parâmetros da democracia representativa, como de fato ocorre na
conjuntura atual venezuelana. Tal associação, por fim, será, exemplificada em
breves comentários acerca da repercussão da proposta de modificação de alguns
mecanismos participativos (dos conselhos) delineada no decreto 8.243, de março
de 2014, no Brasil, a nível de conclusão a partir dos argumentos apresentados.

A participação e a democracia no Brasil


Quando nos voltamos ao caso brasileiro, observa-se que o marco da discussão
sobre a participação se deu em concomitância com a representação política, se
tomado o passado recente. Nesse sentido, é possível afirmar que a discussão sobre
a participação acompanhou em alguma medida a retomada da democracia no país,
a partir dos anos 1970. Segundo observa Claudia Faria (2010) tal processo ocorreu
de forma ancorada por um conjunto de crenças que vinculavam seu fortalecimento
à consolidação das instâncias tradicionais de participação (e que cotejavam a
representação), entre elas o voto, as eleições diretas e os partidos políticos; bem
como uma nova perspectiva, a ampliação de canais participativos que pudessem
fortalecer os laços societários e estreitar a relação entre a sociedade e a formulação
e controle das decisões coletivas.
Se observado o contexto prévio ao momento constituinte no Brasil, é possível
ilustrar como a dinâmica de movimentação social por maior participação na
política trouxe a equação entre representação e participação para a pauta do
próprio processo de discussão constituinte, que acabou por contar com
significativa participação popular. Não que isso estivesse dado desde o primeiro
momento. A participação social foi consolidada enquanto um princípio
constitucional, mas ela aparece ao lado da representação. É significativo considerar
que a trajetória de sua entrada nas pautas de discussão constituinte, se deve em
grande medida à presença de pressão popular, decorrente de mobilização social
que atravessou o país, e que foi acolhida e debatida nos trâmites dos representantes

266
no decorrer da Assembleia Constituinte, cujos contornos foram parlamentares32.
Nesse período dos últimos trinta anos, é possível destacar ao menos três momentos
diferentes, no tocante à participação e sua interface com a representação no Brasil.
Esse esforço de identificação dos momentos se faz útil na medida em que
consideramos a participação contemporânea, segundo um determinado feixe de
preocupações, como observado por Adrian Lavalle e Ernesto Isunza (2011). A
participação seria a um só tempo “categoria nativa da prática política de atores
sociais, categoria teórica da teoria democrática, e procedimento institucionalizado
com funções delimitadas por leis e disposições regimentais” (Lavalle & Isunza,
2011:100).
Portanto, ao elencar três ênfases e momentos no tocante à participação, o que
aparece muitas vezes na literatura sobre o tema, sugere-se que eles estão
contiguamente relacionados à forma de sua institucionalização, à dimensão
territorial que adquirem no país, bem como às expectativas em relação aos
resultados da própria participação. Longe de considerar que os termos propostos
exaurem as questões a esse respeito, apresentá-los assim visa facilitar o seu estudo
e os critérios a ressaltar.
Num primeiro momento (1) a marca forte era a polarização com a representação,
uma aposta na autonomia dos atores que se traduzia principalmente na oposição
ao regime militar, que vai dos anos 1970 a 1988. Esse foi talvez o momento que mais
aproximou o Brasil do caso venezuelano, mas dentro do próprio processo
constituinte no país é possível destacar como a ideia de participação por aqui se
amalgamou à representação. Um dos exemplos contundentes a esse respeito foi o
movimento Diretas Já (Bertoncelo, 2009): se desejavam eleições diretas e com
ampla participação popular, mas para ensejar o sistema representativo e os poderes
executivos e legislativos no âmbito da federação. Em seguida o momento (2) de
institucionalização dos arranjos participativos, e a perspectiva de controle social
do Estado por parte da sociedade, ao longo dos anos 90; aonde a participação
ocorre no esteio de elaboração das políticas públicas. Nesse momento ela toma
feições que acordam com princípios constitucionais de representação funcional,

32
Ver PILATTI, 2008; CITTADINO, 2009; FARIA, A., 2014.

267
paritária e estando previsto o controle social para temas setoriais, que estarão, mais
uma vez organizados acompanhando as três esferas da representação no plano
federativo: municipal, estadual e nacional. O momento (3) de autocrítica dos
arranjos participativos, seria aquele que começa a partir dos anos 2000, e culmina
com a proposta recente de decreto presidencial n. 8.243 de maio de 2014, que visava
oficializar a Política Nacional de Participação Social (PNPS) e o Sistema Nacional
de Participação Social (SNPS).
Em relação ao primeiro momento, ressalta-se que poucas associações existiam no
Brasil antes da década de 1970.33 Isso porque, no Brasil, a passagem para o mundo
moderno e a internalização consciente dos processos de modernização tiveram,
como pré-requisito institucional, a afirmação da prevalência da comunidade sobre
o indivíduo liberal, na forma decidida pela Revolução de 1930 até meados de 1964.34
Assim, enquanto no período de 1930 a 1964 pairava um consenso de que o público
deveria ter primazia em relação ao privado, durante a ditadura militar a lógica se
inverte, e ganharam espaço práticas sociais centradas no puro interesse
econômico. O autoritarismo posterior ao golpe de 1964 e o período de ditadura
militar se modificou com a progressiva incorporação de parte significativa da
população pobre do país junto a associações populares urbanas na luta por
direitos.35 Essa situação se intensifica no limiar dos anos 80, culminando com a
diminuição do domínio militar na política, momento de negociação da transição
política. Nesse contexto, a participação era percebida como parte de um
movimento espontaneísta, ligado à perspectiva de autonomia. As interpretações a
seu respeito consideravam que a participação promoveria uma mudança na cultura
política. E as críticas já presentes, indicavam que o caminho para a democracia no
país não poderia se desvincular da perspectiva da representação para atingir seus
objetivos.
O problema à época da Constituinte não era simples, como foi destacado por Fabio
Wanderley Reis (1986) no tocante a relação entre social e político. Se a democracia

33
CONNIFF, 1975, descreveu como a tendência a formar associações voluntárias para ajuda mútua e
proteção que atingiu o médio proletariado e organizou grupos de interesse em torno do trabalho nos anos
30, foi desarticulada com o Estado Novo (1937 -1945), o que perduraria até o início dos anos 70. Sobre a
ausência de participação civil e política da população pobre no Brasil nos anos 70 ver KOWARICK, 1980.
34
WERNECK VIANNA, CARVALHO, 2004.
35
LAMOUNIER, WEFFORT, BENEVIDES, 1981; SANTOS,1993; CARVALHO, 2001.

268
social era fundamental para o estabelecimento de uma democracia política, Reis
destacava que, para haver eficácia seriam necessárias alterações político-
organizacionais que pudessem ser bem sucedidas do ponto de vista institucional
no sentido de lançar raízes democráticas no contexto social, mantendo a
perspectiva da representação. Como ver-se-á na próxima seção, no Brasil, o tom se
diferenciava daquele observado no caso venezuelano, na medida em que a recusa
ao corporativismo ocorreu com empenho e fortalecimento das instituições da
democracia representativa, e o desenvolvimento da perspectiva participativa
instituiu nexos fecundos entre essas duas, bem como a perspectiva de regulação
democrática alicerçada na presença de associações e movimentos sociais como
partícipes da deliberação de políticas públicas a partir de 1988.
Segundo Lessa (2008), é possível destacar uma teoria da agência democrática na
nova Constituição. O sentido original de autogoverno direto teria sido
moderadamente recuperado a partir da adoção de institutos de ação direta. Mesmo
assim, observa: “A subordinação liberal da ideia de democracia ao esquema da
representação – para empregar a expressão de Madison – é, evidentemente,
mantida".36 Nela, o cidadão democrático seria um sujeito constituído por direitos
que, para serem plenos, dependerão de sua atenção e energia políticas e cognitivas
para pôr em movimento os mecanismos propostos de jurisdição constitucional.
Apesar disso, o autor é crítico das novas possibilidades de representação funcional
dos operadores do sistema de justiça. Seu ponto é que eles desestabilizariam o
equilíbrio de poderes, deixando à margem a representação partidária.
Nesse sentido, a Constituição de 1988 abriu o caminho para importantes
modificações no país, incluindo o acesso a direitos sociais e a criação de novas
estruturas participativas, dentro da própria estrutura do poder executivo. Cardoso
(2004) observa como novas formas de participação levaram os movimentos a se
relacionarem mais diretamente com as agências públicas. Esse processo caracteriza
o segundo momento da participação no Brasil, momento o qual Lavalle e Isunza
(2011) consideram que a participação teria sofrido um deslocamento em seu uso,
em virtude da diminuição da polarização entre participação e representação.

36
LESSA, 2008, p. 363-395.

269
Avritzer (2009) considera que o Brasil passou de um país conhecido pelos baixos
níveis de participação política a um país conhecido pelas suas instituições
participativas. Por outro lado, sabe-se que ao longo do tempo algumas concepções
em torno da participação tiveram maior atenção dos legisladores e operadores do
direito do que outras. Tais preferências, é possível afirmar, se desdobraram em
instituições participativas concretas. Pouco foram utilizadas, por exemplo,
possibilidades de participação previstas na CF como plebiscitos, referendos e
iniciativas populares de lei.
A perspectiva em que a participação teve maior desdobramento diz respeito, em
especial, aos conselhos e conferências por políticas públicas e por sujeitos de
direitos, como no caso de mulheres, negros, indígenas, cadeirantes, idosos dentre
outros. A literatura destaca, no caso brasileiro, uma forte trajetória por políticas
públicas específicas, como é o caso da Saúde, da Educação, e da Assistência social.
Se por um lado há no Brasil uma forte trajetória por políticas públicas específicas,
segundo pesquisa recente de Teixeira (2013) sua ênfase tem sido em estruturar
estas políticas a partir do direito, mesmo que muitas vezes de forma fragmentada,
e sem as devidas interconexões entre elas. A autora relembra como a lógica do
“direito a ter direitos” nos moldes de Hannah Arendt (2000) conecta essa
perspectiva com a forma de atuação dos movimentos sociais brasileiros. Avritzer
(2009) também observa que o perfil de enfoque em políticas públicas do Brasil é
um diferencial em relação a outros países, e com seus vínculos com o sistema
político elegendo políticos que representam ou vocalizam suas lutas.
A perspectiva de espaços participativos – conselhos de políticas públicas,
orçamentos participativos e conferências – surgiu no Brasil exatamente do
argumento de que a política municipal passava longe das demandas da população.
Era preciso, se pensada uma política pública consoante às expectativas da
população, que canais participativos fossem postos em prática. Do ponto de vista
da dinâmica territorial, é possível reforçar que o fato de haver a conjugação entre
participação e representação, teve como impacto a criação de estruturas
participativas a partir desse momento amplamente alicerçadas na dinâmica
federativa – a lógica que parte do plano federal, desdobra-se no momento estadual,
e municipal. Essa lógica será diferente no caso venezuelano, como será analisado

270
na próxima seção. Esse marco, de institucionalização, ocorreu ao longo dos anos
90, após a promulgação da Carta Cidadã. Foi o marco também da territorialização
dos conselhos no Brasil, e de uma mudança em relação às expectativas depositadas
na própria efetivação da participação.
Tendo em vista a perspectiva municipal e sua dimensão territorial no Brasil, é
possível destacar a dimensão concreta de reorganização social que a participação
ensejou nos municípios. Segundo dados do IBGE de 2001, dos 5.565 municípios
brasileiros, se tomados apenas os Conselhos Municipais gestores mencionados
como áreas estratégicas na Constituição, existiam nada menos do que 5.426
Conselhos Municipais de Saúde, 4.072 de Educação e 5.178 de Assistência Social37.
A esses conselhos municipais se desdobram suas instâncias nos planos estadual e
nacional, consecutivamente. As conferências nacionais se desenvolveram mais
recentemente, mas também segundo o critério territorial que acompanha o plano
federativo: ciclos de conferências municipais e estaduais as precedem e trabalhos
recentes relatam que entre 1988 e 2009 foram realizadas ao menos oitenta delas
(Santos; Pogrebinschi, 2010). Há ainda o Orçamento Participativo, que entre 1995
e 2005 registrou em torno de duzentas experiências no país (Baiocchi, 2003; D’ávila,
2000).
Assim, o processo que se estabeleceu ao longo dos anos 90 estava apoiado em um
consenso em torno da relevância da participação da sociedade no que diz respeito
às políticas públicas, processo que Evelina Dagnino (2002) cunhou como
“confluência perversa”. O problema diagnosticado por Dagnino será o propulsor
do terceiro momento aqui apresentado, de autocrítica dos processos participativos.
Ao tornar explícita a discussão em torno da disputa sobre o significado da
participação entre projetos políticos oponentes, Dagnino contribuiu para o
desenvolvimento de estudos sobre as experiências participativas relacionando-as
com seus respectivos projetos políticos, como é o caso dos trabalhos de Tatagiba &
Blinkstad (2011) e Almeida (2010), da crítica da burocratização dos processos Durán

37
Segundo dados atualizados na MUNIC 2011, os totais perfazem o avanço para 5.553 Conselhos
Municipais de Saúde e 4.718 Conselhos Municipais de Educação. É possível mencionar também avanço
em outras áreas: Conselho Municipal de Habitação (3.240); Diferentes Mecanismos de Controle Social de
Saneamento Básico ( audiências públicas, consultas públicas, conferências das cidades e órgãos colegiados)
2.450; Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente 5.446; Conselho Municipal de Política
para Mulheres 872; Conselho Municipal do Idoso 2.868.

271
(2013), bem como das questões envolvendo a perspectiva do contexto econômico
neoliberal como destaca Vera Telles (2001), dentre outros.
A despolitização da perspectiva de gestão que aparece com frequência nos
ambientes participativos é destacada por Feltran (2006), e se faz presente em
estudos regionalizados e municipais, como no caso do Rio de Janeiro destacado em
Faria (2014), onde é possível encontrar o perfil “gestor” como uma tradição com
antigas raízes nos processos de reterritorialização impostos na dinâmica histórica
da cidade. Portanto, nesse processo de autocrítica da participação, se tomado o
debate em torno da representação da sociedade que acontece nos espaços
participativos, Lavalle e Isunza (2011), por exemplo, atribuem à participação uma
feição das instituições do Estado brasileiro, ou seja, ela “transbordou o estatuto de
reclamo dos atores sociais e de orientação política programática de governos e
partidos –embora preserve esse caráter duplo –, atingindo um desenvolvimento
institucional sem paralelo em outros contextos38”.
É comum na literatura internacional, a menção à participação enquanto uma
instituição informal, como praticada nas instituições participativas no Brasil.
Lavalle e Isunza (2011) chamam de “experiências extraparlamentares de
participação”, - ou seja, o caso brasileiro, que conta também com a mediação
política de atores da sociedade civil -, visto que não compreende o aspecto da
autorização formal da sociedade via eleições. Sabe-se que a literatura no Brasil
sobre os formatos da participação, seja pela diversidade, abrangência territorial e
graus de institucionalização ao longo dos diferentes níveis de autoridade da
federação, se deparou no país com uma dinâmica privilegiada para o estudo de tais
mecanismos. A literatura, no processo de entendimento sobre essas estruturas,
acabou por desenvolver um amplo debate sobre os ditos “espaços participativos”,
o que produziu análises que passaram a lidar com a perspectiva da chamada
representação extraparlamentar, e apontaram para o processo de pluralização da
representação.39
Contíguo a tal processo passou-se a discutir sob o prisma teórico de uma
aproximação entre participação e representação, e não mais sob uma perspectiva

38
LAVALLE & ISUNZA, 2011, p. 121.
39
Ibid; LUCHMANN 2011; ALMEIDA 2010.

272
antagônica entre ambas; bem como a perspectiva de que a existência de espaços
participativos não tem por objetivo suplantar a democracia representativa, mas
lidar com a perspectiva de legitimidade ao incorporar um grupo maior de pessoas
no processo de elaboração de políticas públicas. Para as pretensões desse artigo,
destacar a recuperação de teorias da representação para desenvolver análises sobre
as dinâmicas participativas, é mais um indício que reforça a ideia de que,
diferentemente do caso venezuelano, a ser abordado na próxima seção, no Brasil
não está presente esse antagonismo entre participação e representação. Haja vista,
que as práticas de participação previstas na elaboração de políticas públicas
atualmente existentes não possuem como premissa a superação dos parâmetros do
regime democrático representativo rumo a um ideal de democracia direta, como
argumentam por vezes as críticas ao decreto 8.243, que será retomado na
conclusão.

Participação e democracia na Venezuela


A origem da demanda por participação social também é longínqua na Venezuela,
onde desde o início da década de 1970 se observam nos centros urbanos a criação
de organizações comunitárias comprometidos com as necessidades internas das
comunidades. Estruturados em associações de moradores e entidades de caráter
local, a sociedade civil se organizava para lidar com os problemas comunitários dos
bairros e vizinhanças, lutando pela melhoria de serviços públicos e se articulando
em grupos de interesse voltados a questões trabalhistas, feministas, ecológicas,
desportivas, religiosas, dentre outras. Não obstante, ao longo da década de 1980
essa efervescência entra em declínio em função de uma crise sistêmica, tomando
um rumo diverso do mencionado no caso brasileiro.
Ao longo da década de 90, era notória a crise que abalava a IV República, regime
político amparado, juridicamente, na Constituição de 1961. Socialmente, por sua
vez, esse sistema, celebrado no chamado Pacto de Punto Fijo40, se enraizava por
meio de pactos entre partidos (em especial, Ação Democrática e Comité de

40
Pacto celebrado em 1958 na Quinta Punto Fijo –9propriedade do líder copeiano Rafael Caldeira e
localizada no bairro caraqueño de Sabana Grande – entre os líderes da AD (Rómulo Betancourt) do Copei
(Caldeira) e da União Republicana Democrática (Jovito Villalba).

273
Organização Política Eleitoral Independente, que se alternavam na Presidência do
país) e entre estes e as instâncias de organização social (sindicatos, associações de
empresários e etc). Nas décadas finais do século XX, contudo, o arranjo que, por
meio de mecanismos de cooptação e repressão, alcançava grande 0parte das
instituições e sujeitos coletivos do país já havia sofrido importantes deserções,
responsáveis por abalar sua frágil sustentação política. A crença da população na
legitimidade deste regime – alicerçada na ideia de democracia, cujo significado
remetia aos princípios de estabilidade institucional e justiça social – havia sido
seriamente comprometida41.
Cristalizada em mecanismos formais e informais, a relação entre autoridades
públicas e representantes da sociedade criou na Venezuela uma dinâmica de troca
entre: o governo, que oferecia o acesso privilegiado à maquina estatal; e as
organizações da sociedade civil que, em contrapartida, garantiam o apoio de seus
membros aos partidos no poder. Não obstante ser essa articulação essencial para
sua manutenção fática, era a ideia de democracia que funcionava como
fundamento de validade para o sistema político vigente em todo o período, que se
desdobra entre a promulgação da Constituição de 1961 e sua derrogação, pela Carta
bolivariana de 1999. No entanto, conforme se disseminava a percepção de que o
acesso às dinâmicas decisórias e aos benefícios do Estado eram distribuídos em
função da afinidade com aqueles que detinham o poder, o puntofijismo foi tendo
seu conteúdo normativo esvaziado.
Mesmo nas instâncias locais, a participação era condicionada pelos interesses dos
partidos no poder, que as usavam como lugar de disputa e controle, o que levou
por fim a desgastá-las. A descrença generalizada nos partidos, sindicatos e
instituições da chamada IV República desarticula, também, as organizações
comunitárias. O resultado é um tecido social com pouca estrutura organizacional
e capacidade para influenciar na dimensão pública, aumentando o
descontentamento face a uma dimensão política que não abria canais de
participação para a sociedade, praticamente o reverso do Momento Constituinte

41
Tal crise se deflagra, sobretudo, após os eventos que ficaram conhecidos como Caracazo, ocorrido em
1989, quando milhares de cidadãos expressaram sua indignação pelas ruas de Caracas, tendo sido
fortemente reprimidos pelas forças de segurança.

274
de 1988 no Brasil, conhecido por uma conciliação entre participação popular
intensa e debate constituinte partidário. Todavia, a longa crise de legitimidade que
levou ao fim da IV República, deu início a uma série de movimentações por parte
da sociedade civil e de autoridades políticas dispostas a oferecer novos mecanismos
de canalização para o descontentamento geral dos cidadãos. A princípio, estas
dinâmicas se organizavam em torno de alguns temas centrais: (a) Aprofundamento
da democracia nos partidos políticos; (b) Reforma da Lei Orgânica do Sufrágio; (c)
Eleição popular, direta e secreta para governadores e; (d) Reforma da lei Orgânica
Municipal. Por outro lado, tais iniciativas, que respondem a um significativo
crescimento das demandas por mecanismos de participação, permitiram também
o fortalecimento das paróquias, das juntas paroquiais e das associações de
moradores (Juntas Vencinales). Com este propósito, a Lei Orgânica do Regime
Municipal, de 1989, define as associações de vizinhos enquanto comunidade
concreta, unida para defender a qualidade da vida comum, fundamentalmente
centrada e originada por características ou problemas específicos da cidade.
Estas novas instâncias previam procedimentos como assembleias deliberativas e
referendos para a tomada de decisões referentes ao interesse geral (como, por
exemplo, questões orçamentárias) e inclusive a possibilidade de revogação dos
mandatos dos prefeitos. Embora sua relevância tenha sido limitada por estarem
concentradas em bairros de classe média e alta, pelo menos no tocante a estas
comunidades, as associações de vizinhos conseguiram funcionar como elemento
de articulação entre os planos locais e nacionais. É, contudo, fundamental atentar
para a inserção dessa perspectiva em um contexto nacional de ressignificação da
democracia, instaurado pela perda de credibilidade dos canais de representação
(os partidos e sindicatos) que ocupavam um lugar central no sistema democrático
puntofijista. Deste modo, a ideia de que a própria comunidade, por meio de sua
participação direta, deveria reunir-se para buscar respostas aos seus próprios
problemas, emerge como demanda vinculada ao ideal democrático e disseminada
entre diferentes estratos econômicos.
Ainda que durante a IV República tenha existido um processo organizativo de
matiz corporativista englobando sindicatos, organizações de trabalhadores,
movimentos estudantis, camponeses e organizações não governamentais; é com o

275
chavismo que ocorre uma explosão na organização e articulação no plano comunal.
Outorgando, a partir do Executivo, um tratamento constitucional à organização
popular nos principais setores produtivos da comunidade (PONCE, 2011, p. 191). A
despeito de consagrar os anseios de ruptura com relação ao regime anterior, a
Constituição Bolivariana de 1999, não assume feições revolucionárias, embora seu
texto possa ser considerado como o ponto de partida de um novo paradigma no
contexto do constitucionalismo regional. Nesta perspectiva, as principais
inovações, dizem respeito: (i) à ressignificação do ideal democrático, que passa a
ser definido pelo adjetivo participativa(o), termo que é usado 8 vezes ao longo da
Carta (no preâmbulo e nos artigos: 6º, 18º, 84º, 86º, 118º, 171º e 299º) e nenhuma vez
(como adjetivo) na Constituição de 1961; e (ii) à implementação dos mecanismos
de democracia direta, enquanto instrumentos essenciais a esta nova acepção de
democracia.
É interessante observar, contudo, que a ênfase nos direitos humanos e sociais era
igualmente apresentada como diretriz do ordenamento jurídico anterior, ainda
que de um modo distinto. Esta diferença, diz respeito aos meios para concretizar
direitos socioeconômicos, constitutivos às duas acepções dadas ao conceito de
democracia, até porque ambas se referiam também ao plano material. No sistema
puntofijista, todavia, os principais instrumentos para esta concretização eram os
partidos e as corporações (sindicatos de trabalhadores e patrões). No projeto
chavista, por sua vez, ésa participação direta do cidadão, compreendida como
protagonismo do povo, que surge como alternativa do núcleo normativo do projeto
bolivariano. O ordenamento jurídico de 1961 enquadrava-se no paradigma
Neoconstitucional, que estruturava um Estado Democrático e Social de Direito
voltado ao bem-estar dos cidadãos, o mesmo que estruturará a Constituição
brasileira de 1988. Diante disto, é crucial mencionar o esforço, empreendido por
autores como Viciano Pastor e Martínez Dalmau, de conferir um caráter
paradigmático à Carta de 1999. Para isso, alguns de seus elementos são
transformados em atributos definidores do chamado Novo Constitucionalismo
Latino americano, sucedâneo do Neoconstitucionalismo, de origem europeia,
surgido neste subcontinente das Américas. Tais características, no plano formal,
dizem respeito, sobretudo, à ênfase no poder constituinte e na preocupação de que

276
sua vontade não seja bloqueada por eventuais ocupantes dos poderes
constituídos42.
Não obstante o reconhecimento de tais diferenças conquanto a ordem anterior, é
fundamental observar também os elementos de continuidade. Estes dizem
respeito, sobretudo, a uma trajetória de centralização de poder, enquanto
componente tradicional do hiperpresidencialismo venezuelano, cuja democracia
historicamente afasta-se do cânone liberal. Tal viés se institucionaliza através de
um mecanismo de delegação de faculdades legislativas ao Executivo, amplamente
utilizado durante a IV República e previsto, na Constituição de 1961, pelo inciso 8°,
do artigo 190°, que estabelecia como atribuição do presidente da República: "ditar
medidas extraordinárias em matéria econômica ou financeira quando assim o
requeresse o interesse público e houvesse sido autorizado para isso por lei
especial".
Ao ser mobilizado como principal mecanismo da transformações executadas pelo
governo bolivariano, as leis habilitantes viabilizam e atestam o hiato entre os ideais
de democracia e participação reverberados pelos discursos chavistas e aqueles
mobilizados pela tradição liberal. Sendo assim, é a partir deste instituto que o
governo venezuelano aprova, em dezembro de 2010, a Lei Orgânica do Poder
Popular LOPP) e a Lei das Comunas que iniciam, segundo a hipótese delineada
neste trabalho, a mais radical etapa do proceso de cambio consagrado pela Carta de
1999. Com elas a ressignificação do conceito de democracia puntofijista alcança o
ponto máximo de ruptura, deslindando uma efetiva transformação do modelo
político-econômico e administrativo do país, agora determinada pelo conceito de
Socialismo, desprovido de qualquer adjetivação suavizante (como, por exemplo, a
alusão ao século XXI anteriormente utilizada). Assim, por meio de duas leis
redigidas pelo Executivo e aprovadas em caráter excepcional, a Venezuela se
declarou Socialista e Comunal.
Essa nova forma de organização, embora diferenciada, pode ser vista como uma
radicalização do ideal federativo incorporado na tradição liberal, pois mantém

42
O que explica não apenas sua extensão, voltada à,expressão detalhada de tal vontade, de modo a orientar
os processos de interpretação e aplicação judiciários; mas, também a rigidez constitucional, isto é, a
definição de critérios procedimentais que visem dificultar a alteração do texto pelos legisladores ordinários.

277
inclusive uma análoga preocupação com a divisão dos poderes (Executivo,
Legislativo e Judiciário) no interior de cada instância administrativa. Ela conforma,
portanto, um esquema representativo de tipo piramidal, que parte da Assembleia
de Cidadãos (definida no artigo 8º da LOPP), sendo que em cada instância os
membros escolhem, por sufrágio, os membros da instância superior, havendo em
todas elas a possibilidade de revogação de mandatos. Nesta medida, com a
aprovação da LOPP e da Lei de Comunas, na Venezuela, passaram a conviver
paralelamente dois sistemas de representação: um de origem na tradição liberal,
outro de origem na tradição comunista. Essa convivência, segundo o argumento a
ser aqui desenvolvido, não se dá, contudo, sem prejuízo para as autoridades eleitas
pelos mecanismos de representação tradicional, que perdem espaço para aqueles
ligados ao exercício da democracia direta. Esse é o elemento determinante no
contraste com a trajetória dos mecanismos participativos no Brasil. Deste modo,
quando observados os novos dispositivos legislativos, fica claro o objetivo de que,
gradualmente, as instâncias federativas cedam lugar às instâncias do Poder
Popular. Para regular essa transição, foi promulgada em 15 de junho de 2012, através
de Lei Habilitante, a Lei Orgânica para a Gestão de Competência e outras
atribuições do Poder Popular. O esvaziamento dos poderes associados à
democracia representativa se estabelece, todavia, sob a lógica da restituição, uma
vez que as capacidades transferidas axiologicamente se originariam no povo, de
acordo com a ressignificação operada pelo chavismo nos conceitos de democracia
e participação43.
Tal provimento, será realizado por meio de acordos entre “os órgãos e entes do
Poder Público Nacional e as entidades político territoriais, que adotarão as
medidas necessárias para que os sujeitos de transferência gozem de prioridade e
preferência nos processos de celebração e execução dos respectivos convênios, para
a transferência efetiva da gestão e administração de serviços, atividades, bens e
recursos”44. Porém, uma vez que a legislação não esclarece quais serão os critérios

43
Esta intenção, por sua vez, é,operacionalizada por uma dinâmica de “Transferência de Competências”,
definida pelo mesmo artigo como “processo mediante o qual as entidades político territoriais restituem ao
Povo Soberano, através das comunidades organizadas e às organizações de base do Poder Popular aqueles
serviços, atividades, bens e recursos que podem ser assumidos e gestionados.
44
Conforme o artigo 15º da Lei Orgânica para a Gestão de Competência e outras atribuições do Poder
Popular.

278
para a concessão de tais recursos adicionais, é possível sugerir que o governo
nacional possui uma ampla margem de discricionariedade. Esse panorama apenas
reforça o argumento original acerca do chavismo, ou seja, de que as iniciativas de
fortalecimento do protagonismo popular, através da incorporação de mecanismos
de democracia direta e autogestão, convive com a predominância do Executivo.
É inequívoco que a guinada venezuelana rumo ao socialismo, por ser o resultado
de um conjunto de decretos legislativos e não o produto de uma ampla discussão
no seio da sociedade, suscita diferentes críticas, sobretudo por parte daqueles que,
são marginalizados por apresentarem posicionamentos distintos. Dessa maneira,
há o perigo de que quando atrelados a um modelo produtivo alternativo e
socialista, os Conselhos Comunais se fechem àqueles que apresentam interesses
econômicos diferentes. Nessa nova configuração, apenas conselhos de
trabalhadores, camponeses, pescadores e instâncias do Poder Popular
devidamente reconhecidas pela legislação e registrada no Ministério das Comunas
(GARCÍA, 2013; p.71), são entendidas como entidades dignas do exercício da
soberania, o que certamente implica em uma restrição incompatível com os valores
de universalidade e pluralidade que permeiam o horizonte normativo das
sociedades modernas. Tal situação ainda se agrava em um contexto no qual esse
reconhecimento não está devidamente controlado por regras objetivas, o que
amplia o risco de discricionariedade, favorecimentos e restrições ao exercício do
Poder Popular. Ainda que não tenham sido colocados à disposição da opinião
pública internacional sinais inequívocos de que esta discriminação ocorra, levando
em conta que tais mecanismos são em grande parte boicotados pela oposição, é
preciso que o chavismo assegure o compromisso com a principal conquista da
revolução bolivariana: o empoderamento do cidadão comum. Este é o seu legado
e principal diferença face ao regime puntofijista que a precedera, no qual a
participação popular era limitada apenas àqueles vinculados aos partidos e
sindicatos ligados ao governo.
Sendo assim, a estratégia de engendrar uma profunda reforma no ordenamento
jurídico-político do país por meio de Leis Habilitantes, de acordo com a
argumentação aqui empreendida, deve ser entendida como continuidade de uma
tradição de hiperpresidencialismo, personalismo e desrespeito às instituições

279
liberais. Ela não é uma afronta apenas aos princípios do liberalismo político, mas,
à própria ideia de democracia participativa e protagônica que aparece como
leitmotiv dos discursos de Hugo Chávez e do proceso de cambio por ele conduzido.

Conclusão
Nesta medida, conforme o argumento que estrutura este trabalho, o que ocorre na
Venezuela, em 2010, seria uma busca por alternativas aos mecanismos
representativos tradicionais –e cuja perda de legitimidade precede a chegada de
Hugo Chávez ao poder. Essa tentativa foi desenvolvida por meio de uma
reconfiguração espacial das unidades políticas a serem representadas. Assim
sendo, se antes a Federação se organizava em municípios, estados e união, cada
um com seus representantes eleitos em suas circunscrições, agora se sobrepõem a
eles as comunidades e Comunas, também representadas por autoridades eleitas.
Com isso, a ideia de participação adquire um novo significado, cuja radicalidade
almeja superar os parâmetros da democracia representativa, rumo
àeimplementação de um sistema de democracia direta. Esta mesma pretensão não
se observa na mobilização do ideal participativo por parte dos dispositivos legais
implementados no Brasil que, diferentemente do que atualmente se observa na
Venezuela, não se apresentam de modo concorrente ou antagônico face ao regime
democrático representativo.
No processo de autocrítica recente mencionado no caso brasileiro, são inúmeros
os desafios, que mostram como ainda são tímidos os alcances da participação no
Brasil. Algo a destacar é que além da variedade de resultados sobre a participação
nos estudos de caso, está presente o questionamento sobre o fato de que a
ampliação e diversidade dos espaços participativos não significa que esteja
superada a carência de qualidade ou eficiência da participação posta em prática.
Conforme sublinha a literatura, éipossível perceber que os conselhos, por exemplo,
por sua dinâmica setorial, com frequência enfrentam uma desarticulação entre os
distintos lócus de participação. Em entrevista recente sobre o assunto, Pedro
Pontual (2014) declara como os conselhos setoriais não necessariamente se
articulam com as conferências, ou mesmo entre si, ou com os debates que ocorrem

280
nas audiências públicas, cujos respectivos graus de legitimidade também podem
variar muito.
Se analisada a proposta contida no decreto 8.243 de 23 de maio de 2014, o objetivo
apresentado é fortalecer e articular os mecanismos e as instâncias democráticas de
diálogo e a atuação conjunta entre a administração pública federal e a sociedade
civil. Seriam elas: conselho de políticas públicas; comissão de políticas públicas;
conferência nacional; ouvidoria pública federal; mesa de diálogo; fórum
interconselhos; audiência pública; consulta pública e ambiente virtual de
participação social. São propostos enquanto meios de articulação, a maior parte
deles de espaços jásexistentes e previstos constitucionalmente. Por outro lado,
fundamental a destacar, éxque atualmente no Brasil a grande parte dos espaços
participativos não possui poderes decisórios, apenas de monitoramento das
políticas públicas. Mesmo os que são deliberativos e, portanto, podem formular
resoluções, possuem fraco alcance administrativo como resultado de suas
propostas.
É inegável que houve, em 2014 e no início de 2015, reações exageradas veiculadas
em meios de comunicação e, até mesmo, na Câmara dos Deputados, onde
reverberou com frequência a ideia de que a participação em questão seria uma
forma de ataque à democracia representativa. Conforme debatido na primeira
seção, a Constituição de 1988 estabeleceu as bases de uma democracia que
pretende amalgamar participação e representação, a qual vem sendo
institucionalizada por meio de diversos atos administrativos e legislativos, inclusas
emendas constitucionais, ao longo de diferentes governos. Os conselhos existentes
hoje no Brasil indicam a materialização institucional de preceitos constitucionais
e, nesse sentido, a literatura inclusive contribui para destacar que não ameaçam
em nada a democracia representativa, pelo contrário, seu objetivo é arejá-la
incluindo mais atores sociais nos processos de formulação de políticas públicas.
O presente artigo visou contribuir através da discussão sobre a dimensão territorial
que assumiram ao longo do tempo as iniciativas participativas no Brasil e na
Venezuela. Buscou-se destacar que as estruturas que o decreto 8.243 propõe
expandir no caso brasileiro, já existem e foram reguladas pelo país mediante leis
aprovadas pelos próprios poderes legislativos municipais, estaduais e nacional, de

281
modo que é difícil imaginá-las enquanto usurpadoras da perspectiva de
representação eleitoral. Por outro lado, não há como esquivar o fato de que a
proposta por decreto, fez com que a própria base dos movimentos sociais olhasse
com desconfiança a tentativa de promoção de uma rede de integração entre os até
então pulverizados conselhos setoriais. Deste modo, demonstrou-se que a crítica
responsável por associar participação a uma ameaça aos mecanismos
representativos tradicionais não faz sentido no Brasil, onde a participação sempre
foi vista como veículo de aperfeiçoamento do governo representativo. Não
obstante, atestou-se sua pertinência conquanto ao caso venezuelano, onde a
própria Constituição aponta para um sistema de transferência de competências,
regulamentado e radicalizado nos decretos implementados por lei habilitante após
2010.

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285
14. DEMOCRACIA E REBELDIA POPULAR NO BRASIL CONTEMPORÂNEO45

Mônica Dias Martins

Introdução46
Os meios de comunicação de massa não cansam de referir-se à recente situação do
Brasil com as palavras: desastre econômico, corrupção, ameaças à democracia,
traição do Partido dos Trabalhadores / PT, escândalo financeiro, crise política,
recessão, inflação, etc. Os exemplos mais evidentes são a revista Veja e a rede de
televisão Globo, grandes beneficiárias da ditadura civil-militar (1964-1985), que
atuando como o principal partido ideológico da burguesia brasileira, pretendem
exercer um papel de orientação política e formação das massas. Nesse sentido, vale
lembrar o que dizia Gramsci (1968:23) sobre a ação da imprensa no mundo
moderno enquanto força dirigente superior aos partidos e, o mais preocupante,
reconhecida como tal pela opinião pública: ‘um grupo de jornais ou de revistas são
também eles partidos’. À época, o comunista italiano encarcerado citava
nominalmente o Times, na Inglaterra, e o Corriere della Sera, na Itália. Atualizando
sua observação sobre a imprensa, há razões de sobra para, no caso do Brasil,
mencionar o papel decisivo desempenhado pela televisão.
Nada mais hipócrita do que a atitude da mídia e dos parlamentares opositores ao
governo de Dilma Rousseff e seus aliados. O que motivaria tal postura política? A
pergunta comporta respostas variadas e que se combinam: o inconformismo das
forças conservadoras com sucessivas derrotas eleitorais; a ojeriza aos programas
neodesenvolvimentistas do Estado brasileiro; o desejo de retorno ao ideário
neoliberal ortodoxo característico da gestão de Fernando Henrique Cardoso (1994-
2002); o incômodo da classe alta ao ver trabalhadores adentrarem espaços que
imaginava serem exclusivos; o patriarcalismo e o racismo dos segmentos mais
reacionários da nossa sociedade; a aliança dos dirigentes políticos com os

45
Uma versão ampliada foi publicada em inglês na revista Journal of Development Societies e apresentada
no 9 Congresso da ALACIP, em julho de 2017

286
interesses das corporações multinacionais para liquidar a Petrobrás, privatizar o
Pré-Sal e aderir ao Tratado de Livre Comércio Transpacífico (Trans-Pacific
Partnership / TPP, em inglês). Então, seriam essas as razões para o impeachment
perpetrado mediante um golpe constitucional em nome de ‘restaurar a moralidade’
na política brasileira?
Por entender que as relações de poder em âmbito global influenciam a política
nacional, começo esse artigo tratando das reações das grandes potências e da
burguesia internacional às mudanças no panorama político da América do Sul no
século XXI, em especial no tocante às expectativas de um projeto de integração
regional autônomo e solidário. Na sequência, meu foco é a atual situação política
do Brasil. Tendo em vista uma análise que contemple e distinga os elementos
estruturais (movimentos orgânicos relativamente permanentes) dos elementos
conjunturais (que se apresentam como ocasionais e imediatos), discuto as tensões
domésticas, buscando identificar as raízes das lutas pelo controle do Estado, bem
como examinar a crescente polarização Estado / mercado.
Este trabalho se baseia em vivências pessoais e na literatura que tem procurado
refletir de forma crítica sobre o processo político em curso no país, à revelia das
concepções dominantes nos meios de comunicação, círculos governamentais,
empresariais e acadêmicos. Deste modo, tento esboçar uma apreciação dos
governos brasileiros nos últimos 12 anos e concluo apontando algumas propostas
elaboradas no âmbito da Frente Popular Brasil / FPB.
Lançada em setembro de 2015, a Frente sinaliza a resposta das forças populares às
manobras de partidos e setores reacionários. Inconformados com a derrota por
poucos votos nas eleições majoritárias de 2014, esses articularam um golpe
constitucional, mediante o artifício de um impeachment oportunista, sem sólida
base jurídica e apoiado fortemente no ódio de uma elite conservadora. A
justificativa alegada pelos defensores do pedido é de que o governo federal atrasou
o repasse de dinheiro a bancos públicos para pagamento de programas sociais
(designado vulgarmente como ‘pedalada fiscal’) e editou decretos que resultaram
na abertura de créditos suplementares sem autorização do Congresso Nacional.
Nenhum dos dois casos, opinam juristas, configura ilegalidade ou
inconstitucionalidade por parte do Executivo. Tudo leva a crer que destituir a

287
presidenta é secundário; o projeto da direita brasileira associada à burguesia
internacional visa, sobretudo, atender aos interesses do capitalismo, ainda que o
preço a pagar seja o retrocesso econômico, social e político do país.

Tensões internacionais: o contexto sul-americano


Acompanhando Gramsci (1968: 44) para quem ‘Os elementos de observação
empírica que comumente são apresentados desordenadamente nos tratados de
ciência política deveriam... situar-se nos vários graus de relações de força, a
começar pelas relações das forças internacionais’, abordo inicialmente as
articulações político-ideológicas que incidem no jogo de poder na América do Sul.
As perspectivas de inserção mundial do Subcontinente foram alteradas com a
eleição de governantes formalmente comprometidos com o reconhecimento dos
direitos sociais de segmentos discriminados - povos indígenas, populações negras,
camponeses, pescadores, moradores das favelas, jovens, mulheres, etc. Opondo-se
às propostas de integração dependente do poderoso vizinho do Norte (Área de
Livre Comércio das Américas / ALCA), os sul-americanos acenam com formas
inovadoras de cooperação regional (Mercado Comum do Sul / Mercosul, União de
Nações Sul-Americanas / UNASUL, Associação Bolivariana para os Povos de Nossa
América / ALBA), formulam alternativas de desenvolvimento, enfrentam elevadas
dívidas públicas junto aos credores internacionais e buscam caminhos promissores
para as acentuadas desigualdades sociais (Martins; Galli, 2011).
Apesar desse conjunto de iniciativas não configurar, como alguns interpretam,
uma ‘guinada à esquerda’, é preciso situá-las no âmbito das tendências
continentais. Por um lado, observa-se a entrada na cena política de contingentes
populacionais até recentemente considerados ‘marginais’, por outro, o perfil dos
líderes eleitos é bem distinto dos que detiveram o poder desde a ruptura colonial.
Se tais mudanças não indicam o fim de antigos pactos, não cabem dúvidas de que
novas hegemonias estão em curso como ilustram as expressivas manifestações de
resistência ao neoliberalismo e à globalização. Em parte, estas parecem indicar
vontade de superação da mentalidade cultivada pelas elites e, em boa medida,
reproduzida pelos meios de comunicação e pela academia.

288
Obviamente, nem o imperialismo aceita que nações sob sua tutela ousem, de modo
autônomo e solidário, traçar os rumos do seu futuro, nem a história registra
mudanças bem-sucedidas sem dolorosos ajustes internos e externos. Portanto, é
em um ambiente de grande turbulência política e social que os governos sul-
americanos têm procurado atender as reiteradas promessas de uma vida melhor
para seus povos. A situação se torna ainda mais complexa com a profunda e
prolongada crise do capitalismo nos países centrais– da qual o tormento dos
refugiados na Europa é apenas a ponta do iceberg - que vem gerando uma onda
de restauração conservadora. Tal conjuntura de retrocesso econômico, social e
político impacta na América do Sul. A ofensiva imperialista, iniciada com o golpe
militar em Honduras (2009) contra o presidente eleito Manuel Zelaya e o golpe
branco que depôs o presidente Fernando Lugo no Paraguai (2012), persiste, apesar
das tentativas nem sempre bem-sucedidas de intervir em outros países da região,
particularmente na Bolívia e no Equador. Recentemente, governantes da Argentina
e da Venezuela, vizinhos e parceiros do Brasil na empreitada de um continente
livre da dominação dos Estados Unidos, sofreram derrotas eleitorais que sinalizam
um passo adiante em direção ao neoconservadorismo.47
A coligação Mudemos, de centro-direita, ganhou o segundo turno das eleições
presidenciais na Argentina, em 22 de novembro, com 51,4% dos votos. Pela
primeira vez em 12 anos, o candidato identificado com o kirchnerismo não venceu
o pleito e a Casa Rosada será ocupada por Maurício Macri, prefeito da capital
portenha e empresário. O novo governante argentino visitou o Brasil e o Chile para
tratar de acordos comerciais com o empresariado paulista; na ocasião, ele defendeu
a aproximação com os Estados Unidos e anunciou sua intenção de propor ao
Mercosul a suspensão da Venezuela. Cortejado pelos governos estadunidense e
europeus, certamente, Macri aspira liderar as mudanças na política sul-americana,
tornando o continente uma área de livre comércio e fortalecendo as negociações
com a União Europeia e a recém-criada Aliança Transpacífica.

47
Para um aprofundamento do tema ver Martins (2015). O texto aborda as conflituosas relações de poder
na Argentina e na Venezuela a partir das interferências políticas de atores globais, respectivamente o FMI
e o Centro Carter.

289
Os resultados das eleições para o legislativo venezuelano revelam que após 16 anos
de governos bolivarianos, o Partido Socialista Unido da Venezuela / PSUV obteve
40% dos votos dos 20 milhões de cidadãos que foram às urnas em 6 de dezembro.
No que pesem os erros de gestão do chavismo e a dependência do petróleo, é
inegável que a “guerra econômica” encabeçada pela potência hegemônica e sua
constante campanha diplomática e mediática contra Hugo Chávez contribuem
fortemente para o desabastecimento, a inflação e a insegurança. Cansados das
duras condições de vida, os eleitores votaram contra o governo de Nicolás Maduro,
favorecendo a coligação opositora (Mesa Democrática da Unidade / MDU) que
obteve 99 das 167 cadeiras da Assembleia Nacional. O crescimento eleitoral da
direita não surpreendeu analistas do processo venezuelano. James Petras (2007) e
Steve Ellner (2013) observaram que a prolongada carestia e a escassez de produtos
alimentares enfraqueceriam o apoio da base social bolivariana ao socialismo do
século XXI. Distanciando-se dos discursos de ‘vítima do imperialismo
estadunidense’ ou do ‘autoritarismo chavista’, Manuel Sutherland (2015)
diagnosticou a intensificação das contradições internas com prováveis derrotas
para os trabalhadores venezuelanos diante da intensa ação da burguesia e da
inação da esquerda.48
De fato, o que parece estar em disputa é o controle da grande potência sobre os
rumos das nações latino-americanas. A penetração da China no continente
constitui certa ameaça ao poderio estadunidense. Não por outro motivo houve
tamanho empenho do presidente Barak Obama na aprovação, em outubro de 2015,
do Tratado de Livre Comércio Transpacífico, negociado de forma secreta há mais
de 8 anos. Seus objetivos são abolir barreiras comerciais para acesso a bens, serviços
e investimentos, além de estabelecer regras uniformes de propriedade intelectual,
ambientais e trabalhistas para os Estados membros (EUA, Japão, Austrália, Brunei,
Canadá, Chile, Cingapura, Malásia, México, Nova Zelândia, Peru e Vietnã). Como
principal articulador do TPP, os Estados Unidos definiram um padrão de arranjos
comerciais cujos maiores beneficiários são as grandes corporações, o que tanto

48
Venezuela: crisis, importación, dólares, inflación-escasez y el default inevitable’. [Acesso 12 Dezembro
2015 (http://www.aporrea.org/trabajadores/a213256.html )].

290
enfraquece as negociações em curso no âmbito do Mercosul e do BRICS (acrônimo
para Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), blocos econômicos e geopolíticos
dos quais o Brasil participa ativamente, quanto prejudica importante segmento da
economia brasileira, já que em 2014, mais de um terço de nossa exportação
industrial foi destinada aos países signatários desse Tratado.
Objeto da cobiça imperialista, desde sua criação em 1953, após a memorável
campanha ‘O petróleo é nosso’, a Petrobrás está no centro das investigações da
operação denominada ‘Lava Jato’, iniciada em março de 2014, quando foram
processadas organizações criminosas que operavam no mercado paralelo de
câmbio. A apuração realizada pelo Ministério Público Federal / MPF evoluiu para
a descoberta de indícios de um esquema de corrupção, envolvendo grandes
empreiteiras organizadas em cartel que pagavam propinas aos altos executivos da
maior empresa de economia mista brasileira e outros agentes públicos. Um ano
depois, conhecidos os membros de partidos responsáveis pela indicação dos
diretores da Petrobrás, a operação Lava Jato passou a alimentar a instabilidade
política, causada, sobretudo, pelo fato de as elites não aceitarem os valores e as
regras do jogo democrático quando essas não lhes favorecem.
Auxiliados pela mídia, que costuma dar tratamento moralista ao fenômeno da
corrupção, o capital internacional e a fração da burguesia brasileira a ele associado
investem pesado na derrota do neodesenvolvimentismo. Dirigentes do Partido
Social Democrata Brasileiro / PSDB se manifestam contra tal política,
argumentando que atrasa o desenvolvimento tecnológico e prejudica a Petrobrás.
Não por mera coincidência José Serra, senador do PSDB, se esmera para aprovar o
Projeto de Lei 131/2015 que revoga a exigência da Petrobrás como operadora única
do Pré-Sal, estabelecendo normas de privatização semelhantes às implementadas
durante a gestão do presidente Cardoso. Já no final de 2009, durante encontro no
Congresso, Serra garantia à diretora da Chevron no Brasil de que, eleito presidente,
as empresas petrolíferas estrangeiras não precisariam se preocupar com a ‘onda
nacionalista’, como revela o site WikiLeaks.49

49
Fundado por Julian Assange, o site Wikileaks publicou telegramas da embaixada dos Estados Unidos em
Brasília para o Departamento de Estado em Washington, contendo revelações do debate no Congresso
brasileiro sobre a nova legislação do petróleo. [Acesso em 5 Dezembro 2015
(http://www.brasil247.com/pt/247/brasil/93008/Serra-prometeu-à-Chevron-mudar-regras-do-pré-sal.htm

291
Em um momento no qual a crise do capitalismo alcança dimensões de uma crise
civilizatória; no qual o terrorismo é apresentado como uma ameaça maior do que
a fome e a miséria; no qual a especulação e o consumo prevalecem sobre a produção
de bens; no qual se difunde a ideia de que a política é atividade profissional,
burocrática, a ser evitada pelo cidadão comum, exceto no período eleitoral, cada
vez mais pessoas são induzidas a apoiar iniciativas de segurança, sejam particulares
ou estatais, mesmo que estas limitem seus anseios de liberdade.
Além disso, muitos partidos progressistas ao chegarem ao governo, preocupados
em manter e se manter nas estruturas de poder, se conformam com os
procedimentos da legalidade burguesa, priorizam a distribuição de cargos e
participam de esquemas habituais de corrupção. Com frequência esquecem o
principal: cuidar da formação e organização política de suas bases sociais. Se há
alguns anos ser alfabetizado constituía requisito para a cidadania, hoje a
‘alfabetização política’ é imprescindível para construir uma comunidade nacional
com amplo protagonismo das classes trabalhadoras.
Tal descuido, ou melhor equivoco, dos partidos, em boa parte, explica a
perplexidade ideológica da esquerda frente aos atrativos materiais da sociedade de
consumo e aos ditames do pensamento único. O Estado se tornou o alvo
preferencial das críticas ferrenhas do neoliberalismo, sendo responsabilizado por
tudo que de negativo ocorre na sociedade. Não caberia esperar outra coisa da
direita que resiste agressivamente, por exemplo, ao mais tímido reconhecimento
da igualdade de direitos e a qualquer tentativa de políticas externas soberanas.
Para Emir Sader, as forças de esquerda deveriam ter claro que a disputa pelo
Estado, produto e manifestação do antagonismo inconciliável das classes, não é
apenas para assenhorar-se da máquina governamental. Conforme as expectativas
deste estudioso da dinâmica socioeconômica e política latino-americana, o
propósito da conquista do Estado:

)]. O esquema de monitoramento dos EUA para obter informações sobre a Petrobrás também foi
denunciado por Edward Snowden, ex-funcionário da CIA e da Agência de Segurança Nacional. [Acesso
em 5 Dezembro 2015 (http://www.ebc.com.br/tecnologia/2013/08/web-vigiada-entenda-as-denuncias-de-
edward-snowden#petrobras )].

292
Es para fortalecer a las políticas sociales y a los bancos públicos, es para
democratizar el sistema tributario, es para rescatar y fortalecer empresas
estratégicas para la economía, es para afirmar proyecto nacionales, es para
democratizar el proceso de formación de la opinión pública, es para apoyar
políticas culturales de carácter pluralista, es para desarrollar un discurso
democrático, público, popular, soberano. (Agencia de Informação Frei Tito para a
América Latina / ADITAL, 02/12/2015).50

Refletindo sobre os dilemas da esquerda na América Latina, Immanuel Wallerstein


(2011:359) observa que esta logrou alguns êxitos na primeira década do século XXI
e se tornou, no cenário mundial, uma força geopolítica relativamente autônoma.
Porém, ele continua, surgem contradições com os movimentos populares que
apoiaram os partidos vitoriosos na medida em que seus governos estimulam
projetos neodesenvolvimentistas com forte intervenção do Estado, mas sempre
respeitando os limites do modelo econômico neoliberal. Apoiada nesta abordagem
mais ampla, examino o cenário político do Brasil contemporâneo.

Tensões domésticas: o caso brasileiro


Nos últimos 12 anos, o Brasil vem ensaiando a configuração de uma base
republicana que pretende dar centralidade ao social, fazendo com que o Estado
ofereça serviços a milhões de pessoas. As ações governamentais tentam estimular
a inserção de vastos contingentes na comunidade nacional. Este é o sentido mais
profundo da distribuição massiva de bolsas de sobrevivência aos mais carentes, do
apoio financeiro a numerosos pequenos negócios, de investimentos para acesso
dos jovens ao ensino superior, de acenos a inclusão de etnias segregadas e de
ampliação dos direitos de populações estigmatizadas. Apesar de combatidas pelo
pensamento conversador e não obstante seus efeitos limitados quanto à superação
das desigualdades, é inequívoco o estímulo que estas iniciativas representam à
coesão social.

50
Acesso em 12 Setembro 2015
(http://www.adital.com.br/site/noticia_imp.asp?lang=ES&img=S&cod=87544).

293
É nesta perspectiva que alguns intelectuais de esquerda apoiam a candidatura de
Dilma Rousseff, ainda no primeiro turno da campanha presidencial de 2014.
Ladislau Dowbor lembra que os eleitores no topo da pirâmide social desejam
manter os privilégios dos quais sempre usufruíram. Na ótica da burguesia,
direcionar recursos governamentais às famílias pobres configuraria uma prática
assistencialista, um desvio do papel do Estado. Ao se sentirem ameaçados, revidam
exigindo cortes nos serviços e nas políticas públicas de modo a garantir que a
burocracia continue atuando em seu favor, financiando empreendimentos
privados com dinheiro público. Em sua entrevista, o economista alerta: “... há os
querem a volta ao passado, à restrição das políticas sociais, à redução das políticas
públicas... A verdade é que a máquina administrativa herdada foi feita para
administrar privilégios, não para prestar serviços. E os privilegiados a querem de
volta.” (Carta Maior, 21/09/2014).51
Os dois depoimentos apresentados a seguir, apesar de provenientes de lideranças
com trajetórias políticas e de vida diferentes, revelam o ódio social da elite
brasileira:
Surgiu um fenômeno que eu nunca tinha visto no Brasil. De repente, vi um ódio
coletivo da classe alta, dos ricos, contra um partido e uma presidente. O ódio
decorre do fato de que o governo revelou uma preferência forte e clara pelos
trabalhadores e pelos pobres. Bresser Pereira, ex-ministro do PSDB. (Folha de São
Paulo, 01/03/2015).52
Acho que isso explica o ódio e a mentira dessas pessoas. Pobre ir de avião começa
a incomodar; fazer faculdade começa a incomodar; tudo que é conquista social
incomoda uma elite perversa. Luiz Inácio Lula da Silva, ex-presidente do Brasil
(Jornal do Brasil, 25/07/2015).
Segundo um dos fundadores do PSDB, hoje afastado por avaliar que o partido
enveredou para o campo da direita, o ‘ódio coletivo da classe alta’ é um fenômeno
novo, fruto da tentativa de firmar um pacto neodesenvolvimentista que una a

51
[Acesso em 21 Setembro 2015 (http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Ladislau-Dowbor-
Voto-Dilma-uma-questao-de-bom-senso/4/31841)].
52
[Acesso em 1 Março 2015 (http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/03/1596370-ricos-nutrem-odio-
ao-pt-diz-ex-ministro.shtml)].

294
sociedade brasileira, deixando de fora os empresários rentistas, o setor financeiro
e os capitalistas estrangeiros. A iniciativa fere os interesses do capitalismo
internacional que costuma obter benesses dos governos para ocupar o mercado
interno com seus investimentos e suas multinacionais. O resultado perverso desse
pacto é que o Brasil está caminhando rumo à desindustrialização e voltando à
condição de país exportador de bens primários.
Nas palavras do carismático organizador do PT e, hoje, liderança reconhecida
globalmente, o ódio da elite deve-se à melhoria da autoestima dos trabalhadores
brasileiros, em decorrência de algumas poucas, mas significativas conquistas
sociais. Em uma sociedade ainda marcadamente escravocrata e patriarcal, com
forte preconceito de classe, o acesso dos ‘debaixo’ a lugares considerados exclusivos
da burguesia é inaceitável, sobretudo se a mudança (às vezes mais simbólica do
que real) for fruto de uma política de Estado. A preconceituosa frase ‘ponha-se no
seu lugar’ continua em uso no nosso país!
A minoria no topo da pirâmide acha que seus impostos financiam a transferência
de renda para a classe trabalhadora e, portanto, saem de seu bolso os recursos para
a prestação de serviços públicos direcionados às camadas mais pobres. Um caso
emblemático da reação conservadora e elitista é o Programa Mais Médicos,
iniciado em 013, e que tem levado profissionais da saúde para comunidades em
regiões distantes dos grandes centros urbanos de modo a prestar,
emergencialmente, o atendimento básico às populações desassistidas. A presença
de estrangeiros entre os contratados pelo governo federal, em particular de
numerosos e dedicados médicos cubanos, desencadeou uma onda de protestos
contra o programa. Além da questão financeira, o que parece motivar as
manifestações desfavoráveis é o fato da corporação médica querer controlar o
mercado da medicina para mantê-lo lucrativo às custas da saúde popular. O que
está em jogo na saúde como na educação é a ânsia de privatização dos serviços
públicos; em outras palavras, a antiga polarização Estado-mercado, que na era
neoliberal assumiu a forma público-privado.
Portanto, nunca é demais ressaltar, são os setores mais reacionários da sociedade
brasileira, associados ao imperialismo, que sistematicamente atacam a política
social não apenas pelo lado econômico, mas também pelo lado ideológico e

295
simbólico. É visível a ansiedade, a tensão e o incômodo que sentem quando pessoas
de classes populares entram em espaços que acreditavam serem exclusivos. Não
por outra razão esses setores têm sido os principais agentes da instabilidade
democrática.
Com propriedade, Frei Betto afirma que a crise brasileira nada mais é que uma crise
do modelo de democracia ocidental. Nas suas próprias palavras:
Na economia capitalista não existe democracia. Existe apropriação privada,
competitividade, submissão aos ditames do mercado e não aos interesses da nação.
Todas as vezes que se fala em democratizar a economia, como uma simples
distribuição de renda, as elites puxam as armas – golpes de Estado, evasão de
divisas, guerras.53
Em pleno período pós-eleitoral, quando parlamentares contestam as regras
democráticas, as alianças partidárias e o sistema político brasileiro, é lançado um
filme que retrata o Brasil dividido. Misto de drama e comédia, o longa metragem
Que Horas Ela Volta, dirigido por Anna Muylaert, confronta o Nordeste e o
Sudeste, os ricos e os pobres, o país segregacionista e a ideia de unidade nacional.
A empregada doméstica foi escolhida como símbolo para ilustrar a
condescendência de certa elite que, como diriam os sociólogos Michel Pinçon e
Monique Pinçon-Charlot (1998), “acredita sinceramente ter sido feita para ocupar
tal posição”. No entanto, sua filha pertence a uma nova geração disposta a romper
as assimetrias sociais baseadas em acordos velados, sendo mais consciente de seus
direitos e desejos. Diferentemente da mãe, a jovem estudante que aspira entrar na
faculdade de arquitetura está preparada para contestar uma submissão
incompatível com sua condição de cidadã. O filme desperta atenção do público
que vê na tela do cinema suas próprias famílias.
Assim como o cinema, a música também propicia manifestações de amor e ódio,
tristeza e alegria. Os artistas parecem dotados de maior sensibilidade para
apreender e expor as mudanças sociais, os medos e as esperanças das coletividades
humanas; tem a habilidade de transformar emoções e afetos em obras de arte. A

53
[Acesso em 14 Dezembro 2015
(https://www.google.com.br/search?q=o+boteco+do+PT&oq=o+boteco+do+pt&aqs=chrome.0.69i59j69i
60j69i64.4513j0j7&sourceid=chrome&es_sm=93&ie=UTF-8)].

296
conhecida frase de Renato Russo (1960-1996) - ‘Não tenho tempo para odiar quem
me odeia. Estou ocupado demais, amando quem me ama’ - expressa o ponto de
vista de alguém que viveu e produziu intensamente até sua morte prematura,
devido a complicações causadas pelo HIV. Os preconceitos que o cantor e
compositor brasileiro, vocalista e fundador da banda de rock Legião Urbana,
enfrentou em sua curta existência parecem ter lhe ensinado a não desperdiçar o
tempo precioso com sentimentos de ódio. Certamente, o músico se referia a
relações pessoais, mas talvez este seja o caminho a percorrer na política face aos
protestos raivosos que dificultam os esforços de gestão da coisa pública ao longo
de 2015.
Algo que não está diretamente relacionado à distribuição de renda entre as classes,
mas que influencia em grande parte a rejeição da Câmara e do Senado ao governo
Dilma, é a disputa em torno de valores democráticos: a defesa dos direitos das
mulheres, da criança e do adolescente, dos negros e quilombolas, dos indígenas,
de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais/ LGBT. Embora não
haja uma política inovadora para estes movimentos, a presidenta vem tomando
medidas mais ousadas do que aquelas dos governos de Cardoso. Basta lembrar as
cotas raciais no serviço público e nas universidades, as tentativas de garantir o
direito ao aborto em determinadas situações previstas em lei, a atuação da
Comissão Nacional de Direitos da Mulher, o apoio aos movimentos populares. O
acolhimento das reinvindicações destes segmentos sociais provocou intensa reação
dos parlamentares conservadores, ligados sobretudo às igrejas e aos militares. Sua
animosidade chega a tal ponto que sonham em reimplantar o obscurantismo na
sociedade brasileira disseminando a aversão ao outro, o ódio ao diferente.
Buscando entender o fenômeno do ódio coletivo, Leonardo Boff recorre a dois
analistas da violência.54 Conforme René Girard (Le Bouc Émissaire, 1982), a medida
em que se acirram os conflitos políticos, o oponente precisa convencer a maioria
da sociedade de que o culpado é tal pessoa ou partido, a quem atribui toda
responsabilidade pela corrupção. Assim, consegue desviar a atenção de suas
próprias ações e, aliviado, continua com sua lógica corrupta. Já Carl Schmitt (O

54
[Acesso 8 Agosto 2015 (http://www.pt.org.br/boff-o-persistente-bullying-midiatico-sobre-o-pt/).]

297
conceito do político, 2003) atribui aos opositores na política o mesmo tipo de
raciocínio que aplicava a um determinado povo, no caso, o alemão. Dizia ele que
uma nação para firmar sua identidade deve identificar um inimigo, desqualificá-lo
e difamá-lo com todo tipo de preconceito.
Valton Miranda (2015:32) aprofunda a noção de ‘inimigo’ na teoria de Schmitt e
observa que, ao tempo em que traz elementos histórico-culturais para
compreender o surgimento do nazismo, permite leituras enriquecedoras da
política moderna, pois ‘todo governante no poder está sob a sombra fascinante da
tirania’, ou seja, o soberano transcende a vontade popular. De acordo com
Miranda, a ética schmitiana não pode ser outra senão aquela nascida da dominação
purificadora, presumida como racial ou cientificamente superior. Para o filósofo
alemão, conceito e prática do inimigo são inerentes à política, sendo esta
compreensão fundamental à ideia de soberania de um Estado de exceção, em
contraste com a visão gramsciana.
Penso que as reflexões de Gramsci (1968) sobre o Estado ampliado e o partido
político também ajudam a explicar a “crise de hegemonia” no Brasil de nossos dias.
Entendendo que o Estado é coerção revestida por busca de hegemonia, na
sociedade política, a dominação é assegurada por aparatos de força, enquanto na
sociedade civil, as classes buscam afirmar a noção de serem seus projetos
consensuais, utilizando-se de aparelhos privados de hegemonia (escolas,
sindicatos, partidos, meios de comunicação). Nos termos propostos por Gramsci,
seria um erro teórico distingui-las, pois ambas as esferas atuam para garantir a
reprodução das relações de poder necessárias ao desenvolvimento capitalista. Tal
concepção esclarece melhor a luta sistemática pelo controle do Estado, via de regra
imputada a fatores ocasionais, tais como: a intransigência parlamentar, os
sectarismos partidários, as desavenças pessoais, as acusações moralistas e as
incriminações financeiras, entre outras.
No artigo mencionado previamente, Boff argumenta que existe uma clara intenção
de tornar o PT o ‘bode expiatório’ da desestabilização política e econômica que
marca o primeiro ano do atual governo Dilma. Com isso, prossegue, procura-se
invalidar as conquistas dos trabalhadores e reconduzir ao poder aqueles que

298
sempre estigmatizaram o povo e ocuparam a burocracia do Estado em benefício
próprio.
Por um lado, os fatos objetivos, a exemplo da citada operação ‘Lava Jato’, agravados
pela acentuação ideológica da imprensa, favorecem a criação de um ambiente de
desânimo que enfraquece os laços de solidariedade e coesão nacional. A
instabilidade institucional, sem dúvida, se concentra em torno do Executivo, mas
atinge igualmente o Legislativo e o Judiciário. Os presidentes da Câmara dos
Deputados e do Senado Federal são objeto de investigação criminal. A aprovação
das contas da presidência depende do Tribunal de Contas da União / TCU, cujo
presidente responde a sindicância interna acusado de tráfico de influência. Já os
gastos com a campanha presidencial serão averiguados por um ministro do
Tribunal Superior Eleitoral /TSE que manifesta abertamente suas prefer6encias
partidárias. O Supremo Tribunal Federal / STF, julgando a partir de compromissos
políticos e conveniências corporativas, interfere nos poderes fundados na
soberania popular e nos direitos da cidadania.
Por outro lado, as desigualdades sociais persistem. Face à apatia das esquerdas,
cuja essência é crer e realizar utopias, o desencanto da juventude com partidos,
sindicatos e a própria política poderá favorecer grupos de direita, caso a ação direta
não se transforme em projeto revolucionário. No Brasil, um dos mais expressivos
protestos populares eclodiu em 2013, as chamadas ‘Jornadas de Junho’, iniciadas
em São Paulo e que, rapidamente, se alastraram por todo o país. A mobilização
inicial contra o aumento das tarifas dos transportes públicos, convocada pelo
Movimento Passe Livre, reuniu um conjunto heterogêneo de vozes rebeldes e
apartidárias que reivindicavam o direito à cidade.55 Os protestos incluíam
múltiplas demandas contra a militarização das favelas, a falta de emprego, a
violência cotidiana e seletiva que atinge a jovens negros, a precariedade dos
serviços de educação e saúde, as intervenções excludentes em benefício de
megaeventos como a Copa e as Olimpíadas, entre outras, ampliando a agenda da
mobilidade urbana. Sem poder ignorar os movimentos antiliberais, a mídia passa

55
Maiores informações sobre as ‘Jornadas de Junho’ no Brasil podem ser encontradas na coletânea de
textos ‘Cidades Rebeldes’, organizada por Maricato (2013).

299
a denominar os que deles participam de “baderneiros” e “vândalos”. Ao colocar em
cheque o modelo de desenvolvimento, a forma de fazer política e a democracia
representativa, a resistência popular renova a utopia!

E a luta continua...
Entre outros méritos, as manifestações de rua revelam que as lutas no terreno
estratégico que é o Estado expressam a correlação de forças entre as classes sociais.
As contradições no seio dos governos progressistas entre defensores do modelo
neodesenvolvimentista de caráter nacionalista e defensores do modelo neoliberal
de caráter imperialista impulsionam as lutas populares. Durante o ano de 2015, em
todo Brasil, ocorrem sucessivas greves operárias, manifestações sindicais,
ocupações de fábricas bem como de prédios por famílias sem-teto descrentes dos
programas de habitação popular e de fazendas por camponeses insatisfeitos com o
arrefecimento das desapropriações de terra. Tais acontecimentos, raramente
noticiados pela grande imprensa, refletem o descontentamento de boa parte da
base social do PT.
Mais importante, a meu juízo, evidenciam quão distante se encontra do desafio
inicial de construir um partido orgânico, “propagandista e organizador de uma
reforma intelectual e moral, o que significa criar o terreno para um
desenvolvimento ulterior da vontade coletiva nacional-popular no sentido de
alcançar uma forma superior e total da civilização moderna” (Gramsci, 1968: 8 e 9).
Em 12 anos no governo, o maior partido popular falhou em sua missão de formar
dirigentes capazes para que um grupo social “se articule e, de caos tumultuado, se
transforme em exército político organicamente predisposto” (Gramsci, 1968: 86).
É o que revela o discurso de Lula, em fevereiro de 2015, nos 35 anos de fundação do
PT, ao afiançar que esse se transformou em um partido igual aos outros:
“...deixando de ser um partido das bases para ir se tornando cada vez mais um
partido de gabinete. As direções, tanto as regionais quanto a nacional, muitas vezes
ficaram prisioneiras dessa lógica. Tornaram-se burocráticas e menos
representativas da nossa base social.”56

56
[Acesso em Abril 2015 (http://www.institutolula.org/discurso-de-lula-na-comemoracao-dos-35-anos-do-

300
Após um momento de perplexidade e hesitação face à ofensiva da elite revanchista
e oligárquica, que também mobiliza a população para ir às ruas obtendo sucesso
em seu intento golpista, as correntes democráticas e de esquerda se agrupam na
Frente Brasil Popular. Para Roberto Amaral, um de seus idealizadores, esse é “um
projeto histórico no sentido de que atende a uma necessidade do processo social.”57
Em junho teve início a mobilização de centrais sindicais, partido políticos,
pastorais, movimentos estudantis e sociais do campo e da cidade, que culmina com
o lançamento da Frente no dia 5 de setembro, em Belo Horizonte, do qual
participaram 2,5 mil representantes provenientes de 21 estados e do Distrito
Federal.
Ampla, massiva e unitária, seus objetivos são a defesa da legalidade democrática e
o combate à política socioeconômica recessiva do governo Dilma. Um de seus
compromissos é a elaboração de um novo programa de desenvolvimento nacional,
que garanta o protagonismo dos trabalhadores, dos jovens e das mulheres, a
diversidade sexual, a igualdade racial, entre outros expressos no Manifesto à
Nação. Mas isso ainda não é tudo: a FBP considera primordial democratizar os
meios de comunicação e recuperar a ideia de reforma do sistema político. C de
2015onvocadas pelo coletivo nacional da Frente, cerca de 250 mil pessoas
retornaram às ruas no dia 16 de dezembro, em 42 cidades, para defender as
conquistas sociais e resistir ao golpe antidemocrático em curso.

Um fato marcante na história das lutas por educação ocorre em novembro de 2015,
quando milhares de estudantes secundaristas resistem por cerca de um mês ao
fechamento de escolas públicas em São Paulo, ocupando mais de 200
estabelecimentos e realizando protestos nas ruas apoiados por professores, pais,
intelectuais e artistas.58 O projeto de reforma do ensino médio proposto pelo
governo de Geraldo Alckmin (PSDB) com aval do empresariado, mas sem consulta

pt )].
57
A citação consta do artigo ‘A urgência da Frente Brasil Popular’ de Roberto Amaral. [Acesso 15
Setembro 2015 (http://ramaral.org/?p=11466 )].
58
O jornal Brasil de Fato publicou extensa reportagem intitulada ‘2015: qual a lição dada pelos estudantes
secundaristas? ’[Acesso 28 Dezembro 2015
(http://www.brasildefato.com.br/node/33798?utm_source=phplist797&utm_medium=email&utm_content
=HTML&utm_campaign=Boletim+Semanal++Feliz+2 )].

301
à comunidade escolar, pretendia tornar a educação um mercado atrativo para o
setor privado.
Em dezembro, fruto da mobilização da juventude, a reorganização do sistema de
ensino é suspensa pelo governador e o secretário de educação se demite. Durante
o período da ocupação, mesmo com a violenta repressão policial e mais de 100
detidos, impressiona a rotina de aprendizado, debate político e atividades culturais
promovidos pelos estudantes, que se organizam em equipes para cumprir
diferentes tarefas e manter as escolas limpas, seguras e funcionando. Vitoriosos,
deixam lições importantes que começam a ser colocadas em prática por seus
colegas secundaristas de Goiás, contrários à proposta do governador do PSDB de
terceirizar os estabelecimentos de ensino médio.
Entre outros méritos, as ocupações estudantis expõem os graves problemas
educacionais do estado mais rico do Brasil e o modo autoritário como os dirigentes
do partido há mais de 20 anos no governo paulista lidam com as políticas públicas.
As lutas de massa ensinam que as mudanças sociais só serão conquistadas
mediante união, solidariedade e formação política.

Referências
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Janeiro: Editora Contraponto.

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familiales et forms de richesse en France. Paris: Éditions Payot & Rivages.

303
15. DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO NO RIO GRANDE DO SUL - UM
BALANÇO DE 25 ANOS DE EXPERIÊNCIAS59

Tarson Núñez

Introdução
O estado do Rio Grande do Sul viveu nos últimos 25 anos um conjunto de
experiências de participação da sociedade civil que pode ser considerado ímpar no
cenário brasileiro e mesmo internacional. Estas experiências, heterogêneas em
seus processos e associadas a distintos projetos políticos, tiveram todas em comum
o objetivo de ampliar a participação da população na gestão pública para além dos
mecanismos tradicionais da democracia representativa. Esta dinâmica política de
construção de mecanismos de participação que alguns autores (AVRITZER, 2008;
PIRES, 2011) caracterizam como Instituições Participativas (IPs), complementa e
aprofunda a democratização da sociedade brasileira iniciada com o final do regime
militar. A última década do século XX e a primeira do século XXI assistiram um
amplo processo de mobilização dos movimentos sociais e organizações da
sociedade civil que, entre outras demandas de natureza social e econômica,
reivindicaram também espaços crescentes de protagonismo político, lutando por
maior participação nos processos decisórios.
A resposta a esta demanda foi positiva, resultando na adoção crescente de
mecanismos participativos por parte dos governos. Em paralelo e para além das
liberdades democráticas tradicionais características da democracia representativa,
um conjunto de novos dispositivos institucionais participativos foi sendo
constituído. Este processo, iniciado a partir de experiências pontuais
protagonizadas por governos locais e regionais, ganha um ímpeto nacional a partir
de 2003, na medida em que o governo eleito em 2002 assume e fortalece a dinâmica
de ampliação da participação popular. As diversas instituições participativas

59
Trabalho preparado para sua apresentação no 9º Congresso Latinoamericano de Ciência Política,
organizado pela Associação Latino-americana de Ciência Política (ALACIP). Montevideu, 26 ao 28 de
julho de 2017

304
concebidas na experiência democrática brasileira têm sido integradas ao processo
de concepção, execução e controle de políticas públicas de forma cada vez mais
orgânica e sistemática.
Para alguns analistas, mais otimistas, este processo de implementação de IPs se
configura em uma mudança qualitativa na dinâmica política do país. O
fortalecimento dos conselhos de políticas públicas existentes e criação de novos, a
realização de conferências abertas à participação dos cidadãos, os processos de
consulta sobre medidas a serem adotadas, espelham uma vontade política de
aprofundar a incidência dos cidadãos sobre os processos decisórios e de gestão.
Para estes autores o processo de participação no Brasil “se encontra de tal forma
institucionalizado que se pode falar na existência de um autêntico sistema
participativo, que envolve formas normativas, organizacionais e institucionais
desenhadas estruturalmente para promover-se a participação dos cidadãos nas
decisões sobre políticas” (IPEA, 2010:56).
No entanto, a evolução dos acontecimentos aponta para uma dinâmica
completamente diferente. Ao invés da esperada consolidação da democracia, o
Brasil assiste a uma crise institucional sem precedentes. A derrubada da presidente
Dilma através de um golpe jurídico/parlamentar foi o marco inicial de um processo
de demolição das conquistas democráticas da constituição de 1988. A partir dos
protestos de rua de junho de 2013 o país assistiu a uma escalada de confrontação
política que resultou na tomada do poder por uma aliança entre os setores políticos
conservadores, o grande empresariado, as corporações da mídia e importantes
setores da burocracia estatal. Esta coalizão política vem liderando nos últimos dois
anos um processo de implementação de reformas neoliberais que se viabiliza
unicamente pelo fato de que pode ser imposto sem qualquer consulta democrática
aos eleitores. A democracia, portanto, recua no Brasil.
Como se pode explicar esta virada política? Como se passou de um processo onde
aparentemente a democracia se consolidava e se aprofundava no país para uma
dinâmica na qual não apenas este processo de avanço democrático é estancado
como recua em todos os campos? Essa é a reflexão que se propõe este estudo, que
busca explicar este processo a partir da análise das potencialidades e limites dos
mecanismos de ampliação da participação cidadã que se construíram nos 25 anos

305
entre a redemocratização e a última eleição presidencial ocorrida em 2014. Esta
reflexão toma como base teórica a abordagem de Charles Tilly acerca da
democracia como um processo dinâmico que sintetiza um complexo sistema de
interações entre os atores sociais em um dado contexto histórico. Com base nas
ideias de Tilly sobre democratização (e desdemocratização) se pode compreender
melhor a dinâmica dos processos sociais e políticos vividos, assim como apontar
explicações sobre os resultados finais do processo.
A reflexão proposta será dividida em três partes. Na primeira explicitamos os
marcos gerais da abordagem teórica, apresentando os conceitos utilizados de
democratização/desdemocratização que baseiam a análise realizada. Na segunda
se descreve o conjunto de experiências de implementação de instituições
participativas que se viveu no Rio Grande do Sul, apontando suas características,
potencialidades e limites. Por fim, na terceira parte, se apresentam algumas
reflexões que podem contribuir para explicar a incapacidade destes novos
mecanismos em se constituir enquanto um arcabouço institucional sólido que
pudesse garantir a perenidade do processo democrático.

Democracia e Democratização
O conceito de democratização, desenvolvido por Charles Tilly, contorna a
contraposição entre os distintos modelos teóricos de democracia para concentrar
sua atenção no processo político. Tendo como ponto de partida uma visão histórica
do processo de interação social, onde as lutas pelo poder entre os distintos grupos
sociais geram sucessivos patamares de equilíbrio que se materializam em
instituições, que por sua vez estabelecem o cenário onde novos e velhos conflitos
vão se desdobrando, Tilly define a democracia menos como um modelo
institucional (seja ele normativo ou descritivo) e mais como uma resultante da
dinâmica do conflito entre os atores. “Democracy emerges contingently from
political struggle in the médium run rather than being product of age-old
charachter traits or short term constitutional innovations” (TILLY, 2004:9). Neste
sentido difere tanto da abordagem culturalista, com sua ênfase nos valores dos
indivíduos, quanto da abordagem institucionalista, que privilegia as regras formais
e informais do jogo político. Tilly busca analisar a democracia mais como uma

306
resultante de um processo de luta social do que como um conjunto de valores, de
regras formais, de procedimentos e instituições. Mais como um processo em
andamento, com risco de avanços e recuos, do que como um lugar de chegada
estático e imutável.
Nesta concepção, o eixo central do conceito se desloca na direção da identificação
dos mecanismos causais que podem promover a democracia, em uma abordagem
dinâmica que tem como base a interação entre os atores baseada na noção de
“contention”60 (TILLY, 2004, 2007). Nesta ideia da política como uma arena
dinâmica de conflitos e composições, que envolvem “politically constituted actors’
making of public, collective claims on other actors, including agents of
government” (TILLY, 2004:8). Neste sentido a democracia não é o resultado
automático de valores constituídos nos marcos de culturas políticas particulares
de determinadas sociedades ou indivíduos, nem tampouco é uma resultante da
adoção de normas e procedimentos políticos institucionalizados que dão
racionalidade às disputas políticas entre uma pluralidade de atores distintos. Tanto
as culturas políticas como os desenhos institucionais são, para o autor, resultantes
dos processos históricos de lutas entre atores sociais concretos.
Para Tilly “a regime is democratic to the degree that political relations between the
state and the citizens feature broad, equal, protected, mutual binding
consultation” (Tilly, 2007, p.59). Democratização, portanto significa o movimento
na direção de relações políticas que incluam a mais ampla e crescente gama de
cidadãos, sejam cada vez mais igualitárias, protegidas por garantias legais e sejam
capazes de estabelecer um compromisso mútuo de consulta permanente entre
cidadãos e o Estado. Deliberadamente deslocando o debate do conceito do que é
democracia (ou do que deveria ser), Tilly concentra sua atenção no processo de
construção política da democracia, demonstrando que, independente dos
diferentes conceitos de natureza normativa ou instrumental, é possível sempre

60
Contention é uma palavra que pode ser traduzida de múltiplas formas para o português, sem que nenhuma
delas dê conta de maneira completa do termo. Portanto “contention” significa tanto a disputa, a contenda
(o conflito objetivo e explícito, que pode incluir a violência), como também a discórdia, a controvérsia, ou
mesmo a argumentação (que implica em formas mais simbólicas de disputa), assim como a ideia de
contenção, ou seja, uma noção de conflito que é controlável e passível de saídas consensuais.

307
identificar um movimento histórico no sentido de mais democracia ou menos
democracia.
Distanciando-se conscientemente do debate normativo sobre a democracia, mas
ao mesmo tempo evitando também o esvaziamento do conceito através de
posturas apenas descritivas dos processos de construção de instituições
democráticas, a abordagem de Tilly é voltada para a identificação dos mecanismos
e processos que promovem ou inibem a democratização. “It concentrates on
trajectories rather than origins and destinations” (TILLY, 2004,ix) Além disso, a
abordagem de Tilly permite também incorporar dimensões que vão além da
abordagem institucionalista, na medida em que dirige sua atenção também às
interações sociais, aos conflitos e às disputas de poder no âmbito da sociedade
como elementos que incidem sobre as instituições.
Para Tilly “a democracia deve ser pensada/analisada segundo uma perspectiva
processual e contingente, a qual enfatiza uma dinâmica permanente de
movimentos de democratização e suas possibilidades de retrocesso, de
desdemocratização” (IPEA. 2011:59) Sua abordagem sinaliza no sentido de
compreender que o caminho para a democracia não é sempre progressivo e
inevitável, alertando para a necessidade de compreender também os riscos de
retrocesso na democratização das relações entre Estado e sociedade. Esta visão
dinâmica do processo político, que permite a compreensão tanto dos avanços em
um sentido democratizante quanto dos obstáculos que se impõem ao
aprofundamento da democracia brasileira e deixam à espreita processos de
desdemocratização. As quatro variáveis fundamentais que, para Tilly, caracterizam
a democratização, a amplitude, a igualdade, a proteção e a construção de
compromissos mútuos entre Estado e cidadãos.
I) A amplitude, que retrata o grau em que parcelas da sociedade têm acesso aos
direitos de cidadania. Em que medida os novos dispositivos garantem uma
ampliação consistente da participação dos cidadãos;
II) A igualdade, que se refere ao grau em que os cidadãos têm acesso indiferenciado
aos direitos de cidadania sem distinções étnicas, raciais, de gênero ou quaisquer
outras. Até que ponto estas novas arenas políticas propiciam condições iguais aos
distintos atores sociais de participar das decisões em igualdade de condições;

308
III) A proteção, que retrata a segurança propiciada aos cidadãos de que o seu
envolvimento nos debates na esfera pública pode se dar sem qualquer tipo de
constrangimento, ou seja de que sua participação deve envolver a garantia de que
não sofrerão ações arbitrárias do Estado ou de outros centros de poder.
IV) O mútuo comprometimento, que indica o grau de confiança entre Estado e
cidadãos na força executória de decisões públicas. O mútuo comprometimento
representa a garantia de que os debates e deliberações nas Instituições
Participativas tenham a adesão dos cidadãos e ao mesmo tempo incidam de fato
sobre a ação do Estado na condução das políticas públicas.
Democratização e desdemocratização são processos decorrentes do avanço ou
retrocesso nessas quatro variáveis e se refletem em mudanças nos padrões de
interação entre Estado e sociedade. Além disso, a trajetória de democratização das
relações entre Estado e sociedade tem relação intrínseca com três processos
fundamentais, indispensáveis para compreender as idas e vindas da democracia em
cada Estado nacional: a) a formação de redes de confiança na esfera pública; b) o
insulamento da política das “desigualdades categóricas”, e c) a inexistência de
centros de poder autônomos. Quando estes três “processos dominantes” avançam,
amplia-se a democratização. Quando o sinal desses processos se inverte, ocorrem
retrocessos democráticos, a desdemocratização.
É a partir desta noção de democratização que a investigação dirige seu olhar
para as experiências participativas implantadas no Brasil, e especificamente sobre
as experiências realizadas no estado do Rio Grande do Sul. O quanto e como cada
uma das instituições participativas analisadas contribuiu para a ampliação da
participação, o exercício de relações políticas mais igualitárias, para a garantia de
uma participação política protegida do exercício arbitrário do poder e para o
estabelecimento de pactos políticos que comprometam o Estado e todos os demais
atores sociais envolvidos é a nossa medida de eficácia das Instituições
Participativas.

As experiências de participação popular no Rio Grande do Sul


A proliferação de instituições participativas no Brasil, e especificamente no Rio
Grande do Sul, se insere neste contexto do processo de (re)construção da

309
democracia após o final da ditadura militar, sua consolidação institucional e seu
desenvolvimento recente. A própria transição, vivida em um momento de ampla
mobilização social, já se fazia nos marcos de uma intensa participação social e de
organização da sociedade civil. A ação de todo um leque de movimentos sociais
originários da base da sociedade, que iam desde o novo sindicalismo, passando por
movimentos sociais urbanos voltados para a luta por moradia, ativistas de
comunidades de base da Igreja Católica, um forte movimento em defesa da saúde
pública, por toda uma constelação de organizações e de lutas sociais que
convergiram no processo de luta contra a ditadura, levou a experiência de
democratização na direção de esferas que vão muito além dos espaços tradicionais
da democracia representativa de molde liberal (SADER, 1988).
O processo de redemocratização foi acompanhado de uma proliferação de todo um
conjunto de mecanismos de participação que se materializaram em instituições
participativas que se desenvolvem paralelamente e em uma relação permanente
com as instituições formais da democracia representativa. O novo arranjo
institucional estabelecia não apenas o princípio da participação direta da
população nas decisões de governo (art 1º parágrafo único da Constituição Federal)
como a criação de novos mecanismos, como os Conselhos de Políticas Públicas
e toda uma dinâmica de conferências nas quais a população e a sociedade civil
organizada foram chamadas a participar. O Rio Grande do Sul tem hoje 29
conselhos de políticas públicas com diferentes perfis e composições, que
realizaram, apenas entre 2011 e 2014, 36 conferências em organizadas a partir da
parceria entre o executivo estadual e distintos fóruns e movimentos da sociedade
civil (RIO GRANDE DO SUL, 2014:32-35). Estes conselhos implicam na
participação sistemática de mais de 300 organizações da sociedade civil nas
discussões de políticas públicas.
A literatura disponível sobre os conselhos setoriais sinaliza a expectativa otimista
que cercava a materialização de um conjunto de novos espaços institucionais de
participação para as OSCs, concebidos “para incorporar de forma efetiva a
participação da sociedade civil na gestão pública” (ALLEBRAND, 2002:73) em uma
perspectiva de cogestão das políticas públicas (CARVALHO e TEIXEIRA, 2000).
Estes conselhos muitas vezes estão associados a fóruns pré-existentes articulados

310
a partir de organizações e movimentos sociais setoriais, organizados justamente
com o propósito de incidir sobre a formulação e implementação de políticas
públicas em suas áreas de interesse. Os Conselhos permitiriam uma ampliação da
participação cidadã, operando no sentido da democratização das estruturas de
gestão.
No caso do Rio Grande este debate ganhou também uma dimensão territorial, a
partir da constituição de Conselhos Regionais de Desenvolvimento (Coredes).
Estes conselhos surgiram no início dos anos 90, a partir da iniciativa de instituições
locais de algumas regiões, com o objetivo de se constituir em um espaço de
articulação das organizações da sociedade civil locais no seu diálogo com o Estado.
Seu objetivo é debater, propor e contribuir na implementação de ações voltadas
para o desenvolvimento territorial. A experiência de constituição destes conselhos
de desenvolvimento em todas as regiões do estado constituiu uma rede que
estabeleceu uma interlocução entre a sociedade civil das regiões e o governo
estadual (BANDEIRA, 1999). A existência destes conselhos foi institucionalizada
pelo executivo estadual em 1994 através da lei 10.283/94 que institucionalizou os
Conselhos e os incorporou como parte integrante do sistema de planejamento
estadual. Desde sua institucionalização os Coredes se tornaram atores relevantes
no cenário político estadual, incidindo sobre os processos de discussão de políticas
públicas, particularmente no que diz respeito ao debate orçamentário sobre os
investimentos do governo estadual.
Inspirados nas experiências de gestão territorial desenvolvidas na França e nas
formulações teóricas relacionadas com o conceito de capital social (PUTNAM,
1996), os Coredes inserem a temática da participação cidadã no âmbito do debate
sobre o desenvolvimento. A dinâmica participativa era encarada como uma forma
de “articular e mobilizar os agentes locais do desenvolvimento, tendo em vista sua
participação crescente e direta na construção de uma inserção diferenciada e
alternativa ao processo de desenvolvimento global contemporâneo” (BECKER,
2000:96). A participação, neste caso, se associa a processos que envolvem uma
dimensão socioeconômica, a discussão de projetos de desenvolvimento regional.
Nos anos 90 a convergência entre a crescente legitimação das experiências
participativas em nível local por parte de instituições internacionais e o sucesso

311
político do Orçamento Participativo em Porto Alegre, capitalizado pelo PT, gerou
no Rio Grande do Sul um movimento generalizado de adesão de um conjunto de
forças políticas heterogêneas aos cânones da participação. A partir de 1998 os
Coredes, em parceria com o Governo do Estado e a Assembleia Legislativa
iniciaram um processo de envolvimento da cidadania nas decisões orçamentárias
estaduais. Criada pela lei 11179/98, a Consulta Popular é um processo através do
qual os cidadãos podem votar de forma direta nas decisões dos investimentos do
poder executivo. Este processo de consulta, no qual os cidadãos são chamados a
debater e decidir sobre uma parte dos investimentos do estado, se constituiu no
mais duradouro processo de participação institucionalizado no Rio Grande do Sul,
sendo realizado anualmente desde 1998, sem interrupções, independentemente
das mudanças de orientação dos distintos governos desde então. A tabela I mostra
o número de eleitores que participaram da Consulta anualmente desde a sua
criação.

Tabela I. Votação da Consulta Popular

ANOS
Total de votantes Voto via internet % sobre o eleitorado
1998 379.205 - 5,53
1999 188.528 - 2,75
2000 281.926 - 3,96
2001 378.340 - 5,14
2002 333.040 - 4,52
2003 462.283 3.137 6,28
2004 581.115 6.224 7,70
2005 674.075 44.549 8,86
2006 726.980 85.980 9,40
2007 369.417 39.737 4,74
2008 478.310 49.501 6,04
2009 950.077 136.377 11,94
2010 1.217.067 177.596 15,00
2011 1.134.141 135.996 14,00
2012 1.026.749 119.749 12,32
2013 1.125.129 157.549 13,53
2014 1.315.593 255.751 15,83
FONTE: Fórum dos Coredes/Secretaria do Planejamento/TSE

Também em 1998 a eleição de Olívio Dutra, do Partido dos Trabalhadores, para o


governo do estado marca um novo avanço em termos da construção de instituições
participativas no estado do Rio Grande do Sul. A partir de 1999 o governo da Frente

312
Popular (PT, PSB e PDT) inicia a implementação do Orçamento Participativo
em escala estadual. Esta experiência, que tinha como base quase 10 anos de
experiência participativa bem sucedida em nível local em Porto Alegre e em outras
cidades do estado, foi então experimentada pela primeira vez em uma escala mais
ampla. Esta experiência se caracterizou por uma intensa mobilização social e uma
participação significativa de cidadãos nas assembleias locais e regionais. Isto se deu
especialmente no seu primeiro ano onde, em função de um questionamento
judicial por parte da oposição o Estado foi proibido de investir recursos públicos e
de utilizar a estrutura governamental para organizar o debate. Um esforço
organizativo intenso das organizações vinculadas aos movimentos sociais garantiu
um processo de mobilização que envolveu a participação de 190 mil pessoas em
622 Assembleias Públicas municipais em 467 municípios do estado (Souza, 2000:3).
Nos quatro anos seguintes, até 2002, o OP estadual seguiu mobilizando centenas
de milhares de cidadãos em suas assembleias. No entanto, com a derrota do PT nas
eleições estaduais de 2002 o processo foi suspenso, para ser retomado somente na
década seguinte.
A partir de 2003 as dinâmicas de participação no Rio Grande do Sul ganham um
novo impulso, em função da mudança decorrente da vitória de Lula na eleição
presidencial. O governo federal, ainda que não tenha estabelecido mecanismos de
participação direta da população nos moldes do OP, buscou fortalecer as
possibilidades de participação a partir das estruturas já existentes. Sua atenção se
concentrou, sobretudo, no papel dos conselhos setoriais, e no fortalecimento dos
mecanismos que permitissem torná-los instrumentos para a ampliação da
participação da sociedade. Isso se materializou na realização de conferências
temáticas no âmbito dos conselhos de políticas públicas, concebidas como
instrumentos de debate e formulação participativa de políticas públicas.
Estas conferências foram realizadas pelo governo federal com apoio dos governos
estaduais e municipais e em parceria com os conselhos setoriais de políticas
públicas. Suas versões estaduais e municipais implicaram no envolvimento direto
de um número significativo de cidadãos, movimentos sociais e OSCs. No Rio
Grande do Sul no período entre 2011 e 2014 foram realizadas 36 conferências
estaduais de políticas públicas, 14 em 2011, 5 em 2012, 10 em 2013 e 7 em 2014

313
(SEPLAG, 2014:36). Na organização destas conferências esteve envolvido também
um conjunto de fóruns da sociedade civil que se constituem em interlocutores do
Estado no âmbito destes conselhos setoriais. Os conselhos, portanto, nestes casos,
além de se constituírem em espaços de diálogo e construção de políticas públicas,
são também indutores, ou estão associados a processos de organização da
sociedade civil.
O último marco significativo deste percurso de construção de instituições
participativas no Rio Grande do Sul foi durante o governo Tarso Genro (2011-2014),
quando se buscou unificar e organizar de forma mais articulada o conjunto de
experiências institucionalizadas nos períodos anteriores, agregando ainda a
incorporação dos instrumentos da Tecnologia da Informação (TI) na
implementação de mecanismos deliberativos em nível estadual. O “Sistema
Estadual de Participação Cidadã” (SISPARCI). A implementação deste “Sistema
de Participação”, que buscou articular as ações de todo o conjunto de instituições
participativas existentes de maneira a gerar uma sinergia entre as distintas
experiências representou uma ambiciosa tentativa de construir uma nova dinâmica
democrática na relação entre o Estado e os cidadãos no Rio Grande do Sul. O
Sistema buscava articular a ação dos mecanismos já instituídos (os conselhos
setoriais, o debate regional dos COREDES, o OP em nível estadual e a consulta
popular) com a adoção de mecanismos de consulta à população via internet. A
todos estes mecanismos se somava o Conselho de Desenvolvimento Econômico e
Social, um espaço representativo da pluralidade da sociedade civil voltado para a
concertação em torno de projetos e políticas públicas.
O estudo desses vinte e cinco anos de experimentos democráticos no RS aponta
alguns elementos para compreender as potencialidades e limites do papel das
novas instituições participativas. Todas estas experiências tiveram em comum um
viés democratizante, possibilitando a ampliação da participação dos cidadãos em
condições mais igualitárias, com garantias legais e o estabelecimento de
compromissos mútuos em torno das decisões em relação às políticas públicas.
Foram momentos, portanto, de avanço no sentido da democratização do Estado
no Brasil. No entanto este avanço, no longo prazo, revelou-se insuficiente. Os
dados disponíveis tanto em relação à percepção dos cidadãos acerca da democracia

314
e da política, quanto os desdobramentos políticos recentes apontam para uma
trajetória na direção da desdemocratização.

Os limites da democratização
Todo este processo está associado à ampla mobilização social que acompanhou a
conjuntura de redemocratização do país, especialmente no final dos anos 80 e no
início dos 90. Esta mobilização, cujo móvel inicial era o fim da ditadura, combinou
as demandas de restauração dos mecanismos clássicos da democracia
representativa com uma forte inflexão no sentido da defesa de uma maior
participação da sociedade civil nos processos decisórios, em uma perspectiva que
pretendia ir além dos processos eleitorais periódicos. A construção de novos
mecanismos participativos foi uma demanda de amplos setores da sociedade civil
organizada, que demandavam instrumentos através dos quais fosse possível
garantir um processo mais sistemático de consulta aos cidadãos para além dos
processos eleitorais.
A construção de IPs foi uma resposta a estas demandas da sociedade por
maior participação, que foram respondidas de maneira positiva por praticamente
todas as forças políticas do campo democrático. Frente à demanda de participação
os sucessivos governos responderam desenhando mecanismos institucionais que
possibilitassem uma maior participação dos cidadãos, representados pelas
organizações da sociedade civil ou de forma direta. Este círculo virtuoso de
demanda social e reforma institucional deveria conduzir a uma crescente
adequação do funcionamento do Estado às demandas de participação dos cidadãos
e, consequentemente a uma maior legitimação do sistema político e do próprio
Estado. No entanto, como é possível constatar tanto através de pesquisas empíricas
sobre a percepção dos cidadãos quanto pelas crescentes manifestações críticas de
um contingente crescente de cidadãos em relação às nossas instituições
representativas, não se pode dizer que o sistema político tem conseguido
responder a contento a estas inquietações.
A análise histórica deste processo de construção e consolidação de
instituições participativas sinaliza no sentido de corroborar as perspectivas mais
céticas em relação às virtualidades dos processos de participação da sociedade civil.

315
Passados os primeiros anos de entusiasmo associado à emergência de novas
experiências de participação política, a observação mais detida sobre as reais
potencialidades democratizantes e sobre os limites das novas instituições
participativas apontam muito mais na direção das fragilidades destes processos.
Sobretudo fica patente que a superação dos limites da democracia representativa
passa pelo desafio de um programa mais amplo de reforma política e de reforma
do Estado. A simples superposição de novos espaços de participação e deliberação,
sem que se alterem os mecanismos mais estruturais da relação do Estado e do
sistema político com os cidadãos se mostra incapaz de promover uma
democratização mais efetiva.
No caso brasileiro esta contradição entre a ampliação dos espaços de participação
e uma latente insatisfação dos cidadãos em relação ao sistema político como um
todo ficou dramaticamente exposta a partir das manifestações de rua massivas em
junho de 2013. Analisando os impactos dessas manifestações Romão (2013) sinaliza
a aparente disjuntiva entre espaços de participação ampliada e a insatisfação dos
cidadãos. Para o autor “construiu-se, nos últimos trinta anos... um sistema paralelo
de representação plenamente institucionalizado que se estabeleceu colado aos
sistemas de políticas públicas que se desenvolveram no país desde os anos 1990,
nos marcos da Constituição Federal de 1988 (CF/1988)”. Este “audacioso sistema”,
baseado em conselhos, conferências, audiências públicas e outros instrumentos de
participação não se mostrou capaz de absorver insatisfações decorrentes do
“sentimento de indiferença, de carência ou ausência de sentimento de
representação da parte do cidadão” (ROMÃO, 2013, p.15).
Pelo contrário, a insatisfação materializada nas manifestações multitudinárias de
junho de 2013 se dirigia não apenas aos mecanismos tradicionais da democracia
liberal (“não me representa”, era o mantra dirigido aos políticos e às autoridades
de modo geral), como também expressava uma descrença em relação aos novos
mecanismos de participação política, reservando à ação direta a maior parte da sua
energia política. Em documento do Movimento Passe Livre publicado ainda em
2013 os ativistas afirmavam: “É assim, na ação direta da população sobre a sua vida
– e não a portas fechadas, nos conselhos municipais engenhosamente instituídos

316
pelas prefeituras ou em qualquer outra das artimanhas institucionais -, que se dá a
verdadeira gestão popular” (MARICATO, 2013:16).
Portanto a relevância da abordagem proposta decorre também de uma constatação
mais ampla acerca do desgaste da imagem das instituições políticas verificado nas
primeiras décadas deste século, no Brasil, na América Latina e no mundo. Por toda
a parte se pode identificar, na mídia ou em análises acadêmicas, uma crescente
insatisfação em relação às instituições e uma crítica sistemática aos políticos, aos
partidos, aos governos, ao Estado e ao sistema político como um todo. O que nos
leva a uma contradição: termos de um lado um Estado que aparentemente é cada
vez mais democrático e aberto à participação dos cidadãos e, de outro, um número
cada vez maior de cidadãos que não se sentem representados pelo sistema político
e pelas instituições estatais.
As duas décadas do final do século XX foram caracterizadas, em escala global, por
um avanço da democracia liberal como forma institucional hegemônica de
exercício do poder político. A queda dos regimes autoritários do chamado
“socialismo real” no leste europeu, os processos de mudança de regime no sul da
Europa, na América Latina e em outras partes do mundo significaram um
momento de afirmação da democracia, no que foi denominado por autores no
campo da ciência política como a “terceira onda” de democratização
(HUNTINGTON, 1994). Este processo de (re)constituição de regimes democráticos
em escala global teve como uma de suas principais características uma
preocupação crescente com a participação da sociedade civil no processo político,
como um instrumento de ampliação da legitimidade, da gestão democrática e da
eficiência das políticas públicas (COHEN e ARATO, 1992).
No Brasil a transição combinou uma intensa pressão política de baixo para cima
por parte de movimentos sociais e das forças políticas de oposição mais radical
com uma negociação entre setores do regime e as parcelas moderadas da oposição.
Este processo teve o seu ponto decisivo na entrega do poder por parte dos militares
através da eleição de um governo civil no colégio eleitoral em 1985 e se
institucionalizou através da construção de um novo marco jurídico-legal no
processo constituinte de 1988. Desde então o processo democrático se consolidou,
tanto do ponto de vista das instituições tradicionais da democracia representativa

317
dentro dos marcos tradicionais do pluralismo poliárquico, como do ponto de vista
da emergência de iniciativas voltadas para a institucionalização de dispositivos
voltados para uma participação mais ampla e direta dos cidadãos e da sociedade
civil organizada na vida política.
No entanto, as primeiras décadas do século XXI apontam para um sentido
diferente, tanto no Brasil como no mundo. Um número cada vez maior de
evidências indica um crescente descontentamento dos cidadãos em relação aos
mecanismos de representação política. As mudanças estruturais associadas ao
processo de globalização, o crescimento do poder político do capital financeiro
sobre os Estados Nacionais, a desestruturação do tecido social decorrente dos
processos de ajuste macroeconômico e das políticas de austeridade implementadas
em nível global vem contribuindo para o desgaste das instituições políticas e para
uma crise de legitimidade das estruturas de representação. Os movimentos
internacionais antiglobalização do início do século XXI que resultaram no Fórum
Social Mundial, assim como as mobilizações dos “indignados” do movimento 15 M
na Espanha em 2011, os protestos do movimento “Occupy Wall Street” no mesmo
ano e as mobilizações de junho de 2013 no Brasil demonstram um
descontentamento crescente de parcela significativa dos cidadãos comuns em
relação ao processo político.
As manifestações citadas são apenas a ponta mais visível e recente de um iceberg
de crescente desconfiança dos cidadãos em relação aos governos de modo geral.
“Over the past three decades public confidence has dropped in half in many
situations…Canada, Britain, Italy, Spain, Belgium, the Netherlands, Norway,
Sweden and Ireland have also seen some decline of trust in government” (NYE et
all,1997 p.2). Esta queda na confiança em alguns momentos tende mesmo a se
converter em um sentimento mais generalizado de desconfiança em relação às
instituições democráticas como um todo.

“tendo em conta as suas orientações normativas, expectativas


e experiências, os cidadãos percebem as instituições como
algo diferente, senão oposto, àquilo para o qual existem: neste
caso, a indiferença ou a ineficiência institucional diante de

318
demandas sociais, corrupção, fraude ou desrespeito de
direitos de cidadania geram suspeição, descrédito e
desesperança, comprometendo a aquiescência, a obediência e
a submissão dos cidadãos à lei e às estruturas que regulam a
vida social” (MOYSÉS, 2005 p.33).

A insatisfação da cidadania em relação ao desempenho e à qualidade das


instituições políticas se manifesta no que alguns autores descrevem como uma
crise do próprio processo de representação política, que no limite pode representar
uma ameaça à própria estabilidade das instituições democráticas. “Pesquisas
recentes sugerem que níveis decrescentes de confiança nos políticos e nas
instituições parecem ser uma tendência global que afeta não somente as
poliarquias ricas, mas também democracias nascentes no mundo em
desenvolvimento” (POWER e JAMESON, 2005:65).
Os dados disponíveis no Latinobarômetro corroboram estas afirmações. Ainda que
a maioria dos cidadãos latino-americanos (56%) considere a democracia preferível
em relação a qualquer outra forma de governo, apenas 39% dos mesmos se
declaram satisfeitos com o funcionamento da democracia em seu país, ao passo
que 57% se consideram insatisfeitos ou muito insatisfeitos. E solicitados a avaliar a
democracia em seu país apenas 8% dos entrevistados afirmaram considerar seu
país uma democracia plena, 30% uma democracia com pequenos problemas, 46%
uma democracia com muitos problemas e 9% afirmaram considerar que seu país
não é uma democracia. Estas críticas ao sistema político não são uma característica
exclusiva da América Latina. No mesmo relatório uma comparação com um
projeto análogo em nível europeu (Eurobarômetro) indica que o índice de
satisfação com a democracia naquele continente caiu de 56%, em 2000, para 38%
em 201361.
No caso do Brasil os índices de insatisfação com a democracia são ainda mais altos.
Menos da metade dos entrevistados (48,5%) na pesquisa do Latinobarômetro
consideram que a democracia é preferível a qualquer outra forma de governo,

61. Dados do Informe 2013 da Corporación Latinobarômetro acessado em 20/02/2015, em


http://www.latinobarometro.org/latContents.jsp,.

319
apenas 26% se declaram satisfeitos com o funcionamento da democracia no país e
69,2% se consideram insatisfeitos ou muito insatisfeitos. E apenas 3,9%
consideram que o Brasil é uma democracia plena, 25,9% uma democracia com
alguns problemas, 56,5% consideram que o país vive uma democracia com muitos
problemas. Os índices brasileiros de descontentamento com a democracia,
portanto, são ainda mais altos do que a média do continente.
Esta realidade provavelmente se aplica também ao caso do Rio Grande do Sul,
ainda que não existam estudos empíricos em nível estadual. No entanto, survey
realizado em Porto Alegre ainda em 2005, constatava que 87,5% dos entrevistados
concordam totalmente ou em parte com a afirmação de que “todos os políticos são
corruptos”, 87,1% dos entrevistados discordam da afirmativa de que “o Estado é
eficiente na aplicação dos recursos públicos” e 96,7% afirmam que “os políticos
prometem e não cumprem” (BAQUERO, 2007:12). Estes dados nos levam à
constatação de que realmente há uma contradição crescente entre a existência e
ampliação dos espaços de participação política à disposição dos cidadãos ao
mesmo tempo em que os mesmos se sentem cada vez mais alheios e impotentes
em relação aos processos políticos de decisão. Por que os cidadãos, mesmo tendo
a seu dispor um conjunto de mecanismos explicitamente voltados para uma maior
permeabilidade do Estado às suas demandas, se sentem cada vez menos
representados pelo sistema político? As experiências estudadas sinalizam para dois
elementos essenciais apontam para dois elementos centrais: a) de um lado o fato
de que as mudanças democratizantes foram implementadas sem que se alterassem
as estruturas políticas do Estado, apenas superpondo as inovações democráticas
aos mecanismos tradicionais da democracia representativa; e b) ao mesmo tempo
em que as estruturas políticas do Estado foram sendo democratizadas, a sociedade
passava por processos de desdemocratização.

A democracia como um enxerto em um Estado estruturalmente autoritário


Quanto ao primeiro elemento limitador das perspectivas democráticas o que se
pode dizer é que a dinâmica de democratização do Estado é limitada. A adoção de
mecanismos participativos se deu de forma incremental, assistemática e muito

320
mais em uma dinâmica de reformas que respondiam a pressões externas do que a
um projeto efetivo de democratização do Estado. As mudanças foram pontuais, ou
seja, localizadas em termos de escopo ou abrangência, e as novas IPs não
substituíram os mecanismos tradicionais, apenas agregaram novos procedimentos
de participação. A falta de um projeto de democratização mais consistente se
materializa em uma instabilidade institucional: processos são instituídos, para logo
após serem suspensos pelo governo subsequente (como o OP). Espaços são
instituídos com um determinado desenho para serem a seguir modificados
sucessivas vezes, tendo suas atribuições e composição constantemente alterados.
As novas IPs implementadas nestes trinta anos não alteraram as estruturas
essenciais do Estado, particularmente os mecanismos de acesso ao poder
estabelecidos nos marcos da democracia representativa. Neste sentido, a
observação de Wampler (2011), de que as IPs se constituíram enquanto “enxertos”
na estrutura do Estado explica, em grande parte, o limitado impacto em termos de
uma efetiva transformação da relação entre o Estado e os cidadãos. Os novos
espaços participativos foram agregados de maneira superposta às estruturas
tradicionais, que não foram alteradas. E não foram alterados, muito especialmente,
os mecanismos de acesso ao poder político, que continuaram sendo aqueles da
democracia representativa. As eleições seguiram sendo o mecanismo essencial do
processo político e a criação de IPs esteve sempre subordinada ao poder decisório
dos detentores do poder executivo. O poder de fato decorre dos processos
eleitorais, restando aos mecanismos de democracia participativa um papel
acessório e complementar com muito pouca incidência sobre as decisões mais
importantes.
Eram sempre os governos que decidiam quais processos participativos deveriam
ser implementados, e como os espaços de participação deveriam funcionar. Às IPs
se atribuem incidência sobre políticas setoriais, sejam elas de natureza temática
(saúde, educação), territorial (desenvolvimento regional, gestão metropolitana) ou
relacionadas a determinados grupos sociais (negros, jovens, índios, mulheres). O
caráter fragmentado do Estado brasileiro, no qual cada parte da máquina do Estado
trata de um tema ou uma política, de maneira isolada, permite que se adotem
práticas participativas em determinadas áreas das políticas públicas sem que isso

321
implique em uma discussão do conteúdo mais geral dos programas e das práticas
de governo. E mais, sem que o debate destas pautas setoriais atinja o centro da
agenda política. A participação, portanto, se dá a partir de uma dinâmica
extremamente setorializada e, como pudemos ver, sem uma incidência mais
objetiva sobre as políticas mais gerais dos governos. As únicas tentativas de adoção
de iniciativas mais consistentes e radicais, como o OP entre 1999 e 2002, ou de
maior amplitude e caráter sistêmico, como o SISPARCI, foram eliminadas com a
mudança de governo nas eleições.
A democratização proporcionada pela implementação de IPs, portanto, na medida
em que não veio acompanhada de uma efetiva reforma democrática do Estado na
sua totalidade, assim como de uma reforma política, fica profundamente limitada
pelas características estruturais do Estado. A estratégia de democratização
adotada, de superposição de novas estruturas por sobre as antigas instituições,
evitando rupturas e reformas mais profundas, estabelecem limites incontornáveis
ao processo de democratização. A participação, operando como um complemento,
tendo muito pouco peso efetivo em relação aos mecanismos tradicionais da
política representativa não é capaz de incorporar contingentes mais amplos da
população. Os espaços existentes nas novas IPs incorporam organizações da
sociedade civil que em sua maioria são de natureza setorial ou temática, que
ganham espaços de negociação e deliberação em torno de seus interesses
específicos, mas que dificilmente são capazes de protagonizar debates mais
substantivos em relação à democracia e aos projetos políticos em disputa. A
existência de espaços compartilhados de debate de temas setoriais mostrou muito
pouca capacidade de influenciar sobre a agenda política efetiva do Estado.

Democratização da política, desdemocratização na sociedade


Até este momento o foco da análise se concentrou no desenho institucional dos
processos de participação. No entanto é importante ainda considerar outras
variáveis que possam contribuir no sentido de compreender melhor a dinâmica
entre o processo de implantação de novas instituições participativas e a
democratização do Estado. Ainda que a análise do desenho institucional como se
viu nas seções anteriores, implique necessariamente na observação da forma pela

322
qual a sociedade civil se relaciona com os processos políticos, não se pode focar
apenas nas interações cidadão-estado. As relações de confronto, aliança,
rivalidades e dominação fora do Estado também são fundamentais para
compreender os processos. Até porque “prevailing non-state forms of power
strongly affect the possibility of democratization” (TILLY, 2007:13). Isto é
especialmente importante em uma sociedade como a brasileira, onde a
desigualdade não se resume às diferenças de condição socioeconômicas dos
cidadãos, mas envolve também violentas assimetrias de poder e relações intensas
de dominação social.
Isso nos leva a outra variável fundamental para analisar a efetividade das IPs que
se relaciona com o nível de organização da sociedade civil (AVRITZER, 2008). Este
incide de forma muito direta no processo, na medida em que muitas vezes a criação
de IPs é resultante de uma pressão de fora para dentro do Estado e de baixo para
cima na sociedade. Seja por uma pressão direta e explícita de setores sociais que
demandam participar das decisões, seja através da consolidação de uma difusa
cultura democrática que valoriza a participação e se transforma em um incentivo
para os atores políticos, dificilmente as mudanças democratizantes resultam de
uma decisão unilateral dos governantes. Portanto o nível de organização e
mobilização da sociedade civil é decisivo na construção de instituições
participativas.
A sociedade brasileira viveu um processo de intensa mobilização no período da
transição da ditadura para a democracia. Novos personagens entraram em cena
(SADER, 1988) e os movimentos sociais cumpriram um papel essencial na
redemocratização (SINGER e BRANT, 1982). Esta luta contra a ditadura não se
resumia simplesmente à demanda de restauração dos mecanismos formais da
democracia representativa, mas expressava também uma demanda de
protagonismo e de inclusão ao processo político de um arco mais amplo de atores
sociais. É desse impulso democratizante e radical que emergem as demandas e os
conceitos que orientaram a dinâmica de ampliação dos espaços democráticos no
Brasil contemporâneo. No entanto, desde este período de profunda mobilização
popular e os dias de hoje a situação social no país mudou muito, e estas

323
transformações incidiram também sobre a forma através da qual a sociedade civil
se organiza.
As mudanças econômicas, sociais e políticas vividas pela sociedade brasileira nas
últimas três décadas impactaram não apenas sobre a forma pela qual a sociedade
civil se relaciona com o Estado, mas também sobre a própria sociedade. De um
lado consolidação de uma forte e ativa sociedade civil, uma rede cada vez mais
densa e complexa de organizações, instituições, movimentos sociais e meios de
comunicação, alterou de maneira significativa e estrutural a relação entre o Estado
e a sociedade. Este processo contribuiu de uma forma decisiva para uma crescente
democratização do Estado. Por outro lado, processo de transformações sociais e
econômicas incidiu também sobre a própria estrutura da sociedade civil, alterando
a sua própria configuração. Nas décadas de 80 e 90 o processo de “ajuste
econômico” incidiu de maneira muito direta sobre a estrutura da sociedade
brasileira.
Somando-se às características estruturalmente autoritárias do modelo de
desenvolvimento brasileiro, o processo inflacionário, as privatizações, o
desemprego, as políticas de ajuste estrutural baseadas nos princípios do “Consenso
de Washington” levaram a uma desestruturação do incipiente processo de
organização da classe trabalhadora e de amplos setores das classes médias. A
manutenção de um processo econômico concentrador e excludente de um lado
fragilizou a rede de instituições e organizações que representavam os grupos
subalternos urbanos e rurais. De outro lado a concentração de renda se dá em
paralelo com fortalecimento e ampliação da capacidade dos setores proprietários
em se fazer ouvir através de uma rede de instituições e organizações que também
fazem parte da sociedade civil organizada. No conjunto da sociedade, as
consequências sociais do processo de ajuste dos anos 90 implicaram também em
uma crescente privatização da vida social, um predomínio das opções de ação
individual sobre as formas coletivas, a legitimação do auto interesse em detrimento
do interesse coletivo. Além disso, a disparidade social se refletiu também em uma
hierarquização crescente e na redução dos laços de solidariedade social
decorrentes da assimetria da distribuição dos recursos sociais, econômicos e de
poder entre os diferentes grupos sociais.

324
O processo de mudanças vivido com a chegada dos governos de esquerda a partir
de 2003, na medida em que não se propôs a uma ruptura global com o modelo de
desenvolvimento, não foi capaz de alterar esta dinâmica. Do ponto de vista
econômico, a inclusão social e a melhoria da situação econômica de amplos setores
da classe trabalhadora decorrentes das políticas dos governos progressistas foi
implementada a partir de uma estratégia “top down”, a partir do Estado, não
associada a um fortalecimento de uma dinâmica de organização social autônoma
de sentido emancipador. A análise de Singer (2012) sobre o conteúdo e significado
do projeto “Lulista” de desenvolvimento mostra de maneira muito clara o impacto
de um modelo que possibilitou, em função de particularidades conjunturais da
situação brasileira e internacional, melhorar a situação econômica dos setores
subalternos sem alterar de forma substancial o modelo social e econômico (e
político) anterior.
A estratégia implementada, orientada por uma ação a partir do Estado, deslocou
um contingente importante de quadros políticos e a maior parte da energia política
para dentro do aparelho estatal e para a ação institucional nos marcos do âmbito
das instituições da democracia representativa, esvaziando o esforço de organização
da sociedade civil. Um contingente significativo de ativistas dos movimentos
sociais, especialistas acadêmicos e técnicos e quadros políticos dos movimentos
sociais foram incorporados ao aparelho de Estado, distanciando-se do trabalho
cotidiano de organização da sociedade civil. No sentido inverso, quadros
importantes de gestão política e administrativa vinculados ao projeto neoliberal,
assim como toda uma geração de novos profissionais que ingressaram no mercado
de trabalho, foram profissionalizados em instituições que passaram a compor um
novo contingente de instituições que passaram a compor a sociedade civil.
A decorrência desta convergência entre mudanças socioeconômicas e políticas
resulta em uma situação na qual o processo de democratização da sociedade
brasileira adquira um caráter contraditório. E é desta contradição que resulta uma
situação paradoxal na qual se observa uma efetiva democratização no âmbito
político (sobretudo no que diz respeito aos instrumentos de participação dos
cidadãos na vida política) e uma sensação generalizada de desapreço dos cidadãos
em relação à política, aos governos e ao Estado. Do ponto de vista econômico e

325
social é evidente que houve uma efetiva melhora nas condições de vida e a inclusão
de um contingente crescente de brasileiros ao mercado de consumo. No entanto,
os marcos estruturais excludentes e elitistas da estrutura social brasileira não
foram substancialmente alterados. O predomínio do capital financeiro, o
fortalecimento de setores oligopolistas no âmbito econômico, a privatização
crescente da vida social e da própria economia, a mercantilização e privatização
das relações sociais no âmbito cultural e pessoal, são tendências estruturais que
não foram alteradas.
Desta forma a crescente democratização formal das estruturas políticas não teve
correspondência em uma democratização social e econômica. Neste sentido, se
pode dizer então que paralelamente ao processo de democratização do Estado,
assistimos um processo de desdemocratização da sociedade civil. Cohen & Arato
(1992), em sua análise do debate sobre o conceito de sociedade civil e seu papel nas
transições de regimes autoritários para democracias, sinalizam para a possibilidade
de um processo regressivo, com transformações no sentido de uma sociedade civil
atomizada, despolitizada e privatizada. Bresser Pereira aponta para o fato de que
as desigualdades sociais e as disparidades de renda e de poder na sociedade
capitalista geram uma situação na qual se observa uma “concentração de poder
político em alguns cidadãos dotados de maior capacidade de organização, ou de
maior capital, ou de maior conhecimento” (Bresser Pereira 1999:107). Isto configura
a possibilidade de materialização de tendências elitistas e antidemocráticas
também no âmbito da sociedade civil. Neste sentido a aparente contradição entre
um Estado crescentemente democratizado e um desapego dos cidadãos em relação
à política e a democracia pode ser explicado pelo fato de que esta democratização
da política no âmbito estatal foi acompanhada por um processo inverso no âmbito
da sociedade civil, que caminhou no sentido da atomização, despolitização e
privatização.
O quadro abaixo apresenta uma proposta de sistematização destes processos de
mudança social que incidiram sobre a sociedade civil brasileira, com impactos
evidentes sobre o processo de democratização. Tomando como base o período
inicial e o final de nossa investigação é possível isolar algumas características
fundamentais tanto do ponto de vista da composição como das formas de

326
funcionamento das organizações da sociedade civil, que apontam no sentido de
uma crescente desmobilização, atomização, privatização, despolitização e
burocratização. Estes processos tem um impacto direto sobre as possibilidades de
democratização, na medida em que a ocupação pela sociedade dos espaços abertos
no âmbito das instituições participativas não é um processo abstrato, mas sim uma
experiência que envolve atores sociais concretos, atores estes que mudaram muito
nos últimos anos.

Indicadores de mudanças nos padrões de ação da sociedade civil organizada


Processos 1986 2014 Exemplo

Foco na Foco no diálogo As lutas saem das ruas e


reivindicação/conflito (concertação) vão para os gabinetes.
(contention – Tilly) Foco nos processos
Desmobilização eleitorais

A existência de espaços
Foco na ação coletiva Foco na representação institucionalizados, nos
de interesses quais as OSCs tem por
princípio um espaço
garantido para
representar sua base
reduz a necessidade de
mobilização

De associações As ONGs que se


voluntárias multiplicam no Transição da
democraticamente período recente representação de
geridas respondem mais a interesses organizados
Privatização (respondem a uma base seus diretores e/ou para a prática de
coletiva) fundadores do que a “advocacy”
bases sociais
organizadas

Organizações que Organizações que Transição da demanda


demandam respostas em vendem serviços para por políticas públicas
termos de políticas o Estado/cumprem para a demanda de
públicas papel remunerado recursos para
implementação de
“projetos sociais”

Multiplicação das
Atomização Tendência à unificação Tendência à centrais sindicais
Orgânica. Os fragmentação. Os
movimentos convergiam movimentos tendem à

327
em busca de mais força divergência e disputa Boom de ONGs e
política de protagonismo nos OSCIPs
espaços de poder

Da dinâmica: Tendência Predomínio das lutas Proliferação de


à unificação das lutas setoriais iniciativas organizativas
isoladas

Predomínio do interesse Predomínio de Trajetória do sindicato


na construção da interesses setoriais dos médicos: da luta
Despolitização democracia (foco mais pelo SUS à luta contra o
(foco no interesse geral) corporativo) governo por demandas
de natureza corporativa

Política identificada Ação deliberada de Substituição das


como atividade virtuosa distanciamento da políticas de Estado pela
política ação social privada

Todas as organizações
Organizações Maior distância entre
responsivas às suas bases liderança e base
Burocratização mobilizadas

Do ativismo voluntário À Profissionalização Todas organizações


(militância) (diretores e
funcionários)

Todo este processo, esboçado de forma muito esquemática no quadro acima,


permite sinalizar um processo cuja amplitude e profundidade transcende em
muito os limites desta investigação. Sua apresentação desta maneira
extremamente resumida tem como objetivo sublinhar a importância de que não se
pode limitar a análise da efetividade das experiências de democracia participativa
apenas ao seu desenho institucional e à dimensão da vontade política. O nível de
organização da sociedade civil é decisivo na compreensão do processo. E, assim
como todo o processo de criação e consolidação de novas experiências
democráticas está evidentemente ligado às pressões de fora para dentro do Estado,
surgidas no bojo da intensa mobilização da sociedade civil no período mais crítico
de luta contra a ditadura, seria um erro considerar que as mudanças ocorridas no
âmbito da própria sociedade civil não tivessem também um impacto, neste caso na
direção contrária.

328
A década de 90 trouxe consigo mudanças econômicas, sociológicas, políticas e
culturais que impactaram não apenas sobre as formas organizativas como também
sobre as possibilidades e os repertórios de ação dos atores sociais. A hegemonia
neoliberal no plano da economia e da cultura teve efeitos objetivos sobre a
organização social, fortalecendo o individualismo e a fragmentação dos interesses
e dos conflitos. Ao mesmo tempo a consolidação da democracia levou a uma
institucionalização crescente da disputa política, que passou a depender menos da
capacidade de organização e da mobilização e mais da capacidade política de
negociar e influenciar as agendas no âmbito institucional. O corolário desta
transição foi o processo de burocratização crescente das organizações da sociedade
civil, cada vez menos dependentes de uma organização de base e mais dependentes
da influência política sobre o Estado.
A década dos 2000, marcada pela experiência de concertação denominada por
alguns autores de “Lulismo”, acentuou este processo, na medida em que, de um
lado ampliou e consolidou espaços de representação dos interesses de importantes
contingentes historicamente excluídos da deliberação sobre as políticas públicas.
E este processo se dava de cima para baixo, sem depender de uma maior ou menor
capacidade de mobilização e pressão. Por outro lado, a própria identidade de uma
parte importante das organizações da sociedade civil com o processo em
andamento contribuía, por sua vez, no sentido de uma autocontenção dessas
organizações, que tendiam a dar preferência a negociações do que a pressões sobre
o Estado.
Estas mudanças substanciais no padrão de organização e ação no âmbito da
sociedade civil têm consequências sobre a efetividade das experiências analisadas.
Por um lado, o esvaziamento e a burocratização das organizações fizeram com que
a existência de espaços de incidência da sociedade civil sobre as políticas públicas
não tivesse como resultado uma maior apropriação deste debate por parte dos
cidadãos. De outro lado a transição de um modelo de organização mais voltado
para a mobilização e para o conflito para um modelo de ação mais institucional
também teve como consequência um maior distanciamento entre os cidadãos e as
organizações que supostamente os representam.

329
De um lado a construção de instituições participativas permitiu a abertura de
amplos espaços para a participação da cidadania, mas de outro as mudanças sociais
que ocorriam paralelamente às mudanças políticas operavam na direção oposta. A
mesma sociedade civil que conquista espaços cada vez mais amplos de debate,
deliberação e fiscalização das políticas públicas se tornou, ela mesma, menos
democrática. A crise de representatividade que foi exposta de maneira radical pelos
movimentos de 2013 é o exemplo mais eloquente de que a democratização das
instituições estatais não é, por si só, suficiente para incorporar de maneira plena
os cidadãos ao processo democrático.
A partir desta breve e esquemática análise se pode avançar na hipótese de que o
processo de democratização vivido enfrentou limites estruturais, capazes não
apenas de limitar o potencial democratizante das experiências de participação
como também de levar ao seu retrocesso. A criação de instituições participativas
no âmbito do Estado sem uma efetiva mudança nas suas estruturas políticas mais
profundas, não é suficiente para garantir a sustentabilidade da democratização. A
incapacidade de transformar este movimento em uma efetiva reforma do Estado
tende a levar à irrelevância os mecanismos propostos. Por outro lado se destaca
também o fato de que a democratização no âmbito da política e do Estado conviveu
com um processo de desdemocratização da sociedade. As mudanças econômicas e
sociais vividas no governo Lula, com o fortalecimento das políticas públicas, a
redução das desigualdades sociais e a melhoria nas condições de vida de amplas
camadas da população se processaram paralelamente a uma dinâmica de
fragmentação dos laços sociais, privatização das relações pessoais e institucionais,
de burocratização das organizações da sociedade civil e de desmobilização dos
movimentos sociais. Este processo social mais amplo se mostrou capaz de
neutralizar os efeitos democratizantes das mudanças no espaço da política.

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332
333
16. GOVERNOS DE ESQUERDA E QUALIDADE DA DEMOCRACIA:
AVALIANDO A PARTICIPAÇÃO NO BRASIL, CHILE E VENEZUELA62

Kátia Alves Fukushima

Introdução

Este trabalho se insere no leque de estudos sobre os governos de esquerda na


América Latina (WEYLAND, MADRID e HUNTER, 2010; SILVA, 2009; ROBERTS,
2008; PANIZZA, 2009). O foco da análise está nas administrações do governo Lula
no Brasil (2003-2010), do governo Bachelet no Chile (2006-2010) e do governo
Chávez na Venezuela (1999-2013). A questão central que norteia o presente
capítulo é: Como os distintos governos de esquerda impactam na maior ou menor
penetração da participação63 nas respectivas democracias?
Definimos governos de esquerda com base no conceito de Bobbio (2011) e nas
definições de Arditi (2009) e de Braga e Amaral (2012), a partir de dois critérios: 1)
ideológico ou pelo critério da razão teórica e 2) ação política ou pelo critério da
razão prática. No primeiro caso, tais governos apresentam como valor ideal a busca
por “maior igualdade tanto no aspecto socioeconômico” quanto no “status de
diferentes grupos, defendendo por exemplo, mais equidade entre gêneros e etnias”
(BRAGA e AMARAL, 2012, p.3, grifo nosso). A preocupação central dos governos
de esquerda está, exatamente, no aumento das desigualdades e, portanto, na luta
contra esta, pela “emancipação dos homens e das mulheres” (REVELLI64, citado
por BOBBIO, 2011, p. 184). No que se refere à ação política ou a razão prática, tais
governos, por terem a igualdade como valor, buscam promover políticas mais
inclusivas (BOBBIO, 2011). No entanto, para entender a ação política é importante

62
Uma versão preliminar do presente capítulo foi apresentada no VIII Congreso Latinoamericano de
Ciencia Política, organizado pela ALACIP na PUC/Peru entre os dias 22 a 24 de julho de 2015.
63
Seguindo a ideia de Urbinati (2010, p.54), a participação neste trabalho é entendida não como contraponto
a representação, e sim como um “continuum da ação política nas democracias modernas”.
64
REVELLI, M. (1997). La sinistra sociale. Oltre la civiltà del lavoro. Torino: Bollati Boringhiere.

334
se atentar para as mudanças nas identidades das agrupações “de acordo com os
acertos e fracassos de seus projetos, os distintos adversários com os que devem
enfrentar-se e as representações que se fazem de si mesmas” (ARDITI, 2009). No
momento atual, podemos dizer que os governos de esquerda dão ao Estado papel
central na reformulação da sociedade e da economia, “adotando uma postura
crítica com relação à possibilidade de o mercado conseguir equacionar, sozinho,
todas as demandas sociais” (BRAGA e AMARAL, 2012).
A partir desta definição, podemos afirmar que o final do século XX e início do
século XXI, foi marcado pelas ascensões de líderes de esquerda e centro esquerda
na América Latina, com a vitória de Chávez na Venezuela (1998), Lula no Brasil
(2002), Nestor Kirchner na Argentina (2003), Tabaré Vázquez no Uruguai (2004),
Evo Morales na Bolívia (2005), Michelle Bachelet no Chile (2006), Rafael Correa no
Equador (2006), Daniel Ortega na Nicarágua (2006), Fernando Lugo no Paraguai
(2008) e Mauricio Funes em El Salvador (2009)65. Tal cenário, chamado de “Giro à
Esquerda” (CLEARY, 2006; PROGREBINSCHI, 2013) ou “Marea Rosa” (PANIZZA,
2006) despertou a atenção de cientistas sociais e políticos, que buscaram entender
os fatores explicativos destas ascensões, bem como, as diferenças desses governos
de esquerda quanto as suas administrações. A proeminência do tema justifica-se
quando se nota a escassez de vitórias da esquerda entre a década de 1980 e 1990.
Segundo Cleary (2006, p.35), essa escassez fora interpretada como prova de que a
esquerda foi limitada por transições “pactuadas”, que inclinou o campo do jogo
eleitoral para a direita e pela hegemonia da economia neoliberal. Frente a esse
contexto, a América Latina tem passado por mudanças relevantes, demandando
“novas” formas de pensar a democracia. Tendo em vista que os governos de
esquerda foram eleitos, em sua maioria, com propostas de governos mais inclusivos
e participativos, nosso objetivo consiste em analisar a dimensão de participação,
buscando demonstrar o impacto dos distintos governos de esquerda na maior ou
menor penetração das dinâmicas participativas66 nas respectivas democracias.

65
A maioria desses governantes foram reeleitos e/ou elegeram sucessores do mesmo partido ou coalizão,
com exceção do Chile, que não elegeu o candidato da mesma coalizão de Bachelet em 2010; e do Paraguai,
que teve o retorno da direita através do golpe ocorrido em 2012 contra o presidente Fernando Lugo.
66
Seguindo a ideia de Urbinati (2010, p.54), a participação neste trabalho é entendida não como contraponto
a representação, e sim como um “continuum da ação política nas democracias modernas”.

335
Para tanto, utilizamos os indicadores propostos por Levine e Molina (2007; 2011) e
Diamond e Morlino (2004), quais sejam: 1) Participação eleitoral; 2) Participação
em Organizações; 3) Comunicação com os representantes eleitos e outros titulares
de cargos; 4) Medida em que os cidadãos se expressam sobre questões públicas.
O capítulo está dividido em três seções, além desta introdução e das considerações
finais. A seção seguinte apresenta um breve panorama do debate sobre as
ascensões dos líderes de esquerda e a distinção e classificação de seus governos
pela literatura. A terceira seção apresenta a participação como dimensão da
qualidade da democracia e aponta os indicadores que medem a participação nas
democracias. Na quarta seção apresenta-se em perspectiva comparada o impacto
dos distintos governos de esquerda (governos de Lula no Brasil, de Bachelet no
Chile e de Chávez na Venezuela) no que se refere ao maior ou menor grau de
participação nas respectivas democracias. Em seguida tecemos as considerações
finais.

O “giro à esquerda” e a configuração de distintos governos de esquerda


O chamado “giro à esquerda” iniciou-se ao final do século XX, com a eleição de
Hugo Chávez na Venezuela em 1998. Mais que a esquerda, Chávez representou a
ruptura com o status quo até então vigente. Após sua vitória, muitas outras se
sucederam na região com a eleição de líderes à esquerda no Brasil, na Argentina,
no Uruguai, na Bolívia, no Chile, no Equador, na Nicarágua, no Paraguai e em El
Salvador. Além da ascensão desses governos, não poderíamos esquecer a conquista
de partidos de esquerdas como forças relevantes no cenário político em outros
países, como a esquerda no México que se colocou como segunda força nas eleições
presidenciais de 2006 (CLEARY, 2006).
Cleary (2006, p.35-36) chama a atenção para o nascer da esquerda como uma onda
regional, fazendo a crítica, neste sentido, para a literatura que toma as ascensões
de líderes de esquerda como casos isolados e singulares. Segundo o autor, à
esquerda nem sempre vai obter vitórias, mas a sua competitividade recém-
descoberta será uma característica permanente da política eleitoral na maioria dos
países latino-americanos.
Quais os fatores explicativos para o fortalecimento dessas esquerdas?

336
Segundo Cleary (2006, p.37), a desigualdade econômica endêmica em toda a
América Latina foi à razão fundamental para o sucesso da esquerda nas eleições
latino-americanas. Já Panizza (2009, p.76) associou o crescimento político da
esquerda à crise do Consenso de Washington entre 1997 e 2000. Os dois fatores
estão relacionados, dado que é consensual que a adoção de políticas econômicas67
atreladas ao Consenso de Washington intensificou a desigualdade na região.
Podemos, então, afirmar que o contexto econômico e social constituiu um dos
fatores que corroborou para a ascensão dos governos de esquerda. Tal como afirma
Laclau (2006), o fracasso neoliberal e a necessidade de elaborar políticas mais
pragmáticas que combinasse os mecanismos de mercado com graus maiores de
regulação estatal e participação social explicaram o fortalecimento das forças de
esquerda. O contexto econômico e social demonstrou o descontentamento das
massas com os governos até então vigente, que através de protestos ou do “voto
castigo” passaram a optar por governos alternativos aos que estavam no poder.
Panizza (2009) demonstrou em uma importante análise sobre a ideologia do
eleitor que votou nos governos de esquerda que em quase todos os casos, a
porcentagem de votos por candidatos presidenciais de esquerda foi
significativamente maior que a de eleitores que se identificaram como de esquerda.
O autor, neste sentido, apresentou três explicações para esse paradoxo, quais
sejam: a primeira explicação é o processo de acumulação e desacumulação
política na democracia, em que a esquerda adquiriu um processo de acumulação
com o seu acesso em governos municipais e estaduais (como é o caso do Partido
dos Trabalhadores no Brasil, da Frente Amplio no Uruguai, do Partido de la
Revolucion Democrática no México e da Frente Sandinista de Liberación Nacional
na Nicarágua). Em contrapartida, partidos de direita e centro-direita sofriam um
processo de desgaste dado o tempo em que estavam no poder. A segunda
explicação, é a de que o determinante para o giro a esquerda não está tanto na
clivagem esquerda x direita e sim na clivagem governo x oposição. Já a terceira

67
Tais políticas correspondiam a disciplina fiscal; reforma tributária; taxas de juros positivas, taxa de
cambio de acordo com as leis de mercado; liberalização do comércio; fim das restrições aos investimentos
estrangeiros; privatizações de empresas estatais e mudanças de prioridades no gasto público (ver: MUNIZ
BANDEIRA, 2002).

337
explicação está na relação entre política e instituições. Neste caso, Panizza
citou como exemplo as eleições de Chávez na Venezuela, de Rafael Correa no
Equador e de Evo Morales na Bolívia que foram eleitos mais por seu caráter anti-
sistêmico que por suas posições ideológicas.
Outros fatores explicativos para a ascensão das esquerdas, são apontados por
Cleary (2009): a mudança tática e gradual na abordagem da esquerda para a
política eleitoral – a trajetória da estratégia eleitoral do Partido dos
Trabalhadores no Brasil nos parece um caso emblemático e; as limitações
impostas pela natureza dos pactos de muitas transições latino-americanas
– podemos apontar, como exemplo, neste caso as limitações do Pacto de Punto Fijo
na Venezuela que levou a crise do sistema partidário venezuelano e a criação de
um ambiente favorável para a ascensão de Chávez ao poder executivo.
Natanson (2008), por sua vez, apresentou como fator explicativo o “vazio de
influência na América do Sul” – em especial, no que se refere a influência dos
Estados Unidos que no período tinha sua atenção voltada para outras regiões –, o
que habilitou um espaço de autonomia inédito, favorecendo o giro à esquerda na
América Latina.
Frente a tantos fatores, podemos afirmar que o giro à esquerda constituiu
na resposta às questões políticas, econômicas e sociais latentes no período anterior
de seus respectivos países. Ou seja, em maior ou menor grau, foi uma resposta à
crise de representação política (crise do sistema de partidos, descrédito nas
instituições políticas), às políticas neoliberais e a consequente crise social
(desemprego, aumento da pobreza e desigualdade).
No que se refere às particularidades dos governos de esquerda, há um consenso
na literatura (WEYLAND, 2009; SILVA, 2009; ROBERTS, 2008; PANIZZA, 2009)
sobre a existência de distintas esquerdas na América Latina. Autores, como
Castañeda (2006), Reid (2007), Petkoff (2005) e Mires (2008), classificaram as
esquerdas latino-americanas que ascenderam ao poder em social-democratas e
populistas (ou autoritárias). Tais autores apresentaram uma análise reducionista
das esquerdas, apontando para uma esquerda boa e uma esquerda má (SILVA,
2009). Em uma perspectiva mais institucional e estrutural, Weyland (2009) com
base nos aspectos institucionais (características organizativas dos partidos

338
governantes; desempenho do sistema partidário; impacto das reformas pró-
mercado nos anos 1980-1990 e; abundancia dos recursos naturais) classificou tais
esquerdas em “esquerda radical” exemplificada pelos casos da Venezuela, Bolívia e
Equador, que se opunha ao modelo liberal; e “esquerda moderada” como são os
casos do Brasil, Chile, Uruguai, Paraguai e Argentina, que se moveram para o
centro. Weyland (2009) afirmou que a radicalização das esquerdas na Venezuela e
Bolívia, por exemplo, se deve a bonança dos recursos naturais, o que aumentou sua
margem de manobra quanto a implementação de políticas mais radicais. De fato,
tais governos foram favorecidos com a bonança de seus recursos naturais (petróleo
e gás natural) na implementação de suas políticas públicas. No entanto, não vemos,
como um fator explicativo das distintas esquerdas. O Brasil e o Chile também
foram favorecidos com o boom das commodities e, todavia, foram classificados
como uma esquerda moderada.
Panizza (2006) também apresentou uma tipologia dicotômica: uma esquerda
populista, da qual ele cita os exemplos de Evo Morales na Bolívia, de Chávez na
Venezuela e dos Kirchnner na Argentina e uma esquerda social democrata. O autor
utilizou como variáveis explicativas a debilidade ou os pontos fortes das
instituições; o impacto das reformas econômicas nas populações; o jogo de relações
de antagonismos e diferenças com relação ao antigo “Consenso de Washington”.
Todavia, Panizza (2009) afirmou que esta classificação entre as esquerdas populista
e social-democrata pode ser válida como ponto de partida. O autor reconhece que
um dos problemas que tal divisão enfrenta é que fornece poucos critérios para
compreender as diferenças internas dentro de cada categoria. Esta é a lacuna que
as classificações dicotômicas enfrentam, sejam elas populista e socialdemocrata ou
radical e moderada. Como Panizza exemplifica,
una característica típica del populismo es el liderazgo
personalista, pero, ¿puede decirse que Evo Morales es un líder
personalista de la misma manera que lo es Hugo Chávez en
Venezuela? En relación con la socialdemocracia, una
característica clave son sus vínculos con las organizaciones
sindicales y otros movimientos sociales. Pero la relación entre
Gobierno y sindicatos es muy diferente en Chile, Brasil y Uruguay;

339
los tres gobiernos que son comúnmente considerados como
ejemplos de socialdemocracia en América Latina (2009, p. 80-
81).

Roberts (2008, p.87) aproxima a esquerda moderada à esquerda social democrata


europeia, por combinar “a democracia representativa com a economia de mercado
e iniciativas do Estado para reduzir as desigualdades e promover a cidadania
social”. Já no que se refere à esquerda radical, o autor distingue a esquerda
venezuelana de Chávez da esquerda boliviana de Evo Morales, classificando a
primeira como esquerda radical populista e a segunda como esquerda de
movimentos. Ambas, rompem com os acordos graduais cuidadosamente
negociados, propondo, desta maneira, “projetos transformadores e novas formas
de soberania popular”.
Lanzaro (2007) ao analisar como fatores explicativos das distintas esquerdas: 1) os
padrões de competição política; 2) a fisionomia de cada sistema partidário; 3) o
tipo de partido e/ou movimento que compõe o governo; 4) o estilo de liderança
presidencial; 5) o formato da democracia e; 6) certas variantes na orientação das
políticas públicas – concluiu que havia três tipos distintos de esquerda na América
Latina: a esquerda “populista de novo cunho” (Chávez na Venezuela, Rafael Correa
no Equador e Evo Morales na Bolívia); a esquerda “nacional popular” (Kirchnner
na Argentina) e; a esquerda social-democrática “criolla” (Lula no Brasil, Lagos no
Chile e Vázquez no Uruguai).
Sader (2009, p.154) fez uma crítica às classificações que traçam uma linha divisória
na América Latina entre uma esquerda boa e uma esquerda ruim. O autor
apresenta uma variável importante para avaliar as distintas esquerdas, qual seja:
países que assinaram os tratados de livre comércio com os Estados Unidos e os
países que privilegiaram os processos de integração regional. A partir dessa
variável, o mesmo distingue os governos de esquerda em: pós-neoliberais68
(Chávez, Morales e Correa); os governos que flexibilizaram o modelo econômico,

68
O conceito de pós-neoliberais utilizado por Sader (2009, p.64) corresponde a uma “categoria descritiva
que designa diferentes graus de negação do modelo, mas não ainda um novo modelo, e, ao mesmo tempo,
um conjunto hibrido de forças que compõem as alianças sobre as quais se baseiam os novos projetos”.

340
privilegiando a integração regional (Lula, Kirchner, Ortega e Lugo) e os governos
que assinaram os tratados de livre comércio e estão atrelados às políticas norte-
americana (Bachelet).
Seguindo uma perspectiva próxima a de Sader, Martinez (2008) apresentou uma
análise interessante ao demonstrar tendências diferenciadas dos governos latino-
americanos em relação a sua proximidade ou não com o projeto neoliberal e
neoconservador dominado pelos Estados Unidos. Para o autor, o grupo de países
composto por Venezuela, Bolívia, Equador e Nicarágua preconizaram mudanças
estruturais e se distanciaram do modelo dos Estados Unidos. Já os países como
Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, ao contrário, representaram um projeto de
mudanças moderadas. Todavia, o caso chileno é colocado pelo autor em um
cenário especial por estar muito atado à política exterior dos Estados Unidos,
inclusive na época de Bachelet, que manteve as políticas neoliberais da década de
1990.
A especificidade do caso chileno tem como um dos fatores explicativos o contexto
da nova era democrática a partir da década de 1990, em que o Partido Socialista
chileno juntamente com o partido de centro – a Democracia Cristiana, formaram
uma coalizão eleitoral e de governo – a Concertación para la Democracia. Esta
coalizão surgiu como estratégia política para derrotar o governo ditatorial de
Pinochet e passou a governar o Chile desde a restauração democrática em 1989
(MOREIRA, 2006). Segundo Natanson (2009), o governo da Concertación, o qual
se inclui o governo de Bachelet, “priorizou o crescimento econômico sobre
qualquer outra variável, consciente de que uma recessão poderia abrir caminho
para o retorno de Pinochet”. O fato é que com o governo Bachelet não houve
mudanças, devido a uma série de limites institucionais, legados do regime
ditatorial.
Frente às classificações apontadas por esses autores, partimos do pressuposto que,
dada as circunstâncias históricas, políticas, econômicas, sociais, culturais e
institucionais específicas que os governos de esquerda encontraram, se configurou
três projetos políticos distintos na América Latina: O projeto “radical” ou de
“rupturas” praticado por Venezuela, Bolívia e Equador; o projeto “moderado”
praticado por Brasil, Uruguai e Argentina e; um terceiro projeto que constitui

341
aquele que apresentou “continuidades” às políticas neoliberais, atadas à política
exterior norte-americana. Neste, destacamos Colômbia, Chile e Costa Rica. Destes
três países, apenas o Chile contemplou um giro à esquerda.
Assim, buscando analisar os governos de esquerda e o impacto destes no que se
refere a participação focamos em três governos de esquerda que representaram, a
nosso ver, modelos distintos de governos. A escolha do governo de Bachelet (2006-
2010) no Chile já se explica por ser, aparentemente, o “único” caso de governo de
esquerda ligado ao “projeto de continuidades”. O que torna o Chile representativo
deste modelo são os enclaves autoritários que foram mantidos por um longo tempo
no país ou que ainda se mantêm e a particularidade da atuação do PSCh, dentro da
coalizão denominada Concertación, hoje Nova Maioria, o qual, preso a certos
limites programáticos, não poderia apresentar duras críticas ao modelo neoliberal,
representando, segundo Silva (2009: 165), “uma inflexão à esquerda”. A escolha do
governo Chávez (1999-2013) na Venezuela se deve, ao fato do Governo Chávez ter
iniciado o giro a esquerda na América Latina. Eleito em um contexto de
deslegitimação dos atores tradicionais e crise do sistema partidário e
empreendendo uma refundação do Estado através da promulgação de uma nova
carta constitucional já o torna representativo do projeto de rupturas. A escolha do
governo Lula (2002-2010) no Brasil, como representante do projeto político
moderado, se deve a clara trajetória de moderação do discurso e estratégias do PT,
caminhando no espectro ideológico, de acordo Weyland, Madrid e Hunter (2010),
para o centro.
Segundo Levitsky e Roberts (2011, p.26), os partidos de esquerda
institucionalizados, como é o caso do PT no Brasil e do PS chileno (não na mesma
medida), que viveram sob regimes militares e que na década de 1980 sofreram com
a “crise de dívida externa”, estão mais inclinados a governar nos marcos
macroeconômicos herdados (ortodoxo) e em conformidade com as regras
constitucionais democráticas (democracias liberais). Já os movimentos políticos e
os partidos novos que surgiram em contextos de crises democráticas e de seus
sistemas partidários, assim como, de desencanto popular com respeito ao
neoliberalismo, como foi o caso venezuelano, tem como tendência abandonar as

342
políticas econômicas ortodoxas pelo estatismo ou pela heterodoxia, e a utilizar
meios plebiscitários para desafiar a ordem constitucional existente.

A Participação como Dimensão da Qualidade da Democracia

A participação vem sendo utilizada como uma dimensão de análise por vários
estudiosos da qualidade da democracia (DIAMOND e MORLINO, 2004;
MORLINO, 2010; LEVINE e MOLINA, 2007; PACHANO, 2011) que trazem
importante contribuição ao apresentarem a participação nas diferentes esferas e
sugerirem indicadores que tornam possível mensurar a participação em diferentes
países. Há um consenso, desde as análises mais procedimentais às mais
substantivas, que a dimensão de participação constitui uma das condições sine qua
non para qualquer democracia.
A maior parte da literatura de “qualidade da democracia” (ALTMAN e PÉREZ-
LIÑAN, 2002) partem da noção de democracia de Robert Dahl (2005) que, embora,
inclui o processo de formação dos governos e de tomada de decisões, os
indicadores propostos para medir a democracia estão focalizados quase que
exclusivamente no processo eleitoral (MUNCK, 2011, p.15). Nesta, a dimensão da
participação é avaliada através do voto. Todavia, como aponta Levine e Molina
(2007, p.23), ao entender a democracia como um sistema que atende aos requisitos
propostos por Dahl, a qualidade da democracia “não é um fenômeno de soma zero,
em uma escala que parte das condições mínimas apontadas por Dahl para que
exista democracia, indo do mínimo aceitável as melhores condições possíveis em
três áreas interrelacionadas cujo funcionamento nos indica os níveis de qualidade:
a decisão eleitoral, o processo de adoção de políticas públicas, e os mecanismo para
exigir responsabilidade aos governantes.
Autores como Diamond e Morlino (2004); Hagopian (2005); Levine e Molina
(2007) buscam estender a noção de democracia para além da Poliarquia de Dahl.
Na análise de Morlino (2010), por exemplo, a qualidade da democracia é alta
quando se observa:
a extensiva participação dos cidadãos, não somente votando,
mas tomando parte na vida dos partidos políticos e

343
organizações da sociedade civil, na discussão de questões de
política pública, na comunicação e na cobrança de
responsabilidade por parte dos representantes eleitos, na
monitoração da conduta pública dos governantes e no
engajamento direto com as questões públicas em sua
comunidade local (MORLINO, 2010, p.37).

De acordo com Diamond e Morlino (2004), a ideia de participação apresentada


acima, está intimamente relacionada com a igualdade política, isto porque, mesmo
que os direitos formais de participação sejam respeitados, as desigualdades com
relação aos recursos políticos podem tornar muito mais difícil para as pessoas de
menor status exercer os seus direitos democráticos de participação. Logo, uma
condição fundamental para uma ampla participação em uma democracia de
qualidade é a ampla difusão da educação básica e alfabetização, bem como, o
conhecimento político do sistema de governo, seus procedimentos, regras,
questões, partidos e líderes. A ampla participação também requer um Estado de
Direito, que defenda o direito e a capacidade dos grupos sociais vulneráveis de
participar plenamente.
Para Levine e Molina (2011, p.9), é através da participação que os cidadãos escolhem
seu governo, o controla e influencia as políticas, indiretamente ou por intermédio
de representantes. “Quanto maior for a participação, maior será a probabilidade de
que o governo e suas decisões sejam sensíveis a vontade do povo”. Ou seja, maior
a probabilidade de um governo responsivo. Tais autores utilizam quatro variáveis
para medir a qualidade da participação: 1) participação eleitoral, 2) oportunidades
para votar, 3) participação em organizações políticas e 4) representatividade das
instituições. A primeira variável e a terceira indicam a intensidade da incorporação
da população no processo eleitoral. Já a representatividade das instituições e
oportunidades para votar correspondem à medida em que as instituições
efetivamente canalizam a participação cidadã através do fornecimento de uma
representação equilibrada e assegurando uma abundância de oportunidades e
acessibilidade para a intervenção dos cidadãos na política, e o grau em que estas
são realmente utilizadas. Diamond e Morlino (2004) também utilizam como

344
variáveis a participação eleitoral (medida pelas taxas de comparecimento dos
eleitores) e a participação em organizações políticas (partidos políticos,
movimentos sociais e organizações não-governamentais). Além destas duas
variáveis, os autores também incluem a frequência de comunicação com os
representantes eleitos e outros titulares de cargos e a medida em que os cidadãos
se expressam sobre questões públicas.
Isto posto, apresentamos a seguir os indicadores proposto por estes autores e que
utilizaremos para avaliar os distintos governos de esquerda.

Quadro 1. Indicadores de Participação proposto por Levine e Molina (2007; 2011) e Diamond e
Morlino (2004)
Dimensão Variável Indicadores
- Participação Eleitoral - Porcentagem da população em idade de
votar que vai às urnas;
- Participação em - Frequência com que trabalha para um
Participação Organizações candidato ou partido político.
Levine e Molina
(2007; 2011) e - Comunicação com os - Percentual dos entrevistados que já
Diamond e Morlino representantes eleitos e procuraram autoridade local ou do
(2004) outros titulares de cargos governo.

- Medida em que os - Percentual de entrevistados que falam


cidadãos se expressam frequentemente com os amigos sobre
sobre questões públicas. política;
- Interesse pela política69
Fonte: Levine e Molina, (2007, 2011); Diamond e Morlino (2004)

A partir desses indicadores, buscamos demonstrar na seguinte seção o quanto os


distintos governos de esquerda têm contribuído para a construção de democracias
mais participativas, e logo, democracias de maior qualidade.

A Participação nos governos de esquerda do Brasil, Chile e Venezuela


As propostas de incluir mecanismos de participação e/ou de democracia direta não
são recentes e nem são particulares dos governos de esquerda. Muitas
Constituições latino-americanas promulgadas entre o final da década de 1980 e ao

69
No que se refere à “Medida em que os cidadãos se expressam sobre questões públicas”, Diamond e
Morlino (2004) utilizam como indicador a questão do Latinobarómetro que indica o percentual de
entrevistados que falam frequentemente com os amigos sobre política. Além desse indicador, propomos
outro indicador: Interesse pela política.

345
longo da década de 1990 incluíram mecanismos, tais como plebiscito, revogação
de mandato e iniciativa popular (LISSIDINI, 2011). A análise das reformas
constitucionais realizada por Lissidini (2011), demonstra que a incorporação e
ampliação dos mecanismos de democracia durante a década de 1990, constituiu
em uma resposta institucional ao processo de democratização próprio dos países
que viveram regimes autoritários (tais como o Brasil com a Constituição de 1988, o
Equador com a Constituição de 1978 e o Paraguai com a Constituição de 1992).
Além destes, outros países incorporaram mecanismos de participação em suas
constituições, como a Colômbia (1991), o Peru (1993), a Argentina (1994) e a Bolívia
(2004).
Na tabela 1 demonstramos os mecanismos de inclusão política contidos nas
Constituições do Brasil, Chile e Venezuela.

Tabela 1: Mecanismos Constitucionais de inclusão política


Mecanismos de
Inclusão Política BRASIL CHILE VENEZUELA
Promove a Igualdade de
Gênero Não Não Sim (art. 88)
Estado ou Identidade
Nacional/
Plural Não Não Sim (art. 6)
Ordena Ações
Afirmativas Não Não Sim (art. 21)
Iniciativa Popular Sim (art. 14) Não Sim (art. 70)
Sim, em matéria de
Participação Cidadã ou assistência,
Controle das Políticas seguridade social,
Públicas trabalho e saúde -
(arts. 10, 194, 198 y
204) Não
Conselhos abertos ou
populares Não Não Sim (art. 70)
Referendo ou Consulta Sim, em matéria
Popular constitucional e
Sim (art. 14) municipal Sim (arts. 71 e 73)

346
(arts. 5,118 e 128)
Revogação de mandatos Não Não Sim (art. 72)
Fonte: PINTO y FLISFISCH, 2011

Segundo Lissidini (2011, p.69), a Constituição brasileira, buscando reestruturar e


democratizar o que havia sobrado do regime militar, apresenta várias seções sobre
direitos humanos e civis, inclusive sobre os direitos da população indígena. Já a
Constituição chilena é uma das mais restritivas da América Latina no que se refere
à incorporação dos mecanismos de democracia direta e é única que tem limitações
no que se refere às consultas populares ou referendos, se restringindo apenas a
matéria constitucional e municipal (Tabela 1).
Como podemos observar, tanto a Constituição brasileira quanto a venezuelana, ao
contrário da chilena, apresentam mecanismos sobre a iniciativa popular e a
participação cidadã, bem como, sobre o controle das políticas públicas. Dos casos
analisados, a Constituição venezuelana é a única que apresenta a possibilidade de
revogação de mandatos, um importante elemento que permite o controle do
governo e dos representantes por parte do eleitorado. Todavia, é importante
ressaltar que a Constituição venezuelana (1999), juntamente com a Constituição
do Equador de 2008 e da Bolívia de 2009, se insere no contexto de ascensão das
esquerdas na América Latina. Tais Constituições, aprovadas por referendos,
marcaram um processo de rupturas com o status quo até então vigente nos
respectivos países e a construção de uma nova hegemonia. Dentre os principais
mecanismos que favorecem a participação contidos na Constituição venezuelana,
além da possibilidade de revogação do mandato para todos os cargos e
magistraturas de eleição popular (artigo 72), encontram-se: a criação do Poder
Cidadão que consiste em um controle nas mãos do cidadão para fiscalizar a
administração pública (Artigos 273-291); a Criação do Poder Eleitoral, que é
exercido pelo Conselho Nacional Eleitoral (CNE) (Artigos 292-298). Neste, a
sociedade civil, passou a ter o poder de postular-se como membros do CNE; a
utilização de plebiscitos e referendos; a garantia de participação popular no
procedimento de seleção e designação de juízes e juízas (artigo 255-265); e a
garantia de que os povos indígenas da Venezuela poderão eleger três deputados

347
(as) de acordo com o estabelecido na lei eleitoral, respeitando suas tradições e
costumes (artigo 186) (VENEZUELA, 1999).
Embora, como afirma Zovatto (2010, p. 108-109), muitos destes mecanismos podem
ser usados de forma interessada a beneficiar o Poder Executivo em detrimento de
outros poderes ou de formas de intermediação entre representante e representado,
caminhando para uma “democracia plebiscitária”, acreditamos que, para além das
motivações em torno das consultas populares, “o exercício da democracia direta
pode, ao menos potencialmente, contribuir para a deliberação e para a participação
e [...] ter efeitos adversos ou diferentes aos buscados pelo presidente” (LISSIDINI,
2011, p. 37). Os casos do plebiscito no Chile (1988) que derrocou Pinochet e a
derrota de Chávez no referendo de 2007 que visava a reforma constitucional
constituem exemplos de que a utilização de mecanismos de democracia direta nem
sempre beneficiará o projeto proposto.
Como aponta Altman (2011, p. 188-189), a democracia direta, quando bem
desenhada, pode empoderar os cidadãos, bem como, romper com as barreiras à
rendição de contas que se apresentam nos sistemas representativos.
A participação apareceu como tema na agenda política dos três governos de
esquerda aqui analisados. A atuação da esquerda no Brasil e a implementação de
políticas participativas já se destacavam nas administrações locais, especialmente
com a implementação dos Orçamentos Participativos. Com a ascensão de Lula em
2002, tais políticas foram ampliadas e reforçadas, como nos casos dos conselhos e
conferências nacionais (AVRITZER, 2009). A quantidade de políticas federais
(determinadas em função de decretos presidenciais) destinadas às minorias foi
proeminente no governo petista (POGREBINSCHI, 2013).
No Chile, o primeiro mandato de Bachelet (2006-2010) significou mais do mesmo
em relação aos governos anteriores. Embora com um alto grau de
institucionalidade e um Estado de direito consolidado, bem como, um sistema
econômico estável, o mesmo não superou o déficit em relação a accountability e a
participação. Além disso, ao manter resquícios do período autoritário nas regras
do jogo, o primeiro mandato de Bachelet se caracterizou pela presença de um
sistema eleitoral que gera pouca competição e desincentiva a participação,
perpetuando os oligopólios políticos (ALTMAN, 2006). Bachelet teve pouco espaço

348
para implementar políticas mais ousadas. Isto, porque, o equilíbrio de forças
políticas, conformando assim um sistema de vetos, é, precisamente, o que em
última instância tem tornado os canais ordinários incapazes de representar e
processar o tipo de interesses e questões que agitam os setores mobilizados, como
é o caso dos estudantes chilenos (PINTO y FLISFISCH, 2011, p.157).
Segundo Avritzer (2009), tanto no caso chileno como no caso brasileiro existem
conflitos entre os níveis de participação e os órgãos de representação, contudo, os
conflitos não conduzem para a desintegração das formas de representação, mas
sim, para apontar soluções que pode ser mais favorável aos agentes sociais, como
é o caso do Brasil, ou em nome de órgãos estaduais, como é o caso do Chile.
No que se refere à esquerda na Venezuela se observa mudanças mais profundas.
Além da ampliação de mecanismos participativos e de controle social (artigo 184)
contidos na Constituição, Chávez criou em 2006 o “Parlamento de Calle” com o
objetivo de promover a discussão dos projetos de lei em assembleias organizadas
pela Assembleia Nacional. Neste mesmo ano, o governo implementou a Lei dos
Conselhos Comunais, regulamentando, desta forma, os Conselhos Comunais (LEY
DE LOS CONSEJOS COMUNALES, 2006). Segundo Braga e Amaral (2013), verifica-
se um alto nível de participação nos Conselhos Comunais, tanto em 2007 quanto
em 2010.
Como podemos observar os três casos configuram governos de esquerda distintos.
Mas podemos afirmar que os mesmos impactam na forma como vai haver maior
ou menor grau de apropriação das dinâmicas participativas? Para responder a esta
pergunta, analisamos os casos brasileiro, chileno e venezuelano a partir de quatro
indicadores (Quadro 1) com base em Diamond e Morlino (2004) e Levine e Molina
(2007; 2011), quais sejam: 1) Participação eleitoral; 2) Participação em Organizações;
3) Comunicação com os representantes eleitos e outros titulares de cargos e; 4)
Medida em que os cidadãos se expressam sobre questões públicas.

Participação Eleitoral
A participação eleitoral dos cidadãos contribui com a função educativa da
participação. Quanto mais os cidadãos participam, mais capacitados estarão para

349
participar ou ainda como aponta Levine e Molina (2011) maior será a probabilidade
de que o governo e suas decisões sejam sensíveis a vontade do povo.
A participação eleitoral é medida pela porcentagem da população (em idade de
votar) que vai às urnas. No Gráfico 1, podemos verificar o comparecimento da
população às urnas nos processos eleitorais para eleição do executivo entre 1998 e
2010.

GRÁFICO 1 – TAXA DE COMPARECIMENTO SOBRE O TOTAL DA POPULAÇÃO APTA NAS ELEIÇÕES


PRESIDENCIAIS

Percentual da População em idade de votar que


vai às urnas
100

50

0
1998 2002 2006 2010

Brasil Chile Venezuela

Fonte: Braga e Amaral, 2013, International Idea;

Observa-se um aumento significativo da participação eleitoral no governo Chávez


a partir de 2002, atingindo mais de 80% em 2010. O Chile, ao contrário, apresentou
diminuição significativa na participação eleitoral. Nas eleições presidenciais que
levaram Bachelet ao poder, a taxa de comparecimento da população apta a votar
foi de 63,3%. Nas eleições de 2010, essa taxa caiu para 59,1. Segundo Altman (2006),
essa falta de adesão da população chilena à participação nas eleições se deve ao
sistema de registro eleitoral que até então era voluntário70 e ao sistema binominal
que reduz o peso do voto.
No Brasil a taxa de participação eleitoral71 sempre foi alta, porém apresentou uma
pequena redução entre 2006 e 2010. No primeiro mandato do presidente Lula a

70
Em 2009, o registro eleitoral passou a ser automático (Lei n°20.337).
71
Vale lembrar que no Brasil o voto é obrigatório. No Chile até então, o registro eleitoral era voluntário e
o voto obrigatório, logo, quem não quisesse votar era só não se registrar. Este sistema gerava uma distorção

350
taxa de participação eleitoral aumentou de 79,1 (2002) para 83,6 (2006). Ao final
do seu mandato (2010), houve uma queda dessa taxa para 77,3.

Participação em Organizações
Para uma democracia participativa e de qualidade, os cidadãos devem participar
não somente dos processos eleitorais, mas ser ativo também na sociedade, através
das organizações, movimentos, partidos entre outras instituições participativas
para além da arena eleitoral. Assim, para analisar a participação dos cidadãos em
organizações, utilizamos como indicador uma questão do Latinobarómetro: "Com
que frequência você faz uma das seguintes opções: trabalhar para um candidato ou
partido político: muito frequentemente, frequentemente, quase nunca, nunca
(Levine e Molina, 2011). O Gráfico 2 demonstra o percentual de entrevistados que
responderam muito frequentemente ou frequentemente.

GRÁFICO 2 – FREQUÊNCIA COM QUE TRABALHA PARA UM CANDIDATO OU PARTIDO POLÍTICO72

% de Entrevistados que trabalha para um partido ou


candidato (muito frequentemente ou
frequentemente)
30%
20%
10%
0%
1995 1996 2000 2005 2006 2013

Brasil Chile Venezuela

Fonte: Latinobarómetro 1995-2013

A Venezuela apresentou um nível maior de participação, especialmente em 2000,


com 22% dos que responderam trabalhar frequentemente para um candidato ou
partido e em 2006 com 25%. No entanto entre 2006 e 2013 essa taxa caiu
significativamente. A participação no Brasil obteve uma média de 8% entre 1995 e

nos dados sobre a abstenção eleitoral no Chile, quando os dados utilizavam o número de registros e o
número de comparecimentos às urnas. Na Venezuela o voto é facultativo.
72
Os valores correspondem aos entrevistados que responderam muito frequentemente ou frequentemente.

351
2006, subindo para 14% em 2013. O Chile, por sua vez, apresentou índices muito
baixo. Durante o mandato de Bachelet a média foi de 4,5%.
Além da questão do Latinobarómetro, Braga e Amaral (2013) com base no banco
de dados do LAPOP (Latin American Public Opinion Project) apresentaram dados
sobre a participação em reuniões de comitês e associações de bairro, movimentos
e partidos políticos (pelo menos uma vez ao ano). Os dados apontados pelos
autores demonstraram uma maior participação na Venezuela. A média dos
entrevistados venezuelanos que responderam participar de reuniões de comitês e
associações de bairro nos anos de 2007, 2008 e 2010 foi em torno de 35,2%. No
Brasil essa média foi de 16,1% e no Chile a média foi de 21%. Já no que se refere a
participação em reuniões de movimentos ou partidos para os mesmos anos o índice
é menor nos três países. No entanto, na Venezuela essa participação também é
maior comparado ao Chile e Brasil, com uma média de 13,7%. No Brasil a média foi
de 8,9% e o Chile apresentou a menor taxa de participação com 3,5%.

Comunicação com os representantes eleitos e outros titulares de cargos


Para avaliar a comunicação da população com os representantes eleitos utilizamos
as questões do Latinobarómetro: Para resolver problemas em seu bairro: você
contatou uma Autoridade Local ou Funcionário do Governo?

GRÁFICO 3 – PERCENTUAL DE ENTREVISTADOS QUE PARA RESOLVER PROBLEMAS DO SEU BAIRRO JÁ


PROCURARAM FUNCIONÁRIO DO GOVERNO OU AUTORIDADE LOCAL

352
Fonte: Latinobarómetro 2001-2013

A comunicação com funcionários do governo e autoridades locais, como podemos


observar no Gráfico 3, é mais comum no Brasil e na Venezuela do que no Chile. A
distância entre representante e representado pode demonstrar uma deficiência no
que se refere ao controle cidadão sobre a representação.

Medida em que os cidadãos se expressam sobre questões públicas


Diamond e Morlino (2004), utiliza como indicador a questão do Latinobarómetro:
Frequência com que se fala de política com os amigos. Além deste indicador,
utilizamos também o Interesse pela Política (O quanto você está interessado na
política?). Esse índice busca complementar o proposto por Diamond e Morlino,
pois não necessariamente podemos afirmar que aqueles que não falam de política
com os amigos são desinteressados pela política.

353
Ao analisar os Gráficos 4 e 5, podemos perceber que o Chile apresenta as menores
taxas dos entrevistados que responderam que falam de política com os amigos e
daqueles que se interessam pela política. No segundo mandato de Lula no Brasil, o
percentual de entrevistados que falam frequentemente com os amigos sobre
política caiu de 35% em 2006 para 24% em 2007. Já o percentual daqueles que
responderam que se interessam pela política aumentou de 20% em 2007 para 35%
em 2010.

GRÁFICO 4 – PERCENTUAL DE ENTREVISTADOS QUE FALAM FREQUENTEMENTE COM OS AMIGOS SOBRE


POLÍTICA73

Percentual de entrevistados que falam frequentemente


com amigos sobre política
50%

40%

30%

20%

10%

0%
1995 1996 1997 1998 2000 2003 2005 2006 2007 2013

Brasil Chile Venezuela

Fonte: Latinobarómetro 1995-2013

A Venezuela, apresenta um nível maior de comunicação da população sobre


questões políticas, apresentando uma redução entre 2007 e 2013 do percentual de
entrevistados que falam de política com os amigos de 47% para 35%. Já em relação
ao percentual de entrevistados que responderam que se interessam pela política
apresentou um aumento de 35% em 2010 para 49% em 2013.

73
O percentual corresponde aos entrevistados que responderam muito frequentemente ou frequentemente.

354
GRÁFICO 5 – GRAU DE INTERESSE PELA POLÍTICA74

Interesse pela Política


60%

50%

40%

30%

20%

10%

0%
1995 1996 1997 1998 2000 2001 2003 2004 2005 2007 2009 2010 2013

Brasil Chile Venezuela

Fonte: Latinobarómetro 1995-2013

De acordo com o informe do Latinobarómetro de 2013, o interesse pela política se


distribui de forma muito desigual na região, sendo 49% na Venezuela e 17% no
Chile. O Brasil aparece com 28%, estando na média da região. No Chile a falta de
interesse pela política se deve ao distanciamento dos partidos com a sociedade. Já
na Venezuela, no período Chávez houve uma atomização da política e um
incentivo a mobilização dos sujeitos sociais. Ademais, a polarização intensa na
sociedade entre chavistas e oposição traz para a sociedade a sensação de disputa
política constante para além dos momentos eleitorais.
Em geral, os dados sobre a percepção dos cidadãos demonstraram que houve maior
grau de apropriação das dinâmicas participativas na Venezuela, seguida do Brasil.
O Chile, por sua vez, apresentou déficit significativo no que se refere a participação
dos cidadãos. Estes dados reafirmam exatamente que os países que tiveram mais
participação dos cidadãos são os que de fato conseguiram implementar políticas
favoráveis à democracia participativa. Logo, o Chile com uma Constituição
restritiva no que se refere aos mecanismos de participação, o distanciamento dos
partidos em relação à sociedade, um sistema eleitoral que até então gerava

74
Os valores correspondem a porcentagem dos entrevistados que responderam que são muito interessados
ou interessados pela política.

355
distorção em relação aos votos dos eleitores e uma alta desigualdade econômica e
social já justifica a baixa participação.
Vale ressaltar que o presente trabalho não teve como objetivo avaliar a qualidade
da dessa participação nos respectivos países. Embora, Lissidini (2011) chama a
atenção para o perigo do uso plebiscitário das consultas populares, o aumento da
inclusão, dos mecanismos de participação e de democracia direta podem
intensificar a participação da população e torná-la mais ativa na busca de uma
democracia de melhor qualidade.

Considerações finais
A distinção do governo Chávez na Venezuela, do governo Lula no Brasil e do
governo de Bachelet no Chile a partir de três projetos políticos o de “rupturas”, o
“moderado” e o de “continuidades”, respectivamente, tem relação não só com os
projetos políticos adotados pelos mesmos, como também no impacto destes
governos no que se refere ao maior ou menor grau de participação. Os três
governos foram eleitos com propostas de governos mais inclusivos e/ou
participativos. O caso do governo Chávez, apontado, neste trabalho, como o
projeto político de rupturas, se caracterizou por um cenário de crise do sistema de
partidos e refundação do Estado através de uma nova Constituição. Neste, a
representatividade dos partidos é débil. No entanto, o nível de participação e
inclusão (participação eleitoral; oportunidades para votar; participação nas
organizações, interesse pela política) foi maior comparado ao Brasil e ao Chile.
No caso brasileiro, durante o governo Lula – projeto político moderado –
também houve avanços significativos no que se refere à dimensão de participação,
especialmente com a experiência dos Orçamentos Participativos e das
Conferências Nacionais nas mais variadas áreas de políticas públicas. O Brasil,
durante o governo Lula, especialmente no segundo mandato, obteve destaque no
que se refere a participação eleitoral; a representatividade dos partidos; ao
aumento da participação nas organizações e do interesse pela política.
O caso chileno, por sua vez, apresentou uma complexidade frente aos aspectos
institucionais e, portanto, é um caso que precisa ser cuidadosamente estudado,
para apreender o espaço que essa esquerda teve de fato para a elaboração das

356
políticas públicas. A presença de uma série de entraves autoritários – com um
sistema eleitoral binominal que tem como tendência distorcer a representação, o
quórum alto para implementar reformas constitucionais e a presença de uma
Constituição extremamente restritiva somados a uma base social débil –,
dificultaram o governo de Bachelet na implementação de seu plano de governo.
Logo, seu primeiro mandato se caracterizou por um projeto político de
continuidades. No que se refere aos dados apresentados o caso chileno foi o que
apresentou o menor nível de participação. Os poucos canais de participação no
país refletiram, portanto, na participação dos cidadãos, que demonstraram a partir
das pesquisas de surveys uma certa apatia política.
Em suma, os dados nos levam a afirmar que os distintos governos de esquerda – o
de “rupturas” com o governo Chávez, o “moderado” com o governo Lula e o de
“continuidades” com o governo Bachelet – impactaram na forma como houve um
maior ou menor grau de apropriação das dinâmicas participativas. No limite,
podemos afirmar que o “governo de continuidades” de Bachelet se manteve mais
próximo de uma “democracia liberal” em seu sentido minimalista em que a
soberania popular está restrita à arena eleitoral, enquanto o “governo de rupturas”
de Chávez se aproximou mais da “democracia participativa”. Já o “governo
moderado” de Lula se posicionou em um ponto intermediário entre os dois casos.

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360
361
17. “Alguma coisa está fora da ordem”: participação,
representação e movimentos sociais no Brasil
contemporâneo (2013-2018)

Cláudio André de Souza


Rodger Richer

Introdução
Os casos não estão desconectados entre si e fora de um contexto histórico. Eles
ocorrem numa dimensão espaço-temporal, levando-se em consideração as
sequências dos fatos, e como uns influenciam os outros tanto a nível nacional,
quanto local e internacional. É neste sentido que este trabalho despretensioso (e
preliminar) se apresenta, propondo investigar o processo de polarização política
iniciada nas jornadas de junho de 2013 até o presente momento, considerando
sobretudo as eleições de 2014, o golpe de Estado, travestido de impeachment, em
2016, e os seus desdobramentos no tempo presente. Trata-se, portanto, de um texto
de análise conjuntural, escrito no calor do momento, que tenta esboçar respostas
às seguintes questões: existe uma crise da democracia no Brasil? Como os
principais movimentos sociais agiram coletivamente no período estudado? Após a
ruptura democrática em 2016 os padrões de interação entre Estado e Sociedade
Civil se transformaram? O nosso país passa por um processo de “des-
democratização”?
Para tanto, vamos mobilizar referências bibliográficas que dialoguem com estas
questões, e estruturamos este capítulo da seguinte forma: a princípio,
discorreremos acerca do conceito de representação e sugerimos que o país passa
por uma crise de representação. Em um segundo momento, relacionaremos o
debate acerca da representação com os mecanismos de democracia participativa.
Em seguida, abordaremos conceitos que consideramos relevantes para a análise
dos movimentos sociais no presente momento. Por fim, esboçaremos as possíveis
respostas às questões postas neste artigo. Esperamos, em suma, que este trabalho
possa fomentar reflexões políticas e teóricas sobre o período em questão, de
maneira que aponte caminhos analíticos para o tempo presente e futuro.

362
De maneira geral, há três questões conjunturais defendidas ao longo das próximas
páginas. Em primeiro lugar, vivemos uma crise de representação relacionada às
instituições políticas que engendraram o golpe dado no instituto do impeachment
e envolve o fato de que a retirada “forçada” de uma presidente eleita impacta
diretamente na forma como a sociedade se relacionará com o sistema político,
além do que os escândalos de corrupção vindos à tona com a Lava Jato têm gerado
uma mobilização da sociedade contra os políticos, especialmente, destacando-se a
partir de 2015 uma radicalização do antipetismo, como se a corrupção fosse quase
que exclusivamente um “mal petista”. Em segundo lugar, vivemos um retrocesso
fulminante envolvendo as instituições participativas, que passam a viver um
desmonte na concepção de Estado e políticas públicas, figurando um bloqueio a
um tipo de repertório de interação estado-sociedade a partir do governo Temer,
sendo que algumas políticas (representação de interesses) inviabilizam um diálogo
político com forças da sociedade civil (participação), que já partem da premissa de
que não haverá responsividade por parte do governo atual.
Por fim, entendemos sem um caráter conclusivo que estamos diante de um novo
“complexo societário” de mudanças nos repertórios de ação dos movimentos
sociais brasileiros, saindo do diálogo político (IGLESIAS, 2011) conformado no
apoio ao lulismo até 2016 para uma transição em direção ao estabelecimento de
repertórios confrontacionais com o governo neoliberal do presidente Michel
Temer. A nossa hipótese inicial parte da premissa de que a deposição da presidenta
Dilma Rousseff e o processo que levou à condenação e prisão de Lula em abril de
2018 decorrente da Lava Jato gerou um “impacto mobilizatório” em torno dos
movimentos sociais e a defesa de um projeto político democrático-participativo
(DAGNINO, 2006). Dessa maneira, há uma tendência de refundação das agendas
de mobilização, saindo dos repertórios de interação com a política institucional em
direção a uma disputa situada nas ruas e nas redes sociais.

O debate da representação na teoria democrática

Ao discutir o conceito de representação, Hannah Pitkin (2006) compreende que a


representação política como a conhecemos hoje se origina do termo em latim

363
repraesentare, atribuído aos romanos para dar significado ao ato de trazer
literalmente à presença algo previamente ausente. Este significado manteve-se
desligado das instituições políticas até o século XIII. A representação – a ação pela
qual uma pessoa age por outra – adquiriu um sentido político efetivo somente a
partir do século XVII.
Há nessa definição de representação – o de trazer à presença algo que, no entanto,
se faz ausente – o paradoxo entre o ato de tornar o ausente presente, seja concebida
como standing for, nas suas acepções marcadas descritiva e simbolicamente, ou
como acting for, a representação concebida pela noção de autorização, envolvendo
o sentido de “tornar o representado presente”. Seja na arte, que a representação é
vista enquanto standing for tornando presente algo ausente pelo reflexo ou
semelhança; ou na política, o fato é que a representação ocorre acting for, isto é, o
ausente esse faz presente na ação do representante como se estivesse agindo.
Vale ressaltar ainda, que a presença distinta do representante justifica-se na
ausência do representado, do mesmo modo que a ausência do representado valida-
se pela presença do representante. A “presença da ausência”, portanto, torna a
representação nada menos do que o ato de “tornar presente algo que, no entanto,
não está literalmente presente” (PITKIN, 2006). Em outras palavras, “ser
representado significa ser feito presente em algum sentido, enquanto não estando
presente literalmente ou plenamente de fato”. (PITKIN, 1967, p. 153 apud FERES
JÚNIOR & POGREBINSCHI, 2010, p. 139)
O conceito de representação no sentido eminentemente político traduz-se “a partir
de um problema normativo que apenas se revela de modo empírico quando o
representante é chamado não apenas a tornar presente a ausência do representado,
mas a lidar com a presença – constante e inafastável – de sua ausência” (FERES
JÚNIOR & POGREBINSCHI, 2010, p. 139). O representante, enquanto tal, depende
da ausência do representado, que se torna presente através do seu ato.
Distante de uma polifonia do conceito de representação, a “presença da ausência”
é um ponto de partida paradigmático para a sua definição na política moderna,
embora se perceba em produções bibliográficas recentes um conjunto de esforços,
no que se refere à “ativação” do representado ao mesmo tempo em que mantém-
se a legitimidade do representante. Algo que Manin (1997, p. 94) chama a atenção

364
acerca do governo representativo, ressaltando que “os representantes eleitos
seriam e deveriam ser cidadãos proeminentes e socialmente diferenciados
daqueles que os elegeram [...] a isso chamaremos de ‘princípio de distinção’”.
A relação do representante com os representados através do mandato do
representante abre duas possibilidades axiológicas, sendo para Schmitt (apud
LEYDET, 2004), em primeiro lugar, o viés republicano, fundado em uma
comunidade que confere legitimidade de representação a uma unidade política
capaz de interferir nas atividades privadas, objetivando a igualdade e “corrigindo”
os interesses particulares cristalizados em uma sociedade civil que antecede a
criação da comunidade política.
Já o modelo liberal ocorre através da vinculação do mandato aos representados
através de instruções estabelecidas particularmente pelos eleitores (representação
de interesses). O representante, nesse modelo, busca ser um advocate que atua em
substituição ao outro, mas com delimitações explícitas do que o mesmo deve
representar na ausência do soberano.
O ideal para a autora perpassa pela valorização de um ponto de equilíbrio entre os
dois modelos, haja vista o fato do modelo liberal apresentar desvantagens
enquanto

[...] uma concepção bastante fraca


do autogoverno, enquadrado, limitado, que é pela existência
de uma sociedade civil que lhe preexiste e que ele deve
respeitar; limitado também pela inclusão dos direitos
individuais numa constituição diante da qual os parlamentos
devem se inclinar. (Ibid, p. 77)

Neste sentido, o caráter da representação é muito bem acentuado por Cícero


Araújo (2006, p. 258) enquanto drama, atentando para as especificidades do
controle do mandato do representante, já que cabe pensar na “capacidade da
representação de reelaborar as queixas, torná-las mais reflexivas, dando-lhes a
forma adequada para obter uma recepção positiva na cena pública”.
A preocupação de Araújo recai no debate sobre o questionamento potencial do
mandato livre nas democracias contemporâneas, referente à valorização de uma

365
“exigência de presença”75, isto é, a aproximação em termos de similitude entre
representante e representado. Esse caráter da representação de grupos especiais
ressalta a inclusão política através da identidade enquanto uma normatividade
necessária à legitimidade do poder democrático na contemporaneidade (YOUNG,
2006). Mesmo com a coincidência entre representante e representado, o exercício
do mandato não escapa à substituição física dos cidadãos. O reconhecimento desse
fato reafirma que há diferença, sendo, na verdade, para Young (2006, p. 149):

[...] uma separação entre o representante e os representados.


Evidentemente, nenhuma pessoa pode pôr-se por (stand for)
e falar como uma pluralidade de pessoas. A função do
representante de falar por não deve ser confundida com um
requisito identitário de que o representante fale como os
eleitores falariam, tentando estar presentes por eles na sua
ausência [...] o representante inevitavelmente irá se afastar
dos eleitores, mas também deve estar de alguma forma
conectado a eles, assim como os e00leitores devem estar
conectados entre si.

A representação democrática, nesse aspecto, necessita da presença da sociedade


civil nos mandatos parlamentares, pois a representação atribui uma dinâmica de
circularidade entre as instituições estatais e as práticas sociais, portanto, de
transformação do social em caráter político (HOCHSTETLER & FRIEDMAN, 2008;
LAVALLE & CASTELLO, 2008; URBINATI, 2006).
Para Urbinati (2006, p. 191), o ideal é que uma representação democrática se atente
em
[...] ativar uma variedade de formas de controle e supervisão
dos cidadãos [...] a democracia representativa é uma forma
de governo original, que não é idêntica à democracia
eleitoral [...] a soberania popular, entendida como um
princípio regulador “como se” guiando a ação e o juízo
político dos cidadãos, é um motor central para a
democratização da representação.

A autora confere ao representado legitimidade relativa à sua presença junto ao


mandato, exercendo poder negativo e observando que

75
Aproxima-se da forma de representação simbólica e descritiva acima mencionada.

366
000[...] não é novidade dizer que embora os procedimentos
possam conter a desordem social, sua eficácia é amplamente
dependente de fatores éticos ou culturais. Isso é verdadeiro
particularmente no caso da representação, pois o mandato
que amarra o(a) representante à sua consciência é
essencialmente voluntário; não é legalmente vinculativo.
(Ibid., p. 216)

No que concerne ao poder democrático, tanto a participação quanto a


representação assumem uma posição de complementaridade, uma vez que em um
contexto democrático “[...] todos participam e se fazem representar. Os
representantes mantêm vínculos fortes com os representados. Representam-nos
politicamente e por isso têm autonomia para decidir, mas não se descolam deles,
nem viram as costas para eles” (Ibid., p. 116)
A nossa hipótese preliminar aqui estabelecida se dá a partir deste diálogo teórico
que envolve a normatividade das democracias calcadas em um tipo de
representação que não exclui o peso da legitimidade constante dos representados.
No caso brasileiro, em particular, estamos vivendo uma profunda crise de
representação preconizada pela deslegitimação dos interesses de mais de um terço
do eleitorado que contestou o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff (PT).
Após o impeachment, a implementação da agenda de reformas neoliberais austeras
do governo de Michel Temer (MDB) rompeu com a base de representatividade do
lulismo, especialmente, dos programas sociais.
O golpe no instituto do impeachment (acreditamos na tese de que não houve
crimes de responsabilidade da ex-presidenta) também esteve em torno de
mobilizações antipetistas ainda durante as eleições, diante do mote de que o PT,
Lula e Dilma coordenariam o maior escândalo de corrupção da história do Brasil.
Os protestos significativos contra o governo petista tinham como mote central a
co0rrupção, porém, houve um “bloqueio discursivo” em torno da corrupção
enquanto um mal do sistema político. Para se ter ideia, as mobilizações ao longo
do ano de 2015 salvaram Michel Temer, apesar do seu partido já está desde 2014 no
centro das investigações da Lava Jato. O ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha
(MDB) foi aclamado por uma parte dos manifestantes por conta do seu papel em

367
levar à frente uma caçada contra o governo, mas percebida pelos manifestantes
enquanto atos “heroicos” contra a corrupção (do PT).
Em termos gerais, a aprovação do impeachment dentro de um jogo de
radicalização social e política do antipetismo aumentou os riscos com as
mobilizações no ano de 2015 que puseram em xeque a própria legitimidade do
sistema político. A prisão do ex-presidente Lula no início de abril de 2018 como
consequência da sua condenação em segunda instância agrava a crise ao retirar o
líder de um projeto eleitoral relevante no cenário atual. Trata-se de uma crise em
curso de representação e representatividade que pode afetar o sistema político à
médio prazo.
Seja quem for o presidente eleito em 2018, o desafio está na manutenção de uma
agenda de interesses que vá ao encontro da maioria da sociedade, ao mesmo tempo
em que a convença de que medidas serão tomadas no que tange o combate à
corrupção. A crise de representação em que estamos inseridos passa pelo
reconhecimento de que a pauta de combate à corrupção não passará despercebida
quanto ao peso desta agenda para uma parte do eleitorado, o que p0ode favorecer
a ascensão de um candidato de centro que possa se valer dicursivamente da Lava
Jato como uma bandeira de representação política.

O desmonte da democracia participativa no Brasil

Existem três grandes projetos políticos na América Latina: o democrático-


participativo, o neoliberal e o autoritário (DAGNINO, 2006). Entre eles, o que
ganha maior relevo no contexto brasileiro durante os governos petistas é o
Democrático Participativo, que ampliou a capacidade de deliberação da sociedade
civil por meio de canais de participação, como os Orçamentos Participativos
municipais (em Porto Alegre, por exemplo), bem como potencializou a
possibilidade de fiscalização e proposição de políticas públicas, 0por meio dos
Conselhos Nacionais de participação e das Conferências temáticas. Este projeto é
representado pela ascensão do Partido dos Trabalhadores, que sob sua forma de
governar, ampliou a participação social nos seus governos.

368
Desde 2003, o Governo Federal implementou políticas importantes para as
minorias políticas, como a partir da criação da Secretaria de Promoção de
Promoção da Igualdade Racial, do Estatuto da Igualdade Racial, da Secretaria de
Políticas para as Mulheres, da Lei de Cotas, entre outros. A implementação destas
políticas aponta para uma maior responsividade dos governos às demandas das
contestações dos movimentos sociais, como por exemplo do movimento negro,
que no decurso da história sempre reivindicou o direito à educação como um
importante pilar para a inclusão social. A participação política nos governos
petistas, em suma, ampliou a participação dos “de baixo”, e consequentemente
trouxe políticas públicas importantes para as suas pautas.
Todavia, após as manifestações de Junho de 2013 - marcada por intensas disputas
entre os segmentos sociais contra e a favor das políticas do governo Dilma -, o
governo federal realizou uma inflexão no segundo mandato da presidenta Dilma.
Um exemplo que evidencia bem este processo foi a reforma ministerial, onde a
Secretaria de Políticas para a Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), a Secretaria
de Políticas para as Mulheres e o Ministério dos Direitos Humanos – ambos com
status de ministério – foram unificadas no Ministério da Cidadania, reduzindo os
recursos para tais políticas e unificando e simplificando as pautas caras para o
projeto político que elegeram os governos petistas com forte apoio social.
Para Avritzer (2016), um elemento marcante na política brasileira é a relevância da
participação institucionalizada a partir da promulgação da Constituição de 1988 e
com as demais legislações infraconstitucionais pertinentes, que levaram à criação
de mais de vinte mil conselhos no país, levando a uma “onda participativa” na
década de 1990 através dos conselhos e de modelos de Orçamento Participativo
(OP) em cerca de 200 cidades brasileiras.
Nos anos 2000, as conferências se mostraram exitosas na concepção de diversas
políticas públicas, envolvendo as três esferas de governo, porém, as manifestações
de junho de 2013 expuseram os limites das fronteiras entre a participação
institucional e a não institucional, esta última deixando de ser um monopólio
exclusivo dos grupos de esquerda. Vale destacar, que a grande maioria dos atores
políticos organizados destinaram grande parte das suas energias para a disputa no
interior da arena estatal por meio das mais diferentes instituições participativas,

369
esvaziando o peso dos repertórios confrontacionais (mobilizações, passeatas,
protestos, etc.) no dia a dia dos movimentos sociais. Entendemos que, diferente do
conceito puro e simples de cooptação por parte dos governos, a mudança na
performance dos diversos movimentos sociais durante o lulismo passou pela lógica
partidária de defesa de um projeto político mais amplo, mas também expõem a
complexidade de entendermos a forma como os partidos se relacionam com os
movimentos sociais enquanto catalisadores de espaço e recursos políticos de
representação eleitoral.
Os movimentos sociais: dos gabinetes aos repertórios confrontacionais

Em face da ruptura institucional deflagrada em 2016 com o impedimento da


presidenta Dilma em prosseguir o mandato, partimos do pressuposto de que este
novo cenário político nacional abre novas possibilidades de atuação para os
movimentos sociais que outrora optaram pelo diálogo político com os governos
petistas (IGLESIAS, 2011), por meio de canais de participação política como os
Conselhos e as Conferências temáticas, que serviam como espaços de interlocução
entre Governo e sociedade civil na proposição de políticas públicas em
determinadas áreas, como as políticas para as mulheres, de igualdade racial, dentre
outros.
No governo Temer, alguns indícios reforçam os nossos pressupostos de que os
movimentos sociais passam a adotar repertórios de ação coletiva mais conflitivos
com o Estado, tal como as marchas em Brasília, manifestações em São Paulo e em
outras grandes capitais do país em torno da renúncia do então presidente e do
retorno à democracia.
Antes de mais nada, cabe estabelecer as distinções entre os repertórios de ação
coletiva, que variam entre violentos, disruptivos ou convencionais. Em primeiro
lugar, a violência é a face mais visível da ação coletiva, visto que geralmente recebe
atenção das notícias jornalísticas e no registro da história. O repertório violento
pode ser usado por movimentos sociais para “unir apoiadores, desumanizar
opositores e demonstrar a coragem de um movimento” (TARROW, 2009, p. 126).
Por outro lado, em circunstâncias normais, a violência limita-se a grupos pequenos
com recursos escassos que objetivam provocar danos e se arriscam a serem

370
reprimidos. Seu uso possui um efeito polarizador, colocando os desafiantes e as
autoridades numa interação bipolar onde os indivíduos são forçados a escolher
lados. Uma das desvantagens deste repertório é que os potenciais aliados por vezes
não se sentem confortáveis por conta do medo, as autoridades se reagrupam em
nome da paz social e as forças policiais reagem com repressão. Apesar de a
violência ter o impacto de impressionar as pessoas, ela possui uma nítida limitação
na formação dos movimentos sociais, visto que assusta e restringe a participação
de outras pessoas simpatizantes. Por tal questão, grande parte dos repertórios
contemporâneos que se desenvolveram nos países democráticos não são violentos,
dividindo-se entre formas de confronto convencionais e “ruptura”.
Em segundo lugar, a “ruptura” nada mais é senão uma ameaça de violência. É como

se os organizadores dos movimentos sociais dissessem: ““Se você não produzir

grãos ou dinheiro” diz o desafiante, “ou não parar as máquinas que estão

destruindo nossos meios de vida, você pode sofrer danos físicos”” (TARROW, 2009,

p. 128). Assim, a ruptura localiza-se numa linha tênue entre a violência e a

convencionalização. É o equilíbrio entre as partes. A ruptura em verdade é a forma

de ação coletiva que põe as autoridades em desequilíbrio, que não deve ser

efetivamente violenta, mas ameaçar a ordem, e não deve ser pacífica demais em

seus objetivos ao ponto de não representar uma ameaça ao estabelecimento do

status quo imperante. Sua principal característica é criar um clima de instabilidade,

sem que seja necessário chegar às vias de fato. Nesta definição reside o caráter

sempre disruptivo da ruptura. Sua manutenção exige um desafio importante:

sustentar uma ruptura depende de um


alto nível de compromisso, de manter as
autoridades em desequilíbrio e de
resistir à atração tanto da violência,
quanto da convencionalização
(TARROW, 2009, p. 130).

Em suma, a ruptura quebra a rotina e cria um clima de tensão entre as elites, ao

menos temporariamente, sendo a fonte precípua de grande parte das

transformações inovadoras nos repertórios e do poder dos movimentos sociais, no

371
entanto, é instável e geralmente desdobra-se em violência ou se institucionaliza,

tornando-se convencional.

Por fim, Tarrow afirma que é mais provável que as pessoas adotem repertórios que

saibam usar, por isso há a predominância das formas convencionais sobre as

demais. Pelo fato de exigirem pouco compromisso e riscos menores, as formas

convencionais de confronto em geral atraem uma maior quantidade de

participantes. Um exemplo destas formas de confronto são as greves e marchas. A

greve é um bom exemplo para explicar como as formas disruptivas de confronto

tornam-se modulares e convencionais. Por outro lado, tal como a greve, as marchas

se iniciaram como formas disruptivas e se institucionalizaram. Assim, na medida

em que o entusiasmo da fase disruptiva do confronto diminui e a as forças

coercitivas do Estado se tornam mais hábeis em exercer o controle, ou construir o

diálogo e a colaboração, a tendência é que os movimentos sociais se

institucionalizem e busquem obter benefícios para seus apoiadores por meio da

negociação e do acordo. Aqui não fazemos nenhum juízo de valor quanto às formas

de ação coletiva. Segundo Dagnino (2004), nos anos 1990 o conflito e o

antagonismo que marcou fortemente a relação entre Estado e sociedade civil no

Brasil nas décadas precedentes abriu espaço para a ação conjunta em torno do

aprofundamento da democracia, por meio dos Conselhos Gestores de Políticas

Públicas e Orçamentos Participativos, por exemplo. Assim, o trânsito da sociedade

civil para o Estado, bem como sua interação por meio do diálogo, não é um “mal

apriorístico”, mas uma forma de ação coletiva que deve ser analisada

compreendendo a especificidade de cada contexto histórico e social, levando-se

em consideração os projetos políticos em disputa tanto na sociedade política,

quanto na sociedade civil.

Assim, em suma, os repertórios violentos são os mais visíveis, pois servem para
criar uma polarização política por meio da ação direta. Os convencionais são mais
recorrentes nos movimentos, como greves, organizações internas, etc. (ou seja, são

372
ações políticas que estão sendo sempre adotadas pelos movimentos, e tornam-se
algo comum no funcionamento democrático, não representando efetivamente
uma ameaça aos governos). Os disruptivos são aqueles que criam um clima de
instabilidade política, não sendo efetivamente violentos, mas criando uma ameaça
de violência. Este conceito é especialmente importante para analisarmos as formas
de atuação dos movimentos antes e depois dos governos petistas, já que não se
trata da escassez de mobilização, mas envolvem os tipos de repertório utilizado na
dinâmica empregada para a ação coletiva.
Quando o PT estava no poder, a maioria dos movimentos sociais adotou as ações
coletivas mais convencionais, pois tinham mais espaço para o diálogo que o
confronto, na medida em que tinham a participação social como um horizonte e
as suas pautas eram mais atendidas. Após o golpe, a tendência é que os
movimentos sociais assumam uma postura mais conflitiva com o Estado e com o
Governo, na medida em que lideranças como o Lula foram presas, e vários
movimentos do Brasil todo reagiram à tal ação com atos nas cidades e, inclusive, a
Frente Povo Sem Medo, liderada pelo Candidato do PSOL à presidência da
República, ocupou o Triplex do Lula em protesto à sua condenação. Além disso,
percebe-se o recrudescimento do Estado policial, sobretudo mediante a
intervenção militar no Rio de Janeiro, bem como a morte de lideranças políticas
importantes, como a Vereadora carioca Marielle Franco (PSOL), onde a sociedade
civil rebelou-se contra a sua morte em vários Estados do país, conectando a agenda
contrária ao extermínio da população negra às lutas democráticas.
Observa-se, portanto, que o período pós-lulismo está sendo marcado pela
transição de repertórios mais convencionais para a adoção de práticas
confrontacionais com o Estado, justamente em resposta ao deslocamento do PT do
governo federal e, em consequência, do reascenso do projeto político neoliberal e
do fortalecimento, ainda em curso, do projeto autoritário, representado sobretudo
pela figura do Bolsonaro.
Está instaurada uma forte disputa entre projetos no Brasil. De um lado, o
neoliberal, que reivindica a privatização desenfreada das empresas estatais e busca
enxugar a máquina pública. Do outro, o autoritário, onde parcela da sociedade civil
e política advoga que o problema do Brasil é a corrupção dos políticos e, portanto,

373
é preciso instaurar uma ditadura militar no país. E em confronto com estes projetos
encontramos o democrático e participativo, que tem sistematicamente sofrido
ataques destes dois projetos, e que busca manter as lutas em favor da ampliação da
democracia por meio de canais de participação e construir políticas públicas para
o combate ao racismo e ao machismo, por exemplo.

Considerações finais

Nesse sentido, é possível concluir que estamos frente a um processo de “des-


democratização”, no qual os avanços conquistados nos últimos anos encontram-se
em cheque, tanto a nível da participação, quanto das pautas voltadas para a
reparação das desigualdades sociais, de gênero, raça e sexualidade. A ruptura
institucional representa uma crise na representação, considerando uma
conjuntura adversa quanto à manutenção dos interesses em jogo nas eleições de
2014. Esta crise ancorada nos interesses está fortemente baseada em uma clivagem
social sustentada por um padrão profundo de desigualdades historicamente
situada na política e na sociedade brasileiras.
Neste sentido, é possível esboçar pistas sobre as transformações nos repertórios de
ação coletiva dos movimentos sociais após o golpe de 2016. Durante o lulismo, os
movimentos, por meio do “diálogo crítico”, interagiam com maior recorrência com
o Estado, por meio de canais participativos. Todavia, após o golpe, abrem-se
oportunidades políticas para o confronto político, possibilitando a adoção de
práticas políticas disruptivas frente ao governo Temer. Não há fórmula pronta para
o que está por vir no Brasil. Afinal, estamos no “tempo das incertezas”. Contudo, é
possível perceber que, em que pese o país estar sofrendo uma guinada à direita, ela
mesma pode abrir oportunidades para ações disruptivas de confronto, recolocando
o terreno da sociedade civil como uma arena de disputas de projetos políticos e de
reconfiguração das práticas políticas tradicionais.

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