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Rihgb2019numero0480 PDF

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ISSN 0101 - 4366

Hoc facit, ut longos durent bene gesta per annos.


Et possint sera posteritate frui.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180, n. 480, pp. 11-294, mai./ago. 2019.


INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO
Considerado de utilidade pública:
Estadual: Lei nº 1.068, de 14-9-1966 (Diário Oficial do Estado, parte I, de 20-9-1966)
Federal: Decreto nº 61.251, de 30 de agosto de 1967
Av. Augusto Severo, 8, Rio de Janeiro, CEP 20021-040

Fundado em 21-10-1838, em plena Regência, por 27 sócios da prestigiosa Sociedade


Auxiliadora da Indústria Nacional, o IHGB originou-se de proposta anterior do marechal de
campo Cunha Matos e do cônego Januário da Cunha Barbosa. Pedro II logo o tomou sob seus
auspícios.
Os objetivos estatutários eram, entre outros: coligir, metodizar, publicar ou arquivar
documentos, promover cursos e editar a Revista Trimestral de História e Geografia ou o
Jornal do IHGB.
O Arquivo é hoje um dos melhores do Brasil, graças a sucessivas doações de papéis de
estadistas e historiadores, como José Bonifácio, o marquês de Olinda, Varnhagen, Cotegipe, o
conde d´Eu, o visconde de Ouro Preto, Prudente de Morais, Rodrigues Alves, Epitácio Pessoa,
Manuel Barata, Wanderley Pinho, Hélio Viana e Jackson de Figueiredo, entre outros.
A Biblioteca, por compra, doações e permutas, ultrapassa de 500 mil volumes, de grande
interesse para os estudos brasileiros.
A Mapoteca dispõe de cerca de 12 mil cartas geográficas, referentes, sobretudo, ao
território brasileiro.
O Museu, criado em 1851 para guardar a memória de varões ilustres em máscaras
mortuárias, retratos e lembranças pessoais, exibe hoje peças, como a espada de campanha de
Duque de Caxias (modelo dos espadins dos cadetes do nosso Exército) ou a cadeira em que
Pedro II, durante 40 anos, presidiu a 508 sessões do Instituto.
A Pinacoteca é rica, abrangendo desde a imensa tela da Coroação de Pedro II, de autoria
do sócio Araújo Porto-Alegre, até a impressionante galeria de retratos (e bustos) de monarcas,
nobres e personalidades da Colônia à República.
Os sócios, eméritos, titulares, honorários e correspondentes, no país e no estrangeiro, são
eleitos vitaliciamente. O corpo social promove conferências, congressos e cursos, anunciados
com antecedência, e realiza reuniões acadêmicas, de março a dezembro, todas as quartas-
-feiras. As atas são publicadas pela Revista no último número do ano.
R IHGB
a. 180
n. 480
mai./ago.
2019
INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO
DIRETORIA – (2018-2019)
Presidente: Victorino Chermont de Miranda
1º Vice-Presidente: Jaime Antunes da Silva
2º Vice-Presidente: Affonso Arinos de Melo Franco
3º Vice-Presidente: João Maurício de Araújo Pinho
1º Secretária: Lucia Maria Paschoal Guimarães
2º Secretária: Maria de Lourdes Viana Lyra
Tesoureiro: Fernando Tasso Fragoso Pires
Orador: Alberto da Costa e Silva
CONSELHO FISCAL
Membros efetivos: Alberto Venâncio Filho, Luiz Felipe de Seixas Corrêa e Ma-
rilda Correia Ciribelli
Membros suplentes: Marcos Guimarães Sanches, Pedro Carlos da Silva Telles e
Roberto Cavalcanti de Albuquerque
CONSELHO CONSULTIVO
Membros nomeados: Antonio Izaias da Costa Abreu, Armando de Senna
Bittencourt, Carlos Wehrs, Célio Borja, Cybelle Moreira de
Ipanema, Esther Caldas Bertoletti, Maurício Vicente Ferrei-
ra Júnior e Miridan Britto Falci.
DIRETORIAS ADJUNTAS
Arquivo: Jaime Antunes da Silva
Biblioteca: Claudio Aguiar
Cursos: Antonio Celso Alves Pereira
Iconografia: Pedro K. Vasquez
Informática e Dissem. da Informação: Carlos Eduardo de Almeida Barata
Museu: Vera Lucia Bottrel Tostes
Patrimônio: Guilherme de Andrea Frota
Projetos Especiais: Mary del Priore
Relações Externas: Maria da Conceição de Moraes Coutinho Beltrão
Relações Institucionais: João Mauricio de A. Pinho
Coordenação da CEPHAS: Maria de Lourdes Viana Lyra e Lucia Maria Paschoal Gui-
marães (subcoord.)
Editor do Noticiário: Victorino Chermont de Miranda
COMISSÕES PERMANENTES
ADMISSÃO DE SÓCIOS: CIÊNCIAS SOCIAIS: ESTATUTO:
Alberto da Costa e Silva Antônio Celso Alves Pereira Alberto Venancio Filho
Alberto Venancio Filho Cândido Mendes de Almeida Antonio Celso Alves Pereira
Carlos Wehrs José Murilo de Carvalho Célio Borja
Fernando Tasso Fragoso Pires Maria Cecília Londres João Maurício A. Pinho
Lucia Maria Paschoal Guimarães Maria da Conceição de Moraes Victorino Chermont de Miranda
Coutinho Beltrão
GEOGRAFIA: HISTÓRIA: PATRIMÔNIO:
Armando de Senna Bittencourt Eduardo Silva Afonso Celso Villela de Carvalho
Cybelle Moreira de Ipanema Guilherme de Andrea Frota Antonio Izaías da Costa Abreu
José Almino de Alencar Lucia Maria Paschoal Guimarães Claudio Moreira Bento
Miridan Britto Falci Marcos Guimarães Sanches Fernando Tasso Fragoso Pires
Vera Lúcia Cabana de Andrade Maria de Lourdes Vianna Lyra Roberto Cavalcanti de Albu-
querque
REVISTA
DO
INSTITUTO HISTÓRICO
E
GEOGRÁFICO BRASILEIRO
Hoc facit, ut longos durent bene gesta per annos.
Et possint sera posteritate frui.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180, n. 480, pp. 11-294, mai./ago. 2019.


Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ano 180, n. 480, 2019.

Indexada por/Indexed by
Ulrich’s International Periodicals Directory – Handbook of Latin American Studies (HLAS) –
Sumários Correntes Brasileiros – Google Acadêmico - EBSCO

Correspondência:
Rev. IHGB – Av. Augusto Severo, 8-10º andar – Glória – CEP: 20021-040 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Fone/fax. (21) 2509-5107 / 2252-4430 / 2224-7338
e-mail: revista@ihgb.org.br home page: www.ihgb.org.br
© Copyright by IHGB
Tiragem: 300 exemplares
Impresso no Brasil – Printed in Brazil
Revisora: Talita Rosetti Souza Mendes
Secretária da Revista: Tupiara Machareth

Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. - Tomo 1, n. 1 (1839) -


Rio de Janeiro: O Instituto, 1839-
v. : il. ; 23 cm

Quadrimestral
ISSN 0101-4366
Ind.: T. 1 (1839) – n. 399 (1998) em ano 159, n. 400. – Ind.: n. 401 (1998) – 449 (2010) em n. 450
(2011)

1. Brasil – História. 2. História. 3. Geografia. I. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Ficha catalográfica preparada pela bibliotecária Maura Macedo Corrêa e Castro – CRB7-1142
CONSELHO EDITORIAL
António Manuel Dias Farinha – Universidade de Lisboa – Lisboa – Portugal

Arno Wehling – Universidade Veiga de Almeida – Rio de Janeiro-RJ – Brasil

Carlos Wehrs – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – Rio de Janeiro-RJ – Brasil

José Murilo de Carvalho – Universidade Federal do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro-RJ – Brasil

Manuela Mendonça – Universidade de Lisboa – Lisboa – Portugal

Maria Beatriz Nizza da Silva – Universidade de São Paulo – São Paulo-SP – Brasil

COMISSÃO DA REVISTA: EDITORES


Eduardo Silva – Fundação Casa de Rui Barbosa – Rio de Janeiro-RJ – Brasil

Esther Caldas Bertoletti – Ministério da Cultura – Rio de Janeiro-RJ – Brasil

Lucia Maria Bastos Pereira das Neves – Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro-RJ-Brasil

Maria de Lourdes Viana Lyra – Universidade Federal do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro-RJ – Brasil

Mary del Priore – Universidade Salgado de Oliveira – Niterói-RJ – Brasil

CONSELHO CONSULTIVO
Fernando Camargo – Universidade Federal de Pelotas – Pelotas-RS – Brasil

Geraldo Mártires Coelho – Universidade Federal do Pará – Belém-PA – Brasil

Guilherme Pereira das Neves – Universidade Federal Fluminense – Niterói-RJ – Brasil

José Marques – Universidade do Porto – Porto – Portugal

Junia Ferreira Furtado – Universidade Federal de Minas Gerais – Belo Horizonte-MG – Brasil

Leslie Bethell – Universidade de Oxford – Oxford – Inglaterra

Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos – Ministério das Relações Exteriores – Brasília-DF – Brasília

Marcus Joaquim Maciel de Carvalho – Universidade Federal de Pernambuco – Recife-PE – Brasil

Maria de Fátima Sá e Mello Ferreira – ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa – Lisboa – Portugal

Mariano Cuesta Domingo – Universidad Complutense de Madrid – Madrid – Espanha

Miridan Britto Falci – Universidade Federal do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro-RJ – Brasil

Nestor Goulart Reis Filho – Universidade de São Paulo – São Paulo-SP – Brasil

Renato Pinto Venâncio – Universidade Federal de Ouro Preto – Ouro Preto-MG – Brasil

Stuart Schwartz – Universidade de Yale-Connecticut – EUA

Ulpiano Bezerra de Meneses – Universidade de São Paulo – São Paulo-SP – Brasil

Victor Tau Anzoategui – Universidade de Buenos Aires – Buenos Aires – Argentina


SUMÁRIO
SUMMARY
Carta ao Leitor 11
I – ARTIGOS E ENSAIOS
ARTICLES AND ESSAYS
Oficiais indígenas: Estratégias de ascensão social 13
e militar no Estado do Grão-Pará e Maranhão na segunda
metade do XVIII
Indigenous officers: estrategies of social and military
ascension in the State of Grão-Pará e Maranhão
in the second half of the XVIII
Ranier José de Andrade Quinto Gomes
Desastre e reconstrução no Rio de Janeiro setecentista: 41
o incêndio do Recolhimento do Parto
Disaster and reconstruction in eighteenth century
Rio de Janeiro: the fire at Recolhimento do Parto
Anita Correia Lima de Almeida
A sossegada Província do Maranhão 71
e os planos revolucionários: Constituição e um pouco menos de
constitucionalidade no governo de Costa Barros (1825-1827)
The quiet Province of Maranhão and it’s revolutionary plans:
Constitution and a bit less of contitutionality on
Costa Barros’ government (1825-1827)
Roni César Andrade de Araújo
O paradigma das “invasões holandesas”: 91
a interpretação de Francisco Adolfo de Varnhagen
The paradigm of the “dutch invasions”:
Francisco Adolfo de Varnhagen’s interpretation
Regina de Carvalho Ribeiro da Costa
Araújo Porto Alegre e a música no Brasil Império: 121
filosofia, história, ideias e projetos
Araújo Porto-Alegre and music in the brazilian empire:
philosophy, history, ideas and projects
Gilberto Vieira Garcia
Um Novo Mundo para recomeçar: José Carlos Rodrigues 149
e as várias faces de seu periódico ilustrado (1870-1879)
A New World to start a new life: José Carlos Rodrigues
and his multifaceted illustrated journal (1870-1879)
Júlia Ribeiro Junqueira
Portugal e a gênese do pensamento diplomático brasileiro 183
Portugal and the genesis of brazilian diplomatic thought
Sérgio Eduardo Moreira Lima
Um homem contra uma guerra: Rui Barbosa e a grande guerra 213
A man against a war: Rui Barbosa and the great war
Brenda Maria Ramos Araújo
Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo
II – COMUNICAÇÕES
NOTIFICATIONS
Expansão de fronteiras e de projetos para 247
os sertões fluminenses: posse e propriedade
nos séculos XVIII e XIX
Expansion of borders and projects for the hinterland
in Rio de Janeiro: possession and property in the
eighteenth and nineteenth centuries
Marina Monteiro Machado
III – NOTA DE PESQUISA
RESEARCH NOTE
Um Brasileiro no céu da 1ª Guerra Mundial, o tenente 259
Luciano de Mello Vieira (1892-1918)
A Brazilian in the skies of World War 1, lieutenant
Luciano de Mello Vieira (1892-1918)
Jean-Pierre Blay
IV – RESENHAS
REVIEW ESSAYS
Entre conceitos e linguagens políticas 273
Ana Cristina Araújo
Uma releitura da anexação 283
Leonardo Paiva de Oliveira
• Normas de publicação 289
Guide for the authors 291
Carta ao Leitor
A seção Artigos e Ensaios deste segundo número do ano de 2019
da R.IHGB inclui oito textos inéditos. O primeiro reporta-se ao Brasil
colônia, com uma análise sobre as estratégias de ascensão social e mili-
tar dos oficiais indígenas no Estado do Grão-Pará e Maranhão do sécu-
lo XVIII. Por meio de requerimentos, ofícios da correspondência oficial
entre metrópole e colônia, Ranier José de Andrade Quinto Gomes quer
demonstrar como cargos de oficialidade militar viabilizavam as políticas
de criação e valorização de uma elite indígena. Em seguida, Anita Cor-
reia Lima de Almeida aborda a história dos desastres, com a análise do
incêndio do Recolhimento do Parto no Rio de Janeiro em 1789, por meio
das pinturas que registraram o incidente, a fim de salientar como as nar-
rativas de época estavam impregnadas por distintas percepções do fato.
Caminhando para o Brasil independente, Roni Cesar Andrade de Araújo
contribui para o conhecimento da questão “brasileira” e “portuguesa” no
imbróglio das lutas que levaram à consolidação da independência no Ma-
ranhão. Segue-se o texto de Regina de Carvalho Ribeiro da Costa. Atra-
vés de abordagem historiográfica, ela analisa o paradigma das invasões
holandesas sob a ótica de Francisco Adolfo Varnhagen. Entra-se, então,
no mundo da música no Império do Brasil. Textos de Manuel Araújo Por-
to Alegre servem a Gilberto Vieira Garcia para identificar não apenas a
postura dele enquanto homem de letras, mas também seu papel enquanto
indivíduo que contribuiu para consolidar as instituições políticas e a iden-
tidade nacional. Julia Ribeiro Junqueira revela novas facetas do conheci-
do jornalista José Carlos Rodrigues, em suas aventuras e atividades nos
Estados Unidos, onde viveu quando jovem. Examinando seu círculo de
relações pessoais e profissionais, evidencia como pôde fundar uma folha
ilustrada em Nova York, O Novo Mundo (1870-1879). Os dois últimos
textos relacionam-se à diplomacia. O embaixador Sérgio Eduardo Mo-
reira Lima considera a gênese da diplomacia brasileira, seus valores e
tradições, assim como o papel que Portugal teve nesse processo, por meio
do estudo de seis grandes estadistas: Alexandre de Gusmão, José Boni-
fácio, Duarte da Ponte Ribeiro, Francisco Adolfo Varnhagen, José Maria
da Silva Paranhos Júnior e Rui Barbosa. Brenda Maria Ramos Araújo e
Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo, por sua vez, partindo de uma
perspectiva contextualista, estudam a atuação de Rui Barbosa em dois
eventos cruciais da diplomacia: a Conferência de Paz da Haia de 1907 e
a Conferência na Faculdade de Direito de Buenos Aires de 1916, onde o
estadista enunciou o princípio do primado do Direito sobre a força e o da
igualdade jurídica das nações.
Na parte destinada às Comunicações, em que se divulgam trabalhos
expostos nas sessões da CEPHAS/IHGB, Marina Monteiro Machado tra-
ta da questão, até hoje controversa, da posse e propriedade de terras nos
séculos XVIII e XIX nos sertões fluminenses.
Desta vez, a seção Documentos apresenta uma nota de pesquisa de
Jean-Pierre Blay sobre fato curioso. Através de pequenos e raros indícios,
Blay procura traçar a trajetória de um brasileiro nos céus da 1ª Guerra
Mundial, o tenente Luciano de Mello Vieira (1892-1918), que se engajou
no Regimento da Legião Estrangeira da França antes mesmo da entrada
do Brasil no conflito.
Por fim, duas resenhas complementam o número. A primeira deve-se
a Ana Cristina Araújo, professora associada com Agregação da Univer-
sidade de Coimbra, que discute livro organizado por grupo do projeto
interinstitucional Iberconceptos, envolvendo historiadores do mundo ibe-
ro-americano, e dedicado à história das identidades e diferenças no mun-
do luso-brasileiro, sob o viés das linguagens políticas e da história dos
conceitos. A segunda, de Leonardo Paiva de Oliveira, jovem doutrando
da UERJ, faz uma leitura de livro resultante da dissertação de mestrado de
José Inaldo Chaves Júnior, que trata da anexação da Capitania da Paraíba
àquela de Pernambuco no século XVIII e revê a interpretação dominante
da historiografia paraibana, carregada de fortes sentimentos nativistas.
Temas diversificados que enriquecem a análise dos historiadores e
demais leitores.
Aproveitem!

Lucia Maria Bastos P. Neves


Diretora da Revista
Oficiais Indígenas: Estratégias de ascensão social e militar no
Estado do Grão-Pará e Maranhão na segunda metade do XVIII

13

I – ARTIGOS E ENSAIOS
ARTICLES AND ESSAYS

OFICIAIS INDÍGENAS: ESTRATÉGIAS DE ASCENSÃO


SOCIAL E MILITAR NO ESTADO DO GRÃO-PARÁ E
MARANHÃO NA SEGUNDA METADE DO XVIII
INDIGENOUS OFFICERS: ESTRATEGIES OF SOCIAL AND
MILITARY ASCENSION IN THE STATE OF GRÃO-PARÁ E
MARANHÃO IN THE SECOND HALF OF THE XVIII
Ranier José de Andrade Quinto Gomes1

Resumo: Abstract:
Na segunda metade do século XVIII, o Estado In the second half of the eighteenth century, the
do Grão-Pará e Maranhão foi palco de disputas State of Grão-Pará and Maranhão became the
de demarcação fronteiriça com o reino de Es- scene of disputes with the Kingdom of Spain
panha, assim como das políticas indigenistas over border demarcation, as well as over the
pombalinas que, buscando integração, posse, Pombaline indigenous policies aimed not only
exploração, valorização e controle, conferiam at the integration, possession, exploitation,
destaque às populações autóctones, promo- valorization and control of indigenous peoples
vendo políticas de criação e de valorização de but also at enabling indigenous elites to occupy
uma elite indígena materializada em cargos de posts in the military officialdom. This paper
oficialidade militar. O presente trabalho apre- presents an analysis of the instrumentalization of
senta uma análise da instrumentalização, feita the indigenous policies and laws carried out by
por essas elites indígenas, das políticas e das these elites, based on the requests of the Indians,
legislações indigenistas, tendo por fonte os re- on official correspondences exchanged between
querimentos dos indígenas, as correspondências colonial and metropolitan authorities (letters,
oficiais trocadas entre as autoridades coloniais minutes, provisions, instructions, opinions and
e metropolitanas (Ofícios, Minutas, Provisões, consultations of the Overseas Council), as well
Instruções, Pareceres e Consultas do Conselho as on the laws and charters of that period. The
Ultramarino), assim como as leis e os Alvarás 1757 “Directory of Indians” plays a central
desse período. O “Diretório dos Índios” de 1757 role in the analysis. Our research shows how
terá papel central nessa análise. Podemos obser- these indigenous elites were able to manipulate
var, nesta pesquisa, como essas elites indígenas the Pombaline indigenous legislation to their
souberam manusear as legislações indigenistas advantage in order to acquire, consolidate
pombalinas de forma a adquirir, consolidar, ou or increase privileges, and to cope with the
aumentar privilégios, e fazer frente aos desman- violations and disrespect perpetrated by other
dos e aos desrespeitos perpetrados por demais residents or by the colonial authorities, within
moradores ou pelas autoridades coloniais, den- the limits social reality would permit them.
tro do que a realidade social lhes permitia.
Palavras-chave: Indígenas, militares, Diretó- Keywords: Indians; military; directory; State of
rio, Estado do Grão-Pará e Maranhão. Grão-Pará and Maranhão.

1  –  Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP. E-mail: ranierr@yahoo.com.br.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):13-40, mai./ago. 2019. 13


Ranier José de Andrade Quinto Gomes

Abordar a temática referente às estratégias de ascensão social utili-


zada pelos indígenas no Estado do Grão-Pará e Maranhão requer alguns
cuidados imprescindíveis, seja na observação das particularidades regio-
nais, seja na percepção de que essas estratégias, apesar de serem estrata-
gemas elaborados pelos indígenas, estavam inseridas – e eram de certa
forma previstas – no quadro de hierarquia social portuguesa.

Importante esclarecer que, embora utilizemos a designação de


“Estado do Grão-Pará e Maranhão”2, na prática, nos deteremos especi-
ficamente na Capitania do Grão-Pará, incluindo-se aí a do Rio Negro. A
exclusão da Capitania do Maranhão se dá devido às diferenças nos mode-
los econômicos existentes entre o Grão-Pará – predominantemente extra-
tivista – e o Maranhão – agrário –, além do posicionamento geopolítico e
da disparidade em suas constituições demográficas3. Essas especificida-
des conferem características diferentes a cada capitania, e impactaram, de
maneiras distintas, cada região.

2  –  Ao longo do século XVII até o XVIII, ocorreram variações na nomenclatura e na


conformação político-administrativa deste Estado. Em 1621, o Grão-Pará foi incorporado
ao Estado do Maranhão e alçado como unidade administrativa independente do Estado do
Brasil, se reportando somente à Coroa Portuguesa. Essa medida visava à facilitação de
sua administração. Compreendia as capitanias do Maranhão, Pará, Cumã e Ceará, com
sede em São Luís do Maranhão, e sua área abrangeria o que, atualmente, se constitui
pelos Estados do Maranhão, Ceará, Piauí, Pará e Amapá. Foi dissolvido em 1652 e, em
1654, é novamente instituído, agora, como Estado do Maranhão e Grão-Pará, mantendo
a capital em São Luís. Em 1751, quase cem anos depois, o antigo Estado do Maranhão e
Grão-Pará é dissolvido dando lugar ao Estado do Grão-Pará e Maranhão, com a mudança
da sede para Belém. Este novo Estado era composto pelo Grão-Pará, Maranhão e, após
a criação da capitania do Rio Negro, em 1755, esta passou a fazer parte da composição
político-administrativa desse Estado. Em 1772, de forma a estender e a aprofundar o
aparato administrativo da Coroa na região ocorre nova mudança com sua divisão em Es-
tado do Maranhão e Piauí e o Estado do Grão-Pará e Rio Negro. REZENDE, Tadeu V. F.
de. A conquista e a ocupação da Amazônia brasileira no período colonial: a definição das
fronteiras. Tese (Doutorado em História) – Universidade de São Paulo, SP. 2006.
3  –  FARAGE, Nádia. As muralhas dos sertões: os povos indígenas no Rio Branco e
a colonização. Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade Estadual de
Campinas, SP. 1986. p. 23. Embora a publicação de seu livro date de 1991 (RJ: Paz e
Terra; ANPOCS, 1991) optamos por citar o texto correspondente à Dissertação. Essa
informação se faz necessária devido à diferença de páginas entre a dissertação e o livro.

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Oficiais Indígenas: Estratégias de ascensão social e militar no
Estado do Grão-Pará e Maranhão na segunda metade do XVIII

No que diz respeito ao olhar sobre as estratégias indígenas enquanto


ações conscientes de sujeitos históricos, é importante observar que essa
perspectiva de análise só se tornou possível após uma profunda renova-
ção conceitual, incluindo o próprio conceito de resistência, que passou
a compreender a reinterpretação e adaptação cultural – e social – como
pertencente ao seu conjunto de ações. Sobre isso, John Manuel Monteiro
observou:
[...] os recursos de reivindicação, protesto e revolta – categorias ge-
ralmente enfeixadas sob a rubrica da ‘resistência’ – alternam com ou-
tras opções políticas, frequentemente denominadas ‘colaboração’ ou
‘acomodação’.4

No arcabouço de conceitos utilizados pela historiografia voltada para


os estudos etno-históricos, inserem-se também os de “etnogênese”5 e “et-
nificação” que evidenciam, segundo Guilhaume Boccara, a existência de
amoldamentos e de criações socioculturais mesmo no contexto abrasivo
da conquista6. Assim explica Boccara:
Com respeito aos conceitos de etnogênese e etnificação só notaremos
que o primeiro se refere à capacidade de criação e adaptação das en-
tidades indígenas e à emergência de novas formações sociais [...]. O
segundo serve para caracterizar os dispositivos coloniais (de estado
e capitalista) que produzem efeitos de normalização e espacialização
e participam da criação do étnico através da reificação das práticas e
representações das sociedades indígenas.7

4  –  MONTEIRO, John M. “Armas e Armadilhas. História e Resistência dos Índios”. In:


NOVAES, Adauto (Org.) A Outra Margem do Ocidente. São Paulo: Cia das Letras, 1999,
p. 243.
5  –  Termo cunhado por William Sturtevant em 1971. Segundo Boccara, inicialmente, o
termo se limitava à uma definição, puramente, biológica voltada à “emergência física de
novos grupos políticos”. A atualização do conceito passou a abranger tanto as transforma-
ções políticas como, principalmente, as culturais – identitárias – de um mesmo grupo ao
longo do tempo. BOCCARA, Guilhaume. Colonización, resistencia y etnogénesis en las
fronteiras americanas. In: BOCCARA, Guilhaume. Colonización, resistencia y mestizaje
en las Américas (siglos XVI – XX): Quito, Ecuador: Ediciones Abya-Yala/ Instituo Fran-
cês de Estudios Andinos, 2002. p. 57
6 – Ibidem.
7  –  BOCCARA, Guillaume. Génesis y estructura de lós complejos fronteirizos euro-
-indígenas: Repensando lós márgenes americanos a partir (y mas allá) de la obra de Na-
than Wachtel. Memoria Americana. Cuadernos de Etnohistória, Buenos Aires: n. 13, p.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):13-40, mai./ago. 2019. 15


Ranier José de Andrade Quinto Gomes

Boccara adverte, ainda, sobre a impossibilidade de se estudar os pro-


cessos de etnogênese sem abordar os processos de etnificação e de etno-
cídio presentes nessas relações8.

Outros conceitos foram cunhados para dar conta das múltiplas re-
alidades desse processo histórico, mas não nos deteremos sobre eles no
momento.

Cumpre entender que esse panorama conceitual que levantamos con-


tribui também para estabelecermos certas balizas de forma a não cairmos
no equívoco de projetarmos relações sociais e culturais totalmente har-
moniosas, pautadas na ausência da imposição e dos conflitos, incorrendo,
assim, no erro de anular totalmente as características das relações colo-
niais.

Isso posto é imprescindível lembrar que, embora houvesse impo-


sição de valores culturais portugueses aos povos colonizados, a própria
relativização dos impedimentos às mercês em possessões coloniais já de-
monstra a existência de uma reciprocidade de interferências políticas e
culturais. Interferências assimétricas em sua extensão, é verdade, mas,
mesmo assim, bilaterais.

Para entender as estratégias de apropriação e de ascensão social em


um quadro político-social de relativa voz ativa da elite indígena local, é
fundamental perceber os aspectos econômicos e geopolíticos que com-
punham o Estado do Grão-Pará. Assim, se, por um lado, a economia do
Grão-Pará se amparava na extração das drogas do sertão, tendo a mão

21-52, janeiro-dezembro de 2005, p. 44. Tradução nossa. “Con respecto a los conceptos
de etnogénesis y etnificación solo notaremos que el primero remite a la capacidade de
creación y adaptación de las entidades indígenas y a la emergencia de nuevas formaciones
sociales [...]. El segundo sirve para caracterizar los dispositivos coloniales (de estado y
capitalista) que producen efectos de normalización y espacialización y participan de la
creación de lo étnico a través de la reificación de las prácticas y representaciones de las
sociedades indígenas [...].”
8 – Idem. Colonización, resistencia y etnogénesis en las fronteiras americanas. In: BOC-
CARA, Guilhaume. Colonización, resistencia y mestizaje en las Américas (siglos XVI –
XX): Quito, Ecuador: Ediciones Abya-Yala/ Instituo Francês de Estudios Andinos, 2002,
p. 57

16 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):13-40, mai./ago. 2019.


Oficiais Indígenas: Estratégias de ascensão social e militar no
Estado do Grão-Pará e Maranhão na segunda metade do XVIII

de obra indígena adquirido fundamental importância na manutenção de


suas atividades econômicas e sociais, por outro, sua “constituição física”
enquanto região de fronteiras em áreas de delimitação e de ocupação pre-
cárias possibilitava maior espaço de manobra, isto é, poder de barganha
aos índios dessas localidades.

No plano político metropolitano, a ascensão ao trono do Rei D. José


I, em 1750, com a posterior nomeação de Sebastião José de Carvalho e
Mello9 como Ministro com plenos poderes, trouxe grandes mudanças.
Visando à superação da defasagem econômica e cultural de Portugal fren-
te às demais potências europeias, Pombal, ancorado na ilustração, mas
buscando o fortalecimento da coroa, adotou várias medidas reformistas
tanto em Portugal como no Ultramar. O contexto geopolítico de dispu-
tas territoriais com a Espanha e a substituição das especiarias do Oriente
pelas drogas do sertão10 contribuiram para que essa política reformista
fosse aplicada no Estado do Grão-Pará e Maranhão sob a gestão do meio
irmão de Pombal, o Governador e Capitão General Francisco Xavier de
Mendonça Furtado11.

9  –  1756: nomeado Secretário de Estado de Negócios do Reino; 1759: título de 1º Conde


de Oeiras; 1770: título de Marquês de Pombal. Perderá relevância política após o óbito de
D. José em 1777. Daqui em diante, citado apenas como Pombal.
10  –  Sobre essa substituição, ver: ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os Vassalos
D’El Rey nos Confins da Amazônia. A colonização da Amazônia Ocidental. Dissertação
de Mestrado. Niterói: UFF, 1990, p. 110.
11 – Os desígnios pombalinos para a região foram expressos nas “Instruções Régias
Públicas e Secretas para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Capitão – General do
Estado do Grão Pará e Maranhão”. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. A Amazônia
na Era Pombalina: correspondência inédita do governador e capitão-general do Estado do
Grão-Pará e Maranhão Francisco Xavier de Mendonça Furtado. Rio de Janeiro: Instituto
Histórico Geográfico Brasileiro, 1963, 1v. p. 26-38.

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Ranier José de Andrade Quinto Gomes

Partindo do ponto de que a formação de uma elite indígena12 integra-


va o projeto de povoamento13, administração e governo, estabelecendo
uma ligação entre os intentos da Coroa e as populações indígenas, é que
podemos entender como se deu a dinâmica colonial e a construção das
políticas indigenistas no Grão-Pará. E a partir daí, como as elites indí-
genas puderam manipulá-las – em certo grau – em seu favor, uma vez
que deles dependia a defesa e o sustento da colônia, seja como mão de
obra14 ou como contingente predominante nos corpos militares. Assim, é
importante observar a trajetória plural das legislações que regem a liber-
dade dos índios como uma política profundamente afetada por relações
espaciais e temporais, e influenciada pelos interesses dos diversos agentes
históricos envolvidos.

12  –  De forma a situarmos, adequadamente, o termo “elite indígena”, primeiro, preci-


samos ter em mente que se trata de uma categoria construída a partir de uma política
metropolitana, e pautada no incentivo de inclusão à elite colonial, se valendo para tanto
da absorção das lideranças ou das chefias indígenas tradicionais. Sobre essas lideranças
ou essas chefias, é necessário apontar que eram autoridades constituídas pelas tradicionais
estruturas de poder das sociedades indígenas. Essas lideranças foram nomeadas pelos
colonizadores sob diversos termos exógenos. No Grão-Pará, o nominativo utilizado era
“Principal”. Assim, ao trabalharmos com o conceito de elite indígena, estamos lidando,
essencialmente, com lideranças cooptadas – ou em processo de incorporação – pelas po-
líticas metropolitanas de elitização das lideranças indígenas, grosso modo, de adaptação
dessas lideranças ao modelo hierárquico do Antigo Regime. Para ver mais: DOMIN-
GUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos: colonização e relações de poder no
Norte do Brasil na segunda metade do século XVIII. Lisboa: Comissão Nacional para as
comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000, p. 16. ALMEIDA, Maria Regina
Celestino de. Metamorfoses Indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio
de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, p. 161.
13  –  “[...] em 1785-87, por exemplo, Alexandre Rodrigues Ferreira calculou a população
sedentária da Amazônia brasileira em 6.642 habitantes, dos quais apenas 653 brancos!”.
AMADO, Janaína. “Viajantes involuntários: degredados portugueses para a Amazônia
colonial.” In: História, Ciência, Saúde. Manguinhos. Vol. VI (Suplemento Especial: “Vi-
sões da Amazônia”). Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 813-832 set/2000, p. 822.
14  –  Shirley Nogueira aponta que “entre 1692 e 1721 entraram apenas 1.208 africanos
no Grão-Pará” enquanto no Nordeste estes valores giravam em torno de “300 a 350
mil”. NOGUEIRA. Shirley M. Silva. “A Soldadesca desenfreada”: politização militar
no GRÃO-PARÁ da Era da Independência (1790-1850). Tese (Doutorado em História
Social) – Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2009, p, 42.

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Oficiais Indígenas: Estratégias de ascensão social e militar no
Estado do Grão-Pará e Maranhão na segunda metade do XVIII

Desde o século XVI até o XVIII, a legislação que versava sobre a


temática indígena variou, substancialmente, em seu conteúdo15. De forma
geral, legislaram sobre os indígenas e sua liberdade sempre com vistas
ao problema do fornecimento e da organização do trabalho indígena –
livre ou escravo –, gerando inúmeras disputas entre missionários e mo-
radores locais.

O século XVIII também será marcado por intensas disputas entre


colonos e missionários – especialmente jesuítas – sobre o controle da mão
de obra indígena, e pela promulgação de diversas leis indigenistas, ora
avançando em favor dos índios, ora retrocedendo. Apesar do conjunto de
Leis de 175516, o grande marco diferencial, que singulariza esse século,
foi a instituição do Diretório dos Índios de 175717 e sua legislação indi-
genista que incorpora as leis de 1755 e traz novos elementos jurídicos18.

Resumidamente, o Diretório, em seus 95 artigos, tinha por objetivo


estabelecer e regular a liberdade dos índios, ao mesmo passo em que lhes

15  –  Para um estudo aprofundado, ver: PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Legislação indi-


genista colonial: inventário e índice. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - UNI-
CAMP, Campinas, 1990. PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Índios Livres e Índios Escravos:
os princípios da legislação indigenista do período colonial (séculos XVI a XVIII)”. In:
CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). História dos Índios no Brasil. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, Secretaria Municipal de Cultura, FAPESP, 1992. Perrone-Moisés aponta
a existência de duas políticas indigenistas distintas, uma para aliados e aldeados, outra
para inimigos, indo contra o entendimento da política/legislação como contraditória e
hipócrita.
16  –  Alvará de 04 de abril de 1755: incentivava o matrimônio entre brancos e índios e
extinguia a “infâmia de sangue” resultante dessa união; Alvará de 06 de junho de 1755:
restituía a liberdade irrestrita dos indígenas, seus bens e seu comércio, e os transformava
em vassalos e em colonos da Coroa, como os demais vassalos brancos; Alvará de 07 de
junho de 1755: retirava a gestão temporal dos missionários sobre os aldeamentos e a
transferia para os próprios indígenas; Lei de 07 de junho de 1755: instituiu a Companhia
do Comércio do Grão-Pará e Maranhão, objetivando solucionar futuros problemas de
abastecimento de mão de obra, advindo da liberdade dos índios, e dinamizar a agricultura
e o comércio.
17  –  “DIRECTORIO que se deve observar nas Povoações dos Índios do Pará, e Mara-
nhão em quanto Sua Magestade não mandar o contrário”. O Diretório consta em: NETO,
Carlos de Araújo Moreira. Índios da Amazônia, de Maioria à Minoria (1750-1850). Petró-
polis: Vozes, 1988, p. 166-206. A partir de agora, citado apenas como Diretório.
18  –  O Diretório foi extinto pela Rainha D. Maria I em Carta Régia de 12 de maio de
1798.

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impunha a obrigatoriedade ao trabalho – remunerado –19 e regulava sua


distribuição nas vilas e nas povoações. Objetivava promover sua civili-
dade a partir do contato com o branco, estimulando, assim, o comércio
e a agricultura, estabelecendo a figura do Diretor como tutor desse pro-
cesso. Também promovia a valorização de uma elite indígena camarária
e militar, e continha determinações de conduta voltadas para os vassalos
brancos e especificações acerca dos limites e das obrigações tanto dos
indígenas quanto do Diretor.

Rita Heloísa de Almeida distingue o Diretório em três grandes temas:


Do 1º ao 16º parágrafo é tratada a questão da civilização dos índios –
neles se conceitua a função de tutor, com suas atribuições, e é aborda-
do o ideal de civilização que se deseja transmitir aos índios. Do pará-
grafo 17º ao 73º são tratados assuntos diversos, relativos à economia:
a agricultura, do 17º ao 25º; a fiscalização e tributação fazem parte do
26º ao 34º; o comércio do 35º ao 58º e, finalmente, a distribuição da
força de trabalho representada pelo índio é regulamentada do 59º ao
73º. O terceiro grande tema do Diretório é a colonização, seguida da
adoção de providências, como o povoamento, edificação de povoa-
ções, descimentos e controle sobre as populações aldeadas. Ao final,
o texto retorna aos pontos iniciais: a tutela, o tutor, os métodos de
trabalho e a nova postura em relação ao índio.20

É mister frisarmos que, no presente artigo, nos ateremos apenas nas


determinações do Diretório referentes aos privilégios e às distinções das
elites indígenas. Nessa vereda, nos detemos, assim, ao parágrafo 9 do

19  –  Essa concepção de liberdade conformava-se com uma prática exploratória colonial,
profundamente, influenciada pelo conjunto de ideias ilustradas que primavam pela valo-
rização do trabalho. Ver: FARAGE, Nádia. As muralhas dos sertões: os povos indígenas
no Rio Branco e a colonização. Dissertação (Mestrado em História Social) - Universidade
Estadual de Campinas, São Paulo. 1986, p. 70. FLEXOR, Maria Helena Ochi. A “Civili-
zação” dos Índios e a Formação do Território do Brasil/Aprender a ler, escrever e contar
no Brasil do século XVIII. In: Filologia e lingüística portuguesa. São Paulo: Humanitas,
nº 4, 97-157, 2001, p. 3.
20  –  ALMEIDA, Rita Heloísa de. O Diretório dos índios: um projeto de “civilização”
no Brasil do século XVIII. Brasília: UNB, 1997, p. 166. Para ver mais: COELHO, Mauro
Cezar. Do sertão para o mar – Um estudo sobre a experiência portuguesa na América, a
partir da colônia: o caso do Diretório dos Índios (1751 -1798). Tese (Doutorado em His-
tória Social) - Universidade de São Paulo. SP, 2005.

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Oficiais Indígenas: Estratégias de ascensão social e militar no
Estado do Grão-Pará e Maranhão na segunda metade do XVIII

Diretório, que determina aos Diretores o cuidado de observar as diferen-


ças de tratamento dispensadas aos indígenas de acordo com a graduação
de seus postos e cabedais. Essa determinação, inclusive, constava nos
modelos de Cartas Patentes passadas pelos Governadores aos oficiais ín-
dios, de forma que fossem externalizadas publicamente, e internalizadas
por todos. Vejamos um exemplo: Em Carta Patente de 23 de Maio de 1759
– incluída na documentação de 6 de abril de 1762 – o Capitão General
Manuel Bernardo de Mello de Castro, ao conceder a Patente de Principal
ao índio Jerônimo Antônio Rodrigues, da Vila Nova d’El Rei, determi-
nava que o Principal “gozará de todas as honras, privilégios, liberdades,
isenções, e franquezas, que em razão do dito posto lhe tocarem”21.

Prosseguindo nas determinações do Diretório, o parágrafo 10 proíbe


a “infâmia” contida na ofensa de chamar os índios de negros, e o parágra-
fo 11 ordena que a todos os índios sejam dados sobrenomes portugueses
com o intuito de expressar aos indígenas a intenção da Coroa de tratá-los
como vassalos reais – equiparados aos demais vassalos brancos –, e evitar
confusões geradas por indivíduos homônimos, facilitando, assim, a justa
punição das infrações.

Após discorrer sobre outros temas o Diretório, no parágrafo 50, reto-


ma o foco sobre a concessão de privilégios aos indígenas, determinando
que seja permitido aos Principais o envio de seis índios para extração
das drogas do Sertão – com a exceção de, no caso de haver mais de dois
Principais na mesma povoação, este número ser reduzido para quatro.
Aos capitães mores e sargentos mores, autoriza o envio de quatro índios,
enquanto, aos demais oficiais indígenas, era permitido o envio de apenas
dois. Cabe lembrar que alguns Principais solicitaram a licença de poder
enviar mais índios do que os seis permitidos pelo Diretório, sendo aten-
didos em seus pedidos, vide o caso do índio Principal Cipriano Inácio de
Mendonça que, em requerimento para D. Maria I, em 07 de setembro de

21  –  AHU, Pará, Cx. 52 D. 4766. 6 de Abril de 1762: AVISO do [secretário de estado
da Marinha e Ultramar], Francisco Xavier de Mendonça Furtado, para o [conselheiro do
Conselho Ultramarino], Alexandre Metelo de Sousa e Meneses.

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1779, solicitava a mesma concessão dada ao Principal da vila de Oeiras,


Manoel Pereira de Faria, de enviar dez índios ao sertão22.

De forma a promover a valorização e a manutenção de uma elite in-


dígena, o parágrafo 71 dispensa os oficiais indígenas pobres da obrigação
– comum a todos – de efetuarem o pagamento adiantado pelos serviços
dos trabalhadores índios, podendo pagá-los somente após o recebimento
da produção deles. E, mesmo quando ordena a redução de “Aldeias em
Povoações populosas” – a partir da junção de vários aldeamentos –, o
Diretório (§77) observa o cuidado de obter o aval dos Principais das al-
deias cujas nações fossem diferentes – retomando disposição da Carta de
1701 –, não se podendo executar “sem primeiro consultar a vontade de
uns, e outros”23. Prossegue ordenando aos Diretores que, ao enviar a lista
dos Índios,
[...] expliquem com toda a clareza a distinção das Nações; a diversida-
de dos costumes, que há entre elas; e a oposição, ou concórdia em que
vivem; para que, refletidas todas estas circunstâncias, se possa deter-
minar em Junta o modo, com que sem violência dos mesmos Índios se
devem executar estas utilíssimas reduções.24

Mesmo quando autoriza a introdução de brancos nas povoações


(§80) – antigas aldeias – o Diretório ordena (§81) a imposição de cinco
condições para a admissão destes25, sob pena de expulsão das terras e
perda dos direitos adquiridos (§86).
22  –  AHU, Pará, Cx. 83, D. 6839 Ant. 1779, 7 de Setembro, fl.1.: REQUERIMENTO
do sargento-mor da vila de Portel, índio Cipriano Inácio de Mendonça, para a rainha [D.
Maria I], solicitando provisão para que possa mandar mais índios da nação que governa
extraírem as drogas do sertão.
23  –  DIRECTORIO que se deve observar...:§77. In: NETO, Carlos de Araújo Moreira.
Índios da Amazônia, de Maioria à Minoria (1750-1850). Petrópolis: Vozes, 1988, p, 197,
198.
24 – Ibidem.
25  –  A aceitação das condições seria firmada por meio da assinatura dos moradores e dos
Diretores e lavradas nos Livros da Câmara. São elas: 1ª (§ 82): respeito às terras distribu-
ídas aos índios, proibindo qualquer tentativa de posse independente de dívida, contratos,
doações, testamentos, mesmo que “aparentemente lícito, e honesto”; 2ª (§83): conservar
a paz e concórdia, se atentando para a igualdade da condição de vassalos da coroa, e o
respeito e observância aos privilégios e honras que devem ser dispensadas de acordo com
as qualidades e graduações; 3ª (§84): preferência pelos índios aos empregos honoríficos

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Oficiais Indígenas: Estratégias de ascensão social e militar no
Estado do Grão-Pará e Maranhão na segunda metade do XVIII

No intento de promover a concórdia pública, o parágrafo 88 retoma


o incentivo ao matrimônio entre brancos e índios por meio da concessão
de privilégios, outorgando aos Diretores o cuidado de coibir possíveis ul-
trajes procedentes dos consortes brancos. Sobre isso, voltaremos adiante.

O Diretório finaliza recomendando aos Diretores que “empreguem


os seus cuidados nos interesses dos índios; de sorte que suas felicidades
possam servir de estímulo aos que vivem nos sertões”, atraindo-os para
povoações civis objetivando sua catequese, civilidade, aumento da agri-
cultura, introdução do comércio e felicidade do Estado (§95).

Em contrapartida, cabia aos Principais, como obrigação mais im-


portante, a promoção de Descimentos (§78). No rol de suas responsa-
bilidades, incluíam-se também: distribuição do trabalho indígena aos
moradores (§62); controle das canoas do comércio – em conjunto com
os Diretores – (§49); inspeção das canoas de coleta das drogas do sertão –
em conjunto com as Câmaras – (§51) e a inspeção dos salários dos índios
– em conjunto com os Diretores – (§71).

No tocante às estratégias de ascensão social – e militar – das elites


indígenas, elas estavam pautadas no modelo de mobilidade social lusi-
tana, definidos a partir da herança do status e das relações de serviço e

das povoações; 4ª (§ 85): contribuir para a civilização dos índios através do exemplo
no trato manual de suas próprias terras e pela busca lícita de “adquirir as conveniências
Temporais”; 5ª (§86): a inobservância de qualquer das condições acarretará na expulsão
das terras, e na perda de todos os direitos adquiridos sobre propriedades, lavouras e plan-
tações. DIRECTÓRIO que se deve observar...: §82, 83, 84, 85, 86. In: NETO, Carlos
de Araújo Moreira. Índios da Amazônia, de Maioria à Minoria (1750-1850). Petrópolis:
Vozes, 1988, p. 200.

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recompensa, por meio da concessão de mercês26 e de outros privilégios27.


Essas práticas consolidavam as relações políticas e sociais, afetando gru-
pos sociais de maneiras distintas. Também é importante observar que o
maior acesso da elite indígena à esfera judicial em um contexto no qual
esta era limitada, inclusive para brancos de poucos cabedais, por si só
já demonstra as distinções específicas a essas elites indígenas. Em 4 de
julho de 1761, o Governador e Capitão General do Estado do Grão-Pará e
Maranhão, Manuel Bernardo de Melo de Castro, oficiava ao Secretário de
Estado da Marinha e Ultramar, Francisco Xavier de Mendonça Furtado,
sobre as dificuldade dos habitantes em recorrer à justiça “pela demora
grande que há de sofrer o Recorrente em enviar os atos, a este Reino, e
esperar a sua decisão com crescidas despesas das custas”28. Além dos pró-
prios entraves do sistema judicial, ele também acrescentava dificuldades
de ordem prática, como o desconhecimento por parte dos moradores de
pessoas a quem pudessem estabelecer como procuradores. Esses vassa-
los:
[...] vexados, e oprimidos, não interpõem o Recurso para o Juízo da Coroa,
ou o não seguem, porque não conhecem nesta Corte, pessoa que constituam
procurador, a quem recomendem lhe requeira seu direito e Justiça no Desem-

26  –  Influenciados pelo que Marcell Mauss definiu como “Sistema de Prestações To-
tais”, Antônio Manuel Hespanha desenvolve a ideia de “Economia Moral do Dom”, defi-
nida como uma cadeia infinita de atos beneficiais, ao passo que Fernanda Olival trabalha
com a ideia de “Economia da Mercê”. Ambos, porém, pautados na noção de que a dádiva
Real não significava gratuidade, mas supunha trocas sociais e concessão de favores, ema-
nando da Coroa e sendo operacionalizada pela mesma para manter a ordem e a hierarquia
social, tendo por base o triádico “dar, receber e retribuir”. Cf. MAUSS, Marcell. Ensaio
sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In: Sociologia e Antropo-
logia. v. II. São Paulo: Edusp, 1923-24, 33; OLIVAL, Fernanda. As Ordens militares e o
Estado Moderno: Honra, Mercê e Venalidade em Portugal (1641 – 1789). Lisboa: Editora
Estar, 2001; HESPANHA, Antônio Manuel. O Antigo Regime (1620-1807). In: História
de Portugal dir. José Mattoso, vol. IV, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993; HESPANHA,
Antônio Manuel. Imbecillitas. As bem-aventuranças da inferioridade nas sociedades de
Antigo Regime. São Paulo: Coleção Olhares, 2010.
27  –  ROCHA, Rafael Ale. Os oficiais índios na Amazônia Pombalina: Sociedade, Hie-
rarquia e Resistência (1751-1798). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade
Federal Fluminense. Niterói, RJ, 2009.
28  –  AHU, Pará, CX. 50 D. 4557. 4 de Julho de 1761, fl.1.: OFÍCIO do governador e
capitão general do Estado do Grão Pará e Maranhão, Manuel Bernardo de Melo e Cas-
tro, para o [secretário de estado da Marinha e Ultramar], Francisco Xavier de Mendonça
Furtado.

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bargo do Paço, ou Conselho Ultramarino; Sendo-lhe por todas estas urgentes,


e justificadas razões, quase impossível a decisão do Recurso neste Reino.29

Diante disso, devemos entender que os requerimentos dos oficiais


indígenas arrolados no decorrer de nossa pesquisa demonstram que o
“simples” acesso à justiça colonial e metropolitana já era um privilégio
“concedido” a essa elite indígena, e que a diferenciava dos demais vassa-
los, indígenas ou não.

Sobre o posto de Principal - tradicional função de autoridade indíge-


na – conforme já apontamos, podemos afirmar que foi assimilado e trans-
formado em autoridade integrante das estruturas de poder da sociedade
colonial30.

Já citamos o caso do índio Jerônimo Antônio Rodrigues31, Principal


da Vila Nova d’El Rei, porém este é o requerimento de 17 de abril de
1762 no qual ele solicita, e obtém, a Confirmação Régia da Carta patente
passada pelo Governador em 23 de maio de 175932.
Diz Jerônimo Antônio Roiz Principal da Vila Nova del Rei do Estado
do Grão-Pará que o Governador daquele Estado depois de informado
que a ele pertencia o dito posto de principal lhe mandou passar a sua
patente que apresenta pelo achar capaz de Governar os moradores da
sua Repartição e como o suplicante entende que neste posto lhe faz
V. Majestade uma grande honra pretende que V. Majestade lhe faça
a mercê de uma patente firmada pela Real mão de V. Majestade. 33
(Grifo nosso)
29 – Ibidem.
30  –  Ângela Domingues fez a distinção entre “Principalado” e “Principalato”. No “Prin-
cipalado”, a concessão de patentes absorvia as lideranças indígenas tradicionais da co-
munidade. No “Principalato”, ela se dava como mercê pelos serviços prestados e pela
fidelidade. DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos – Colonização e re-
lações de poder no norte do Brasil na segunda metade do século XVIII. Lisboa: Comissão
Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000, p. 172 -173.
31  –  Citado, abreviadamente, em outros documentos como Jerônimo Antônio Roiz.
32  –  Requerimento de 17 de abril de 1762. In: AHU, Pará, Cx. 52, D. 4766. 6 de Abril
de 1762, fl. 3. AVISO do [Secretário de Estado da Marinha e Ultramar], Francisco Xavier
de Mendonça Furtado, para o [conselheiro do Conselho Ultramarino], Alexandre Metelo
de Sousa e Meneses.
33  –  Requerimento de 17 de abril de 1762. In: AHU, Pará, Cx. 52, D. 4766. 6 de Abril
de 1762, fl. 3. AVISO do [Secretário de Estado da Marinha e Ultramar], Francisco Xavier

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Ranier José de Andrade Quinto Gomes

É importante frisar que, apesar de algumas diferenças, as cartas pa-


tentes seguiam um mesmo padrão tanto para brancos como para índios,
entretanto, no caso das confirmações régias das patentes de índios, era
exigida a presença do oficial índio na Corte, diferentemente, dos oficiais
brancos. Sobre isso, Rafael Ale Rocha levanta uma hipótese:
Observando as falas das autoridades portuguesas acerca da importân-
cia das viagens dos índios à corte, acreditamos que, de fato, tentava-se
incutir nas lideranças indígenas representações acerca da imagem do
rei. Acreditamos que o incentivo a esta prática se explica a partir da
necessidade que se tinha de divulgar ao restante dos índios, por conta
dos principais e demais índios oficiais, a imagem e a função simbólica
do soberano enquanto fetiche de prestígio.34

Corroborando essa tese, transcrevemos o complemento do ofício do


Governador Mendonça Furtado, enviado em 26 de novembro de 1753,
para o Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Diogo de Mendonça
Corte Real, no qual o Principal Inácio Coelho e seu filho Luís de Miranda,
índios da nação Aruan, solicitam patentes militares.
Não só não me pareceu que deveria dar lhe a sobredita licença mas
mui interessante ao Real serviço de S. Majestade que estes índios che-
gassem aos seus Reais pés, que a eles se capacitasse da benignidade
com que o mesmo Senhor trata aos seus vassalos e que por serem ín-
dios, não deixem de conseguir essa honra para que voltando a sua terra
possam [ilegível] aos seus Parentes de algumas ideias com que foram
[criados?] que não são nada úteis ao estabelecimento do Estado.35

Somadas a essas manobras de distinção, havia a regularidade na


concessão do soldo a esses oficiais índios que iam à Corte para obter a
Confirmação Régia de Carta Patente, além dos frequentes estímulos ao

de Mendonça Furtado, para o [conselheiro do Conselho Ultramarino], Alexandre Metelo


de Sousa e Meneses.
34  –  ROCHA, Rafael Ale. Os oficiais índios na Amazônia Pombalina: Sociedade, Hie-
rarquia e Resistência (1751-1798). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade
Federal Fluminense. Niterói, RJ, 2009, p. 80.
35  –  AHU, Pará, Cx. 35, D. 3307. 26 de Novembro de 1753. fl.1- 1v: OFÍCIO do gover-
nador e capitão general do Estado do Maranhão e Pará, Francisco Xavier de Mendonça
Furtado, para o [secretário de Estado da Marinha e Ultramar], Diogo de Mendonça Corte
Real.

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Estado do Grão-Pará e Maranhão na segunda metade do XVIII

uso de vestimentas como reforço das hierarquias e das distinções. Daí a


ordem do Diretório para que os Diretores se empenhassem em introduzir
nessa elite indígena o apreço pela vestimenta como elemento de exterio-
rização da distinção social e militar, de acordo com suas honras e com
seus postos (§15). Isso pode ser observado na fala de Mendonça Furtado
ao relatar a forma pela qual encontrou o já citado índio Luiz de Miranda,
e as medidas que tomou para distingui-lo dos demais, sendo a primeira
o fornecimento de calçado e a concessão da patente de Sargento Mor de
sua Aldeia.
[...] achei a este Luiz de Miranda servindo como outro qualquer índio,
sem distinção alguma [por] quatro varas de pano, e vendo-o eu ulti-
mamente no serviço do Ouvidor o mandei calçar logo e lhe mandei
passar uma patente de Sargento Mor da dita Aldeia para desta forma
lhe poder sustentar a honra em que a grandeza de S. Majestade tinha
constituído aquela família.36

Sobre a constância na concessão de soldo aos oficias índios que iam


até a Corte para obter Confirmação Régia de Patente, apresentamos dois
exemplos: em 4 de julho de 1764, em resposta a um requerimento dos
índios Cipriano Inácio de Mendonça, Isidoro António, Amaro Pereira
da Silva e José da Costa de Sousa, o rei D. José I mandou lhes passar
Patentes de Sargentos Mores com soldo mensal de “três mil réis, pagos
pela Provedoria da Fazenda do Pará, e com antiguidade do dia, em que
embarcarem neste Reino, onde se acham.”37. O mesmo se aplicou ao ín-
dio Manuel da Silva da Costa em Decreto de 11 de setembro de 176938.

A utilização da retórica que aglutina, num só requerimento, a de-


monstração da introjeção dos signos de poder colonial como a valori-
36 – Ibidem.
37  –  AHU, Pará, Cx. 57, D. 5143. 4 de julho Ant. 1764, fl.1. REQUERIMENTO de
Cipriano Inácio de Mendonça, filho de Anselmo de Mendonça, natural da vila de Portel,
Isidoro António, filho do sargento mor Adão António, natural da vila de Monte Alegre,
Amaro Pereira da Silva, filho de Joaquim Pereira da Silva, natural da vila de Faro, e José
da Costa de Sousa, filho de Matias da Costa de Sousa, natural da vila de Santarém, para
o rei [D. José I].
38  –  AHU, Pará, Cx. 64, D. 5566. 11 de Setembro de 1769, fl.1. DECRETO do rei D.
José I, provendo o índio Manuel da Silva da Costa, no posto de sargento mor da vila de
que é natural, com soldo mensal de três mil réis, desde o dia do embarque para o Pará.

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zação da mercê real, da externalização do prestígio, da civilidade, e da


importância da sua disseminação via instrução aos demais índios, é per-
ceptível no próprio pedido de patentes feito pelo grupo:
[...] vieram a esta corte pela incomparável honra de beijarem a mão
a V. Majestade e para verem a civilidade com que vivem os vassalos
de V. Majestade neste Reino, para que sobrevivendo os suplicantes a
seus pais, possam instruir os índios das suas nações conforme as reais
leis de V. Majestade. E porque pretende recolher às suas terras, e nelas
lhes faltam os meios de poderem viver com a decência correspondente
às suas pessoas.39

E comparam ao caso “semelhante” das patentes – e soldos – con-


cedidos a “Francisco de Souza, e outros”, sendo que “os suplicantes não
desmerecem a mesma graça”40.

Outra resolução constante, e específica à oficialidade indígena, de-


terminava que suas patentes fossem expedidas “sem que por elas paguem
direito, ou emolumento algum”. Assim, em 24 de dezembro de 1767,
um Aviso de Mendonça Furtado – Secretário de Estado da Marinha e
Ultramar – sobre a confirmação de patentes dos postos auxiliares con-
cedidos a índios, pelo Capitão General Fernando da Costa de Ataíde e
Teive, observava que fossem expedidas as patentes sem custos para os
oficiais indígenas41.

Se, por um lado, essas práticas poderiam representar a subordinação


dessas elites indígenas às determinações da Coroa, por outro, devemos
nos atentar ao fato de que subordinação não necessariamente implica
anulação. Em 9 de março de 1757, o Principal Apolinário Rodrigues, da
aldeia de “Mortigura” e “Nação aruaquizes”, solicitou diretamente ao
Rei D. José I um alvará de licença para reedificar sua aldeia de “Araticú”,
“juntando os ditos desterrados dela e mais parentes que dantes viviam
com grande fidelidade ao serviço de V. Majestade, paz, e amizade dos
39  –  AHU, Pará, Cx. 57, D. 5143. 4 de julho Ant. 1764, fl.1.
40 – Ibidem.
41  –  AHU, Pará, Cx.61, D. 5419. 24 de dezembro de 1767, fl.1. AVISO do [secretário de
estado da Marinha e Ultramar], Francisco Xavier de Mendonça Furtado, para o [conse-
lheiro do Conselho Ultramarino], António Freire de Andrade Henriques.

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moradores desta Capitania”42, ao que prontamente obteve a licença régia


para reedificar sua aldeia “onde sempre viveram com a dita paz quietação
e amizade dos brancos”43.

Outro ponto é que a liderança dos Principais, que anteriormente era


definida pelos feitos de guerra, habilidade oratória e legitimação por parte
do grupo, passou, com a colonização, a se cristalizar na comodidade e na
segurança promovidas pela hereditariedade de status por meio da primo-
genitura. Segundo Rocha, “Tratava-se de uma forma de aquisição de sta-
tus não mais baseado nos modos ‘tradicionais’ de obtenção da condição
de líder, pois, eram índios aldeados há muitas décadas”44. Destarte, eles
assimilaram e se valeram do uso das regras hierárquicas portuguesas em
benefício próprio e de sua família, objetivando o controle e a manutenção
do poder e dos privilégios advindos do posto de Principal. Nádia Farage
chamou atenção para isso em estudo pioneiro:
A práxis portuguesa, deste modo, buscava a cristalização da chefia
para em troca obter uma valiosa intermediação dos chefes no controle
e administração da população aldeada. Com efeito, a investidura de
patentes e títulos honoríficos foi valorizada, e amplamente utilizada
pela política indigenista pombalina como instrumento na criação de
interlocutores políticos entre a população indígena aldeada.45

O caso – já citado anteriormente – do Principal Inácio de Coelho é


novamente exemplar. Em requerimento enviado ao rei D. José I, com data
anterior a 15 de março de 1755, Coelho solicita a Confirmação Régia da
Carta Patente de Principal da Aldeia de São José do Igarapé Grande – na

42  –  AHU, Pará, Cx. 42 D. 3841. 9 de Março Ant. 1757, fl.1. REQUERIMENTO do
índio principal da aldeia de Mortigura da nação aruaquizes, Apolinário Rodrigues, para
rei [D. José].
43 – Ibidem.
44  –  ROCHA, Rafael Ale. Os oficiais índios na Amazônia Pombalina: Sociedade, Hie-
rarquia e Resistência (1751-1798). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade
Federal Fluminense. Niterói, RJ, 2009, p. 90 e 91.
45  –  FARAGE, Nádia. As muralhas dos sertões: os povos indígenas no Rio Branco e
a colonização. Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade Estadual de
Campinas, São Paulo, 1986, p. 328.

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Ilha Grande de Joanes, e para tanto se baseia no argumento da heredita-


riedade46.
[...] o suplicante é filho de Antônio Coelho que também foi Principal
da dita Aldeia, e neto de Ignácio Manajaboca, ao que a Majestade do
Senhor Rei D. Pedro o segundo foi servido fazer-lhe mercê, não só do
Principalado que lhe competia pelos seus avós, mas de Governador de
toda a nação Aruan, por Patente firmada pela sua real mão que junta a
esta, e sendo o suplicante o filho mais velho do dito Ignácio Manaja-
boca, e reconhecendo-o assim o Governador daquele Estado passaram
ao suplicante, e a seu pai as Patentes juntas, e porque o suplicante não
desmerece o conseguir a mesma graça que alcançou seu avô.47

Observa-se a expedição das patentes “sem emolumentos”48.

Retomando a ideia de que se tratava de relações assimétricas, porém


recíprocas, se a Coroa se valia da elite indígena para ocupação, povoa-
mento e administração desse vasto território, essa mesma elite indígena
utilizava privilégios e concessões conferidos pela legislação indigenista
para adquirir maiores vantagens e benefícios na sociedade luso-brasileira,
chegando, inclusive, a oficializar denúncias sobre os Diretores e demais
autoridades coloniais locais por meio de solicitações e de queixas às au-
toridades metropolitanas, ou até mesmo ao rei.

A instrumentalização das diretrizes do Diretório em benefício próprio


pode ser observada no requerimento do Mestre de campo49 e Principal da
vila de Oeiras, Manuel Pereira de Faria, que, em Carta de 1 de março de
1785, direcionada à rainha D. Maria I, queixa-se do comportamento do

46  –  Em 26 de novembro de 1753, o Governador e Capitão General Mendonça Furtado


oficiava ao secretário de Estado da Marinha e Ultramar Digo de Mendonça Corte Real,
sobre a concessão de patente militar ao Principal Inácio Coelho. AHU, Pará, Cx. 35, D.
3307. 26 de Novembro de 1753: OFÍCIO do governador e capitão general do Estado do
Maranhão e Pará, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, para o [secretário de Estado da
Marinha e Ultramar], Diogo de Mendonça Corte Real.
47  –  AHU, Pará, Cx. 38, D. 3525. 15 de Março Ant.1755, fl.1. REQUERIMENTO do
índio da nação Aruwã, Inácio Coelho, para o rei [D. José].
48 – Ibidem.
49  –  Posto militar, posteriormente, denominado coronel por meio do decreto de 07 de
agosto de 1796 que alterava também a denominação dos corpos Auxiliares do Exército
para Milícias.

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Capitão General Martinho de Sousa Albuquerque pelas ofensas publica-


mente pronunciadas contra si. Sua argumentação se baseia no parágrafo
10 do Diretório, no qual proíbe a “infâmia” contida na ofensa de chamar
os índios de negros.
[...] passou o suplicante pela vergonha de ser publicamente descom-
posto e injuriado pelo dito Governador Martinho de Souza, na sua
sala, a vista e [fuça] de uma inumerável multidão de pessoas: Com as
afrontosas palavras de Negro e Cachorro [...].50 (Grifo nosso)

Um fato a ser observado é que não se trata somente da injúria contida


nas ofensas, mas também da vexação pública daí decorrente, dado que
ele foi “publicamente descomposto” e não teve reconhecida a sua “nobre
qualidade e autorizada Patente”. O Principal e Mestre de campo ainda re-
lembra que, para esse tipo de transgressão, deveriam ser aplicadas penas
rigorosas, sugerindo o mesmo para o Governador.
Ora senhora se por lei do Augusto Pai de V. Majestade se acha de-
terminado que os Ministros procedam com penas rigorosas contra
aqueles que injuriarem os Índios com as afrontosas palavras de Negro
e cachorro que pena não deve merecer o Governador e Capitão Ge-
neral que com elas descompôs ao suplicante e sendo este o seu atual
costume.51 (Grifo nosso)

E complementa: “[...] sem reparar a nobre qualidade do suplicante e


autorizada Patente com que se acha condecorado [...]52.

Em Carta de 26 de julho de 1786, para a Rainha D. Maria I, o


Governador e Capitão General Sousa Albuquerque se defende, afirman-
do que “não haverá pessoa alguma, que possa com verdade afirmar, que
eu na representação o desatendi expressando os nomes de Cachorro, e
Negro”53.

50  –  AHU, Pará, Cx. 94, D. 7484. 1 de Março de 1785, fl.1. CARTA do mestre de campo
e principal da vila de Oeiras, Manuel Pereira de Faria, para a rainha [D. Maria I].
51 – Ibidem.
52 – Ibidem, fl.1v.
53  –  AHU, Pará, Cx. 95, D. 7572. 26 de Julho de 1786, fl.1v.: CARTA do [governador e
capitão general do Estado do Pará e Rio Negro], Martinho de Sousa e Albuquerque, para
a rainha [D. Maria I].

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Abrindo um pequeno, mas importante adendo, recordamos que o


parágrafo 10 do Diretório proíbe, inclusive, o uso de tal “infâmia” en-
tre os próprios indígenas “como até agora praticavam”. Lembramos que,
historicamente, a denominação “Negro” extrapolava a “simples” questão
da cor e era utilizada para definir a condição de escravo. Os próprios in-
dígenas foram, anteriormente, tachados de “negros da terra”. Assim, a re-
ferência ao uso dessa alcunha entre os próprios índios pode apontar uma
ressignificação e introjeção do sistema hierárquico colonial entre eles,
demarcando a linha de distinção entre uma elite indígena camarária, ou
militar, da maioria da população indígena.

Outro caso de apropriação das determinações régias em benefício


próprio pode ser verificada no caso do Principal Francisco Xavier de
Mendonça Furtado54. A partir da concessão de privilégios, o Diretório
estimulava o matrimônio entre brancos e índios, e prosseguia no zelo de
ordenar aos Diretores a denúncia de injúrias e de destratos oriundos dos
cônjuges brancos, de forma a enquadrá-los nos rigores da lei (§88), pois
nem sempre a estima a esses matrimônios se fazia presente.

Sobre injúrias e destratos, em 28 de Setembro de 1768, o Principal


Mendonça Furtado enviou um Ofício ao Secretário de Estado da Marinha
e Ultramar, Mendonça Furtado, solicitando “para que pessoa alguma não
tenha voz ativa de nos injuriar”55. Segundo ele, as injúrias foram profe-
ridas quando ele aspirou matrimônio com a filha do morador Francisco
José de Souza. O desprezo e as ofensas partiram do pai da moça, do juiz
dos casamentos, do padre vigário capitular e de um tal Joaquim Pedro
Buralho – citado sem maiores detalhes. Embora não se trate de ofensas
pronunciadas pela cônjuge, o ato partiu, entre outros, do futuro sogro –
caso o matrimônio fosse consumado. E, embora a denúncia das ofensas
não tenha partido de um Diretor, conforme observa o Diretório (§88), ela
se deu pelo próprio Principal – que, ao fim do requerimento, se declara

54  –  Homônimo do, agora, Secretário de Estado da Marinha e Ultramar.


55  –  AHU, Pará, Cx.61, D.5457. 28 de Setembro de 1768, fl. 2v.: OFÍCIO de Francisco
Xavier de Mendonça Furtado, para o [secretário de Estado da Marinha e Ultramar], Fran-
cisco Xavier de Mendonça Furtado.

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“servo e afilhado” – que a encaminhou não a uma autoridade colonial,


mas sim a uma autoridade metropolitana. Infelizmente, não encontramos
documentação sobre o desfecho do caso.

Já citamos o caso da representação à rainha D. Maria I pelo Principal


Manuel Pereira na qual se queixa das ofensas públicas que o Governador
Sousa e Albuquerque lhe fizera ao chamar-lhe de negro e cachorro.
Segundo Manuel, logo após as ofensas proferidas pelo Governador, ele
invocou os privilégios da Patente, “replicando o suplicante e dizendo-lhe
que advertisse sua Ex.ª que o suplicante se achava condecorado com a
honrosa Patente de Mestre de Campo”56. Além das queixas, ainda infor-
ma sobre irregularidades da gestão do Governador.
[...] porém é certo que fazendo o suplicante um [...] exame de consci-
ência [tão somente] se lembra haver pecado contra o General em não
querer remeter a José de Anveres diretor da Vila de Portel um grande
número de índios que o mesmo mandava buscar da sua Povoação sem
Portaria.57 (Grifo nosso)

Demonstrando conhecimento acerca das determinações do Diretório,


Manuel sinaliza a prática do Governador de instalar taberna nas duas vi-
las (Portel e Melgaço) em total desrespeito aos parágrafos 13 e 41 do
Diretório (combate ao vício da ebriedade e ao comércio de aguardente),
observando que “tudo expire [sumariamente] contra o [Diretório] apro-
vado por lei e mandado observar pelo Augusto pai de V. Majestade”58.
Na mesma representação, ainda denuncia caso semelhante de desmando
ocorrido na vila de Portel, levando à deserção dos índios, sendo que, após
a “deserção da gente da Vila de Portel, se seguiu a prisão do Principal e
Sargento-Mor da mesma povoação”. E completa: “vindo desta sorte a
descarregar-se sobre ele a paixão de se ver mal logrado”.59

56  –  AHU, Pará, Cx. 94, D. 7484. 1 de Março de 1785, fl.1. CARTA do mestre de campo
e principal da vila de Oeiras, Manuel Pereira de Faria, para a rainha [D. Maria I].
57  –  AHU, Pará, Cx. 94, D. 7484. 1 de Março de 1785, fl.1. CARTA do mestre de campo
e principal da vila de Oeiras, Manuel Pereira de Faria, para a rainha [D. Maria I].
58 – Ibidem, fl.2.
59 – Ibidem.

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E prossegue lamentando e reforçando as denúncias de deserções nas


duas Vilas:
[...] a melhor Povoação do Estado perdida pela deserção da Gente,
infelicidade que também já aconteceu na Povoação de Oeiras de que
o suplicante é Principal pois já fugiram para o mato cinquenta e duas
Famílias inteiras.60

O Principal ainda solicita que o caso seja averiguado “por qualquer


Ministro que não seja o atual Ouvidor pois é Ministro a [quem] só se co-
nhece inteligência para fomentar intrigas e desordens e de cujo [caráter]
talvez já V. Majestade estará certificada [...]61.

E é atendido em seu apelo62, conforme despacho: “Nestes termos


parecia-me que se podia ordenar ao Bispo que com a cautela e segredo
que este [requerimento] requer, informasse com seu parecer [...]63.

Em Carta de 26 de julho de 1786, o Capitão General responde às de-


núncias de ofensa ao Principal, desmente qualquer deserção em massa de
indígenas e se explica sobre a distribuição de índios sem Portaria. Segue
invocando o Vigário da Vila de Oeiras, ao invés do Bispo, ou qualquer
outra autoridade da vila para falar sobre sua conduta, e critica o Principal,
apresentando argumentos contra o mesmo. Assim, sobre a distribuição de
índios sem portaria, diz:
Não duvido que houvesse de deferir em algum requerimento de José
de Anvers64, para que se lhe dessem seis Índios da Vila de Oeiras, para
aplicar em lavouras, como pratico em auxiliar a todos os lavradores;
porém se assim foi, de que não tenho já lembrança, seria por uma úni-
ca vez, o que certamente não prejudicou a Povoação do Representan-
te. O Diretório, porque V. Majestade manda governar as povoações de
Índios; ordena deverem se repartir os moradores capazes de serviço,

60 – Ibidem.
61 – Ibidem, fl.2v.
62  –  Passada ordem para informar e ser ouvido, o governador e Capitão General em 11
de agosto de 1785, sendo expedida em 25 de outubro de 1785.
63  –  “Despacho” inserido na margem lateral esquerda do requerimento. AHU, Pará, Cx.
94, D. 7484. 1 de Março de 1785, fl.1: CARTA do mestre de campo e principal da vila de
Oeiras, Manuel Pereira de Faria, para a rainha [D. Maria I].
64  –  Diretor da vila de Portel.

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sendo uma parte deles para distribuir aos habitantes deste Estado para
aplicarem na extração das Drogas do Sertão, na Agricultura, e Pesca-
rias.65

Acerca do estabelecimento de tabernas e de comércio de aguardente,


admite e apresenta o contra-argumento:
[...] sim fiz estabelecer em benefício das vendas da Câmara daquela
Vila um Contrato de Aguardente, para existir na partem ou bairro,
em que residem os moradores Brancos, que logo se rematou, passan-
do para esse fim as ordens necessárias o Doutor Ouvidor Geral, e à
imitação do que se pratica nas Vilas de Ourem, Santarém, Óbidos, e
Barcelos todas deste Estado; redundando tudo, alem de acrescerem as
rendas das respectivas Câmaras, em aumento das Rendas Reais pelas
Terças, que lhe competem.66 (Grifo nosso)

Sobre as denúncias de deserções:


As deserções de Índios arguidas são falsas, o que a V. Majestade terá
sido constante pelos mapas verídicos da população de todos os habi-
tantes deste Estado, que tive a honra de por na Real Presença de V.
Majestade.67

E critica a figura do Principal e, consequentemente, a validade de


seus argumentos.
O Representante já por algumas desordens, que cometeu na vila de
Oeiras, servindo ali de Diretor, foi pronunciado pelo Doutor Ouvidor
Geral João Francisco Ribeiro em uma devassa que naquela vila tirou,
pelo que se mostra não ser tão inocente nos tempos passados a sua
conduta, como se expressa.68

Com esse caso, observamos que, além de invocar o Diretório, o


Principal tece sua denúncia com base em elementos de suma importância

65  –  AHU, Pará, Cx. 95, D. 7572. 26 de Julho de 1786, fl.2. CARTA do [governador e
capitão general do Estado do Pará e Rio Negro], Martinho de Sousa e Albuquerque, para
a rainha [D. Maria I].
66 – Ibidem, fl.3.
67  –  AHU, Pará, Cx. 95, D. 7572. 26 de Julho de 1786, fl.3v. CARTA do [governador e
capitão general do Estado do Pará e Rio Negro], Martinho de Sousa e Albuquerque, para
a rainha [D. Maria I].
68 – Ibidem, fl.4.

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para a administração da colônia. Esses elementos estão presentes na fala


sobre a “infelicidade” das deserções em massa de indígenas, ou na de que
“a melhor Povoação do Estado perdida pela deserção da Gente”.

Um caso anterior que não diz respeito somente à elite indígena, mas à
população indígena como um todo, é o requerimento dos Índios da vila de
Borba – direcionado para o Secretário de Estado da Marinha e Ultramar,
Tomé Joaquim da Costa Corte Real –, no qual solicitam uma devassa so-
bre o governo do Diretor da vila, o alferes Luís da Cunha de Eça e Castro.
Recorrem os Principais, e todos os mais moradores Índios desta Vila
de Borba a nova, vexados com o tirano governo do Alferes Luís da
Cunha de Eça e Castro, Diretor, que estando quase a tempo de dez
meses logo foi rendido do Governador da Capitania pela atrocidade do
seu gênio; e tendo ocasião tornou a solicitar o mesmo lugar, voltando
para [esta] mesma Vila, [onde] em vez de desmentir as demonstrações
[ilegível], se tem empenhado de novo na continuação da sua feroci-
dade [...].69

E denunciam as práticas tirânicas de Eça e Castro:


[...] porém este falso Diretor os tem reduzido ao mais lamentável es-
tado de cativeiro; porque clara, e descobertamente obriga aos Índios
para seu serviço particular com violência, castigando-os rigorosa-
mente com pancadas cruelíssimas, não respeitando as pessoas, nem o
sexo, nem a idade.70

Em suas queixas, recorrem à essência do parágrafo 9 do Diretório


que recomenda aos Diretores que se atentem para a diferenciação de tra-
tamento dispensado aos índios e às suas famílias, em público e em parti-
cular, em observância aos seus postos, graduações, empregos e cabedais.
Desse modo, afirmam que o Diretor “não atende a Principais, nem [aju-
da] pessoas que Sua Majestade manda [distinguir], e só são distintas as

69  –  AHU, Pará, Cx. 45, D. 4141. Post. 1759, fl.1. REQUERIMENTO dos Índios da vila
de Borba no Estado do Pará, para o [secretário de estado da Marinha e Ultramar, Tomé
Joaquim da Costa Corte Real].
70  –  AHU, Pará, Cx. 45, D. 4141. Post. 1759, fl.1. REQUERIMENTO dos Índios da vila
de Borba no Estado do Pará, para o [secretário de estado da Marinha e Ultramar, Tomé
Joaquim da Costa Corte Real].

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pessoas da sua paixão, e amizade ilícita”71. E reforçam o conhecimento


do disparate das ações do Diretor, comparando seu governo ao de seus
antecessores, além de ressaltarem que seus atos punitivos os colocavam
em igualdade com a condição dos escravos negros:
E como os correntes sem embargo da sua Rusticidade alcançam que
não pode ter lugar o procedimento deste Diretor, porque se lembram
que seus antecessores os trataram com diferente modo, que este se
introduz governador, e que ninguém há de ter voz, e que os castigos
que faz pelo seu interesse [particular] corresponde na igualdade com o
estado, em que se acham os pretos do Sargento-mor João de Souza.72
(Grifo nosso)

E finalizam o requerimento, reiterando a solicitação de devassa e


acrescentando a observação de que não fosse tirada informação por Cabo
de guerra, mas por Ministro 73. No que diz respeito às elites indígenas,
houve até mesmo casos de indígenas que ocuparam o cargo de Diretor,
como o Alferes índio Felipe de Santiago Monteiro, que é citado em um
ofício/minuta do ex-Governador e Capitão General do Estado do Pará e
Rio Negro, João Pereira Caldas, que relembra ao Secretário de Estado da
Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, o pedido do provimento
de Filipe Monteiro para o cargo de Diretor da vila de Monforte da Ilha
Grande de Joanes, “enquanto o não desmerecer”74.

Dado que a principal função do Diretor era encaminhar os indígenas


para a civilidade – “enquanto os Índios não tiverem capacidade para se
governarem” (§1) –, promovendo o aprendizado das técnicas e dos va-
lores coloniais, e mais ainda europeus, prover um indígena no cargo de
Diretor era assumir publicamente, mesmo que no âmbito individual, o
“êxito de tal empreitada”. Lembramos ainda que, segundo esse parágrafo
do Diretório, a função de Diretor deveria ser exercida por homens do-
tados de “bons costumes, zelo, prudência, verdade, ciência da língua, e
71 – Ibidem, fl.1v.
72 – Ibidem, fl.2v.
73 – Ibidem.
74  –  AHU, Pará, Cx.87, D.7102. Post. 1780, fl.1. OFÍCIO (minuta) do [ex governador e
capitão general do Estado do Pará e Rio Negro, João Pereira Caldas, para o secretário de
estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro].

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de todos os mais requisitos necessários para poder dirigir com acerto os


referidos índios debaixo das ordens, e determinações seguintes que invio-
lavelmente se observarão”75. Mesmo que o cerne das motivações políticas
e administrativas que os alçou a esta função “diretiva” estivesse além da
constatação imediata de um “êxito indígena”, o fato é que alguns poucos
conseguiram se destacar de forma a assumir postos até então exclusivos
de homens honrados e, principalmente, brancos. Assim, de acordo com
Coelho:
Ao longo de todo o período de vigência do Diretório dos Índios, as po-
pulações indígenas foram incorporadas à sociedade colonial, por meio
da inclusão nas forças militares, na condição de ajudantes, alferes,
sargentos-mores, capitães e mestres de campo. Alguns poucos índios
exerceram as ocupações de Meirinho e Diretor. Essas incorporações
representaram, em vários casos, uma chance de mobilidade, para os
índios descidos [...].76

Arrolamos, aqui, requerimentos da própria legislação indigenista,


utilizados pelos oficiais indígenas como instrumento para requerer pa-
tentes e/ou privilégios da patente, e para denunciar práticas abusivas e
discriminatórias dos moradores e das autoridades coloniais, inclusive de
Diretores e de Governadores. Para tal fim, se valeram das determinações
do Diretório e da própria lógica das sociedades do Antigo Regime.

Quanto aos requerimentos dos índios, é de difícil comprovação a


identidade dos redatores. Mesmo que não fossem eles os redatores, ha-
vendo intermediários que traduzissem seus interesses para a lógica colo-
nial, concordamos com Rocha, que conclui – dado eles serem aldeados
há décadas – que, mesmo que a compreensão da realidade não fosse a
mesma dos portugueses, “ao que parece, os índios puderam utilizar a con-
dição de privilegiados de uma forma bastante prática: obtendo vantagens
como, por exemplo, a cristalização da sua posição privilegiada”77.
75  –  DIRECTORIO que se deve observar...: §1. In: NETO, Carlos de Araújo Moreira.
Índios da Amazônia, de Maioria à Minoria (1750-1850). Petrópolis: Vozes, 1988, p. 166.
76  –  COELHO, Mauro Cezar. Do sertão para o mar – Um estudo sobre a experiência
portuguesa na América, a partir da colônia: o caso do Diretório dos Índios (1751 -1798).
Tese (Doutorado em História Social) – Universidade de São Paulo. SP, 2005, p. 220.
77  –  ROCHA, Rafael Ale. Os oficiais índios na Amazônia Pombalina: Sociedade, Hie-

38 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):13-40, mai./ago. 2019.


Oficiais Indígenas: Estratégias de ascensão social e militar no
Estado do Grão-Pará e Maranhão na segunda metade do XVIII

Destacamos, aqui, como essa elite indígena se valeu do instrumen-


tal político-legal português para obter maiores privilégios para si e para
seus familiares, se inserindo na hierarquia colonial e fazendo frente aos
demais vassalos brancos, em alguns casos, até mesmo às autoridades
coloniais. Logicamente, nem todos souberam, conseguiram ou puderam
“manusear” esse arcabouço legislativo.

Monteiro propôs uma reinterpretação abrangente dos processos his-


tóricos e uma reavaliação das formas como esses “atores nativos criaram
e construíram um espaço político pautado na rearticulação de identida-
des”, abrangendo não só as formas tradicionais, mas também a sua inclu-
são – ou exclusão – nas estruturas coloniais “que passaram a cercear cada
vez mais as suas margens de manobra”78.
Assim, tanto as sociedades que se mantinham avessas ao contato, por
assim dizer, como as que foram mais intensamente envolvidas nos
esquemas coloniais tiveram que adotar novas formas de resistência,
muitas vezes lançando mão de estratégias, retóricas e materiais busca-
dos entre os europeus.79

De modo geral, este trabalho buscou evidenciar que as elites indí-


genas analisadas souberam se valer de sua condição de destaque – por
meio do manuseio das legislações indigenistas pombalinas – para obter,
cristalizar e aumentar privilégios, e de que forma a via militar foi instru-
mentalizada como estratégia de ascensão social – e, por conseguinte, de
resistência – por essas elites indígenas, inserindo essa nova elite indígena
e militar na tessitura social do Grão-Pará, com todas as implicações daí
decorrentes.

Texto apresentado em março/2019. Aprovado para publicação em


junho/2019.

rarquia e Resistência (1751-1798). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade


Federal Fluminense. Niterói, RJ, 2009, p. 90.
78  –  MONTEIRO, John M. Armas e Armadilhas. História e Resistência dos Índios. In:
NOVAES, Adauto (Org.) A Outra Margem do Ocidente. São Paulo: Cia das Letras, 1999,
p. 241-242.
79 – Ibidem.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):13-40, mai./ago. 2019. 39


Desastre e reconstrução no Rio de Janeiro setecentista:
o incêndio do Recolhimento do Parto

41

DESASTRE E RECONSTRUÇÃO NO RIO DE JANEIRO


SETECENTISTA: O INCÊNDIO DO
RECOLHIMENTO DO PARTO
DISASTER AND RECONSTRUCTION IN EIGHTEENTH
CENTURY RIO DE JANEIRO: THE FIRE AT
RECOLHIMENTO DO PARTO
Anita Correia Lima de Almeida1

Resumo: Abstract:
Entre os diversos incêndios ocorridos no Rio de The fire that destroyed the church and the
Janeiro do século XVIII, o desastre da Igreja e Recolhimento do Parto building in August 1789
do Recolhimento do Parto, destruídos pelo fogo is one of the best known fires in eighteenth-
em agosto de 1789, é um dos mais conhecidos. century Rio de Janeiro. Two pairs of paintings
Chegaram, aos nossos dias, dois pares de telas portraying the fire and the reconstruction of
dedicadas ao incêndio e à reconstrução do edifí- the building have survived to our days, and
cio. Além disso, ao longo do século XIX, o fogo throughout the nineteenth century the fire was
no Recolhimento foi objeto de historiadores e not only the subject of historians and chroniclers
de cronistas da cidade e serviu ainda de tema but has also served to inspire a novel. From the
para um folhetim. A partir de uma investigação a perspective of a history of disasters, this article
respeito do caso do Parto, o objetivo deste artigo has a double aim, namely, first, to identify the
– na perspectiva de uma história dos desastres – resources used by the city of Rio de Janeiro in
é não só perceber os recursos usados pelo Rio de colonial times to deal with the dangers of urban
Janeiro colonial para lidar com o perigo do in- fires such as the one dealt with here, and, second,
cêndio urbano, mas também, ao mesmo tempo, to examine how the narratives of this particular
examinar a maneira como, afinal, as narrativas episode were part of a large understanding of
sobre este episódio estiveram inseridas numa disasters, increasingly seen as secular episodes.
longa história da percepção sobre o desastre
que, neste final de século, caminhava, tenden-
cialmente, para uma dessacralização do tema.
Palavras-chave: História dos desastres; Incên- Keywords: History of disasters; urban fires;
dios Urbanos; Recolhimento do Parto. Recolhimento do Parto.

Na madrugada de 23 para 24 de agosto de 1789, o fogo irrompeu no


complexo formado pelo Recolhimento e pela Igreja de Nossa Senhora do
Parto. Localizada na confluência da Rua da Ajuda, dos Ourives e de São
José, a edificação ocupava uma área central do Rio de Janeiro setecentis-
ta, a cidade que, na altura, abrigava os vice-reis da América Portuguesa.
O Recolhimento tinha sido fundado em meados do século XVIII e, em-
bora fosse uma instituição de feição religiosa, dedicava-se à clausura de
1  –  Escola de História/Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO.
E-mail: anita.correialima@gmail.com.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):41-70, mai./ago. 2019. 41


Anita Correia Lima de Almeida

mulheres que não tinham feito o voto de freira, mas cujo comportamento
tinha sido considerado impróprio por pais ou por maridos.

A Igreja de Nossa Senhora do Parto, que acabou por dar nome também
ao Recolhimento, havia sido construída no século XVII2. Segundo o his-
toriador Vieira Fazenda, no século seguinte, para edificar o Recolhimento
no terreno vizinho, decidiu-se “alargar a igreja pelo lado direito, que era
ainda terreno próprio” e “deitar a frente do templo abaixo para correr com
o Recolhimento pela frente do corpo da igreja”3, de maneira que as reco-
lhidas pudessem assistir aos atos religiosos sem que precisassem passar
pela rua. O resultado é que era impossível, vendo-se de fora, reconhecer
onde acabava a Igreja e começava o Recolhimento, formando, ambos, um
único e maciço edifício em que a Igreja estava contida. E foi esta grande
edificação, com mais de uma dúzia de janelas em cada um dos pavimen-
tos superiores, que pegou fogo naquela madrugada de 1789.

Segundo acreditam cronistas e historiadores da cidade, o conjunto


incendiado (Igreja e Recolhimento) foi reconstruído muito rapidamen-
te, por ordem do vice-rei D. Luís de Vasconcellos e Sousa. Monsenhor
Pizarro (1753-1830), que foi contemporâneo dos acontecimentos, escre-
veu em suas Memórias Históricas do Rio de Janeiro (1820-22) que “ain-
da fumegava o interior dos edifícios” e já “corriam os carros atacados de
madeira, e d’outros materiais, a dar aviamento pronto aos trabalhadores,
que cobiçosos de obsequiar com os seus préstimos o Ilustre reedificador
[o vice-rei], corriam à porfia”. E, assim, com empenho redobrado, con-
cluíram a obra em apenas três meses e dezessete dias. Na tarde do dia 8
de dezembro, organizou-se uma procissão para trazer de volta à Igreja a

2  –  Ver MAURÍCIO, Augusto. Igrejas históricas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:


Livraria Cosmos, s.d., p. 107-111. Atualmente, a paróquia de N. S. do Parto ocupa um
edifício moderno construído pela mitra no mesmo local da Igreja original, na atual Rua
Rodrigo Silva (trecho da antiga Rua dos Ourives), n. 7. A velha Igreja, que tinha sido
completamente remodelada em 1939, foi demolida em 1951.
3  –  FAZENDA, Vieira. Antiqualhas e memórias do Rio de Janeiro. Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, t. 86, v. 140, 1921, p. 380. No século XIX, o Recolhi-
mento foi desativado e o edifício abrigou instituições como o Hospital da Ordem Terceira
do Carmo, entre 1812 e 1870, e o Arquivo Público do Império, de 1870 em diante, até ser
demolido no período do prefeito Pereira Passos, restando apenas a Igreja.

42 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):41-70, mai./ago. 2019.


Desastre e reconstrução no Rio de Janeiro setecentista:
o incêndio do Recolhimento do Parto

imagem de Nossa Senhora do Parto que tinha se salvado das chamas. Na


mesma procissão, seguiram as enclausuradas que, afinal, retornavam ao
Recolhimento4.

O incêndio urbano é, provavelmente, tão antigo quanto a existência


da própria cidade, embora esse perigo tenha se modificado ao longo do
tempo. Muitas áreas urbanas sofreram incêndios devastadores em sua his-
tória. Para um exemplo da Antiguidade, o mais conhecido é o de Roma
em 64 d. C.5, já para períodos mais recentes, o caso mais famoso é o de
Londres em 1666, mas muitos outros poderiam ser citados. Para ficarmos
no século XVIII, temos o caso de Rennes6, na França, que sofreu um in-
cêndio em 1720, que durou seis dias e destruiu a maior parte da cidade.
Copenhague, em 1728, e novamente em 1795, ou Lisboa, no Terremoto
de 1755, também fazem parte desta extensa lista. E houve cidades em
que o fogo foi assustadoramente frequente, como em Tókio (Edo), com
suas frágeis construções de madeira, durante o longo período do xoguna-
to Tokugawa, entre os séculos XVII e XIX7. Somente a partir do século
XIX, e sobretudo durante o século XX, com a profissionalização dos ser-
viços de bombeiros e a legislação de proteção, é que o incêndio urbano se
transformou num evento ocasional e isolado. Mais recentemente, entre-
tanto, este quadro está novamente se alterando, com a mudança ambiental

4  –  ARAÚJO, José de Sousa Azevedo Pizarro e [Monsenhor Pizarro]. Memorias histo-


ricas do Rio de Janeiro e das provincias annexas à jurisdicção do Vice-Rei do Estado do
Brasil. Rio de Janeiro: Na Impressão Regia, 1820-1822, v. 7, p. 267-278.
5  –  Há antigas hipóteses sobre o incêndio de Roma ter sido ateado intencionalmente,
mas a historiografia contemporânea, em sua quase totalidade, considera que o fogo não
teve causa proposital, mas acidental, como em muitos outros incêndios urbanos de gran-
des proporções. Ver FERNÁNDEZ URIEL, Pilar. El incendio de Roma del año 64: una
nueva revisión crítica. Espacio, Tiempo y Forma, Serie II, Hª Antigua, t. 3, p. 61-84, 1990.
6 – Ver NIÈRES Claude. La reconstruction d’une ville au XVIIIe siècle. Rennes, 1720-
1760. Paris: Klincksieck, 1972.
7 – Ver BANKOFF, Greg, LÜBKEN, Uwe, SAND, Jordan (Org.). Flammable Cit-
ies: Urban Conflagration and the Making of the Modern World. Madison: University of
Wisconsin Press, 2012. Para estudos recentes, no Brasil, sobre a temática do fogo, ver o
Dossiê "A Terra e os homens sob fogo". Organizado por Júnia Ferreira Furtado. Varia
Historia, Belo Horizonte, v. 33, n. 63, 2017.

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Anita Correia Lima de Almeida

e o incremento dos fogos florestais, o que trouxe de volta o perigo de


incêndios altamente destrutivos alcançarem áreas urbanas8.

Como se sabe, o Rio de Janeiro, em nenhuma época viveu qualquer


desastre de proporções catastróficas, mas vários grandes incêndios fica-
ram na memória da cidade. E o fogo no Parto foi um deles9.

O fogo faz parte do planeta e da vida dos homens, em algumas cir-


cunstâncias específicas, no entanto, se transforma em desastre. Mesmo
nas áreas urbanas, os incêndios têm sido estudados como um fenôme-
no que está relacionado aos chamados “regimes de fogo”10. Cada região
tem condições topográficas e climáticas específicas e cada cidade possui
uma história própria das técnicas e do material construtivo utilizados. E
existem vários fatores que podem influenciar na propagação do incêndio
como, por exemplo, um maior ou um menor adensamento das áreas edifi-
cadas. Além disso, há toda a especificidade das questões ligadas à própria
luta contra o fogo.

Não é difícil imaginar o que poderia ter gerado – e alimentado – um


incêndio num casarão como esse no Rio de Janeiro colonial. A chama das
velas, dos candeeiros, a lenha na cozinha, o fogo que passa para o lençol
da cama, para as tábuas do piso ou para os caibros do telhado e que, rapi-
damente, alcança as talhas de madeira que forravam as paredes da Igreja.
Entretanto, se não há, no caso do Parto, a possibilidade de recuperar, na
documentação, dados precisos sobre o que de fato terá causado o incên-
dio, há vários elementos do combate travado contra o fogo que podem ser
levantados.
8  –  Para um estudo com uma abordagem inovadora, sobre os lucros que alguns seto-
res esperam conseguir com os desastres trazidos pelas mudanças climáticas, ver FUNK,
McKenzie. Grande demais para queimar: incêndios públicos, bombeiros privados. In:
Caiu do céu: o promissor negócio do aquecimento global. São Paulo: Três Estrelas, 2016.
9  –  Enquanto eu estava escrevendo este artigo, um incêndio devastador, na noite de 2 de
setembro de 2018, destruiu o Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista. É provável que
este incêndio fique na memória da cidade por um longo tempo.
10  –  Ver PYNE, Stephen. Sacudir e assar: um comentário sobre terremotos e incêndios.
Varia Historia. Belo Horizonte, v. 33, n. 63, 2017, p. 583-589. Ver também, entre as di-
versas obras de Pyne, World Fire: The Culture of Fire on Earth. New York: Holt, 1995 e
Fire: a brief history. Seattle: University of Washington Press, 2001.

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Desastre e reconstrução no Rio de Janeiro setecentista:
o incêndio do Recolhimento do Parto

O historiador David Garrioch, interessado na vida das cidades se-


tecentistas europeias, estudou os esforços de combate ao fogo em Paris
ao longo do século XVIII e nos primeiros anos do século XIX. Segundo
Garrioch, a ideia de que o combate a incêndios era muito precário e ine-
ficaz antes do século XIX, quando houve, então, a profissionalização dos
corpos de bombeiros, precisa ser relativizada. É claro que a tecnologia
usada pelos bombeiros no final do oitocentos era mais eficiente do que
aquela utilizada em épocas anteriores e que, efetivamente, a época dos
incêndios urbanos devastadores tinha ficado para trás. Examinando-se o
caso de Paris, contudo, vê-se que houve mais e mais incêndios no sécu-
lo XVIII extintos com sucesso. O que precisa ser observado, segundo o
historiador, é que a natureza dos incêndios foi se alterando ao longo do
tempo, com as transformações da própria vida urbana. E, portanto, a insti-
tuição do moderno serviço de extinção de incêndio – no caso de Paris, os
Sapeurs-pompiers (1811) de Napoleão11 – procurava atender, pelo menos
parcialmente, a desafios novos e não apenas ao velho problema com o
fogo12.

Assim, a ideia aqui é não olhar para os esforços de combate ao fogo


no Rio de Janeiro setecentista como uma luta desigual, travada com pou-
cos recursos, cheia de dificuldades que só teriam começado a ser supera-
das com a criação do Corpo de Bombeiros da Corte (1856), seis décadas
mais tarde. A proposta é assumir uma perspectiva da história dos desas-
tres segundo a qual examinar a reação a um evento trágico pode ser útil
para perceber aspectos sociais e políticos relacionados mais amplamente
à história da cidade nesses últimos anos do século XVIII13. Além disso,
11 – Ver Sapeurs-Pompiers de Paris: la fabuleuse histoire d'une brigade mythique. Paris:
Albin Michel, 2011.
12 – GARRIOCH, David. Fires and Firefighting in 18th and Early 19th-Century Paris.
In French History and Civilization: papers from The George Rude Seminar, 7, p. 1-13,
2007.
13  –  Em obra recente, o historiador Stuart Schwartz, estudando os furacões no Caribe,
abraçou a perspectiva daqueles que entendem que mesmo os eventos naturais têm o seu
poder de destruição amplificado devido a vulnerabilidades sociais e econômicas especí-
ficas e, neste sentido, também são socialmente produzidos e podem revelar estruturas da
vida social. SCHWARTZ, Stuart B. Sea of Storms: a History of Hurricanes in the Greater
Caribbean from Columbus to Katrina. Princenton: Princenton University Press, 2015.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):41-70, mai./ago. 2019. 45


Anita Correia Lima de Almeida

outra possibilidade que a história do incêndio do Parto oferece é a de


sondar em que medida a recepção a este evento específico aponta para a
inserção do Rio de Janeiro colonial numa longa história das concepções
sobre os desastres que, neste final de século, caminhava, tendencialmen-
te, para um entendimento dessacralizado sobre o tema14.

O Recolhimento
No final da década de 1980, o antropólogo Luiz Mott levantou na
documentação do Arquivo da Torre do Tombo, em Portugal, a história
de uma africana, Rosa Egipcíaca, que chegou ao Brasil como escrava em
1725 e foi viver em Minas, onde trabalhou como prostituta e teve uma
vida atribulada. Por volta de 1750, Rosa começou a ter visões místicas,
largou a prostituição e se tornou beata. Forra, veio para o Rio de Janeiro
e conseguiu fazer contato com o alto clero da cidade, até ser considerada
uma ameaça e ser enviada presa para a Inquisição em Lisboa.

Em meados do ano de 1752, numa de suas visões místicas, Nossa


Senhora da Piedade teria dito a ela para pedir o dinheiro das esmolas ao
padre seu confessor em Minas para comprar uma casa na cidade e morar
“junto com as pecadoras que dizem ofender a Deus porque não têm uma
casa para morarem”15. Segundo o que Luiz Mott concluiu do exame da
documentação inquisitorial, Rosa Egipcíaca, com a ajuda financeira en-
viada pelo padre, teria dado início à criação do Recolhimento ao lado da
Igreja de N. S. do Parto.

Em julho de 1756, o Bispo do Rio de Janeiro, D. Antônio do


Desterro, escreveu ao Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Diogo

14 – Ver MERCIER-FAIVRE, Anne-Marie, THOMAS, Chantal. (Org.) L'invention de


la catastrophe au XVIIIe siècle: du châtiment divin au désastre naturel. Genebra: Droz,
2008. Optou-se, aqui, pelo uso dos termos dessacralização e secularização com a intenção
de apontar para um processo geral de erosão das concepções religiosas sobre os desastres.
Sobre a complexidade dessas noções, ver CATROGA, Fernando. Entre deuses e césares:
secularização, laicidade e religião civil: uma perspectiva histórica. Coimbra: Almedina,
2006.
15 – MOTT, Luiz. Rosa Egipcíaca: uma santa africana no Brasil. Rio de Janeiro: Ber-
trand Brasil, 1993, p. 255.

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Desastre e reconstrução no Rio de Janeiro setecentista:
o incêndio do Recolhimento do Parto

de Mendonça Corte Real, afirmando que o número de mortes de mulheres


adúlteras estava crescendo no bispado, por isso algumas mulheres tinham
sido recolhidas em uma casa ao lado da Igreja de Nossa Senhora do Parto,
e que solicitava, assim, licença para fundar um Recolhimento, com a in-
tenção de, em suas palavras, “as livrar da morte ou para seus maridos se
livrarem a que continuem a ofendê-los”16.

Alguns dados sobre as recolhidas podem ser levantados na documen-


tação conservada no Arquivo Histórico Ultramarino em Lisboa. A histó-
ria de Francisca Teodora da Costa, embora se passe um pouco depois do
incêndio, ajuda a conhecer a natureza da instituição. Um aviso de junho
de 1792, assinado pelo Secretário de Estado Martinho de Melo e Castro e
endereçado ao Bispo do Rio de Janeiro na altura, D. José Castelo Branco,
ordena que se conceda licença para que uma recolhida que se achava no
Parto “possa sair do dito Recolhimento e fique em sua liberdade, por ter
cessado, com a morte de seu marido, o motivo de sua reclusão”17.

Outros documentos referentes ao mesmo caso deixam saber que


Francisca Teodora da Costa tinha sido enviada ao Recolhimento por re-
querimento de seu marido, o capitão João Gomes Aranha, “do qual não
poderá sair sem nova ordem sua”. Segundo o que declarou Francisca, o
marido havia cometido essa injustiça, movido por ciúme injustificado e
pelo desejo de afastá-la para “entregar-se ele mais livremente aos seus
libidinosos apetites”18.

Poucos dias depois de encerrar a mulher no Recolhimento, o mari-


do, que tinha permanecido em Minas, adoeceu e morreu. Francisca então
enviou um requerimento a Portugal, informando que, em seu testamento,
João Gomes Aranha havia declarado que a tinha mandado recolher “por
16  –  Ofício do Bispo D. Fr. Antonio do Desterro para Diogo de Mendonça Corte Real.
Rio de Janeiro, 21 de julho de 1756. Arquivo Histórico Ultramarino (AHU). Rio de Janei-
ro, Cx. 84, Doc. 19.479.
17  –  Aviso (minuta) de Martinho de Melo e Castro ao Bispo do Rio de Janeiro. Queluz,
6 de junho de 1792. Arquivo Histórico Ultramarino (AHU). Rio de Janeiro, Cx. 151, Doc.
85.
18  –  Carta de José Luís Franca ao Secretário de Estado. Lisboa, 24 de março de 1792.
Com anexos. Arquivo Histórico Ultramarino (AHU). Minas Gerais, Cx. 137, Doc. 8.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):41-70, mai./ago. 2019. 47


Anita Correia Lima de Almeida

culpas que lhe parecia tinha cometido, as quais lhe perdoava, e que se
estivesse inocente, lhe pedia que também lhe perdoasse em tudo quanto
tinha feito a esse respeito”, o que demonstrava, segundo a argumentação
de Francisca, que até o próprio marido reconhecia não ter certeza de sua
culpa. Ela ainda contava em seu requerimento que tinha uma filha de doze
anos que precisava dos seus cuidados e que, além disso, havia “granjeado
na dita Clausura um princípio de morfeia”19, o que só tinha feito aumentar
o seu sofrimento. Solicitava, assim, sua liberdade; no que afinal foi aten-
dida, como se vê pelo aviso endereçado ao bispo.

Dois anos antes do incêndio, o edifício estava deteriorado e sofreu


uma reforma. Como memória desta recuperação, foi afixada uma pla-
ca na parede que dizia: “Esta obra foi feita por Ordem e Proteção do
Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Luís de Vasconcelos e Sousa, vice-
-rei do Estado. Ano 1787”20. Esta recuperação do Parto realizada antes do
incêndio aponta para a importância da instituição e do edifício. E pode
ser entendida no contexto de outras obras implementadas pelo vice-rei,
algumas de remodelação completa de áreas da cidade, como a conclusão
do aterramento da Lagoa do Boqueirão e a construção do Passeio Público,
entre 1779 e 1783, ou a instalação da muralha e do novo chafariz no
Largo do Carmo, em frente ao paço dos vice-reis, em 1789. O poeta e
professor régio de Retórica Manuel Inácio da Silva Alvarenga, que mais
tarde seria réu de inconfidência, compôs, como um de seus poemas de
elogio ao reformismo ilustrado, uma ode chamada “O Recolhimento do
Parto”. Recitada na presença do vice-rei no dia 12 de outubro de 1788,
a ode dizia num de seus versos: “Ó generosa mão, que não desmaias/No
meio da fadiga!”21. Quando ocorreu o incêndio, portanto, o Recolhimento
era uma instituição cuja relevância estava bastante consolidada na so-
ciedade colonial, o que se refletia inclusive nos cuidados com o edifício,
como presença arquitetônica. A recuperação do Parto – lembrada na placa

19  –  Morfeia era um dos nomes da hanseníase. Carta de José Luís Franca ao Secretário
de Estado. Doc. cit.
20  –  ARAÚJO, José de Sousa Azevedo Pizarro e [Monsenhor Pizarro]. Op. cit., p. 266.
21  –  ALVARENGA, Manoel Ignacio da Silva. Obras poeticas. Rio de Janeiro: Garnier,
1964. Tomo 1, p. 262.

48 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):41-70, mai./ago. 2019.


Desastre e reconstrução no Rio de Janeiro setecentista:
o incêndio do Recolhimento do Parto

–­ servia, assim, como mais uma marca visível a atestar o empenho da


administração do vice-rei na cidade.

As telas do incêndio e da reconstrução


São conhecidos dois pares de telas, espécie de dípticos, muito se-
melhantes entre si, dedicados ao desastre do Parto: em cada par uma
tela é dedicada ao incêndio e outra à reconstrução do edifício. Um dos
pares, atualmente, pertencente ao acervo da Chácara do Céu (Museus
Castro Maya), traz indicado no verso das telas: “Muzzi inventou e
delineou”22 (Imagens 1 e 2). Ou seja, as obras estão assinadas pelo pintor
João Francisco Muzzi, filho de um negociante italiano e de uma escrava
forra, que atuou como pintor, ilustrador e cenógrafo na cidade23. O ou-
tro par, que pertenceu à Igreja de N. S. do Parto até sua demolição, em
1951, não tem indicação de autoria, mas, segundo atribuição de Araújo
Porto Alegre, que tem sido geralmente aceita, foi obra do pintor Leandro
Joaquim24 (Imagens 3 e 4).

Imagem 1: João Francisco Muzzi. Fatal e rápido incêndio, que reduziu a cinzas em 23 de agosto de 1789 a Igreja,
suas imagens, e todo o antigo Recolhimento de N. S. do Parto, salvando-se unicamente ilesa de entre as chamas
a milagrosa imagem da mesma Senhora [legenda no verso]. Óleo sobre tela. 1,00 X 1,25 m. Acervo dos Museus
Castro Maya/IBRAM/MinC.

22  –  A tela da Reedificação tem a assinatura de Muzzi, no canto esquerdo. Atualmente,


as inscrições no verso não são mais visíveis, porque as obras foram reenteladas.
23  –  Ver CAVALCANTI, Nireu. Os filhos do italiano João Francisco Muzzi. Educação
em Linha, ano III, n. 8, abril/jun., p. 26-27, 2009. Ver também MIGLIACCIO, Luciano.
Les Muses de Tijuca: Portugais et Français à Rio de Janeiro. Brésil(s), Paris, n. 10, 2016.
24  –  Ver FERREZ, Gilberto. As primeiras telas paisagísticas da cidade. Revista do Patri-
mônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n. 17, 1969, p. 233.

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Anita Correia Lima de Almeida

Imagem 2: João Francisco Muzzi. Feliz e pronta reedificação da Igreja e todo o antigo Recolhimento de N. S. do
Parto, começada no dia 25 de agosto de 1789 e concluída em 8 de dezembro do mesmo ano [legenda no verso]25.
Óleo sobre tela. 1,00 X 1,25 m. Acervo dos Museus Castro Maya/IBRAM/MinC.

Imagem 3 e 4:

Leandro Joaquim (Atribuição). Fatal e rápido incêndio, que reduziu a cinzas em 23 de agosto de 1789 a Igreja,
suas imagens, e todo o antigo Recolhimento de N. S. do Parto, salvando-se unicamente ilesa de entre as chamas a
milagrosa imagem da mesma Senhora [legenda na moldura]. Óleo sobre tela. 1,60 X 1,96 m.
Feliz e pronta reedificação da Igreja e todo o antigo Recolhimento de N. S. do Parto, começada no dia 25 de
agosto de 1789 e concluída em 8 de dezembro do mesmo ano [legenda na moldura]. Óleo sobre tela. 1,60 X 1,96
m. Acervo do Museu Arquidiocesano de Arte Sacra do Rio de Janeiro. Fonte: FERREZ, Gilberto. As primeiras
telas paisagísticas da cidade. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n. 17, p. 219-
237, 1969.

25 – FERREZ, Gilberto. Muito leal e heroica cidade de São Sebastião do Rio de Janei-
ro: quatro séculos de expansão e evolução. Paris: Marcel Mouillot, 1965, p. 46.

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Desastre e reconstrução no Rio de Janeiro setecentista:
o incêndio do Recolhimento do Parto

Imagem 5: João Francisco Muzzi. Fatal e rápido incêndio [...]. Detalhe.

As duas telas elípticas, atribuídas a Leandro Joaquim, ficavam na sa-


cristia da Igreja do Parto e nunca saíram da cidade. Já os painéis de Muzzi
foram localizados em Portugal pelo colecionador de arte Raymundo de
Castro Maya em 1942 e trazidos ao Brasil. Quando se tomou conheci-
mento desta descoberta, os estudiosos da pintura colonial passaram a
considerar que as antigas ovais da Igreja do Parto, conhecidas de todos,
eram, na verdade, cópias feitas a partir dos painéis assinados por Muzzi
que, agora, retornavam ao país26. E, como hipótese, sugeriu-se que os
quadros pintados por Muzzi foram levados para Portugal pelo próprio
vice-rei Luís de Vasconcelos, quando este regressou ao reino pouco tem-
po depois do desastre do Parto. Antes de partir, o vice-rei teria mandado
reproduzir o par de telas pelo pintor Leandro Joaquim, de modo a que as
cenas permanecessem na cidade como memória de todo o seu empenho
no combate ao incêndio e na reconstrução do edifício27.

Na década de 1950, o pintor Edson Motta, trabalhando no ateliê de


restauração do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional –
SPHAN, fez um exame detalhado das quatro pinturas e afirmou que, em-
bora um par seja cópia do outro, vê-se a “existência da ‘caligrafia’ de dois
artistas”. Admitindo que as obras originais são os painéis de Muzzi trazi-

26  –  Ver LEVY, Hanna. A pintura colonial no Rio de Janeiro. Revista do Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n. 06, p. 07-79, 1942, p. 74.
27 – FERREZ, Gilberto. Muito leal e heroica cidade de São Sebastião do Rio de Janei-
ro: quatro séculos de expansão e evolução. Op. cit., p. 46.

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dos de Portugal, observou que as ovais atribuídas a Leandro Joaquim não


podem, no entanto, ser vistas como um trabalho realizado com o rigor de
copistas profissionais, uma vez que o autor das cópias “tomou liberdades
próprias de um artista, movimentou as figuras a seu bel-prazer, criou no-
vos elementos e modificou outros, juntou novos grupos de figuras, forçou
a perspectiva e tornou as figuras mais naturais”, enquanto que nos painéis
de Muzzi a elegância calculada das figuras aponta para um “artista que
tinha o hábito dos cenários e do teatro”28.

Embora existam muitas lacunas nas informações sobre os dois pares


de telas do Parto, que talvez só possam ser resolvidas com novas desco-
bertas documentais, essas são as únicas fontes iconográficas de que se
tem notícia para o estudo dos incêndios no Rio de Janeiro setecentista.

Na cidade colonial, eram poucos os artistas que se dedicavam a te-


mas laicos, como é o caso aqui. A cena da imagem de Nossa Senhora sen-
do retirada do prédio em chamas por uma porta lateral da sacristia, embo-
ra presente (e mencionada nas legendas), não ocupa o centro das pinturas,
mas um espaço secundário, ao fundo (Imagem 5). E, com exceção dessa
cena, não há nas obras qualquer outro apelo religioso. As telas do Parto
foram concebidas de um ponto de vista afastado da linguagem da pin-
tura religiosa que dominava o cenário da arte colonial naquele momen-
to. Nesse sentido, elas se aproximam de um conjunto de seis telas ovais
igualmente dedicadas a temas relacionados à cidade e compostas na mes-
ma época. Também atribuídas ao pintor Leandro Joaquim, essas ovais,
que atualmente fazem parte do acervo do Museu Histórico Nacional, são
vistas da cidade, em que surgem seus espaços edificados e ainda o porto e
a Baía de Guanabara. Segundo o historiador da arte Gilberto Ferrez, essas
seis telas remanescentes eram, originalmente, em número de oito e fo-

28  –  Carta relatório de Edson Motta ao Diretor sobre as telas do Parto. Arquivo Central
do IPHAN. Série Personalidades. Cx. 0081. MUZZI, Francisco (Pintor). Pasta 270.12. F
44362-44.363. A carta está publicada quase integralmente em FERREZ, Gilberto. Ico-
nografia do Rio de Janeiro, 1530-1890. Catálogo Analítico. Rio de Janeiro: Casa Jorge
Editorial, 2000, v. 1, p. 101.

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Desastre e reconstrução no Rio de Janeiro setecentista:
o incêndio do Recolhimento do Parto

ram pintadas para a decoração de um dos pavilhões no recém-construído


Passeio Público29.

Entre as que estão desaparecidas, uma tela representaria, segundo a


notícia que nos deixou o comerciante inglês John Luccock: “o incêndio
de uma grande nau holandesa”, sendo rebocada por escaleres, longe do
restante da esquadra, que se achava detrás da Ilha das Cobras. Tendo visto
as ovais em 1808, Luccock acrescentou: “Da banda oeste desse último
rochedo, jazem atualmente a quilha, o talha-mar [...] de um navio que
dizem ser os restos daquele mesmo”30. Segundo Luccock, portanto, a tela
desaparecida era dedicada à cena de um incêndio, relativamente, recen-
te de uma embarcação cujos restos ainda estavam visíveis na Baía de
Guanabara em 1808. Infelizmente, não são conhecidas outras descrições
da pintura, mas a notícia dada por Luccock aponta para a escolha do in-
cêndio como tema pictórico. E a menção a escaleres rebocando o navio,
na sua descrição, sugere que a tela mostrava algum tipo de intervenção
durante o incêndio.

Embora os estudiosos acreditem que uma das ovais que restou, co-
nhecida como “Procissão marítima ao Hospital dos Lázaros”, mostre um
festejo religioso (a embarcação principal carrega a bandeira do Divino
Espírito Santo), ainda assim ela tem sido interpretada como parte do mes-
mo espírito de composição de cenas urbanas que informa todo o conjunto,
nesse momento em que a pintura religiosa começa a ceder espaço para a
paisagística31. Para Gilberto Ferrez, o conjunto das ovais foi produzido
entre 1779 e 1790, ou seja, no período que corresponde ao governo do vi-
ce-rei Luís de Vasconcelos, responsável pela criação do Passeio Público,
para onde as pinturas se destinavam: “Parece-nos que o artista quis, ou
melhor, teve ordens para descrever alguns acontecimentos marcantes da

29  –  Ver FERREZ, Gilberto. As primeiras telas paisagísticas da cidade. Op. cit.
30  –  John Luccock citado por FERREZ, Gilberto. As primeiras telas paisagísticas da
cidade. Op. cit., p. 224.
31  –  Ver SÁ, Ivan Coelho de. O hedonismo rococó através da pintura de temática car-
navalesca. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 7-16, 1º sem. 1994 e SANTOS,
Amandio Miguel dos. Os painéis paisagísticos de Leandro Joaquim na pintura do Rio de
Janeiro Setecentista. Gávea, Rio de Janeiro, v. 11, n. 11, p. 131-151, abril 1994.

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vida carioca durante aquele período; tipicamente o que hoje chamaríamos


de propaganda do governo”32. Em certo sentido, as telas do Parto, retra-
tando o esforço de combate ao fogo e de reconstrução do edifício, tudo
sob as ordens do vice-rei, não estariam afastadas dessa perspectiva.

Assim é que, na primeira tela dedicada ao desastre do Parto – tanto


no par original, que seria o de Muzzi, como na cópia atribuída a Leandro
Joaquim –, o que se vê não é o horror de um incêndio descontrolado, mas
os esforços organizados de combate ao fogo. Grandes labaredas surgem
no telhado e o fogo consome o interior do edifício, enquanto as recolhidas
saem do prédio em chamas. Então, toda a luta contra o fogo surge didática
e minuciosamente retratada. Soldados e oficiais militares, do regimento
de infantaria e dos terços auxiliares33, ajudados por voluntários e pelos
aguadeiros com suas carroças, trabalham incansavelmente. Homens der-
rubam a golpes de machado o madeiramento do telhado, no que então era
uma técnica comum para tentar barrar o caminho do fogo. Móveis, baús
e outros objetos são atirados pelas janelas, instantes antes de serem de-
vorados pelas chamas. Enquanto isso, as carroças dos aguadeiros chegam
em fila e descarregam a água que alimenta tonéis, baldes de couro e duas
bombas manuais de extinção de incêndio. As bombas soltam seus esgui-
chos d’água em direção às chamas mais altas. E, finalmente, no primeiro
plano, estão presentes as autoridades, inclusive uma figura que se acredita
que seja a do vice-rei, presidindo todo o combate ao fogo.

As bombas de combate a incêndio (de onde vem o termo “bombei-


ros”), que espirram água sob pressão, são uma invenção romana. Em
1672, o pintor e inventor holandês Jan van der Heyden desenvolveu um
modelo moderno de bomba, mais tarde aperfeiçoado, até que em 1721 o
inglês Richard Newsham produziu e patenteou um novo equipamento,
que logo dominou o mercado de bombas de combate ao fogo na Inglaterra

32  –  FERREZ, Gilberto. As primeiras telas paisagísticas da cidade. Op. cit., p. 232.
33  –  Sobre a participação dos militares e o papel dos Arsenais da Guerra e da Marinha
no combate aos incêndios no século XVIII e na primeira metade do século XIX, ver
CASTRO, Adler Homero. Artífices do fogo. Da Cultura, Rio de Janeiro, ano VI, n. 11,
p. 32-41, 2006.

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Desastre e reconstrução no Rio de Janeiro setecentista:
o incêndio do Recolhimento do Parto

e foi vendido para vários países, recebendo adaptações locais34. No prin-


cípio da década de 1780, em Portugal, Mateus Antônio da Costa – que
viria a ter o cargo de Inspetor Geral dos Incêndios e Chafarizes de Lisboa
– projetou uma bomba extintora35 que foi produzida ao longo de duas
décadas, em mais de um modelo. No acervo do Museu do Regimento de
Sapadores Bombeiros de Lisboa, há alguns exemplares dessas bombas fa-
bricadas por Mateus Antônio da Costa, mas as que aparecem nas telas do
Parto não têm muita semelhança com esses equipamentos portugueses.
São mais parecidas com um modelo inglês, do século XVIII, conservado
no acervo da casa-museu Felbrigg Hall, em Norfolk (Inglaterra).

Um ano antes do incêndio do Parto, o vice-rei Luís de Vasconcelos


havia enviado à Câmara um ofício, obrigando o órgão a exigir “a todos os
moradores desta cidade, que logo que tocar [o sinal de] fogo à noite, po-
nham cada um em cima das janelas ou portas das casas de suas moradias,
uma luz de qualquer qualidade que seja”, porque, assim, “com menor
confusão se conduzirão ao lugar do incêndio tudo quanto se faz preciso”.
O vice-rei justifica sua ordem, dizendo: “Tendo já dado aquelas provi-
dências que me pareciam mais próprias para acudir com mais presteza
aos incêndios nesta cidade e se evitar a confusão que costuma haver em
semelhantes ocasiões”, ordena-se, agora, a obrigatoriedade da iluminação
para evitar o inconveniente de que quando os incêndios ocorrem durante
a noite “os moradores desta cidade e seus escravos são muitas vezes,
pelos cavaleiros, carros e bestas que apressadamente se encaminham ao
lugar do incêndio desgraçadamente atropelados por causa da escuridão
das ruas”36. O sinal de fogo a que se referiu o documento era dado pelo
badalar dos sinos das igrejas. E conclui-se, pois, do ofício do vice-rei, que

34 – BAKER, Eddie. Fire engines. Oxford: Bloomsbury Publishing, 2018, p. 5.


35  –  ALMEIDA, Mónica Duarte. Mateus António da Costa e o serviço de incêndios de
Lisboa na transição do século XVIII para o XIX. In: Actas do I Encontro Nacional sobre
a História dos Bombeiros Portugueses. Sintra: Associação dos Bombeiros Voluntários de
Sintra, 1999.
36  –  Citado em SANTOS, Renata, CAVALCANTI, Nireu. Casarão Vermelho: centená-
rio da construção do Quartel do Comando-Geral do Corpo de Bombeiros, 1908-2008. Rio
de Janeiro: Casa da Palavra, 2008, p. 27.

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existiram tentativas anteriores de regulação urbana em relação ao comba-


te aos incêndios durante o seu governo.

Nas pinturas dedicadas aos trabalhos de reconstrução do


Recolhimento, o edifício é representado com o telhado, parcialmente,
destruído e com as marcas do fogo ainda visíveis nas paredes. Há restos
de telhas e grades no chão, lembrando a tragédia recente, mas todo o en-
torno já surge transformado num canteiro de obras, ocupado por caibros
e telhas, enquanto carroças descarregam o que parece ser tijolo, e talvez
cal.

Além do material para a obra, a cena apresenta os variados atores en-


volvidos com a produção da arquitetura na cidade colonial. Em um plano
intermediário, estão representados os oficiais mecânicos, com suas roupas
peculiares, “barrete preto, meia-calça, descalços, junto dos escravos”37. O
pintor reservou o primeiro plano para retratar, segundo identificação ge-
ralmente aceita, Mestre Valentim, responsável pelo projeto, com o “risco”
da obra na mão, alguns homens que se supõe pertencerem à burocracia
régia, possivelmente, o ouvidor ou o provedor da Fazenda Real38 e, final-
mente, o vice-rei Luís de Vasconcelos, para quem Mestre Valentim apre-
senta o seu “risco”. Vasconcelos está de volta à cena do incêndio, agora,
comandando os trabalhos de recuperação do edifício.

E o Recolhimento estará de volta à vida, graças a uma obra executa-


da em tempo excepcionalmente curto, menos de quatro meses ou, como
informa a própria legenda da tela: “começada em 25 de agosto de 1789 e
concluída em 8 de dezembro do mesmo ano”. Então, mais do que mostrar
o incêndio e toda a destruição que o fogo causou ao edifício, é possí-
vel imaginar que as telas do Parto se destinavam a comemorar, acima de
tudo, a vontade, expressa na pessoa do vice-rei, de recuperar a edificação,
apagando os traços do incêndio e restituindo-a à sua feição anterior ao
desastre. Assim, uma das possibilidades de leitura das telas é que elas re-
37  –  Ver BUENO, Beatriz P. Siqueira. Sistema de produção da arquitetura na cidade
colonial brasileira – mestres de ofício, "riscos" e "traças". Anais do Museu Paulista, São
Paulo, v. 20, n. 1, jan./jun. 2012, p. 324.
38 – Idem.

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Desastre e reconstrução no Rio de Janeiro setecentista:
o incêndio do Recolhimento do Parto

presentassem não a destruição que o fogo pode causar a um edifício, mas


a vitória do poder régio contra o fogo.

Incêndio e cultura visual


A pintura de temática laica voltada para a representação da cidade –
ou mesmo de um acontecimento, como a tela da nau em chamas – talvez
fosse ainda pouco comum, mas ela estava começando a surgir no Rio de
Janeiro e seria razoável considerar que as telas do Parto estiveram inse-
ridas neste novo contexto. Por outro lado, na história da cultura visual da
Europa moderna, as representações pictóricas do incêndio – que mais tar-
de desembocariam na “paisagem em chamas” ou na “cidade em chamas”
– já tinham percorrido, nesta altura, uma longa trajetória39. O historiador
da arte Victor Stoichita, analisando as representações do fogo na pintura,
lembra que um dos exemplos mais conhecidos é o afresco “Incêndio do
Borgo”40, executado por Rafael, em 1514, para o Vaticano. A cena é a de
um milagre: no ano de 847, durante o pontificado do papa Leão IV, o fogo
destruía o Borgo, um bairro vizinho à Basílica de São Pedro, quando,
diante do apelo das vítimas desesperadas, o papa, com um simples sinal
da cruz, pôs fim ao incêndio.

Embora as telas do Parto estejam ligadas a um acontecimento ocor-


rido na cidade e tenham sido produzidas no Rio de Janeiro colonial, é
possível observar que, de alguma forma, o pintor atendeu à encomenda,
buscando soluções inseridas nas tradições de representação pictórica do
incêndio. Mesmo tomando-se apenas o século XVIII, quando as telas do
Parto foram produzidas, ainda assim era grande o número de obras vol-
tadas para a representação da destruição pelo fogo. E muitas, como as do
Parto, estavam ligadas a eventos reais.

39  –  Ver FOLIN, Marco, PRETI, Monica (Org.). Wounded Cities: The Representation of
Urban Disasters in European Art (14th-20th Centuries). Leiden: Brill, [2015].
40  –  Incendio di Borgo. Rafael, 1514, afresco. Museus do Vaticano. Ver STOICHITA,
Victor I. "Lochi di foco": la città ardente nella pittura del Cinquecento. Visuelle Topoi,
p. 439-451, 2003.

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Um exemplo é a gravura que o arquiteto François Huguet dedicou ao


incêndio devastador que destruiu boa parte da cidade francesa de Rennes
em dezembro de 172041. Na gravura de Huguet, homens lutam para com-
bater o fogo, com baldes e com escadas, fardos são atirados das janelas
dos edifícios em chamas – não muito distante da solução que foi usada no
caso do Parto – enquanto carroças vão sendo carregadas com baús, com
móveis e com outros objetos salvos da destruição. A gravura tem uma
legenda com a data do incêndio: “este evento terrível ocorreu em 22 de
dezembro de 1720 e se prolongou até o dia 29 do mesmo mês” e informa
ainda que o fogo destruiu 27 ruas, 5 praças, uma igreja paroquial, uma
capela, além de outros edifícios, e mais de 800 casas.

Mas não apenas obras de coloração laica foram dedicadas ao incên-


dio da cidade de Rennes. Outro exemplo de representação do mesmo
evento, com um tratamento bastante diverso, de arte religiosa, pode ser
encontrado numa tela – que é um ex-voto – exposta na sacristia da Igreja
Saint-Sauveur (Rennes) (Imagem 6). O ex-voto foi oferecido à Notre-
Dame-de-Bonne-Nouvelle, depois do desastre de 1720, pelos habitantes
de áreas da cidade que foram preservadas do incêndio42. Na imagem,
Nossa Senhora paira sobre a cidade em chamas, estendendo sua proteção
a seus moradores.

41  –  Partie de l'incendie de la ville de Rennes, vue de la place du Palai. François Huguet
(Huguet le fils), s.d., gravura. Bibliothèque Nationale de France. Reserve FOL-QB-201
(89).
42  –  A tela foi feita a partir da ampliação de uma aquarela conservada na Igreja de Saint-
-Aubin. Le Voeu des habitants de la ville de Rennes en 1720. Jean-François Huguet, 1721,
aquarela. Église Saint-Aubin, Rennes, França.

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Desastre e reconstrução no Rio de Janeiro setecentista:
o incêndio do Recolhimento do Parto

Imagem 6: Vœu fait à N. D. de Bonne Nouvelle par les habitants des Lices, rues St Louis, St Michel, Place Ste
Anne, préservées de l’incendie du 22 déc. jusqu’au 30 [legenda na moldura]. 3 X 4 m. Igreja Saint-Sauveur.
Rennes, França.

No caso de Rennes, há, assim, duas produções diferentes sobre o


mesmo incêndio: uma, que é um ex-voto em que Nossa Senhora está
protegendo a cidade, e outra, em que elementos religiosos estão ausentes.
No caso das telas do Parto, Nossa Senhora está presente na cena do sal-
vamento da imagem; e na descrição da cena contida nas legendas. Não é,
contudo, a temática do salvamento milagroso da imagem que organizada
toda a tela, é o combate ao fogo. Então, talvez, seja possível afirmar que,
do ponto de vista das concepções sobre o desastre, tanto as obras dedica-
das ao incêndio de Rennes como as telas do Parto, estão inseridas num
momento em que noções religiosas e laicas sobre os desastres se alternam
e ainda convivem.

Percepções sobre o incêndio


Nem sempre os desastres tinham sido interpretados como um evento
da vida urbana, a que o poder régio precisava fazer frente, e com o papel
da intervenção divina relegado a um plano secundário, como se sugere
que possam ser entendidas as telas do incêndio do Parto. Se voltarmos
trinta e poucos anos no tempo, para meados do século XVIII, mais pre-
cisamente para a noite de 27 de fevereiro de 1756, veremos a mesma
cidade do Rio de Janeiro empenhada na realização de uma procissão de
penitência organizada pela Irmandade dos Clérigos de São Pedro. Fiéis
vestindo longas túnicas, com coroas de espinho na cabeça e com cordas

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ao pescoço, pediam expiação dos pecados em função do terremoto ocor-


rido três meses antes em Lisboa43.

No dia 1º de novembro de 1755, um sábado, feriado de Todos os


Santos, um pouco depois das 9 horas, tinha havido, subitamente, o grande
abalo. De acordo com testemunhos, houve uma sequência de três tremo-
res, acompanhados por um estrondo que soou como um trovão ao longe
e que parecia vir do interior da terra. Os efeitos diretos do abalo espa-
lharam-se por toda a Península Ibérica e por Marrocos e o terremoto foi
seguido por um maremoto, ou tsunami, que teve reflexos do outro lado do
Atlântico44. A cidade de Lisboa foi castigada pelo tremor, pelo tsunami e,
finalmente, por um incêndio devastador.

É possível imaginar, como escreveu o historiador Rômulo de


Carvalho, que “as velas acesas nos altares das igrejas e nos oratórios
particulares, as brasas dos fogareiros das cozinhas na habitação de cada
um facilmente pegaram fogo a panos, a roupas, a papéis sobre os quais
tombavam”45. Os relatos fazem referência à velocidade das chamas que
“cobriam a cidade com indescritível rapidez”46.

Dois dias depois da tragédia, enquanto os tremores secundários ain-


da podiam ser sentidos em Lisboa, o Secretário de Estado da Marinha
e Ultramar Diogo de Mendonça Corte Real assinou uma carta para ser

43  –  CÂMARA, Antônio Pereira da. Sermao na procissam de penitencia que fés de noite
a Reverenda Irmandade dos Clerigos de S. Pedro da cidade do Rio de Janeiro por ocaziao
do Terremoto que houve em Lisboa no primeiro de Novembro de 1755. Oferecido a El
Rei D. Joseph I Nosso Senhor. Prégado á porta da Igreja da Crus ao passar da procissao,
pelo Padre Antonio Pereira da Camara. Em 27 de Fevereiro de 1756. Lisboa: Na Officina
Patriarcal de Francisco Luiz Ameno, 1757.
44  –  Em obra recente, o geólogo Alberto Veloso estudou os efeitos do tsunami na costa
do Brasil, no litoral nordestino, ver VELOSO, J. Alberto Vivas. Tremeu a Europa e o
Brasil também. Lisboa: Chiado Editora, 2015.
45  –  CARVALHO, Rómulo de. As interpretações dadas, na época, às causas do terramo-
to de 1 de Novembro de 1755. Memórias da Academia das Ciências de Lisboa, (Classe de
Ciências), tomo XXVIII, 1987, p. 179-205.
46  –  Thomas Chase. Carta à sua mãe. Centro de Estudos sobre Kent. Coleção Gordon
Ward U442 e British Library Add. 38510, pastas 7-14 "Narrative of his escape from the
earthquake at Lisbon". Citado em PAICE, Edward. A ira de Deus: a incrível história do
terremoto que devastou Lisboa em 1755. São Paulo: Record, 2010, p 139.

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Desastre e reconstrução no Rio de Janeiro setecentista:
o incêndio do Recolhimento do Parto

enviada ao governador do Rio de Janeiro, Gomes Freire de Andrade, in-


formando sobre os trágicos acontecimentos ocorridos na manhã de 1º de
novembro. Na carta, o ministro dizia que tinha recebido a correspondên-
cia do Governador remetida no final do ano anterior e no princípio deste,
e que daria resposta a tudo, “sem embargo da justa aflição, em que nos
achamos pelo fatal sucesso, que aconteceu, não só em Lisboa, mas em
todo o reino”47. E passava, então, a narrar o terrível acontecimento.

A notícia chegou ao Rio de Janeiro. E, em 27 de fevereiro de 1756,


a Irmandade dos Clérigos de São Pedro organizou na cidade a procissão
de penitência em função do Terremoto48. Na ocasião, o padre Antônio
Pereira da Câmara teria pronunciado um Sermão para os fiéis da pro-
cissão, que foi publicado no ano seguinte, na Oficina de Francisco Luiz
Ameno, em Lisboa.

Oferecida ao rei D. José I, a pregação se iniciava anunciando que


alguns foram da opinião de que se devia esperar uma notícia mais precisa
sobre o que havia acontecido na capital do reino, mas, como o ocorrido
causou uma notável impressão no Bispo e “a piedade se apossou logo de
nossos corações [...], entramos a recorrer a Deus a ver se podíamos abalar
também o Céu por meio das maiores penitências que jamais se viram nes-
ta terra”. Nas páginas iniciais, a publicação do Sermão no ano seguinte
foi justificada nestes termos:
Nem parecia justo que ficasse em silêncio uma tão grande demons-
tração, com que o Reverendo Clero desta Cidade soube, devotamente
sentido, chorar o sucesso mais trágico, que a Majestade divina não
sei se por castigo, se por amor, ou fé por uma, e outra coisa, que tudo
podia ser, permitiu na Capital do nosso Reino, pois de outro igual se
não recorda a memória.49

47  –  Ofício de Diogo de Mendonça Corte Real [secretário de estado da Marinha e Ul-
tramar] para Gomes Freire de Andrade [governador do Rio de Janeiro e Minas Gerais].
Lisboa, 11 de novembro de 1755. Arquivo Histórico Ultramarino – AHU. Rio de Janeiro,
cx. 58, doc. 43,44, 46.
48  –  CÂMARA, Antônio Pereira da. Sermao na procissam de penitencia [...]. Op. cit.
49–  CÂMARA, Antônio Pereira da. Idem, Ibidem, p. 5.

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Anita Correia Lima de Almeida

Padre Câmara tomou o tema de seu Sermão da segunda Epístola de


S. Pedro: “Não retarda o Senhor a sua promessa, como alguns pensam;
mas usa de paciência convosco, não querendo que nenhum pereça, mas
que todos se convertam à penitência”50. Ao longo da pregação, o padre
desenvolveu o argumento de que o Terremoto foi castigo divino para o
pecado dos homens, pois “todos que habitamos na terra [...] com desprezo
total da salvação, não obstante os repetidos e frequentes avisos, com que
o Céu a cada passo nos admoesta [...] parece que nos vamos precipitando
miseravelmente nos abismos da eternidade”, por isso “experimentamos
(e quando menos se imagina) as calamidades, e as ruínas que de tempos
em tempos se vê no mundo; não sendo das menores as que de presente
choramos no lamentável destroço da nossa Corte”51.

Assim, o clero do Rio de Janeiro, temendo pelas execuções da justiça


divina ofendida pelos homens, “se apresenta hoje aos olhos do Céu na
triste representação de tão humilde, e penitente espetáculo, como réus de
culpa capital, que do delito vão caminhando para o suplício”, seguindo
a procissão “com alvas, coroas de espinhos nas cabeças com cordas ao
pescoço, e cingidos com as mesmas mãos cruzadas, e pés descalços”52.
O padre enumera os pecados da cidade: vaidade e luxo das mulheres53,
pouco recato das filhas, “vícios, e solturas dos escravos”, mas também a
tirania com que são tratados. Afinal, não faltavam pecados e, nos primei-
ros dias depois da notícia do terremoto, todos na cidade haviam dado de-
monstrações devotas. Muito rapidamente, no entanto, tudo tinha voltado
ao normal, não tendo havido, na opinião do padre, um arrependimento
verdadeiro.

50  –  Ver MARQUES, João Francisco. A acção da Igreja no Terramoto de Lisboa de


1755: ministério espiritual e pregação. Lusitania Sacra, 2ª série, 18, p. 219-329, 2006,
p. 313.
51  –  CÂMARA, Antônio Pereira da. Op. cit., p. 16.
52 – Idem, Ibidem, p. 11.
53  –  A atribuição de culpa às mulheres também esteve presente no grande terremo-
to de Lima de 1746. Ver GODOY, Scarlett O'Phelan. La  moda francesa y el terremo-
to de Lima de 1746. Bulletin de l'Institut Français d'Études Andines, v. 36, n. 1, 2007.

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Desastre e reconstrução no Rio de Janeiro setecentista:
o incêndio do Recolhimento do Parto

Mas por que logo Lisboa, tão pia, tão penitente, foi escolhida para
receber o castigo divino – e com tanta severidade – o pregador se pergun-
ta. E responde: “bem poderá ser que o tenha Deus assim permitido por ser
Corte de um Reino, que é a menina de seus olhos [...]. E sempre Deus teve
por glorioso timbre da sua divina bondade, e por demonstração evidente
do seu amor infinito castigar aos que ama”54. Padre Câmara tomava um
tema comum na época: Deus, em sua eterna sabedoria, castiga aos que
mais ama. Então, segundo a suposição do padre, para levar seus habitan-
tes à salvação, antes que fosse tarde, Deus tinha feito Lisboa tremer, arder
nas chamas do incêndio e submergir nas águas de um tsunami.

Em meados do século XVIII, a explicação religiosa para a ocorrên-


cia das calamidades ocupava o centro do Sermão de padre Câmara no
Rio de Janeiro, da mesma maneira que esteve presente nos sermões pós-
-terremoto em Portugal. Muito rapidamente, no entanto, o próprio fenô-
meno que os padres, quer do reino, quer do ultramar, buscavam explicar
– o devastador abalo de 1755 – acabaria por transformar, completamente,
as concepções sobre os grandes cataclismos, cujas causas passariam a
ser procuradas, daí em diante, em explicações dessacralizadas. O fogo,
aos poucos, deixava de ser visto como resultado da vontade divina, como
castigo de Deus para o pecado dos homens. A história bíblica de Sodoma
e Gomorra ficava para trás55.

E, assim, chega-se ao final do século XVIII, quando uma visão es-


sencialmente laica da destruição pelo fogo, e de outros desastres, começa
a se consolidar. E da qual as telas do Parto seriam devedoras. Assim,
como também seriam as várias maneiras surgidas mais tarde, e romance-
adas, de reescrever a história do fogo no antigo Recolhimento.

54 – Idem, Ibidem, p. 18.


55 – Ver MERCIER-FAIVRE, Anne-Marie, THOMAS, Chantal. (Org.) L'invention de
la catastrophe au XVIIIe siècle: du châtiment divin au désastre naturel. Genebra: Droz,
2008. Ver também ALIMONDA, Héctor. Noticia historiográfica sobre terremotos en
América: siglo XVIII (Lima/El Callao y Guatemala) – siglo XIX (Mendoza). Ciência &
Trópico, Recife, v. 40, n. 1, p. 61-76, 2016.

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Anita Correia Lima de Almeida

Releituras do incêndio do Parto no século XIX


No final do século XIX, o médico e bibliotecário do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, José Vieira Fazenda, começou a publi-
car no periódico A Notícia as crônicas que, mais tarde, seriam reunidas
sob o título de Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro. Em artigos
“colhidos na consulta meticulosa de arquivos e de velhos documentos
mal conhecidos”56, o antigo Recolhimento foi mencionado mais de uma
vez. Usando a memória como recurso, Vieira Fazenda se aproximou da
história do incêndio do Parto, recorrendo ao que chamou de “depoimento
dos velhos”. Ele escreveu: “Temos a honra de apresentar hoje aos nossos
leitores a octogenária Clemência Teixeira Furtado de Mendonça, a cuja
memória somos gratos por nos haver fornecido preciosas notícias sobre
pessoas e coisas dos tempos coloniais”57.

Vieira Fazenda conta que Clemência tinha sido escrava de uma fa-
mília abastada e tinha sido vendida para o seu avô, servindo de ama seca
à sua mãe, e “por bons serviços mereceu a carta de liberdade” e foi viver
como governanta na casa de um comendador. A “velha cronista” frequen-
tava a casa do historiador onde entretinha a todos narrando histórias de
outros tempos, entre elas, a do incêndio do Parto.

Na adolescência, Clemência tinha vivido na casa de seus primeiros


senhores, um sobrado “junto ao antigo Recolhimento do Parto”, e con-
tava: “ao clarão das chamas parecia que o fogo era em casa, os brancos
acordaram assustados e, aos gritos das rondas – ponham luminárias! –
acendemos tocos de velas de cera”58. Vieira Fazenda lembra que acender
velas na frente das casas estava de acordo com a ordem dada no ano
anterior pelo vice-rei. Clemência também contava que “o Teixeira”, seu
senhor, que tinha uma filha no Recolhimento, saiu desorientado para a
rua em trajes menores. E, quando foram pintados os quadros do incêndio,
“o artista quis retratar o senhor de Clemência, tal e qual se apresentara na

56 – R.IHGB, tomo 86, v. 140, 1921, p. 7.


57 – FAZENDA, Vieira. Antiqualhas e memórias do Rio de Janeiro. Op. cit., p. 222.
58 – Idem, Ibidem, p. 224.

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Desastre e reconstrução no Rio de Janeiro setecentista:
o incêndio do Recolhimento do Parto

rua. Teixeira não quis anuir a isso, mas figura ele vestido conveniente-
mente junto ao grupo do vice-rei”59.

É Vieira Fazenda quem nos fornece uma pista importante para co-
nhecer a trajetória que a história do incêndio do Parto teve ao longo do
século XIX. Tratando ainda das lembranças da antiga escrava, ele segue
dizendo o seguinte: “Quando, na presença da velha, lemos o capítulo do
romance Fatalidade de Dous Jovens, em que Teixeira e Sousa descreve o
incêndio – Clemência, tomando uma pitada [de rapé], asseverava ter sido
a culpada D *** [Vieira Fazenda suprimiu o nome], pertencente a família
então muito conhecida”60.

O romance As fatalidades de dois jovens (1856)61, citado por Vieira


Fazenda, foi escrito por Antônio Gonçalves Teixeira e Sousa, um autor
que alcançou um relativo sucesso em sua própria época, mas que mais
tarde não teve muitos leitores. Segundo a crítica literária de Antônio
Candido, Teixeira e Sousa teve o mérito de ter sido um representante do
“aspecto que se convencionou chamar de folhetinesco do Romantismo
[...] em todos os traços de forma e conteúdo, em todos os processos e
convicções, nos cacoetes, ridículos, virtudes”62. E foi justamente como
um folhetim, na Marmota de Paulo Brito, que o romance As fatalidades
apareceu publicado pela primeira vez.

Passado no tempo do vice-rei Luís de Vasconcelos, com um enredo


bem ao gosto dos leitores de folhetim, em sua trama, há salteadores, ór-
fãos, mãe morta no parto, apaixonados cujos pais são inimigos e, final-
mente, como desfecho, um crime executado por ciúme. No meio da noi-
te, uma das personagens, desesperada, tranca no quarto sua rival e ateia
fogo ao edifício. A incendiária era uma recolhida, vítima de um marido

59 – Idem.
60 – Idem.
61  –  TEIXEIRA E SOUSA, A. G. As fatalidades de dous jovens: recordações dos tem-
pos coloniaes. Rio de Janeiro: Emp. Typ. de Paulo Brito, 1856.
62  –  CÂNDIDO, Antônio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos.
Belo Horizonte: Itatiaia, 1981, v. 2, p. 126-127.

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Anita Correia Lima de Almeida

cruel, a noite era a de 23 para 24 de agosto de 1789 e o edifício era o do


Recolhimento do Parto.

Portanto, tanto a “velha cronista” de Vieira Fazenda, Clemência, que


seria contemporânea do desastre, quanto o folhetim de Teixeira e Sousa,
escrito meio século mais tarde, atribuíram o incêndio ao desespero de
uma recolhida. Quem, porém, de fato, parece ter consolidado essa in-
terpretação para o fogo do Parto terá sido Joaquim Manuel de Macedo,
em sua obra Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro (1862-1863).
Depois reunido em livro, Um passeio foi publicado primeiro no Jornal do
Comércio e, nesta crônica da cidade, a Capela e o Recolhimento do Parto
mereceram um capítulo próprio.

Macedo leva o leitor para um passeio pela Rua dos Ourives. Lá está
o velho casarão que abrigou o Recolhimento descrito pelo escritor como
uma “terrível ameaça de pedra e cal”, uma espécie de casa de correção
feminina, usada por maridos prepotentes como “arma de disciplina do-
méstica”. Em resumo: “recolhimento inflamável e tão inflamável que até
houve uma noite em que chegou a incendiar-se”63. Nesse ponto, o cronista
passa a narrar o incêndio, contando uma história que, como honestamente
alertou a seus leitores, “provavelmente contém episódios inventados pela
imaginação”64.

Na história romanceada de Macedo, uma jovem, Ana Campista, ví-


tima de um casamento infeliz realizado em obediência ao desejo de um
pai cruel, apaixona-se pelo noivo de outra jovem, Matilde, de quem en-
tão Ana se aproxima fingindo-se de amiga. Daí em diante, desenvolve-se
um enredo todo voltado para o tema da “traição com máscara de amiza-
de”. Mas, afinal, as crueldades perpetradas por Ana Campista acabam
se voltando contra ela própria, e as duas, ela e Matilde, transformam-se
em esposas infiéis encerradas no Recolhimento do Parto. Finalmente, na
madrugada de 24 de agosto, “os habitantes da capital despertaram sobres-

63  –  MACEDO, Joaquim Manuel de. Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2004, p. 372.
64 – Idem, Ibidem, p. 382.

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Desastre e reconstrução no Rio de Janeiro setecentista:
o incêndio do Recolhimento do Parto

saltados aos dobres dos sinos e ao rufar dos tambores [...]. Fantasmas de
negro fumo e horríveis línguas de chamas atestavam o grande infortúnio.
Uma fogueira colossal iluminava a cidade”65. Ana Campista havia ateado
fogo ao edifício, não sem antes forjar provas incriminando Matilde. Ana
planejava fugir com o amante, o marido da pobre Matilde. No último
momento, no entanto, seus planos foram interrompidos pela interferência
violenta de seu pai. Mas era tarde demais, o incêndio já consumia todo o
cruel Recolhimento.

Macedo encerrou sua crônica, contando a história de como a imagem


de N. S. do Parto não foi destruída pelo fogo. Esse “milagre” já tinha sido
mencionado por Monsenhor Pizarro e também estava presente, como já
se viu, nas telas do Parto. Pizarro, no entanto, escreveu apenas que ha-
via sido “salva então d’entre as chamas a Santa Imagem da Senhora do
Parto”66. E a legenda das telas dizia: “salvando-se unicamente ilesa de en-
tre as chamas a milagrosa imagem da mesma Senhora”. Macedo, porém,
sempre garantindo às recolhidas um lugar de destaque em sua crônica,
concedeu a uma “reclusa heroica” o papel de protagonista, preferindo
descrever assim o episódio:
Entre as reclusas, uma, porém, houve que se mostrou intrépida e capaz
de afrontar a morte. O fogo abrasava a igreja toda. A reclusa heroica
lembrou-se das imagens santas, e, esquecida de si própria, arrojou-se
à nave coberta e cercada de flamas. Uma nuvem de fumo escureceu-
-lhe a vista. Mas nem assim recuou, e, voando por entre as chamas,
desaparecendo na fumaça, correu ao altar-mor, tomou em seus braços
a imagem de N. S. do Parto, e, sem dúvida defendida por tão sagrado
escudo, apareceu sã e salva no meio da multidão, que a vitoriou entu-
siasmada. O fogo consumiu todas as outras imagens.67

O que tornava, afinal, Joaquim Manuel de Macedo diferente dos de-


mais autores que já tinham tratado do fogo do Parto, e mesmo em rela-
ção ao folhetim de Teixeira e Sousa, é que ele transformou sua crônica

65 – Idem, Ibidem, p. 412-413.


66  –  ARAUJO, José de Sousa Azevedo Pizarro e [Monsenhor Pizarro]. Memorias histo-
ricas do Rio de Janeiro [...]. Op. cit., p. 266-267.
67  –  MACEDO, Joaquim Manuel de. Op. cit., p. 413.

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Anita Correia Lima de Almeida

do incêndio numa condenação a pais e a maridos cruéis e, finalmente, à


própria instituição. O incêndio, no final das contas, tinha sido o resultado
de acontecimentos trágicos ligados a todo o horror a que o Recolhimento
condenava suas reclusas.

Esta condenação da instituição também estará presente em autores


do século XX, como o escritor e historiador Pedro Nava. Na verdade, em
seus Capítulos da história da medicina no Brasil (1948), Nava foi mais
além e considerou que, segundo a tradição, o incêndio era atribuído à
revolta de uma recolhida contra a própria instituição:
A 24 de agosto de 1789 esse imóvel, cujas paredes deviam ocultar
muita violência, muita arbitrariedade e muita injustiça, ardeu. Diz a
tradição que o incêndio fora ateado por uma recolhida, revoltada con-
tra o tratamento desumano ali dispensado. Mas logo o vice-rei fez
reparar os traços do fogo e a 8 de dezembro do mesmo ano suas portas
tornaram-se a fechar sobre as reclusas que, em procissão que se fez
solene, voltaram à sua prisão [...].68

Em termos visuais, em meados do século XIX, o jornal ilustrado


Ostensor Brasileiro trouxe num de seus números (1845) uma reprodução
do texto de Monsenhor Pizarro sobre o incêndio do Parto e, acompa-
nhando o texto, o jornal publicou uma litografia (Imagem 7), da oficina
Heaton & Rensburg, que reproduzia a oval exposta na sacristia do Parto.
A escala original, no entanto, foi alterada na litografia e o prédio em cha-
mas ganhou proporções bem maiores em relação às figuras humanas, fa-
zendo com que a cena do salvamento da imagem de Nossa Senhora já não
fosse mais visível, apagando, assim, o único elemento religioso da obra
setecentista69.

68 – NAVA, Pedro. Capítulos da história da medicina no Brasil. Cotia, São Paulo: Ate-
liê Editorial, 2003, p. 155.
69 – Ostensor Brasileiro, n. 39, 1845, p. 306-308.

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Desastre e reconstrução no Rio de Janeiro setecentista:
o incêndio do Recolhimento do Parto

Imagem 7: Incêndio da Igreja e Recolhimento de N. S. do Parto. Litografia. Heaton & Rensburg. In: Ostensor
Brasileiro, n. 39, 1845, p. 306-308.

Conclusão
Secularizado, o incêndio urbano podia, afinal, ganhar conotações de
desastre relacionado, exclusivamente, ao acaso, à maldade, à vingança
ou ao crime, ou simplesmente ao descuido dos homens. E podia até virar
enredo de folhetim. Enquanto isso, as formas de combater e, sobretudo,
de prevenir os incêndios passavam a ser um tema ligado à cidade e aos
tantos outros desafios que a vida urbana impunha aos homens.

Mas, se o século XIX, cunhou uma maneira de interpretar o incêndio


do Parto que teria chegado até ali por meio da tradição, e que ligava o
desastre à própria história da terrível instituição, certamente, não foi essa
a visão que o vice-rei – ou quem quer que tenha encomendado as telas se-
tecentistas – quis deixar sobre o acontecimento. As pinturas trazem uma
visão de mundo muito mais ao gosto do século XVIII. Uma visão em que
a luta contra o fogo e o empenho na reconstrução do edifício são os aspec-
tos mais importantes a serem retidos do funesto acontecimento. E, no afã
de representar os esforços para salvar o Recolhimento, as telas acabam
por traçar o retrato de uma luta ordenada contra o fogo na cidade colonial.

Nesse longo caminho percorrido pela história do desastre do Parto,


as antigas ovais que permaneceram na cidade e ajudaram a manter viva a
memória do incêndio foram sempre valorizadas, sobretudo por seu valor

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Anita Correia Lima de Almeida

documental. E Vieira Fazenda deixou em Antiqualhas e memórias do Rio


de Janeiro uma recomendação a seus leitores: “se querem ficar sabendo
como se fazia o serviço de extinção de incêndios vão à igreja do Parto e
peçam ao Sampaio para mostrar os quadros do incêndio do Recolhimento
[...]”70. Parece que a recomendação de Vieira Fazenda – olhar para as an-
tigas pinturas do Parto – continua valendo.

Texto apresentado em dezembro/2018. Aprovado para publicação


em abril/2019.

70 – FAZENDA, Vieira. Op. cit., p. 27.

70 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):41-70, mai./ago. 2019.


A sossegada Província do Maranhão e os planos revolucionários:
Constituição e um pouco menos de constitucionalidade
no governo de Costa Barros (1825 – 1827)
71

A SOSSEGADA PROVÍNCIA DO MARANHÃO E OS PLANOS


REVOLUCIONÁRIOS: CONSTITUIÇÃO E UM POUCO
MENOS DE CONSTITUCIONALIDADE NO GOVERNO DE
COSTA BARROS (1825-1827)
THE QUIET PROVINCE OF MARANHÃO
AND ITS REVOLUTIONARY PLANS: CONSTITUTION
AND A BIT LESS CONTITUTIONALITY IN COSTA BARROS’
GOVERNMENT (1825-1827)
Roni César Andrade de Araújo1

Resumo: Abstract:
O trabalho objetiva apresentar o conturbado The paper aims to present the troubled political
cenário político maranhense a partir do emba- scenario in Maranhão resulting from the
te entre duas narrativas que se contrapunham clash between two opposing narratives in the
na província: uma mais próxima dos interesses province: a narrative closer to the interests of
do governo de Pedro José da Costa Barros, en- the government of Pedro José da Costa Barros,
tendido como aliado dos “portugueses”, e outra considered as an ally of the “Portuguese”, and
da oposição a este governo, portanto favorável a second one opposed it, favoring, therefore, the
à defesa dos “brasileiros”. Assim, diante da defense of the “Brazilians”. Thus, in view of the
descoberta de planos revolucionários alegados discovery of revolutionary plans alleged by the
pelo governo, põe-se em debate a possibilidade government, the possibility of more concrete
de ações mais concretas, ainda que em oposição actions is discussed, albeit they were beyond the
aos ditames legais. Por trás de todo esse confli- legal dictates. Writings about the conflict come
to, para além da imprensa maranhense, entram into play in the press in Maranhão and Rio de
em cena escritos publicados no Rio de Janeiro. Janeiro. A series of pamphlets from the court
Da Corte, uma série de panfletos e alguns dos and some newspapers from Rio de Janeiro also
jornais fluminenses também participam do de- participate in the political debate in Maranhão.
bate político no Maranhão.
Palavras-chave: Maranhão; Constituição; Ci- Keywords: Maranhão; constitution; citizenship;
dadania; Imprensa. press.

Num cenário marcado por intrigas políticas e por jogos de interesses,


a adesão do Maranhão à Independência foi um capítulo importante da
história do Brasil na gênese do processo que resultaria na sua condição
de Estado-Nação. Gozando há tempos de uma relativa autonomia em re-
lação ao eixo centro-sul do restante da colônia, a província do Maranhão
possuía uma singular e estreita relação com a metrópole.
1  –  Professor Adjunto II do Curso de Licenciatura em Ciências Humanas da Universida-
de Federal do Maranhão – UFMA/Grajaú. Pesquisador do Núcleo de Estudos do Mara-
nhão Oitocentista – NEMO. Email: prof_roni@hotmail.com.

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Roni César Andrade de Araújo

A inesperada chegada de Cochrane2, no final de julho de 1823, e a


consequente celebração da adesão não encerraram as animosidades que
marcaram a cena política da província, em especial, desde que os primei-
ros movimentos do Príncipe Regente, no Rio de Janeiro, se apresentavam
em desacordo com os ditames das Cortes estabelecidas em Portugal. O
que se viu dali em diante foi uma série de acontecimentos que resul-
tou na oposição, sobretudo, de dois grupos que, embora heterogêneos na
sua composição, foram tidos como vinculados à “causa portuguesa” ou à
“causa brasileira”.

Do contexto que circunscreveu à adesão, passando pelos governos


que se estabeleceram no Maranhão nos anos seguintes – durante todo o
Primeiro Reinado –, a província vivenciou períodos de aparente calmaria
e de profunda agitação. Foi assim durante os conturbados governos de
Miguel Ignácio dos Santos Freire e Bruce (1824), e também do seu suces-
sor e antigo secretário, Manoel Teles da Silva Lobo3. Em seguida à breve
calmaria experimentada durante a longa interinidade de Patrício José de
Almeida e Silva, tomou assento à frente do governo da província, Pedro
José da Costa Barros. Nesse período, as agitações políticas voltaram a
movimentar os ânimos.

Tenha eu força, e queira S. M. I. ser um bocadinho menos Constitucio-
nal, as coisas tomarão caminho com brevidade, aliás estaremos todos
os dias com sustos e receios4.

2  –  O Almirante Thomas John Cochrane (1775-1860), Lord Cochrane, ex-oficial da Ma-


rinha Britânica, foi figura importante no processo de consolidação da independência das
províncias do norte do Brasil. Nomeado “Marquês do Maranhão”, por D. Pedro I, em 9
de novembro de 1823, em virtude dos sucessos que culminaram com a adesão daquela
província à independência, teve atuação direta nos acontecimentos políticos da província
do Maranhão entre 1823 e 1825.
3  –  Manuel Telles da Silva Lobo, natural da Bahia, chegou ao Maranhão em 1824, onde
assumiu o cargo de secretário do governo de Miguel Bruce. No final daquele mesmo ano,
por determinação de Cochrane, substituiu interinamente Miguel Bruce na presidência do
Maranhão.
4  –  Ofício de Pedro José da Costa Barros, 26 de Setembro de 1825, comunica as primei-
ras impressões após sua chegada ao Maranhão. Arquivo Nacional, Série Interior, IJJ9-553.

72 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):71-90, mai./ago. 2019.


A sossegada Província do Maranhão e os planos revolucionários:
Constituição e um pouco menos de constitucionalidade
no governo de Costa Barros (1825 – 1827)

Tendo assumido a presidência da província do Maranhão em 31 de


agosto de 1825, o governo de Costa Barros5, seguindo a linha adotada por
seu antecessor, Patrício José de Almeida e Silva, ficou marcado, desde o
início, pela maneira enfática em que se lançou na articulação de um novo
cenário que fosse favorável aos brasileiros nascidos na Europa. Durante o
seu governo, foram vários os pedidos de reintegração aos antigos postos,
por parte daqueles que, em virtude das chamadas “medidas gerais”6, ado-
tadas pela junta governativa que administrou a província após a adesão à
independência do Brasil. O próprio Costa Barros, em comunicação com
D. Pedro, se dizia favorável à volta dos empregados. Foi nessa ocasião que
ele aconselhou o Imperador a ser um “bocadinho menos Constitucional”7.
Até aquele momento, prevalecia o que fora determinado por intermédio
da portaria de 25 de maio de 1824, quando D. Pedro confirmou sua apro-
vação em relação à decisão tomada pela antiga Junta de Governo, quando
esta resolveu pela demissão dos europeus ligados aos ofícios de justiça.
Agora, já em outubro de 1825, diante da assinatura do Tratado de Paz e
Aliança de 29 de agosto daquele mesmo ano, que reconhecia a indepen-
dência do Brasil, uma nova portaria8 foi expedida, em atenção às deman-
das feitas pela própria junta da Fazenda do Maranhão, para confirmar a
reintegração dos antigos empregados públicos que haviam sido afastados
de seus empregos em virtude de terem nascido em solo europeu. Nessa
nova decisão, D. Pedro ressaltou a importância de que os critérios a serem
observados não mais se baseassem em questões de local de nascimento,
mas sim no terem dado provas públicas e concretas de sua adesão ao im-
pério do Brasil.
5  –  Nascido no Ceará, Costa Barros (1779-1839) foi eleito deputado para a constituinte
de 1823. Também foi presidente das províncias do Ceará, em 1824, e do Maranhão, entre
os anos de 1825 e 1827, quando deixou o cargo para assumir a função de senador.
6  –  Em ofício de 26 de agosto de 1823, a Junta Administrativa do Maranhão comunicou
ao governo imperial ser de extrema necessidade a demissão de todos os empregados pú-
blicos portugueses para substituição por brasileiros. Esse episódio ficou “medidas gerais”.
Cf. BN, Seção de Manuscritos, I 31,29,34.
7 – Op. cit., nota 3.
8  –  Portaria de 14 de outubro de 1825 – Ordena a reintegração de alguns europeus a seus
antigos ofícios. Cf. José Paulo de Figueirôa Nabuco de Araujo. Colleção chronologica
das Leis, decretos, resoluções de consulta, previsões, etc., etc. do Império do Brazil... Rio
de Janeiro : Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve e Comp., v. 5, 1838, p. 182.

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Roni César Andrade de Araújo

Esse novo cenário, iniciado com Patrício José de Almeida e Silva


e reforçado no governo de Costa Barros, abriu espaço para a convivên-
cia simultânea, mas não pacífica, de duas realidades agudamente opostas
no Maranhão, especialmente no ano de 1826. Nas narrativas que foram
construídas em torno dos dois grupos que rivalizavam na província, essas
realidades ganharam voz e vida. De um lado, as “verdades” contadas pe-
los adeptos da “causa brasileira”; do outro, as da “causa portuguesa”. Em
contraste, os episódios em torno do descoberto plano de revolução, entre
os meses de janeiro e maio, e os festivos meses de outubro, novembro
e dezembro, quando uma série de festas foi realizada na província, em
comemoração à aclamação do Imperador, seu aniversário natalício, ao
nascimento do príncipe Pedro de Alcântara – depois Pedro II – e ao reco-
nhecimento da Independência do Brasil por Portugal9.

No início de 1826, as primeiras comunicações entre o governo do


Maranhão e do Rio de Janeiro davam conta de um ambiente de sossego
público, embora, ao mesmo tempo, sinalizassem a existência de “malva-
dos” que, inspirados pela “questão do sul”, estavam desejosos de fazer
reacender na província os tempos de desordem. Logo no mês de janei-
ro, em comunicado feito ao Barão de Valença, Costa Barros informou
a prisão de alguns “anarquistas” que estavam a obrar o mal e, inclusive,
planejavam tirar-lhe a vida. Esses mesmos homens foram presos e envia-
dos à Corte, acompanhados de pedidos para que não lhes fosse permitido
retornarem à província10. Sobre o episódio, várias foram as comunicações
de Costa Barros com o governo central, especialmente a partir de maio.
As denúncias destacavam, dentre outras coisas, o fato de que alguns dos
tidos por “anarquistas” serem indivíduos dotados de destacada condição
financeira na Província. Naquela circunstância, Costa Barros ordenou a

9  –  Todo o contexto das comemorações em torno da Aclamação do Imperador ficou re-


gistrado no panfleto A Fidelidade Maranhense demonstrada na sumptuosa Festividade,
que no dia 12 de Outubro e seguintes, a solicitação do Ilmo e Exmo Sr. Presidente Pedro
José da Costa Barros fez à câmara da cidade. São Luís: Tipografia Nacional, 1826, p. 53.
Arquivo Nacional, Seção de Obras Raras.
10  –  Ofício de Costa Barros ao Barão de Valença, em 23 de janeiro de 1826, narra os
últimos acontecimentos na província e denuncia a prisão de alguns indivíduos. Arquivo
Nacional, Série Interior, IJJ9-534.

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A sossegada Província do Maranhão e os planos revolucionários:
Constituição e um pouco menos de constitucionalidade
no governo de Costa Barros (1825 – 1827)

abertura de uma devassa para apurar os reais objetivos dos que estavam
por trás daquele movimento. A ideia era descobrir “se o plano formado se
limitava a destruição de indivíduos ou de classes, para saciar vinganças,
ou se envolvia mudança do Sistema jurado e adotado neste Império”11.

No processo que foi aberto, encontra-se transcrito o conteúdo de al-


guns “pasquins subversivos”, localizados em pontos estratégicos da cida-
de. Não obstante, nas suas denúncias, sempre enfatizou que o atentado à
sua pessoa também significava um ataque indireto ao próprio Imperador.
A análise do conteúdo do pasquim não põe em discussão a fidelidade a D.
Pedro ou à Constituição. Todo o conteúdo de tais pasquins demonstra que
se tratava de um embate direto à pessoa de Costa Barros.

As ações do presidente do Maranhão em torno desses projetos revo-


lucionários, que alegava existirem, foram profundamente marcadas pelas
notícias recém-chegadas do Pará. A comunicação feita pelo então presi-
dente daquela província, José Félix Pereira de Burgos, em 15 de maio de
1826, informava a Costa Barros os “acontecimentos” que tomaram a Vila
de Cametá12 em finais de abril13. Dali a poucos dias, já em 26 de maio14,
Burgos voltou a se comunicar com o governo do Maranhão para infor-
mar que acabara de receber notícias de que, no dia 13 do corrente, uma
contrarrevolução havia restabelecido a ordem e lograra êxito na prisão
de alguns homens tidos por cabeças do movimento. Enquanto, para José
Félix Pereira de Burgos, o restabelecimento da paz significou a compro-
vação da lealdade ao imperador, para Costa Barros, o estouro da revolta
11  –  Ofício de Pedro José da Costa Barros, em 24 de maio de 1826, narra a descoberta de
planos para assassiná-lo. Arquivo Nacional, Série Interior, IJJ9-131.
12  –  Como se verá a diante, a Vila de Cametá, localizada na vizinha província do Pará,
foi palco de uma revolta que, motivada pelo sentimento antilusitano, resultou na morte de
uma série de indivíduos tidos como “portugueses”. Não obstante a repercussão daquele
acontecimento tenha alcançado à capital do Império, no que resultou em algumas notas na
imprensa, não foram localizados estudos que tenham se dedicado a discutir aquela revolta.
13  –  Ofício de José Félix Pereira de Burgos, presidente da província do Pará, ao presi-
dente do Maranhão Costa Barros comunicando, em 15 de maio de 1826, os últimos acon-
tecimentos referentes à rebelião em Cametá. Arquivo Nacional, Série Interior, IJJ9-131.
14  –  Ofício de José Félix Pereira de Burgos a Costa Barros, em 26 de maio de 1826,
informando os novos acontecimentos que restabeleceram a paz em Cametá. Arquivo Na-
cional, Série Interior, IJJ9-131.

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Roni César Andrade de Araújo

representava a prova de que os homens por trás do movimento haviam se


esquecido das juras de fidelidade que haviam feito. Na narrativa de Costa
Barros, o levante foi apresentado como uma ação, antes de tudo, covarde,
visto que ocorrera no momento em que as muitas vítimas foram pegas de
surpresa, passando “do sono à morte, sendo alguns arrastados e dilacera-
dos nas praças públicas”15. A lista das “desgraçadas vítimas da insurreição
de Cametá” foi enviada ao Imperador16.

Embora se tratasse de um acontecimento que teve lugar na província


do Pará, o evento de Cametá foi destaque nos dois periódicos maranhen-
ses escritos por brasileiros nascidos em Portugal: o Amigo do Homem, de
João Crispim, e o Censor, de García de Abranches, chegando mesmo a
alcançar a Corte. O longo artigo publicado no periódico de João Crispim,
em 21 de junho, foi reproduzido pelo Censor, em 04 de julho, revelando
questões importantes do cenário político-social em que se encontrava a
província do Maranhão. Segundo o texto, no dia 22 de abril, estourou um
“vulcão revolucionário” que, apesar de não ser Cametá o foco, foi o lugar
onde se encontrou menor resistência para acontecer. Ao final daquele dia,
os habitantes da vila foram tomados de sobressalto ao “eco horroroso da
mosquetaria, ao estrondo dos machados, que derrubavam as portas, dos
gritos dos assaltantes, das exclamações e gemidos das vítimas”17.

Segundo o autor, a narrativa dos acontecimentos, com destaque para


o grau de violência empregado, revelava profundas semelhanças com o
que já acontecera em solo maranhense, como se podia comprovar a partir
do grito de guerra dos rebeldes, tantas vezes ouvido pelos habitantes do
Maranhão: “Isso é nosso: morram os ladrões que vieram nos roubar o que
era nosso; e Viva o Imperador”. Apesar de que, para João Crispim, os
gritos de “viva o Imperador”, acompanhados de perseguição, de prisão,
de espancamentos e de assassinatos dos “brasileiros transatlânticos” e de
15  –  Carta de Costa Barros a D. Pedro, em 3 de junho de 1826, narra os últimos aconte-
cimentos... Arquivo Nacional, Série Interior, IJJ9-534.
16  –  Ofício de Costa Barros ao Imperador, em 14 de junho de 1826, com a “Lista dos
Brasileiros transatlânticos que eram estabelecidos e residentes dentro da Vila de Cametá”.
Arquivo Nacional, Série Interior, IJJ9-131.
17 – Censor, nº. 16, 04 de junho de 1826, p. 231.

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A sossegada Província do Maranhão e os planos revolucionários:
Constituição e um pouco menos de constitucionalidade
no governo de Costa Barros (1825 – 1827)

alguns “brasileiros natos”, não passassem de uma afronta à pessoa de D.


Pedro I, a nosso ver, a divisa proclamada pelos que se rebelaram reve-
la uma característica importante das agitações que se desenrolaram no
Maranhão nos anos que marcaram o pós-independência: não obstante as
acusações de levantarem bandeiras republicanas ou ainda democráticas,
esses movimentos, que tinham como alvo principal e declarado os “por-
tugueses”, em momento algum, assumiram ser contrários ao Imperador.

Não se limitando apenas em publicar o mesmo artigo que saíra no


Amigo do Homem, o Censor também apresentou uma leitura a respeito
do que se sucedera na província vizinha. Para ele, estava mais do que
evidente que todo esse cenário de horror era doce aos olhos dos que, no
Maranhão, compunham os “Oráculos da Caterva”, ou seja, aqueles que,
desde a Independência, suspiravam pela maldade. São “propagadores da
discórdia [...] que não tem outro fim, nem maior prazer que a repetição de
carníficas [sic] cenas, e a perseguição bárbara e sanguinária da geração
Lusa”18.

A acusação de García soou gravemente na Corte, sobretudo nas pá-


ginas de Astrea. Partindo da premissa de que não havia liberdade de im-
prensa no Maranhão, o que deixava livre o caminho para que o Censor e
o Amigo do Homem pudessem atuar em sintonia com o presidente Costa
Barros, a edição de nº 40 trouxe uma longa correspondência em que o
autor, não identificado, apresentava respostas diretas à publicação do pe-
riódico maranhense19. Vale lembrar que, desde que o Argos da Lei saiu de
cena, com a ida de Odorico Mendes para a Corte, por ocasião de sua elei-
ção para deputado, o grupo dos “brasileiros” ficou sem um representante
no debate impresso, que durante o ano de 1825, foi protagonizado pelo
Argos da Lei e o Censor20.

18 – Censor, nº. 16, 04 de junho de 1826, p. 231-235, passim.


19 – Astrea, nº 40, 26 de setembro de 1826, p. 162.
20  –  No rol dos que Garcia classificava como defensores das “doutrinas incendiárias” e
dos “escritos venenosos dos democratas autores”, inclui-se, agora, o novo periódico que
saiu à luz naqueles dias, por título O Piparote, cujo autor foi identificado apenas como
“Cazuza ou Zé Bernardo Burro Serra”. Não há números preservados desse periódico e não
é possível definir com maiores detalhes a natureza dos escritos daquele jornal, mas Garcia

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Ao rechaçar com veemência as palavras de García de Abranches,


sobretudo a afirmação de que o atentado de Cametá encontrara motivação
numa espécie de “ancestralidade antropofágica do Brasil”, o correspon-
dente de Astrea dizia que aquelas palavras tinham a capacidade de animar
ainda mais as paixões e as rivalidades entre “cidadãos unidos pelas mes-
mas leis e pelos mesmos juramentos”. Assim, “o relojoeiro”, como foi
pejorativamente chamado o redator do Censor, foi acusado de promover
um discurso capaz de causar mais danos aos “bons maranhenses” do que
até mesmo as “privações de empregos, devassas, prisões e tiranias”21.

Na tentativa de elucidar, de maneira cabal, as razões por trás de todas


as desavenças que rompiam a paz social no Maranhão, o autor da carta
adotou um tom mais brando. Tentando superar o debate sobre a nacio-
nalidade brasileira, a rivalidade entre “brasileiros natos” e os “cidadãos
brasileiros nascidos” fora incentivada pelo Censor, sendo relativizada e
ficando imputada a apenas “um pequeno número” que aplaudia os escri-
tos de García de Abranches. Considerava que “os ódios e só os ódios”
estariam como raiz daqueles males. Percebe-se que o autor, não obstante
relativize as desavenças imanentes das questões, em torno do local de
nascimento dos indivíduos envolvidos nos conflitos, que se desenrolavam
no Maranhão, atribui um peso significativo à adesão à causa indepen-
dentista. O ódio ao qual fazia referência era, nesse sentido, motivado por
aqueles que, nascidos em território brasileiro ou não, se colocaram, desde
o princípio, em oposição à independência do Brasil. Desse modo, tanto
os nascidos no Brasil quanto os europeus eram vítimas de perseguições
desde que se declararam a favor da independência22.
toma-o como um fraco opositor, não medindo as palavras na hora de imputar ao redator
do Piparote os adjetivos mais baixos na hora de destacar a falta de luzes ou mesmo de
competência para escrever ou lhe fazer oposição: “autoreco”, “bobo”, “tolo”, “toleirão”,
“basbaque”, “mentecapto”, “asno rotundo e roliço”. Compara-o, ainda, a outros “mente-
captos” que vagam pelas ruas de São Luís: “Manuel Cóco, o Esquirola, o Galagalinhas, o
Beldroega, o Quezilia, [...] a Cabaço com Cuia, que se intitula D. Zabel”.Censor, nº 16, 04
de julho de 1826, p. 236-242, passim; A Bandurra, nº 8 e 9, de 11 e 25 de maio de 1828,
respectivamente, afirma que o autor do Piparote era José Bernardes Belfort e Serra, filho
de uma das famílias mais destacadas da província.
21 – Astrea, nº 40, 26 de setembro de 1826, p. 162.
22 – Ibid.

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Constituição e um pouco menos de constitucionalidade
no governo de Costa Barros (1825 – 1827)

Essa mesma leitura que minimizava a importância do local de nas-


cimento como fator determinante das posturas adotadas pelos indivíduos
foi partilhada por outro correspondente que também teve sua carta publi-
cada, em ocasião anterior, em Astrea, mais precisamente na edição de nº
36. Enquanto o autor da correspondência publicada em 16 de setembro
considerou importante registrar que as “medidas precisas para abater os
brasileiros” estavam sendo executadas sob “a influência de um filho bas-
tardo do Brasil”, em referência a Costa Barros23, para o autor da carta
publicada no nº 40, se “o juramento à Constituição decidiu a questão da
liberdade [e] o trato com Portugal, a da Independência”, restava apenas
o “ódio” como motor das vinganças. Nesse sentido, de volta à crítica que
fazia ao Censor, importa destacar que o autor da segunda carta não negou
a García de Abranches a condição de brasileiro. Se, em outras ocasiões,
no calor dos debates em que se envolveu, foi negado ao redator do Censor
o seu direito à cidadania brasileira, aqui, mesmo sem afirmar expressa-
mente no texto, ela é confirmada, quase como que servindo de prova de
uma espécie de ingratidão da parte de um “adotivo” que recebera a graça
da cidadania brasileira, mas insistia em trabalhar contra o Brasil. Essa
leitura, aliás, não ficou restrita aos correspondentes. O próprio jornal ca-
minhou nessa mesma linha de raciocínio quando, fazendo críticas à ques-
tão da “antropofagia”, afirmando que esse “erro histórico” só poderia ser
desculpável caso viesse da pena de “estrangeiros mal informados; mas
em um escritor nacional ou é muita ignorância, ou muita insanidade”. E
mais, ao comentar o fato de aqueles escritos do Censor terem sido publi-
cados, na Corte, pelo Espectador Brasileiro, arrematou: “não admira que
um estrangeiro copie injúrias a brasileiros escritas por um brasileiro”24.

De volta à carta, o autor rechaçou a ideia de que os “cidadãos brasi-


leiros nascidos fora” pudessem compartilhar das impressões que García
de Abranches tinha construído no seu periódico, de que os brasileiros
natos pudessem estar a comemorar o “horroroso massacre” de Cametá.
Em razão disso, lembrava que “alguns europeus” também foram a favor

23  –  Ibid, nº 36, 16 de setembro de 1826, p. 146, 147.


24 – Astrea, nº 40, 26 de setembro de 1826, p. 162.

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da Independência, de modo que não havia razões para crer que, nos tem-
pos de “convulsões políticas”, os males pudessem tocar distintamente aos
cidadãos a partir dos seus locais de nascimento. Assim, tanto os nascidos
no Brasil quanto os que nasceram na Europa estavam à mercê das des-
graças que resultavam de situações em que o “povo em agitação perd[ia]
o uso da razão”. Todavia, ao passo em que afirmava que aquele episódio
lhe “devorava o coração”, o autor da correspondência descartou a fala do
Censor, quando este afirmara ser aquele atentado o “mais atroz, o mais
bárbaro e cruento da história”25.

Percebe-se, aqui, o mesmo que já se verificou em outras ocasiões de


debates entre Odorico Mendes e García de Abranches, quando “portu-
gueses” e “brasileiros” disputavam a narrativa de terem sido suas aflições
mais dolorosas que as do outro. Assim, na carta em análise, o autor, não
obstante considerasse terrível o que se deu em Cametá, lembrava que,
na mesma província do Pará, “duzentos e cinquenta e três” brasileiros
foram “fuzilados ou afogados por falta de ar no porão do Palhaço”. Desse
modo, mesmo dizendo ser impossível comparar qual daqueles “dois ne-
fandos acontecimentos” teria sido o de mais horror, lembrava que o caso
dos brasileiros se excedia no “cúmulo da barbaridade”, “por compreender
nove vezes mais vítimas”. Esse raciocínio se sustenta numa lógica que
servia, numa análise mais ampla, à desconstrução de qualquer discurso de
vitimização por parte de García e do “pequeno número” de “brasileiros
nascidos fora” que o aplaudiam. Lembrava que ambos os partidos tinham
que ter em conta que os males que imputavam ao outro também eram, de
algum modo, resultado do “abuso de autoridade” por eles próprios co-
metidos. Nos últimos parágrafos, esboçou um convite à conciliação que,
na prática, acabava por demarcar as posições antagônicas adotadas pelos
grupos em oposição durante o governo de Costa Barros. Ao passo que
dizia ser necessário “esquecer as opiniões passadas” e “trabalhar pela har-
monia social”, continuava a apontar o periódico de García de Abranches
como “órgão dos outrora inimigos da Independência e do Império” que,

25 – Ibid.

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Constituição e um pouco menos de constitucionalidade
no governo de Costa Barros (1825 – 1827)

derrotados em seu projeto, prestavam-se a “vomitar injúrias e sarcasmos


contra os que formaram o partido triunfante”26.

Se o Censor encontrou oposição no Rio de Janeiro, também contou


com aliados. Fazendo coro à leitura de que todos aqueles males eram
resultantes das funestas doutrinas dos “apóstolos da discórdia”27 que, no
Maranhão, ainda encontravam o impedimento para seus planos na figura
de Costa Barros, o Espectador Brasileiro, em setembro de 1826, publicou
um breve resumo do estado de coisas em que se encontrava o Maranhão.
O texto dizia que a cidade de São Luís já estava, há alguns dias, “flutu-
ando nos receios de ver reproduzidas as cenas aterradoras que, em ou-
tro tempo, cobriram de negro crepe os semblantes de seus habitadores”.
Apresentava Costa Barros como o homem que, até aquele momento, se
colocava como principal empecilho para que os malvados vissem con-
cretizar os seus planos. Ao “dar rosto aos perversos”, fazendo referência
às prisões decretadas por aquele governo, afirmava que Costa Barros ha-
via adquirido muitos inimigos que, dentre outras questões, planejavam
atentar contra a sua vida. O jornal transcreveu uma proclamação daquele
presidente aos habitantes do Maranhão, com a data de 24 de maio, em que
Costa Barros denunciou as “víboras” que tentavam renascer os tempos de
horror vividos na província. Dizia que a “inflexível espada” da Lei seria
baixada sobre “os que tinham traçado o plano da subversão, lágrimas e
morte”28. Alguns já estavam presos e outros ainda seriam alcançados.

Como se pode verificar, para Costa Barros, os recentes acontecimen-


tos na Vila de Cametá significavam uma preocupação a mais no senti-
do de que haviam servido de combustível para animar os interesses dos
“malvados” que habitavam a província do Maranhão. Assim, cogitou a
possibilidade de que houvesse uma articulação entre os revoltosos de Ca-
metá e os mal-intencionados do Maranhão. Para isso, tomou como evi-
dência das “combinações” o fato de que as notícias sobre a revolta em
Cametá estavam circulando na província do Maranhão antes mesmo que

26 – Astrea, nº 40, 26 de setembro de 1826, p. 162, 163.


27 – Censor, nº 16, 04 de junho de 1826, p. 236.
28 – Espectador Brasileiro, nº 98, 01 de setembro de 1826, p. 1, 2.

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houvesse tempo hábil para a comunicação entre os dois governos29. A


ação imediata do imperador foi convocada para que se pudesse pôr fim ao
“estado violento em que está esta província”30.

Foi numa longa correspondência ao Imperador que Costa Barros ex-


pôs que, apesar de todos seus esforços para fazer “prosperar os diferentes
ramos da árvore social, e [de] viverem nos braços da Paz e da segurança
as diversas classes” do Maranhão, não sabia por quais “fatalidades” os
seus “desejos não são coroados”. Com referências aos tempos do governo
de Bruce, destacou que, por muito pouco, não se viu renascer o cenário de
horror outrora experimentado na província. Como que justificando suas
medidas para combater os projetos anarquistas, Costa Barros lembrava
que o presidente da província não podia se eximir da responsabilidade
de agir. Se, naqueles tempos em que a província sofrera desgraças, mes-
mo que não se quisesse considerar terem sidas orquestradas pelo próprio
Bruce, não se podia negar que, no mínimo, foram por ele toleradas. A
referência a Bruce se justificava, porque para Costa Barros, havia um pa-
ralelo direto entre os rumos dados à devassa aberta contra Bruce e aqueles
movimentos que se observavam no Maranhão, agora, no início de 1826.
Quando a Portaria de 9 de agosto de 1825 declarou ilegal a devassa aberta
contra Bruce e seus coadjuvantes, sob a justificativa de não ter sido aberta
a mando de D. Pedro, imprimiu-se, junto aos que sofreram, o temor de
que a impunidade dos antigos crimes alimentasse novos. Era o sucesso
dos maus e a desgraça dos bons31.

Da parte do governo, as providências tomadas, até aquele momento,


envolviam o uso terrestre da força de parte das tripulações do Cacique
e Leopoldina, somadas às tropas dos regimentos de 1ª e 2ª Linhas. To-

29  –  Carta de Costa Barros a D. Pedro, em 3 de junho de 1826, narra os últimos aconte-
cimentos... Arquivo Nacional, Série Interior, IJJ9-534.
30  –  Ofício de Costa Barros a D. Pedro, em 3 de junho de 1826, solicita imediata res-
posta do Imperador para os problemas da província. Arquivo Nacional, Série Interior,
IJJ9-534.
31  –  Correspondência de Costa Barros a D. Pedro I, em 27 de maio, narra os esforços
feitos por ele para garantir a paz na província do Maranhão. Arquivo Nacional, Série
Interior, IJJ9-131-A.

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A sossegada Província do Maranhão e os planos revolucionários:
Constituição e um pouco menos de constitucionalidade
no governo de Costa Barros (1825 – 1827)

davia, Costa Barros apresentava ressalvas a estes dois últimos em razão


de que, “como já mais de uma vez se tem visto”, apontava que os riscos
destes pudessem ser seduzidos. Por tudo isso, o presidente do Maranhão
se dizia receoso quanto à segurança futura da província. A solução para
a prevenção daqueles males que se desenhavam era, como já propusera
anteriormente, a substituição imediata das forças que faziam a segurança
da província. Na avaliação do presidente do Maranhão, D. Pedro deveria
enviar “alguma tropa estranha aos sucessos anteriores, que não conheça
a província, nem seja dela conhecida”32. Aqui, não deixa de ser curiosa a
constatação de que esse conselho em muito se assemelha às observações
de Cochrane, quando o Almirante aconselhou que, para o Maranhão, fos-
se enviado um presidente de fora da província, que estivesse acima das
disputas locais e das vinganças pessoais. Se a nomeação de Costa Bar-
ros atendia, de algum modo, àquela ressalva, agora, era o próprio Costa
Barros quem propunha soluções vindas de fora para resolver problemas
internos da província.

Assim, as medidas adotadas contra os que foram acusados de tramar


contra sua pessoa e contra o próprio imperador foram apontadas por Cos-
ta Barros como mais que necessárias, posto ter restabelecido a paz, ainda
que a contragosto dos que lucravam com a anarquia. As “proclamações
incendiárias”, afixadas em lugares públicos, foram vistas como verda-
deiras declarações de guerra, por isso optou por prender os acusados nas
embarcações que estavam no porto da cidade, na escuna Leopoldina e no
brigue Cacique.

Em 24 de maio de 182633, Costa Barros encaminhou ao governo im-


perial uma lista com os nomes dos que se encontravam presos sob cus-
tódia. A lista era composta de 21 nomes, a saber: Raimundo Francisco
Bruce, José Francisco Gonçalves da Silva, José Lopes de Lemos, Manoel
Caetano de Lemos, João Alexandre de Lemos, José Raimundo de Morais,

32  –  Ofício de Costa Barros ao Imperador, em 14 de junho de 1826, conta as novidades...


Arquivo Nacional, Série Interior, IJJ9-131.
33  –  Ofício de Pedro José da Costa Barros, em 24 de maio de 1826, narra a descoberta
de planos... Arquivo Nacional, Série Interior, IJJ9-131.

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Roni César Andrade de Araújo

Francisco do Valle Porto, Clementino José Lisboa, José Lamagner Fra-


zão, Joaquim José Muniz, Manoel José de Medeiros, Camillo de Lellis
de Morais Rego, Carlos Felippe Gomes de Castro, Felippe José Alves,
O Francês Jessali, José Joaquim Pau d’Agua, Antonio Lellis de Moraes
Rego, José Benedito Correa de Faria, Um caixeiro do Alferes Pinto, José
Alexandre Lindoso e Joaquim Raimundo [Corrêa] Machado.

A prisão desses indivíduos aconteceu antes mesmo de que se desen-


volvesse qualquer investigação mais aprofundada para apurar a veracida-
de das acusações e o grau de participação de cada um deles. Costa Barros
não omitiu essa informação ao governo imperial, mas tratou de justificar
sua decisão, ainda que contrária à Constituição, com argumentos de que,
tão logo procedera a prisão dos envolvidos, a situação da província voltou
à normalidade. Foi assim que relatou, no final de junho de 1826, ao Se-
cretário de Estado dos Negócios do Império. A devassa ainda estava em
andamento e sua demora se justificava pela distância em que se encontra-
vam algumas testemunhas.

Interessante observar que, nesse momento, enquanto alguns já se


viam presos, Costa Barros afirma que a província já gozava de tranquili-
dade e de sossego, sem, no entanto, deixar de registrar que, não obstante
essa calmaria, estava convencido de que os desejos de vingança, que ali-
mentavam alguns, ainda não haviam de todo morrido34. Mesmo que, in-
diretamente, a ressalva de que ainda existiam movimentações contrárias
ao governo, acabou por justificar novas prisões. Desse modo, em 19 de
julho35, já findadas as investigações, uma nova lista com nomes dos que
foram confirmados na devassa foi enviada ao Rio de Janeiro. Nessa nova
lista, foram apresentados 18 nomes, dos quais apenas sete compunham
a primeira. Ou seja, 14 dos que estiveram presos não tiveram seus nomes

34  –  Ofício de Pedro José da Costa Barros ao Ministro e Secretário de Estado dos Negó-
cios do Império, em 30 de junho de 1826, informando que foi posto em custódia, a bordo
dos Brigues de Guerra Cacique e Leopoldina, os que foram apontados pela devassa que
ele mandara fazer. Arquivo Nacional, Série Interior, IJJ9-131.
35  –  Ofício de Costa Barros ao Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Impé-
rio, em 19 de julho de 1826, fala informa que Devassa fora concluída, e envia uma lista
com o nome dos pronunciados. Arquivo Nacional, Série Interior, IJJ9-131.

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A sossegada Província do Maranhão e os planos revolucionários:
Constituição e um pouco menos de constitucionalidade
no governo de Costa Barros (1825 – 1827)

confirmados. Como já dissemos anteriormente, Costa Barros ressaltou


que, entre os capturados, constavam alguns homens de “situação vantajo-
sa e elevada fortuna” que foram apontados como “mola da projetada re-
volta”. Todavia, uma vez que, por suas condições financeiras, não foram
pronunciados pela maior parte das testemunhas, lhes havia posto em li-
berdade. Nessa nova lista, ao lado dos 7 remanescentes - Raimundo Fran-
cisco Bruce, José Lopes de Lemos, José Raimundo de Morais, Camillo
de Lellis de Morais Rego, Carlos Felippe Gomes de Castro, o Francês
Jessali e José Alexandre Lindoso -, foram incluídos 11 novos nomes: José
Antonio de Lemos; Raimundo Pereira de Cárceres Albuquerque; Manoel
Gualberto Leão; o tambor-mor Thomáz de Aquino; o sapateiro Carlos
Vitorino; o Cabo do Batalhão nº 22 Antonio de Souza; Furriel do mesmo
Corpo e irmão de Antonio, José de Souza; o Alferes Romualdo Antonio
da Silva; Antonio Feliciano Lopes; o Sargento Bizouro do Batalhão nº 22
e Manoel Caetano de Carvalho.

Aqui, algumas questões devem ser destacadas. Primeiro, não obs-


tante Costa Barros tenha dito que a avantajada condição financeira de
alguns resultou na impossibilidade de confirmar suas participações. Isso
não serviu de empecilho para que, na nova lista, se preservasse o nome de
Raimundo Francisco Bruce, filho do ex-presidente, e antigo desafeto de
Costa Barros, Miguel Ignácio dos Santos Freire e Bruce; segundo, dentre
os 11 novos nomes, havia um número considerável de indivíduos de me-
nor prestígio econômico e, consequentemente, de pouco destaque no jogo
político da província. Como se pode verificar, em substituição aos nomes
de maior pompa, foram incluídos um sapateiro, um cabo, um tambor-mor,
um furriel, um alferes e um sargento.

Para além das confirmações e dos novos nomes que compuseram a


lista final, nos parece importante destacar as ausências da segunda lista
em relação à primeira. Embora a nossa pesquisa não nos tenha possibi-
litado apurar informações mais detalhadas sobre todos os 14 indivíduos
que foram liberados após a devassa, alguns nomes chamam a atenção. O
primeiro deles é José Francisco Gonçalves da Silva, filho do Alcaide-Mor
de Itapecuru-Mirim, José Gonçalves da Silva, conhecido como o Baratei-

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Roni César Andrade de Araújo

ro36. O Barateiro foi um dos mais destacados comerciantes do Maranhão


na passagem do Brasil colonial para o Império. José Francisco Gonçalves
da Silva já fora apontado como aliado de Bruce37, nos primeiros anos de
seu governo, mas, depois, teria se afastado do mesmo, tendo inclusive
movido processo contra Bruce, no Rio de Janeiro38. A sua prisão foi co-
mentada no Rio Janeiro, por meio de uma carta, datada de 31 de maio,
publicada no Espectador Brasileiro:
Sr. Redator [...] Saberá que no dia 22 do corrente mês, foi preso José
Francisco Gonçalves [...] junto com outras pessoas, e se acham a bor-
do dos navios de guerra, como suspeitos de entrarem em uma sonhada
conspiração, contra a pessoa do Presidente desta província. Este tra-
ma, que há muito estava traçada, pôs-se agora em prática, e, apesar
dos Conselhos Presidencial e Militar desaprovarem altamente tais
medidas sem causa alguma conhecida, nem ao menos provável, o Pre-
sidente mandou tirar uma Devassa, que decerto não produzirá efeito
algum, porque nada havia mais do que a intriga e a má vontade contra
as pessoas presas.
A sua sorte tem-se tornado pior por umas notícias, que chegaram de
uma desordem popular acontecida na Vila de Cametá, no Pará, que os
intrigantes têm espalhado ser de combinação com esta Província, mas
nada há de mais falso39.

A segunda ausência importante é a de Francisco do Valle Porto que,


também ligado ao Corpo de Comércio da Província do Maranhão, fora
sócio e contador do Barateiro. Depois, temos a ausência de Clementino
José Lisboa, Capitão ajudante de ordens no governo de Lobo e amigo
próximo de Odorico Mendes. Em seguida, entre os libertos, estava José
Lamagner Frazão, proprietário de terra e agricultor da região de Itape-

36  –  Para informações mais detalhadas sobre a figura do Barateiro, ver: COSTA, Ariad-
ne Ketini Costa. Fidalguia Contratada: O itinerário social de José Gonçalves da Silva no
Maranhão, 1777-1821, Revista Cantareira, nº 15, jul.-dez./2011–UFF.
37  –  VELLOSO, Domingos Cadáville. Bruciana, época horrível no Maranhão. Rio de
Janeiro: Tipografia Nacional, 1825.
38  –  GALVES, Marcelo Cheche. O Maranhão e a transição constitucional no mundo
luso-brasileiro – 1821-1825. In: RIBEIRO, Gladys Sabina; FERREIRA, Tânia Maria Ta-
vares Bessone (orgs). Linguagens e práticas da cidadania no século XIX. São Paulo:
Alameda, 2010.
39  –  Espectador..., nº 94, 28/08/1826, p. 2.

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A sossegada Província do Maranhão e os planos revolucionários:
Constituição e um pouco menos de constitucionalidade
no governo de Costa Barros (1825 – 1827)

curu. Lamagner Frazão também foi membro do corpo de Comércio da


Província40. A quinta ausência importante foi Manoel José de Medeiros,
antigo aliado de Bruce, também ligado ao comércio41. Medeiros se tor-
nara brasileiro a bordo da Escuna Dido, de que era proprietário, quando
retornou de Portugal ao Maranhão, em janeiro de 182442. A sexta ausência
foi a de Antonio Lellis de Moraes Rego, participante ativo das questões
políticas do Maranhão, tendo assinado o “Auto da Câmara Geral”, de 28
de julho de 1823, que consolidou a adesão do Maranhão à Independência,
e também do “Auto de Juramento da Independência do Brasil”, em 7 de
agosto de 1828, que jurou fidelidade e obediência a D. Pedro I. Segundo
Marcelo Cheche Galves, os membros da família Moraes Rego eram “fre-
quentadores assíduos” da casa de Bruce43.

Importa destacar, no entanto, que as prisões não se limitaram apenas


aos nomes que compuseram as listas. Uma carta publicada por Astrea, em
setembro de 1826, apresentou o nome de três pessoas que “entre muitos”,
desde setembro, se encontravam presos sem que se tivesse cumprido o
devido processo legal. Tratavam-se do alferes Claudio José da Silva, Ma-
nuel Coelho da Paz e José Miguel Pereira. A estes, somavam-se ainda os
nomes de José Manoel do Nascimento Pestana, Pedro Francisco Martins
e Joaquim de Brito Salgado que, não obstante já estivessem soltos, tam-
bém estiveram presos por um longo tempo. As suas prisões, destacou o
autor da carta, se deram sem que tivessem conhecimento das razões, “po-
rém sabe-se que [foi] para satisfazer nos tios portugueses que tratam de
perseguir a todos que trabalharam na Independência”. Como se pode ver,
esta denúncia amplia a lista dos presos que foram indicados nos docu-
mentos oficiais encaminhados por Costa Barros à administração central,
40 – GALVES, loc. cit.
41  –  VELLOSO, Domingos Cadáville. Ao público. Respeito a Bruce e sua comitante
caterva.... Rio de Janeiro: Tipografia de Plancher, 1826. Biblioteca Nacional, Seção de
Obras Raras.
42  –  Sobre o episódio em que Medeiros e outras 14 pessoas do Maranhão e do Pará
juraram à independência do Brasil, quando retornavam de Portugal, tornando-se “brasi-
leiros”, ver: ARAÚJO, Roni César de Andrade. Entre a Província e a Corte: “Brasileiros”
e “Portugueses” no Maranhão do Primeiro Reinado (1823-1829). Rio de Janeiro: UERJ,
2018. (História, Tese de doutorado).
43  –  GALVES, Marcelo Cheche. O Maranhão e a transição..., p. 193.

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Roni César Andrade de Araújo

o que permite inferir que o número de pessoas diretamente envolvida nas


agitações que se vivenciava no Maranhão era bem maior do que o que fi-
cou registrado naqueles ofícios. Todavia, ainda segundo a carta, ficava ao
cargo de um “Esquadrão dos nossos adotivos” jurar a conduta inadequada
dos brasileiros, para que estes últimos fossem prontamente presos44.

De todo esse processo, o que se pode concluir é que, desde o momen-


to em que foi oficialmente empossado no cargo de presidente da província
– depois do contratempo provocado pela decisão de Cochrane de não lhe
permitir assumir o governo e, mais do que isso, tê-lo enviado, contra sua
vontade, à província do Pará –, Costa Barros precisou enfrentar a oposi-
ção daqueles que, naquele episódio, foram favoráveis à decisão de Co-
chrane de manter Lobo à frente do governo, sendo alguns destes ligados,
direta ou indiretamente, à figura de Miguel Bruce. Aliás, na província,
a oposição a Costa Barros também se fez sentir mesmo após o fim do
seu governo, especialmente por meio do impresso o Farol Maranhense45,
cujo redator era o brasileiro nato José Cândido.

É certo que, durante o período em que Costa Barros esteve à frente


do governo do Maranhão, a província contava com dois jornais circu-
lando regularmente: o Censor e o Amigo do Homem, ambos alinhados
às ideias defendidas pelos adeptos da “causa portuguesa”46. Na prática,
depois da saída de Odorico Mendes e do Argos, do cenário das disputas
periódicas, o primeiro jornal alinhado a uma ‘causa brasileira’ foi o Fa-
rol Maranhense. Isso só veio ocorrer depois que Costa Barros deixou o

44 – Astrea, nº 36, 16 de setembro de 1826, p. 146, 147.


45  –  Começado a circular em 27 de dezembro de 1827, a história desse jornal pode ser
dividida em duas fases: a primeira, de 1827 a 1831, em que José Cândido de Morais e
Silva, não obstante algumas interrupções, esteve à frente das publicações; a segunda, de
1832 a 1833, quando, após o falecimento de José Cândido, passa a ser redigido por seu
amigo João Francisco Lisboa. Nessa primeira fase, escrito em quatro páginas, divididas
em duas colunas, foi publicado um total de 351 números que, com o passar dos primeiros
números, começou a sair duas vezes por semana, normalmente às terças e às sextas-feiras.
46  –  Da breve existência do Piparote, e sua mais breve ainda oposição ao Censor, não
podemos avançar muito pela ausência de números preservados daquele periódico. Cf.
nota 16.

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A sossegada Província do Maranhão e os planos revolucionários:
Constituição e um pouco menos de constitucionalidade
no governo de Costa Barros (1825 – 1827)

poder. Curiosamente, os primeiros números do Farol traziam como tema


principal discussões em torno da figura de Odorico Mendes.

Menos por coincidência e mais por conformidade do novo cenário


político inaugurado com a interinidade do vice-presidente Romualdo An-
tonio Franco de Sá, que assumiu após a saída de Costa Barros, o ano de
1828 se iniciou com três jornais circulando regularmente na província.
Além do já citado Farol Maranhense, havia ainda a Minerva47, escrita por
David da Fonseca Pinto, e a Bandurra48, jornal escrito por João Crispim,
que há pouco havia encerrado as atividades de seu antigo jornal, o Amigo
do Homem. Ambos, David e Crispim eram brasileiros nascidos em Portu-
gal. Estes dois jornais faziam a defesa de Costa Barros ante as investidas
do Farol e de seus correspondentes.

Devidamente representados, os “partidos” em oposição encontra-


vam vozes naqueles periódicos. Não obstante Costa Barros já tivesse dei-
xado o poder, seu governo foi tema de muitos dos debates ali travados.
Por trás dos embates sobre as ações concretas do ex-presidente, uma série
de questões se faziam presentes. Despotismo e constitucionalidade eram
dois lados de uma mesma moeda.

Texto apresentado em março/2019. Aprovado para publicação em


junho/2019.

47  –  Este jornal circulou entre 29 de dezembro de 1827 e 5 de março de 1829, com a
publicação do nº 51. O início das suas atividades foi anunciado pelo Amigo do Homem,
com destaque para a anuência do vice-presidente da província Romualdo Franco de Sá,
em meados de dezembro de 1827. Embora anunciado para sair sempre aos sábados, os
números da Minerva, composto quase sempre de oito páginas, saía, habitualmente, às
quintas-feiras. No acervo da Biblioteca Nacional, encontram-se preservados apenas al-
guns números referentes ao ano de 1828 – a partir do nº 28, de 31 de agosto de 1828 - e
todos os sete números publicados em 1829.
48  –  O primeiro número desse jornal foi publicado em 15 de janeiro de 1828, com um
total de 56 páginas. A partir dali, começou a sair duas vezes por mês, com um intervalo de
aproximadamente 20 dias entre as publicações, com um número de páginas que variava
entre 27 e 45. Tal qual anunciado ainda no primeiro número, por seu redator, João Crispim
– que, a princípio, manteve-se anônimo -, o jornal dividia-se em duas partes: a primeira
tratava de questões práticas do cotidiano político-administrativo da província e a segunda,
chamada de Bandurra Afinada, se dedicava a teorizar sobre diversos temas políticos. O
jornal encerrou suas atividades em 31 de dezembro de 1828, com a publicação do nº 23.

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O paradigma das “invasões holandesas”:
a interpretação de Francisco Adolfo de Varnhagen

91

O PARADIGMA DAS “INVASÕES HOLANDESAS”:


A INTERPRETAÇÃO DE FRANCISCO ADOLFO DE
VARNHAGEN
THE PARADIGM OF THE “DUTCH INVASIONS”:
FRANCISCO ADOLFO DE VARNHAGEN’S INTERPRETATION
Regina de Carvalho Ribeiro da Costa1

Resumo: Abstract:
A história das “invasões holandesas” no Brasil, The history of the “Dutch invasions” in
ocorrida entre 1630 e 1654, é um capítulo da his- Brazil between 1630 and 1654 is a chapter
tória colonial reiteradamente contado nos livros of colonial history commonly told in history
didáticos de História. No entanto, questionar é textbooks. However, questioning is necessary to
necessário para perceber a constituição de um understand the constitution of a paradigmatic
modelo historiográfico paradigmático acerca da historiographic model about the history of the
Dutch presence in the northern captaincies.
história da presença holandesa nas capitanias do The most widely used interpretation of the
Norte. A interpretação do episódio mais utiliza- episode in textbooks goes back to Varnhagen
da pelos livros didáticos reproduz aquela que foi in the nineteenth century. Our research was
proposta por Varnhagen no século XIX. A pes- based on the critical analysis of the thematic
quisa partiu da análise crítica da abordagem da approach in the main works of the historian,
temática nas principais obras do historiador, a namely: General History of Brazil (1854-1857)
saber: História Geral do Brasil (1854-1857) e and History of the Struggles with the Dutch in
em História das Lutas com os Holandeses no Brazil (1871). We further identified the primary
Brasil (1871), bem como da identificação das sources that underpin his work, namely the
fontes primordiais que embasaram seu trabalho, chronicles of war. Our analysis showed that,
ou seja, as crônicas da guerra. Tais procedimen- as an expression of the nationalism under
tos demonstraram que, como expressão do na- construction at that time, Varnhagen told history
cionalismo em construção, em sua época, Var- from the Portuguese perspective, highlighting
nhagen contou a história pelo lado português, the Lusitanian sources and defending the
resistance and insurrection of Pernambuco. The
destacando as fontes lusitanas e defendendo a historian even used the term “enemies” in many
resistência e a insurreição pernambucana. O his- passages to refer to the Dutch who fought for the
toriador chegou a usar o termo “inimigos” em possession of and permanence in the territory.
muitas passagens em referência aos holandeses However, the Nassovian period translated into
que lutavam pela posse e pela permanência no an inflection of the version constructed by the
território. Contudo, o período nassoviano tra- historian, since his narrative had to reproduce
duziu-se em uma inflexão da versão construída the economic prosperity and the political
pelo historiador, uma vez que sua narrativa teve stability acknowledged in the sources. We
de reproduzir a prosperidade econômica e a es- conclude by contextualizing the approach of
tabilidade política admitidas nas fontes. Assim, “Dutch invasion” within the framework of the
o artigo contextualiza a abordagem de “invasão nineteenth-century national historiography,
holandesa”, dentro do quadro da historiografia concerned with the writing of the history of our
nacional oitocentista, preocupada com a escrita homeland.
da História da Pátria.
Palavras-chave: Francisco Adolfo de Varnha- Keywords: Francisco Adolfo de Varnhagen;
gen; Invasão holandesa; Historiografia brasilei- Dutch invasion; Brazilian historiography;
ra; Resistência portuguesa; Brasil holandês. Portuguese resistance; Dutch Brazil.
1 – Professora Adjunta Substituta do Departamento de História da Universidade Federal Flu-
minense (UFF) e Doutora em História pela UFF. E-mail: regininhacribeiro@gmail.com.

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Regina de Carvalho Ribeiro da Costa

1. Introdução
Grande parte da produção oitocentista acerca da História do Brasil
nasceu no seio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, criado em
1838. A partir das pesquisas realizadas por seus membros, as primeiras
linhas no sentido de uma história nacional foram escritas. Paradigma na
tradição historiográfica inaugurada pela instituição, que funcionava como
uma academia letrada aos moldes parisienses, foi a interpretação de Fran-
cisco Adolfo de Varnhagen, militar, engenheiro por formação, mas com-
pletamente devotado aos estudos históricos.

A entrada de Varnhagen, no IHGB, requereu a recomendação de An-


tônio de Menezes Vasconcelos de Drummond (1794-1865) e significou,
efetivamente, o início de sua carreira no serviço público brasileiro, como
encarregado na delegação intelectual em Lisboa. A carreira diplomática
fez Varnhagen permanecer em Lisboa de 1842 a 1847, tendo seguido para
Madri, onde ficou até 1858; estar em Viena de 1868 a 1878, além de cur-
tas passagens por Assunção, no ano de 1859, Caracas, de 1861 a 1863,
Colômbia e Equador2.

A contribuição de Varnhagen para a escrita da história foi, de fato,


imensa. Andarilho dos arquivos europeus e americanos, examinou muitos
manuscritos e compilou documentação original sobre a história brasileira.
No presente artigo, será analisada a interpretação de Varnhagen a respeito,
especificamente, do episódio da história da permanência e da dominação
neerlandesa do Brasil no século XVII, chamada de “invasão holandesa”.

Como será apresentada, a versão construída por Varnhagen inaugu-


rou uma espécie de tradição no campo historiográfico de pensar a entrada
dos povos estrangeiros no Brasil na chave de leitura da “invasão”, inseri-
da em um discurso oficial que projetava a questão nacional sobre o pas-
sado colonial. A leitura de Varnhagen deste assunto particular da História

2  –  GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Historiografia e Nação no Brasil: 1838-1857.


Rio de Janeiro: EdUERJ, 2011, p. 187-189.

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O paradigma das “invasões holandesas”:
a interpretação de Francisco Adolfo de Varnhagen

do Brasil acabou sendo reforçada por historiadores posteriores, repercu-


tindo, já no século XIX, nos manuais didáticos de ensino de História3.

É preciso reconhecer, primeiramente, que a “história oficial” proje-


tada por Varnhagen nunca chegou a representar a totalidade das interpre-
tações que concorriam no interior do IHBG. Não se tratava, portanto, de
uma visão consensual dos intelectuais oitocentistas. Contudo, é possível
destacar que o historiador compartilhou uma série de noções do discurso
historiográfico de sua época, a exemplos da valorização da pesquisa em
documentos originais, fonte autorizada para o estabelecimento da ver-
dade histórica, a busca incessante pela objetividade e o apreço por uma
narrativa que se propunha imparcial4.

2. O Brasil português e a ideia de invasão estrangeira


Varnhagen abre o seu História Geral do Brasil5, descrevendo a natu-
reza do território brasileiro descoberto pelos portugueses. Neste primeiro
capítulo, o autor detalha aspectos como os animais, as plantas, as forma-
ções geográficas, os metais, o relevo e o solo encontrados. Nesta inter-
pretação, Varnhagen exalta sua Pátria desde os mais primitivos tempos,
uma vez que percebe as potencialidades e os recursos naturais oferecidos.

Como parte dessa natureza imóvel, o historiador apresenta os índios


existentes naquela terra, como se estivessem à espera de civilização, na
segunda seção do livro. Na conclusão desse capítulo, Varnhagen é claro:
[...] melhor ideia da mudança ocasionada pelo influxo do cristianismo
e da civilização, procuraremos dar uma notícia mais especificada da
situação em que foram encontradas as gentes que habitavam o Brasil;

3  –  Por limitações temáticas, o presente artigo não avançou sobre as repercussões da


produção de Varnhagen nos trabalhos historiográficos subsequentes, nem sobre seu enrai-
zamento no ensino de História, conteúdos de próximos ensaios.
4  –  CEZAR, Temístocles. “Varnhagen em movimento: breve antologia de uma existên-
cia”. Topoi, Rio de Janeiro, v. 8, n. 15, jul-dez, 2007, p. 161.
5  –  VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brazil: antes de sua separa-
ção e independência de Portugal. (Original de 1854-1857) 9. ed. 5 vol. São Paulo; Brasí-
lia: Melhoramentos; INL, 1975.

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Regina de Carvalho Ribeiro da Costa

isto é, uma ideia de seu estado, não podemos dizer de civilização, mas
de barbárie e de atraso.6

Assim, o autor explicava a origem do Estado pela colonização portu-


guesa, construindo a história do Brasil em continuidade à história lusita-
na. Nas palavras do historiador, sendo os índios “povos na infância”7, não
haveria história antes da chegada dos portugueses, de forma que as raízes
ibéricas estariam realmente no núcleo da identidade brasileira.

Dessa maneira, o Brasil teria verdadeiramente nascido, segundo


Varnhagen, no “Descobrimento” português, datado de 1500. O país teria
sido, por direito, uma herança portuguesa do Tratado de Tordesilhas, a
partir da qual o Império Português colonizou, trazendo a civilização aos
povos habitantes. Portanto, a história da construção da nação brasileira
é confundida com a história da colonização portuguesa, perspectiva na
qual a própria colonização recebe uma valoração positiva, justificando
sua necessidade e não problematizando os seus problemas.

Marca de sua produção é a retórica da nacionalidade presente em


História Geral do Brasil. Por isso, já na quinta seção da obra, intitulada
“Descobrimento da América e do Brasil”, Varnhagen aborda a chegada
dos portugueses para transformar aquele território no país que o Brasil se
destinaria a ser. Para compreender sua operação historiográfica, é preciso
problematizar os termos usados.

À ideia de patriotismo, tão cara a esta obra, o historiador mistura


sentidos diferentes ao referir-se aos índios, como na passagem:
Nos selvagens não existe o sublime desvelo, que chamamos patriotis-
mo, que não é tanto o apego a um pedaço de terra ou bairrismo, que
nem sequer eles como nômades, tinham bairro seu, como um senti-
mento elevado que nos impele a sacrificar o bem-estar e até a existên-
cia pelos compatriotas, ou pela glória da pátria.8

6  –  VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brazil. vol. 2. Op. cit. p. 30.
7 – Idem.
8 – Ibidem. p. 24.

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O paradigma das “invasões holandesas”:
a interpretação de Francisco Adolfo de Varnhagen

Para compreender melhor tal confusão vocabular, pode-se recorrer


aos dicionários elaborados por volta do século XVIII. Produzidos durante
a época moderna, tais compilações podem traduzir os significados dos
termos utilizados por Varnhagen para se referir à época do Brasil colônia.
Em Vocabulário Português e Latino, elaborado em Portugal pelo padre
Raphael Bluteau, entre 1712 e 1728, o verbete “pátria”, refere-se à “terra,
Villa, Cidade, ou Reyno, em que nasceu”9.

A explicação fornecida pelo autor sobre o termo “pátria” é extensa,


na qual destaca-se a analogia construída a partir da etimologia da pala-
vra, oriunda do latim pater, que significa “pai”. Bluteau, então, justifica a
“pátria”, sendo feminino, “por ser também a nossa mãe”. Na metáfora, a
pátria é “como nosso pai e nossa mãe a quem devemos estimar e amar”.

Com maior clareza, o brasileiro Antônio de Morais Silva, em seu Di-


cionário da Língua Portuguesa, lançado originalmente em 1789, baseado
em Bluteau, sintetizou a “pátria” como “terra donde alguém é natural”10.
Assim, o termo pátria, nos séculos em que o Brasil era tão somente colô-
nia de Portugal, significava terra ou lugar de origem, não se referindo ao
país onde uma pessoa nasceu, acepção contemporânea do termo.

Em História Geral do Brasil, percebe-se que essa confusão é muito


comum, especialmente, porque Varnhagen escreve numa época na qual o
Brasil, como Estado-nação, já existia, de fato, desde, segundo sua própria
demarcação temporal, a independência de Portugal, ocorrida em 1822.
Em relação aos índios, Varnhagen claramente reclama da ausência do
amor por uma pátria, o que só começaria a nascer com a chegada dos
portugueses. Isto, porque:
Essas gentes vagabundas que, guerreando sempre, povoavam o terre-
no que hoje é do Brasil, eram pela maior parte verdadeiras emanações

9 – BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Portuguez e Latino. v. 2. Coimbra: Collégio das


Artes da Companhia de Jesus, 1728. Dicionário disponível no site do IEB/USP: <http://
dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/ edicao/1>. Acesso em: 14 jun. 2017, p. 320-321.
10  –  SILVA, Antônio de Moraes. Diccionário da Lingua Portugueza. v. I. Lisboa: Typo-
graphia Lacerdina, 1789. Dicionário disponível no site do IEB/USP: <http://dicionarios.
bbm.usp.br/pt-br/dicionario/edicao/2>. Acesso em: 15 jun. 2017, p. 412.

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Regina de Carvalho Ribeiro da Costa

de uma só raça ou grande nação; isto é, procediam de uma origem co-


mum, e falavam dialetos da mesma língua, que os primeiros colonos
do Brasil chamaram geral, e era a mais espalhada das principais de
todo este continente.11

Em relação ao termo “nação”, Bluteau refere-se ao “nome coletivo,


que se diz da Gente; que vive em alguma grande região, ou Reyno, debai-
xo do mesmo senhorio”12. Neste sentido, o padre diferencia “nação” de
“povo”, “porque nação compreende muitos povos”. No dicionário, “na-
ção” remete ainda às gentilidades, isto é, às tribos indígenas.

Em Morais Silva, o termo sofre uma ampliação semântica, uma vez


que considera “nação” como “a gente de um paiz, ou região, que tem
Língua, Leis e Governo à parte”13, além de englobar os descendentes de
judeus, a conhecida “gente de nação”, e qualquer “raça, casta, espécie”.
Mais próximo do sentido utilizado por Varnhagen, o Dicionário da Lín-
gua Portuguesa permite entender que Varnhagen reconhece os índios for-
mando uma nação unificada pela língua, ainda que compreendam “tribos
de nacionalidades diferentes”14.

Dessa forma, em História Geral do Brasil, o historiador oitocentista


constrói a história da Pátria significativa para conformar a identidade da
nação brasileira, uma nação que havia sido formada e, portanto, que se
podia explicar a partir do passado colonial. Na interpretação de Varnha-
gen, o Brasil nascia como colônia de Portugal. Trata-se, assim, de um mo-
delo lusófilo que percebe o Brasil como Português. Nesta ótica, qualquer
entrada de outros povos europeus no território da colônia portuguesa era
considerada uma legítima “invasão”.

Foi desta forma que Varnhagen chamou o objeto de investigação


deste trabalho. Foi como “invasão holandesa” que o historiador, dedican-
11  –  VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brazil. vol. 2. Op. cit. p.
24.
12 – BLUTEAU, Raphael. Op. cit. p. 658-659.
13  –  SILVA, Antônio de Moraes. Op. cit. p. 332.
14  –  VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brazil. vol. 2. Op. cit. p.
24. Acerca do termo “nacionalidade”, não foi encontrado vestígio nos dicionários históri-
cos da língua portuguesa pesquisados.

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O paradigma das “invasões holandesas”:
a interpretação de Francisco Adolfo de Varnhagen

do cinco capítulos de sua História Geral, em mais de duzentas páginas,


trabalhou com o período dominação holandesa no Nordeste açucareiro
seiscentista. Nestes termos, a nomenclatura cunhada por Varnhagen, bem
como sua periodização da história colonial, permanece como linguagem
adotada em muitos livros didáticos de História mesmo no século XXI.

A “invasão holandesa”, capítulo da história do Brasil, causou tanto


incômodo a Varnhagen, que mereceu, inclusive, uma investigação parti-
cular, da qual resultou uma obra que será tratada na sequência. A grande
importância deste período reside, sobretudo, na união das nações existen-
tes no Brasil para expulsar o invasor, construindo uma memória de luta
que teria formado a Nação brasileira, utilizando a guerra como elemento
catalisador de forças no propósito comum.

3. A exaltação da resistência portuguesa


É, na vigésima oitava seção do História Geral do Brasil, intitulada
“Desde a Invasão de Pernambuco até chegar Nassau”, que Varnhagen co-
meça a tratar deste momento que foi marcado pelo conflito. É interessante
perceber que o historiador narra as guerras pernambucanas, qualificando
os holandeses sempre como os “invasores”, os “inimigos” e os “intrusos”.
Assim, o ponto de vista de Varnhagen é claramente ao lado da resistência
portuguesa.

Fora mesmo muito exaltada essa defesa do território, por parte dos
portugueses, na escrita de Varnhagen. Comandadas por Matias de Albu-
querque, um senhor de engenho que se encontrava “acidentalmente” em
Madri quando as informações sobre o plano de invasão do Brasil colonial
chegaram, as forças de resistência foram organizadas de maneira “vigo-
rosa”, para o historiador.

De acordo com Varnhagen, o “superintendente na guerra, e visitador


e fortificador das capitanias do Norte”, Matias de Albuquerque, executou
seu serviço com bastante afinco e com seriedade, procurando melhorar a
defesa dos fortes de Pernambuco, de Itamaracá, da Paraíba e de Rio Gran-
de, erguer novas posições estratégicas; convocar os moradores, nomean-

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Regina de Carvalho Ribeiro da Costa

do chefes superiores; proteger as povoações, exercitando novos recrutas;


fechar a entrada do porto, construindo armadilhas. Assim, “fez por então
quanto estava ao seu alcance”15.

Ao despontarem no litoral, as forças neerlandesas comandadas pelo


almirante Hendrik Cornelioszoon Loncq e do coronel Jonckheer Dierick
van Waerdenburgh, segundo Varnhagen, Albuquerque, “quando chegou o
momento do perigo, não fugiu dele: pelo contrário tratou de sair-lhe ao
encontro”16. Na narrativa do historiador, a entrada holandesa no território
parece ter sido inevitável, uma vez que “aguentaram os nossos” o quanto
puderam, mas, no final, “ficou o inimigo senhor da vila”17.

Desse modo, Varnhagen vai construindo, em sua narrativa, a brava


resistência realizada pelos portugueses e pelos luso-brasileiros durante
todo o tempo que os holandeses “invadiram”, sobretudo pela exaltação da
liderança de Albuquerque nos primeiros momentos da guerra. O ímpeto
de tal governador é narrado pelo historiador, quem conta que Albuquer-
que passou a organizar companhias de guerrilhas ou de emboscadas, além
de aumentar as guarnições de defesa, numa estratégia tão bem executada,
que conseguiu deixar os holandeses “encurralados dentro do Recife e do
pequeno forte de Orange na ilha de Itamaracá”18 durante dois anos.

Na história que Varnhagen conta, se os holandeses foram capazes de


entrar no território, não teria sido por falta de defesa, isto é, a resistência
teria sido tão eficaz, que até mesmo “o inimigo apreciava melhor o valor
dos nossos”19. Neste sentido, o historiador aponta para o envio de ar-
madas das metrópoles como elemento decisivo para a invasão flamenga,
pois estes receberam ajuda considerável por parte da Holanda, ao con-
trário das promessas que viriam da Espanha. Nesse sentido, Varnhagen é
taxativo em afirmar que:

15  –  VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brazil. vol. 2. Op. cit. p.
224-225.
16 – Ibidem. p. 225.
17 – Ibidem. p. 227.
18 – Ibidem. p. 241.
19 – Ibidem. p. 234-235.

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O paradigma das “invasões holandesas”:
a interpretação de Francisco Adolfo de Varnhagen

Se, como seis anos antes, em vez de socorros, manda a corte ao Brasil
uma poderosa armada de restauração, os intrusos houveram agora sido
expulsos, e não teriam dominado ainda por vinte e três anos, e sido
causa de tantas perdas para o estado e de tantas calamidades para os
particulares.20

A epopeia heroica da resistência contada por Varnhagen teria, entre-


tanto, sofrido um grande revés com a deserção de um mameluco natural
de Porto Calvo denominado Domingos Fernandes Calabar. Antes de pros-
seguir, é preciso ressaltar a excepcionalidade do personagem: Calabar foi
um dos casos mais acentuados, exatamente, porque encarnou a ambiva-
lência na qual os colonos viveram naquele tempo, entre os portugueses e
os holandeses, logo no início das guerras pernambucanas do açúcar, razão
pela qual sua deserção equivaleu, para os cronistas portugueses e os his-
toriadores brasileiros, como uma traição.

Assim, pela mudança das fileiras da resistência para o serviço holan-


dês, o personagem foi transformado em protagonista do período históri-
co, sendo culpado por Varnhagen pela perda de todo o litoral nordestino
da colônia de Portugal – de posse momentaneamente dos espanhóis, pela
união das coroas ibéricas21 – em propriedade da Companhia das Índias
Ocidentais (WIC)22.

20 – Ibidem. p. 237.
21  – A chamada União Ibérica ou União Dinástica, iniciada em 1580, graças à crise
sucessória deixada com o desaparecimento do rei D. Sebastião na Batalha de Alcácer
Quibir no norte da África, implicou a anexação, de fato, do reino português e de suas
colônias, pela Espanha Habsburgo, por um período de sessenta anos. Alegando direito de
hereditariedade, o próprio Filipe II, rei da Espanha e bisneto de D. Manuel II, o Venturoso,
apoderou-se do trono e do império colonial português. Então, Portugal passou a integrar
uma das principais monarquias compósitas da época moderna, a Monarquia Plural dos
Habsburgos Hispânicos, tendo sido governado por Felipe II, Felipe III e Felipe IV, até
que D. João IV, da casa dos Bragança, restaurou a autonomia política portuguesa em 1º de
dezembro de 1640. Para mais informações, ver: BOUZA ÁLVAREZ, Fernando. Portugal
no Tempo dos Filipes. Política, cultura e representações (1580 – 1668). Lisboa: Cosmos,
2000; ELLIOT, John. Una Europa de Monarquías Compuestas. In: España en Europa.
Estudios de Historia Comparada. Universidad De Valência, 2002.
22  –  Companhia de comércio, criada em 1621, pela República das Províncias Unidas
dos Países Baixos. Tratava-se de uma empresa composta por cinco câmaras regionais,
nas quais sobressaíam os capitais holandeses e flamengos, dirigida por um Conselho de
Dezenove Senhores. Sobre a história da formação dos Países Baixos, ver: ISRAEL, Jo-

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Regina de Carvalho Ribeiro da Costa

Assim, desde que Calabar se apresentou ao Alto Comando Holandês


em 1632, a sorte das forças de resistência havia mudado, na interpretação
de Varnhagen. Isso, porque o mameluco teria ensinado todas as táticas
daquela guerra e os caminhos daquela terra para os holandeses, passando
a conceber e a dirigir as principais emboscadas contra os portugueses que
garantiram aos flamengos o avanço no território até o estabelecimento de
um governo na região.

Ao passo que o historiador expressa toda a sua repugnância contra o


traidor Calabar, cuja “infeliz deserção” deu aos holandeses a capacidade,
pela “imitação dos nossos”, de “assenhorear-se do país”23, a resistência
continuava a lutar bravamente contra o avanço holandês, como celebra
Varnhagen, na narração da defesa do Rio Formoso, atacado em 1633: “a
defesa foi heroica, e constitui entre nós uma lenda semelhante à do passo
das Termópilas entre os gregos”24.

De um lado, o historiador enfatiza a fidelidade do mameluco aos


holandeses, na narração pormenorizada de cada investida, cada entrada,
cada ataque e cada avanço flamengo sobre a região. De outro, Varnhagen
ilumina o brio de pessoas como Matias Albuquerque que resistiam obsti-
nadamente às derrotas que sofriam, defendendo o território dos “invaso-
res” estrangeiros, como se a história estivesse sendo revivida no século
XIX, convertendo o Brasil Colônia na Pátria Brasileira.

Dessa forma, a história construída sobre as guerras pernambucanas


do século XVII pelo visconde de Porto Seguro era marcada, basicamente,
pela Traição de Calabar, grande culpado, e pela exaltação da resistência
portuguesa. No final do capítulo, Varnhagen conta que “o grande aperto
do sítio trouxe aos defensores a inevitável escassez, e logo a falta comple-
nathan. The Dutch Republic. Its Rise, Gratness and Fall, 1477-1806. Oxford: Clarendon
University Press, 1995; SCHAMA, Simon. O desconforto da riqueza: a cultura holandesa
na Época de Ouro, uma interpretação. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 1992; ZUMTHOR, Paul. A vida quotidiana na Holanda no tempo de
Rembrandt. Lisboa: Livros do Brasil, s/d.
23  –  VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brazil. vol. 2. Op. cit. p.
242-243.
24 – Ibidem. p. 244.

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O paradigma das “invasões holandesas”:
a interpretação de Francisco Adolfo de Varnhagen

ta de mantimentos”25 e, assim que caiu o Arraial do Bom Jesus em 1635,


principal bastião da resistência, localizado na várzea do rio Capibaribe,
caiu de vez a defesa portuguesa.

Logo após a queda do Arraial, Matias de Albuquerque foi levado


de volta a Portugal para responder pela perda de Pernambuco, fato que
Varnhagen conta com muito pesar em: “[...] não foi, porém, gozar de
descanso, nem de dias felizes”26. A insatisfação do historiador quanto à
prisão do governador deveu-se à devassa que foi instaurada a respeito da
conduta de Albuquerque, que tanto teria feito pela defesa do território.
Para Varnhagen, era injusta a culpa da perda de parte significativa da co-
lônia portuguesa recair sobre o comandante da resistência, uma vez que,
na sua história, havia outros culpados, como a falta de socorro e a traição
de Calabar.

Fora, aliás, a respeito do fim de Calabar que Varnhagen se ateve


antes de encerrar a seção. Na descrição da captura do mameluco pelos
portugueses no cerco a Porto Calvo, em julho de 1635, o historiador co-
menta a respeito da falta de apreço dos holandeses em negociar a entrega
de Calabar, sendo que os mesmos aproveitaram muito de seus serviços,
mas a justifica imediatamente depois por se tratar de uma “traição” ou de
um “traidor”. Exatamente por isso, esse episódio mereceu uma atenção
especial do historiador.

Varnhagen descreveu a entrega, o julgamento, a confissão e a exe-


cução da pena de Calabar, sempre fazendo parecer justo o fim do “crimi-
noso”, cuja pena tratou-se do garrote seguido de esquartejamento pelo
crime de lesa Majestade. Um exemplo emblemático é o juízo emitido
pelo próprio historiador oitocentista a respeito das faltas confessadas por
Calabar ao Frei Manoel Calado:
Desses pecados o Todo-Poderoso lhe tomaria contas, e com a sua
imensa misericórdia, poderá tê-lo perdoado; porém dos males que

25  –  VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brazil. vol. 2. Op. cit. p.
254.
26 – Ibidem. p. 265.

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Regina de Carvalho Ribeiro da Costa

causou à pátria, a história, a inflexível história, lhe chamará infiel,


desertor e traidor, por todos os séculos dos séculos.27

Neste ínterim, cabe uma ressalva no significado dos termos usados


por Varnhagen para compreender a integridade da acusação proferida
contra Calabar. Retornando ao dicionário do Padre Raphael Bluteau, per-
cebe-se que o verbete traição, no século XVIII – portanto, mais próximo
do contexto de uso atribuído por Varnhagen, isto é, a Colônia –, signifi-
cava “perfídia, falta de fidelidade ao Príncipe, ao amigo, que se fiava de
nós”28. Algumas décadas mais tarde, Morais Silva refinou este sentido,
acrescentando ao termo “traição” o significado de “quebra da fidelidade
prometida”29.

Em relação ao verbete “traidor”, Bluteau começa com “aquele que


obra contra a fidelidade que deve” e fornece uma explicação complexa,
repleta de exemplos bíblicos e históricos. Na compreensão do padre:
Há vícios e defeitos, cuja exprobração se pode sofrer sem vergonha,
porque procedem de causas remotas, como são fúrias da mocidade,
más disposições da natureza, adversidade da fortuna, [...] mas o ser
chamado Traidor é injúria intolerável, a quem tem algum brio, porque
a traição é vício, nascido no coração, excogitado da maldade e fomen-
tado da ingratidão30.

Na sequência, Bluteau compara o traidor ao veneno de algum animal,


pois é necessário servir-se do traidor, empregando-o em obras proposita-
das. Assim, o padre induz que não se trata de alguém confiável, pois para
“os danos causados por traidores, não há pena, que os possa registrar”. A
partir de tais significados, pode-se pensar que Varnhagen constrói o mito
de Calabar como grande traidor da Pátria, metamorfoseando um mamelu-
co desertor das fileiras portuguesas nas guerras do açúcar do século XVII
para um traidor do Brasil.

27 – Ibidem. p. 263.
28 – BLUTEAU, Raphael. Op. cit. p. 237.
29  –  SILVA, Antônio de Moraes. Op. cit. p. 794.
30 – BLUTEAU, Raphael. Op. cit.

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O paradigma das “invasões holandesas”:
a interpretação de Francisco Adolfo de Varnhagen

Desse modo, a colaboração de Calabar para com os holandeses, em-


bora muito lamentada pelo historiador, parece ter sido decisiva, ao menos
na primeira fase do conflito, que termina com a vitória flamenga a partir
da vinda do Conde João Maurício de Nassau-Siegen em 1637. A narra-
tiva sobre o período de governo de Nassau é contada nos dois capítulos
seguintes do História Geral31.

4. A libertação da colônia pela insurreição pernambucana


A respeito das represálias portuguesas à expansão do domínio ho-
landês, Varnhagen refere-se à restauração do Maranhão ao restante do
Brasil Colonial, português, fato que narra com grande euforia, como uma
primeira vitória na escalada da recuperação do ânimo luso-brasileiro na
guerra. O entusiasmo na narrativa do historiador deveu-se à ênfase dada
à “libertação” da capitania como feito, sobretudo, de forças coloniais, ou
seja, “pelo esforço de seus bravos habitantes”32. Dessa forma, Varnhagen
apontava nomes, iniciando a construção de um grupo de homens que seria
responsável pela restauração de Pernambuco, narrado nos dois capítulos
seguintes.

A trigésima primeira seção, intitulada “Revolução de Pernambuco


até a Primeira Ação dos Guararapes”, é aberta por Varnhagen com o su-
cesso alcançado na restauração do Maranhão que, segundo o historiador,
“não podia deixar de excitar os brios de André Vidal para se esforçar de
novo em conseguir realizar em Pernambuco e Paraíba, por que tanto se
havia empenhado”33. Além de André Vidal de Negreiros, Varnhagen enu-
mera e engrandece outros nomes como João Fernandes Vieira, Henrique
Dias e Felipe Camarão.

31  –  Por opção metodológica de analisar a construção da interpretação varnhageniana,


o exame sobre o período nassoviano, apesar de ser cronologicamente anterior à fase da
insurreição pernambucana, será apresentado posteriormente, uma vez que o tratamento
concedido por Varnhagen representa uma forma de inflexão ao modelo proposto.
32  –  VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brazil. vol. 2. Op. cit. p.
332.
33  –  VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brazil. Vol. 3. Op. cit. p.
13.

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Regina de Carvalho Ribeiro da Costa

A insurreição pernambucana, por Varnhagen denominada de “Revo-


lução de Pernambuco”, se constituiu, para o historiador, o grande capítulo
da luta pela “libertação” das capitanias sob jugo dos holandeses. Era uma
guerra na qual a antiga resistência portuguesa tomou a ofensiva e formou
um movimento que aglutinou todas as categorias coloniais.

A respeito dessa revolução, o historiador exprime detalhes da con-


cepção do plano, da delação da conjuração, da formação das tropas, da
deserção dos soldados e do desenrolar das batalhas. Na narração, Varnha-
gen louva o movimento a cada ação, cujas vitórias aumentavam o ânimo
das tropas restauradoras. O caráter colonial dessas forças é reforçado pelo
historiador quando confessa que o apoio da metrópole portuguesa só veio
após a vitória na batalha ocorrida no Monte das Tabocas.

Na narração de Varnhagen, evidencia-se uma mudança de posições


com as vitórias e o avanço portugueses e as derrotas e a resistência dos
holandeses: “ao passo que já a abundância reinava entre os sitiantes, a
penúria e a fome chegavam, entre os sitiados, ao maior auge”34. Nesse
sentido, o impacto do avanço da insurreição nas tratativas diplomáticas
entre Portugal e Holanda é abordado pelo historiador por meio da análise
da “posição melindrosa”35 que se encontrava o embaixador português D.
Francisco de Sousa Coutinho em Haia.

No tocante a esse imbróglio que se desenrolou após a restauração


portuguesa, Varnhagen, pela sua obstinada defesa das bandeiras da cen-
tralização do poder e da integridade do Brasil, reprovou todos os proje-
tos, surgidos à época, de separação e de venda das capitanias açucareiras
em troca da paz com as Províncias Unidas, criticando, inclusive, o padre
Vieira36 com base num parecer apresentado pelo procurador da Fazenda
34 – Ibidem. p. 43.
35 – Ibidem. p. 51.
36  –  No “Papel Forte”, documento escrito entre 1648 e 1649, o padre Antônio Vieira
expôs a hipótese de entregar, graciosamente, as capitanias que os neerlandeses conside-
ravam suas, de modo a evitar um ataque holandês a Portugal. O jesuíta alegava ainda que
a rebelião havia sido movida por interesses particulares dos devedores, sobre os quais o
monarca não teria obrigação de proteger. Por isso, Vieira foi acusado de “entreguista”,
na corte, pelos partidários da guerra como solução para a questão. Para uma análise do

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O paradigma das “invasões holandesas”:
a interpretação de Francisco Adolfo de Varnhagen

de nome Pedro Fernandes Monteiro. De acordo com o documento carac-


terizado como “muito bem elaborado e patriótico parecer”, a negociação
em voga seria contrária à religião, à dignidade dos amotinados, à reputa-
ção da Coroa, à conservação do Brasil e à Fazenda Pública portuguesa37.

A divisão na narração de Varnhagen sobre os episódios da insur-


reição, mais uma vez, é feita por um marco, neste caso, o significado da
primeira batalha dos Guararapes ocorrida em fins de 1648. A importância
da vitória portuguesa no confronto teria sido decisiva para a expulsão dos
invasores, segundo o historiador oitocentista: “sem essa vitória, é mais
que provável que parte do Brasil haveria sido entregue aos holandeses
pela Corte, nas aflições em que se via”38.

A segunda ação do Guararapes, ocorrida no início de 1649, retratada


já na trigésima segunda seção, intitulada “Desde a recuperação de Ango-
la até o fim da guerra”, só teria confirmado o favoritismo português no
momento da guerra, principalmente, porque as forças holandesas haviam
terminado completamente destroçadas. Assim, emitia Varnhagen, com
grande satisfação, o seguinte juízo:
Se a primeira vitória nos Guararapes servira de alentar os estadistas
de Portugal para se oporem à cessão ou venda de Pernambuco, esta
segunda veio desalentar os estadistas e mercadores da Holanda, de-
monstrando-lhes evidentemente que só mediante a grandes sacrifícios
poderiam continuar mantendo esta conquista.39

Desse modo, mesmo a guerra tendo perdurado por mais cinco anos
ainda, Varnhagen considerava que, a partir de Guararapes, a luta já estava
ganha. Por isso, o historiador enfatizou o final da insurreição pernambu-
cana e, sobretudo, a capitulação dos holandeses. Nesse capítulo, as ba-
talhas deram lugar às tratativas que encerraram o período de dominação

documento, ver: VAINFAS, Ronaldo. “Antônio Vieira e o ‘negócio do Brasil’: derrotismo


pragmático e estratégia política.” In: AZEVEDO, Silva Maria; RIBEIRO, Vanessa Costa.
(org.) Vieira: vida e palavra. São Paulo: Pateo do Collegio – Edições Loyola, 2008.
37  –  VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brazil. Vol. 3. Op. cit. p.
57.
38 – Ibidem. p. 56.
39 – Ibidem. p. 84.

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flamenga, especialmente aos vinte e sete artigos da capitulação e ao re-


conhecimento da atuação do exército restaurador, realizado por meio de
uma provisão datada de 1654.

Neste ínterim, Varnhagen analisa os principais colaboradores na res-


tauração de Pernambuco, tecendo elogios a nomes como de Francisco
Barreto, “grande cabo de guerra”, e de André Vidal de Negreiros, “ho-
mem tão superior que necessitara um Plutarco para apreciá-lo”. Por outro
lado, coube a João Fernandes Vieira algumas críticas, como a de que “não
aparece decididamente tão grande, como, em detrimento dos seus cama-
radas, no-lo quiseram apresentar seus panegiristas”40.

Por fim, Varnhagen encerra a última seção que trata da dominação


flamenga, comentando suas fontes e avaliando o efeito dessas “invasões
holandesas” para o Brasil. No panorama geral, pode-se pensar que o his-
toriador considerou como positiva a influência da guerra contra os holan-
deses para a cultura do Brasil, em suas palavras: “[...] digamos assim, pois
que o intuito era de guerrear os contrários, e quando menos o pensavam
se viam absorvidos pela civilização daqueles a cujo lado combatiam”41.

Nesse sentido, Varnhagen contribuiu, ao seu modo, para a construção


do mito da insurreição pernambucana como berço da brasilidade. Apesar
de não ter dado muito espaço para a atuação dos elementos indígenas e
negros, uma vez que sua História Geral considerava basicamente o com-
ponente branco na construção do Brasil, foi forçoso reconhecer, no caso
da “guerra da liberdade divina”42, a atuação dos capitães Felipe Camarão
e Henrique Dias.
40  –  VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brazil. Vol. 3. Op. cit. p.
94.
41 – Ibidem. p. 98.
42  –  A referência da insurreição pernambucana como “guerra da liberdade divina” deve-
-se aos panfletos enviados secretamente por João Fernandes Vieira aos habitantes de Re-
cife para prepararem a revolta em nome da liberdade divina, programando o início do le-
vante para o dia de São João de 1645, informações estas a respeito do evento que vazaram
em 30 de maio, devido à deserção de alguns conspiradores. Dentre esses documentos, a
justificativa religiosa para a insurreição encontra-se na primeira “Razão que teve o povo e
o mestre de campo para se levantar contra os holandeses”, atribuindo à “tirania dos ditos
holandeses que nunca guardaram sua palavra com os portugueses, tocante à liberdade da

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O paradigma das “invasões holandesas”:
a interpretação de Francisco Adolfo de Varnhagen

Ademais, enfatizando a resistência e a luta dos colonos, Varnhagen


apostou na constituição de uma maior fraternidade entre os chamados
pernambucanos pelo perigo comum, cujo resultado imediato concluiu
em: “[...] de modo que quase se pode assegurar que dessa guerra data o
espírito público mais generalizado por todo o Brasil”43.

5. O período nassoviano: uma inflexão da invasão


A tradição historiográfica inaugurada a partir da produção varnhage-
niana encontrou, contudo, um problema na narração da “invasão holande-
sa”. Tanto em História Geral, quanto em História das Lutas, Varnhagen
encontrou um ponto de inflexão: a narrativa do governo de Maurício de
Nassau. A construção da história das invasões holandesas, a qual enalte-
cia a resistência e utilizava a restauração do domínio português na região
como prova da fidelidade luso-brasileira, precisou lidar com o período
nassoviano, a figura política de Nassau, suas amizades, a prosperidade
econômica e, até certo tempo, a estabilidade desse tempo. Na sequência,
será examinado como Varnhagen interpretou essa fase.

Em História Geral do Brasil, uma vez estabelecida a conquista dos


holandeses, Varnhagen, tanto na vigésima nona seção – intitulada “Go-
verno de Nassau até levantar o sítio da Bahia” – como na trigésima – que
trata de “Desde o sítio da Bahia até a partida de Nassau” –, começa a
construir uma imagem não pouco honrosa de Nassau como um príncipe
que “aos mais qualificados dotes de capitão prestigioso, reunia os de pru-
dente juiz e honrado administrador”44, a qual o próprio historiador tratará
de dissolver ao longo de sua escrita.

Nesses capítulos, Varnhagen preocupa-se em narrar como o governo


dos holandeses foi organizado durante o tempo de Nassau, destacando as
questões de segurança, religião, autoridade/obediência, sociedade, eco-
religião católica”. Anexo à consulta do Conselho Ultramarino, de 8 julho de 1647. AHU,
Pernambuco, papéis avulsos, caixa 3-A.
43  –  VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brazil. Vol. 3. Op. cit. p.
98.
44  –  VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brazil. vol. 2. Op. cit. p.
271.

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Regina de Carvalho Ribeiro da Costa

nomia e construções públicas. Todavia, o historiador deixa entrever que


as emboscadas não cessaram nesse tempo, sinalizando que a resistência,
embora bem mais fraca que outrora, mantinha-se, na medida do possível,
viva.

O grande divisor de águas, então, na narração do historiador, que


lhe valeu encerrar e iniciar outro capítulo, foi a descrição da fracassada
tentativa holandesa de tomar a Bahia, sede da colônia portuguesa. Não se
tratava, por certo, da primeira investida, pois Varnhagen já havia dispen-
sado cerca de trinta páginas de sua obra para tratar da perda e da recupe-
ração da Bahia, em 1624, na seção vigésima sétima, a qual antecedeu a
narrativa da invasão de Pernambuco.

Em 1638, todavia, o plano de conquistar a Bahia era engendrado


por Nassau, quem, segundo Varnhagen, “perdeu, não só o prestígio, mas
muito boa parte de seu exército, que veio a fazer-lhe falta”45. Na ocasião,
o historiador bradou a eficácia das forças de resistência.

Na trigésima seção, Varnhagen descreve o envio da armada de so-


corro hispano-portuguesa, dirigida pelo Conde da Torre em 1639, cujos
propósitos de atacar Pernambuco por terra e por mar não tardaram a
chegar aos ouvidos holandeses, os quais trataram de enviar uma esqua-
dra para a guarda costeira do litoral. Dessa forma, “Pernambuco não foi
restaurado, como pudera havê-lo sido, se desembarcam conveniente-
mente as tropas que para isso vinham; e toda a esquadra se desmantelou
vergonhosamente”46.

Nesse episódio, muito lamentado pelo historiador oitocentista, foi


dado destaque aos efeitos negativos da “desastrada frota do Conde da
Torre”, que teria sido responsável pela renovação do ânimo dos holan-
deses quanto à manutenção do território recém-conquistado e servido de
pretexto para a expulsão dos religiosos católicos que, sob o domínio fla-
mengos, haviam se mantido.

45 – Ibidem. p. 299.
46 – Ibidem. p. 312.

108 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):91-120, mai./ago. 2019.


O paradigma das “invasões holandesas”:
a interpretação de Francisco Adolfo de Varnhagen

Nesse capítulo ainda, Varnhagen aborda o impacto da notícia da res-


tauração da autonomia política de Portugal, em 1640, na colônia. À pri-
meira vista, o historiador sustentou a tese, fundamentado nos documentos
da época, de que a situação da guerra contra os holandeses mudaria, pois
se o verdadeiro inimigo da Holanda era Espanha, não haveria, pois, moti-
vo que impedisse Portugal de se aliar à Holanda contra o inimigo comum.

Entretanto, Varnhagen aponta uma certa decepção em relação à ati-


tude de Nassau, que só fez receber a notícia a partir de de um ato público,
mas não chegou nem a suspender as hostilidades entre Portugal e Holan-
da em razão da restauração portuguesa, haja vista a conquista holandesa
de muitas praças portuguesas na África por esse tempo47. Desapontado, o
historiador derruba a boa imagem que construíra de Nassau no capítulo
anterior, declarando que: “a história, mestre da vida e conselheira dos po-
vos e príncipes no porvir, não pode deixar de reprovar tão feio proceder,
que veio a dar motivo para justas represálias”48.

Em História das Lutas com os Holandeses no Brasil, Varnhagen


mantém sua narração do período do governo do Conde Maurício de
Nassau em tom engrandecedor. As qualidades de Nassau emergem pelo
empenho pessoal em “fazer prosperar o Estado”49. Foi, sobretudo, pelas
obras públicas realizadas durante o governo nassoviano, as quais propor-
cionaram “tranquilidade e segurança” a todos, na avaliação de Varnhagen,
que o Conde é exaltado. Dessa forma, o historiador era forçado a admitir
que “as primeiras páginas no livro da civilização”50 do nosso país haviam
sido traçadas por um “forasteiro”, em referência ao chefe dos holandeses.

A admiração inicial do historiador em relação à administração nas-


soviana, entretanto, não obscurece o fato de Nassau ter estado, no confli-
47  –  Os holandeses conquistaram São Jorge da Mina, em 1637, e São Paulo de Luanda,
em 1641.
48  –  VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brazil. vol. 2. Op. cit. p.
322.
49  –  VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História das lutas com os holandeses no Bra-
sil desde 1624 até 1654. (original de 1871). 2. ed. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército,
2002, p. 144.
50 – Ibidem. p. 146.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):91-120, mai./ago. 2019. 109


Regina de Carvalho Ribeiro da Costa

to, em campo oposto ao qual defendia. Assim, o historiador transparece


sua decepção em relação à atitude do governador dos flamengos de não
suspender as hostilidades, na prática, com os luso-brasileiros, em razão
da restauração Portuguesa de 1640 e, principalmente, de ter mantido a
política de expansão das fronteiras do domínio holandês na América e na
África, aproveitando-se de um momento em que a resistência portuguesa
se encontrava combalida.

De qualquer forma, abordar o período nassoviano constituía um ver-


dadeiro desafio para Varnhagen, porque trazia um elemento contraditório
à interpretação que visava construir. Tratava-se da dificuldade de omitir,
até aonde fosse possível, a relação amistosa que o Conde mantinha com
os colonos; de minimizar suas construções arquitetônicas e obras públi-
cas; e de negligenciar os aspectos culturais e religiosos que envolveram o
período, sobretudo quanto à política de tolerância.

Do governo nassoviano, o historiador só admitia o que era forçoso


reconhecer: sua administração política e seu comando militar. Nesse cam-
po particularmente, Varnhagen se deteve mais particularmente, isto é, em
delinear o Nassau general, que manteve ativos os objetivos da Companhia
das Índias, não apenas em termos de consolidação, mas principalmente,
de conquista, por meio da expansão do território.

A base para essa interpretação, obviamente, veio dos diários dos


cronistas da guerra que Varnhagen utilizou como fontes históricas. Em
Memórias Diárias, Duarte Coelho narrou a chegada do Conde João Mau-
rício de Nassau, em 1647, como uma política de envio de socorros para
as conquistas por parte da Companhia das Índias Ocidentais. Todavia, o
cronista salientou que o novo governador não demorou muito para perce-
ber o perigo real que as forças de resistência organizadas, nesse momen-
to, em campanhas de guerrilha representavam para a estabilidade de seu
governo.

Dessa forma, uma das primeiras decisões tomadas por Nassau, se-
gundo Coelho, foi combater esses focos de resistência, forçando as tropas

110 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):91-120, mai./ago. 2019.


O paradigma das “invasões holandesas”:
a interpretação de Francisco Adolfo de Varnhagen

para o mais distante possível do território, “ponderando que de outra for-


ma nunca teriam a posse total e pacífica do território, nem os engenhos
podiam moer regularmente, nem cultivar e aproveitar os produtos da ter-
ra, nem finalmente dar estabilidade e impulso ao comércio [...]”51.

Nesse sentido, aparece Nassau na crônica de Coelho, principal-


mente, como um comandante, flagrado em cenas militares, lutando em
campo, planejando excursões, ordenando invasões, plantando artilharia,
montando quartéis e fazendo alianças estratégicas. A partir de tais ações,
a imagem que Coelho transmite de Nassau era a de um general muito
comprometido com seu trabalho de garantir a posse das capitanias con-
quistadas e, quando possível, expandir suas fronteiras.

Por isso, o cronista ressaltou a pretensão obstinada dos holandeses


em conquistar a Bahia, que levou até Nassau a fazer sua tentativa, infru-
tífera. Da experiência, saíra o Conde malogrado, suplicando a suspensão
das armas e pedindo os feridos e prisioneiros, conforme Coelho52. Como
a crônica terminou com o relato do ano de 1638, não há mais detalhes
do governo nassoviano em Memórias Diárias. De uma maneira geral,
pode-se perceber que o governador foi poucas vezes mencionado, tendo
o cronista dado primazia ao cargo militar ocupado por Nassau e, em se-
gundo plano, à sua função política, narrativa não muito diferente do que
se encontrou em Valeroso Lucideno.

Na crônica de Calado, é mencionada que, apesar da perda do territó-


rio, a tenaz defesa luso-brasileira não desistiu e, até mesmo o Conde João
Maurício “experimentou a resistência grande dos nossos portugueses”53,
em referência às guerrilhas que não cessaram após a queda do Arraial do
Bom Jesus. E, se governador Nassau conseguiu acalmar os ânimos duran-
te aquele período, decerto não o fora por abandono da luta.

51 – COELHO, Duarte de Albuquerque. Memórias diárias da guerra do Brasil pelo


decurso de nove anos, começando em 1630 (manuscrito de 1644). 2ª ed. Recife: 1981,
p. 396-397.
52 – Ibidem. p. 461-462.
53 – CALADO, Frei Manoel. O Valeroso Lucideno e Triunfo da Liberdade (manuscrito
de 1648). 5ª ed. Recife: CEPE, 2004, p. 110.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):91-120, mai./ago. 2019. 111


Regina de Carvalho Ribeiro da Costa

Na verdade, o tempo do governo nassoviano aparece na crônica


como um momento de resignação do qual a resistência aproveitou para
preparar melhor suas forças para o levante final, isto é, para a guerra de
libertação do Brasil do inimigo invasor. Havia, portanto, um protagonis-
mo da defesa portuguesa também no relato do Frei Calado.

Entretanto, é inegável que o próprio Frei aproveitou particularmente


desse momento do governo de Nassau, no qual as forças de resistência
estariam em latência. Nesse tempo, o religioso acumulou fortuna entre os
holandeses por ter se tornado abastado senhor de terras, gado e escravos54,
além da amizade estreitada com o próprio Nassau, matéria a ser inves-
tigada no interim deste trabalho, nos capítulos que se seguem. Por ora,
pode-se pensar que a abordagem de outros aspectos do governo nassovia-
no, ultrapassando a visão das questões estritamente militares e políticas,
a exemplo da relação estabelecida com os colonos, possa dever-se aos
próprios traços que o Frei mantinha com o Conde.

Dessa maneira, diferentemente da narrativa de Duarte Coelho, Nas-


sau é referido sempre com muita cortesia por Calado, considerando-o
“benigno de natureza”55, sobretudo pelo tratamento dispensado pelo go-
vernador aos moradores, os quais o chamavam de “Príncipe” e “Excelên-
cia”, como denotou o Frei. O próprio cronista o invocava pelo título em
alguns trechos de seu relato, procurando dar justificativa por escrito de tal
procedimento: “[...] se eu o nomear com tal título, é por me acomodar à
comum linguagem que então corria nas bocas de todos; [...]”56.

Acerca da relação estabelecida entre Nassau e a povoação, Calado


salienta que foi iniciativa dos próprios nobres de Pernambuco presente-
ar o Príncipe com “mimos e regalos de consideração para granjear seu
beneplácito”57. Tratava-se, pois, de uma estratégia dos moradores para
conseguir a estima do governador inevitável, ressalvou o religioso. As-

54  –  RAMINELLI, Ronald. “Frei Manoel Calado.” In: VAINFAS, Ronaldo. Dicionário
do Brasil Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 248-9.
55  –  CALADO, Frei Manoel. Op. cit. p. 115.
56 – Ibidem. p. 116.
57 – Idem.

112 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):91-120, mai./ago. 2019.


O paradigma das “invasões holandesas”:
a interpretação de Francisco Adolfo de Varnhagen

sim, a crônica de Calado é recheada das decisões, das tratativas, dos ban-
quetes e dos relacionamentos do Príncipe Nassau do dia em que aportou
até a data de sua partida do Brasil, aspectos não muito ressaltados pelo
autor de História da Guerra Brasílica.

Na crônica de Brito Freire, o novo governador dos flamengos fez


frente aos resquícios da resistência, demonstrando-se não “menos gene-
ral na disposição do que soldado na peleja”58. A respeito da integração
das dimensões política e militar do novo governo holandês, considerou
o cronista:
Recolhido o Conde no Recife, mostrou que com assistir ao governo
militar se não esquecia de enobrecer o político. Deu armas diversas,
de acomodadas insígnias em escudos particulares para brasões de
honra e selos públicos, que não tiveram até aquele tempo as câmaras
das quatro capitanias, que chamam alguns de Pernambuco, outras do
Norte [...].59

Desse modo, Freire se referia às vilas da Província de Pernambuco,


à Itamaracá, à Paraíba e ao Rio Grande e à capacidade política de Nas-
sau. O cronista ressaltou que o Conde empreendera seus esforços basica-
mente em duas frentes: expandir o território conquistado, seja tentando
alcançar a Bahia, sem sucesso, seja ampliando na direção do Maranhão,
seja assenhorando-se das praças africanas; e garantir a prosperidade da
colônia quanto aos lucros advindos da cana, para tanto, era necessária a
estabilidade para a produção do açúcar, valendo-se da colaboração dos
moradores.

Não somente os moradores passaram a colaborar com os holande-


ses ou, mais especificamente, com a pessoa Nassau, mas também alguns
nativos, negros, padres e outros colonos. De acordo com Freire: “pela
notícia das nossas desgraças e pela diligência dos holandeses, se ouvia
já com grande respeito a fama do Conde João Maurício entre os índios

58  –  FREIRE, Francisco de Brito. Nova Lusitânia, História da Guerra Brasílica (ma-
nuscrito de 1675). São Paulo: Beca Produções Culturais, 2001, p. 241.
59 – Ibidem. p. 245.

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Regina de Carvalho Ribeiro da Costa

mais remotos”60. Assim que chegou, Nassau teria conseguido arrebanhar


por volta de seis mil homens, entre os quais quinhentos seriam índios e
negros61.

Embora não explicite de maneira clara, o cronista considera que


Nassau foi conseguindo formar uma rede de aliados, sobretudo, pela sua
atuação política perspicaz. Sobre o respeito devotado ao Conde, Freire
explicita: “trazia no mar e na terra mais ampla jurisdição sobre o que ocu-
pavam ou ocupassem na América as armas holandesas”62. Foi, exatamen-
te, graças à tal estratagema, que era garantida a necessária estabilidade ao
período nassoviano.

Com relação a Nassau, ainda, percebeu-se que Freire não o tratou


por Príncipe, como no caso da crônica de Calado, preferindo a designação
de Conde para referi-lo. Nesse sentido, o cronista acaba-o fazendo uma
única vez quando descreve a atitude de Nassau em relação aos guerri-
lheiros derrotados no ano de 1638, explicando ter sido tal chamamento
popular entre os homens do período:
O Conde de Nassau, a quem a lisonja vulgar dava o nome de príncipe,
deixou levar-se tanto dos afetos de homem, que permitiu, pois não
castigou nos seus, executarem desumanos os últimos estragos nos po-
bres moradores que viviam pela campanha: em cuja a inocência achou
a ira desafogo para a vingança.63

Nesses termos, é exaltada por Freire uma espécie de tolerância de


Nassau que decidiu por conceder salvo conduto a todos os que permane-
ceram sob o território holandês, desde que prestassem obediência imedia-
ta a si, como representante direto da Companhia das Índias. Apesar desta
passagem, o cronista não deixa de reclamar, em toda sua crônica, a face
violenta do governo flamengo no Brasil.

Assim, prevalece, no relato dos cronistas, a imagem de Nassau como


general militar, mas também é possível enxergar um reconhecimento ve-
60 – Ibidem. p. 254.
61 – Ibidem. p. 239.
62 – Ibidem. p. 239.
63–  Ibidem. p. 271.

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O paradigma das “invasões holandesas”:
a interpretação de Francisco Adolfo de Varnhagen

lado, sobretudo da parte de Calado e de Freire, de sua capacidade política.


Quanto a este aspecto, pode-se supor que tais passagens, já escondidas
nas crônicas, tenham sido conscientemente ignoradas por Varnhagen ao
construir sua interpretação historiográfica, uma vez que admitir qualquer
grandeza de um dos holandeses ou assumir a existência de herança dos
tempos nassovianos significaria, necessariamente, trair a causa que mais
defendia: a exaltação da colonização portuguesa.

6. O paradigma das invasões holandesas


A importância da obra História Geral relaciona-se ao seu pioneiris-
mo, nos interstícios do IHGB, ao construir o passado da Nação pensa-
do em sua totalidade. De uma forma geral, é uma das Histórias oficiais,
produzidas sob o patrocínio do Imperador, pelos membros do instituto.
No entanto, o livro de Varnhagen não encontrou uma boa acolhida à sua
época, não se tornando oficial de imediato.

Embora possa-se cogitar a existência de uma unidade ideológica por


parte dos membros do IHGB, graças ao comprometimento político com
a Coroa, essa unidade, definitivamente, nunca foi real. De modo inver-
so, sobressaía a tensão entre diferentes correntes, nas quais Varnhagen,
muitas vezes, representava uma voz dissonante. De acordo com Cézar,
“Varnhagen não se sentia bem no Instituto”64. Uma das causas desse des-
compasso refere-se à defesa de Varnhagen quanto às raízes portuguesas,
brancas e católicas para a formação da sociedade brasileira, negligencian-
do a questão da miscigenação, por exemplo.

De toda forma, Varnhagen submeteu formalmente sua História Ge-


ral ao Primeiro Secretário do IHGB, à época Joaquim Manuel de Mace-
do, para o exame da Comissão História do Instituto com a finalidade de
sua publicação. No ofício, o historiador oitocentista expressa o zelo pela
sua obra:

64  –  CEZAR, Temístocles. “Varnhagen em movimento: breve antologia de uma existên-


cia”. Op. cit. p. 181.

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Regina de Carvalho Ribeiro da Costa

Submetendo-o em todo caso à ilustrada censura dessa corporação, a


que me associei tão do coração, me daria por feliz se ela se dignasse
a protegê-la, perfilhando-a, como de um dedicado filho seu que é,
declarando embora não se responsabilizar por tudo que diz o autor,
como se procede geralmente acerca de todas as obras ou memórias
acadêmicas.65

Todavia, se frágeis eram as relações do historiador com os outros


membros do Instituto, o que pode justificar a recepção negativa da obra,
muito mais fortes foram seus laços com o Imperador. A proximidade com
D. Pedro II levou Varnhagen a apelar para a sua proteção em carta datada
de 14 de julho de 1857, na qual o autor justifica a relevância de seu livro
para a definição da identidade nacional:
[...] era para ir assim enfeixando-as / as províncias / todas e fazendo
bater os corações dos de umas províncias em relação a outras, infil-
trando a todos nobres sentimentos de patriotismo de nação, único sen-
timento que é capaz de desterrar o provincialismo excessivo, do modo
que desterra o egoísmo, levando-nos a morrer pela pátria ou pelo so-
berano que personifica seus interesses, sua honra e sua glória. [...].66

O recurso ao Imperador era muito utilizado por Varnhagen para re-


solver as cizânias internas no Instituto67 que, no entanto, não obteve efeito
imediato na questão da fria recepção do seu História Geral. Rejeitada
nos primeiros momentos pelos membros do IHGB, a importância da obra
de Varnhagen demorou bastante tempo para ser reconhecida, tornando-se
paradigmática ao longo do século seguinte.

De qualquer forma, a produção de Varnhagen não se limita ao grande


História Geral e, para o nosso objeto de estudo, interessa ainda a obra que
o autor publicou, em 1871, intitulada História das Lutas com os Holande-
ses no Brasil desde 1624 a 1654. O objetivo dessa obra é particularizar o

65  –  VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Correspondência Ativa. Coligida e anotada


por Clado Ribeiro Lessa. Rio de Janeiro: INL, 1961, p. 201-3.
66 – Ibidem. p. 242.
67  –  Varnhagen, monarquista, patriótico e católico, é um dos brasileiros que mais en-
viaram cartas ao imperador, que se configurava em uma espécie de seu interlocutor aca-
dêmico. Ver: CEZAR, Temístocles. “Varnhagen em movimento: breve antologia de uma
existência”. Op. cit. p. 162.

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O paradigma das “invasões holandesas”:
a interpretação de Francisco Adolfo de Varnhagen

período da denominada “invasão holandesa” pelo autor. O livro reproduz


a interpretação publicada em sua obra clássica em muitos aspectos, mas
inova sobretudo pelo recorte temporal, propondo um recuo de seis anos
antes da dominação holandesa em Pernambuco para explicar a infrutífera
passagem pela Bahia como parte da experiência invasora.

Dessa maneira, Varnhagen mantém seu compromisso com a verdade


histórica, conforme o modo de escrever história, admitindo seu posicio-
namento logo no prefácio da obra, digno de nota:
Escusado julgamos dizer que procuramos sempre fazer justiça a to-
dos, sem excetuar os próprios invasores. Não escrevemos, é verdade,
segundo se pode até depreender do título deste trabalho, como escre-
veria um holandês; pela simples razão de que não o somos, e de que
não está em nós mudar a nossa essência, nem deixar de ter patriotismo
e de ter fé.68

Assim, é pelo ponto de vista da sua Pátria, o Brasil do século XIX,


que Varnhagen se reporta à história da infância de seu país, que teria sido
o período colonial, para contar os fatos passados. Nessa narração, mere-
ceu uma atenção especial o momento em que, na sua interpretação, o ter-
ritório foi invadido por estrangeiros que ousaram dominar por um curto
prazo de tempo, numa experiência que ficou marcada, principalmente,
pela luta contra essa ocupação.

Nessa História, a resistência ganha ares heroicos, transformada em


defesa patriótica da terra, cujo líder Matias de Albuquerque é louvado e
justificado, inclusive, pelas faltas que fora acusado e preso à época. Se-
gundo o parecer do historiador:
Quando apareceram os desastres, não deixou de haver quem por eles
increpasse unicamente a Matias de Albuquerque [...]. A verdade, em
todo o caso, é que o novo governador, nos cinco meses, menos quatro
dias, que esteve no seu posto, antes de se apresentar a esquadra inimi-
ga, fez o quanto podia.69

68  –  VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História das lutas com os holandeses no Bra-
sil. Op. cit. p. 25.
69 – Ibidem. p. 73.

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Regina de Carvalho Ribeiro da Costa

Varnhagen constrói, então, uma história personificada de heróis e


de traidores, assumindo essa postura claramente: “procuraremos distin-
guir por meio de menções mais honrosas aos que melhor serviram, não
duvidando até de mostrar entusiasmo ante aos atos mais meritórios, nem
indignação na presença das crueldades ou abjeções”70.

Dentre os traidores, o mais simbolicamente apontado por Varnhagen


foi Calabar, culpado pela perda do território na fase inicial, quando, se-
gundo sua interpretação, tão aguerridamente Albuquerque movia todos
os esforços disponíveis para defender-se dos ataques e dos avanços dos
holandeses. Isso, porque a atuação de Calabar teria sido imprescindível
ao lado dos flamengos, como “seu fiel guia, a princípio por todos os con-
tornos do Recife, e mais tarde por toda a capitania e pela vizinhança”71.

Dessa forma, o mameluco teria sido responsabilizado por todos os


avanços holandeses no território a partir de sua traição até a conquista do
território. Tal construção foi tão seriamente legitimada pelo historiador,
que a traição de Calabar tornou-se um marco cronológico na sua história,
dividindo os acontecimentos em dois capítulos distintos: o primeiro inti-
tulado “Desde a Perda de Olinda até a Deserção de Calabar”, tratando da
eficácia da resistência antes de Calabar, que conseguira manter os flamen-
gos encurralados no litoral; e o segundo, “Desde a Deserção de Calabar
à Perda da Paraíba”, quando ocorre a derrota das forças de resistência
graças à traição de Calabar.

De modo que a atuação dos holandeses, ao menos nessa fase inicial


do conflito, definitivamente, não tem nenhum protagonismo na produção
de Varnhagen. A conquista refere-se tão somente à falta de socorros da
metrópole e à traição de Calabar. Reiterando o História Geral, em Histó-
ria das Lutas com os holandeses no Brasil, Varnhagen condenou Calabar
duplamente, isto é, não somente pelo fato de ter desertado das fileiras
portuguesas, cuja traição foi “origem de tantas lágrimas para a Pátria”,

70 – Ibidem. p. 26.
71 – Ibidem. p. 96.

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O paradigma das “invasões holandesas”:
a interpretação de Francisco Adolfo de Varnhagen

mas também pelo exemplo que dera, “prestando serviços na guerra contra
a sua Pátria”72, abrindo caminho para a deserção de outros súditos.

Nesse sentido, Domingos Fernandes Calabar, na visão de Varnha-


gen, quebrou o pacto de fidelidade com os portugueses, ao atuar no ter-
reno da guerra diretamente do lado holandês, seja como guia, seja como
mediador, seja como capitão; e, ao ensinar-lhes as táticas, especialmente,
a guerrilha. Em suma, Calabar foi Traidor, porque atuou, acima de tudo,
como Colaborador dos holandeses.

O episódio da captura do desertor também ganhou destaque nessa


obra, quando Varnhagen duvidou da fidelidade dos holandeses para com
Calabar, por ter sido o traidor entregue de forma pouco generosa, como
se os “invasores” tivessem apenas se servido do trânsfuga, mas não nu-
trissem apreço nenhum por sua pessoa, especialmente, por parte das au-
toridades.

Quanto à insurreição pernambucana, em História das Lutas com os


holandeses no Brasil, na história factual das pelejas diárias do confli-
to, sobressai a interpretação varnhageniana. Nessa matriz, avultam-se os
grandes nomes, especialmente, dos colonos que lutaram pela causa da
“libertação” de Pernambuco, com grande destaque para a atuação quali-
ficadamente patriótica de André Vidal de Negreiros, segundo Varnhagen.

No momento da história em que as posições se inverteram, isto é,


os luso-brasileiros tomaram a ofensiva e os holandeses recuavam na de-
fensiva, a união de todos os esforços pela causa contra o inimigo comum
fazia-se primordial e a leitura da obra de Varnhagen demonstra isso clara-
mente. Descrita de forma que a comunhão de forças parecesse inexorável,
em História da Lutas, o êxito da insurreição pernambucana foi coroado,
segundo o historiador, pela vitória dos “nossos” e expulsão dos “invaso-
res”.

Na sua escrita, emergiu a atuação dos chefes do exército restaura-


dor, recompensados pela gloriosa defesa de sua terra e condecorados,
72 – Ibidem. p. 94.

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Regina de Carvalho Ribeiro da Costa

nominalmente, pela história pátria varnhageniana. Além de André Vidal


de Negreiros, Francisco Barreto, João Fernandes Vieira e Antônio Dias
Cardoso; neste bojo, entraram, inclusive, os nomes do Capitão indíge-
na Antônio Felipe Camarão, a quem abundam os adjetivos de “célebre
varão índio”, “cortês”, “bem inclinado”, “comedido”, “bom-cristão”73; e
do Governador dos Pretos “Henrique Dias”, considerado um “valente”
guerreiro.

Da atuação dessas figuras, transformadas em heróis por Varnhagen,


reside a gênese do nativismo brasileiro, marcadamente na história da “in-
vasão holandesa”. Portanto, na matriz interpretativa varnhageniana, a his-
tória brasileira nasce em continuação da história portuguesa e, durante a
sua infância, isto é, o período colonial, mais precisamente na luta contra
os invasores, estaria o berço da brasilidade, aflorando o nativismo. Então,
da sua separação de Portugal, o Brasil emerge como um Estado que busca
suas raízes para consolidar-se forte e centralizado no período imperial.

Texto apresentado em março/2019. Aprovado para publicação em


junho/2019.

73  –  VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História das lutas com os holandeses no Bra-
sil. Op. cit. p. 248.

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Araújo Porto Alegre e a música no Brasil Império:
filosofia, história, ideias e projetos

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ARAÚJO PORTO ALEGRE E A MÚSICA NO BRASIL


IMPÉRIO: FILOSOFIA, HISTÓRIA, IDEIAS E PROJETOS
ARAÚJO PORTO-ALEGRE AND MUSIC IN THE BRAZILIAN
EMPIRE: PHILOSOPHY, HISTORY, IDEAS AND PROJECTS
Gilberto Vieira Garcia1

Resumo: Abstract:
O objetivo central desse artigo consiste em The main focus of the paper is to discuss the
tratar da importância da música para Manuel importance of music for Manuel Araújo Porto
Araújo Porto Alegre (1806-1879) – artista e Alegre (1806-1879), an artist and intellectual
intelectual que teve uma relevância particular who had a particular relevance within the first
dentro da primeira geração romântica no Brasil. romantic generation in Brazil. The paper is
O texto está divido em cinco partes. A introdu- divided into five parts. In the introduction, we
ção fundamenta as análises no campo da história analyze the topic from an intellectual history
intelectual, incluindo o conceito de colonialida- perspective and from the concept of coloniality
de, tendo como referências Carlos Altamirano, as theorized by Carlos Altamirano, Jorge Myers,
Jorge Myers, Ângela de Castro Gomes, Patrícia Ângela de Castro Gomes, Patrícia Hansen and
Hansen e Nelson Maldonado-Torres. A segunda Nelson Maldonado-Torres. In the second part,
parte busca compreender a posição particular we seek to understand Porto Alegre’s particular
ocupada por Porto Alegre entre os “homens de position among the men of letters during the
letras” do Brasil Império – diante dos seus in- Brazilian Empire, in view of his specific interest
teresses específicos para afirmar a importância in both affirming the importance of fine arts in
das belas-artes no desenvolvimento da socie- the development of the Brazilian society and
dade brasileira e na construção da identidade in constructing a national identity. In the third
nacional. A terceira parte contém análises so- part, we analyze his main ideas about music
bre as suas principais ideias sobre a música, em in philosophical and historical terms. In the
termos filosóficos e históricos. A quarta parte, fourth part, we highlight the great relevance
que destaca a grande relevância que a música that music had among his institutional projects.
teve entre seus projetos institucionais, enfatiza a To mention are his support for the renovation
reforma da Academia Imperial de Belas-Artes, of the Imperial Academy of Fine Arts, and the
o apoio para a manutenção do Conservatório maintenance of the Conservatory, apart from his
e o envolvimento direto na criação da “Ópera direct involvement in the creation of a “national
Nacional”. E, finalmente, há as considerações opera”. We conclude reaffirming that music
gerais, que não apenas reafirmam a importância played a major role in Porto Alegre´s life, and
que a música teve para Porto Alegre, mas, es- drawing attention to his importance for the
pecialmente, chamam a atenção da importância institutional development of this art in Rio de
desse sujeito no desenvolvimento institucional Janeiro in the nineteenth century.
dessa arte no Rio de Janeiro do século XIX.
Palavras-chave: história da música no Bra- Keywords: History of music in Brazil; history
sil; história dos intelectuais do Brasil Império; of the intellectuals in the Brazilian Empire;
colonialidade; conservatório de música, ópera coloniality; music conservatory, national opera.
nacional.

1 – Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Email: gilbertovieiramusica@


gmail.com.

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1. Introdução
O estabelecimento do Estado imperial no Brasil, a partir de 1822,
acompanhou um processo de organização institucional que foi impulsio-
nado pelas suas novas demandas como país recém-independente. Isso
abrangeu tanto a necessidade de manter e de reajustar os expedientes po-
líticos e administrativos do Estado, quanto, em particular, os desafios e os
paradoxos que envolveram as operações realizadas para forjar a identida-
de do país e os interesses em afirmar o seu espaço próprio junto às nações
civilizadas. Foi a partir desse período que o Rio de Janeiro, mantido como
capital do Brasil, consolidou então a sua imagem como um polo político e
cultural privilegiado, diante da concentração do aparato burocrático cen-
tral do Império e de algumas das mais importantes instituições científicas,
educacionais e artísticas do país, acumulando ainda as oportunidades de
emprego que, potencialmente, giravam em torno dessas esferas. Essa po-
sição central fez convergir para a cidade um grande fluxo de pessoas de
diferentes províncias, a partir do qual destacou-se um grupo específico
que era fortemente motivado pelo interesse em participar da política ou
exercer alguma função pública na capital do Império.

Segundo Myers2, tanto na América hispânica como no Brasil, um


sintoma dos processos de independência foi justamente o surgimento de
um novo tipo de “intelectual”, que se distinguia tanto do “letrado ecle-
siástico e evangelizador da primeira etapa colonial”, quanto do “letrado
barroco do século XVIII”. Carlos Altamirano destaca quatro pontos ge-
rais que nos ajudam a perceber o lugar diferenciado que essa elite inte-
lectual passou a ocupar nos espaços da política e da cultura na América
Latina, no século XIX. Segundo o autor, esse lugar seria definido por qua-
tro aspectos: uma rede social conectada por meio de instituições, revistas
e movimentos associativos; uma preocupação particular em produzir e
em transmitir informações “esclarecidas” sobre a história, a sociedade,
a natureza e o mundo transcendente; um vínculo direto com o que Régis
2 – MYERS, Jorge. Introdución al volumen I. Los intelectuales latinoamericanos desde
la colonia hasta al inicio del siglo XX. In: ALTAMIRANO, Carlos (diretor) e MYERS,
Jorge (editor do vol. 1). Historia de los intelectuales en América Latina: v. I. La ciudad
letrada, de la conquista al modernismo. Buenos Aires: Katz Editores, 2008, p. 29-50.

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Debray3 chamou de grafoesfera, isto é, a crescente dimensão do “espaço


público” determinada pelo poder da imprensa e dos livros; e, por fim,
as expectativas de que o alcance de seus projetos e suas ações se esten-
desse para além do campo das reflexões, repercutindo na arena política
e no destino de seus países. Foi a partir desse conjunto de pontos que se
realizou a construção histórica de um papel social dos intelectuais como
“apóstolos seculares, educadores do povo ou da nação”, como “heróis do
pensamento e da palavra”, em suma, como “visionários” “dedicados à
salvação cultural de seus povos” que, por meio de seus atos e de seus pro-
jetos, revelariam os “verdadeiros” interesses e perspectivas de progresso
e futuro de sua “pátria natal”4.

Como destacam Gomes e Hansen, o conceito de intelectual, numa


acepção mais ampla, deve compreender “os homens de produção de co-
nhecimentos e comunicação de ideias, direta e indiretamente vinculados
à intervenção político-social”, que, diante dessas funções, “podem e de-
vem ser tratados como atores estratégicos nas áreas da cultura e da po-
lítica”, mesmo que “historicamente ocupem posição de reconhecimento
variável na vida social”. Essa perspectiva de intervenção político-social
e a posição estratégia ocupada por esses atores podem se tornar tão mais
efetivas à medida que, para além de suas atividades de produção, eles se
proponham também a exercer a mediação intelectual, potencializando a
circulação e a apropriação de bens culturais, especialmente, diante das
questões que envolvem a comunicação de seus sentidos e a produção e/
ou alteração de seus significados – sejam esses bens literários, científicos
ou, no caso, musicais, o que ganha uma operacionalidade analítica, espe-
cificamente, a partir da categoria de “intelectuais mediadores”5.

3 – DEBRAY, Régis. Vida e Morte da Imagem. Petrópolis: Vozes, 1993.


4 – ALTAMIRANO, Carlos. Introducción general. In: ALTAMIRANO, Carlos (diretor)
e MYERS, Jorge (editor do vol. 1). Historia de los intelectuales en América Latina: v.
I – La ciudad letrada, de la conquista al modernismo. Buenos Aires: Katz Editores, 2008,
p. 9-27.
5  –  GOMES, Ângela de Castro e HANSEN, Patrícia Santos. Intelectuais, mediação cul-
tural e projetos políticos: uma introdução para a delimitação de um objeto de estudo. In:
GOMES e HANSEN. (Orgs.) Intelectuais mediadores: práticas culturais e ação política.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, p. 7-37.

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Na história do Brasil Império, observa-se a existência de uma elite


intelectual que, caracterizada por uma certa homogeneidade social, ideo-
lógica e de formação6, reunindo então bacharéis (educados em Coimbra,
em Paris, em São Paulo e Olinda), “doutores” (formados na Bahia e no
Rio de Janeiro) e aqueles que se enquadravam na denominação genérica
de “homens de letras” (poetas, literatos e periodistas). Nesse contexto, o
saber erudito, expresso pelos atos de eloquência, de fluência retórica e de
remissão à cultura europeia clássica e aos conhecimentos livrescos, afir-
mava-se como um elemento notório para evidenciar a distinção dos mem-
bros da “boa sociedade”. Diante disso, como destaca Letícia Squeff, “sob
certo ponto de vista, todos os representantes da ‘elite cultural’ do Império
– políticos, magistrados e funcionários públicos em geral – eram homens
de letras”7. Entretanto, torna-se importante pensar se haveria alguma ca-
racterística específica dessa categoria e qual seria ela. Considerando a
situação dos “bacharéis” que se dedicavam à política e ao funcionalismo,
a autora afirma que essa especificidade pode ser estabelecida, mesmo que
de maneira tênue, a partir da própria definição que os “homens de letras”
davam a si mesmos, como “homens que, a despeito das atividades díspa-
res que realizavam, tinham uma missão vinculada às artes e à literatura”.
Essa diferença estabelecia funções, lugares e interesses próprios aos “ho-
mens de letras”, diante da missão de “atuar no Império de modo a dotá-lo,
simultaneamente, de uma identidade própria e de uma ‘alta’ cultura”8.

A partir desse conjunto de elementos que caracterizam essa elite de


“intelectuais patriotas”, o conceito de colonialidade torna-se extremante
importante para problematizar e para analisar os seus projetos políticos-
-culturais. Como afirma Nelson Maldonado-Torres9, esse conceito refere-
6  –  CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 7ª edição, 2012.
7 – SQUEFF, Leticia. O Brasil nas letras de um pintor. São Paulo: Editora da Unesp,
2004, p. 58.
8 – Ibid., p. 58-59.
9 – MALDONADO-TORRES, Nelson. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al
desarrollo de un concepto. In: CASTRO-GÓMEZ, S. & GROSFOGUEL, R. (Org.) El
giro decolonial: reflexiones para uma diversidad epistémica más allá del capitalismo
global. Bogotá: Universidad Javeriana-Instituto Pensar, Universidad Central-IESCO, Si-
glo del Hombre Editores, 2007, p. 127-167.

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filosofia, história, ideias e projetos

-se à dominação cultural que fez parte dos processos de colonização e às


suas implicações sobre as formas de perceber, de explicar, de classificar,
de agir e de pensar assumidas pelos diversos sujeitos envolvidos nesses
processos, tanto nas metrópoles quanto nas colônias – incluindo-se as
elites intelectuais. Isso resultou na consolidação e na naturalização da he-
gemonia dos conhecimentos, dos saberes, dos comportamentos e dos va-
lores de determinadas culturas, notadamente aquelas de origem europeia,
em detrimento das que foram, desde então, consideradas como atrasadas
ou como inferiores – ou, ainda, relegadas ao silêncio e ao esquecimento.
Matriz hegemônica que, por sua vez, está absolutamente presente na base
das concepções que fundamentam os projetos políticos-culturais desses
“homens de letras” e nos seus “horizontes de expectativas”.

Assim, será, portanto, como parte dos projetos de construção de uma


identidade nacional e de afirmação de uma perspectiva civilizatória de
desenvolvimento sociocultural do país que, em termos gerais, serão ana-
lisadas as propostas defendidas por Manuel Araújo Porto Alegre entre as
décadas de 1830 e 1850, observando-o como um intelectual que exerceu,
durante esse período, um papel destacado entre os “homem de letras” no
Brasil Império. O objetivo específico é compreender quais eram os seus
interesses em afirmar a importância das belas-artes e, especificamente, da
música, para a sociedade brasileira, por meio de alguns de seus textos e de
projetos institucionais, em especial, o artigo Ideias sobre a Música (1836)
e o projeto de reforma da Academia Imperial de Belas-Artes, aprovado
em 1854 e implementado a partir de 1855.

2. Porto Alegre: um intelectual das belas-artes


Manuel de Araújo Porto Alegre (1806-1879) teve uma trajetória
absolutamente marcada pelo propósito de realizar um dos projetos mais
importantes para os intelectuais de sua geração: estabelecer os marcos de
fundação de uma cultura própria do país que, ao mesmo tempo, delimitas-
se as particularidades do Império e afirmasse o seu lugar entre as nações
civilizadas. A adesão ao Romantismo foi um elo central que agregou o
grupo de intelectuais ao qual Porto Alegre fazia parte – especialmente

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pela importância que os ideais de patriotismo e a valorização das “origens


nacionais” tiveram dentro da visão de mundo romântica. Assim, denomi-
nados historicamente como a “geração de 1830”, essa primeira geração
romântica brasileira, reunida a partir dessa década em torno de viagens
internacionais (notadamente à Paris), da organização de periódicos, da
atuação em algumas das principais instituições culturais e científicas da
capital brasileira, tinha como projeto maior consolidar o processo de in-
dependência para além do âmbito político-administrativo, estendendo-o
para a esfera cultural, por meio das artes, da literatura, das ciências e,
também, da educação.

Nesse projeto, a história ganhou um papel de destaque em razão da


importância que o compromisso de se debruçar sobre o passado colonial
e escrever a história do país passou a representar para esses “homens de
letras”, produzindo-se mitos de fundação e novas genealogias com o pro-
pósito de delinear o perfil da “nação brasileira” e, direta ou indiretamente,
dar legitimidade ao Estado. Articulados entre si, essa rede de intelectuais
produziu uma série de pesquisas, de revistas literárias e científicas, de
peças de teatro e de livros, reivindicando a prerrogativa de estabelecer as
referenciais primordiais para compreensão das particularidades do país e
apontar rumos que deveriam ser ideais para o seu progresso.

Assim, imbuídos dessa ambiciosa missão, esses intelectuais conse-


guiram de alguma forma convergir as suas ideias e as suas ações em defe-
sa de um projeto comum: “fundar uma nova escola artística no Brasil”10.
Diante disso, tendo como propósito afirmar o potencial civilizatório e a
importância das artes no processo de construção da nacionalidade, Porto
Alegre ocupava, contudo, um lugar próprio entre esses intelectuais. Esse
lugar se definiu a partir da sua formação nas belas-artes; dos seus interes-
ses específicos por esse ramo; e, sobretudo, dos esforços empreendidos ao
longo de sua trajetória para tentar assegurar o desenvolvimento das belas-
-artes no país, seja atuando como artista, seja ocupando cargos e realizan-

10 – SQUEFF, op. cit., p. 69.

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filosofia, história, ideias e projetos

do projetos em algumas das principais instituições culturais, científicas e


educacionais do Império.

Três dessas instituições merecem destaque. O Colégio Pedro II,


marco inaugural do ensino secundário brasileiro, que foi idealizado para
representar qual deveria ser o padrão nacional desse nível de ensino,
configurando-se como instituição destinada aos jovens da “boa socieda-
de” com o objetivo de formar as elites intelectuais do Brasil – instituição
na qual Porto Alegre exerceu função de mestre de desenho entre 1838 e
1859. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), onde atuou
como orador durante 14 anos, desde 1838, aprofundando as suas inves-
tigações sobre o “passado artístico nacional” em prol da construção de
uma história das artes brasilenses, privilegiando, sobretudo, a pintura e
a música. Por fim, a Academia Imperial de Belas-Artes (AIBA), onde,
além de ter atuado como professor (1838-1848), foi também o seu diretor
(1854-1859), tentando realizar um dos seus maiores empreendimentos,
concebendo e implementando a partir de 1855 um amplo projeto de re-
forma da academia, que, dentro outros aspectos, destinava à música um
espaço destacado.

Diante do interesse específico de compreender justamente a impor-


tância dessa arte entre as reflexões e os projetos de Araújo Porto Alegre,
um documento que se mostra primordial consiste no seu ensaio dedicado
exclusivamente à música, que faz parte do primeiro número da Nitheroy:
revista brasiliense de sciencias, lettras e artes, intitulado: Ideias sobre a
Música.

3. Música – as ideias, a história e a “escola fluminense”


Publicada no ano de 1836, em Paris, tendo como idealizadores Porto
Alegre, Gonçalves de Magalhães e Francisco de Salles Torres Homem,
a Nitheroy representou “um divisor de águas na história da cultura bra-
sileira”. Considerada o marco inicial do romantismo literário no Brasil,
a revista tinha como objetivo “não apenas definir uma individualidade,
« o Brasil », mas também fundar uma cultura apresentando-a como algo

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que existia, de forma latente, desde os tempos coloniais”11. Compreendi-


da em conjunto com outras duas revistas publicadas pelo mesmo grupo,
Minerva Brasiliense: Jornal de Ciências, Letras e Artes (1844-1845) e
Guanabara: Revista mensal Artística, Científica e Literária (1849-1856),
essas três publicações expressavam a essência do projeto desse grupo de
letrados e de seus colaboradores que, juntamente com o propósito de se
debruçar sobre o passado e construir uma “história da cultura brasileira”,
visava também à contribuição com o desenvolvimento futuro do país,
procurando, para tanto, articular ideias e conhecimentos que pudessem
orientar os rumos de progresso do Império, a partir de uma concepção
utilitarista da ciência, da cultura e das artes, na qual a música também
fazia parte.

3.1. Perspectiva filosófica – a importância ético-pedagógica


O ensaio Ideias sobre a música é constituído a partir de duas linhas
de argumentação que, tendo sempre a Europa como ponto central de re-
ferência, se entrelaçam no decorrer de todo o texto: uma linha filosófica e
outra histórica. Preocupando-se em definir e em justificar conceitualmen-
te a música e assumindo uma posição que pode ser totalmente analisada a
partir do conceito de colonialidade, Porto Alegre tece uma complexa rede
articulando algumas concepções produzidas na Antiguidade clássica, na
Escolástica e no Iluminismo. É a partir disso que ele reitera então uma
série de associações éticas e estéticas entre melodia, harmonia musical e a
harmonia do universo e da natureza, bem como entre os hábitos, os costu-
mes das sociedades e aqueles que seriam considerados os mais sublimes
e distintos sentimentos humanos – sem deixar de mencionar, sobretudo, a
importância da música como índice civilizatório.

De acordo com Enrico Fubini, é no pensamento grego que se encon-


tram as bases do que foi definido historicamente como “civilização musi-
cal”, privilegiando-se uma série de discussões acerca da relevância ética
da música na sociedade, tanto em termos positivos, quanto negativos.
É importante ter em vista que o conceito de música na cultura antiga é
11 – SQUEFF, op. cit., p. 66-67.

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filosofia, história, ideias e projetos

muito mais abrangente do que a sua concepção como um ramo específico


das artes, tendo como referência a ideia de que Musike, no mundo grego,
significava um conjunto de atividades que também incluía a ginástica, a
dança, a poesia e o teatro12. Assim, considerando-se a própria diversidade
de contextos e ocasiões em que a música se apresenta na vida social, a
questão sobre as possibilidades e os limites dos seus efeitos socioeduca-
tivos configurou-se como um tema constante na problemática histórica
que abrangeu as discussões sobre a sua relevância ética e sobre a sua
própria concepção como obra de arte13. A partir dessa questão, segundo
Fubini, que historicamente se tornou possível defender, em sentido lato,
uma determinada concepção utilitarista ou instrumental da música, diante
da afirmação dos seus poderes educacionais14.

No ensaio de Porto Alegre, Platão e Pitágoras são destacados como


referências primordiais. O fato se constitui tanto como um recurso re-
tórico para dar legitimidade ao seu discurso, quanto como um indício
das bases sobre as quais a sua concepção musical se apoia, convergindo
para a observação de Fubini acerca da posição que esses dois pensadores
ocupam como referência fundamental na história do pensamento ociden-
tal sobre a música. De acordo com Porto Alegre, ambos “foram músi-
cos, e não deslembraram no meio das altas contemplações da natureza,
de espraiarem a mente nos celestes dotes da melodia”, conjecturando,
então, que “o sentimento musical” fosse o criador dos mais “sublimes
pensamentos e, sem dúvida, a chave que abriria a escala das harmonias
celestes”15.

O conceito de harmonia tem uma importância central nas especula-


ções pitagóricas, sobretudo, pelos seus significados físicos e metafísicos.
De maneira sucinta, partindo do princípio de que as relações harmônicas

12  –  FUBINI, Enrico. O mundo antigo. In: FUBINI, E. Estética da música. Lisboa: Edi-
ções 70, 2008, p. 69-84.
13  –  GOEHR, Lydia. The historical approach. In: GOEHR, L. The Imaginary Museum
of Musical Works: an essay in the philosophical of music. New York: Oxford University
Press, 2007, p. 89-286.
14 – FUBINI, op. cit., p. 70.
15  –  PORTO ALEGRE, 1836, p. 169.

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entre os sons podem ser expressas em números, de forma evidente e tan-


gível, os pitagóricos tomam a música como um modelo a partir do qual
seria possível compreender a própria natureza da harmonia universal.
Nesse sentido, a música torna-se um conceito abstrato, à medida que, para
além dos sons produzidos pelos instrumentos e pela voz, ela pode ser con-
cebida como um estudo teórico, não apenas dos intervalos entre as notas
musicais, mas também de uma música inaudível produzida pelos astros
que giram no cosmos, segundo leis numéricas e proporções harmônicas.
Diante disso, como destaca Fubini16, a partir das ideias defendidas por
Pitágoras e seus discípulos, se estabelece, então, uma fratura que terá um
peso determinante em todo o desenvolvimento sucessivo da concepção
musical no ocidente, separando, de um lado, “a música puramente pensá-
vel”, especulativa e teórica e, de outro, “a música audível”, “meramente”
sensorial e prática.

Como desdobramento dessas reflexões sobre harmonia, outro con-


ceito importante a ser destacado é a catarse, especificamente pelo caráter
ético-pedagógico que lhe será atribuído de maneira sistemática a partir do
pensamento pitagórico, tendo em vista a própria definição de um conceito
de ethos musical. Nessa perspectiva, a música passaria, assim, a ter um
valor especial, desde que o seu cultivo estivesse a serviço da educação,
seja para potencializar virtudes, seja para corrigir vícios e quaisquer incli-
nações consideradas socialmente desviantes.

Ambos os conceitos também terão uma função essencial nas espe-


culações de Platão sobre a música que, aliás, representa um dos focos
centrais de sua filosofia. Contudo, como observa Fubini17, não é fácil re-
construir as suas ideias sobre essa arte. Tal questão deve-se não somen-
te por conta da complexidade e da abrangência de suas reflexões, mas,
sobretudo, pelo lugar ambíguo que a música ocupa em seus diálogos,
oscilando entre uma exaltação incondicionada e uma condenação radical.
De modo breve, essa oscilação espelha diretamente a fratura que fora
aberta entre uma música especulativa, de caráter filosófico e “científico”
16 – FUBINI, op. cit..
17 – Ibid.

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Araújo Porto Alegre e a música no Brasil Império:
filosofia, história, ideias e projetos

e uma outra que seria apenas objeto dos sentidos e que, por sua superficia-
lidade e seu suposto caráter desvirtuante, deveria ser sempre rechaçada.
Com base nos pensamentos de Platão, “as músicas boas” seriam aquelas
consagradas pelo poder da tradição. Em contrapartida, as “músicas más”
teriam a mera função imediata de servir exclusivamente ao deleite e ao
passatempo. Reconhecendo, nessa dicotomia, uma atitude conservadora,
para Fubini:
[...] seria um contrassenso, do ponto de vista platônico, fazer altera-
ções e inovações numa arte, aliás, numa ciência, cujos princípios são
estáveis e eternos como o mundo. Conservar a tradição significa, por
conseguinte, conservar o valor de verdade de lei da música.18

Diante disso, a música, enquanto um saber prático, uma técnica, só


deveria ter algum valor desde que o prazer por ela produzido não subver-
tesse as suas leis naturais, nem as tradições e os princípios ético-pedagó-
gicos da “boa sociedade”. Somente nesse caso, a música, por seus efeitos,
poderia constituir-se então como uma ponte de acesso entre a realidade
sensível, os dotes das melodias e das harmonias celestes e os sentimentos
e pensamentos mais sublimes. Para tanto, a educação seria o único instru-
mento capaz tratar institucionalmente da fratura aberta entre essas duas
“dimensões musicais” – a especulativa e a prática. Fratura que, contudo,
como destaca o autor, se acentuará ao longo dos séculos, atualizando e
reinventando a distinção entre uma música puramente pensável, associa-
da à filosofia, às matemáticas e, mesmo, às ciências, e outra, realmente,
ouvida e executada, vinculada às artes manuais e aos ofícios e profissões
técnicas. Conceitos e ideias que, por sua vez, foram incorporados às re-
flexões a aos argumentos desenvolvidos por Porto Alegre sobre as belas-
-artes e a música, como poderá se observar ao longo desta discussão.

3.2. O amor, o cantar e a educação das sensibilidades


Logo na primeira frase do ensaio, Porto Alegre parte da premissa
de que “o amor é, sem dúvida, o inventor da Música”. Envolto em um
ideal de pureza originária e de autenticidade, esse sentimento faria da

18 – Ibid., p. 76-77.

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linguagem musical um meio de transcendência à vida “mundana”, aos


seus excessos e as suas superficialidades. Partindo dessa premissa, o au-
tor reconhece na música um poder animista a partir do qual, preservada
a sua suposta essência, seria possível realizar a mais perfeita harmonia
e “comunhão do homem, de suas paixões e dos elementos naturais”19.
Assim, como afirma Porto Alegre, se, por um lado, “toda natureza é uma
orquestra, que, em suas variadas escalas, reproduz harmonias diferentes
nas fibras do homem sensível”, por outro, “a música é para a sociedade
o que a boa distribuição de luz é para um quadro, ambas dão vida e alma
às coisas a que se aplicam”20. Uma concepção bastante significativa, so-
bretudo, por chamar a atenção para o poder “universal” da música sobre
a sensibilidade e para a importância do seu “bom uso” na formação do
homem e da sociedade, dando-lhes “vida” e “alma”.

Como observa Pereira21, os argumentos que o autor apresenta nesse


ensaio baseiam-se também nas ideias de Rousseau; a quem Porto Ale-
gre cita de maneira breve, destacando justamente os poderes anímicos da
música, ao afirmar que o filósofo e compositor genebrino “substituía os
encantos da natureza, nos dias tempestuosos, pelos encantos da Música,
e aos sons da melodia animava a estátua de Pigmaleão”22. Uma afirmação
que, fundamentalmente, reitera a ideia de que a música exerceria uma
espécie de papel educacional intrínseco, seja pelo seu poder para mo-
dular os encantos intempestivos da natureza, seja também pela função
de suas melodias para animar e dar sentido às expectativas e aos modos
de percepção da realidade. De acordo com Pereira, Porto Alegre ratifica
um ponto central da concepção rousseauniana expressa na ideia de que
“onde há língua, há poesia; onde há poesia, há Música”, não deixando de

19  –  KÜHL, Paulo M. A música e suas história na obra de Porto Alegre. In: KOVENSKY,
JULIA & SQUEFF, LETICIA (orgs.). Araújo Porto Alegre: singular & plural. São Paulo:
IMS, 2014, p.163-175.
20  –  PORTO ALEGRE, 1836, p. 163-164.
21  –  PEREIRA, Avelino Romero Simões. Uma “empresa útil, elevada e patriótica”: os
intelectuais e o movimento pela Ópera Nacional no Rio de Janeiro oitocentista. In: SAR-
MIENTO, Érica; CARVALHO, Marieta Pinheiro de; FLIER, Patrícia (Orgs.). Movimen-
tos, trânsitos e memórias: temas e abordagens. Niterói: ASOEC, 2016, p. 86-97.
22 – Ibid., p. 173.

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Araújo Porto Alegre e a música no Brasil Império:
filosofia, história, ideias e projetos

destacar as virtudes morais e civilizatórias dessa última ao afirmar que “o


homem que detesta a Música é de mau caráter, tem um coração de fera
[e, portanto, sentimentos indomados ou desarmônicos]”. Como destaca
Enrico Fubini, Rousseau considerava a linguagem musical como aquela
“que fala mais de perto ao coração do homem”. Assim, compreendendo-
-a como uma linguagem privilegiada dos sentimentos, para ele, a relação
entre a arte dos sons e a poesia constituiria a sua essência expressiva mais
primordial e autêntica – essência, por sua vez, que se manifestaria de ma-
neira plena, a partir do poder originário da melodia e, fundamentalmente,
do canto23.

Porto Alegre é tributário das mesmas ideias de Rousseau, defenden-


do, inclusive, o argumento de que a melodia, como um meio de expressão
“natural” dos sentimentos, seria por si o elemento musical de maior im-
portância, a despeito da função que harmonia exercia na música, consi-
derada, assim, apenas como uma construção lógica e, a partir desse ponto
de vista, puramente técnica e artificial. Segundo o próprio Porto Alegre:
“a ciência forma a harmonia, mas a melodia é filha da sensibilidade”24.
Sensibilidade e melodia que tem como vetor natural o canto, pois, como
conclui o autor, após fazer uma extensa análise da presença da música nas
“nações civilizadas”: “a sociedade inteira está invadida pela Música, e
aquele que não possui semelhante predicado, mesmo julgando-se menos
feliz, não deixa de cantar. [...] triste d’aquele que não ama a Música”25.

Diante disso, de maneira provocativa, Porto Alegre então faz a se-


guinte indagação: “a música nasceu com a Poesia, e quando estas gêmeas
operam juntas quanta potência não desenvolvem?”26. Questão cuja res-
posta, em verdade, o autor apresenta em um momento anterior do texto,
ao advertir que “a música não desceu do céu somente para dar-nos sons
melodiosos, ou ferir-nos os sentidos com a riqueza da harmonia [celes-
tial]”; pois ela tem uma função sublime: ela é a “mola mestra” que des-

23 – FUBINI, op. cit., p. 119.


24 – PORTO ALEGRE, op. cit., p. 178.
25 – Ibid., p. 172.
26 – Ibid., p. 169.

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Gilberto Vieira Garcia

perta os sentimentos de amor à Pátria e “faz girar em nossa alma [...] os


encantos da Religião”27. Assim, conjugando-se com poesia desde suas
origens, constituindo-se como uma linguagem e, essencialmente, como
um meio privilegiado de educação das sensibilidades, é que música as-
sumirá uma função bastante clara, na perspectiva defendida por Porto
Alegre, para despertar e para cultivar certos valores morais, patrióticos e
religiosos, a partir da pureza dos sons de suas melodias e, especialmente,
do potencial do canto e de seus conteúdos.

3.3. Música: na cadência da “história universal”


A outra linha que perpassa o texto tem um viés histórico que se des-
dobra em duas partes: uma história “universal” da música e uma história
da música no Brasil. A primeira parte apresenta um panorama histórico
da tradição da música na civilização ocidental, desde a antiguidade, pas-
sando pela “Idade Média”, até a era Napoleônica. Em sintonia com a
noção da história como “mestra da vida”, o autor afirma ser necessário
deixarmos “a nossa sociedade” para que, “retrogradando ao passado”,
pudéssemos, assim, aprender “como a tradição nos apresenta esta arte
encantadora [...]”28. Isso, segundo o próprio Porto Alegre, ganha sentido
pleno quando podemos constatar, ao nos debruçarmos sobre a história,
que a música sempre representou “um grande papel na cena social”, seja
na infância, seja na prosperidade das nações29 – assumindo sempre uma
perspectiva que naturaliza a tradição, o passado e a história das nações
europeias como o centro de referência primordial.

Assim, a música, em conformidade com essa matriz, era compreen-


dida, ao mesmo tempo, como um índice de civilidade e como um vetor
de civilização, constituindo-se, então, como um meio privilegiado para
impulsionar o “progresso histórico”, tendo como pressuposto a importân-
cia dos seus “poderes naturais” na educação das sociedades e no desen-
volvimento das grandes nações. Uma concepção que procura evidenciar,

27 – Ibid., p. 164-165.
28 – Ibid., p. 165
29 – Ibid., p. 168.

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Araújo Porto Alegre e a música no Brasil Império:
filosofia, história, ideias e projetos

fundamentalmente, as funções da música junto ao processo civilizatório


das sociedades no ocidente, como Porto Alegre destaca logo na epígrafe
do ensaio, ao citar um trecho do poema “O Gênio e a Música”, de Gon-
çalves de Magalhães, reverenciando a antiguidade clássica e afirmando a
importância educacional dessa arte na formação dos bons costumes, entre
“cultos”, “guerreiros” e “bárbaros”.

3.4. A música no Brasil: no compasso da civilização


Após afirmar que “o caráter dos povos, manifestando-se em suas
produções artísticas, realça-se salientemente na Música”, Porto Alegre
irá, enfim, definir o papel que ela representa na história das artes no Bra-
sil30. Tomando como pressuposto que esse “caráter” é forjado ao longo
da história de cada povo, o autor inicia a segunda parte do texto, inti-
tulada “Sobre a Música no Brasil”, exaltando justamente a importância
determinante da ação dos colonizadores e da “superioridade” europeia no
processo de desenvolvimento da cultura no país, considerando-os como
“astros luminosos” que, estendendo “seus raios benéficos sobre [as suas]
vastas regiões”, teriam sido os responsáveis por aumentar “a intensidade
do gênio nacional, fornecendo-lhe uma nova estrada de inspirações”31.
Essa perspectiva se evidencia ainda na primeira parte do texto, quando o
autor, mostrando-se extremamente indignando com a ingratidão da pos-
teridade para com o papel de Anchieta e Nóbrega no Brasil colonial, des-
taca a ideia de que a música teria feito muitas conquistas na nossa pátria,
junto ao processo de civilização dos nativos, sem fazer, nesse momento,
qualquer menção sobre a música indígena. Essa ideia se completa na par-
te seguinte, onde Porto Alegre afirma que:
No estado selvagem, e de barbaria, a Música não é mais do que uma
assuada continuada; o canto se apresenta em forma de uivos, e a or-
questra como um tumulto d’armas, mas, logo que um pequeno grau
de civilização se introduza, ela muda de caráter, e isto se observa nos
selvagens do Brasil.32

30 – Ibid., p. 173.
31 – Ibid., p. 174.
32 – Ibid., p. 175.

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Gilberto Vieira Garcia

Assim, após classificar as práticas musicais indígenas como sinô-


nimo de selvageria, de desordem, de algazarra, de gritaria e de ruído,
os seus argumentos se encerram com a conclusão de que foram, então,
os “proscritos e aventureiros de Portugal [que] deram princípio à Nação
Brasileira”33. O fato representa, mais uma vez, a exaltação do papel do
europeu e do processo colonizador como o fator primordial não apenas
para a “orquestração” de nossa “música”, mas, para a civilização dos sel-
vagens do país, e, fundamentalmente, para superar o que para ele e, de
maneira geral, para o grupo de intelectuais brasileiros da “geração de
1830”, representava o estado de barbárie e “descompasso” de nossa cul-
tura.

A utilização da música para distinguir os diferentes níveis de desen-


volvimento sociocultural, constituindo-se como uma das bases de seus
argumentos, é explicitada também em várias outras passagens dessa parte
do ensaio dedicada ao Brasil. Isso se percebe, por exemplo, quando Porto
Alegre apresenta o caminho que a música percorreria, “desde a choupana
até o paço, desde a praça da aldeia até o teatro da Capital”34, como um
caminho ascendente em direção ao progresso. Ou, ainda, em um trecho
posterior, no qual o autor afirma que “nas mais províncias do Brasil, a
Música é cultivada desde a senzala até o palácio; [onde] de dia e de noite
soa a marimba do escravo, a guitarra, e a viola do capadócio, e o piano
do senhor35. Trechos que tornam evidentes a sua visão hierárquica de mú-
sica, ao apresentar, por um lado, uma escala de evolução, associando os
instrumentos citados à determinada posição e estigma social que compete
a cada um daqueles que os executam, e, por outro, ao destacar o papel da
capital do Império e do governo sediado no paço como vetores centrais
para o progresso da música e, em termos mais amplos, da cultura no país.

Em sequência, após fazer uma exposição sobre atuação dos climas,


do solo e, mesmo, do “tipo fisionômico” sobre a música e as artes, Porto
Alegre trata da influência específica que ela poderia exercer sobre os habi-

33 – Ibid., p. 179.
34 – Ibid., p. 175.
35 – Ibid., p. 180.

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Araújo Porto Alegre e a música no Brasil Império:
filosofia, história, ideias e projetos

tantes dos diversos lugares de uma mesma nação. Assim, após argumen-
tar que “a Música na Bahia é o [voluptuoso] lundum; a Música mineira,
a [grave] modinha” e que Santa Catarina e Pernambuco “apresentam ho-
mens cabais em gênio musical” (pela aprendizagem de seus fundamentos
teóricos); por fim, o autor reafirma a centralidade que o Rio de Janeiro,
como capital do Império, deveria exercer na definição das referências so-
cioculturais para todo o restante do país. Isso, certamente, desconsiderava
a presença massiva da modinha na cidade e do “violão capadócio” que,
geralmente, servia como base para o seu acompanhamento; bem como
das danças e das músicas afro-brasileiras, com seus lundus, seus batuques
e umbigadas, com suas marimbas, agogôs e tambores, notadamente, pre-
sentes na capital e que seriam também determinantes para constituição da
própria música urbana brasileira36.

A partir desses silenciamentos, a cidade do Rio de Janeiro retratada


por Araújo Porto Alegre seria então o lugar “cheio da melhor sociedade
Brasileira”, “onde os melhores talentos de Minas Gerais, e de outras Pro-
víncias” vieram “exercitar sua arte”, onde a “Capela Imperial, quando foi
Real, se ufanava à face do mundo como um dos melhores conservatórios
de Música e, sem dúvida, a melhor orquestra do mundo no santuário”. Isso
incluía ainda um “Teatro de canto, e dos mais belos que se podiam ver”,
isto é, o teatro São Pedro de Alcântara. Teatro e Capela que, na sua vi-
são, reproduzindo “as mais belas composições da Europa”, não poderiam
deixar de “influir uma grande abalada no gosto musical”37, reafirmando
não somente a superioridade da cultura musical europeia, mas também o
papel pedagógico que essas instituições deveriam ter na formação do que
seria compreendido como “bom gosto” musical no Brasil.

3.5. A “escola fluminense”


Para Porto Alegre, o período de maior desenvolvimento da música
no país teria ocorrido entre a transferência da corte portuguesa para o Rio

36  –  ABREU, Martha. O Império do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio
de Janeiro, 1830-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo: Fapesp, 1999.
37  –  PORTO ALEGRE, 1836, p. 181.

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de Janeiro (1808-1821) e o fim do Primeiro Reinado (1822-1831), quando


se iniciou uma fase de declínio a partir das regências (1831-1840). Diante
disso, preocupado em retratar uma história sobre a evolução da música
no Brasil, o autor, assumindo como marco fundador a ação dos coloniza-
dores, e especialmente da Igreja, apresenta, então, o Padre José Maurício
Nunes Garcia (1767-1830) como representante máximo do apogeu desse
processo. O mulato que foi reconhecido como um dos mais importantes
músicos, compositores e mestres da primeira metade do século XIX; de-
nominado por Araújo de Porto Alegre como o “Mozart Fluminense” – o
“astro radiante, que na Colônia, no Reino e no Império espalhou seus
raios preciosos sobre os Brasileiros, sempre potente, sempre grandioso”,
mesma que tenha permanecido “sempre pobre!”38.

Apesar de aparentemente contraditório, o destaque da grandeza mu-


sical de José Maurício e também da sua condição de pobreza não foi for-
tuita, o que faz parte de uma discussão mais geral sobre o valores socio-
culturais, e mesmo políticos, das belas-artes no Brasil, que se apresenta
como uma temática constante nos escritos de Araújo Porto Alegre. Um
texto central dedicado especificamente a esse assunto são os Apontamen-
tos sobre os meios práticos de desenvolver o gosto e a necessidade das
Belas-Artes no Rio de Janeiro, realizados em 1853. Fundamentalmente,
o texto tem duas ideias básicas: a sociedade brasileira dá pouca impor-
tância às artes e o governo deveria ter um papel central para incentivar o
seu cultivo, a sua realização e o seu desenvolvimento contínuo. É a partir
dessas ideias que o autor chega a afirmar, por exemplo, que, mesmo que
Leonardo da Vinci ou Michelangelo nascessem no Brasil, pouco fariam
por aqui, porque “as belas-artes ainda não fazem parte da nossa existência
social, não entram nos grandes pensamentos nacionais”, haja vista que
“não herdamos esse amor do belo que tanto distingue as nações que to-
marão a dianteira na marcha da civilização”39. Questões que não se apre-

38 – Ibid., p. 183.
39  –  PORTO ALEGRE, M. A. Apontamentos sobre os meios práticos de desenvolver o
gosto e a necessidade das Bellas Artes no Rio de Janeiro, feitos pela ordem de S.M.I D.
Pedro II, Imperador do Brasil, 1853. IHGB, coleção: Araújo Porto Alegre, lata: 43, pasta:
13, p. 1.

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Araújo Porto Alegre e a música no Brasil Império:
filosofia, história, ideias e projetos

sentam de maneira muito diferente no caso da arte dos sons, pois, como
conclui o autor, ainda em 1836: “Entre nós ama-se em delírio a Música,
mas despreza-se de alguma maneira os músicos”40.

Diante de seus anseios por evidenciar a importância dessa arte e dos


seus principais expoentes para história e o destino do país, José Maurício
foi um personagem central para Porto Alegre, servindo não apenas para
afirmar a primazia de uma “Escola Fluminense” em termos de arte no
Brasil, mas, também, para construir uma tônica que tornava possível es-
tabelecer relações históricas em dois sentidos. Por um lado, para definir
o nosso lugar em relação à história da música europeia, equiparando-o
ao Mozart, por outro, para estabelecer uma linha de continuidade entre
as “fases” da história da música no Brasil, que teria sido “inaugurada” a
partir da colonização, passando pelo período joanino e pelo I Reinado,
desenvolvendo-se num fluxo de ascensão que supostamente se encontra-
va ameaçado diante do “turbulento” contexto das Regências – tomando
como base a própria vida do padre que, em certa medida, perpassa os três
primeiros períodos destacados. O desenvolvimento desses argumentos se
desdobra em alguns outros textos escritos pelo autor, valendo mencionar
o artigo publicado em 1848, no periódico Íris, denominado “A música
sagrada no Brasil”. Nesse artigo, lamentando profundamente a morte do
José Maurício em 1830, a extinção da orquestra da Capela Imperial em
1831 e uma crescente profanação da música sacra, que passava então a in-
corporar o “sensualismo” e as “voluptuosas melodias da ópera italiana”,
Porto Alegre conclui que, a partir do período regencial:
O provisório, o terrível provisório [...] e as oscilações constantes em
matéria de governo, muito influíram para que as artes, remate da civi-
lização, se aprofundassem num abismo de trevas, e deixassem a estra-
da luminosa – principalmente a música –, que haviam trilhado em dias
fortunados, e onde conquistaram palmas e laureis.41

Assim, de acordo com o autor, se, no período Regencial, todo o im-


pério do Brasil pudesse ser comparado a uma orquestra, seria como “uma
40  –  PORTO ALEGRE, 1836, p. 180.
41  –  PORTO ALEGRE, Manuel Araújo. A música sagrada no Brasil. In: Íris. Rio de
Janeiro: Typographia do Íris, tomo 1, 15 de fevereiro 1848, p. 49.

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orquestra onde a voz política mesquinha, limitada e fria, como o egoísmo


que a ditava, espancava todas as ideias arquétipas, todas as tendências ao
belo, e todos os voos para as regiões sublimes”. Um período que, nes-
sa perspectiva, fora marcado por uma política “egoica”, fragmentária e
descentralizadora, que teria posto em descompasso e em desarmonia a
marcha de desenvolvimento do país para a conquista de uma cultura su-
postamente “universal”, modelar e arquetípica, inaugurando uma fase na
qual o Império e as artes no Brasil “entravam na menoridade”42.

Assim, em meio à “disparatada confusão” estabelecida durante esse


período, à provisoriedade de suas políticas e às oscilações de seus gover-
nos, procurando evidenciar a existência de um elemento de continuidade
e de progressão que tenha conseguido atravessar o conturbado contexto
das regências, Porto Alegre afirmava que “da escola de José Maurício res-
tavam muitos hábeis professores e alguns contrapontistas”43. Uma afirma-
ção que, por um lado, tem como predicativo uma crítica severa aos músi-
cos que, diante das circunstâncias da crise, “arrastados pelo turbilhão de
disparates da moda”, teriam perdido “a razão e os nobres preceitos dos
mestres”, profanando a música sacra para atender ao gosto “ligeiro” das
plateias. E que, por outro, não deixa de reafirmar a ideia da existência de
uma “escola” que, mesmo com a crise que se instaurou durante o período
regencial, aparecia como uma tônica, como um elemento de permanência
e de centralidade. Essa concepção de “escola”, aliás, já estava presente
no ensaio da revista Nitheroy, onde o autor argumentava que, “apesar da
concorrência das produções itálicas, e germânicas”, tendo em mente, so-
bretudo, Rossini, Pergolesi, Mozart e Haydn, “a Música Fluminense tem
um caráter peculiar, que é o da escola de José Maurício”44. Essa “escola”
contou com alguns dos músicos mais notórios da capital, destacando-
-se, especialmente, Francisco Manuel da Silva que, além de ter sido o
compositor da música que veio a se tornar o Hino Nacional, foi um dos
personagens principais na criação e fundação do Conservatório do Rio de

42 – Ibid., p. 49.
43 – Ibid., p. 48.
44  –  PORTO ALEGRE, 1836, p. 183.

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Araújo Porto Alegre e a música no Brasil Império:
filosofia, história, ideias e projetos

Janeiro45 – instituição a qual Araújo Porto Alegre, por sua vez, teve um
papel decisivo para garantir a sua longevidade e tentar afirmar, mais uma
vez, a importância da música para a sociedade no Brasil, assumindo como
escopo fomentar o Teatro lírico e, especialmente, a Ópera nacional.

Em torno desse objetivo, uma das primeiras iniciativas que contou


a participação direta de Porto Alegre e Francisco Manuel ocorrera com a
criação do Conservatório Dramático Brasileiro, uma sociedade de letra-
dos, de caráter privado, que funcionou inicialmente entre 1843 e 1864.
A sua finalidade geral era “promover os estudos dramáticos e o melhora-
mento da cena brasileira, de modo que esta se tornasse a escola dos bons
costumes e da língua”46, o que incluía a atividade de revisão e a censura
aos textos teatrais que fossem então apresentados na capital do Império47.
Contudo, o ato que talvez tenha feito convergir, de maneira mais decisi-
va, as expectativas institucionais que esses dois artistas e “intelectuais
mediadores” tinham em relação à música consolidou-se com a reforma da
Academia Imperial de Belas-Artes, idealizada por Araújo Porto Alegre.

4. As Belas-Artes, o Conservatório e a Ópera Nacional


Já em pleno Segundo Reinado, em meados da década de 1850, imbu-
ído da missão de promover na sociedade brasileira o “gosto” pelas artes e
o reconhecimento da sua importância, foi que Porto Alegre implementou
um de seus projetos mais ambiciosos: a referida reforma, aprovada em
1854. Com isso, o então diretor da academia conseguiu realizar algumas
medidas significativas, abrangendo desde intervenções estruturais (como
a reforma do edifício, a construção de uma pinacoteca e de uma biblio-

45  –  GARCIA, Gilberto Vieira. Francisco Manuel: “sociedade musical”, política e edu-
cação. In: GARCIA, G. V.. Música: o estudo, o ensino, a docência, entre formuladores
e mestres – Rio de Janeiro (1838-1899). (Tese de Doutorado). Rio de Janeiro: Programa
de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGE/UFRJ),
2018, p. 95-127.
46  –  SOUZA, Cristina Martins de. As noites do Ginástico: teatro e tensões culturais na
Corte (1832-1868). Campinas/São Paulo: Editora da Unicamp, Cecult, 2002, p.140-150.
47 – GLABER, Louise. Conservatório Dramático. Novembro 2016. Disponível em:
http://mapa.an.gov.br/index.php/menu-de-categorias-2/304-conservatorio-dramatico.
Acesso em: 11/03/2019.

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teca especializada) até a elaboração de novos estatutos que abordavam,


detalhadamente, diversos aspectos, tais como: a forma e o conteúdo cur-
ricular; as atribuições dos seus profissionais; as exposições públicas; as
premiações; o calendário letivo; e questões referentes à disciplina dos
alunos.

Um ponto central nessa reforma incidia sobre importância que a for-


mação em belas-artes representava para Porto Alegre, em termos de sis-
tematização técnica e de aprimoramento acadêmico. Na sua perspectiva,
isso deveria ter um impacto determinante nas obras produzidas, represen-
tando também um marco para delimitar as diferenças históricas entre a
“fase” que se iniciava com Brasil Império e as “fases” passadas, nas quais
as “artes”, segundo ele próprio, tinham sido realizadas de maneira “va-
lente” e “intuitiva” por escravos e pelos demais estratos desprestigiados
na sociedade brasileira. Assim, com o Brasil Império e, especialmente,
a partir do seu projeto de reforma, as belas-artes não apenas poderiam
passar a ser valorizadas profissionalmente, como também deveriam fazer
parte das práticas dos homens livres e cultos que, formados pela Acade-
mia, seriam os responsáveis por inaugurar uma nova etapa da história das
artes brasileiras.

Em relação à música, uma medida importante dessa reforma foi a


anexação do Conservatório à Academia. Essa iniciativa foi fundamen-
tal para dar ao primeiro condições de funcionamento mais estáveis, haja
vista que desde sua fundação, em 1848, o mesmo tivera uma existência
incerta e precária, sobretudo, pelo descompromisso do governo com a
instituição. Em conjunto com esse feito, outra questão importante em re-
lação à música foi a efetiva participação de Porto Alegre no movimento
artístico-intelectual que ganhou força ao longo dos anos de 1850, orga-
nizado em torno do objetivo maior de criar uma “Opera Nacional”. Isso
incluiu desde a autoria do libreto Véspera dos Guararapes (ópera com-
posta pelo professor do Conservatório Gioacchinno Giannini, em 1852,
e que foi considerada como marco inaugural desse movimento), até a
definição do espaço que a música deveria ocupar no projeto de reforma da
Academia, tendo em mente criar uma escola de arte completa. O fato fica

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Araújo Porto Alegre e a música no Brasil Império:
filosofia, história, ideias e projetos

evidente nos seus Apontamentos sobre a academia de belas artes do Rio


de Janeiro e sobre a criação de um teatro nacional de ópera, onde Porto
Alegre faz a seguinte declaração:
Quando aceitei a Missão de reformar o ensino das Belas-Artes, e não
o lugar de Diretor, fiz a junção do Conservatório à Academia com in-
tenções de ir longe, e de fundar de novo a Opera Nacional [...].
Na planta do novo edifício do Conservatório tracei uma sala para con-
certos e representações musicais dos alunos. Desejava principiar por
algumas tragédias com coros, para depois passar às Óperas de canto.
Tudo isto se faria como exercícios, até que um dia se pudesse convidar
a sociedade ilustrada para assistir e proteger aquela nova escola.
Tinha em mente dar uma ideia da tragédia e da comédia antiga, e de
pôr assim em concurso os nossos maestros na grave composição dos
coros, cujo estudo os preparava para a grande música. [...].
Os coros da Ópera Nacional me davam a perfeita esperança de alcan-
çar quanto desejava, de fundar desta vez uma escola séria e durável,
dando assim pão a muita gente. [...].48

A sua filiação à concepção musical definida na antiguidade clássica é


notória, seja pela valorização das tragédias e das comédias (e, certamente,
das funções ético-pedagógicas que lhes caracterizam), seja por sua visão
orgânica da cultura e das artes, expressa pela ideia de criar uma nova
escola que ensinasse, de maneira interligada: música, gramática, leitura/
declamação, mímica, ginástica e dança49. Segundo Pereira:
A ópera, entendida como a síntese da articulação entre música, lite-
ratura e artes visuais, constituía o ponto máximo do projeto de de-
senvolvimento artístico-cultural oitocentista, associado por um lado à
sensibilidade romântica e por outro a um ideal civilizador, como indi-
cativo de um alto nível de desenvolvimento técnico-artístico e cultural
de uma sociedade.50

48  –  PORTO ALEGRE, M. A. Apontamentos sobre a academia de belas artes do Rio


de Janeiro e sobre a criação de um teatro nacional de ópera, s. d.. IHGB, coleção: Araújo
Porto Alegre, lata: 654, pasta: 8, p. 7.
49  –  SQUEFF, 2004, p. 181.
50  –  PEREIRA, Avelino Romero Simões. Uma “empresa útil, elevada e patriótica”, op.
cit., 2016, p. 88.

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Assim, é a partir da perspectiva romântica de construção nacional,


como, por exemplo, na escolha de suas temáticas (dos Guararapes aos
Guaranis), e da valorização dos aspectos civilizatórios associados às artes
(tanto em termos técnicos, quanto disciplinares e pedagógicos), que, para
Porto Alegre, a Academia deveria congregar, então, o ensino das “Belas-
-Artes”, da “Grande música” e do Teatro, dando mais “um passo no senti-
do de criar a Ópera Nacional” e de conquistar o reconhecimento e o apoio
da “sociedade ilustrada”. A sua criação se consumaria em 1857, quando
se inaugura a Imperial Academia de Música e Ópera Nacional, dentro
da própria AIBA – passo, contudo, que não iria muito longe, haja vista
que a sua extinção ocorrerá logo em 1860. Isso aconteceu em razão da
discordância entre o conselho diretor, que tinha Porto Alegre como uma
figura de destaque, e o responsável por sua administração econômica, o
empresário e cantor espanhol José Amat, opondo aqueles que valoriza-
vam, exclusivamente, as funções artísticas consideradas mais “dignas” e
aqueles que investiam na ópera, apostando no seu potencial de entreteni-
mento e comércio51.

Junto a isso, foi nesse mesmo momento, ainda em 1857, em razão de


algumas divergências políticas quanto à composição do quadro docente
da AIBA, que Porto Alegre pedirá demissão do cargo de diretor. Assim,
após esse episódio, e sem muitas perspectivas para fazer os seus projetos
artísticos-institucionais avançarem, valendo-se de suas relações políticas,
conseguirá o cargo de cônsul brasileiro em Berlim, embarcando para a
Europa em 1859, permanecendo no “velho continente” até o ano de sua
morte, em 1879 – período ao qual, em termos artísticos, passou a se dedi-
car essencialmente a escrever poemas e algumas peças de teatro.

5. Considerações gerais
Manuel Araújo Porto Alegre teve uma trajetória e uma atuação des-
tacada junto ao grupo de intelectuais identificado como a primeira gera-
ção do Romantismo no Brasil – também conhecida, em termos gerais,

51  –  PEREIRA, Avelino Romero Simões. Uma “empresa útil, elevada e patriótica”, op.
cit., 2016.

144 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):121-148, mai./ago. 2019.


Araújo Porto Alegre e a música no Brasil Império:
filosofia, história, ideias e projetos

como a “geração de 1830”. Em meio aos processos de consolidação da


independência e do Estado imperial brasileiro, esses intelectuais assumi-
ram para si um conjunto de ambições que talvez estejam entre as mais
complexas, insolúveis e, por vezes, contraditórias, na história brasileira,
em termos políticos e socioculturais: forjar uma identidade nacional e
ter o poder de afirmá-la tanto institucional, quanto oficialmente. Diante
disso, guardadas as particularidades da trajetória de cada um de seus in-
tegrantes, bem como as disputas internas que envolviam a definição dos
conteúdos e a forma de realização de um projeto de tal envergadura, havia
duas motivações que eram comuns aos seus principais expoentes: por
uma lado, identificar e tornar reconhecida a existência de uma tradição ar-
tística brasiliense e, por outro, fundar uma nova escola de artes no Brasil.

Reunido com um grupo de intelectuais que se dedicavam priorita-


riamente à literatura, Porto Alegre ocupava uma posição particular entre
esses “homens de letras”, haja vista a sua formação nas belas-artes e,
sobretudo, os seus interesses específicos e a sua atuação em defesa da
importância que essas deveriam ter para o desenvolvimento da sociedade
brasileira e do próprio país. Partindo dessa posição, a filosofia e a história
tiveram um papel fundamental na elaboração de suas ideias e na realiza-
ção de seus projetos. Essa questão se efetuou com base na apropriação
de alguns conceitos filosóficos-musicais, formulados notadamente por
Pitágoras, por Platão e por Rousseau, com a finalidade de acentuar o po-
tencial educacional atribuído à música; e por meio de uma exaltação das
belas-artes e, especificamente, das artes dos sons, tomando como pres-
suposto a magnitude com a qual elas são apresentadas na história das
“grandes nações” (assumindo a Europa como referência). Junto a isso, é
necessário considerar os seus esforços para tentar conceber também uma
história das belas-artes no Brasil, compreendendo a música como parte
dessa categoria, com o intuito de analisar o passado e, sobretudo, destacar
quais seriam os maiores desafios para a valorização desse ramo como um
todo e para se propiciar um “verdadeiro” florescimento artístico no país
(tendo a capital como polo central). Desafios, por sua vez, que abran-
giam, no seu ponto de vista, desde a precariedade na formação daqueles

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):121-148, mai./ago. 2019. 145


Gilberto Vieira Garcia

aos quais os ofícios das belas-artes eram predominantemente destinados


(negros e mulatos cativos ou forros e brancos pobres), passando pelo seu
desprestígio como atividade profissional dentro de uma sociedade escra-
vista, chegando até ao desinteresse dos membros da “boa sociedade” em
cultivá-las e a própria ausência das belas-artes entre “os grandes pensa-
mentos nacionais”.

Diante desse quadro de desafios, para Porto Alegre, a educação cons-


tituía-se como um campo primordial. Isso ganha sentido, por um lado,
já a partir da sua própria compreensão da história como uma “mestra da
vida” que poderia nos ensinar a valorizar, no caso, a música. Em espe-
cial, destacando-se o papel que essa arte teria exercido na formação e
no desenvolvimento das “grandes nações” e aquele ela deveria exercer
igualmente no contexto da sociedade brasileira, para fazer despertar cer-
tos valores morais, patrióticos e religiosos, bem como para disciplinar as
sensibilidades e os gostos, ou, como queiram, promover civilidade. Por
outro lado, a educação institucional também ocupava um lugar funda-
mental entre seus projetos, tendo em vista o objetivo maior de criar uma
“escola de arte total” que incluiria também a música e o teatro. Tal ques-
tão se configuraria como um recurso imprescindível para que fosse supe-
rado o “descompasso” sociocultural brasileiro em relação à valorização
das belas-artes, por meio de uma sistematização da formação técnica e da
afirmação do seu estatuto acadêmico a partir de uma escola de arte oficial.

Foi, então, nessa perspectiva, que o interesse em desenvolver no


Brasil o que era consagrado como a grande música tornou-se importante
para Porto Alegre, ganhando evidência não apenas entre suas ideias, mas
também, entre seus empreendimentos; estando presente tanto em seus
escritos, bem como em suas criações artísticas e, especialmente, entre
as suas realizações no campo das políticas públicas – tendo como ponto
culminante o projeto de articular a Academia Imperial de Belas-Artes, o
Conservatório e a Ópera Nacional. Isso, entretanto, nos coloca como uma
questão para ser tratada de maneira específica em outro estudo: a necessi-
dade de se refletir sobre o lugar que os gêneros e as práticas musicais que
não se encaixavam na categoria de grande música (como, por exemplo, a

146 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):121-148, mai./ago. 2019.


Araújo Porto Alegre e a música no Brasil Império:
filosofia, história, ideias e projetos

modinha, o lundu e o “batuque”) ocuparam entre as ideias, as obras e os


projetos de Manuel Araújo Porto Alegre.

Texto apresentado em fevereiro/2019. Aprovado para publicação em


maio/2019.

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Um Novo Mundo para recomeçar: José Carlos Rodrigues
e as várias faces de seu periódico ilustrado (1870-1879)

149

UM NOVO MUNDO PARA RECOMEÇAR: JOSÉ CARLOS


RODRIGUES E AS VÁRIAS FACES DE SEU PERIÓDICO
ILUSTRADO (1870-1879)
A NEW WORLD TO START A NEW LIFE: JOSÉ CARLOS
RODRIGUES AND HIS MULTIFACETED ILLUSTRATED
JOURNAL (1870-1879)
Júlia Ribeiro Junqueira1

Resumo: Abstract:
Ao embarcar, provavelmente à surdina, em um In 1866, upon boarding a ship (probably
navio no porto da cidade do Rio de Janeiro com stealthily) in the port of Rio de Janeiro bound
destino aos Estados Unidos no ano de 1866, o for the United States of America, hardly did
jovem José Carlos Rodrigues (1844-1923) não the young José Carlos Rodrigues (1844-1923)
fazia ideia do que lhe aguardava naquele país know what awaited him in a country emerging
que acabara de sair do conflito mais sangrento from the bloodiest conflict in its history. This
de sua história. Ali, acompanhando um Estado citizen from the Province of Cantagalo in the
em reconstrução, que deixava para trás uma State of Rio de Janeiro was about to not only
sociedade, predominantemente, agrária e via enter a new period in his life in a country
surgir uma América industrial e empresarial, that was being rebuilt and leaving behind a
sob a influência de banqueiros, de gestores de predominantly agricultural society, but also to
negócios e de industriais, este fluminense, da witness the rise of an industrial and corporate
província de Cantagalo, também iniciaria uma America under the influence of bankers,
nova fase de sua trajetória. A carreira de bacha-
businessmen and industry executives. In
rel em Ciências Jurídicas e Sociais cederia es-
paço a outras ocupações, principalmente, a de addition to having a bachelor´s degree in legal
jornalista. Pois bem, é essa face de José Carlos and social sciences, he also devoted himself to
– a atividade na imprensa quando da estada no other activities, and mainly to journalism. The
território estadunidense – que este artigo foca- article will focus on his work with the press
lizará, tendo como ponto central a produção de during his stay on American soil. Particular
um periódico, cujo teor muito incidiu sobre uma emphasis will be placed on the production of
reflexão acerca das reformas institucionais bra- a journal whose content largely consisted of
sileiras. Nele, há ponderações que estiveram es- a reflection on Brazilian institutional reforms,
tritamente conectadas à sua própria experiência apart from considerations closely related to his
de residir na América do Norte e de vivenciar in experience of residing in North America, where
loco as transformações que este país atravessa- he witnessed first-hand the transformations the
va durante a segunda metade do século XIX. E, country was going through during the second
neste sentido, torna-se essencial analisar o seu half of the nineteenth century. For that matter, it
círculo de relações pessoais e profissionais, tan- is also essential to analyze his circle of private
to no Brasil, como nos Estados Unidos, uma vez and professional relationships both in Brazil
que o estreitamento de tais redes de sociabilida- and in the United States of America, since
de foi preponderante para que lhe fosse possível being part of a wide network of sociability was
conceber a criação de uma folha ilustrada em paramount to enable him to found the journal O
Nova York, O Novo Mundo (1870-1879). Novo Mundo (1870-1879) in New York.
Palavras-chave: José Carlos Rodrigues; O Keywords: José Carlos Rodrigues; O Novo
Novo Mundo; Imprensa; Política; Biografia. Mundo; press; politcs; biography.

1  –  Professora de História do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais


(CEFET-MG), Unidade Timóteo. E-mail: juliarj17@gmail.com.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):149-182, mai./ago. 2019. 149


Júlia Ribeiro Junqueira

O recomeço
Ao embarcar, provavelmente à surdina, em um navio no porto da ci-
dade do Rio de Janeiro, com destino aos Estados Unidos, no ano de 1866,
o jovem José Carlos Rodrigues (1844-1923) não fazia ideia do que lhe
aguardava naquele país que acabara de sair do conflito mais sangrento de
sua história. Ali, acompanhando um Estado em reconstrução, que deixava
para trás uma sociedade, predominantemente, agrária e via surgir uma
América industrial e empresarial, sob a influência de banqueiros, gesto-
res de negócios e industriais, este fluminense, da província de Cantagalo,
também iniciaria uma nova fase de sua trajetória. A carreira de bacharel
em Ciências Jurídicas e Sociais cederia espaço a outras ocupações, prin-
cipalmente, a de jornalista.

Assim, aproximadamente com 20 anos de idade, José Carlos insta-


lara-se em solo norte-americano. O motivo que o teria levado a deixar a
terra natal ainda é um tanto nebuloso, mas sabe-se que o jovem bacharel
envolveu-se em uma questão bastante embaraçosa quando ocupava o car-
go de oficial de gabinete do ministro liberal João da Silva Carrão (1810-
1888), então chefe da pasta da Fazenda. No caso, Rodrigues foi suspeito
de cometer uma tentativa de estelionato junto ao Tesouro do Império na
data do mês de agosto de 18662. O fato não ficou suficientemente esclare-
cido, contudo, vale lembrar que foi pouco tempo após o tal imbróglio que
se teve notícias de José Carlos em território estadunidense3. Pois bem,
2  –  Segundo Raimundo Magalhães Júnior, José Carlos Rodrigues, de forma escusa, teria
comparecido, a 7 de agosto de 1866, ao Tesouro do Império, carregando consigo uma
ordem de pagamento assinada pelo ministro João da Silva Carrão, em caráter de aviso
reservado, datada de 31 de julho, no valor de 12:300$000 (doze contos e trezentos mil-
-réis), a ser paga ao capitão Luiz Jacome de Abreu e Sousa por seu desempenho em uma
comissão no Ministério da Fazenda. A ordem de pagamento começou a ser regularmente
processada, até que um funcionário suspeitou de uma tentativa criminosa. Diante de tal
conjetura, a ocorrência começou a ser investigada, oficialmente, pelo então Ministro da
Justiça, João Lustosa da Cunha Paranaguá. Entretanto, de acordo com Magalhães Júnior,
após ser instaurado um processo, José Carlos não pôde ser intimado para depor, haja vista
que ninguém o encontrara. Cf. MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. Rui, o homem e o
mito. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965, p. 161 e 162; Diário Oficial do
Império do Brasil, Rio de Janeiro, 02/09/1866, nº 200; e Opinião Liberal, Rio de Janeiro,
13/09/1866.
3  –  Ainda de acordo com Magalhães Júnior, no texto “Rui, amigo e inimigo de José

150 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):149-182, mai./ago. 2019.


Um Novo Mundo para recomeçar: José Carlos Rodrigues
e as várias faces de seu periódico ilustrado (1870-1879)

como então teria sido o início de sua trajetória naquele país que acabava
de sair de uma violenta guerra civil, que resultara, aproximadamente, na
morte de 618 mil indivíduos4?

Inicialmente, o cantagalense José Carlos recorreu às suas habilidades


de letrado, passando a fazer traduções, de tal modo que obtivesse rendi-
mentos que lhe garantissem sobreviver naquele país. E o princípio dessa
história teria ocorrido ainda durante a viagem de navio para os Estados
Unidos, quando verteu, do inglês para o português, um folheto evangé-
lico, editado pela American Tract Society5. Logo que desembarcou, ele,
então, entrou em contato com o amigo George Chamberlain, que ali se
achava para concluir seus estudos de teologia e, além deste conhecido,
José Carlos procurou os editores da própria American Tract Society, que
lhe ofereceram uma vaga de tradutor na organização6. Não é demais lem-
brar que esta instituição evangélica, fundada em 11 de maio de 1825, em
Nova York, publicava e divulgava livros de caráter religioso, assunto pelo
Carlos Rodrigues”, segundo Rui Barbosa, José Carlos havia fugido como um simples
tripulante em um navio norte-americano que partira do Rio com destino a Nova York,
esquivando-se da intimação judicial na qual era acusado daquela tentativa de fraude. Ade-
mais, Cláudio Ganns afirmara que Rodrigues ainda teria tido a ajuda do amigo dos tempos
de faculdade, José da Silva Costa, para levá-lo a bordo do navio. Cf. MAGALHÃES
JÚNIOR, Raimundo. Op. cit., 161-163; e GANNS, Cláudio. “Um retrato impressionista:
revelações sobre J. C. Rodrigues”. Rascunho da obra. IHGB, coleção José Carlos Rodri-
gues, localização: lata 585 / pasta 5. Vale lembrar que, pela lei penal da época, o delito
estaria prescrito ao fim de vinte anos. Entretanto, como não se encontrou nenhum inqué-
rito ou processo sobre a tentativa de estelionato, fica difícil afirmar categoricamente se
José Carlos usufruiu dessa prerrogativa. Contudo, ela pode ser plausível à medida que foi
justamente nesta futura data, final da década de 1880, que se tem notícia de um retorno de
Rodrigues ao país natal após aquela fraude; ao que tudo indica, para liquidar um espólio,
que viera da tia que o havia criado, Joaquina Alves de Abreu Lima Paes e Oliveira. Cf.
GAULD, Charles Anderson. “José Carlos Rodrigues. O patriarca da imprensa carioca”.
Revista de História, São Paulo, (16): 427-438, 1953, p. 428.
4  –  Cf. EISENBERG, Peter L. Guerra Civil americana. 5ª ed. São Paulo: Brasiliense,
1999, p. 8.
5  –  Não se encontrou nenhuma fonte que pudesse corroborar essa afirmação de Charles
Gauld e de Elmano Cardim, todavia, há certo sentido nesta relação entre José Carlos e a
American Tract Society, até mesmo devido às relações sociais, ainda no Brasil, do canta-
galense com protestantes norte-americanos.
6 – Cf. GAULD, Charles Anderson. Op. cit., p. 429; e CARDIM, Elmano. “José Carlos
Rodrigues: sua vida e sua obra”. R.IHGB, Rio de Janeiro, (185): 126-157, out./dez., 1944,
p. 129.

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Júlia Ribeiro Junqueira

qual Rodrigues já demonstrava certo interesse. Ademais, ao frequentar os


corredores da Society, o fluminense ampliou suas relações com protes-
tantes americanos, o que o ajudou muito nesses primeiros momentos em
território estrangeiro. Entretanto, as traduções preparadas pelo brasileiro
não se limitaram às atividades na American Tract Society. Pouco tempo
depois, ele começou a trabalhar para o farmacêutico James C. Ayer, tra-
duzindo, para o português, o almanaque deste pesquisador, destinado à
propaganda de produtos medicinais no Brasil.

Com o passar do tempo, os ofícios de tradutor eram desenvolvidos


concomitantemente às tarefas de correspondente de periódicos brasilei-
ros – Diário Oficial e, depois, Jornal do Commercio7. E o ingresso na
reconhecida folha carioca seria decorrente do seu desempenho naquele
órgão do governo, pois foi, justamente ao ler as notícias enviadas por
José Carlos ao Diário Oficial, que o então redator-chefe do Jornal, Luís
de Castro, se interessou pelo seu trabalho e decidiu convidá-lo para tam-
bém prestar os seus serviços. Convite aceito, a primeira matéria sairia
naquela folha, no dia 26 de março de 1869, enviada de Nova York, a 21
do mês anterior, e na qual o fluminense atualizava os leitores sobre os
recentes acontecimentos norte-americanos8. A sua atividade de jornalista
nos Estados Unidos, porém, não se limitou a de correspondente de jornais
brasileiros, ao contrário, ele desempenhou um papel bem mais ativo e
crítico na imprensa, tanto aquela ligada à pátria quanto a do país que o
abrigava naquele momento.

E, neste sentido, vale destacar que José Carlos Rodrigues tinha uma
característica bem interessante, que fora fundamental para se estabelecer
no território norte-americano e se inserir no círculo letrado deste Estado,
bem como, do país natal: a de interpor-se em inúmeras relações como um
intermediário, tanto para questões profissionais como para favores mais

7  –  Cf. RODRIGUES, José Carlos. “Alocução do Dr. José Carlos Rodrigues”. In: Des-
pedidas do Dr. José Carlos Rodrigues da direção do Jornal do Commercio do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro: Tipografia do Jornal do Commercio, 1915, p. 39. BN, coleção
Christopher Oldham, localização: 32,04,002 nº 003.
8 – Cf. Jornal do Commercio, 23/03/1869.

152 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):149-182, mai./ago. 2019.


Um Novo Mundo para recomeçar: José Carlos Rodrigues
e as várias faces de seu periódico ilustrado (1870-1879)

corriqueiros, abrindo-lhe um campo de possibilidades9. Muito além de re-


correr apenas à amizade de um amigo presbiteriano ao chegar aos Estados
Unidos, Rodrigues encetou novos vínculos, seja com um farmacêutico,
que queria divulgar seus almanaques no Brasil, seja com naturalistas, que
direcionavam seus estudos para a América do Sul, ou indivíduos liga-
dos diretamente ao governo estadunidense. No caso de estudiosos que
queriam realizar pesquisas científicas na área de Ciências Naturais, no
Brasil, José Carlos manteve boas relações, por exemplo, com o geólogo
canadense, naturalizado americano, Charles Frederick Hartt (1840-1878),
um pesquisador encantado com o território brasileiro, de onde, diga-se
de passagem, extraiu grande parte de seu material de estudo, tanto físico
como etnográfico. O suíço Arnold Guyot (1807-1884) também foi um
naturalista que teve relações bem próximas com o fluminense. Já outro
ciclo de relações profissionais de Rodrigues se deu por meio do próprio
Estado norte-americano, quando, a convite do então ministro da Justiça
dos Estados Unidos, Caleb Cushing (1800-1879), José Carlos se mudou
para Washington para traduzir documentos americanos referentes ao caso
Alabama para uso do juiz brasileiro, o mineiro Marcos Antônio de Araújo
– visconde de Itajubá (1805-1884). Tal fato alude-se ao litígio derivado
da Guerra de Secessão, ocorrida entre 1861 e 1865. No caso, a questão
resume-se às reclamações de pedido de indenização por parte do governo
norte-americano à Grã-Bretanha por esta ter dado assistência aos estados
da Confederação no decorrer da Guerra Civil, quebrando o acordo de
neutralidade.

O estreitamento de tais redes de sociabilidade caminhava conjunta-


mente ao acesso de José Carlos a determinadas relações do seu país, que
colaboravam para a manutenção ou para a ampliação daqueles vínculos,
permitindo-lhe criar uma espécie de economia de favores entre brasileiros
e norte-americanos. E foi, justamente por sua articulação nestes campos,
que lhe foi possível conceber, por exemplo, a criação de uma folha ilus-
9  –  Sobre o uso do termo “campo de possibilidades” na trajetória de um indivíduo, ver
VELHO, Gilberto. “Trajetória individual e campo de possibilidades”. In: Projeto e me-
tamorfose: antropologia das sociedades complexas. 3ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2003, p. 46 e 47.

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Júlia Ribeiro Junqueira

trada – O Novo Mundo; periódico editado em Nova York (1870-1879),


por meio do qual o publicista procurou entrelaçar interesses brasileiros e
estrangeiros, e também conseguiu reunir monarquistas e críticos do regi-
me, além de procurar refletir sobre os rumos do país.

O Novo Mundo
Lançada por José Carlos em outubro de 1870 e dirigida aos leito-
res brasileiros, O Novo Mundo foi uma revista divulgada mensalmente a
partir dessa data e, em suas colunas, encontra-se uma grande variedade
de assuntos, como: história, ciência, política, religião, comércio, literatu-
ra, invenções, economia, entre outros temas que abordavam, de alguma
forma, o crescimento socioeconômico estadunidense10. Este era um dos
principais objetivos de Rodrigues com essa publicação, direcionar o olhar
de seus leitores para o Novo Mundo: a América. Assim, nas páginas dessa
folha, o jornalista delinearia as bases que, para ele, seriam a chave para
a entrada do Brasil nos moldes do progresso, como se demarcou no pró-
prio subtítulo da revista: “periódico ilustrado do progresso da idade”; e
pela ilustração, na qual, por meio de um globo terrestre, focalizando os
continentes das Américas do Norte e do Sul, traça-se uma linha que uniria
Estados Unidos e seu país natal.

10  –  Torna-se necessário ressaltar que José Carlos Rodrigues, além de proprietário, era o
redator d’O Novo Mundo e quem escrevia grande parte dos artigos e das notas divulgados
no periódico. As colaborações diversas de vários escritores, provavelmente, se inicia-
ram depois da publicação dos primeiros números e se tornaram mais constantes a partir
de 1875. Porém, a maioria desses colaboradores não assinava os seus textos, cujo teor,
normalmente, se assemelhava às ideias do redator ou pelo menos era bem visto por ele,
uma vez que, quando algum escrito destoava dos pensamentos de Rodrigues, o mesmo
fazia questão de frisar a discordância em relação ao artigo em uma nota ao final do texto.
Por isso, em linhas gerais, a análise que se deu aqui, neste texto, sobre o referido jornal
encaminhou-se em demonstrar os conceitos, as opiniões, os propósitos do jornalista a par-
tir daqueles escritos que foram bastante recorrentes e que elucidavam, de alguma forma,
as proposições de José Carlos. Obviamente, quando o texto veio acompanhado da autoria,
isso foi assinalado.

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Um Novo Mundo para recomeçar: José Carlos Rodrigues
e as várias faces de seu periódico ilustrado (1870-1879)

Ilustração I – Exemplar d’O Novo Mundo, Nova York11


Fonte: setor de periódicos.
Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil.

A sua redação situava-se em um escritório no edifício do New York


Times e os exemplares eram enviados ao Brasil de acordo com as datas
das saídas do paquete regular da linha Nova York-Rio de Janeiro, alvo de
cuidados do próprio José Carlos, que acompanhava o egresso do navio12.
A circulação das embarcações interferia até nos dias da publicação, uma
vez que o jornalista preferia imprimir seus números entre os dias 23 e 24
de cada mês, justamente, porque essas datas coincidiam com as saídas
dos paquetes13.

Mas por que editar em Nova York uma revista que se destinava a
um público tão distante, residente a muitos quilômetros da cidade norte-
-americana? É certo que havia um notório entusiasmo de Rodrigues com
11  –  O exemplar é de 24 de janeiro de 1873 e o retrato exposto foi do pernambucano
Joaquim Saldanha Marinho (1816-1895).
12  –  Cf. GAULD, Charles Anderson. Op. cit., p. 429 e 430.
13  –  Cf. BOEHRER, George C. A. “José Carlos Rodrigues and O Novo Mundo, 1870-
1879”. Journal of Inter-American Studies, 9 (1): 127-144, jan., 1967, p. 131. A partir do
volume VI, número 70, de julho de 1876, as datas na revista começaram a aparecer apenas
com o mês e o ano. Provavelmente, como o próprio Boehrer apontou, as publicações en-
tão começaram a sair no início de cada mês.

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Júlia Ribeiro Junqueira

a nação estadunidense e, sem dúvida, as comparações com o seu país se


faziam quase que automaticamente. E mais, também existia o propósito
de editar para o Brasil uma folha diferenciada, com o uso da técnica de
clichês de aço e de cobre, e não de litografia, o que faz com que as ima-
gens, até hoje, se sobressaiam14.

A ideia de confeccionar a dita revista teria surgido em uma conver-


sa com o amigo Hanson K. Corning, empresário da borracha15, quando
o cantagalense relatou-lhe que, se tivesse meios, começaria a imprimir
uma folha ilustrada para o Brasil, visto que, em sua terra natal, ainda
não havia nada semelhante no gênero, a exemplos da Illustration ou da
Harper’s Weekly16. Corning, então, teria perguntado de quanto o brasilei-
ro precisava para iniciar essa sua empreitada. “Atônito” pela indagação,
José Carlos respondeu que apenas queria crédito por quatro meses, uma
vez que acreditava que, após esse período, poderia sozinho manter o pro-
jeto. Pois bem, no dia seguinte, o americano teria lhe mandado três cartas
de crédito para as despesas iniciais, como para as casas de Sutton, o im-
pressor; Parsons, para o papel; e Harper, para as gravuras17. É importante
ressaltar que essas informações foram retiradas de um discurso do canta-
galense de 1915 e, até o momento, somente Charles Anderson Gauld foi
quem mencionou um auxílio que Rodrigues teria tido de um rico comer-
ciante de Nova York, importador de borracha. Entretanto, Gauld, ao con-
trário do que o jornalista explanou em sua fala, registrou que tais recursos

14  –  Cf. ASCIUTTI, Mônica M. Rinaldi. Um lugar para o periódico O Novo Mundo
(Nova York, 1870-1879). Dissertação (Mestrado em Letras Clássicas e Vernáculas). São
Paulo: Universidade de São Paulo, 2010, p. 20. Ainda de acordo com a autora, muitas das
ilustrações usadas por Rodrigues provinham do periódico americano Harper’s Weekly,
sendo que os redatores desta folha as adquiriam do londrino Graphics.
15  –  Hanson K. Corning importava borracha da região da Amazônia.
16  –  Em relação à Illustration, possivelmente, José Carlos se remeteu ao semanário fran-
cês L’Illustration, publicado entre 1843 e 1944; já a Harper’s Weekly foi um periódico
político americano, que circulou entre os anos de 1857 e 1916, tendo dado uma extensa
cobertura aos episódios da Guerra Civil americana, cujas ilustrações foram um destaque
à parte.
17  –  Foi o próprio José Carlos que usou a palavra “atônito”. Cf. RODRIGUES, José
Carlos. Op. cit., p. 40.

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Um Novo Mundo para recomeçar: José Carlos Rodrigues
e as várias faces de seu periódico ilustrado (1870-1879)

financeiros teriam sido empregados para o aperfeiçoamento da revista, e


não para que ela tivesse início, como José Carlos descreveu18.

De qualquer modo, o projeto de editar uma folha mensal já lhe pas-


sava pela cabeça há alguns meses. O amigo dos tempos de faculdade,
José da Silva Costa, por exemplo, mantinha-o bastante informado sobre
a publicação de uma certa revista chamada Ilustração e também sobre o
mercado de periódicos, com o propósito de avaliar as possibilidades de
se comercializar um impresso ilustrado no Brasil: “[...] envio-te o Jornal
do Commercio em que vem a tua correspondência e 2 números (5 e 6) da
Ilustração; depois de uma demora, continuaram a publicar a folha. A tua
ideia não deve deixar de ser mantida; será muito melhor recebida e vulga-
rizada do que a que ora aqui se publica [...]”19. Não é demais lembrar que,
em 1872, havia uma estimativa de 378 periódicos em língua estrangeira
publicados nos Estados Unidos20.

Além disso, a ideia de José Carlos, guardadas as devidas proporções,


seguia os passos de outros órgãos que, apesar de serem direcionados ao
público brasileiro, eram produzidos no exterior. Exemplificando, pode-
-se citar O Correio Brasiliense, de Hipólito José da Costa Furtado de
Mendonça, impresso em Londres, de periodicidade mensal e que circulou
entre junho de 1808 e dezembro de 182221. Do mesmo modo, só que em
Paris, houve o magazine Niterói, lançado em 1836, com o propósito de
promover os ideais românticos, tornando-se uma obra relevante para o es-
tudo da literatura brasileira. Ela foi idealizada por Domingos Gonçalves
de Magalhães, Manuel José de Araújo Porto Alegre e Francisco de Sales
Torres Homem, então, na época, estudantes na capital francesa22.

18  –  Cf. GAULD, Charles Anderson. Op. cit., p. 429.


19  –  COSTA, José da Silva. Carta de... a José Carlos Rodrigues, datada de 23 de junho
de 1870. Correspondência passiva de José Carlos Rodrigues, 1844-1923. Rio de Janeiro:
Biblioteca Nacional, 1971, p. 73. Ver também as epístolas datadas de 25 de janeiro de
1870 e de 25 de maio de 1870, p. 71-73.
20  –  Cf. BOEHRER, George C. A. Op. cit., p. 127.
21  –  Cf. MARTINS, Ana Luiza; LUCA, Tania Regina de (org.). História da imprensa
no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008, p. 29; e SODRÉ, Nelson Werneck. História da
imprensa no Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1977, p. 24-33.
22  –  A folha teve apenas dois números lançados e foi patrocinada por Manuel Moreira

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Júlia Ribeiro Junqueira

Seja como for, O Novo Mundo apresentou contribuições a temas


complexos que estavam sendo debatidos pela sociedade da época, em
especial, no Brasil? Em qual alicerce se fundava esse órgão? Essas são
apenas algumas das perguntas cujas respostas serão apresentadas nos pa-
rágrafos a seguir.

Assim, no dia 24 de outubro de 1870, lançou-se o volume 1, número


1, d’O Novo Mundo, cujo manifesto consistia em23:
[...] concorrer para este estudo (da nação americana), não dando notí-
cias dos Estados Unidos, mas expondo as principais manifestações do
seu progresso e discutindo sobre as causas e tendências deste progres-
so. Admiradores sinceros das instituições deste país, não queremos,
todavia, americanizar o Brasil nem país algum. Cremos muito na bon-
dade de Deus, e na natureza humana para não fazermos do progresso
de um povo a cópia do progresso de outro. Não crendo em distinções
de raças, para nós, todos os povos são chamados a atingir a mesma
perfeição por meio do trabalho e da fé na Providência. “O Novo Mun-
do”, pois, contentar-se-á em tomar nota do que toca a estes dois meios
de progresso; não será mestre, mas expositor; não será juiz, mas servo,
da verdade.24

Neves, um negociante conterrâneo dos editores. Cf. MARTINS, Ana Luiza... Ibidem, p.
42 e 64; SODRÉ, Nelson W. Ibidem, p. 210 e 211; e ASCIUTTI, Mônica M. Rinaldi. Op.
cit., p. 25, 32 e 58, especialmente estas duas últimas páginas, uma vez que a autora esta-
belece as convergências entre O Novo Mundo e a Niterói.
23  –  Sobre o termo manifesto, ver SIRINELLI, Jean-François. Intellectuels et passions
françaises. Manifestes et pétitions au XXe siècle. Paris: Gallimard, 1990, pp. 29-51.
24  –  RODRIGUES, José Carlos. O Novo Mundo, 24/10/1870, p. 2.

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Um Novo Mundo para recomeçar: José Carlos Rodrigues
e as várias faces de seu periódico ilustrado (1870-1879)

Ilustração II – Retrato de José Carlos Rodrigues à época da


confecção d’O Novo Mundo, Nova York (1873).
Fonte: acervo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) – Brasil.

Tais palavras sintetizam muito das ideias, das notícias, dos artigos
que o leitor encontrou nas páginas d’O Novo Mundo: o funcionamento
das instituições republicanas dos Estados Unidos da América e o cresci-
mento socioeconômico desta nação. Em contrapartida, deparava-se com
uma análise político-social do Brasil, com enfoque em algumas de suas
fissuras, como a escravidão e o ensino público limitado. Por fim, a fé;
a religião como elemento basilar para que houvesse o progresso social.
Obviamente, José Carlos tratou de outros variados temas contemporâneos
em sua folha; por exemplo, nos primeiros números, houve extensa cober-
tura da guerra franco-prussiana, identificando detalhes do combate e das
estratégias de batalha25. Todavia, como o próprio Rodrigues acentuou na
citação precedente, havia certo direcionamento nas páginas daquela re-
vista ilustrada, um foco, uma orientação. No caso, pôr em discussão e ofe-

25  –  A título de exemplo, ver os seguintes textos em O Novo Mundo, de 24/10/1870: “O


equilíbrio europeu”, p. 3; “A Alemanha, uma”, p. 4; “Sobre a guerra”, p. 4 e 5; e algumas
imagens nas páginas 8 e 9. Da folha do dia 23/11/1870, ver “A França e a paz”, p. 18; e
“Fazendo fogo nos balões”, p. 21. Do número do dia 23/12/1870, ver “Tentando sair do
assédio”, p. 33; e “A guerra e a arte de guerra”, p. 39-42.

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Júlia Ribeiro Junqueira

recer alternativas para os problemas levantados, expondo ações sociais,


políticas e econômicas que, na percepção dele e de seus colaboradores,
estavam sendo bem sucedidas e, neste sentido, poderiam representar um
referencial para a ex-colônia portuguesa no continente sul-americano26.

Apesar de suas especificidades, O Novo Mundo e seu idealizador não


entravam sozinhos neste cenário de questionamento social e político do
Brasil durante a segunda metade do século XIX. Vinham acompanhados
por “pares convergentes” que, marginalizados politicamente em relação
ao domínio da ala conservadora imperial, articularam-se com o objetivo
de uma reforma do status quo do Império, principalmente, usufruindo de
um repertório intelectual27. Ao contrário dos antigos liberais, que propu-
nham basicamente reformas internas28, os grupos compreendidos dentro
do movimento da chamada “geração 1870” iam ao cerne da tradição im-
perial, questionando seus valores e criticando seus órgãos políticos29.

Para corroborar a sua hipótese de que o ponto-chave de atrelamento


dos grupos desse movimento foi a insatisfação com o arranjo político do
Império, a pesquisadora Angela Alonso fez uma seleção daqueles homens
de letras da “geração 1870” que, a seu ver, tiveram uma ação mais con-
tundente para uma intervenção política, por meio de seus escritos e de

26  –  Cf. GAMA, Luiz. Carta de... a José Carlos Rodrigues, datada de 26 de novembro de
1870. Correspondência passiva de José Carlos Rodrigues. Op. cit., p. 270-272.
27  –  Sobre repertório intelectual, ver ALONSO, Angela. Ideias em movimento: a gera-
ção 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 39 e 40.
28 – Cf. Idem. Ibidem, pp. 69 e 73. De acordo com Alonso, uma das poucas inovações
do Partido Liberal foi a defesa da emancipação da escravatura que, no entanto, deveria ser
feita de forma bastante gradual e, em uma escala de urgência, ainda permanecia secun-
dária. Ver também CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política
imperial. Teatro de sombras: a política imperial. 7ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasi-
leira, 2012, p. 219-225.
29  –  Para o conceito de “geração 1870”, ver VENTURA, Roberto. Estilo tropical: histó-
ria cultural e polêmicas literárias no Brasil, 1870-1914. São Paulo: Companhia das Letras,
1991, p. 10. Já sobre geração, ver MARÍAS, Julián. “A vida histórica”. In: Introdução à
filosofia. Tradução de Diva Ribeiro de Toledo Piza. 2ª ed. Duas Cidades: São Paulo, 1966,
p. 332-336; GASSET, José Ortega y. “La idea de las generaciones”. El tema de nuestro
tiempo. 2ª ed. Buenos Aires: Espasa-Calpe, 1939, p. 9-16; e SIRINELLI, Jean-François.
“A geração”. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (coord.). Usos e
abusos da história oral. 8ª ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2006, p. 135-137.

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Um Novo Mundo para recomeçar: José Carlos Rodrigues
e as várias faces de seu periódico ilustrado (1870-1879)

suas associações. Nesse sentido, a autora ressaltou a heterogeneidade dos


indivíduos que compunham as alianças, destacando que suas formações
deram-se tanto por aqueles homens oriundos de grupos decadentes como
da nova sociedade, como também eles se diferenciavam em relação a
seu acesso aos recursos políticos, sociais e econômicos30. Aliás, Alonso
reporta-se ao periódico O Novo Mundo como órgão de referência para
alguns republicanos, nomeando o proprietário desta revista como sendo
um liberal republicano31, o que é passível de crítica. Por certo, o que se
pode aferir é que José Carlos Rodrigues foi um liberal no sentido amplo
da palavra, sabendo conviver muito bem até com os contrários. O que há
em grande parte dos textos divulgados por Rodrigues n’O Novo Mundo e,
sem sombra de dúvida, até na concepção desse periódico, são ideias con-
vergentes com os temas tratados por alguns grupos da “geração 1870”.
Isso quer dizer que, como no repertório intelectual de alguns republica-
nos, é possível perceber nos escritos daquele órgão um enaltecimento aos
Estados Unidos e um fascínio para com o progresso dessa sociedade e
suas instituições32.

Para além disso, diagnosticara-se n’O Novo Mundo o que represen-


tava um empecilho para que houvesse, de fato, as reformas políticas, não
deixando de criticar o próprio Partido Liberal pela falta de programas
mais complexos e sólidos: “[...] o país sente [...] a necessidade das tais re-
formas e animações; mas ele precisa saber de como é, e por onde é que se
vai começar a cura, – ele precisa, com efeito, que se comece a cura quanto
antes e que esteja assentado por onde se vai começar [...]”33. É interessan-
te notar que, assim como muitos de seus contemporâneos34, nas páginas
da folha ilustrada, também se utilizava um vocabulário da biologia para
30  –  Cf. ALONSO, Angela. Op. cit., p. 99.
31 – Cf. Idem. Ibidem, p. 111 e 118.
32  –  Por exemplo, ver n’O Novo Mundo: “Um administrador modelo”, 24/10/1870, p.
2; “O ano de 1870”, “A cidade de New York”, “Caixas econômicas”, 23/12/1870, p. 34,
42 e 43, respectivamente; “As escolas públicas em New York”, 24/06/1871, p. 138-139;
“O progresso dos negros”, 23/02/1872, p. 75; e “Divertimentos públicos”, 23/05/1874,
p. 139.
33  –  “Programas de partidos”. Ibidem, 23/01/1873, p. 54 e 55. Ver também “Planos do
futuro”, 23/01/1871, p. 50.
34  –  Cf. ALONSO, Angela. Op. cit., p. 184.

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fazer equivalências à linguagem política. No caso do trecho transcrito,


a palavra “cura” foi utilizada para se referir ao vocábulo “reforma”, que
ainda tinha como alguns de seus “sinônimos científicos” os termos: rege-
neração, remédio e recuperação.

Após a análise das plataformas partidárias, José Carlos explanou que


a “desejada reforma geral” seria a dos costumes, que compreenderiam o
caráter e a moral de um povo. Para o jornalista, apesar de ser um progra-
ma vago, haveria meios práticos para se elevar o caráter nacional, e este
instrumento seria a religião, Jesus Cristo. Tal seria o alicerce do “edifício
do progresso nacional” e, nesse sentido, seria muito mais importante do
que a “fachada”, as “decorações” ou as “paredes-mestras” da constru-
ção. Havia uma interdependência entre este alicerce e o caráter e a moral
para que, de fato, existisse a almejada mudança: “[...] a regeneração da
sociedade é a dos costumes, e a dos costumes é a educação religiosa, é a
submissão de cada um de nós ao Evangelho, submissão livre, conscien-
ciosa e amorosa [...]”35. É relevante observar que, ao defender a religião
como uma questão primordial para dignificar os costumes, em especial,
ressaltando o cristianismo, José Carlos não estava se manifestando, favo-
ravelmente, à implementação de uma fé oficial para o país. Ao contrário,
ele declarava ser a favor do Estado laico. O povo deveria ter liberdade
para escolher a sua religião e ser livre para cultuá-la.

Por sinal, Rodrigues deixaria esta sua posição bastante clara ao tratar
da questão religiosa, da década de 1870, na qual um bispo de Olinda, e
outro, do Pará, seguindo orientações do Vaticano, perseguiram e pugna-
ram padres que participavam de atividades maçônicas. Tal atitude acabou
ocasionando um conflito diplomático entre a Igreja e o Império, que se
posicionou favorável aos padres punidos36. Além de expor essa sua opi-
nião em seus textos n’O Novo Mundo, o jornalista fluminense também
dava destaque àqueles escritores que comungavam de conceito semelhan-
te, como foi o caso de uma nota elogiosa para os artigos de Joaquim

35  –  “Como encetar-se a reforma?” O Novo Mundo, 23/01/1873, p. 55.


36  –  Cf. “Agitação religiosa no Brasil”. Ibidem, 23/05/1873, p. 127; e “O Brasil e o
movimento religioso”, 24/10/1871, p. 3.

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Um Novo Mundo para recomeçar: José Carlos Rodrigues
e as várias faces de seu periódico ilustrado (1870-1879)

Saldanha Marinho, publicados no Jornal do Commercio, dos quais uma


parte acabava de ser reunida em um livro37.

O tema da religião esteve bastante presente nas folhas d’O Novo


Mundo e, devido à aproximação de José Carlos a figuras do protestantis-
mo americano38, em especial membros da igreja presbiteriana, tornou-se
corriqueiro associá-lo como um praticante dessa crença, o que, segundo
sua sobrinha, era uma “fama de que ele não gostava”. Ainda de acordo
com ela, era o exercício cotidiano da fé, sobretudo a tenacidade em fre-
quentar as missas e o estudo do Evangelho, o que representaria de fato o
caráter religioso de seu tio39. O certo é que o cantagalense professava a
doutrina cristã, o que também o conectava aos amigos presbiterianos; afi-
nidade de ideias que, às vezes, acarretava em críticas ao O Novo Mundo
e ao seu proprietário40. Uma destas partiu dos redatores do periódico ca-
rioca O Movimento, que diziam sentir-se lastimados, porque, apesar da
excelência dos artigos e da beleza artística das gravuras daquela revista
ilustrada, em matéria religiosa, a folha de Rodrigues preferia o protes-
tantismo à “religião católica e apostólica romana, que é a consagrada na
Constituição do Império”41. José Carlos fez questão de confrontar os re-

37 – Cf. Ibidem, 23/02/1874, p. 79. Em relação aos textos de Marinho, publicados no


Jornal do Commercio (1874-1876), sob o pseudônimo de Ganganelli, ver A Igreja e o Es-
tado. Rio de Janeiro: Tipografia Perseverança (quatro volumes). Um discurso deste políti-
co na Câmara dos Deputados também ficara conhecido sob o título A questão religiosa no
Brasil. Ver também MARINHO, Joaquim Saldanha. Carta de... a José Carlos Rodrigues,
datada de 25 de julho de 1874. Correspondência passiva de José Carlos Rodrigues. Op.
cit., p. 224 e 225.
38  –  Ver KIDDER, Daniel Parish. Cartas de... a José Carlos Rodrigues, datadas de 17 e
20 de fevereiro de 1879. Correspondência passiva... Ibidem, p. 234 e 235. Kidder foi um
missionário metodista norte-americano.
39  –  Cf. Descrição de algumas características pessoais de José Carlos Rodrigues por
sua sobrinha, s/d. IHGB, coleção José Carlos Rodrigues, localização: lata 585 / pasta 8.
O nome da referida parente não foi mencionado no documento, todavia acredita-se que
seja Maria Lopes Rodrigues Alves, filha da irmã de José Carlos, Carlota Rodrigues Lopes.
40  –  Cf. “A beneficência prática do cristianismo”. O Novo Mundo, 23/03/1875, p. 142
e 143.
41  –  Cf. “O Novo Mundo”. O Movimento, 07/03/1872. José Carlos também recebeu
muitas críticas de redatores e de articulistas de jornais católicos, que declaravam ser o
proprietário d’O Novo Mundo um propagandista do protestantismo. Por exemplo, ver O
Apóstolo, 15/01/1871, p. 18; e de 18/06/1876, p. 3.

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datores d’O Movimento, alegando que o fazia não para se defender, pois
nunca se preocupou em saber se era protestante ou não, e que pouco lhe
importava o que chamou de “meras denominações”. Contudo, as palavras
usadas como resposta aos redatores d’O Movimento deixam claro que
aquele julgamento o havia incomodado muito. Seu argumento principal,
então, foi novamente reafirmar que o progresso de uma nação dependia
do conhecimento pleno de Deus e, por meio do culto livre da religião, é
que se conseguiria elevar e educar a moral e a consciência de um povo:
Procurando servir, como procura, os melhores interesses do Brasil, o
Novo Mundo tem insistido muito desde o princípio sobre a necessida-
de de se espalhar no povo uma ideia correta das ideias de Deus, a res-
peito dos fins do homem e da sociedade. Todo o progresso das nações
depende do grau de perfeição deste conhecimento, e o nosso destino é
sermos servos livres e amantes da sua vontade [...].42

Se José Carlos era um ferrenho praticante do protestantismo, ou não,


convém ser mais cauteloso optar pela indefinição do fato. O que não se
torna errôneo alegar é que há muita influência da doutrina protestante nos
escritos do jornalista, como no exemplo sobre a questão religiosa da dé-
cada de 1870. Além disso, como foi possível perceber, para Rodrigues, a
religião era o alicerce primordial para que houvesse uma regeneração no
caráter e na moral de um povo. Os outros instrumentos imprescindíveis
para o sucesso dessa reforma dos costumes eram a educação e o trabalho,
este, ponto fundamental da ética protestante, por conseguinte, do pres-
biterianismo: “[...] o trabalho, – o trabalho ainda que árduo – é o nosso
dever; e por sê-lo, é a nossa glória e salvação [...]”43.
42  –  “A ideia religiosa”. O Novo Mundo, 23/05/1872, p. 131.
43  –  “Importância do trabalho individual”. O Novo Mundo, 23/02/1872, p. 75. Ver tam-
bém os seguintes textos nesse periódico: de 24/10/1870, p. 2; “Ensino público no Brasil”,
23/10/1872, p. 6; e “Como encetar-se a reforma?”, 23/01/1873, p. 55. Para saber mais
sobre o protestantismo presbiteriano, ver GOMES, Antônio Máspoli de Araújo. Religião,
educação e progresso: a contribuição do Mackenzie College para a formação do empre-
sariado em São Paulo entre 1870 e 1914. São Paulo: Mackenzie, 2000; em especial o
primeiro capítulo, “Aproximação teórica e o panorama das abordagens sobre o protes-
tantismo presbiteriano”, p. 15-34. Sobre a influência do protestantismo no pensamento de
José Carlos Rodrigues e de outros brasileiros, ver FREITAS, Marcus Vinicius de. Con-
tradições da modernidade: o jornal Aurora Brasileira (1873-1875). Campinas: Unicamp,
2011, p. 68 e 82.

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Um Novo Mundo para recomeçar: José Carlos Rodrigues
e as várias faces de seu periódico ilustrado (1870-1879)

A crítica à atuação do clero católico na terra natal e o fascínio com


o progresso estadunidense eram alguns dos pontos que atrelavam as re-
flexões de José Carlos Rodrigues aos republicanos históricos. Todavia, a
ideia da implantação do sistema de república no Brasil não fazia parte do
pensamento do cantagalense naquele início da década de 1870. Não que
ele fosse um defensor árduo da monarquia, mas, a seu ver, a fundação de
um novo regime não poderia ser feita diante de algumas mazelas exis-
tentes no país: “[...] cremos sinceramente que República e Escravidão
são duas instituições que não podem existir juntas sem mútua e constante
irrisão; e cremos também que fazer República de um ‘povo de analfabe-
tos’ [...] é um absurdo político [...]”44. O trecho pertence a um texto n’O
Novo Mundo sobre o recém-lançado periódico A República45, cujo pri-
meiro número lhe foi enviado pelo amigo José da Silva Costa46, e sobre o
qual Rodrigues comentou que, apesar de não concordar com as opiniões
contidas na recente folha lançada no Rio de Janeiro sobre a imposição de
um Estado republicano, saudava seus redatores por se proporem a divul-
gar novas ideias e pregarem o uso das “armas pacíficas da liberdade” para
a causa a ser defendida.

Aliás, a relação dos próprios republicanos históricos com a monar-


quia foi bastante cavalheiresca, não levando a uma fissura categórica.
Apesar das rivalidades políticas, muitos dos membros desse grupo par-
ticiparam dos arranjos de distribuição de empregos e de benesses do go-
verno imperial47. É o caso do fluminense, e um dos autores do Manifesto
Republicano, Salvador de Mendonça (1841-1913). Oriundo de uma famí-
lia de cafeicultores decadentes, Salvador de Meneses Drummond Furtado
de Mendonça também se encaminhou, assim como José Carlos, para a

44 – “A República”. O Novo Mundo, 24/04/1871, p. 98.


45  –  O primeiro número desse jornal saiu em 3 de dezembro de 1870, sob a propriedade
do Clube Republicano, que tinha como partidários: Saldanha Marinho, Aristides Lobo,
Quintino Bacaiuva, Lafaiete Pereira e Salvador de Mendonça. Cf. SODRÉ, Nelson Wer-
neck. Op. cit., pp. 243 e 244; e ALONSO, Angela. Op. cit., p. 109.
46  –  Cf. COSTA, José da Silva. Carta de... a José Carlos Rodrigues, datada de 24 de
dezembro de 1870. Correspondência passiva de José Carlos Rodrigues. Op. cit., p. 74.
47  –  Para um melhor entendimento sobre estes republicanos, cf. ALONSO, Angela. Op.
cit., p. 105-112.

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Júlia Ribeiro Junqueira

academia de Ciências Jurídicas em São Paulo, em 1859. Contudo, o curso


teve que ser interrompido após o falecimento dos pais, sendo retomado
anos mais tarde. Assim, o jovem estudante, que se viu na posição de chefe
de família, tendo que prover sustento e educação a oito irmãos, partiu para
a capital do Império, onde se ocupou, principalmente, do jornalismo48.
Uma nova mudança viria em meados da década de 1870, após mais uma
triste fatalidade, o falecimento de sua esposa. Neste momento, dois con-
vites lhe apareceram: o primeiro foi de José Carlos Rodrigues, enviando-
-lhe uma carta com os seguintes dizeres: “não quererá você vir ajudar ao
redator do ‘Novo Mundo’, trazendo seus filhinhos e educando-os ao sol
da liberdade americana?”49. Antes que algum retorno de Mendonça fosse
enviado aos Estados Unidos para este bilhete, outro convite inesperado
iria lhe despertar mais atenção: um cargo no consulado de Nova York. Tal
ocupação fora intermediada pelo barão de Paranapiacaba, João Cardoso
de Menezes e Souza, e pelo visconde do Rio Branco junto ao imperador.
Segundo Salvador de Mendonça, antes de dar qualquer resposta definiti-
va, ele fez questão de consultar os seus correligionários políticos, que lhe
afirmaram, categoricamente, não enxergarem naquele ato qualquer liga-
ção de confiança política com o regime em vigor, uma vez que os cargos
não pertenceriam a D. Pedro II, mas ao gabinete responsável50.

Até que surgisse uma vaga em Nova York, Salvador de Mendonça


foi nomeado para o consulado de Baltimore e, mais tarde, acabou ocu-
pando a função de cônsul geral nos Estados Unidos. Além dos trabalhos
executados nesse cargo, Mendonça não deixou de desempenhar o seu
ofício como jornalista, colaborando com algumas folhas. No caso dos
jornais Diário da Bahia e O Cruzeiro, as correspondências assíduas sobre
48  –  Cf. MENDONÇA, Carlos Süssekind de. Salvador de Mendonça: democrata do Im-
pério e da República. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro/Ministério da Educação
e Cultura, 1960, p. 22-34.
49  –  RODRIGUES, José Carlos. Carta de... a Salvador de Mendonça. Apud: Idem. Ibi-
dem, p. 102.
50 – Apud MENDONÇA, Salvador de. Idem. Ibidem, p. 102 e 103; e AZEVEDO, José
Afonso Mendonça. Vida e obra de Salvador de Mendonça. Brasília: Ministério das Rela-
ções Exteriores, 1971, p. 123. É importante destacar que Azevedo erroneamente diz que
o periódico, editado por Rodrigues em Nova York, se chamava Globo. O nome correto,
como se sabe, é O Novo Mundo.

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Um Novo Mundo para recomeçar: José Carlos Rodrigues
e as várias faces de seu periódico ilustrado (1870-1879)

a América do Norte ganharam os seguintes títulos: “Carta dos Estados


Unidos” (1880-1881) e “Cartas americanas” (1878-1883), respectiva-
mente. Já os textos escritos para O Novo Mundo mostraram-se mais es-
parsos51. Como, majoritariamente, os artigos não eram assinados neste
periódico, torna difícil designar com precisão os respectivos autores. Por
isto, presume-se que as matérias de Mendonça no órgão de José Carlos
versaram, principalmente, sobre acordos comerciais entre o Brasil e os
Estados Unidos, e a respeito da admiração que ele nutria pelo modelo
político-social estadunidense para reformular as instituições brasileiras, o
que mereceu elogios do proprietário da folha ilustrada52.

Por outro lado, um tema que esteve bastante presente n’O Novo
Mundo e foi muito explorado e defendido por seu redator-chefe não se
tornou alvo de reflexão pelos republicanos históricos: a abolição da escra-
vatura. E aí se tem a primeira percepção de que as ideias de José Carlos
não convergiam somente para aquele grupo. As afinidades de Rodrigues
ressoariam também com o pensamento de liberais do porte de Joaquim
Nabuco (1849-1910) e André Rebouças (1838-1898). Isto é, enxergavam
que a emancipação dos escravos era um dos pontos-chave para que as
reformas institucionais se iniciassem53. É importante lembrar que tal po-
sição não, necessariamente, levou a um embate direto com o regime mo-
nárquico, com o qual Nabuco e Rebouças, diga-se de passagem, tinham
boas relações, inclusive frequentando os corredores do Palácio Imperial54.

51  –  Cf. MENDONÇA, Carlos Süssekind de. Op. cit., p. 110; Outros autores a citar a
participação de Salvador de Mendonça n’O Novo Mundo foram ALONSO, Angela. Op.
cit., p. 111; e MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. Op. cit., p. 163.
52 – Cf. O Novo Mundo, 23/10/1875, p. 6; e “O Sr. Dr. Mendonça”, junho de 1879, p.
130.
53  –  Cf. NEVES, Lúcia M. Bastos Pereira das; MACHADO, Humberto Fernandes. “A
morte da escravidão”. In: O Império do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p.
371-376.
54  –  No caso de André Rebouças, ver CARVALHO, José Murilo de. A construção da or-
dem: a elite política imperial. Teatro de sombras: a política imperial. Op. cit., p. 349; ver
também ALONSO, Angela. Op. cit., p. 118 e o texto “Apropriação de ideias no Segundo
Reinado”. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (org.). O Brasil Imperial. Volume 3:
1870-1889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 90 e 91.

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Já no primeiro número d’O Novo Mundo, Rodrigues abriu o debate


em torno da abolição da escravatura. Discutiu como o tema era impor-
tante e a urgência de se colocar em prática os instrumentos legais que
dariam início às reformas tão necessárias, ainda que uma crise política se
mostrasse eminente. Para o jornalista, enfrentar a tensão de uma mudança
que estaria por vir seria mais adequado do que esperar a morte de milhões
de homens, tal como ocorrera nos Estados Unidos durante a Guerra de
Secessão. E esta foi justamente uma de suas críticas: a covardia das insti-
tuições imperiais em não tomar a responsabilidade de propor as transfor-
mações devido aos problemas a serem enfrentados: “[...] o corpo social
tendo necessidade de uma operação sendo um tanto difícil, o médico que
foi chamado para fazê-la recua com medo de assumir a responsabilidade
do ato [...]”55. Mais uma vez, percebe-se o uso do vocabulário da biologia
como correlato à linguagem política.

O debate sobre o fim do trabalho escravo na terra natal perpassou


quase todos os exemplares d’O Novo Mundo. José Carlos fez questão de
dar destaque, por exemplo, à promulgação da Lei do Ventre Livre, que
ele chamou de “grande e modesta revolução”, saindo o artigo no número
comemorativo de um ano de sua folha. Interessante é notar que as infor-
mações não apenas lhe chegavam pelos periódicos brasileiros que recebia
frequentemente, mas também pelas notícias frescas oriundas da capital
do Império pelas missivas de José da Silva Costa, que há alguns meses já
comentava sobre as pretendidas reformas do gabinete Rio Branco: “[...] a
nossa política está, como verás das folhas, indecifrável: os conservadores
tomaram a bandeira liberal – consignando na fala do trono reformas libe-
rais, como a do elemento servil, que tem sido o pomo de discórdia entre
os conservadores [...]”56.

Pouco mais de três meses após essa epístola de José da Silva Costa a
Rodrigues, o código abolicionista do Ventre Livre entrou em vigor, pas-
sando a considerar livres todos os filhos de mulher escrava nascidos a

55  –  Cf. “A emancipação dos escravos”. O Novo Mundo, 24/10/1870, p. 2.


56  –  COSTA, José da Silva. Carta de... a José Carlos Rodrigues, datada de 23 de junho
de 1871. Correspondência passiva de José Carlos Rodrigues. Op. cit., p. 76 e 77.

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Um Novo Mundo para recomeçar: José Carlos Rodrigues
e as várias faces de seu periódico ilustrado (1870-1879)

partir da data de 28 de setembro de 1871, sendo este preceito parte de


algumas reformas, como se mencionou, que foram realizadas durante o
ministério do visconde do Rio Branco com o objetivo de dar sobrevida ao
regime monárquico. No caso, aquela norma se inseria dentro do quadro
de reestruturação da economia, cuja base deveria começar a se modificar,
não se fundamentando mais no braço escravo. Embora tenha deixado sua
pasta antes de concluir todas as reformas pretendidas, em especial a aber-
tura do sistema político, o visconde – José Maria da Silva Paranhos – já
havia impactado a sociedade sobremaneira com essa lei. Percebendo a
importância desse ato, José Carlos fez questão de enaltecer a medida re-
alizada por Paranhos, e também de realçar seu sentimento de surpresa ao
perceber que, após doze meses ao lançamento d’O Novo Mundo, no qual
enfatizou a importância da abolição da escravatura, o Brasil começava
uma grande transformação neste sentido. Para o cantagalense, o país já
havia deixado de ser uma terra “morosa, indiferente”, e o mês de outubro
representava o momento no qual os cidadãos já poderiam orgulhar-se de
seu Estado57. Mas se, por um lado, a lei agradou alguns súditos, por ou-
tro, a grande lavoura, principal interessada na manutenção do escravismo
e um dos tentáculos de sustentação do sistema político monárquico, se
sentiu excluída. Não vendo seus anseios representados junto ao Império,
muitos dos ressentidos proprietários de terra migraram naturalmente para
a ala republicana.

A promulgação da Lei do Ventre Livre, sem dúvida, convergiu para


o início da queda do sistema imperial e, como sintetizou José Murilo de
Carvalho, era o princípio do divórcio entre o “rei e os barões”58. Um pe-
queno passo, pois a extinção do trabalho escravo ainda demoraria quinze
anos para se concretizar. Não por acaso, o assunto permaneceu recorrente
na imprensa, inclusive n’O Novo Mundo, que registrou inúmeras discus-
sões em torno da abolição da escravatura, mencionando textos e livros
que tratavam sobre o tema, mesmo que indiretamente59. Nesse sentido,
57  –  Cf. “Grande e modesta revolução”. O Novo Mundo, 24/10/1871, p. 2.
58  –  Cf. CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial.
Teatro de sombras: a política imperial. Op. cit., p. 322.
59  –  A questão foi abordada de várias formas n’O Novo Mundo e a partir de múltiplos

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vale assinalar a publicação de um texto de André Rebouças – “O imposto


territorial” – referente à sua defesa de um tributo como um elemento para
que houvesse uma democracia no campo, sem latifúndios60. Para o autor,
esse instrumento era uma complementação imprescindível após a eman-
cipação dos escravos e, a partir dele, outras reformas, liberais e democrá-
ticas, teriam o seu início, “destinadas a promover a união, a grandeza e a
prosperidade da família brasileira”.

Por meio de outra abordagem, destacam-se também as várias notas


elogiosas que o redator d’O Novo Mundo fez à autora americana Harriet
Beecher Stowe e à sua obra – Uncle Tom’s cabin (A cabana do Pai Tomás)
–, de 1850, afirmando que o livro representava “a mais poderosa novela
social” do século XIX, cujo teor popularizou a vergonha da escravidão,
mostrando os seus horrores e a injustiça dessa instituição61. Esse volume
foi visto como uma literatura referencial para a crítica à mão de obra
escrava, tornando-se mundialmente conhecido. Joaquim Nabuco, por
exemplo, o teria lido incontáveis vezes62.
eixos temáticos, mas, claro, sempre mantendo a defesa da emancipação dos escravos.
Como exemplo, ver os seguintes textos: “A lavoura e o crédito”, “O novo ministério”,
“O ministério e a emancipação” e “Origem da miséria”, de 23/11/1870, p. 18, 19 e 26,
respectivamente; “A liberdade e a fé”, de 24/01/1872, p. 59; “Açúcar do Peru”, de agosto
de 1876, p. 230; “O progresso agrícola em Pernambuco”, de fevereiro de 1877, p. 31; e
“Uma tarefa gloriosa”, de abril de 1879, p. 70. Vale frisar que fizemos referência a apenas
uma parcela mínima dos inúmeros artigos sobre esse tema divulgados na folha de José
Carlos Rodrigues.
60  –  Cf. REBOUÇAS, André. “Imposto territorial”. O Novo Mundo, abril de 1879, p. 82
e 83. Em uma nota, ao final do artigo, indica-se que este fora republicado neste número de
1879, tendo saído de fato no exemplar de maio de 1877, p. 102 e 103. Contudo, o nome
do autor somente apareceu na folha de 1879. Ainda sobre a defesa do imposto territorial
por Rebouças, ver CARVALHO, José Murilo de. “República, democracia e federalismo:
Brasil (1870-1891)”. In: Idem [et al.] (org.). Linguagens e fronteiras do poder. Rio de
Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2011, p. 28; e A construção da ordem: a elite política
imperial. Teatro de sombras: a política imperial. Op. cit., p. 349.
61  –  Ver os seguintes números d’O Novo Mundo: 24/08/1871, p. 170; 23/08/1872, p.
201; 23/01/1875, p. 100 e 101; e março de 1879, p. 61.
62  –  Cf. BETHELL, Leslie; CARVALHO, José Murilo de (org.). Joaquim Nabuco e os
abolicionistas britânicos: correspondência, 1880-1905. Rio de Janeiro: Topbooks, 2008,
p. 15. Já no Brasil, uma folha voltada especialmente para a questão do fim da escravatura
– O Abolicionista – foi lançada, na década de 1880, pelos membros da Sociedade Bra-
sileira Contra a Escravidão (SBCE), como o próprio Nabuco, André Rebouças, Américo
dos Santos, entre outros. A SBCE foi fundada em setembro de 1880 e, de acordo com An-

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Um Novo Mundo para recomeçar: José Carlos Rodrigues
e as várias faces de seu periódico ilustrado (1870-1879)

Já por outro viés, a ligação entre José Carlos e o engenheiro André


Rebouças se estreitaria. No caso, ao compartilharem a ideia do progresso
material norte-americano como referência para o crescimento socioeconô-
mico da sociedade brasileira. Filho do conselheiro liberal baiano Antônio
Pereira Rebouças, André, assim como Joaquim Nabuco e Rodolfo Dantas,
por exemplo, se encontrava em uma posição em que ainda tinha algum
acesso às portas do Palácio Imperial, fosse pela posição econômica da
família, fosse pelos recursos sociais angariados pela mesma com o intuito
de garantir boas posições para os seus descendentes, como foi o caso de
Rebouças63. Assim, o jovem engenheiro, após a formatura, pôde realizar
uma viagem de quase dois anos pela Europa, retornando ao país natal
com uma especialização em Engenharia Militar, o que, em certa medida,
já colaborava para a aquisição de certos cargos.

Mais tarde, em 1873, André faria outra turnê, agora, um breve passeio
pela América do Norte, país, diga-se de passagem, que lhe despertou bas-
tante interesse, e onde muito provavelmente travou amizade com o pro-
prietário d’O Novo Mundo64. Além do mais, Rodrigues parecia acompa-
nhar a trajetória de André Rebouças: “[...] como se vê logo da ‘Introdução’,
o autor destes artigos é o empresário da Companhia das Águas do Rio de
Janeiro, o Sr. Dr. André Rebouças, que inquestionavelmente marcha na
vanguarda da engenharia brasileira [...]”65. Especificamente em relação ao
gela Alonso, havia uma organização honorífica e outra ativista, sendo esta composta por
Joaquim Nabuco, presidente; Adolfo de Barros e Marcolino de Moura, vice-presidentes;
André Rebouças, tesoureiro; Américo dos Santos e José Carlos de Carvalho, secretários.
A autora destacou ainda que Santos era o editor da Revista de Engenharia da Politécnica
da Corte, e Carvalho, do periódico anglo-brasileiro O Novo Mundo. Cf. ALONSO, An-
gela. Ideias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império. Op. cit., p. 118.
Todavia, a pesquisadora parece ter cometido um engano ao associar o nome deste certo
José Carlos de Carvalho ao do jornalista José Carlos Rodrigues, uma vez também que
não foram encontradas fontes que pudessem confirmar a afirmação de Alonso, isto é, que
demonstrassem a atuação de Rodrigues nessa sociedade ou se haveria outro editor da
revista ilustrada, além deste, chamado José Carlos de Carvalho. Ao consultar o jornal O
Abolicionista, Rio de Janeiro, 1º de novembro de 1880, verificou-se que apenas existiu
menção ao nome de Carvalho como secretário da SBCE, sem qualquer alusão de vínculo
deste indivíduo com O Novo Mundo.
63  –  Cf. ALONSO, Angela. Ibidem, p. 115-118.
64  –  Cf. ASCIUTTI, Mônica Maria Rinaldi. Op. cit., p. 36.
65  –  Cf. “Capitais particulares e garantia oficial de juros”. O Novo Mundo, 23/02/1874,

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assunto abordado nesta nota, o engenheiro fazia a defesa da garantia de


juros por parte do Estado para atrair o capital estrangeiro, opinião análoga
à avaliação de José Carlos, por mais que este discordasse de Rebouças em
alguns pontos. Por certo, já apreciando as opiniões e a escrita de André, o
cantagalense enxergou nele um notável colaborador para sua revista ilus-
trada, o que veio ocorrer, de fato, a partir de 1875. Em alguns momentos,
Rodrigues chegou a transcrever n’O Novo Mundo alguns artigos de André
Rebouças publicados em outros periódicos, justamente, porque, como ele
próprio alegara, estava de pleno acordo com os conceitos emitidos pelo
engenheiro e, além disso, era seu desejo que tais apreciações fossem acei-
tas pelos seus patrícios66.

Muitos dos artigos de Rebouças eram voltados para a temática do


avanço socioeconômico estadunidense, e alguns ganharam destaque n’O
Novo Mundo, o que fez com que Rodrigues percebesse a possibilida-
de de lançar uma nova folha feita, exclusivamente, sobre a temática do
progresso material, assunto do seu particular interesse. Assim, a partir
de meados de 1877, os leitores brasileiros tinham à sua disposição mais
uma publicação ilustrada, de periodicidade mensal e impressa em Nova
York: a Revista Industrial. O periódico recém-lançado tinha como cola-
borador-coadjuvante André Rebouças e, de certo modo, buscava aliviar a
sobrecarga de algumas notícias das páginas d’O Novo Mundo. Como se
mencionou no editorial de julho de 1877, o aumento considerável de in-
teresse para com as reportagens sobre a indústria, a lavoura, o transporte,
o comércio, entre outros temas concernentes ao “progresso e ao desen-
volvimento da pátria”, fez com que se cogitasse confeccionar uma folha
exclusivamente para discutir essas questões67.

p. 90.
66  –  Como exemplo, ver os seguintes textos n’O Novo Mundo, de abril de 1877: “Café”,
“Algodão” e “Açúcar”, p. 75, 78 e 79, respectivamente.
67  –  Cf. “Ao público”. Ibidem, julho de 1877, p. 146. Ver também o número de agosto
de 1877, p. 191, em que se divulgou o lançamento da Revista Industrial. O Novo Mun-
do foi utilizado como fonte para se ter o mínimo de conhecimento do que foi a Revista
Industrial, haja vista que não foram encontrados exemplares deste órgão em nenhuma
hemeroteca dos arquivos visitados.

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Um Novo Mundo para recomeçar: José Carlos Rodrigues
e as várias faces de seu periódico ilustrado (1870-1879)

Por certo, José Carlos já havia percebido, por meio dos anunciantes
d’O Novo Mundo, que valeria a pena investir em outra folha ilustrada
direcionada para determinados setores da economia. No magazine, des-
taca-se o número expressivo de propagandas concernentes às máquinas
agrícolas e industriais, às vias férreas, à venda de gado bovino e lanígero,
melhoramentos para a lavoura, além de implementos na área de obras pú-
blicas, entre outros muitos produtos e serviços anunciados que estavam,
direta ou indiretamente, relacionados aos textos publicados e que, poste-
riormente, passariam a ocupar também as páginas da Revista Industrial68.

Nesse sentido, convém fazer um pequeno parêntese para explicar


que os reclames, normalmente, ocupavam de duas a três páginas d’O
Novo Mundo. Como José Carlos apontou em seu discurso autobiográfico,
no início, era ele quem exercia todas as funções para que a revista fosse
posta em circulação, inclusive, correndo atrás dos anúncios69.

Lamentavelmente, não foram encontrados exemplares da Revista


Industrial. Entretanto, os sumários do magazine eram publicados regu-
larmente n’O Novo Mundo, sendo possível inferir que a intenção dos
redatores era propiciar uma análise contemporânea da economia, tan-
to do Brasil quanto de outros países, e divulgar experiências bem su-

68  –  Marcus Vinicius de Freitas apresenta esta hipótese para o jornal Aurora Brasilei-
ra, mas tal pode ser muito bem apropriada para os anúncios n’O Novo Mundo. Conferir
a seguinte obra deste autor, Contradições da modernidade: o jornal Aurora Brasileira
(1873-1875). Op. cit., p. 47 e 48.
69  –  A tabela de preços dos anúncios era estruturada da seguinte forma – nos primeiros
anos de existência do periódico: quatro colunas, 220$; três colunas, 200$; duas colunas,
150$; uma coluna, 80$; meia coluna, 40$; ¼ de coluna, 22$; 1/8 de coluna, 10$; e 1/16
de coluna, 6$. Os anúncios repetidos sofriam abatimento no valor, no caso, três meses –
10%; por seis meses – 20%; e por um ano – 30%. A título de curiosidade, Cândido Men-
des de Almeida e Rodrigues chegaram a ter um pequeno desentendimento por causa da
publicação dos anúncios das obras do político n’O Novo Mundo. Cf. ALMEIDA, Cândido
Mendes de. Cartas de... a José Carlos Rodrigues, datadas de 23 de novembro de 1874 e 22
de janeiro de 1875. Correspondência passiva de José Carlos Rodrigues. Op. cit., p. 144 e
145. George Boehrer também ressaltou que as propagandas do setor industrial n’O Novo
Mundo, principalmente, das chamadas indústrias de base, aumentaram consideravelmente
a partir de 1872, sendo mais da metade dos anúncios e com destaque, haja vista que ocu-
pavam uma dimensão maior nas páginas. Cf. BOEHRER, George C. A. Op. cit., p. 137.

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cedidas como referência para os leitores brasileiros70. Com a criação da


Revista Industrial, as matérias n’O Novo Mundo se voltaram mais para
o público feminino, aumentando-se o caderno já existente, denominado
“Suplemento para senhoras”71. Não obstante, as notícias e os artigos so-
bre política, economia e sociedade norte-americana, bem como sobre as
questões sociais e institucionais brasileiras não seriam deixados de lado
no “periódico ilustrado do progresso da idade”.

Por fim, ainda há um último assunto que merece ser analisado, pois
tanto quanto as questões que foram tratadas nas linhas precedentes, ele
se sobressaiu nas páginas d’O Novo Mundo como um elemento-chave
para promover as reformas institucionais que a sociedade brasileira ca-
recia. Aliás, o tema converge para outros assuntos já defendidos por José
Carlos. No caso, de forma concisa e objetiva, pode-se afirmar que, para
Rodrigues, não poderia haver crescimento socioeconômico pleno e signi-
ficativo em um país escravocrata, com uma massa de analfabetos e amor-
daçado a uma religião oficial do Estado72.

As matérias voltadas para o que, hoje em dia, denomina-se de


educação básica foram também muito recorrentes n’O Novo Mundo.
Enfatizou-se, sobretudo, a importância da instrução primária como pon-
to crucial para a civilização e o desenvolvimento da sociedade: “[...] o
verdadeiro progresso nacional consiste em educar o povo que temos e
esse povo é um povo que precisa antes a carta do A B C do que as disser-
tações de Bellarmino e os alfarrábios dos praxistas portugueses [...]”73.
Especificamente, neste texto, publicado no primeiro número da revista
ilustrada e, muito provavelmente, escrito por seu redator, a tenaz defesa

70  –  Ver a relação dos títulos das matérias publicadas na Revista Industrial nos seguintes
exemplares d’O Novo Mundo: outubro de 1877, p. 240; novembro de 1877, p. 260; janeiro
de 1878, p. 23; fevereiro de 1878, p. 47; março de 1878, p. 71; abril de 1878, p. 95; maio
de 1878, p. 119; julho de 1878, p. 167; agosto de 1878, p. 191. A partir de 1879, os sumá-
rios eram publicados nas primeiras páginas do periódico, sendo concernentes aos meses
de janeiro a novembro de 1879.
71  –  Cf. ASCIUTTI, Mônica M. Rinaldi. Op. cit., p. 37.
72  –  Por exemplo, ver “Escravidão e educação popular”. O Novo Mundo, 23/12/1870,
p. 34.
73  –  “A universidade brasileira”. Ibidem, 24/10/1870, p. 3.

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Um Novo Mundo para recomeçar: José Carlos Rodrigues
e as várias faces de seu periódico ilustrado (1870-1879)

do ensino elementar veio acompanhada de uma crítica à possível criação


de uma universidade no Brasil, que reuniria toda a instrução pública su-
perior do Império. À primeira vista, os dizeres podem causar certa estra-
nheza ao leitor. Contudo, o que o autor do escrito quis enfatizar foi que,
antes de pensar na fundação de um vasto espaço que reuniria as diversas
áreas do saber mais científico, era necessário dar ênfase à alfabetização
da grande maioria daquela sociedade que ainda não detinha o básico. Na
opinião divulgada n’O Novo Mundo, não se justificava realizar um amplo
investimento em uma instituição que abrigaria uma parcela mínima da
população. E mais: tal reforma prejudicaria as próprias faculdades que
existiam nas províncias, deslocando-as para um único centro e, portanto,
dificultando o ingresso de candidatos que não dispunham de condições
para se transferir para outra cidade. É relevante ressaltar que muitos dos
artigos referentes ao tema da educação eram apresentados com dados es-
tatísticos, que buscavam melhor embasar as argumentações defendidas
nos textos74.

A defesa do investimento prioritário na educação básica, estabele-


cendo-a como primordial, não significou que a instrução superior fosse
posta de lado nas páginas d’O Novo Mundo; muito pelo contrário. A par-
tir de outro foco, notícias sobre cursos superiores também foram divul-
gadas no periódico de José Carlos Rodrigues, o que, mesmo de forma
branda, reorientava gradativamente estudantes a se encaminharem para
os Estados Unidos ao invés de somente irem para a Europa75. E, nesse
sentido, dois nomes se sobressaem: o da Universidade de Cornell e do
geólogo Charles Frederick Hartt. O primeiro, porque foi uma das institui-
ções de ensino americana mais divulgada nos números d’O Novo Mundo,
e o segundo, devido à sua estreita relação com o proprietário desse pe-
riódico, o que colaborou para que José Carlos apreciasse melhor aquela
74  –  Ver os seguintes artigos n’O Novo Mundo: “As escolas brasileiras”, 23/11/1870,
p. 22; “Educação popular nos Estados Unidos”, 23/12/1870, p. 38; “Escolas públicas em
New York”, 24/06/1871, p. 138 e 139; “Educação pública na Itália”, 24/07/1871, p. 155; e
CASTILHO E MELLO. “Instrução pública em Portugal”, 21/02/1873, p. 86.
75  –  Cf. “Três jovens brasileiros, de S. Paulo”. O Novo Mundo, 24/08/1871, p. 167.
Sobre a questão da reorientação dos modelos de civilização e cultura, ver BOEHRER, Ge-
orge C. A. Op. cit., p. 140 e 141; e FREITAS, Marcus Vinicius de Freitas. Op. cit., p. 23.

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escola superior e também, como foi possível averiguar na análise sobre


a amizade de ambos, Hartt foi um pesquisador do território brasileiro e
assíduo frequentador no país, permitindo que tanto o seu trabalho como
Cornell ficassem conhecidos por aqui.

Por volta de meados de 1871, o jornalista brasileiro esteve na cidade


de Ithaca para conhecer de perto, pela primeira vez, a recém-inaugurada
Universidade de Cornell. Entusiasmou-se com os seus edifícios, muitos
ainda em construção, mas que, de acordo com Rodrigues, já demonstra-
vam grandeza e modernidade. Além disso, chamaram-lhe a atenção as
volumosas bibliotecas, o método de avaliação dos alunos, os alojamentos
e todas as demais instalações desse centro educacional, especialmente,
os laboratórios. A esse respeito, Rodrigues chegou a fazer um comentá-
rio um tanto peculiar ao tentar visitar o espaço destinado às experiências
práticas do amigo Charles Frederick Hartt, que, constantemente, excur-
sionava pelo território brasileiro: “[...] o gabinete geológico, com as ricas
coleções do professor Hartt, entre outras muitas, estava fechado. Talvez
o professor, cioso das suas raridades, tivesse levado a chave consigo para
o Brasil [...]”76. Eram materiais, diga-se de passagem, na maior parte ori-
ginada da terra natal de Rodrigues. Ademais, os resultados dos trabalhos
desenvolvidos por este pesquisador canadense-americano também saíam
constantemente nas páginas da revista do amigo fluminense, pois vários
estudos de Hartt estavam, diretamente, ligados aos interesses de alguns
leitores brasileiros77.

Já a extensiva divulgação que se realizava n’O Novo Mundo sobre a


Universidade de Cornell e outras instituições de ensino estadunidenses,
em especial, para as áreas das Ciências Agrárias, Exatas, Naturais e da
Saúde, não apenas estava ligada ao encantamento de José Carlos com es-
ses centros. Sem dúvida, Rodrigues também compreendia a necessidade
de realizar textos elogiosos a determinados setores que, de alguma forma,

76 – O Novo Mundo, 24/08/1871, p. 167.


77  –  Ver os seguintes textos n’O Novo Mundo: cf. “Geologia do Brasil”, 24/10/1870, p.
10. “O prof. Ch. Fred. Hartt”, 23/01/1871, pp. 60 e 61; “Ciência”, 23/09/1873, p. 201; e
“Brachiopodes do Tapajós”, 23/08/1874.

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Um Novo Mundo para recomeçar: José Carlos Rodrigues
e as várias faces de seu periódico ilustrado (1870-1879)

pudessem chamar a atenção de novos anunciantes, beneficiando a confec-


ção de sua folha ilustrada78, o que, por consequência, levava a uma maior
divulgação dessas academias em território brasileiro, oferecendo infor-
mações sobre oportunidades acadêmicas que não fossem apenas o bacha-
relismo. Prova disso foi que o jornalista acabou tornando-se uma espécie
de tutor de muitos estudantes na América do Norte, como vale destacar
uma solicitação do republicano Joaquim Saldanha Marinho, que pede co-
adjuvação para dois rapazes, Francisco Andrada de Paula Viana e Pedro
Bicudo, que estudaram um, Medicina, e o outro, Engenharia. O político
ainda observou que ambos eram de famílias distintas de Campinas e que
os entregava aos conselhos e à direção de José Carlos79. Além disso, certa
vez, um pai – o paraense Jesuíno Marcondes de Oliveira Sá –, por certo,
leitor assíduo d’O Novo Mundo, enviou uma missiva a Rodrigues para
que ele o aconselhasse na escolha de uma faculdade nos Estados Unidos
para seu filho e que, se possível, fosse um protetor para seu único varão.
Ilmo. Amigo Dr. J. C. Rodrigues,
Apesar de não ter a honra de conhecer V. Sª. pessoalmente ouso diri-
gir-lhe esta carta pedindo-lhe um valiosíssimo favor. O Novo Mundo
redigido por V. Sª. com elevada proficiência e patriotismo tem feito
popular e conhecido o nome de V. Sª. entre as classes mais adiantadas
de nossa pátria cuja civilização e bem-estar merecem-lhe com tanta
atenção. A escolha que fiz dos Estados Unidos para aí educar meu
filho Moisés Marcondes, que terá a honra de apresentar-lhe esta é ins-
pirada na leitura do Novo Mundo. Digne-se pois V. Sª. servir de pai a
meu filho nesse país dirigindo sua educação e guiando-o em tudo que
lhe possa ser útil. Ele vai estudar Medicina e desejo que o faça em uma
cidade do norte, onde o clima seja saudável, os costumes puros e a
vida barata. Sendo possível, desejo que essa cidade não seja muito dis-
tante da residência de V. Sª. a fim de que meu filho possa cultivar suas
relações e aproveitar seus conselhos. Bem singular parecerá talvez a
V. Sª. meu procedimento, mas confiando-lhe meu único filho varão

78  –  Como exemplo, ver os seguintes números d’O Novo Mundo: “A Universidade de
Cornell”, 24/06/1871, p. 140 e 141; “Brasileiros em Cornell”, 23/10/1872, p. 2; e “A fa-
culdade médica da Universidade da Pensilvânia”, 23/01/1875, p. 116.
79  –  Cf. MARINHO, Joaquim Saldanha. Carta de... a José Carlos Rodrigues, datada de
25 de julho de 1874. Correspondência passiva de José Carlos Rodrigues. Op. cit., p. 224
e 225.

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Júlia Ribeiro Junqueira

assaz provo a consideração que lhe voto. Se este meu pedido encontrar
acolhimento favorável terá V. Sª. as bênçãos de uma família inteira.
Meu pouco préstimo fica à disposição de V. Sª. e os sentimentos de
estima e consideração com que sou
Seu patrº. atº. e venerador
Jesuíno Marcondes de Oliveira Sá80.

O número de estudantes brasileiros a frequentar a Universidade de


Cornell aumentou consideravelmente depois das matérias publicadas n’O
Novo Mundo e, claro, graças ao empenho de José Carlos em encami-
nhar pessoalmente muitos desses jovens, além dos esforços do professor
Hartt81. O primeiro a chegar à cidade de Ithaca foi o paulista de Itu, Elias
Fausto Pacheco Jordão, com o propósito de estudar Engenharia, ficando
sob os cuidados daquele geólogo82. Posteriormente, ele teria a compa-
nhia de outros conterrâneos de província, como Bento de Almeida Prado,
Francisco de Assis Vieira Bueno Júnior, Carlos Paes de Barros e Luís
de Souza Barros. Mais tarde, chegaram Antônio de Queiroz Telles Neto
e José Custódio Alves de Lima, e um estudante do Rio de Janeiro, José
Herculano Tomaz de Aquino. Além desses, aportou também na América
do Norte, Tomaz de Aquino e Castro, que fez questão de registrar a hospi-
talidade que ele e José Custódio haviam recebido de Rodrigues:
[...] Depois de 3 dias de estada em New York, em 24 de Fevereiro, às
7 horas da noite, o nosso patrício Dr. J. C. Rodrigues guiava-nos à es-
tação da estrada de ferro do Erie a fim de bondosamente acompanhar-
-nos até Ithaca e nos recomendar a amigos, com sacrifício de seus
afazeres e somente conduzido pelo espírito de patriotismo. Longe dos
nossos, não passe em silêncio essa delicadeza; é quando se pode ava-
liar tais serviços83.

80  –  SÁ, Jesuíno Marcondes de Oliveira. Carta de... a José Carlos Rodrigues, datada de
19 de junho de 1877. Ibidem, p. 279 e 280.
81  –  Cf. CASTRO, Tomaz de Aquino e. “Impressões de uma viagem do Rio de Janeiro
a Ithaca”. Aurora Brasileira, Ithaca, 20/05/1874, p. 61 e 62; e FREITAS, Marcus Vinicius
de. Op. cit., p. 23, 31-35.
82  –  Cf. HARTT, Charles Frederick. Carta de... a José Carlos Rodrigues, datada de 18 de
junho de 1871. Correspondência passiva de José Carlos Rodrigues. Op. cit., p. 137 e 138.
83  –  CASTRO, Tomaz de Aquino e. Op. cit., p. 62.

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Um Novo Mundo para recomeçar: José Carlos Rodrigues
e as várias faces de seu periódico ilustrado (1870-1879)

Por sinal, a ligação entre esses jovens acadêmicos e José Carlos ain-
da se tornou mais estreita com a fundação por aqueles estudantes de um
periódico, que seguia a linha editorial d’O Novo Mundo: tratava-se da
Aurora Brasileira. Aproximações que se deram não apenas por meio da
semelhança dos temas e dos assuntos tratados em ambas as folhas, mas,
principalmente, por um de seus objetivos: atender a um público leitor na
terra natal, ser o elo de informações e conhecimento, de impressões entre
a América do Norte e o Brasil84. Assim, a Aurora Brasileira – periódico
literário e noticioso – foi fundada em outubro de 1873 por um grupo
de universitários pertencentes ao Clube Brasileiro de Cornell, que con-
gregava não somente os patrícios como também discentes americanos e
docentes ligados ao Brasil, como o geólogo Charles Frederick Hartt. Já
em seu primeiro número, os redatores deixaram claro o propósito daquele
órgão: “[...] facultar a todos os brasileiros que desejarem vir estudar nes-
ta Universidade os esclarecimentos precisos; enviar mensalmente para o
Brasil notícias de seus filhos [...], publicar o fruto de suas honras de lucu-
brações e pugnar pela sua união e bem-estar [...]”85. Era também comum
que esses periódicos citassem um ao outro, seja através dos anúncios ou
de artigos destinados a sempre fazer algum comentário elogioso sobre a
confecção das folhas e seus redatores86. Além disso, n’O Novo Mundo,
por exemplo, publicavam-se informações sobre os acadêmicos, como no-
tícias dos mais recentes formandos em Cornell, em setembro de 1876: os
engenheiros civis paulistas, Francisco de Assis Vieira Bueno Júnior, da
cidade de Santos; e Carlos Paes de Barros, de Sorocaba87.

Grande parte desses estudantes eram filhos de proprietários da la-


voura de café do Oeste Paulista, região que englobava cidades como
Campinas, Sorocaba, Itu, Rio Claro, entre outras localidades, onde mui-
tos cafeicultores estiveram envolvidos em manifestações republicanas,

84  –  Cf. FREITAS, Marcus Vinicius de. Op. cit., p. 37.


85  –  AQUINO, Herculano. “Aurora Brasileira”. Aurora Brasileira, 22/10/1873, p. 1. O
periódico teve uma curta duração, encerrando suas atividades em 1875.
86  –  Cf. “O Instituto do Novo Mundo”. Aurora Brasileira, 20/01/1875, p. 31 e 32; e O
Novo Mundo, 24/11/1873, p. 25.
87 – Cf. O Novo Mundo, setembro de 1876, p. 267.

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Júlia Ribeiro Junqueira

defendendo, entre outras reformas, a diversificação do modelo econômi-


co nacional. Nesse sentido, detinham uma visão mais empresarial de suas
propriedades rurais, preocupando-se, por exemplo, em utilizar as mais
recentes descobertas científicas no intuito de desenvolver novas técnicas
de cultivo, adquirir equipamentos mais modernos e, assim, aumentar a
sua produtividade. Fator que os aproximava do proprietário d’O Novo
Mundo, à medida que muitas páginas dessa folha apresentavam, exata-
mente, esse progresso como uma alternativa para o crescimento socioe-
conômico do país88.

Portanto, percebe-se que O Novo Mundo foi um espaço privilegiado


e de referência para jovens que completavam a sua formação nos Estados
Unidos. A par disso, verificou-se que alguns dos anseios manifestados
na folha ilustrada convergiam, em parte, para as aspirações da “geração
1870”, embora José Carlos avançasse contra, por exemplo, o Manifesto
Republicano em alguns aspectos, ao apontar inúmeras vezes os proble-
mas da manutenção do trabalho escravo na terra natal. De qualquer modo,
o “periódico ilustrado do progresso da idade” iria ainda além de tais dis-
cussões, sendo um espaço também para ulteriores debates. E mais, pos-
sibilitou a José Carlos não apenas demonstrar suas habilidades e méritos,
como ampliou consideravelmente suas redes de sociabilidade e, em mui-
tos momentos, aproximou-o de indivíduos influentes, tanto na impren-
sa – brasileira e norte-americana – quanto na política e no mundo dos
negócios. A confecção de um periódico mensal nos Estados Unidos por
quase dez anos, sem dúvida, detinha um valor notório que o cantagalense
dividia com os seus colaboradores, com os homens de imprensa, com
empresários, com os colegas que o assessoravam do Brasil e divulgavam
o seu trabalho na terra natal, entre outras inúmeras personalidades a quem
Rodrigues recorria para que suas folhas fossem colocadas em circulação
até dezembro de 187989.

88  –  Cf. ALONSO, Angela. Ideias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-
-Império. Op. cit., p. 149-155; e FREITAS, Marcus Vinicius de. Op. cit., p. 19 e 75.
89  –  Foram 108 números publicados, sendo que, exceto pelos anos de 1870, com três nú-
meros, e 1876, com nove números, os demais anos – 1871, 1872, 1873, 1874, 1875, 1877,
1878 e 1879 – tiveram doze números lançados. Com essa revista, José Carlos alcançou a

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Um Novo Mundo para recomeçar: José Carlos Rodrigues
e as várias faces de seu periódico ilustrado (1870-1879)

Devido às interrupções frequentes da única linha de navegação entre


Nova York e o Rio de Janeiro e, principalmente, à nova tarifa postal do
Brasil, que elevara o preço da entrada de impressos no país, José Carlos
Rodrigues se viu obrigado a suspender as publicações d’O Novo Mundo
e da Revista Industrial, em janeiro de 188090. Embora consternado com
o fim dos periódicos, o jornalista registrou o quanto ambos foram es-
senciais para a manutenção e ampliação de suas relações profissionais,
às quais ele sempre poderia recorrer: “[...] foi uma esplêndida aprendi-
zagem essa que também me colocou em contato com os principais re-
presentantes da imprensa de New York. Se em 1880 estava tão pobre
como em 1870, adquire um precioso tirocínio e as melhores relações no
mundo literário, artístico e também político dos Estados Unidos [...]”91.
José Carlos fez ainda questão de citar a amizade compartilhada com os
presidentes Ulysses Grant e James Garfield, e que fora sócio do muito
exclusivo Clube das Universidades, onde se encontrava frequentemente
com os políticos Elihu Root e Theodore Roosevelt92. De fato, as amizades
influentes e as relações angariadas não foram suficientes para manter as
suas folhas em circulação, mas desempenharam papéis preponderantes
para que novas portas se abrissem.

Texto apresentado em novembro/2018. Aprovado para publicação


em maio/2019.

tiragem de 8.000 exemplares.


90  –  Cf. RODRIGUES, José Carlos. “Alocução do Dr. José Carlos Rodrigues”. Op. cit.,
p. 40; “Ao público”. O Novo Mundo, dezembro de 1879, p. 274; e BOEHRER, George
C. A. Op. cit., p. 131.
91  –  Quando Rodrigues os conheceu, muitos, como o brasileiro, eram iniciantes no ofí-
cio, mas, futuramente, ocupariam cargos importantes em determinados periódicos, como
George William Curtis, redator da Harper’s Weekly. Cf. RODRIGUES, José Carlos. Ibi-
dem, p. 41.
92  –  Ver GARFIELD, James A. Carta de... a José Carlos Rodrigues, datada de 29 de
março de 1881, na qual o remetente acusa o recebimento de uma carta de Rodrigues em
que este enviara a tradução, para o português, de um discurso do então presidente recém-
-eleito. Correspondência passiva de José Carlos Rodrigues. Op. cit., p. 283. O endereço
do destinatário era justamente o University Club, New York City.

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Portugal e a gênese do pensamento diplomático brasileiro

183

PORTUGAL E A GÊNESE DO PENSAMENTO


DIPLOMÁTICO BRASILEIRO
PORTUGAL AND THE GENESIS
OF BRAZILIAN DIPLOMATIC THOUGHT
Sérgio Eduardo Moreira Lima1

Resumo: Abstract:
Este ensaio é sobre a gênese da diplomacia bra- This paper presents an overview of the genesis
sileira, das tradições, dos princípios, dos valores and development of Brazilian diplomacy,
e dos personagens que marcaram sua evolução, including its traditions, principles, and values,
bem como do papel de Portugal nesse processo as illustrated by a few historical figures that
histórico. Seu propósito é motivar o interesse no marked its evolution, as well as the role played
aprofundamento de pesquisas sobre a presença by Portugal in that process. Our purpose is to
de Portugal na formação do pensamento diplo- stimulate further research into the presence of
mático brasileiro. O estudo do tema ajudará a Portugal in the formation of Brazilian diplomatic
avaliar a contribuição daquele país, de seus thought. Further research will aid in assessing
governos, de instituições e de políticas na defi- how Portuguese governments, institutions and
nição de princípios e de valores. Espera-se que policies on principles and values contributed
novos elementos de análise surjam desse exercí- to shaping Brazilian diplomacy. The author
cio de reflexão histórica para avaliar o grau de is confident that new topics of analysis will
influência de Portugal na diplomacia do Brasil- emerge from this historical reflection, and bring
-Império e suas repercussões contemporâneas about a more thorough evaluation of Portugal’s
na República. A palestra do autor, no Instituto influence on the diplomacy in Brazil during the
Universitário de Lisboa (ISCTE), serviu de base imperial and republican periods. The paper is
à elaboração do presente ensaio, no qual seis based on a lecture given by the author at the
personagens foram escolhidos em razão do seu University Institute of Lisbon (ISCTE). The six
concurso como diplomatas ou estadistas para personalities discussed both in the lecture and
ilustrar essa construção histórica e axiológica: in this paper are: Alexandre de Gusmão, José
Alexandre de Gusmão, José Bonifácio, Duarte Bonifácio, Duarte da Ponte Ribeiro, Francisco
da Ponte Ribeiro, Varnhagen, José Maria da Sil- Adolfo de Varnhagen, José Maria da Silva
va Paranhos Júnior e Rui Barbosa. Paranhos Júnior, and Rui Barbosa. They were
chosen for their work as diplomats or statesmen
to illustrate the historical ties between Portugal
and the Brazilian diplomacy and the values
upon which these ties were based.
Palavras-chave: Brasil; Portugal; Princípios; Keywords: Brazil; Portugal; Principles; Values;
Valores; Diplomacia. Diplomacy

Introdução
Este ensaio trata da gênese do pensamento diplomático brasileiro,
das tradições, dos princípios, dos valores e dos personagens que marca-
ram sua evolução, bem como do papel de Portugal nesse processo histó-
rico.

1  –  Ex-presidente da Fundação Alexandre de Gusmão – FUNAG.

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Sérgio Eduardo Moreira Lima

Em 2013, a Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG) organizou


um projeto que contribui para uma narrativa de valores2 da política exter-
na e das relações internacionais do Brasil. Dele, resultaram três volumes
sobre o pensamento diplomático brasileiro3, em que seus organizadores
e autores nutriam a ambição de tornar aquele trabalho o primeiro passo
para outras pesquisas e debates que fossem além da análise de persona-
gens e de circunstâncias. Defendiam a noção de que a diplomacia brasi-
leira dispõe, historicamente, de ideias, ou de um pensamento, a sustentar-
-lhe a ação. A obra, que contou com a participação de profissionais do
Itamaraty e de acadêmicos, com notório conhecimento da matéria, fez
criteriosa seleção de vultos que influíram nas tradições, nos conceitos e
nas formulações do que se poderia identificar como pensamento diplomá-
tico brasileiro.

A centralidade da diplomacia nas questões de Estado e a importân-


cia especial que adquiriu no Brasil em consequência da dimensão do seu
espaço territorial, do número de países do seu entorno geográfico, assim
como da diversidade dos elementos formadores da nacionalidade torna-
ram a narrativa ainda mais atraente, inclusive para além das fronteiras
nacionais. Ao conhecer aspectos da história da América do Sul, pode-se
melhor compreender o paradigma de paz estabelecido pela diplomacia
regional com a decisiva participação do Brasil. É importante, todavia, o
estímulo da pesquisa ao aprofundamento do tema e sua complementação

2  –  Na acepção usada neste ensaio, valores correspondem às crenças fundamentais de


um povo, aos princípios que utiliza para definir o que é certo, bom e justo. Valores re-
presentam os padrões morais, que inspiram e fornecem orientação quando se busca di-
ferenciar o certo do errado, o bom do mau. Em sociologia, o termo utilizado no plural
designa um conjunto de qualidades que ilustram comportamento admirado e enaltecido
como princípio fundamental da vida de um determinado grupo social. Como os valores
estão ligados à moral e à ética, sua universalização, ainda que problemática em razão das
diferenças dos padrões culturais e de civilização, constitui importante desafio.
3  –  PIMENTEL, José Vicente de Sá. (org.). Pensamento Diplomático Brasileiro: For-
muladores e Agentes da Política Externa (1750-1964). Brasília: FUNAG, 2013, v. 1; PI-
MENTEL, José Vicente de Sá (org.). Pensamento Diplomático Brasileiro: Formuladores
e Agentes da Política Externa (1750-1964). Brasília: FUNAG, 2013, v. 2; PIMENTEL,
José Vicente de Sá (org.). Pensamento Diplomático Brasileiro: Formuladores e Agentes
da Política Externa (1750-1964). Brasília: FUNAG, 2013, v. 3.

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Portugal e a gênese do pensamento diplomático brasileiro

a partir também da percepção externa e de perspectivas distintas bem


fundamentadas.

O papel da diplomacia na história do Brasil e na formação de sua


identidade assume tamanho relevo, que um dos grandes heróis da pátria
é um diplomata, José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio
Branco. Ao negociar com base nos costumes e nas normas jurídicas in-
ternacionais as questões complexas de limites territoriais de um país com
dez vizinhos – e que representa 50% da América do Sul –, contribuiu
ele para a criação de um marco de estabilidade não apenas regional, mas
também hemisférico, com repercussões na consolidação do direito das
gentes e no fortalecimento de princípios e de valores de importância para
a convivência internacional.

Em recente entrevista a propósito de livro a ser por ele lançado, o


embaixador Rubens Ricupero comenta que sua obra constitui tentativa de
mostrar como os fatores externos influíram na criação do que é o Brasil
de hoje. Esclarece que não se trata de uma tradicional história do Brasil,
tampouco uma história da diplomacia. Segundo ele, “o Brasil nasce sob
o signo da política exterior, do mundo de fora”4. Observa ainda que, até
há algum tempo, quando se falava sobre a história do Brasil, a diploma-
cia era tratada como se não fizesse parte dela. Mas o Brasil, a seu juízo,
“é um herdeiro da diplomacia, sobretudo da diplomacia de Portugal, um
país europeu que não tinha força econômica nem política para enfrentar
a supremacia da Espanha”5. Salienta ainda que “muito cedo os portugue-
ses perceberam que a própria existência deles dependia da diplomacia e
fizeram uma aliança com a Inglaterra que, provavelmente, é a mais antiga
do mundo”6. Rubens Ricupero conclui esses comentários de sua longa
conversa com a afirmação de que “a diplomacia portuguesa é exemplo de
como um pequeno país sobrevive e sobreviveu com uma política externa
defensiva. O Brasil herdou este espírito...”.
4  –  RICUPERO, Rubens. Sob o signo do mundo de fora. Valor Econômico, 9 set. 2016.
Disponível em: <http://www.valor.com.br/cultura/4703485/sob-o-signo-do-mundo-de-
-fora>. Acesso em: 26 set. 2016.
5 – Ibid.
6 – Ibid.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):183-212, mai./ago. 2019. 185


Sérgio Eduardo Moreira Lima

Ricupero tem razão ao afirmar que a diplomacia era tratada como se


não fizesse parte da história do Brasil. Apenas para citar um exemplo, o
livro Brasil: Uma Biografia, das historiadoras Lilia Schwarcz e Heloisa
Starling7, com quase 700 páginas, não faz uma única referência ao Barão
do Rio Branco, patrono da diplomacia brasileira, à formação territorial
do país e à definição de suas fronteiras. É como se o espaço físico não
fizesse parte da identidade do Brasil, quinto maior território do mundo.
Enfim, dadas a dimensão do seu espaço e a diversidade dos grupos étni-
cos e culturais formadores da nação brasileira, o binômio integridade e
integração territorial tão importante historicamente, antes de representar
desafio ao Brasil como estado-nação, seja no período do Império, seja no
da República, já constituía motivo de grave preocupação para a adminis-
tração colonial portuguesa. Os processos de formação e de preservação
da integridade e de promoção da integração nacional – que se correlacio-
nam – apresentam componente externo, cujo tratamento foi sendo pensa-
do e construído ao longo da história com o concurso das personalidades
examinadas na referida coleção Pensamento Diplomático Brasileiro.

Num exercício intelectual da abrangência deste último projeto, há


sempre o risco de deficiências metodológicas. Os personagens escolhidos
não esgotam, necessariamente, a relação de todos os formuladores e agen-
tes diplomáticos que concorreram para a elaboração e para a execução de
princípios e de ideias que marcaram a história diplomática brasileira. De
todo modo, a iniciativa é meritória e deverá inspirar outros estudiosos a
aperfeiçoá-la e complementá-la, inclusive, no seu universo de tempo, que
começa antes mesmos da independência do país e se esgota em 1964,
e, também, no espaço geográfico, enriquecida pela eventual inclusão de
novas pesquisas junto às chancelarias estrangeiras sobre a memória de
outros protagonistas a respeito dos fatos e das narrativas ali contidas.

Foi nesse contexto que surgiu a ideia de realizar este trabalho com
o propósito de motivar o interesse de entidades de pesquisa portugue-
sas para a troca de impressões sobre a presença de Portugal na formação
7 – SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma Biografia.
São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

186 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):183-212, mai./ago. 2019.


Portugal e a gênese do pensamento diplomático brasileiro

do pensamento diplomático brasileiro. A reflexão sobre o tema ajudará a


avaliar, da perspectiva da academia lusitana, a contribuição desse país, de
seus governos, de instituições e de intelectuais na gênese da diplomacia
brasileira. Creio que o diálogo entre estudiosos brasileiros e portugueses
poderá revelar novos elementos de análise que enriquecerão esse exer-
cício de reflexão histórica. Serão úteis para o maior conhecimento, no
passado, do processo de formação profissional, bem como do planeja-
mento, formulação e execução da política externa de Portugal com vistas
a avaliar o grau de influência no perfil que viria a ter a diplomacia do
Brasil-Império e suas repercussões contemporâneas na República. Na re-
cente exposição ao Instituto Universitário de Lisboa, que serviu de base
à elaboração deste ensaio, escolhi seis personagens brasileiros cujo papel
e cuja obra como diplomatas ou estadistas os identificam como partícipes
dessa construção histórica e axiológica. São eles: Alexandre de Gusmão,
José Bonifácio, Duarte da Ponte Ribeiro, Varnhagen, José Maria da Silva
Paranhos Júnior e Rui Barbosa. Creio que poderiam servir de ponto de
partida para essas reflexões sobre Portugal e a formação do pensamento
diplomático brasileiro.

Alexandre de Gusmão
Uma vez que o próprio Brasil é o resultado mais eloquente da di-
plomacia portuguesa, o conceito da diplomacia brasileira, seu reconheci-
mento internacional, além do fato de Rio Branco, diplomata de carreira,
ser um herói nacional, ressaltam a importância desse estudo. Este tem
a ver com o patrimônio imaterial, memória, características, tradições e
valores de uma das instituições mais respeitadas na evolução histórica do
país. Para dar início a essa reflexão, recorde-se que o busto do brasileiro
e também português Alexandre de Gusmão encontra-se tanto no Palácio
das Necessidades, em Lisboa, como na Sala dos Tratados do Palácio
Itamaraty, em Brasília.

Qual o significado dessa presença conspícua? Do lado português,


trata-se do bacharel em Direito pela Universidade de Coimbra, diploma-
ta, Secretário particular de D. João V, membro do Conselho Ultramarino e

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):183-212, mai./ago. 2019. 187


Sérgio Eduardo Moreira Lima

negociador do Tratado de Madri, que redefiniu as fronteiras de Portugal e


Espanha nas Américas, quando já estava esmaecida a linha imaginária do
Tratado de Tordesilhas. Por sua vez, para o Brasil, representa ele o plebeu
que, nascido na colônia, conquistou seu espaço na metrópole junto à cor-
te. Como diplomata português, negociou um dos poucos tratados na his-
tória que dividiu um continente entre apenas dois estados. Sua proposta
consistia, em síntese, na troca da Colônia do Sacramento, no estuário do
rio da Prata, pelos Sete Povos das Missões e toda a vasta área do Planalto
Central e da Amazônia. O Tratado conferia ao Brasil um espaço territo-
rial próximo ao de suas atuais fronteiras. Para tanto, Gusmão recorreu
ao direito privado romano, de onde trouxe o uti possidetis, princípio que
legitima a propriedade de quem prova a posse pacífica, consequência do
povoamento, e não a militar, resultante da conquista.

Todos os acordos firmados no ambiente solene da Sala dos Tratados


do Palácio Itamaraty na capital do Brasil são celebrados sob as vistas do
grande diplomata luso-brasileiro responsável pelo princípio que não só
legitimou a expansão do espaço territorial brasileiro, com a incorporação
da Amazônia e do Centro-Oeste, como forneceu também o fundamento
jurídico para a doutrina que serviria de base à política de fronteiras do país
desde a independência, sob a monarquia dos Braganças, até a República.

Além de Gusmão, apenas outros dois bustos se encontram na Sala


dos Tratados: o do exímio profissional da diplomacia no II Reinado,
Duarte da Ponte Ribeiro, natural de Viseu, considerado o responsável
pelo desenvolvimento e pela aplicação, durante o Império, do uti pos-
sidetis, ajustando-o às condições prevalecentes nas fronteiras do Brasil;
e o do Barão do Rio Branco, o negociador, na República, dos limites
territoriais brasileiros com os países vizinhos, entre eles duas grandes
potências europeias. O feito do Barão não tem paralelo. Repercutiu, inter-
nacionalmente, pelo que representou em termos de marco referencial para
a estabilidade e a paz regional e também hemisférica. Seu nome chegou
a ser cogitado para o Prêmio Nobel da Paz, no início do século XX. As
três personalidades históricas – Gusmão, Duarte da Ponte Ribeiro e Rio
Branco – representam os diplomatas a quem devemos o êxito das nego-

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Portugal e a gênese do pensamento diplomático brasileiro

ciações para a formação e para a delimitação do espaço brasileiro: um, na


época do Brasil-Colônia, outro, na do Império e o último, na República.

Alexandre de Gusmão é considerado afetivamente o avô da diplo-


macia brasileira. O primeiro a estabelecer, sete décadas antes da inde-
pendência, um legado que marcou o pensamento diplomático do país e se
estendeu até a República, quando foram negociadas, em definitivo, todas
as fronteiras nacionais. O feito de Gusmão resulta do compromisso com
a pesquisa, ao transpor conceitos estudados na academia para a realidade
das negociações entre estados. O santista, que se formou em Coimbra e se
especializou em Direito na Sorbonne, em Paris, deixou uma herança inte-
lectual e ética, que compreende o estabelecimento do primado do direito,
num tempo em que as questões internacionais ainda eram resolvidas pela
força das armas; a crença na eficácia da diplomacia como instrumento de
política externa, na capacidade de se atingir o resultado almejado pela
qualidade e pela consistência dos argumentos na busca da solução nego-
ciada pacificamente. Eis, enfim, no trinômio pesquisa-direito-diplomacia
a expressão do que legou para a posteridade. Que legado poderia ser mais
emulador para os futuros estadistas e diplomatas brasileiros e mais re-
velador do caráter e da identidade do seu povo? Por isso, Alexandre de
Gusmão é ainda hoje no Brasil motivo de inspiração e de reverência.

Ademais, o Tratado de Madri, em seu artigo XXI, introduz uma ex-


traordinária inovação que terá contribuído para o destino pacífico dos po-
vos sul-americanos. Estabeleceu ele que, se houvesse, porventura, rompi-
mento de relações entre as duas coroas ibéricas, o estado de beligerância
ou de conflito não se estenderia às respectivas colônias na América do
Sul. Estas deveriam prosseguir, vivendo umas e outras como se não hou-
vera tal guerra entre os soberanos, sem fazer-se a menor hostilidade, nem
por si sós, nem junto aos seus aliados8. Tratava-se de um dispositivo pre-
8  –  O artigo XXI do Tratado de Madri preconizava que: “Sendo a guerra ocasião prin-
cipal dos abusos, e motivo de se alterarem as regras mais bem consertadas, querem Suas
Majestades Fidelíssima e Católica que se (o que Deus não permita) se chegasse a romper
entre as duas Coroas, se mantenham em paz os vassalos de ambas, estabelecidos em toda
a América Meridional, vivendo uns e outros como se não houvera tal guerra entre os so-
beranos”. RIO BRANCO, Barão do. Obras do Barão do Rio Branco. Brasília: FUNAG,

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Sérgio Eduardo Moreira Lima

cursor do princípio da boa vizinhança. É notória também sua influência


sobre a chamada “Grande Instrução”, redigida antes do Tratado de Madri,
que defendia uma reaproximação entre Portugal e França para criar um
contrapeso à forte influência britânica sobre a política externa portuguesa,
agravada desde o Tratado de Methuen, de 1703. Com a proposta, Gusmão
parecia querer evitar a redução das alternativas de ação diplomática de
Portugal. Para os estudiosos como Jaime Cortesão, tinha ele em mente a
defesa da valiosa possessão colonial portuguesa na América9.

Em qualquer estudo que se faça sobre a influência de Portugal na


formação do Brasil, a língua de Camões estará presente junto à epopeia
lusíada que cantou e que estimulou o espírito empreendedor do povo por-
tuguês durante séculos. Sem ele, dificilmente, viriam as descobertas, as
conquistas “por mares nunca dantes navegados” e o heroísmo. Ademais,
não fosse a beleza da língua, com sua sonoridade, filtrada por diferentes
etnias, não se espalharia, como logrou fazê-lo, pelos quatro cantos, con-
tribuindo para garantir a unidade e a integração do território brasileiro.
Mas a língua portuguesa veio acompanhada de uma visão de mundo. A
extensão do idioma a todos os rincões do Brasil e dos outros países de
língua portuguesa, nos cinco continentes, evoca a formação do que Tom
Wolfe viria a denominar, na apologia genérica da linguagem, the king-
dom of speech, congregando o que seriam os ativos mais importantes na
evolução da humanidade: a fala, a comunicação e o idioma10. Para mui-
tos, em meio às línguas autóctones e de diferentes etnias africanas, foi o
falar português que uniu e conferiu o primeiro elemento de identidade do
Brasil moderno.

2012, v. I, p. 81. O Barão do Rio Branco foi um dos que comentaram, elogiosamente, em
relação ao Tratado: “O estudo do Tratado de 1750 deixa a mais viva e grata impressão
da boa-fé, lealdade e grandeza de vistas que inspiraram esse ajuste amigável de antigas e
mesquinhas querelas, consultando-se unicamente os princípios superiores da razão e da
justiça e as conveniências da paz e da civilização da América”. Ibid., p. 76.
9 – CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madri. Brasília: FUNAG,
2006.
10 – WOLFE, Tom. The Kingdom of Speech. London: Jonathan Cape, 2016.

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Portugal e a gênese do pensamento diplomático brasileiro

De fato, constituem esses ativos o instrumento para o exercício da


vontade, para a difusão da cultura, dos valores, das ideias, para a ce-
lebração dos tratados, para o desenvolvimento das doutrinas, práticas,
técnicas, e dos avanços cartográficos que tanto serviram à diplomacia.
Até hoje, não há quem não se impressione ao visitar, no velho Palácio
Itamaraty, no Rio de Janeiro, a Mapoteca, ao lado do Arquivo Histórico.
Como construir a visão dos interesses nacionais num território continen-
tal, como consolidar sua expansão e mantê-lo íntegro, em contraste com
o que viria a ocorrer com a fragmentação da América hispânica? Enfim, a
narrativa que parece começar em meados do século XVIII – que transita
por diferentes períodos históricos do Brasil-Colônia, do Reino Unido de
Portugal, Brasil e Algarves e do Brasil-Império –, principia, na verdade,
com as entradas e as bandeiras e com episódios como o da subida do rio
Amazonas por Pedro Teixeira no século XVII. São conquistas que reve-
lam heróis, mas deixam clara a maneira de ser e a admirável capacidade
de gestão da burocracia metropolitana numa extraordinária aventura con-
tinental.

A cooptação dos povos indígenas na Amazônia pelas missões jesuí-


ticas portuguesas muito contribuiu para fazer valer o uti possidetis, como
se observa nas escrituras registradas e preservadas nos arquivos históri-
cos de Portugal. Essas ações de natureza legal e administrativa geram
consequências em termos de gestão de um processo colonizador relativa-
mente bem estruturado, apesar dos obstáculos e das circunstâncias nem
sempre favoráveis. Tal processo se projeta no século XIX e tem impacto
na formação da diplomacia brasileira, antes e depois da independência.

Na coleção Pensamento Diplomático Brasileiro: Formuladores e


Agentes da Política Externa (1750-1964), que citei no início deste en-
saio, diplomatas, professores e historiadores brasileiros concluem que
existe, efetivamente, tal pensamento e que ele começa com Alexandre
de Gusmão e o papel por ele desempenhado como negociador no Tratado
de Madri. Gusmão é considerado o “estadista que desenhou o mapa do
Brasil”, título do primeiro ensaio sobre personagens que influíram nessa
evolução. No entanto, não há ali, curiosamente, referência à expedição

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de Pedro Teixeira, português considerado o desbravador da Amazônia e


o fundador de Belém, no estado do Pará. Teixeira representou o esforço
épico de desbravamento ocorrido no século XVII com vistas à tomada de
posse de territórios, depois incorporados nas negociações do Tratado de
Madri. Não fosse o sentido de missão do explorador e militar português,
o desenho de Gusmão teria sido prejudicado na parte setentrional pela
dificuldade de prova da efetiva ocupação territorial, iniciada havia mais
de cem anos.

A epopeia de Pedro Teixeira (1637-1639), ao empreender a pri-


meira navegação Amazonas acima e fundar, no retorno, o povoado de
Franciscana, em nome da coroa Portuguesa e por instrução do governador
do Maranhão, constitui uma das páginas menos conhecidas da história do
Brasil colonial, embora das mais importantes para a formação territorial
do país. O explorador português, com sua coragem e sua bravura, possi-
bilitou o desenho do Brasil resultante do Tratado de Madri (1750) com a
notável extensão das fronteiras nacionais para oeste, na Amazônia.

O retrospecto histórico da conquista portuguesa do Amazonas teve


início, ainda no período da União Ibérica (1580-1640), com o alerta dado
pelas cortes de Portugal, em 1615, a Felipe III (Felipe IV de Espanha),
sobre a proliferação de feitorias e barcos estrangeiros na foz do grande
rio. Não deixa de ser curioso o fato de o Conselho de Estado espanhol,
em resposta, ter determinado que os próprios portugueses combatessem
tais invasões. Uma vez assumida a defesa da região, estava aberta a porta
para a conquista, ocupação e exploração do baixo e do alto Amazonas por
agentes luso-brasileiros. O uti possidetis, invocado no século seguinte
por Alexandre de Gusmão, beneficiou-se da circunstância criada por essa
decisão da corte espanhola.

É nesse contexto histórico e estratégico que se inserem a expulsão,


em 1615, dos franceses instalados no Maranhão desde 1612 e a ocupação
militar lusitana no Pará: em 1616, foi construído o Forte do Presépio,
marco fundador de Belém. O alferes Pedro Teixeira participa dessa mis-
são e sua competência militar o leva, nas décadas seguintes, a coman-

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Portugal e a gênese do pensamento diplomático brasileiro

dar expedições que expulsam holandeses, ingleses e irlandeses do baixo


Amazonas. Em 1631, a região passa a ser, definitivamente, território por-
tuguês.

A leste da Cordilheira dos Andes, as tentativas espanholas encontra-


vam dificuldades de aproximação com a população autóctone. A contun-
dente resistência indígena, a par do sucesso das atividades mineradoras
desenvolvidas nos altiplanos, desestimulava a ocupação espanhola do
alto Amazonas e acabou delimitando, na prática, sua fronteira oriental.
Há quem acredite também que, já tendo descoberto o Eldorado, seria,
relativamente, menor o interesse da administração colonial espanhola em
enfrentar, diretamente, os custos e os riscos da extensão de suas ativida-
des à imensidão da planície amazônica.

Na outra extremidade do grande rio, aprofundava-se a presença por-


tuguesa: superada a fase da defesa e a expulsão de europeus não ibéricos,
Portugal passou à exploração e à ocupação do território, sempre rumo
ao ocidente, penetrando-o e desafiando a indefinição das possessões es-
panholas, em um vácuo jurídico atravessado pela natureza exuberante e
ocupado por tribos indígenas de maior ou menor grau de animosidade
contra os invasores brancos.

O interesse português foi acentuado pela surpresa da chegada a


Belém, em 1637, de soldados e de religiosos franciscanos espanhóis, que
haviam descido todo o Amazonas desde o Peru. Apesar da circunstância
política da União Ibérica, autoridades portuguesas se inquietaram com
a perspectiva de novas tentativas de viagens espanholas. O empreendi-
mento inverso – há muito presente na agenda portuguesa, mas postergado
por necessidades prementes de defesa da região –, com vistas a alargar a
presença portuguesa até o alto Amazonas, ocupar a maior parte da bacia
do grande rio e estabelecer relações com as dependências cisandinas de
Castela, foi organizado, com relativa rapidez, e cumprido em prazo, ad-
miravelmente, curto para a época e para as circunstâncias dadas. A frota,
preparada pelo governador do estado do Maranhão e Grão-Pará, Jácome
Raimundo de Noronha, sobe os rios Amazonas e Napo até chegar a Quito

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– uma façanha de mais de 4.000 quilômetros contra a correnteza (uma


distância não muito inferior a que separa Lisboa de Moscou).

Por seus méritos, o agora capitão-mor e general Pedro Teixeira foi


designado para liderar a épica expedição, a primeira missão de grande
porte e a mais importante viagem de reconhecimento e de penetração
realizada naquele século. A frota parte a 28 de outubro de 1637 e, em ja-
neiro de 1638, encontra a foz do rio Negro; no início de julho do mesmo
ano, chega à confluência dos rios Napo e Aguarico (atual fronteira Peru-
Equador) e o Aguarico recebe dos portugueses o nome de rio do Ouro.
Nesse ponto, Pedro Teixeira deixa uma guarnição para explorar a região
e preparar o regresso. Em 15 de agosto, ele chega ao Payamino, já sob a
jurisdição da Audiência de Quito, e sobe a cordilheira em direção àquela
cidade, onde é recebido pelo governador.

Se, aos portugueses, surpreendera a chegada de espanhóis a Belém,


a recepção ao comandante da expedição não escondia a perturbação es-
panhola. Recebidos um mapa e as anotações feitas durante o percurso,
a autoridade peruana envia todo o material a Madri. Ao tomar conheci-
mento do minucioso relato, o Conselho das Índias, indignado, propõe a
Filipe IV (III de Portugal) não somente um castigo ao governador Jácome
de Noronha, idealizador da façanha, pelo atrevimento da descoberta da
navegação até o Peru, mas também, com a maior severidade, que Portugal
abandone a boca do Amazonas e as províncias do Maranhão.

O rei, entretanto, compreendeu a dimensão do fato e os benefícios


que traria à coroa ibérica, e não atendeu aos reclamos do Conselho das
Índias. Ao contrário, a região passou a ter relações diretas com Lisboa,
separadamente do governo do Brasil.

Em 2016, a FUNAG lançou o livro Pedro Teixeira, a Amazônia e


o Tratado de Madri11, inspirado nas consequências diplomáticas da ex-
pedição do desbravador português. Como pressentido pelas autoridades
espanholas do Vice-Reino do Peru e pelo Conselho das Índias, os relatos
11  –  MOREIRA LIMA, Sérgio Eduardo; COUTINHO, Maria do Carmo Strozzi (orgs.).
Pedro Teixeira, a Amazônia e o Tratado de Madri. Brasília: FUNAG, 2016.

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Portugal e a gênese do pensamento diplomático brasileiro

e os documentos que constam daquela publicação foram, devidamente,


registrados e, um século depois, utilizados por Alexandre de Gusmão nas
negociações do Tratado de Madri.

As iniciativas de povoamento tomadas por Teixeira na descida do rio


(viagem de retorno Quito-Belém) foram decisivas no processo de reco-
nhecimento das fronteiras ultramarinas de Portugal e Espanha e no deslo-
camento da linha limítrofe do Tratado de Tordesilhas, de 1494. O registro
de fundação do povoado de Franciscana, para o que fora Teixeira, secreta-
mente, instruído pelo governador português, constitui-se em fator de estí-
mulo à ocupação territorial por meios pacíficos, o que permitiu o recurso
ao princípio do uti possidetis, que, transposto para o direito das gentes no
Tratado de Madri, legitimou a reivindicação portuguesa na região.

Nas tratativas com os espanhóis, Alexandre de Gusmão menciona,


especificamente, a viagem de Pedro Teixeira para justificar o uti posside-
tis na Amazônia. Com um toque de humor, alega até modéstia nas reivin-
dicações portuguesas, já que, com a fundação de Franciscana, “nas bocai-
nas do rio do Ouro”, a divisa ficaria no Napo, bem mais longe. No Mapa
das Cortes (feito em Lisboa sob a direção de Alexandre de Gusmão, com
vistas à negociação do Tratado de Madri), ele registra as missões de re-
ligiosos portugueses em rios amazônicos, fazendo justiça ao fato de que,
nos cem anos que medeiam da epopeia de Teixeira ao Tratado de Madri,
foram elas que garantiram a ocupação efetiva da imensa área.

Dos documentos analisados durante a pesquisa, sobressai o contraste


entre as práticas portuguesas e as espanholas de contato com os nativos,
as quais acabaram por contribuir para o processo de povoamento, como
esclarece o presidente da Audiência de Quito, em sua Información ao
Rei12.

Como reconhecimento por sua extensa lista de serviços prestados,


Pedro Teixeira foi agraciado, em fevereiro de 1640, com o cargo de ca-
pitão-mor da capitania do Grão-Pará. O grande explorador faleceu em

12 – Ibid., pp. 130-143.

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julho de 1641, em Belém, e foi sepultado dentro do Forte do Presépio.


A publicação da FUNAG foi, assim, um tributo ao desbravador e explo-
rador luso-brasileiro, a quem a coroa portuguesa deveu a posse de quase
toda a bacia amazônica; e o Brasil, a exploração de mais de 10.000 km²
de rios e de trilhas.

Apesar do alcance da histórica expedição, seu significado ainda não


conta com uma narrativa abrangente, que consolide os estudos e os docu-
mentos esparsos existentes a respeito, muitos dos quais em bibliotecas de
Portugal e de outros países europeus. Diante disso, a FUNAG se propôs o
desafio editorial de produzir um levantamento das principais referências
documentais sobre a missão de Pedro Teixeira, com o objetivo de con-
templar a exploração do rio Amazonas a partir da perspectiva da coroa
portuguesa, no contexto do período final da União Ibérica13.

O material deixa entrever a existência de uma efetiva política de es-


tado de Portugal com vistas à expansão de seu território americano para
além dos limites do Tratado de Tordesilhas naquele período; e é possível
argumentar que o episódio contribuiu para emular o nacionalismo portu-
guês em direção ao processo político que culminaria com a restauração
da coroa portuguesa – um ano após o retorno a Belém da expedição de
Pedro Teixeira.

A publicação citada resulta de um esforço de pesquisa realizado pelo


Centro de História e Documentação Diplomática (CHDD) da FUNAG,
no Rio de Janeiro, no Arquivo Histórico Ultramarino e na Biblioteca
da Ajuda, em Lisboa, e na Biblioteca Pública Municipal do Porto. A
13  –  A FUNAG disponibilizou, em seu portal, versão digital ampliada do livro Pedro
Teixeira, a Amazônia e o Tratado de Madri, contendo vinte e seis documentos adicionais
relevantes para o estudo da expedição de Pedro Teixeira e para a compreensão do projeto
português de expansão sob a União Ibérica. Estes documentos compreendem o relato atri-
buído ao frade Alonso de Rojas (Descubrimiento del Río de las Amazonas y sus Dilatadas
Provincias) e a transcrição paleográfica dos seguintes textos: Regimento do Governador
do Maranhão para expedição até a cidade de Quito; Carta do presidente de Quito avi-
sando a entrada dos portugueses pelo rio Napo; Relato de Pedro Teixeira sobre o rio das
Amazonas e relato da navegação dos portugueses no rio Napo, entre outros. MOREIRA
LIMA, Sérgio Eduardo; COUTINHO, Maria do Carmo Strozzi (orgs.). Pedro Teixeira, a
Amazônia e o Tratado de Madri. 2. ed. ampliada. Brasília: FUNAG, 2016.

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Portugal e a gênese do pensamento diplomático brasileiro

Embaixada do Brasil, em Lisboa, muito colaborou nos contatos com es-


sas instituições portuguesas. O objetivo da pesquisa foi trazer à luz relatos
de expressão histórica, fontes documentais primárias e secundárias, que
permitam extrair uma visão sobre a importância estratégica da expedição
de Pedro Teixeira.

O conhecimento da obra de Alexandre de Gusmão muito se deve


aos estudos realizados pelo historiador português Jaime Cortesão (1884-
1960), que viveu no Brasil e foi professor do Instituto Rio Branco, que
corresponde à academia diplomática brasileira. A FUNAG já havia pu-
blicado, em 2006, em dois volumes, o livro Alexandre de Gusmão e o
Tratado de Madrid (2006), como anteriormente citado. Cortesão conside-
rava Alexandre de Gusmão um homem que agia e pensava adiante do seu
tempo e contribuiu para consagrá-lo como um dos grandes fundadores da
nacionalidade brasileira, precursor da geopolítica americana e mestre da
ciência e da arte diplomáticas.

Ao rememorar esses episódios e as forças profundas que influíram


na formação territorial do Brasil e na gênese do pensamento diplomático
brasileiro, convém lembrar que, menos de seis décadas após o Tratado
de Madri, a repercussão na Península Ibérica das disputas políticas entre
a França revolucionária sob Napoleão Bonaparte e a Inglaterra do perío-
do pré-vitoriano abrem novas perspectivas para a evolução histórica do
Brasil. Em 1808, diante da iminente invasão napoleônica, a corte por-
tuguesa, com o apoio do governo inglês, se transfere para o Brasil, que,
em 1815, é elevado à categoria de Reino Unido a Portugal e Algarves; e
o Rio de Janeiro passa a ser a única sede de um império europeu fora do
continente. A presença do herdeiro do trono português, D. João, no Brasil,
estabelece significativa diferença de rumos das formas e dos sistemas de
governo e do regime político das colônias da América hispânica e do
Brasil, a única monarquia na América do Sul. O fato de a independência
do Brasil ter sido proclamada, em 7 de setembro de 1822, pelo próprio
príncipe herdeiro do Reino de Portugal, D. Pedro, gera questionamentos
legítimos quanto à questão da efetiva autonomia em relação à metrópole,
mas também no tocante à restauração europeia.

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Segundo o historiador e diplomata João Hermes Pereira de Araújo,


não houve, no caso das colônias hispânicas emancipadas, “nenhum as-
pecto de transmissão legítima de soberania, o que era, de certo modo,
mais atentatório aos princípios defendidos pela Santa Aliança”14. No caso
do Brasil, a ausência desse princípio da legitimidade parecia contornada.
A questão que se colocava era a da sucessão ao trono de Portugal. De
certa forma, a abdicação de D. Pedro I ao trono, em 1831, e seu regresso a
Portugal decorreu do problema da sucessão. A posição da Espanha em re-
lação a suas antigas colônias era bem diferente da de Portugal. O governo
de Madri não parecia vislumbrar alternativa ao restabelecimento do poder
da antiga metrópole, enquanto, para Portugal, a independência do Brasil
fora realizada pelo próprio herdeiro da coroa portuguesa.

É interessante observar que foram os Estados Unidos da América


(EUA), república que recém conquistara a soberania, o primeiro país a re-
conhecer a independência do Brasil, assim como fizera também, de forma
coerente com os ideais de seus fundadores, em relação às antigas colô-
nias espanholas. Esse fato histórico constituía um desafio, uma vez que a
Europa reconhecera a independência dos EUA e ficara neutra no processo
de emancipação das referidas colônias hispânicas. Coube, inicialmente, a
José Bonifácio conduzir o processo de reconhecimento da independência.

14  –  ARAÚJO, João Hermes Pereira de. O Legado Colonial e a Monarquia. In: SILVA,
Raul Mendes; BRIGAGÃO, Clovis (orgs.). História das Relações Internacionais do Bra-
sil. Rio de Janeiro: CEBRI, 2002.

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Portugal e a gênese do pensamento diplomático brasileiro

José Bonifácio de Andrada e Silva

José Bonifácio de Andrada e Silva é o segundo grande vulto brasilei-


ro identificado na referida coleção Pensamento Diplomático Brasileiro.
Natural também de Santos, cidade balneária de São Paulo, na região su-
deste do Brasil, descendente de família da aristocracia portuguesa, for-
mou-se pela Universidade de Coimbra. Nela, destacou-se na cátedra de
Metalurgia. Seu busto e os minerais que identificou levam seu nome e
ainda se encontram expostos num pequeno museu. Mereceu ele o epí-
teto de “Patriarca da Independência” por sua contribuição decisiva ao
processo de emancipação do Brasil. Ajudou D. Pedro de Alcântara a re-
sistir à oposição e a organizar o governo independente. Após 30 anos na
Europa, regressou ao país de origem durante o período do Reino Unido
de Portugal, Brasil e Algarves. Em 1790, estivera em Paris por ocasião da
Revolução Francesa. Em 1822, D. Pedro I nomeou-o primeiro chanceler
do Brasil.

José Bonifácio contribuiu para os valores mais altos alcançados pelo


Brasil em sua história: a autodeterminação e a independência, o direito
a aspirar, como povo, a uma identidade comum, a escolher suas próprias
instituições legais e políticas e seus representantes ou governantes, de
forma soberana, sem condicionamentos à autoridade externa. Em sua sin-
gular trajetória política, logrou, ademais, o reconhecimento da autonomia
do país pela comunidade das nações.

Defendeu o deslocamento do eixo da política externa brasileira para


o entorno regional, sobretudo na bacia do Prata; a criação de uma comu-
nidade de nações lusófonas; a integração territorial (inclusive com a pro-
posta ainda incipiente do estabelecimento da capital no centro geográfico
do país, que seria retomada, mais tarde, por Varnhagen, ideia precursora
da construção do que viria a ser Brasília); a integração social mediante a
abolição da escravidão, absorção do elemento negro e a “civilização” dos
indígenas na sociedade brasileira.

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Além desses propósitos, que antecipavam, em alguns casos, o que


constitui atualmente, a noção de direitos humanos e, até mesmo, o con-
ceito de boa vizinhança, Bonifácio consagrou-se na defesa de estratégia
exitosa do reconhecimento da independência do país pelas potências da
época, respeitada a unidade territorial do Brasil e sua soberania plena.
Fez observar a preservação da autonomia decisória do Estado em relação
aos centros internacionais, valendo-se do peso do mercado consumidor
brasileiro como fator de barganha e de poder. Bonifácio inaugurou a prá-
tica que se tornaria característica da diplomacia brasileira de apresentar
o Brasil acompanhado sempre de seu enorme potencial e não reduzido a
suas limitações conjunturais.

No momento da independência, o Brasil era um país em formação,


com territórios inexplorados, com grandes vazios demográficos, com po-
vos de diferentes grupos étnicos não integrados, muitos dos quais escra-
vos, com diversas línguas, em que o português ainda não era o idioma
corrente. O desafio de Bonifácio consistia em demonstrar à comunida-
de internacional que o Brasil era uma nação politicamente organizada,
embora, na verdade, representasse, à época, muitas nações autóctones e
africanas com línguas próprias e ainda não tivesse um território com fron-
teiras delimitadas e reconhecidas pelas novas repúblicas vizinhas. A for-
mação do povo brasileiro ainda estava em processo. Tais condições dão a
medida do desafio com que se defrontava o “Patriarca da Independência”
para obter o reconhecimento do novo estado.

José Bonifácio foi, assim, o primeiro responsável pela política exte-


rior do Brasil independente. Empenhou-se em afastar o estado nascente
de paradigmas portugueses e estabelecer novas diretrizes e iniciativas a
partir de uma percepção distinta. O foco de atenção começa a mover-
-se para a América do Sul, em especial a bacia do Prata, com o projeto
de aproximação cooperativa com Buenos Aires e de solução da questão
da província Cisplatina. Firma ele visão diversa sobre o processo de re-
conhecimento da independência, e criticaria, mais tarde, após seu exílio
em Paris, as concessões feitas pelo governo de D. Pedro I às potências
da época. O “Patriarca da Independência”, sem dúvida, fez por merecer

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Portugal e a gênese do pensamento diplomático brasileiro

lugar próprio no panteão dos heróis nacionais e das personalidades que


marcaram o pensamento diplomático brasileiro.

Duarte da Ponte Ribeiro


Na sequência desses diplomatas e estadistas que influíram na for-
mação do pensamento diplomático brasileiro, Duarte da Ponte Ribeiro é
reconhecido por sua contribuição ao desenvolvimento da doutrina para a
negociação dos limites territoriais do país. Médico de formação, diploma-
ta, cartógrafo, Ponte Ribeiro, nasceu em Viseu, em 4 de março de 1795, e
veio para o Brasil, em 1808, com a corte portuguesa. Serviu na Espanha,
Portugal, no México, no Peru, na Bolívia e na Argentina até a guerra con-
tra Rosas, em que teve participação importante. Na condição de represen-
tante do Império, junto à Confederação Peru-Bolívia, negociou tratado
de comércio, navegação fluvial e limites, em que utilizou a doutrina do
uti possidetis de fato15. O acordo não foi aprovado pela assembleia, mas
a doutrina tornou-se princípio nas negociações de limites do Brasil, in-
clusive sob Rio Branco. Segundo o historiador e também diplomata Luís
Claudio Villafañe G. Santos,
a importância de Duarte da Ponte Ribeiro na discussão e consolidação
das doutrinas do Império sobre os limites e a territorialidade brasileira
– ideias estas que depois foram herdadas pelo governo republicano até
hoje – não pode ser minimizada.16

Considerado o “fronteiro-mor do Império”, negociador de tratados


pioneiros, cartógrafo renomado e autor de quase duas centenas de memó-
rias sobre as fronteiras,
15  –  No caso da América Latina, podem-se diferenciar duas interpretações para a apli-
cação do princípio com relação ao direito internacional público: uti possidetis juris e
uti possidetis facto. Utilizado pelos países da América espanhola, o uti possidetis juris
contemplou o reconhecimento tácito por parte das colônias das fronteiras assinaladas por
tratados e por divisões administrativas das antigas metrópoles. Já o uti possidetis facto,
utilizado na América portuguesa, baseia-se na posse de fato do território ou na sua preten-
são de ocupação populacional.
16  –  SANTOS, Luís Claudio Villafañe G. Duarte da Ponte Ribeiro: Definindo o Terri-
tório da Monarquia. In: PIMENTEL, José Vicente de Sá (org.). Pensamento Diplomático
Brasileiro: Formuladores e Agentes da Política Externa (1750-1964). Brasília: FUNAG,
2013. v. 1, p. 162.

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Sérgio Eduardo Moreira Lima

foi decisivo para o estabelecimento da doutrina para a definição do


território nacional e sustentou com detalhados e minuciosos estudos
empíricos, pesquisa documental e elaboração de mapas que, por suas
qualidades técnicas seguiriam vigentes como referência inescapável
por muitas décadas após sua morte.17

A política externa de D. Pedro I foi, essencialmente, reativa, hesitan-


te e parecia revelar inconsistências. De todo modo, essas características,
talvez compreensíveis nas circunstâncias de afirmação da nacionalida-
de, em meio a extraordinárias mudanças internas e externas, permitiram
aprofundar o exame dos fundamentos e das diretrizes daquela política,
como se observa no labor diplomático de Duarte da Ponte Ribeiro. Sua
primeira missão ao Peru representou apenas uma resposta às missões de
enviados de países vizinhos interessados na negociação dos limites terri-
toriais. D. Pedro relutava em entrar em negociações sob o argumento de
que ainda não dispunha de informações necessárias para o início dessas
tratativas18. Não havia ainda uma doutrina formulada para a definição dos
limites em termos amplos. O cerne da questão estava no reconhecimento
ou não dos tratados entre Portugal e Espanha como base para as negocia-
ções entre o Brasil e seus vizinhos.

Somente no Segundo Reinado (1840-1889) foi definida uma política


coerente e Ponte Ribeiro foi um dos grandes defensores e protagonistas
deste debate. Assim, a doutrina do uti possidetis adquiria, em termos prá-
ticos, um sentido, eminentemente, defensivo, para garantir uma fronteira
que se afigurava máxima, em virtude da percepção de que a população
brasileira refluía para o litoral. Em termos de discurso, essa ideia encaixa-
va-se, perfeitamente, na argumentação sobre a preservação do território
legado pela colonização portuguesa, definido em limites naturais. A terri-
torialidade brasileira seria um legado da natureza que a metrópole havia
descoberto e povoado com a ajuda de tribos indígenas que davam, nessa
visão, uma sustentação antropológica à noção de um Brasil preexisten-
te. Não por acaso, o indigenismo seria a corrente mais marcante do ro-

17 – Ibid., p. 166.
18 – Ibid., p. 166.

202 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):183-212, mai./ago. 2019.


Portugal e a gênese do pensamento diplomático brasileiro

mantismo brasileiro, movimento intelectual cuja missão autoproclamada


era construir uma literatura nacional. Em contraste, por um lado, com os
EUA – que tinham na expansão territorial, na ideia de uma fronteira sem-
pre em movimento, uma das bases de sua identidade – e, por outro, com
a maior parte dos países hispano-americanos – que, desde muito cedo,
cultivaram uma espécie de “síndrome do território minguante” como par-
te de seu discurso nacionalista – a diplomacia brasileira foi construindo
a narrativa de um país “satisfeito” com seu território, que estaria contido
em fronteiras naturais (e, portanto, não históricas) e cuja origem e legiti-
midade precediam a colonização.

Francisco Adolfo de Varnhagen


Outro vulto histórico incluído no pensamento diplomático brasileiro
foi Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878), nascido em Sorocaba,
de pai alemão e mãe portuguesa, estudou no Real Colégio Militar da Luz
e formou-se na Academia da Marinha em Lisboa. É considerado o patro-
no da historiografia brasileira com sua obra História Geral do Brasil19,
lançada, originalmente, em dois volumes nos anos de 1854 e de 1857, que
muito se beneficiou das pesquisas por ele realizadas na Torre do Tombo.
Aderiu à causa do ex-imperador D. Pedro I na disputa pela coroa portu-
guesa, engajado no 2º Batalhão de Artilharia de Portugal. Promovido a
oficial, ingressou na Academia de Fortificações, onde concluiu o curso de
engenheiro militar em 1834. Mais tarde, tornou-se membro da Academia
Real de Ciências de Lisboa. Retorna ao Brasil em 1840 e, em 1844, por
decreto do imperador, é naturalizado brasileiro. Faz parte da geração que
consolidou o estado monárquico brasileiro e que teve em José Maria da
Silva Paranhos, o visconde do Rio Branco (1819-1880), a grande refe-
rência como estadista e homem público. Em 2016, o Brasil celebrou o
bicentenário do nascimento de Varnhagen, ainda não tão conhecido como
diplomata e pensador estratégico. Integrante de uma geração de intelec-
tuais e de diplomatas que ajudou a construir o Brasil, como Duarte da
Ponte Ribeiro, Francisco Adolfo de Varnhagen não apenas representou
19  –  Cf. VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil. Salvador: Cen-
tro de Documentação do Pensamento Brasileiro, 2011[1854/1857].

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):183-212, mai./ago. 2019. 203


Sérgio Eduardo Moreira Lima

o país, mas contribuiu com suas ideias e com suas ações para preservar
a coesão territorial e para promover a integração nacional. Participou no
processo que levaria a um Brasil territorialmente coeso e integrado. Sua
obra e sua atuação pública influíram também no conceito da nacionalida-
de e na formação da identidade brasileira. Sua experiência como militar,
pesquisador, diplomata, historiador e publicista deram-lhe as condições
intelectuais e profissionais para, em meados do século XIX, identificar
desafios e convertê-los em soluções a partir de perspectivas inovadoras e
voltadas para o futuro.

A visão estratégica de Varnhagen combina dois importantes campos


do conhecimento, a História e a Geografia – bases da geopolítica –, ama-
durecidos pela experiência diplomática. Em seu conjunto, compõem a
moldura existencial, física e empírica da formação e do desenvolvimento
da nacionalidade. O engajamento no projeto de transferência da capital
para o interior, que sintetiza sua preocupação geopolítica, foi muito além
dos mapas analisados no conforto dos gabinetes e das bibliotecas: aventu-
rou-se em longa e penosa expedição ao Planalto Central para identificar o
local onde deveria erigir-se, futuramente, a nova capital, mas Varnhagen
foi muito além. Sabia que o processo de afirmação nacional não se realiza
em um vazio político sul-americano. Atento a essa dimensão, dedicou-se
às questões da navegação do rio Amazonas e das fronteiras com potências
europeias ao norte, nas Guianas. Ademais, sua ampla experiência diplo-
mática adquirida em missões permanentes na América do Sul – Santiago,
Lima e Quito, suas viagens de negociação a Assunção e a Caracas – e na
Europa – Lisboa, Madri e Viena – conferiram-lhe ampla visão do pano-
rama mundial.

É nessa perspectiva que se insere o maior legado de Varnhagen: a


síntese de uma história, sistematicamente, pesquisada e elaborada, de
uma geografia que transcende os mapas e os instrumentos e se traduz
no percurso dos amplos sertões. A combinação de uma visão estratégica
interna, envolvendo o binômio integridade-integração do país, e exter-
na, na relação equilibrada com os vizinhos sul-americanos, inclusive na

204 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):183-212, mai./ago. 2019.


Portugal e a gênese do pensamento diplomático brasileiro

definição das fronteiras, faz dele um dos formuladores do pensamento


diplomático e estratégico durante o Império.

Barão do Rio Branco


Trata-se do vulto maior da história diplomática brasileira. Sua sen-
sibilidade para os desafios que enfrentava o Brasil muito se beneficiou
da experiência do pai, José Maria da Silva Paranhos, o visconde do Rio
Branco, considerado o maior estadista do Segundo Reinado, presidente
que foi do Conselho de Ministros após o término da Guerra da Tríplice
Aliança, momento de defesa da soberania. O Visconde mereceria pesqui-
sa aprofundada nesta narrativa para fixar os valores que promoveu como
diplomata, chanceler e estadista.

O foco, no entanto, no exercício exploratório deste ensaio, perma-


nece com o Barão do Rio Branco, que, após longa carreira no exterior,
serviu como chanceler da República, de 1902 a 1912. Logrou inspirar
narrativa própria em torno de conceitos e de valores consagrados com
o êxito que obteve na negociação das fronteiras do Brasil. Trata-se do
grande vulto, da referência maior do pensamento diplomático brasileiro.
Era monarquista, admirador de D. Pedro II, sobre quem escreveu pro-
fusamente para enciclopédias estrangeiras e também na obra D. Pedro
II, Imperador do Brasil, de autoria de Benjamin Mossé, reeditada pela
FUNAG, com o subtítulo O Imperador visto pelo barão do Rio Branco20.

Com habilidade e com conhecimento de causa, o Barão destacou-se


nas tratativas que garantiram ao país o reconhecimento e a legitimidade
de seu vasto espaço territorial. Com base no direito internacional, conso-
lidou extraordinário legado para o Brasil, o qual representa também mar-
co de estabilidade hemisférica, da solução pacífica das disputas e da cons-
trução da boa vizinhança. Fez prevalecer interesses nacionais estratégicos
em meio a situações complexas, envolvendo poderes assimétricos numa
fase de transição geopolítica entre a Europa e os EUA. Sua obra tornou-o

20 – MOSSÉ, Benjamin. Dom Pedro II, Imperador do Brasil: o Imperador visto pelo
barão do Rio Branco. Brasília: FUNAG, 2015.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):183-212, mai./ago. 2019. 205


Sérgio Eduardo Moreira Lima

não apenas respeitado erudito e diplomata, mas, igualmente, estrategista,


estadista e herói nacional, fato que distingue a diplomacia brasileira e os
ideais a que tem servido historicamente.

O Brasil tem hoje dez países lindeiros, mas tem acordos de fronteira
com onze, pois a fronteira que o Equador pretendia, no passado, acabou
não sendo estabelecida com a vitória peruana em disputa resolvida pelo
Tratado do Rio de Janeiro, de 1942, e em posteriores ajustes. Caberia re-
cordar o quadro geral dessas negociações: com o Paraguai e a Venezuela,
os limites foram estabelecidos no Império: pelo Tratado de 1859, com o
segundo; e pelo de 1872, depois da Guerra do Paraguai, com o primei-
ro. As fronteiras com a Argentina (1895), a Guiana Francesa (1900) e
a Guiana (então Guiana Inglesa, 1904) foram objeto de arbitramentos.
Os dois primeiros representaram vitórias integrais conseguidas por Rio
Branco, como negociador; com a Guiana, vitória parcial (a maior parte
do território contestado não foi atribuída ao Brasil), sendo a posição bra-
sileira defendida por Joaquim Nabuco, com base em estudos elaborados
pelo Barão.

Rio Branco traçou o desenho definitivo de boa parte da linha de li-


mites do Brasil, com sua atuação decisiva nos três arbitramentos, antes
de ser ministro, e, depois, nos cinco acordos de fronteiras (excluído o
pequeno ajuste com a Argentina e o acordo com o Equador e incluído o
acordo com o Suriname). O mérito não é apenas dele, como ele próprio
reconhecia: havia estudos, propostas e tratados anteriores. Coube a ele,
entretanto, resolver as últimas questões; e todas de forma pacífica, por
meio de acordos bilaterais bem negociados e, perfeitamente, ratificados.
Como salienta Synesio Sampaio Goes Filho: “o barão, aliás, é o primeiro
a reconhecer a habilidosa política de fronteiras dos portugueses na colô-
nia e, sobretudo, a benéfica ação dos diplomatas do Segundo Reinado”21.

21 – GOES FILHO, Synesio Sampaio. Introdução às exposições de motivos de Rio


Branco. In: RIO BRANCO, Barão do. Obras do Barão do Rio Branco. Brasília: FUNAG,
2012, v. V, p. 14.

206 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):183-212, mai./ago. 2019.


Portugal e a gênese do pensamento diplomático brasileiro

No entanto, os arbitramentos e os tratados de limites, que envolvem


oito de nossos dez vizinhos, são, sem dúvida, o marco histórico definitivo
de uma política bem-sucedida. Não há precedente de um chanceler que
tenha feito tanto para a formação das fronteiras de seu país, o que justifi-
ca o prestígio único que o Barão alcançou em nossa história na América
Latina e no mundo.

Esse patrimônio diplomático, que ainda hoje contribui para a manu-


tenção da paz e da segurança na região e das tradições regionais a serviço
do entendimento, da cooperação e da boa vizinhança, poder-lhe-ia ter
valido o Prêmio Nobel da Paz, que tampouco foi conferido, mais tar-
de, a Mahatma Gandhi, líder da independência e do movimento pacifista
na Índia. A dimensão do legado desses dois vultos na defesa de valores
universais do direito e da paz permanece com o reconhecimento maior
dos seus próprios povos e da história. Se as condições geopolíticas da
América do Sul tornam o continente uma das poucas regiões do mundo
sem conflitos internacionais, esse resultado não é acidental: muito se deve
à construção das condições de estabilidade hemisféricas que passou pela
obra fecunda de José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio
Branco. Tais condições – conviria frisar – não são, assim, fruto do acaso
ou de circunstâncias fortuitas, mas de uma expressão da vontade e do
processo de construção diplomática de um paradigma regional de política
externa.

Rui Barbosa
Outro grande personagem da história do Brasil é Rui Barbosa (1849-
1923), um dos mais brilhantes intelectuais brasileiros. Faz parte também
dos vultos escolhidos como representantes do pensamento diplomático
brasileiro. Jurista, político, diplomata, desempenhou importante papel
como chefe da delegação brasileira na II Conferência de Paz da Haia em
1907, sobretudo no processo de regaste do conceito da igualdade sobera-
na dos estados.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):183-212, mai./ago. 2019. 207


Sérgio Eduardo Moreira Lima

Por que destacá-lo na conclusão deste trabalho, já que não é tão ób-
via sua ligação com Portugal? A decisão de incluí-lo tem a ver com dois
fatores. Em primeiro lugar, trata-se de um dos maiores tribunos brasilei-
ros, ou seja, um dos grandes promotores da língua portuguesa. Respeitado
no Brasil e no exterior, sobretudo na América Latina, contribuiu para a
difusão do português na região. Mas foi, sobretudo, um dos defensores e
articuladores de princípios e de valores que distinguem a comunidade ju-
rídica brasileira e o próprio pensamento nacional sobre temas de relevân-
cia histórica. Seus argumentos em favor do abolicionismo, dos direitos e
das garantias individuais e da igualdade dos estados no plano do direito
internacional público reúnem nele e no Barão do Rio Branco as condições
e os atributos que conferem legitimidade e prestígio à diplomacia brasi-
leira. Enriquecem suas tradições, suas práticas e os fundamentos morais
que caracterizam o Brasil no cenário internacional.

Na II Conferência de Paz da Haia, em 1907, a questão maior que


se colocava para o Brasil consistia em prevenir a consolidação de um
organismo internacional que consagrasse e que legitimasse o domínio das
nações poderosas, estabelecendo uma hierarquia de direito entre as na-
ções. A criação da Corte Internacional partia de proposta dos EUA, com o
apoio da Inglaterra e de outras nações europeias ocidentais.

Para evitar a aprovação de tal projeto, o Brasil recorreu ao princípio


vestfaliano da igualdade jurídica dos estados – conceito que não desper-
tava qualquer entusiasmo por parte das nações poderosas. Por isso, a de-
fesa do Brasil, na pessoa de Rui Barbosa, causou impacto. Com base em
argumentos sólidos e persuasivos, o Brasil buscou impedir, no início do
século XX, o estabelecimento de precedentes que consolidariam a per-
cepção dos estados mais poderosos de que deveriam gozar de privilégios
compatíveis com o seu poder militar e econômico. Com isso, seria per-
petuada uma ordem internacional sobre a qual refletiriam os teóricos do
realismo político em gestação, com sua ênfase na ordem internacional
assimétrica e na Realpolitik.

208 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):183-212, mai./ago. 2019.


Portugal e a gênese do pensamento diplomático brasileiro

O Brasil se opunha a tal discriminação. A consistência dos argumen-


tos expostos por Rui Barbosa em defesa da causa sensibilizou e moti-
vou nações latino-americanas, preocupadas com a visão imperialista das
potências hegemônicas e o uso indiscriminado da força, inclusive, para
cobranças de dívidas. Por seu mérito, tal defesa também angariou o apoio
de outros países periféricos da Ásia, África e da Europa Oriental.

A importância desse momento para a diplomacia brasileira reside na


expressão de sua capacidade de formular a política externa de maneira
autônoma, na esteira da tradição inaugurada pelo próprio patrono da in-
dependência e primeiro chanceler do Brasil, José Bonifácio de Andrada e
Silva, e, antes dele, no reconhecimento da importância dos princípios do
direito na definição dos limites territoriais americanos dos dois impérios
ibéricos, por parte de Alexandre de Gusmão. Demonstra, ademais, que a
política externa do Brasil se fundamenta em ideias e em aspirações. Não
se trata, portanto, de uma obra do acaso, tampouco ditada por outros pa-
íses, mas resulta da reflexão, da pesquisa e é radicada em valores, como
os da liberdade, da justiça, da soberania e do primado do direito. Assim,
nada mais razoável e mais justo que se levasse em conta, naquele mo-
mento, o princípio já estabelecido pela comunidade das nações na Paz de
Vestefália em 1648, ou seja, um juízo amadurecido durante séculos pela
experiência do convívio internacional.

Rui Barbosa desempenhou papel fundamental na consolidação desse


conceito na modernidade. A participação do Brasil marca o compromisso
com um sistema de interação estatal em que cada membro busca estabe-
lecer relações com o conjunto dos demais, em vez de agir unilateralmente
ou priorizar apenas ações bilaterais. Traduz ainda o multilateralismo a
defesa de princípios e de valores que têm inspirado a política externa bra-
sileira e assegurado sua consistência e sua coerência, além de contribuir
para sua projeção internacional.

A firmeza e a competência com que o Brasil defendeu suas posições


colocou o princípio da igualdade entre os estados como um dos paradig-
mas da política externa brasileira – hoje, inscrito na atual Constituição de

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):183-212, mai./ago. 2019. 209


Sérgio Eduardo Moreira Lima

1988, em seu artigo 4º. O maior reconhecimento internacional deu-se, em


1945, com sua inclusão na própria Carta de São Francisco22.

Rui Barbosa, assim como Bonifácio, já angariara o respeito público


por seu idealismo ao defender a abolição em meio aos escravocratas; o
federalismo numa época de poder unitário; e o civilismo para resgatar as
instituições e os ideais republicanos da visão autoritária do militarismo.
A alcunha de “Águia da Haia”, que recebeu da imprensa, foi uma reação
natural e patriótica ao seu desempenho parlamentar na conferência, so-
bretudo no tratamento da questão da igualdade jurídica entre estados.

Segundo Celso Lafer,


A ação de Rui na Haia é não só congruente com a sua prática política
e a relevância de seu legado no plano interno, como também represen-
tou, no plano externo, o fazer diplomático precursor do tema e do pro-
cesso da democratização do sistema internacional. É por esse motivo
que o alcance da Haia, em matéria de conduta diplomática, transcende
a dicotomia idealismo/realismo e se insere no âmbito do estilo de ação
grociana que, a meu ver, inspira a política externa brasileira no século
XX [...].23

A participação do Brasil na Haia marca, efetivamente, o compromis-


so do país com o multilateralismo e com a defesa de princípios que têm
inspirado a política externa brasileira e assegurado sua consistência e sua
coerência, além de contribuir para o seu prestígio internacional.

22  –  Trinta e oito anos após a Segunda Conferência de Paz da Haia, a Carta das Nações
Unidas, em seu artigo 2.1, consagrou a igualdade jurídica dos Estados, pela qual tanto
lutaram Rui Barbosa e a chancelaria brasileira, contra posições das potências da época.
Segundo o referido artigo, “a Organização é baseada no princípio da igualdade de todos os
seus Membros”. Ver: BRASIL. Decreto nº 19.841, de 22 de outubro de 1945. Promulga
a Carta das Nações Unidas. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decre-
to/1930-1949/D19841.htm>. Acesso em: 31 out. 2016.
23 – LAFER, Celso. A Identidade Internacional do Brasil e a Política Externa Brasilei-
ra: Passado, Presente e Futuro. São Paulo: Perspectiva, 2001. Ver, também, as mensagens
telegráficas trocadas entre o Barão do Rio Branco, então chanceler, e Rui Barbosa, chefe
da delegação brasileira na referida conferência em: CENTRO DE HISTÓRIA E DOCU-
MENTAÇÃO DIPLOMÁTICA. II Conferência da Paz, Haia, 1907: a correspondência
telegráfica entre o Barão do Rio Branco e Rui Barbosa. Brasília: FUNAG, 2014.

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Portugal e a gênese do pensamento diplomático brasileiro

Conclusão
A título de conclusão, creio que a estabilidade do ordenamento inter-
nacional dependerá de sua legitimidade e de outros atributos que reflitam
um sentido de equilíbrio e de coerência entre os valores universais defen-
didos internamente e sua projeção no mundo.

Existe uma linha condutora que une pensamento e ação na diploma-


cia brasileira, que remonta às boas tradições da diplomacia lusitana e se
prolonga ao longo do século XX na construção do multilateralismo con-
temporâneo. Essas tradições correspondem a princípios e a valores que
serão cada vez mais importantes para legitimar as instituições do século
XXI. A academia tem um papel a desempenhar nos estudos sobre os fa-
tores de convergência e de influência recíproca entre os países de língua
portuguesa de maneira a consolidar tais valores e promovê-los numa or-
dem internacional ainda indefinida.

Texto apresentado em fevereiro/2018. Aprovado para publicação em


junho/2019.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):183-212, mai./ago. 2019. 211


Um homem contra uma guerra: Rui Barbosa e a grande guerra

213

UM HOMEM CONTRA UMA GUERRA:


RUI BARBOSA E A GRANDE GUERRA
A MAN AGAINST A WAR: RUI BARBOSA
AND THE GREAT WAR
Brenda Maria Ramos Araújo1
Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo2

Resumo: Abstract:
O presente artigo procura mostrar a continuida- This article aims to demonstrate that Rui
de entre a atuação de Rui Barbosa na Conferên- Barbosa’s role at the Hague Peace Conference
cia de Paz da Haia de 1907 e a Conferência na of 1907 and his speech at the Law School
Faculdade de Direito de Buenos Aires de 1916. of Buenos Aires in 1916 build a continuum.
Nessas duas ocasiões, ele defendeu as mesmas In both occasions, he defended the same
ideias, os princípios do primado do Direito so- ideas, including the principles and primacy
bre a força e da igualdade jurídica das nações of the rule of law over force and the juridical
e, sobretudo, enfrentou a mesma oposição: uma equality of nations, having to face, first and
doutrina. Este texto busca, a partir de uma histo- foremost, the same opposition, namely a
riografia contextualista, recriar as teorias, as di- doctrine. From the standpoint of a contextualist
ferentes compreensões de Direito Internacional, historiography, we recreate the theories and
que sustentavam os discursos dessa época. Além different understandings of international
disso, empregou-se, neste trabalho, método de law that underpin the discourses of the time.
abordagem indutivo e fontes bibliográficas pri- Moreover, we employ an inductive method of
márias e secundárias. approach, along with primary and secondary
bibliographical sources.
Palavras-chave: Rui Barbosa; igualdade ju- Keywords: Rui Barbosa; juridical equality of
rídica dos Estados; primazia do Direito sobre States; rule of law over force; the Hague Peace
a força; Conferência de Paz da Haia de 1907; Conference of 1907; speech at the Law School
Conferência na Faculdade de Direito de Buenos of Buenos Aires in 1916.
Aires de 1916.

Introdução
No início do século XX, o Brasil notabilizou-se no cenário internacio-
nal pela defesa intransigente de dois princípios de Direito Internacional:

1  –  Professora substituta de Direito Internacional Público da Universidade Federal do


Rio de Janeiro (UFRJ), mestra em Direito pela UERJ. Graduada em Direito e pós-gradu-
ada em Relações Internacionais. E-mail: brendamariara@gmail.com.
2  –  Doutor em Direito pela UERJ. Pós-doutor pelo Instituto Histórico e Geográfico Bra-
sileiro. Professor Adjunto de Direito Internacional Público da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (UERJ) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professor
visitante na Andrzej Frycz Modrzewski Krakow University (Polônia) e na Murdoch Uni-
versity (Austrália). Colaborador da Escola de Guerra Naval (EGN). E-mail: vauthierbor-
ges@yahoo.com.br.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):213-246, mai./ago. 2019. 213


Brenda Maria Ramos Araújo
Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo

a igualdade jurídica dos Estados e o primado do Direito sobre a força.


Ambos são associados à figura de Rui Barbosa e a sua participação na
Segunda Conferência de Paz da Haia de 1907. Em determinada medida,
são os princípios que inauguram a tradição diplomática de nosso país.
Rui é, inclusive, reconhecido como um pioneiro da diplomacia multila-
teral brasileira, por Celso Amorim, pois sua participação, em 1907, re-
presentou a primeira conferência universal com presença do Brasil3. A
experiência multilateral anterior do país resumia-se a conferências pan-
-americanas. É pouco conhecido, entretanto, o contexto e a base teórica
em que esses princípios foram formulados e, sobretudo, contra quem fo-
ram defendidos.

Há 95 anos, falecia Rui Barbosa de Oliveira, político, jornalista,


e, em especial, jurista. Pouco após o seu falecimento, em 1º de março
de 1923, Braz de Sousa Arruda prestava-lhe homenagem, em sua aula
inaugural, na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, do curso de
Direito das Gentes. Recordava a atuação de Rui Barbosa na Conferência
de Paz da Haia de 1907 e em sua conferência na Faculdade de Direito
de Buenos Aires, em 19164. O texto, hoje, apresenta uma linguagem um
tanto envelhecida, cheia de superlativos e de adjetivos, rasgadamente,
elogiosa a Rui, mas tem o mérito de desvelar mais uma faceta de sua
personalidade: a de um pacifista, que vai a Buenos Aires para convencer
argentinos e Estados, em geral, a deixarem a neutralidade e combaterem
o perigo na Europa. A paz defendida por Rui não é a todo custo, pois
compreendia que era vital combater o militarismo alemão para alcançar
uma situação duradoura.

Em verdade, estas duas datas, 1907 e 1916, correspondem a um só


momento na vida de Rui, um grande contínuo de uma única luta, mesmo
que em palcos distintos. Em Buenos Aires, Rui Barbosa ainda se apresen-
ta como um internacionalista, a “Águia da Haia”, e emprega todo o seu

3  –  AMORIM, Celso. A diplomacia multilateral do Brasil: um tributo a Rui Barbosa.


Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2007, p. 5.
4  –  SOUSA ARRUDA, Braz de. Ruy Barbosa e o Direito das Gentes. Revista da Facul-
dade de Direito de São Paulo, v. 40, 1945, p. 17-25.

214 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):213-246, mai./ago. 2019.


Um homem contra uma guerra: Rui Barbosa e a grande guerra

prestígio auferido nos Países Baixos para combater um inimigo de quase


dez anos. O presente artigo pretende revelar quem é esse inimigo, como
aconteceu essa rixa, e, sobretudo, intenta mostrar que Rui Barbosa tinha
consciência de que não enfrentava um rival de carne e osso, mas uma
ideia, uma teoria, uma visão específica de Direito Internacional que se
mostrava, diametralmente, oposta a sua.

Em outras disciplinas, como na literatura, a identificação do autor


e de sua filosofia é irrelevante para a interpretação do texto, que é sem-
pre mais autônomo de seu criador. Já no direito, os autores e seus textos
apenas fazem sentido quando inseridos no contexto do sistema que lhes
concedia autoridade e significação e da sociedade que lhes inferia legi-
timidade. O direito interpretado por sistema jurídico diferente e valores
sociais estranhos perde sua essência e seu cerne. Assim, teoria jurídica e
direito nunca existem em um ambiente neutro, pois estão sempre imbuí-
dos de valores políticos5.

Rui Barbosa era um estadista, um homem político, com grandes pre-


ocupações práticas e pouca construção doutrinária. Apesar disso, inves-
tigar a teoria que fundamentava sua prática é essencial para a redação de
um trabalho jurídico sobre sua atuação em 1907 e em 1916. A análise da
estrutura abstrata, de sua concepção de Direito Internacional, permitirá
compreender e relacionar suas atuações. É a investigação do esqueleto
intelectual formador do discurso do Rui e do discurso das grandes potên-
cias da época que permitirá a compreensão do contexto mundial. A diver-
gência entre a posição do Rui Barbosa e a posição de outros juristas de
seu tempo referente à estrutura de uma corte internacional e à questão da
guerra era, antes de tudo, um reflexo de visões diferentes sobre a natureza
do Direito Internacional e o papel da soberania e do princípio da não-in-
tervenção em assuntos internos, no âmbito internacional. Apesar de suas
pressuposições sobre a função e a natureza do Direito Internacional apa-

5 – SCOBBIE, Ian. Some common heresies about international law: sundry theoretical
perspectives. In: EVANS, Malcolm. International Law. New York: Oxford University
Press, 2003. Cap. 2, p. 59-67.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):213-246, mai./ago. 2019. 215


Brenda Maria Ramos Araújo
Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo

recem de forma indireta em seus trabalhos de 1907 e 1916, a identificação


dessas predisposições é essencial para a avaliação de seus argumentos.

Em primeiro lugar, este trabalho demonstrará, em linhas gerais, o


pensamento teórico predominante à época. Em seguida, analisará os re-
flexos dessa teoria nas conferências de 1907 e de 1916 frente ao discurso
do Rui Barbosa. Por último, será feita uma tentativa de esboçar o arca-
bouço teórico do Rui Barbosa no que se refere ao Direito Internacional.

Neste texto, empregou-se uma metodologia que insere os discursos


jurídicos no seu próprio tempo chamada por alguns de “contextualismo”6
e um método de abordagem indutivo. Utilizou-se, ainda, fontes bibliográ-
ficas primárias (os textos do próprio Rui Barbosa) e secundárias (os de
comentaristas).

A importância do positivismo no século XIX (1815-1919)


O termo positivismo, apesar de suas inúmeras acepções atuais, asso-
ciava-se a um estudo objetivo, científico, baseado em rigor metodológico.
O termo foi cunhado por Auguste Comte, que, no século XIX, almejava
dispensar a utilização de dogmas e de superstições dos períodos teoló-
gicos e metafísicos anteriores. Para o direito, o positivismo significava,
principalmente, o reconhecimento de que o direito era uma produção
do ser humano e deveria ser baseado em fatos, separado de idealismos
inaplicáveis. No Direito Internacional, especificamente, significava um
abandono do direito natural, o que levou a consagração de Grócio, de
maneira exagerada, como pai do Direito Internacional. Ignorando-se a
importância da Teologia na teoria jurídica de Grócio, o autor passa a ser
6  –  Esse tipo de abordagem foi desenvolvido por autores como John Greville Agard
Pocock (POCOCK, J. G. A. Quentin Skinner: a história da política e a política da história.
Trad. Patrick Wuillaume e Guilherme Pereira das Neves. Topoi, v. 13, n. 25, jul/dez 2012,
p. 193-206.) e Quentin Skinner (SKINNER, Quentin. Liberdade antes do Liberalismo.
Trad. Raul Fiker. São Paulo: UNESP, 1999). Quando se lê um autor antigo, e as suas
ideias são “atualizadas”, comete-se um verdadeiro crime intelectual contra este escritor.
As ideias não pairam soltas na História, desprendidas de qualquer contexto. Todo argu-
mento é proferido, tendo em vista determinados contendores e público leitor, e visa à
alteração de certa conjuntura específica de fatores. Estudar um pensador implica estudar
os seus mestres, os seus adversários e o seu público imediato.

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Um homem contra uma guerra: Rui Barbosa e a grande guerra

consagrado como o definidor de um fundamento puramente racional para


o Direito Internacional7.

O direito natural e sua intenção de conferir um propósito ulterior ao


Direito Internacional precisava ser abandonado. Cada Estado deveria ser
livre para perseguir seus próprios interesses, e a unidade da humanida-
de conferida pela Teologia passa a ser compreendida como um mito. Os
Estados deveriam ser considerados os mestres do Direito Internacional,
que só teria legitimidade até o limite em que permitisse cada país a buscar
seus interesses nacionais. Controvérsias políticas e críticas sociais não
poderiam ser incluídas no direito, que precisava ser compreendido como
um instrumento. Por essa visão instrumentalista, a lei poderia e deveria
ser utilizada em função de interesses nacionais e sem preocupações mo-
rais. Dessa forma, a moral era dissociada da vida internacional, conside-
rando-se apenas sua regência interna para as relações entre indivíduos. A
Conferência de Berlim, de 1884 a 1885, foi um marco nessa perspectiva.
Ela teve três objetivos principais: estabelecer a livre navegação nos rios
Níger e Congo, a liberdade de comércio na bacia do Congo e os critérios
pelos quais as grandes potências poderiam reconhecer alegações imperia-
listas de aquisição territorial na África8.

Como obra, fundamentalmente, da criatividade humana, o Direito


Internacional só poderia ser considerado como criação da vontade estatal.
Essa concepção estadocêntrica predominou ao longo desse século, cul-
minando no julgamento do caso Lotus pela Corte Permanente de Justiça
Internacional. Qualquer limitação à soberania estatal não poderia ser pre-
sumida, e os tratados que estabelecessem limitações deveriam ser inter-
pretados de forma restritiva. As concepções de independência e soberania
eram absolutas, formando um direito baseado na mera coexistência entre os
Estados e conferindo grande importância ao princípio da não-intervenção
em assuntos internos: “Now the first and foremost restriction imposed by
7  –  MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Uma comparação entre os conceitos de
jus gentium em Francisco Suárez e Hugo Grócio. Rio de Janeiro. Tese de doutoramento
em Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), 2007.
8 – KOSKENNIEMI, Martti. The Gentle Civilizer of Nations: the rise and fall of Interna-
tional Law 1870-1960. New York: Cambridge University Press, 2001. p. 121-127.

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Brenda Maria Ramos Araújo
Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo

international law upon a State is that-failing the existence of a permissive


rule to the contrary-it may not exercise its power in any form in the
territory of another State”9. Nesse sentido, o Direito Internacional era
um direito entre os Estados, facilitador da coexistência, e não o Direito
Internacional contemporâneo, superior aos Estados e estimulador da co-
operação10.

Como o Estado era o único sujeito de Direito Internacional e era seu


próprio criador, os diversos interesses nacionais não poderiam ser descon-
siderados frente a um direito da sociedade internacional como um todo. O
próprio Direito Internacional existiria apenas para possibilitar essa com-
petitividade entre países soberanos e estabelecer uma coexistência míni-
ma em um ambiente de hostilidades. Cada Estado deveria ser considerado
como soberano absoluto em seu próprio território, livre para perseguir um
direito interno que respeitasse sua cultura, preservando o conceito basilar
da não-interferência em assuntos internos e o princípio da igualdade entre
os Estados. Nesse sentido, é importante observar que, pela compreensão
majoritária, o princípio da igualdade entre os Estados objetivava manter a
paridade em um aspecto formal, conservando a soberania e a independên-
cia absolutas de cada poder soberano, em conformidade com seu status
quo nesse ambiente anárquico, sem preocupações em igualar poderes de
fato. Desde o Congresso de Viena, em 1815, já havia sido estabelecido
que, apesar da igualdade entre Estados, países mais importantes deveriam
possuir mais influência, pois possuíam mais interesses entrelaçados às
questões em discussão, na ordem internacional. Estados pequenos devem
reconhecer sua posição e não se devem envolver com questões que não
lhes dizem respeito11. Apenas aos grandes Estados é conferida a presun-
ção de que todas as questões de Direito Internacional lhes interessam.

9 – INTERNACIONAL. Corte Permanente Internacional de Justiça. S.S. “Lotus”


(França vs. Turquia). Julgamento n. 9 de 2 Agosto de 1926. Série A, n. 10. pp. 31 e
33. Disponível em: https://www.icj-cij.org/files/permanent-court-of-international-justice/
serie_A/A_10/30_Lotus_Arret.pdf. Acesso em: 26 nov. 2018.
10 – NEFF, Stephen. A Short History of International Law. In: EVANS, Malcolm. Inter-
national Law. New York: Oxford University Press, 2003. Cap. 1, p. 31-58.
11 – GREWE, Wilhelm. The Epochs of International Law. New York: de Gruyter, 2000.
Tradução de Michael Byers. p. 429-431.

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Um homem contra uma guerra: Rui Barbosa e a grande guerra

Nesse sentido, o Direito Internacional representava apenas mais um ins-


trumento de controle dos fracos pelos mais fortes12.

Além disso, argumentações que envolvessem uma questão de segu-


rança-nacional jamais seriam consideradas como jurídicas, dizendo res-
peito apenas à política. Discutir se um Estado possuía ou não razão para
declarar guerra estava fora da autoridade do direito positivo. Conforme
Pillet coloca: “La vanité de la distinction des guerres justes et injustes
est évidente, ce point est une pure question de conscience personnelle”13.
Apenas as medidas de uso da força que ainda não poderiam ser conside-
radas como atos de guerra, como as represálias, que eram reconhecidas
como formas de aplicação do Direito Internacional, ainda eram compre-
endidas como questões jurídicas. A guerra passou a ser concebida como
uma constante do sistema internacional, que não poderia, nem deveria ser
evitada. O Direito Internacional precisava ser abordado de maneira téc-
nica, sem se preocupar com debates de cunho moral e grandes ideais. A
numerosa produção legislativa, na esfera internacional, durante o século
XIX, respeitava essa concepção, criando tratados em assuntos considera-
dos como livres de objetivos políticos: Comissões Internacionais sobre a
navegação no Reno e no Danúbio, regulamentação do Canal do Panamá,
Uniões Postal Universal e Telegráfica Internacional e toda a indumentária
relacionada a regulamentação de conflitos armados14.
12  –  Neff considera que mesmo os poucos adeptos do direito natural sofreram essa in-
versão. Os institutos da represália e da legítima defesa, apesar de ainda continuarem a ser
regulados pelo direito natural, serviam apenas para a preservação do status quo, para a
defesa dos interesses dos Estados mais fortes em face aos mais fracos. NEFF, Stephen.
A Short History of International Law. In: EVANS, Malcolm. International Law. New
York: Oxford University Press, 2003. Cap. 1, p. 31-58, p. 46-47. Grewe sentencia: “In this
conception international law dissolved, becoming a function of the power interplay of
political forces” GREWE, Wilhelm. The Epochs of International Law. New York: de
Gruyter, 2000. Tradução de Michael Byers, p. 504. Ver Acciolly e Casella para a com-
preensão do período caracterizado por coexistência e por mútua abstenção. ACCIOLY,
Hildebrando; CASELLA, Paulo Borba. Manual de Direito Internacional Público. 20ª ed.
São Paulo: Saraiva, 2012. Cap. 1. E-book.
13 – PILLET, Antoine. Les Conventions de la Haye du 29 Juillet 1899 et du 18 Octobre
1907: étude juridique et critique. Paris: A. Pedone, 1918. P.6 Disponível em : https://galli-
ca.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k5622934h/f2.item.r=Une%20pure%20question%20de%20
conscience%20personnelle.texteImage. Acesso em: 26 nov. 2018.
14 – NUSSBAUM, Arthur. A Concise History of the Law of Nations. 1954, p.196-203.

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Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo

De maneira geral, a ordem internacional era sustentada pelos princí-


pios estabelecidos no Congresso de Viena, de 1815. A principal diferença
do Congresso de Viena para os grandes acordos de paz do passado – Paz
de Vestfália e Paz de Utrecht – foi o apoio em conceitos jurídicos. Viena
estabeleceu, pela primeira vez, um sistema de paz baseado, principalmen-
te, no direito. Havia um grupo de princípios, conhecidos como o direito
público europeu, que deveriam ser respeitados para que a paz fosse garan-
tida. A implementação desse direito público europeu seria fiscalizada pela
Quíntupla Aliança (Rússia, Áustria, Prússia, Reino Unido e França)15.

Era um sistema descentralizado e ad hoc. Iniciou, porém, com uma


certa periodicidade em suas conferências que não conseguiu ser manti-
da. Quando o interesse nacional das cinco grandes potências começou a
divergir, o sistema mostrou suas falhas. Os três Estados mais conserva-
dores, Rússia, Áustria e Prússia, integravam a chamada Santa Aliança,
que objetivava conter revoluções. O Reino Unido mostra-se, desde o
início, contrário a políticas intervencionistas em geral. Assim, o con-
junto das cinco potências, conhecido como o Concerto Europeu, acaba
intervindo em crises de forma esporádica e ad hoc. De certa maneira,
as únicas intervenções realizadas que possuíram um certo viés humani-
tário, mesmo que ainda prevalecessem interesses nacionais, foram as da
Grécia e da Bélgica. Esse Concerto Europeu e essa acepção positivista
do Direito Internacional, por privilegiarem interesses individuais, foram
incapazes de conter a Primeira Guerra Mundial. Em conclusão, o Direito
Internacional era compreendido, em geral, por teorias positivistas que
eram subservientes a relações de poder de fato entre os Estados16.

Disponível em: https://archive.org/details/in.ernet.dli.2015.460627/page/n207. Acesso


em: 26 nov. 2018.
15 – NEFF, Stephen. A Short History of International Law. In: EVANS, Malcolm. Inter-
national Law. New York: Oxford University Press, 2003. Cap. 1, p. 31-58.
16 – Para maiores informações sobre o Concerto Europeu, recomenda-se: DUPUIS,
Charles. Le Principe d'Équilibre et le Concert Européen: de la paix de Westphalie à l'acte
d'Algésiras. Paris: Perrin et Cie, 1909. p.114-502. Disponível em: https://archive.org/de-
tails/leprincipedqui00dupuuoft/page/n541. Acesso em: 26 nov. 2018.

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Um homem contra uma guerra: Rui Barbosa e a grande guerra

A Conferência de Paz da Haia de 1907


No período entre 1815-1919, Hedley Bull e Adam Watson identifi-
cam o nascimento de uma sociedade internacional universal de Estados,
integrada também por países de religião, de cultura e de raça diferentes
das europeias. Esses Estados, inclusive, participavam progressivamente,
de conferências internacionais multilaterais. Dessas, a Conferência de Paz
da Haia de 1907 foi a mais abrangente, incluindo até mesmo os Estados
Latino-Americanos. Essa Conferência seria a primeira vez que os Estados
europeus precisariam enfrentar concepções diferentes sobre o Direito
Internacional em um ambiente diplomático multilateral. A Conferência
de Paz da Haia representava uma situação nova na ordem internacional17.

Em verdade, Rui Barbosa não sabia o que esperar da Haia. Aceitou


muito titubeante, após quarenta e dois dias de receios, o convite do Barão
do Rio Branco para a posição de primeiro delegado plenipotenciário18. O
próprio Brasil também não sabia o que esperar da Haia. A singularidade
da conferência criava esse ambiente de incertezas, em certa medida, para
todos os participantes.

Rio Branco, Ministro das Relações Exteriores do Brasil, acreditava


que o Brasil fora chamado para o concerto das nações, que era denomi-
nado de parlamento das nações à época19, e seria tratado como um igual,
por isso encaminhou trabalho minucioso de dezoito extensos ofícios com
recortes da imprensa de diversos países, informações confidenciais pas-
sadas por representantes do Brasil no exterior e por publicações brasi-
leiras. Enfim, tudo que foi possível reunir sobre a conferência da Haia
foi encaminhado a nossa delegação20. Lá ficou claro, porém, que o papel
17 – Hedley Bull e Adam Watson, inclusive, enxergam na participação dos Estados
Latino-Americanos na Conferência de 1907 uma “premonição da influência do Terceiro
Mundo na Assembleia Geral das Nações Unidas.” BULL, Hedley; WATSON, Adam. The
Expansion of International Society. Oxford: Clarendon Press, 1984, p.122-123 Disponí-
vel em: https://archive.org/details/expansionofinter00bull/page/122. Acesso em: 26 nov.
2018.
18 – BARBOSA, Rui. Esfola da Calumnia. Rio de Janeiro: Guanabara, 1933, p. 155.
19 – BARBOSA, Rui. Obras Completas de Rui Barbosa. vol. XXXIV (1907), Tomo II.
Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1966, p. 54.
20 – LACOMBE, Américo Jacobina. Rio-Branco e Rui Barbosa. Rio de Janeiro: Im-

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esperado do País seria ratificar uma agenda que já se encontrava decidida.


Na comparação de Álvaro Lins, era aguardado do delegado brasileiro na
Haia em relação aos Estados Unidos desempenho idêntico ao do Sexta-
Feira ao lado de Robinson Crusoé21. Não é por outro motivo que Viana
Filho resume os anseios da conferência nesta frase: “Uns falariam mais
do que outros, mas, ao cair do plano, todos se curvarão à vontade das oito
pujantes organizações militares ali representadas.”22. Mais ilustrativa
ainda é a definição dada pelo próprio Rui, em 1908, quando já conseguia
refletir sobre os acontecimentos da Haia: “Ali não se levava muito a bem
a liberdade, assumida por um governo remoto, desconhecido e inerme, de
interpor com isenção o seu juízo nas principais questões oferecidas pelo
direito das gentes aos debates daquela assembleia.”23.

Rui Barbosa inicia sua participação em Haia, trabalhando incansa-


velmente. Era ele quem produzia todos os discursos, realizava a leitura de
projetos, elaborava emendas e estabelecia a comunicação com o Governo.
Como afirmou Burlamaqui, também membro da delegação brasileira, Rui
Barbosa encarnou em sua pessoa toda a Delegação24.

Rui desejava demonstrar o posicionamento brasileiro em todas as


grandes questões internacionais tratadas na conferência. Seus longos dis-
cursos irritavam os demais países, que lhe deram a alcunha de Doutor
Verbosa25. Esse foi o primeiro momento de confronto entre duas teorias
prensa Nacional, 1948, p. 83-84.
21 – LINS, Álvaro. Rio-Branco (o Barão do Rio-Branco): biografia pessoal e história
política. 2. ed. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1965, p. 435.
22  –  VIANA FILHO, Luís. A vida de Rui Barbosa. Rio de Janeiro: Livraria José Olym-
pio, 1977, p. 293.
23 – BARBOSA, Rui. Obras Completas de Rui Barbosa. Vol. XXXV (1908), Tomo I.
Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura. Fundação Casa de Rui Barbosa, 1967,
p. 42.
24  –  OCTÁVIO, Rodrigo. Minhas Memórias dos Outros. Nova Série. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1979, p. 209.
25  –  “A aparição desse pequenino e tranquilo estrangeiro que tinha alguma coisa que
dizer e estava resolvido a dize-lo, a seu modo e a sua vez, irritou muitos de seus colegas
que se esforçavam por abafar-lhe a voz, pelo processo simplista de entrar em conversa
com o vizinho. Referindo-se a um de seus discursos observou, certa vez, um Delegado
que, no princípio, só se ouvia a voz do orador, mas que na última meia hora de sua oração,
sua voz era a única que se não ouvia, entre duzentas e tantas que discorriam ao mesmo

222 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):213-246, mai./ago. 2019.


Um homem contra uma guerra: Rui Barbosa e a grande guerra

opostas. Para Rui, era natural que todos os países, por menor que fos-
sem, pudessem participar na construção de qualquer questão de Direito
Internacional. Para a corrente positivista majoritária da época, a partici-
pação indiscriminada de pequenos Estados imbuiria o direito de valores
morais incondizentes com a vida internacional, perdendo seu caráter ins-
trumental e tornando-o inaplicável.

No dia 12 de julho, tem-se, claramente, um embate entre duas con-


cepções distintas sobre a relação entre a Política e o Direito Internacional.
Como foi analisado anteriormente, o positivismo buscava separar, com-
pletamente, a ciência jurídica de outras ciências, como a Política. Nesse
dia, após discurso do delegado brasileiro sobre a conversão de navios
mercantes em vasos de guerra, o Presidente De Martens, declara, rispida-
mente26, que a política não era assunto a ser tratado pela conferência. A
interferência de Martens foi recebida por aplausos27. Para os países reuni-
dos na conferência, o Brasil, um país que realizava pouquíssimas presas,
não deveria opinar na discussão desse assunto. Além disso, questões de
segurança nacional não deveriam ser debatidas em um ambiente jurídico.
Rui Barbosa, então, demonstra sua posição sobre a relação entre o Direito
Internacional e a Política:
Nós queremos fugir aqui da política? Mas, meu Deus, é pagarmo-nos
de nomes e não ver a realidade. A política é a atmosfera dos Estados.
A política é a região do direito internacional. De onde é que ele emana
se não é da política? São as revoluções, são as guerras, são os trata-

tempo. E na Conferência, de boca em boca, se dizia que não era possível suportar esse
Dr. Barbosa.” OCTÁVIO, Rodrigo. Minhas Memórias dos Outros. Nova Série. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, p. 213-214.
26  –  Assim, descreve Baptista Pereira: “Ruy pediu a palavra e leu um discurso de meia
hora sobre presas marítimas. De Martens ouviu-o de má vontade, a mão esquerda ao
rosto, de lado, quase de costas. A sala, com raras exceções, afinava por esse diapasão;
diálogos travavam-se por toda a parte. Era, dado o ambiente diplomático, uma verdadeira
manifestação de desagrado. Ruy terminou numa atmosfera glacial.” PEREIRA, Baptista.
Figuras do Império e outros ensaios. São Paulo: Companhia Ed Nacional, 1934, p. 261.
Disponível em: http://www.brasiliana.com.br/obras/figuras-do-imperio-e-outros-ensaios/
pagina/3/texto. Acesso em: 26 nov. 2018.
27 – SOCTT, James Brown. The Proceedings of the Hague Peace Conferences. Vol.
III. Nova Iorque: Oxford University Press, 1921, p. 808 Disponível em: https://archive.
org/stream/proceedingshagu01lawgoog#page/ n896/mode/2up Acesso em: 26 nov. 2018.

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Brenda Maria Ramos Araújo
Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo

dos de paz que elaboram lentamente esse grande corpo do Direito das
Nações.
[...] Aí está por que me encontro obrigado a concluir, por fim de con-
tas, senhores, que, cortarmos o contato com a política de forma total,
seria ditar-nos o impossível e seria impedir o próprio uso da palavra.28

Pode-se dizer que, para Rui, o Direito e a Política jamais poderiam


ser separados completamente. A ideia de construir uma ciência jurídica
pura e afastada de todas as demais parecia-lhe ilusória, pois, pelo menos,
o Direito sempre estaria, de alguma maneira, associado à Política. Como
resultado desse choque direto entre as duas teorias, os delegados europeus
precisaram reconhecer pontos de vista diferentes. O delegado russo, De
Martens, pedirá desculpas por seu comentário, e Marschall Bieberstein,
delegado alemão, e Léon Bourgeois, delegado francês, reconhecem a fi-
gura do delegado brasileiro. Talvez, quem melhor tenha resumido o acon-
tecimento tenha sido Brown Scott: “Voilà le Nouveau-Monde qui se fait
entendre du vieux”29.

Outro momento de desavenças ocorreu durante as discussões para


a criação de uma Corte de Presas. A Corte seria formada apenas por
Estados que possuíssem uma marinha mercante com mais de 800.000
toneladas, no momento de assinatura da convenção. O tribunal assegu-
raria a manutenção do status quo internacional, pois seria dominado por
28  –  Tradução livre do original em francês. BARBOSA, Rui. Obras Completas de Rui
Barbosa. vol. XXXIV, Tomo II. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1966,
p. 64-65. Tradução livre do original em francês, disponível no site: http://docvirt.com/
docreader.net/docreader.aspx? bib=ObrasRuiMP&pasta= Vol.%20XXXIV%20(1907)\
Tomo%20II&pesq=&paglog=. Acesso em: 26 nov. 2018.
29  –  Comenta Batista Pereira: “Enquanto De Martens dava conta do expediente, antes
de fechar os trabalhos, aproximei-me de D’Estournelles e de Bourgeois, ambos radiantes.
‘C’en est fait d’un malentendu primordiel’, comentava D'Estournelles, grande vida toda
votada ao serviço da paz, referindo-se à definição da política. Bieberstein e Bourgeois
conversavam de lado no mesmo sentido. Não lhes ouvi as palavras, mas D’Estournelles,
que se lhes agregou ao grupo, me disse que ambos estavam atônitos. Brown Scott, o ele-
mento ativo por excelência dos americanos do norte, o delegado técnico, o especialista
em Direito Internacional dos Estados Unidos, comentava o discurso a Drago: ‘Voilá le
Nouveau-Monde qui se fait entendre du vieux’!” PEREIRA, Baptista. Figuras do Impé-
rio e outros ensaios. São Paulo: Companhia Ed Nacional, 1934, p. 261. Disponível em:
http://www.brasiliana.com.br/obras/figuras-do-imperio-e-outros-ensaios/pagina/3/texto.
Acesso em: 26 nov. 2018, p. 265-266.

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Um homem contra uma guerra: Rui Barbosa e a grande guerra

grandes potências e não possuía, nem ao menos, a previsão de incluir, fu-


turamente, países que alcançassem o número referido de toneladas. Seria
atribuído assento permanente para os juízes das oito grandes potências
– Alemanha, Estados Unidos, Áustria-Hungria, França, Grã-Bretanha,
Itália, Japão e Rússia – e um critério de rotatividade para a representação
dos demais Estados.

Caso fosse instituído, os países mais fracos e, em geral, mais afeta-


dos pelas presas constituídas por grandes potências só poderiam recorrer
a esse tribunal constituído por essas próprias potências. Assim, seria legi-
timada a relação de força pelo próprio Direito Internacional30. Era mais
um reflexo do positivismo da época, que considerava que apenas as gran-
des potências com suas imensas frotas possuíam interesse na constituição
da Corte de Presas. Rui Barbosa, que possuía uma concepção de Direito
Internacional mais vinculada à cooperação entre os Estados e ao interesse
da sociedade internacional frente a interesses exclusivamente nacionais,
ressalta que uma frota mercante muito maior estaria excluída dessa corte,
a frota de Estados pequenos considerada em conjunto:
Afinal, a frota mercante excluída com base em não ter a quantidade de
tonelada individual necessária, representa, em sua totalidade, uma to-
nelagem muito superior a que garante a cada uma das outras o direito
de ter uma voz na nomeação do tribunal. Por que então excluir desse
direito essa massa tão importante, composta pelas pequenas frotas,
mas mais imponente do que a maioria das grandes?
Logo, propomos que as nações cujas frotas sejam inferiores a tonela-
gem fixada, sejam admitidas a nomeação dos membros da corte por
via de um acordo entre elas para a escolha dos juízes ou por qualquer
outro método que consiga atingir o mesmo resultado.31
30  –  Essa crítica é feita pelo próprio Rui: “Alors on ne nous a opposé rien. On s’est tû.
Mais on a maintenu l’injustice manifeste, l’inversion prouvée et tangible. Cette iniquité
palpable dans les fondements d’une institution judiciaire, cette affirmation ostensible du
puvoir de la force contre la raison dans l’ouvre de l’assemblée la plus auguste du monde,
convoquée pour organiser la paix au moyen du droit, est infiniment douloureuse pour les
victimes.”  BARBOSA, Rui. Obras Completas de Rui Barbosa. Vol. XXVIII, Tomo II,
1901. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1979, p. 316. Disponível em: http://
docvirt.com/docreader.net/docreader.aspx? bib=ObrasCompletasRuiBarbosa&pasta=V
ol.%20XXVIII%20 (1901)\Tomo%20I&pesq=. Acesso em: 26 nov. 2018.
31  –  Tradução livre do original em francês. BARBOSA, Rui. Obras Completas de Rui

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Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo

O delegado brasileiro passa as demais reuniões, tentando demonstrar


a desigualdade na estrutura desse tribunal, que, mesmo seguindo os crité-
rios de relevância da frota mercante, possuía inúmeros equívocos em sua
classificação dos países. Para esse objetivo, elabora tabelas que demons-
tram Estados de mesmas condições com distribuições diferenciadas de
juízes. Nesse momento, é esclarecedor o comentário de Joseph Choate,
dos Estados Unidos, que questiona o interesse brasileiro em participar
dessa questão, quando não era de seu conhecimento que o Brasil tivesse
sofrido muitas apreensões de navios mercantes32. É marcante a teoria po-
sitivista nesse comentário, que considera a igualdade entre os Estados em
um aspecto formal, pois os países devem demonstrar seu interesse antes
de serem convidados a discutir uma questão de Direito Internacional. São
os Estados que são os senhores do Direito Internacional e não o contrário.

O Projeto de criação de um Tribunal de Presas acaba sendo aprovado


por vinte e seis Estados, com duas objeções – Brasil e Turquia – e dezes-
seis abstenções. Em discurso, durante a votação, Rui apela a tempos fu-
turos, “em que o espírito dos homens seja mais maduro para os trabalhos
em prol da paz, que são nada mais do que o respeito sincero ao direito
pelas nações”. Isso demonstra sua crença em um Direito Internacional
capaz de estabelecer cooperações e colocar-se em posição superior aos
interesses nacionais dos Estados33.

A desavença sobre o princípio da igualdade entre as nações, que, an-


tes de tudo, era um desentendimento do arcabouço teórico dos dois lados,
também permeou os debates sobre a constituição de uma corte mundial,
Barbosa. Vol. XXVIII, Tomo II, 1901. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa,
1979, p. 50-51. Disponível em: http://docvirt.com/ docreader.net/docreader.aspx?bib=Obr
asCompletasRuiBarbosa&pasta=Vol.%20XXVIII%20(1901)\Tomo%20I&pesq=. Acesso
em: 26 nov. 2018.
32 – SCOTT, James Brown. The Proceedings of the Hague Peace Conferences. Vol. II
Nova Iorque: Oxford University Press. p.846 Disponível em: https://archive.org/stream/
proceedingshagu01lawgoog#page/n6/mode/2up. Acesso em: 26 nov. 2018.
33  –  Tradução livre do original em francês. BARBOSA, Rui. Obras Completas de Rui
Barbosa. Vol. XXVIII, Tomo II, 1901. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa,
1979, p. 317. Disponível em: http://docvirt.com/ docreader.net/docreader.aspx?bib=Obr
asCompletasRuiBarbosa&pasta=Vol.%20XXVIII%20(1901)\Tomo%20I&pesq=. Acesso
em: 26 nov. 2018.

226 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):213-246, mai./ago. 2019.


Um homem contra uma guerra: Rui Barbosa e a grande guerra

a Corte Internacional de Justiça Arbitral. O projeto dessa Corte advinha


de uma proposta, inicialmente, apenas estadunidense, que previa que a
Corte seria composta por dezessete países, sendo, preferencialmente, es-
colhidos entre os juízes já indicados a Corte Permanente de Arbitragem.
A forma de eleição dos juízes ainda não estava estabelecida, mas o de-
legado norte-americano, Choate, afirma que ela deveria respeitar os di-
ferentes sistemas jurídicos existentes e grande variedade geográfica. A
Corte Permanente de Arbitragem continuaria existindo, sendo a nova
Corte apenas um complemento ao sistema internacional de solução de
controvérsias. Scott, também membro da delegação dos Estados Unidos,
ressalta que haveria, na forma de eleição, grande respeito ao princípio da
igualdade entre os Estados34.

O plano de eleição de juízes foi apresentado no projeto revisado em


conjunto por Grã-Bretanha, Estados Unidos e Alemanha. Ao apresentar
esse projeto revisado, Brown Scott informa que os países do mundo se-
riam divididos em cinco categorias, de acordo com critérios políticos. O
organismo seria composto de dezessete juízes, entre os quais nove seriam
indicados pelas oito maiores potências da época (Alemanha, Áustria-
Hungria, Estados Unidos, França, Inglaterra, Itália, Japão e Rússia). Estas
cadeiras seriam permanentes. Os nove restantes seriam nomeados em
conformidade a um regime rotativo. Os países de cadeira rotativa foram
distribuídos em uma complexa tabela, seguindo critérios populacionais,
econômicos e culturais.

Scott anuncia que a tabela está consoante ao princípio da igualdade


entre os Estados, pois assegura a todos os países convidados à conferência
o direito de nomear um juiz, mesmo que esses juízes tenham mandatos
rotativos e de curtos períodos. Todos os Estados teriam o direito de indi-
car um juiz para a Corte, mas o direito de indicação seria regulamentado
em conformidade ao interesse de cada Estado na solução de controvér-
sias internacionais. Era cediço que grandes potências tinham seu interesse
presumido, mas pequenos Estados possuíam poucos motivos para neces-
34 – SCOTT, James Brown. The Proceedings of the Hague Peace Conferences. Vol. II.
Nova Iorque: Oxford University Press, 1921, p. 314-315.

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Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo

sitar de uma corte mundial. Mesmo quando esses Estados tinham algum
conflito, suas repercussões não eram tão alarmantes. A participação de
cada país condiria com sua importância no âmbito internacional, o que
respeitava a concepção positivista desse princípio. Nos primeiros doze
anos de funcionamento da corte, por exemplo, por apenas quatro anos, a
Corte contaria com juízes indicados pelo Brasil35.

Para Rui Barbosa, essa atenção meramente formal ao princípio


da igualdade entre os Estados não era suficiente. Esclarece que o pro-
blema em questão era que, mesmo contando com o direito de nomeação,
se o juiz fosse atuar apenas em alguns anos do período total de funcio-
namento da corte, a nomeação estaria sendo cerceada por uma restrição
na execução do direito. Todos os direitos são, de certa forma, condicio-
nados aos seus termos de exercício. Rui demonstra que, se as condições
de exercício são diferentes, não é possível afirmar que os direitos são
iguais. Desigualdade no exercício do direito significa, necessariamente,
desigualdade de direitos. O valor de um direito é dado pela possibilidade
jurídica de execução do mesmo:
The proposition contains two distinct rights: the right to appoint and
the right to sit. In the right of appointing we would indeed be equals.
But in the right of sitting in the court we would be absolutely unequal.
And it is this inequality which violates the equality of the States.
This is the reason why I brought up the question of competence which
to my conscience, as a member of this committee, seems evident.
We have no written regulations enabling us to define precisely the
limits of our powers. But in case of doubt, as in this present case,
scrupulousness, it seems to me, would demand that we should be
guided by the decision of our constituents and refer the question to
the Commission.
Gentlemen, I bring my words to a close by requesting you to pardon
me for the vivacity of my words and the warmth of my feelings. This
is due to the excitability of my temperament and prompted by the
sincerity of my convictions. I do not desire to put any obstructions in

35  –  Para conferir a tabela de rotatividade, ver: SCOTT, James Brown. The Proceedings
of the Hague Peace Conferences. Vol. II. Nova Iorque: Oxford University Press, 1921,
p. 609-613.

228 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):213-246, mai./ago. 2019.


Um homem contra uma guerra: Rui Barbosa e a grande guerra

the path of our labors. But neither can I relinquish the performance of
my duty.36

Em resposta, o presidente do Comitê onde o projeto estava sendo


debatido afirma que os Estados já deveriam saber que o princípio de ro-
tatividade seria utilizado, pois não era possível a todos ter juízes na Corte
Permanentemente. A adoção de uma corte mundial com a participação
efetiva de todos os membros da sociedade internacional parecia absurda
e impraticável.

Nessa divisão clara entre duas teorias, Rui tenta convencer os demais
delegados da importância da moral para o Direito Internacional. Ele argu-
menta que retirar o princípio da igualdade entre os Estados da esfera do
Direito Internacional equivaleria a minar a última barreira que preserva a
paz na sociedade internacional. Sem esse princípio, as relações jurídicas
seriam baseadas em uma distinção valorativa entre Estados, que ocorre,
na prática, com base em sua capacidade econômica e militar. Por enquan-
to, Estados com um poderio econômico e militar e Estados menores ainda
estão submetidos, igualmente, ao Direito Internacional. Criar uma corte
mundial com grandes potências podendo indicar juízes permanentes sig-
nifica conceder uma supremacia também no Direito para esses países. O
tribunal que deveria ser capaz de reestabelecer a balança entre os mais
fortes e os mais fracos será a própria fonte de desequilíbrio. O Direito será
mais um instrumento dos que já possuem influência e poder. Mesmo para
os países com juízes permanentes, a situação é perigosa. Uma vez colo-
cada em dúvida a igualdade entre as nações, esse precedente poderia ser
utilizado outras vezes em desfavor dos, agora, beneficiados. Estabelecer
a paz, criando uma situação de servidão é colocar o poder a frente do
direito. O Direito deve ser, justamente, um instrumento de proteção do
mais fraco, que é, constantemente, colocado em situações de injustiça por
entidades mais fortes37.
36 – SCOTT, James Brown. The Proceedings of the Hague Peace Conferences. Vol. II.
Nova Iorque: Oxford University Press, 1921, p. 628.
37 – “Fortunately, this question is not to be brought up on this ground, for we differ
from the project precisely with regard to its principle. The project invites us to discuss
ranks, to justify places. We do not accept the ranks. We do not dispute places. Brazil as a

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O Brasil também havia elaborado uma contraproposta, na qual todos


os Estados poderiam nomear um árbitro para a Corte, em três grupos
divididos em ordem alfabética, e os países poderiam, livremente, esco-
lher os seus juízes entre todos eles38. Os mandatos dos juízes durariam
nove anos, e cada grupo de países integraria o plenário por três anos. O
plenário sempre estaria aberto a participação de juízes dos outros gru-
pos caso houvesse interesse39. Quando a proposta brasileira foi analisada,
considerou-se que a divisão com base em ordem alfabética era, excessi-
vamente, arbitrária. Rui percebe, porém, o verdadeiro motivo pela rejei-
ção: as grandes potências, como a Grã-Bretanha, os Estados Unidos e a
Alemanha, encontrar-se-iam na mesma posição dos pequenos Estados.

O fato é que a proposta brasileira facultava às partes a livre escolha


dos juízes da sua confiança, sem ter de suportar a presença permanente,
como nas propostas anteriores, dos juízes de Estados maiores. Se os mais
fortes defendem uma corte permanente sem a escolha de juízes, é pelo
único motivo de assegurarem para si o direito de juízes permanentes nes-
sa corte. Para Rui, se um Estado mais poderoso não confia a sua causa a
um julgamento por juízes de países pequenos, estes, que possuem muito
mais razões para temer o exercício do poder de fato, não vão confiar na
justiça dos mais fortes, e isso esvaziaria, por completo, o sonho da arbi-
tragem internacional40. O delegado brasileiro conclui que a inversão do
papel do Direito sustentada pelas grandes potências era absoluta:

sovereign State and in that respect the equal of any other sovereign State, no matter what
its importance be, aspires only a place, in the arbitration court, equal to that of the greatest
or of the humblest State in the world. We believe in the sincerity of the noble words of
Mr. Root in his memorable address of July 31, 1906, before the Pan American Congress
at Rio de Janeiro. In that address he stated: We deem the independence and equal rights of
the smallest and weakest member of the family of nations as entitled to as much respect
as those of the greatest empire.” SCOTT, James Brown. The Proceedings of the Hague
Peace Conferences. Vol. II. Nova Iorque: Oxford University Press, 1921, p. 646. Dis-
ponível em: https://archive.org/stream/ proceedingsofhag02inteuoft#page/n5/mode/2up.
Acesso em: 26 nov. 2018.
38  –  CARDIM, Carlos Henrique. A Raiz das Coisas. Rui Barbosa: o Brasil no mundo.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 131.
39  –  SCOTT, James Brown. The Proceedings of the Hague Peace Conferences. Vol. II.
Nova Iorque: Oxford University Press, 1921, p. 622-623.
40  – ARAÚJO, Brenda Maria Ramos. O Direito Internacional segundo Rui Barbosa.

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Um homem contra uma guerra: Rui Barbosa e a grande guerra

The great argument, Mr. President, and the only argument in fact that
has until now been made against the Brazilian proposition is that in
the system of this proposition the great nations, the States with great
areas and populations, great in wealth and advanced in culture, would
place themselves into the possible position of being judged before a
court in which their representatives would have the same vote as those
of the small States of the world.
To make palpable the offense against the rights of the great nations n
this imaginary equalization, we take one of the States with the least
territorial area, with the least number of inhabitants, least in wealth;
a designation is given to it, a name given to it and the question is
asked if it is not inconceivable that, in the organization of international
justice, their arbitrators might exercise the judicial function upon the
same plan as the rest, to condemn countries like France, Great Britain,
Germany or the United States.
The argument, if it were true, might become a double-edged weapon
against our antagonists, by making impossible the creation through
which the authors of the American project dream of realizing
perfection of international arbitration. For if the great States do not
trust the impartiality of the small, the small on their part might set
forth reasons for their not trusting the impartiality of the great.41

A teoria positivista pode ser, claramente, delineada em certo comen-


tário de Marschall Bierberstein sobre a possibilidade de criar uma Corte
com participação efetiva de todos os Estados: “Tenho um grande respeito
ao poder e o quanto ele representa no mundo. Nunca consentirei que uma
grande encarnação do poder como a Alemanha seja julgada por um juiz
representante da Guatemala”42. Ele não era, propriamente, contrário à no-
ção do primado do Direito sobre a força, mas acreditava que o poder ma-
nifestado pelas nações mais fortes criaria um direito que estaria acima de
qualquer julgamento dos Estados mais fracos, de qualquer subjetividade.
Assim, estes países não deveriam oferecer restrições ao projeto. O anti-

Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado em Direito, Universidade do Estado do Rio de


Janeiro (UERJ), 2018, p. 102.
41 – SCOTT, James Brown. The Proceedings of the Hague Peace Conferences. Vol. II.
Nova Iorque: Oxford University Press, 1921, p. 687 e 689.
42 – LINS, Álvaro. Rio-Branco (o Barão do Rio-Branco): biografia pessoal e história
política. 2. ed. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1965, p. 382.

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Brenda Maria Ramos Araújo
Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo

-pacifismo e o desprezo pelas nações pequenas dessa frase não podiam


ser mais contundentes. Em resposta a essa declaração, Rui relembra todas
as diversas vezes em que o Brasil foi escolhido para arbitrar controvérsias
entre as grandes potências43.

Rui compreendia a Conferência de Paz de 1907 de uma forma di-


ferente da maioria de seus participantes. Para ele, o objetivo essencial
era evitar a guerra e não a regulamentar. Nesse sentido, estabelecer esse
tribunal, cuja graduação entre os países para a sua constituição obedece
a nenhum outro critério, senão o poderio militar de cada Estado, seria
uma incoerência para essa assembleia. Se esta concepção fosse adotada
pela Segunda Conferência de Paz para medir a importância dos países,
o resultado seria a inversão da corrente política do mundo para a guerra,
pois induziria os Estados a buscar, nos grandes exércitos e nas grandes
marinhas, o reconhecimento de suas posições reais, indicada, em vão,
pela população, pela inteligência e pela riqueza.

Para buscar esse objetivo de evitar a guerra, que os positivistas con-


sideravam como inalcançável e até mesmo indesejável, Rui considera que
já era momento de trazer o assunto ao nível do direito. Assim, o delegado
brasileiro apresentou uma proposta para enquadrar litígios relacionados
à guerra de conquistas nos projetos de arbitragem compulsória. O repre-
sentante brasileiro explica que a conquista de territórios alheios não está
relacionada à honra, à independência e a interesses vitais. É, ao contrário,
uma violação da honra, da independência e dos interesses essenciais de
um primeiro Estado por ambições de um segundo. Por ser uma violação
clara desses valores, que quando ameaçados pela arbitragem, abrem uma
exceção à obrigatoriedade, deve estar englobada nas situações em que
a arbitragem é imprescindível. Ocorre que, como já foi analisado, para
os adeptos do positivismo, discutir quem possuía razão para iniciar uma
guerra era discutir questões políticas subjetivas, que não podem ser regu-

43  –  STEAD, William; BARBOSA, Rui. O Brasil em Haya. Belém: Livraria Bitten-
court, 1912, p. 178-180.

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Um homem contra uma guerra: Rui Barbosa e a grande guerra

lamentadas de forma imparcial pelo direito. A proposta brasileira acaba


por ser ignorada44.

Em seu último discurso na conferência, Rui esboça uma tentativa de


falar na linguagem do seu contendor. Ao relembrar a todos a forma pela
qual o Japão ingressa na sociedade internacional com a vitória militar
sobre a Rússia em 1905, o brasileiro adverte:
O Japão entrou no concerto europeu pela porta da guerra, forçando sua
entrada com a espada. Nós, os Estados da América Latina, fomos con-
vidados a entrar aqui pela porta da paz. Nós passamos pelos umbrais
nessa Conferência e vós passais a nos conhecer como obreiros da paz
e do direito. Mas se nós nos encontramos decepcionados, se nos des-
pedirem desiludidos, com a experiência de que a grandeza internacio-
nal só se mede pela força das armas, então, por obra vossa, o resultado
da Segunda Conferência da Paz seria de inverter a corrente política do
mundo para o sentido da guerra, forçando-nos a procurar nos grandes
exércitos e nas grandes marinhas o reconhecimento da nossa posição,
inutilmente indicada pela população, pela inteligência e pela riqueza.
Será que não conseguiríamos? Não se deve menosprezar. Essas dife-
renças de grandeza entre os países da Europa e os da América são bem
acidentais.
[...] Ora, para os eventos que compõem a história, o que vem a ser
o espaço de tempo entre uma ou duas gerações? No movimento do
mundo, não é nada mais do que o espaço de um dia para outro dia.
Por que, então, falar, com tanto prazer, de fracos e fortes, de pequenos
e grandes entre as nações? Nesses tempos, a madureza cuida-se, para
os povos, na adolescência. No decorrer dessa era acelerada, o porvir
invade o presente; no entanto o futuro é sempre cheio de inversões e
surpresas.45

44  –  “Nenhum dos Estados partes poderá alterar, por meio de guerra, as presentes fron-
teiras de seu território às custas de qualquer um dos outros Estados partes até que a ar-
bitragem tenha sido proposta pelo Estado que reivindica a alteração e recusada, ou se o
outro Estado desobedecer ao laudo arbitral. Se qualquer um dos Estados desobedecer
essa obrigação, a mudança territorial realizada pelo uso da força não será juridicamente
válida.” Tradução livre do original em inglês. SCOTT, James Brown. The Proceedings
of the Hague Peace Conferences. Vol. II. Nova Iorque: Oxford University Press, 1921,
p. 285. Disponível em: https://archive.org/stream/ proceedingsofhag02inteuoft#page/n5/
mode/2up. Acesso em: 26 nov. 2018.
45 – BARBOSA, Rui. Obras Completas de Rui Barbosa. vol. XXXIV (1907), Tomo

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):213-246, mai./ago. 2019. 233


Brenda Maria Ramos Araújo
Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo

No que se refere às relações entre Direito e Política, à ideia de so-


berania absoluta, ao princípio da igualdade entre os Estados e à questão
da guerra, foi notória a desavença de Rui da teoria positivista majoritá-
ria. João Neves da Fontoura compara a participação de Rui Barbosa, na
Conferência de 1907, com a luta de Dom Quixote contra os moinhos de
vento46. Rui, assim como o cavaleiro, não havia sido derrotado, mas tam-
bém não havia ganhado. Sua concepção de direito não prevaleceu, mas
também os dois tribunais jamais chegaram a ser constituídos. O cavaleiro
permanecia montado no Rocinante, aguardando um próximo embate.

O dever dos neutros e a luta franca contra um pensamento


Quando Rui Barbosa proferiu a conferência na Faculdade de Direito
de Buenos Aires, a Grande Guerra já ocorria há dois anos e contabilizava
mais vítimas do que a Guerra da Crimeia, a Guerra Civil Americana e a
Guerra Franco-Prussiana de 1870-1871 juntas. As expectativas iniciais
de que as potências aliadas ganhariam, rapidamente, a guerra haviam-se
revertido completamente. Como se sabe, o Brasil adotou, no começo do
conflito, uma posição neutra, mas o trabalho de Rui, na Liga Brasileira
pelos Aliados, pressionava o governo pelo rompimento das relações di-
plomáticas, embora estas só ocorreriam, de fato, com o torpedeamento do
navio Paraná em 1917.

Rui recebe um convite de proferir uma aula magna na Faculdade de


Direito de Buenos Aires a propósito das comemorações do centenário da
independência platina. Ele, então, dirige-se àquele país com o mesmo
intento de convencer o governo de sair da neutralidade e profere um dis-
curso intitulado “Os Conceitos Modernos do Direito Internacional”47. O

II. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1966, p. 383, 389, 393 e 394. Esta
passagem foi traduzida do original francês por ARAÚJO, Brenda Maria Ramos. O Direito
Internacional segundo Rui Barbosa. Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado em Direito,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), 2018, p. 104-105.
46 – BARBOSA, Rui. A Conferência de Haia: dois autógrafos do Arquivo da Casa de
Rui Barbosa. Prefácio João Neves da Fontoura. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa,
1952, p.10.
47  –  Sérgio Pachá (PACHÁ, Sérgio. Introdução. In: BARBOSA, Rui. Os Conceitos Mo-
dernos do Direito Internacional. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1983,

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Um homem contra uma guerra: Rui Barbosa e a grande guerra

objetivo político de Rui Barbosa é tão claro, que Graça Aranha, na edição
francesa publicada em Paris, no ano seguinte, pela Félix Alcan, intitulou a
conferência de “Le devoir des neutres”48. Esta edição francesa não chega
nem mesmo a tratar o texto integral da conferência, mas apenas a parte
considerada “mais importante e jurídica” sobre a neutralidade.

Na campanha presidencial de 1919, num discurso proferido em São


Paulo, em 4 de abril daquele ano, Rui Barbosa tem a oportunidade de
revisar sua atuação internacional e pode explicar a que título ele se apre-
sentou, três anos antes, no país vizinho. Apresentou-se, em Buenos Aires,
não como embaixador do Brasil, mas como jurista. E isso não é tudo; foi
como o jurisconsulto da Haia:
Não me ocupo, Senhores, com a política, mas com o aspecto jurídico
desses acontecimentos. Não é o Embaixador do Brasil que vós rece-
bestes e elegestes membro honorário do vosso corpo docente; é unica-
mente o jurista. Mas, para lhe trazer o espírito absorto nestas questões,
acresce ainda ao jurista a consideração da parte, modesta mas notória,
da parte assídua, laboriosa, intensa, que tomou nos trabalhos da última
Conferência da Paz, e o cargo em que, há nove anos, está, de membro
de Corte Permanente de Arbitramento. O meu caso vem a ser o do juiz
que pergunta pelo código das leis cujas normas pode ter de aplicar,
e do legislador que estremece pelas instituições, em cuja elaboração
cooperou, o de um signatário desses contratos, que busca saber se en-
tendia o que fez, se não se observou o que ajustou, se contribuiu para
melhorar os seus semelhantes, ou se para os iludir e fraudar.49

Rui evoca a Haia, porque esse lugar foi o palco de sua primeira gran-
de vitória contra um inimigo terrível e insidioso: um pensamento, o posi-
tivismo do século XIX. Na conferência, de 1916, Rui, novamente, cons-
tata o papel subserviente do Direito Internacional às relações de poder.

p. 1) explica que, nos arquivos da Fundação Casa de Rui Barbosa, encontraram-se duas
versões desta conferência: uma maior, em castelhano, e outra, em português, menor e sem
título, que provavelmente foi uma versão preliminar da outra. Neste trabalho, a versão
mais completa foi utilizada.
48  –  ARANHA, Graça. Le devoir de neutres. Paris: Félix Alcan, 1917.
49 – BARBOSA, Rui. Obras Completas de Rui Barbosa. Vol. XLVI (1919), Tomo I.
Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura. Fundação Casa de Rui Barbosa, 1956,
p. 174.

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Brenda Maria Ramos Araújo
Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo

Sua vitória, na Haia, havia sido em termos formais. A teoria positivista


continuava, predominante, quando o assunto era Direito Internacional.

Em 1916, Rui constata que sua desavença era, antes de tudo, teórica.
Segundo Rui Barbosa, a Grande Guerra não resultava de um mero desa-
juste material, mas moral, ou mais profundamente, um desajuste espiritu-
al das nacionalidades. Para ele, a guerra começa a ser preparada no “meio
moral”, isto é, “no ar que as consciências respiram”, ou seja, nos livros e
nas universidades50.
Antes que saísse das fábricas de armamentos, dos quartéis e dos es-
tados-maiores, tinha esta guerra acumulado os fluidos, que viriam a
animá-la, nos livros, nas escolas, nas academias, nos laboratórios do
pensamento humano. Para entrar em luta com a civilização, a força
compreendera que era preciso constituir-se em filosofia adequada,
corrompendo as inteligências, antes de subjugar as vontades.51

Esse pensamento resultava do esvaziamento moral provocado pelo


trabalho intelectual de adaptação das consciências aos interesses daqueles
que defendiam o conflito. Tratava-se de um processo que buscava disso-
ciar a ideia de justiça e Direito. Rui acusa esse pensamento positivista e
militarista de haver contaminado o domínio moral europeu e contribuído,
a partir de argumentos e até de pretextos biológicos, para a formação
de um ambiente de temperamentos favoráveis à força. Rui considera a
difusão desses ideais algo pérfido, pois dissocia os interesses nacionais
do direito, da moralidade e da justiça, de forma absoluta. Segundo Spode,
essa sobrevalorização da força em detrimento do Direito conduziu a uma
verdadeira “anomia moral”52. Nesse contexto cultural, a sequência dos
eventos das hostilidades, a guerra material propriamente dita, seria inevi-
tável, visto que já havia se naturalizado espiritualmente.

50  –  SPODE, Rafael. A dimensão moral e religiosa da Política Internacional: pensamen-


to e contribuição de Rui Barbosa. Brasília. Tese de doutoramento em Relações Internacio-
nais, Universidade de Brasília (UnB), 2018, p. 16.
51 – BARBOSA, Rui. Os Conceitos Modernos do Direito Internacional. Rio de Janeiro:
Fundação Casa de Rui Barbosa, 1983, p. 32.
52  –  SPODE, Rafael. A dimensão moral e religiosa da Política Internacional: pensamen-
to e contribuição de Rui Barbosa. Brasília. Tese de doutoramento em Relações Internacio-
nais, Universidade de Brasília (UnB), 2018, p. 18.

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Um homem contra uma guerra: Rui Barbosa e a grande guerra

Rui é bastante eloquente:


Os Estados pequenos, varridos como palhas pelo açoite do vento, ou
inquietos com o sopro da rajada que roça suas fronteiras, perderam a
segurança ou a existência, entregues ao azar da luta entre os maiores
[...] Terríveis surpresas vogam no oceano tenebroso do inesperado,
onde até as nuvens do céu cospem destruição, e os recessos do abis-
mo se associam à cegueira exterminadora, que coalha, ao largo, sua
superfície, com os destroços de todas as tradições cristãs. Nega-se o
direito, desterra-se a justiça, elimina-se a verdade, contesta-se a mo-
ral, proscreve-se a honra, crucifica-se a humanidade; o vendaval de
ferro ataca os símbolos sagrados, a arte, os tesouros da ciência acu-
mulada, os grandes arquivos da civilização, os santuários do trabalho
intelectual. Apenas subsiste, de todas as leis, a lei da necessidade, a lei
da força, a lei do sangue, a lei da guerra. O Evangelho está substituído
pela religião do aço e da pólvora.53

A origem imediata dessa teoria são homens como Heinrich von


Treitschke, Friedrich Nietzsche e o general Friedrich von Bernhardi. Rui
confere a eles, respectivamente, os epítetos de “historiador”, de “filósofo”
e de “chefe dos exércitos”, e são referidos, diversas vezes, ao longo da
Conferência de Buenos Aires54. A moralização da força e o enaltecimento
da guerra feitos por estes autores são muito bem descritos por Rui em seu
discurso:
A guerra é a ciência política por excelência. Provado está, muitas e
muitas vezes, que só pela guerra vem um povo a ser deveras povo. Só
na prática em comum de atos heroicos pelo bem da pátria logra uma
nação tornar-se real e espiritualmente unida [referência a Treitschke].
[...]
A guerra, diz ele, é a divindade que consagra e purifica os Estados [...]
Uma boa guerra santifica todas as causas. Contra o risco de que o ideal

53 – BARBOSA, Rui. Os Conceitos Modernos do Direito Internacional. Rio de Janeiro:


Fundação Casa de Rui Barbosa, 1983, p. 31-32.
54  –  De acordo com as notas da edição da Conferência de Buenos Aires feitas por Sér-
gio Pachá – Heinrich von Treitschke teria sido lido por fontes indiretas, pelas obras de
H.W.C. Davis (The Political Thought of Heinrich von Treitschke, London, Constable and
Company Ltd., 1914) e de Ernest Barker (Nietzsche and Treitschke: the worship of power
in modern Germany, London, Oxford University Press, 1914).

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Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo

do Estado se corrompa no ideal do dinheiro, o único remédio está na


guerra e, ainda uma vez, na guerra [referência a Nietzsche].
[...]
Sem a guerra as raças inferiores e carentes de moral rapidamente eli-
minariam as raças saudáveis e longevas. Sem ela, o mundo acabaria
numa decadência geral. A guerra é um dos fatores essenciais da mora-
lidade [referência a Bernhardi].55

Essas palavras não poderiam causar mais horror para um jurista que
defendeu as melhores tradições do Direito Internacional. A guerra – ge-
ralmente vista por pacifistas como a falência do Direito e da Moral –
torna-se algo positivo, bom, o evento que testa a bravura de um povo e
o consagra e o santifica como um Estado forte e pujante. Desse modo, a
tradição milenar jusnaturalista da doutrina da guerra justa perde significa-
do. Já que a guerra cria novas realidades históricas, ela se transforma na
fonte de todos os valores. Assim, ela é que produz todo o Direito e toda a
Moral; portanto, toda guerra é justa.

Essas palavras mostram-se ainda mais assustadoras pelo fato de te-


rem se tornado um lugar comum na Alemanha. No início do século XX,
eclode um pensamento que constitui a verdadeira antítese do pacifismo. A
Grande Guerra exerceu um profundo impacto nos escritores alemães, que
se dedicaram a redigir panegíricos de propaganda e elogios àquela que
deveria ser “a guerra para acabar com todas as guerras”. Provavelmente,
o exemplo mais cabal desse pensamento foi articulado pelo filósofo Max
Scheler na obra intitulada O gênio da guerra e a guerra alemã. Não se
trata de um mero panfleto; a densidade intelectual do autor produziu um
livro de 486 páginas. O texto talvez houvesse passado despercebido se
não tivesse merecido a atenção do espanhol José Ortega y Gasset, o qual
publica, no ano seguinte, uma resenha com o título homônimo56.
55 – BARBOSA, Rui. Os Conceitos Modernos do Direito Internacional. Rio de Janeiro:
Fundação Casa de Rui Barbosa, 1983, p. 34.
56  –  Ortega decepciona-se com as tentativas de justificativa da guerra por parte de al-
guns filósofos alemães e não poupa o seu colega de críticas: “Nada me parece, en efecto,
tan frívolo y tan necio como esas gentes que lejos del combate adoptan posturas guerre-
ras.” E, adiante: “Sabios y poetas tienen obligación de servir a su patria como ciudadanos
anónimos; pero no tienen derecho a servirla como sabios y poetas. Además, no pueden: la

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Um homem contra uma guerra: Rui Barbosa e a grande guerra

Segundo Scheler, a guerra é uma manifestação do espírito humano


em busca do poder. Não se trata de uma manifestação do instinto de so-
brevivência: não merecem o título de guerra aquelas lutas de extermínio
conduzidas contra índios e negros, mas genocídios. Na verdadeira guerra,
não se busca o mero aniquilamento dos agrupamentos humanos naturais,
mas uma nova repartição do poder espiritual entre os povos. Luta-se por
algo superior à existência: o poder, o qual coincide com e é pressuposto
da liberdade política. Ela é um ato de força, não de fraqueza. Certamente,
a guerra tem uma origem vital, mas não de uma pulsão de falta, como a
fome ou a carência. Pelo contrário, é a abundância, a sobra de energias
que suscita a guerra57.

Scheler vai além. Na história humana, a guerra desempenha um prin-


cípio organizador: é o ato bélico que unifica em povo as hordas naturais
e as transforma em uma estrutura política estável. Assim, os períodos de
paz organizada somente tornam-se possíveis em razão dos períodos de
guerra. A paz só existe em função da guerra. Ela é que consiste no mo-
mento dinâmico da história; ao passo que a paz se reduz a uma atividade
de mera adaptação ao novo sistema de poderes determinado pela guerra
precedente. Por isso, constitui uma impossibilidade racional tentar subs-
tituir a guerra por litígios jurídicos, os quais são pautados por normas de
direito objetivo. A guerra é um conflito de poderes, não um conflito de
interesses; ela, portanto, transcende o Direito, para o qual só há contro-
vérsias estáticas e atuais, rigorosamente circunscritas e previstas58.

A guerra é realizada para o futuro, em nome do advento de um novo


rearranjo de poderes entre os povos. O que se visa numa guerra é a uma
nova ordem. Desse modo, ela cria novas realidades históricas e se torna
fonte de todos os valores. Então, como toda guerra é justa, é ela que de-
cide a sorte daqueles que têm direito ou não de estar no mundo. Assim –

ciencia y la arte gozan de un pudor tan acendrado que ante la más leve intención impura
se evaporan” (ORTEGA Y GASSET, José. O Gênio da Guerra e a Guerra Alemã. In:
ORTEGA Y GASSET, José. El Espectador. Madrid: Biblioteca Edaf, 1998, p. 155 e 157).
57 – SCHELER, Max. Der Genius des Krieges und der Deutsche Krieg. Leipzig: Verlag
der Weissen Bücher, 1915, p. 25.
58 – SCHELER, Max. Der Genius des Krieges und der Deutsche Krieg. Leipzig: Verlag
der Weissen Bücher, 1915, p. 121.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):213-246, mai./ago. 2019. 239


Brenda Maria Ramos Araújo
Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo

ironiza Ortega –, Scheler nos convida a nos sentirmos agradecidos se um


Estado mais forte – e isso, em sua opinião, quer dizer mais digno – se apo-
dera do nosso59. O fato da guerra é o mesmo que o direito à guerra. Dessa
assertiva, decorre que a violência, com os seus massacres e matanças, não
se revela essencial para a guerra; trata-se de uma mera manifestação das
energias pertencentes às vontades que entram em conflito. Constitui um
elemento acessório, acidental: a forma segundo a qual a guerra se reveste
e, pois, não pode, logicamente, constar de uma definição de guerra.

O autor alemão tem razão quando afirma que a guerra representa


antes um conflito político, por uma diferente repartição do poder, do que
uma luta pela mera existência. Todavia, ao menosprezar o elemento vio-
lência, Scheler termina por realizar uma apologia da guerra. A guerra não
é apenas o simples exercício do poder de um Estado sobre outro, mas a
concreta disposição de exercer o poder por meio da violência. Esta não
constitui um elemento extrínseco à guerra, integra a sua essência. A di-
plomacia e o comércio também são formas pelas quais um Estado pode
manifestar o seu poder sobre outro, mas não envolvem a violência física.
Scheler reduz todo o intercâmbio político entre Estados à guerra, e a paz
se torna um estado anormal das relações internacionais.

Durante a conferência na Argentina, Rui discursa, de forma aberta,


contra os princípios basilares do positivismo do século XIX, os concei-
tos absolutos de soberania e de não intervenção em assuntos internos.
Rui conclui que essa teoria colocava, no plano internacional, a guerra e,
no plano interno, o interesse do Estado como valores mais elevados. O
Estado era considerado como uma entidade superior a qualquer direito
individual e a qualquer regra moral. O Direito Internacional havia sido
separado, completamente, desses ideais. Foi criada para o Estado uma
moral própria, formada apenas por sua vontade e por sua soberania: “E,
entendido assim, vem o Estado a ser uma entidade “independente do espí-
rito e da consciência dos cidadãos”. É “um organismo amoral e depreda-
tório, empenhado em sobrepor-se aos outros estados por meio da força”.

59  –  ORTEGA Y GASSET, José. O Gênio da Guerra e a Guerra Alemã. In: ORTEGA Y
GASSET, José. El Espectador. Madrid: Biblioteca Edaf, 1998, p. 167.

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Um homem contra uma guerra: Rui Barbosa e a grande guerra

Não tem, para reger-se, senão sua vontade e soberania.”60. Rui condena
essa divisão da moral, demonstrando sua concepção de direto ligada aos
elementos morais que os positivistas desejavam eliminar.

Para ele, essa inversão absoluta dos valores da sociedade internacio-


nal advinha de uma reeducação dos pequenos Estados. Como os Estados
mais fracos acreditavam que não possuíam papel no desenvolvimento do
mundo, a força era o único meio capaz de reivindicar direitos na esfera
internacional. Teóricos que aceitam sanções morais, passam a ser consi-
derados como idealistas e fantasiosos61. Nesse viés, as regras de Direito
Internacional são compreendidas como meras abstrações que não deve-
riam ter um papel maior do que servir de instrumento de vontades sobera-
nas estatais. Para Rui, essa concepção era equivocada. A única diferença
entre o direito interno e o internacional não é a maior obediência às leis,
mas sim a falta de uma justiça institucionalizada:
É o que ainda está por organizar, mas não será impossível que se or-
ganize, talvez mais depressa do que se pensa, entre as nações inde-
pendentes. Todavia, enquanto não se organiza, forças morais existem
que, se não abrigam os povos das contingências da guerra, mantêm,
pelo menos, em torno e acima desta, um conjunto de restrições e im-
possibilidades, opostas aos excessos extremos do militarismo desen-
cadeado.62

O brasileiro, mais uma vez, tenta demonstrar que o direito jamais


pode ser subserviente à força, pois a força organizada só existe graças
ao direito. É a crença do ser humano nos contratos que permite a orga-
nização de grandes exércitos. Sem o direito, o mundo viveria em cons-
tante disputa, em barbárie. Rui coloca, no princípio da soberania abso-
60 – BARBOSA, Rui. Os Conceitos Modernos do Direito Internacional. Rio de Janeiro:
Fundação Casa de Rui Barbosa, 1983, p. 37.
61  –  “Para autorizar este retrocesso às idades primitivas foi necessário cantar em todos
os tons as virtudes civilizadoras da guerra, negar o alto valor dos pequenos estados no
desenvolvimento e equilíbrio do mundo, reivindicar exclusivamente para as teorias do
predomínio da força o caráter de exequibilidade, negando a eficácia das sanções morais
nas relações entre os povos. Pois bem: nenhuma dessas três pretensões consulta a verdade,
nem se mantém diante do senso comum.” BARBOSA, Rui. Os Conceitos Modernos do
Direito Internacional. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1983, p. 37.
62 – BARBOSA, Rui. Os Conceitos Modernos do Direito Internacional. Rio de Janeiro:
Fundação Casa de Rui Barbosa, 1983, p. 38.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):213-246, mai./ago. 2019. 241


Brenda Maria Ramos Araújo
Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo

luta do Estado, o erro de seus contemporâneos. Para ele, os Estados não


serão menos soberanos ou independentes por se submeterem ao Direito
Internacional. É justamente esse freio na ação dos países que possibilita
que todos os Estados possam exercer livremente sua soberania sem temer
violências arbitrárias. Para ele, os Estados, como os indivíduos, devem
ser submissos ao direito:
Se um indivíduo repudiasse a própria firma, num contrato legítimo,
a título de que era um trapo de papel, ninguém o consideraria um
homem de bem. Mas se uma nação repudia tratados solenes, a título
de que são papeluchos, ninguém ousará dizer que fez o que não devia.
Porque a força é o juiz de seus direitos, a guerra é o árbitro de seus
poderes, e todas as convenções internacionais encerram a cláusula,
subentendida sempre, do rebus sic stantibus: enquanto as circunstân-
cias não mudarem; isto é: enquanto outra não for a vontade soberana
do mais forte.63

Passando à crítica ao princípio absoluto de não-intervenção em


assuntos internos, Rui Barbosa alerta que a interdependência entre os
Estados era algo inegável. Assim, as regras internacionais não pode-
riam ser de mera coexistência entre Estados, absolutamente, soberanos.
Precisavam observar a necessidade de cooperação entre entes, intrinseca-
mente, interdependentes. Nesse sentido, o antigo conceito de neutralidade
precisava ser atualizado para uma ideia de segurança coletiva. As guerras
já não poderiam ser tratadas como um fenômeno alheio ao direito e de in-
teresse apenas dos Estados diretamente envolvidos no conflito. Qualquer
guerra da época tinha reflexos no comércio internacional, afetando muito
além dos Estados diretamente envolvidos. Era preciso abrir caminho para
a solidariedade como um princípio fundamental da esfera internacional.
Os Estados já não podem mais viver isolados na sociedade internacional.

Rui chega, então, à conclusão essencial de que não existe neutrali-


dade entre os que observam a lei e os que a infringem. A neutralidade é a
imparcialidade, e não existe imparcialidade entre o direito e a injustiça. O
direito não pode ser afastado dos ideais de justiça. É preciso unir os con-

63 – BARBOSA, Rui. Os Conceitos Modernos do Direito Internacional. Rio de Janeiro:


Fundação Casa de Rui Barbosa, 1983, p. 47.

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Um homem contra uma guerra: Rui Barbosa e a grande guerra

ceitos de neutralidade e de justiça. Isso não quer dizer que a neutralidade


precise ser armada, mas sim que ela, necessariamente, tem de ser organi-
zada para impor o direito. Na visão de Rui, a pressão da opinião pública
é a melhor forma de imposição do direito.

Nessa conferência de 1916, Rui opôs-se, antes de tudo, a noções


essenciais do positivismo, como era compreendido à época. Foi contrário
à ideia absoluta de soberania e de não-intervenção, à relação entre direito
e moral e, principalmente, à compreensão da guerra.

Rui Barbosa, o Positivismo e o Direito Natural


Como foi colocado, inicialmente, Rui Barbosa era um homem po-
lítico. Seus trabalhos eram mais preocupados com questões práticas do
que com teorias e com doutrinas e, além disso, ainda não foram todos
publicados pela fundação Casa de Rui Barbosa. Estabelecer o arcabouço
teórico de autores, mesmo os que possuem construções teóricas profí-
cuas, é um trabalho temerário. O objetivo deste artigo, entretanto, não é
firmar conclusões definitivas. Almeja, somente, demonstrar que existem
algumas desavenças inquestionáveis entre o Rui Barbosa e o positivismo
de sua época e que, ao mesmo tempo, também existem certas associações
inegáveis entre o brasileiro e o direito natural. Miguel Reale, em um dos
poucos estudos sobre o arcabouço teórico do Rui, já alertava que ele não
poderia ser visto “como uma figura totalmente estereotipada no século
XIX”64. As leituras de seus contemporâneos positivistas realizadas por
Rui eram sempre temperadas com leituras de grandes textos clássicos
jusnaturalistas.

O que nos fica da análise das conferências de 1907 e de 1916 é uma


rejeição completa de dois princípios definidores do positivismo da época,
os princípios absolutos de soberania e os de não-intervenção em assuntos
internos. Para Rui, os Estados e as suas vontades soberanas existiam ape-
nas por permissão do direito. A inversão dessa relação para tratar o Estado
como o mestre do Direito Internacional parecia-lhe injustificável. A ciên-
64 – REALE, Miguel. Posição de Rui Barbosa, no Mundo da Filosofia: notas de estudo
para a compreensão de uma trajetória espiritual. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa,
1949, p. 4.

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Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo

cia deveria estar acima de qualquer questão. Não deveria, entretanto, ser
uma mera ferramenta desprovida de ideias superiores:
Não me acolhi entre as filosofias que fazem da ciência a grande ne-
gação. Percorri as filosofias; mas nenhuma me saciou: não encontrei
repouso em nenhuma. Pus a ciência acima de todas as coisas; mas
não afirmei jamais que a ciência não possa abranger as coisas divi-
nas. Nunca encarei a ciência como a sistematização do antagonismo
com o espírito. Esse incognoscível, que não cabe nos laboratórios, não
acreditei jamais que se distancie da ciência por incompatibilidades in-
vencíveis, unicamente porque esta não sabe os meios de verifica-lo.65

Como o próprio alega, muitos estudos elogiosos a Comte, Spencer


e Stuart Mill foram realizados pelo brasileiro, nunca, porém, sem esque-
cer textos de autores clássicos, permitindo a combinação da ciência e da
moralidade. Em verdade, Rui conferia ao Direito uma certa religiosidade.
A lei deveria ser considerada como um instrumento, mas deveria tam-
bém estar sempre associada a uma capacidade de alcançar às aspirações
mais altas do espírito humano. Dessa forma, o Direito Internacional era
compreendido como único elemento capacitado a assegurar a paz entre
os homens.

Essa relação de religiosidade com o Direito pode ser verificada na


questão acreana. Nesse momento, Rui e Rio Branco discordaram sobre
o meio utilizado para a solução do litígio territorial entre o Brasil e a
Bolívia. Para Rio Branco, uma negociação política seria melhor do que
uma arbitragem lenta e pouco confiável. Rui, ao contrário, acreditava na
solução arbitral, pois nenhum juiz, por força de elementos de poder, po-
deria ignorar um direito claro e evidente66. Como a arbitragem não foi
65 – BARBOSA, Rui. Obras Completas de Rui Barbosa. Vol. XX, Tomo I, 1893. Rio de
Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1948, p. 45.
66  –  Nas palavras de Rui: “E por que nos aterrarmos dela? Por que enxergar nela esse
desastre, que se diz, para o Brasil? O só fundamento desses terrores era a tradição da chan-
celaria brasileira, favorável, na interpretação do tratado de 1867, aos interesses da Bolívia.
Tem para si “muito provável” o ilustre Ministro das Relações Exteriores que essa tradição
“pesasse no ânimo do árbitro mais do que as boas razões que pudéssemos alegar”.
Mas que árbitro seria esse? Não há juiz nesse mundo, que, chamado a fixar a inteligência
de uma escritura, quando o seu sentido sobressai inequívoco e manifesto, não ponha aci-
ma de tudo essa expressão formal da vontade dos contratantes ao celebrarem o contrato.”
BARBOSA, Rui. Obras Completas de Rui Barbosa. Vol. XXXI, Tomo I. Rio de Janeiro:

244 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):213-246, mai./ago. 2019.


Um homem contra uma guerra: Rui Barbosa e a grande guerra

adotada, Rui preferiu a exoneração do que a justiça falha de uma nego-


ciação direta.

Rui Barbosa, como homem, possuiu uma atuação repleta de contra-


dições, mas o papel da justiça na experiência jurídica pode ser encontrado
em diversos momentos de sua vida. Durante a luta contra a escravidão,
por exemplo, ele ressaltava que certas leis humanas acabariam por su-
cumbir frente a leis naturais inegáveis:
O direito do senhor sobre o escravo não existe, senão por tolerância da
lei. Não é, disse bem o Sr. Conselheiro Afonso Celso, não é uma pro-
priedade regular, firmada no direito natural, e adquirida pelos meios
que ele reconhece, mas uma instituição anômala, legalizada simples-
mente por motivos de interesse social.67

Rui alegava que os tratados que aboliam a escravidão ratificados pelo


Brasil possuíam a mesma autoridade das leis de direito interno, por isso
precisavam ser aplicados por autoridades judiciárias nacionais. Qualquer
lei interna posterior não poderia modificar um tratado, pois apenas um
novo acordo internacional, entre as mesmas partes, poderia alterar o con-
vencionado68. Dessa forma, Rui estabelecia a superioridade do Direito
Internacional frente a, pelo menos, normas infraconstitucionais, e decla-
rava os dois direitos como submissos ao direito natural. Sua opção era,
claramente, por um Direito Internacional que deveria incorporar valores
éticos.

Conclusão
Na Conferência da Haia, Rui Barbosa encontrou o seu mais perigoso
antagonista, muito maior do que qualquer inimigo político que havia en-
contrado, maior do que qualquer detrator que tenha conseguido lhe tirar
a vaga de redator do Código Civil, maior do que qualquer outro opositor

Ministério da Educação e Cultura/Fundação Casa de Rui Barbosa, 1952, p. 265-266.


67 – BARBOSA, Rui. Obras Completas de Rui Barbosa. Vol. XI, Tomo I. Rio de Janei-
ro: Ministério da Educação e Cultura/Fundação Casa de Rui Barbosa, 1945, p. 166.
68 – BARBOSA, Rui. Obras Completas de Rui Barbosa. Vol. XIV, Tomo I. Rio de Ja-
neiro: Ministério da Educação e Cultura/Fundação Casa de Rui Barbosa, 1955, p. 50, 51
e 52.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):213-246, mai./ago. 2019. 245


Brenda Maria Ramos Araújo
Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo

à Presidência que tenha se deparado. Foi o seu contendor mais longevo,


mas sobre ele também auferiu a sua maior vitória em 1907. Em 1916, Rui
precisava reunir, novamente, as nações americanas para salvar o Velho
Mundo, porque a Europa havia sucumbido aos terrores desse algoz.

Este artigo procurou mostrar que a atuação de Rui Barbosa na


Conferência de Paz da Haia e a Conferência de Buenos Aires compõem
para o próprio autor um todo: na Holanda, ele é o defensor da justiça do
primado do Direito sobre a força, e, na Argentina, ele vai, novamente, ao
socorro deste mesmo princípio, que se encontra ameaçado na Europa. A
vítima é a mesma, e o vilão também; em 1907, a vitória de Rui não foi
completa. Ele venceu, mas não convenceu. A conferência se esvaziou aos
poucos. Rui nunca havia encontrado uma plateia como aquela e estranhou
os argumentos dos seus opositores. Em 1916, ele havia estudado os seus
fundamentos e compreendeu muito bem que confrontava um inimigo sem
rosto, uma ideia, um pensamento. Uma ideia tão perigosa, que havia en-
gendrado a maior guerra que a humanidade já havia visto e que ameaçava
acabar com toda a civilização.

Rui Barbosa é tanto um intelectual como um político, um homem de


letras e um homem de ação. A sua primeira faceta lhe permitiu conhecer
o seu inimigo, o seu tamanho, as suas bases. E a sua segunda lhe compe-
liu escrever nos jornais e procurar aliados para convencer o governo do
Brasil e da Argentina a saírem de uma postura neutralista que acabaria
por lhes ser prejudicial ao fim e ao cabo. Rui Barbosa havia percebido
que, para este pensamento, existia a guerra dentro da paz: a simples ter-
minação do conflito na Europa não extinguiria o monstro. Para este pen-
samento, paz e guerra não seriam antípodas. O remédio, portanto, exigia
reafirmar a fé no Direito.

Texto apresentado em março/2018. Aprovado para publicação em


julho/2019.

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Expansão de fronteiras e de projetos para os sertões fluminenses:
posse e propriedade nos séculos XVIII e XIX

247

II – COMUNICAÇÕES
NOTIFICATIONS

EXPANSÃO DE FRONTEIRAS E DE PROJETOS PARA OS


SERTÕES FLUMINENSES: POSSE E PROPRIEDADE NOS
SÉCULOS XVIII E XIX
EXPANSION OF BORDERS AND PROJECTS FOR THE
HINTERLAND IN RIO DE JANEIRO: POSSESSION AND
PROPERTY IN THE EIGHTEENTH AND NINETEENTH
CENTURIES
Marina Monteiro Machado1

Resumo: Abstract:
A ocupação dos sertões da Capitania do Rio de The occupation of the hinterland in the Captaincy
Janeiro se deu de diferentes formas e ritmos ao of Rio de Janeiro occurred in different forms
longo da colonização, um processo continuado and rhythms during the colonization period,
mesmo após a independência. A colonização resulting in a continued process even after
foi essencialmente litoral até finais do século independence. Colonization took place mainly
XVII, quando a descoberta do ouro expandiu along the coast until the end of the seventeenth
suas fronteiras em direção às minas, e o sertão century, when the discovery of gold expanded
fluminense manteve-se até então fundamental- its borders towards the mines, turning the Rio
mente como rota de passagem. A expansão ter- de Janeiro hinterland basically into a passage
ritorial esteve atrelada ao desenvolvimento de route. Territorial expansion was linked to the
uma política indigenista, em uma realidade de development of an indigenous policy focused
diálogo entre duas questões: a dos índios e a das on two major issues, namely Indians and land.
terras. Tomando, por exemplo, o Aldeamento de Taking as example the Indian village of Valença,
Valença, reconhecemos que essa política tinha o we recognize that the policy´s objective was to
objetivo de apaziguar áreas, garantir o controle appease areas, guarantee the control over the
sobre a mão de obra e possibilitar a conquista do workforce and enable colonizing agents to
território por agentes colonizadores. Pensar tais conquer lands. Reflecting upon such projects
projetos possibilita compreender os movimen- makes it possible to understand the movements
tos nas fronteiras e o empenho na apropriação at the borders and the engagement in land
das terras. grabbing.
Palavras-chave: Propriedades; Fronteira; Alde- Keywords: Properties; Frontier; Indian
amentos Indígenas. Villages.

1  –  Faculdade de Ciências Econômicas – FCE/UERJ. Email: marinamachado@gmail.


com.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):247-258, mai./ago. 2019. 247


Marina Monteiro Machado

Desbravando as fronteiras dos sertões fluminenses


O homem civilizado, transbordante de ideal, descortinara, nos hori-
zontes de suas cogitações, o grande futuro... E, deixando a Guanabara,
subira a serra, de machado em punho.2

Com essas palavras, na década de 1950, José Loni Iório, autor reco-
nhecido pelos trabalhos que recuperam a história do Vale do Paraíba, des-
crevia o movimento dos colonos em direção ao alto da serra. Em busca de
novos horizontes, deixavam para trás a Guanabara e adentravam os ser-
tões fluminenses, vencendo as dificuldades da natureza fechada em prol
da construção de uma nova fronteira. Trata-se de um movimento que se
deu sobre diferentes formas e ritmos ao longo dos séculos da colonização.
O processo, essencialmente litorâneo até finais do século XVII, quando
a descoberta do ouro levou as fronteiras da colonização a expandirem-se
em direção aos sertões mineiros, dava margem a uma nova realidade: a
ocupação tardia dos sertões fluminenses3.

Ainda que a colonização de regiões mais interioranas já fosse reali-


dade cotidiana, a dinâmica de ocupação das terras a partir da mineração
acabou por gerar uma situação singular: o sertão fluminense manteve-se
essencialmente como rota de passagem até o final dos setecentos, pouco
povoado e com a presença de fazendas geralmente situadas apenas no
entorno do Caminho Novo. Essas propriedades serviam como pouso e
abastecimento para aqueles que seguiam para o interior ou retornavam
ao litoral4. O presente trabalho se volta, portanto, para essa particular
ocupação tardia, por meio da breve história do Aldeamento de Nossa
2 – IÓRIO, Leoni. Valença de Ontem e de Hoje: 1789-1952. 1ª ed. Valença: Editora
Jornal de Valença 1953.
3  –  Estamos, aqui, acionando o conceito de Fronteira, consagrado por Frederick Jack-
son Turner nos Estados Unidos e revisitado por muitos historiadores desde então. Ver:
TURNER, Frederick J. The Frontier in American History. Nova York: Dover, 1996. Essa
abordgem é parte da tese de doutorado defendida na Universidade Federal Fluminense em
2010, e publicada em livro. Machado, Marina. Entre Fronteiras: posses e terras indígenas
nos sertões (Rio de Janeiro, 1790-1824). Guarapuava: Unicentro, 2012.
4  –  Sobre a abertura do Caminho Novo, ver: MACHADO, Marina. Duas gerações de
caminhos pelos sertões: Fernão Dias Paes e Garcia Rodrigues Paes. In: MOTTA, Márcia;
SERRÃO, José Vicente; MACHADO, Marina (orgs.). Em terras lusas: conflitos e frontei-
ras no Império Português. 1a ed. São Paulo: Editora Horizonte, 2013, p. 25-55.

248 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):247-258, mai./ago. 2019.


Expansão de fronteiras e de projetos para os sertões fluminenses:
posse e propriedade nos séculos XVIII e XIX

Senhora da Glória de Valença, um exemplo valioso para compreender o


processo em pauta. O recorte proposto, entre 1790 e 1824, revela-se ex-
tremamente plural, possibilitando recuperar a conjuntura em que, diante
do declínio da mineração, tal região adquire novo valor para a Coroa,
passando a uma nova fase de fomento, não mais mineralógico, e sim,
agrário. Revelava-se, dessa forma, uma nova realidade de ocupação das
terras, com ambições voltadas para as concessões de sesmarias e ainda
para os interesses sobre a mão de obra indígena. O processo aliava toda a
tradição colonizadora, aqui recuperada pela proposta de aldear os índios,
com as novas premissas do Reformismo Ilustrado português, que se vol-
tava para o mencionado fomento agrário5. Cabe destacar, embora muitos
sejam os trabalhos que se debruçam sobre a região do Médio Paraíba, que
são poucos os que se voltam para a conjuntura da ocupação indígena, sen-
do a maior parte das análises sobre o período posterior, consagrado pela
produção de café e pela mão de obra dos escravos africanos.

A ocupação da margem sul do Rio Paraíba do Sul esteve diretamente


atrelada ao desenvolvimento paralelo de uma política indigenista, confi-
gurando uma realidade de diálogo permanente entre as questões indíge-
nas e de terras. Voltamos os olhos para o Aldeamento de Valença, locali-
zado no Médio Vale do Paraíba Fluminense, próximo às atuais cidades de
Valença, Vassouras e Pati do Alferes. Um projeto começou a ser pensa-
do ainda em 1790, e foi oficialmente fundado em 1801. Sua idealização
diferencia-se em alguns aspectos dos primeiros aldeamentos coloniais,
tornando-se emblemático em vários sentidos. Inicialmente, destacamos
as mudanças na legislação, na conjuntura pautada pelos moldes poste-
riores ao Diretório Pombalino6, que estabelecia novos parâmetros para a
5 – Sobre o Reformismo Ilustrado português, cf: SANTOS, Nívia Pombo Cirne dos. O
Palácio de Queluz e o mundo ultramarino: circuitos ilustrados. Portugal, Brasil e Angola,
1796-1803. Tese (Doutorado em 2013). Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2013.
6  –  Embora tenha tido um existência curta, os nortes do Diretório Pombalinos se fazem
sentir nos Aldeamentos posteriores. Sobre isso, reconhecemos dois pontos fundamentais:
a presença de não índios no interior dos aldeamentos e a regulamentação sobre o trabalho
dos grupos indígenas. Sobre a legislação específica para o trabalho e para a mão de obra,
conferir as referências sobre o Diretório Pombalino em: ALMEIDA, Rita Heloísa de. O
Diretório dos Índios. Um Projeto de “Civilização” no Brasil do Século XVIII. Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 1997; DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):247-258, mai./ago. 2019. 249


Marina Monteiro Machado

administração dos aldeamentos. Além disso, a diferenciação recaía ainda


sobre agentes envolvidos em todo o processo, sem o protagonismo dos
Jesuítas. Assistimos à emergência não apenas de outras ordens religiosas,
mas ainda de fazendeiros, capitães de ordenanças, e tantos outros agentes
leigos que figuram como lideranças, assumindo a direção dos Aldeamen-
tos, antes a cargo dos padres da Companhia de Jesus. Juntos aos grupos
indígenas, são esses os personagens que, de forma conjunta, começavam
a construir o Novo Mundo. Compreendemos esse Novo Mundo não como
o continente americano, recentemente descoberto, como muitas vezes se
define, mas sim a partir dos pressupostos defendidos pelo historiador Ri-
chard White7.

White propõe uma história que, para além das conquistas territoriais
e humanas, bem como da assimilação, seja também um estudo acerca da
persistência cultural. Foge do senso comum de como se encontraram os
europeus e os grupos indígenas, completos desconhecidos uns aos outros
que, nos momentos seguintes, construíram juntos um Novo Mundo. Se-
gundo White, o Novo Mundo estava sendo construído, alimentado por
fragmentos advindos de múltiplos lados8. O mundo que existia antes da
chegada dos europeus já não existia mais, o Novo Mundo constituía-se
a partir de um processo no qual se verificam de perto conflitos, alianças
e negociações. O autor supera a dicotomia que observa apenas vítimas e
exploradores, em busca de uma análise que contempla a violência, o con-
fronto, a conquista da posse das terras, bem como as interações específi-
cas. Analisa cuidadosamente os grupos nativos e os europeus fornecendo
subsídios para a compreensão das relações entre os grupos que se encon-
traram em toda a América. A obra de White nos ajuda a pensar a fronteira
a partir das relações sociais envolvidas, caracterizada por um conjunto
de relacionamentos entre indivíduos e entre indivíduos e o espaço, que
vassalos: colonização e relações de poder no Norte do Brasil na segunda metade do século
XVIII. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portu-
gueses, 2000; SAMPAIO, Patrícia. Espelhos Partidos: etnia, legislação e desigualdades
na colônia. Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2011.
7 – WHITE, Richard. The Middle Ground: Indians, Empires, and Great Lakes Region,
1650-1815. Cambridge, Inglaterra: Cambridge University Press, 1991.
8  –  WHITE, Richard. Op. Cit., 1991. Mais especialmente o capítulo 1.

250 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):247-258, mai./ago. 2019.


Expansão de fronteiras e de projetos para os sertões fluminenses:
posse e propriedade nos séculos XVIII e XIX

se combinam no sentido de transformar o Oeste, ou o sertão, uma região


distinta das demais.

Trazendo para a relidade do estudo proposto, reconhecemos que o


novo, que então se inaugurava, já não se vinculava à realidade do sécu-
lo XVI, quando da chegada dos europeus à América. Tal novo refere-se
à abertura de uma distinta etapa de exploração territorial, que assumia
contornos das novas dinâmicas capitalistas. As fontes analisadas revelam
que a reunião e a aproximação com os índios datam da década de 1780, a
partir das relações construídas entre os grupos indígenas e um fazendeiro
da região, José Rodrigues da Cruz. O primeiro do encontro, que mais
tarde daria origem à fundação do Aldeamento, ocorre na fazenda do Pau
Grande, atualmente localizada no município de Pati do Alferes. O fazen-
deiro foi procurado pela Coroa, e recebeu o convite para assumir a res-
ponsabilidade sobre a solução da questão indígena na região diretamente
do importante ministro Dom Rodrigo de Souza Coutinho9.
Sendo presente de Sua Majestade que vossa mercê não só é um
grande agricultor, e tem com suas louváveis fadigas sendo muito
útil ao Estado, mas também que Vossa Majestade tem concorrido
muito para promover a civilização dos Índios.10

Já de início a carta reconhece e adjetiva o fazendeiro como um gran-


de agricultor. Buscar parcerias e alianças com agricultores ilustrados es-
tava na base do projeto de Dom Rodrigo de Souza Coutinho e das premis-
sas defendidas pelas obras publicadas pela Tipografia Casa Literária do
Arco do Cego, sob direção de Frei José Mariano da Conceição Veloso11.
José Rodrigues da Cruz aparecia nas correspondências e nos projetos e
9  –  Sobre D. Rodrigo de Souza Coutinho, ver: SANTOS, Nívia Pombo Cirne dos. D.
Rodrigo de Sousa Coutinho: pensamento e ação político-administrativa no Império Portu-
guês (1778-1812). 1a ed. São Paulo: Hucitec, 2015.
10  –  COUTINHO, D. Rodrigo de Souza. “Carta de D. Rodrigo de Souza Coutinho a
José Rodrigues da Cruz, de 22 out. 1798”. R.IHGB. Rio de Janeiro, n.17, 1854, p. 503.
Grifos da autora.
11  –  A maior parte das publicações da Casa do Arco do Cego era destinada às colônias.
Foram editoradas séries de tratados agrícolas, memórias elaboradas por autores luso-bra-
sileiros e traduções de estrangeiras. Intencionava-se a difusão de estudos sobre ciências,
artes, agricultura e manufatura, promovendo uma sinergia de esforços em recolher infor-
mações de culturas e de saberes.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):247-258, mai./ago. 2019. 251


Marina Monteiro Machado

pode ser tomado como um excelente arquétipo do que era desejado em O


Fazendeiro do Brasil12. Trata-se de uma discussão que visava ao melhora-
mento da agricultura, com ênfase em soluções para o atraso econômico de
Portugal, produto das reflexões fisiocratas em efervescência na Europa.
Na segunda metade do setecentos, François Quesnay fixou a cultura da
terra como a verdadeira origem da riqueza, com fortes críticas à minera-
ção iluminista, e defendia que era preciso conhecer as verdadeiras fontes
de riqueza e os meios para multiplicá-las. Para a historiadora Nívia Pom-
bo, Portugal e Espanha podem ser tomadas como exemplo de nações nas
quais a agricultura fora preterida frente à mineração, o que acabou por
provocar enormes desvantagens quando comparadas as outras potências.

Ao final do setecentos, era urgente investir na agricultura das posses


coloniais. O Brasil, especificamente, reunia as potencialidades necessá-
rias a serem aproveitadas de forma mais útil, ou racional – para usar os
conceitos em voga –, tais como: riquezas, clima, navegação facilitada
pelas costas e pelos rios. As propostas que vinham da Coroa partiram
das reflexões de intelectuais ilustrados que, por sua vez, possuíam muitos
pontos de contato com os debates fisiocratas.

Em resposta ao ministro, o fazendeiro e “grande agricultor”, expôs


uma realidade cordial e pacífica, que, de acordo com seu discurso, expres-
sava sua relação com os grupos indígenas da região:
Tive o aviso de estarem os Índios na Fazenda do Pao-Grande, aonde
eu residia; fui sair-lhes ao encontro, com minha gente armada por
cautela, mas logo que os avistei mandei os meus que depusessem
as armas. O Cacique [...] mandou o mesmo aos seus e veio abraçar-
-me: eu o tratei com a mesma cortesia. [...] os fiz conduzir à minha
casa [...] e para lhes tirar todo motivo de suspeita e desconfiança,
fiz aparecer ali toda a minha família; eles se portarão com sinais

12  –  Obra publicada em 11 volumes, entre os anos de 1798–1806, contava com artigos
inéditos e muitas traduções de textos originalmente franceses e ingleses. Um rico material
que pretendia o incremento técnico das lavouras já existentes, à medida que defendia a
diversificação da produção colonial, já ressaltando o estímulo à implementação da cafei-
cultura em larga escala no Brasil. A própria tradução de memórias inglesas e francesas
procurava realçar a capacidade dos pequenos proprietários em se adaptarem facilmente à
produção algodoeira.

252 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):247-258, mai./ago. 2019.


Expansão de fronteiras e de projetos para os sertões fluminenses:
posse e propriedade nos séculos XVIII e XIX

de respeito e gratidão, oferecendo aos meus meninos os papagaios


que traziam [...] eu os persuadi como pude, que estimaria que eles
voltassem muitas vezes à minha fazenda e que achariam sempre em
mim o mesmo agasalho; eles assim o prometeram fazer. Nenhum de
nós tem faltado ao prometido, eles vindo todos os anos [...] e eu os
tratando sempre com a mesma liberdade e boa fé.13

A partir de então, o projeto de aldeamento dos grupos indígenas, no


Médio Paraíba, reuniu esforços de diferentes agentes, revelando o que
acreditamos ser uma verdadeira – e peculiar – realidade de fronteira. Foi
fundado por um fazendeiro, José Rodrigues da Cruz, com o apoio logís-
tico e financeiro da Coroa portuguesa, personificado na figura do impor-
tante ministro luso Dom Rodrigo de Souza Coutinho. Ainda que peculiar,
a relação estabelecida e o estreitamento dos vínculos entre o poder central
e o poder local representam mais um dos pilares do ideal reformista de
Dom Rodrigo, que empreendia seus esforços no sentido de criar uma uni-
dade e uma identidade em torno da Monarquia portuguesa. O processo,
então permeado pelas negociações possíveis e compreendido a partir das
relações sociais no qual está inserido, revela um verdadeiro emaranhado
de indivíduos, agentes sociais distintos. Emana daí a necessidade de uma
liderança, que passa a ser inaugurada pelo referido fazendeiro. Não se
trata de uma autoridade qualquer, e sim um mediador, um indivíduo so-
cialmente autorizado para interceder às relações e aos diálogos entre as
tantas partes envolvidas14.

Ao longo de sua existência, o Aldeamento de Valença passou por


diferentes conjunturas e por distintas administrações, enfrentando difi-
culdades que envolveram até mesmo a falta de diretores. Poucos anos
após sua fundação, o fazendeiro que atuava como mediador veio a fa-
lecer, acarretando um vazio que não seria facilmente ocupado. Como
salientamos, sua atuação nas relações entre o governo e os grupos indíge-

13 – CRUZ, José Rodrigues da. “Carta de José Rodrigues da Cruz em resposta a D. Ro-
drigo de Souza Coutinho, de 1o out. 1799”. R.IHGB n.17, p. 503, 1854.
14  –  Referimo-nos aqui à relação de mediação tal como proposta por: LEVI, Giovanni.
A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Ja-
neiro: Civilização Brasileira, 2000.

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Marina Monteiro Machado

nas era bastante peculiar, pautada no compromisso e na confiança mútua


com ambos os lados envolvidos. A direção do aldeamento foi designada
ao Capitão Ignácio de Souza Werneck, que, assim como o fazendeiro,
tinha participado ativamente no processo de redução e de reunião dos
grupos indígenas que dera origem ao Aldeamento. Werneck, no entanto,
alegando motivos pessoais, logo se afastou do cargo. A dificuldade em
encontrar um sucessor se refletiu no vazio do cargo a despeito de outras
tentativas da Coroa. A documentação analisada expressa que os índios
mantiveram-se sem diretor, ou tutor, nos anos seguintes, até a extinção do
Aldeamento. De certo, o fim do aldeamento em si também expressava os
limites desse reformismo ilustrado que se pretendia implementar.

Tal vazio na direção do Aldeamento de Valença coincide ainda com


o agravamento das lutas pelo título legal sobre as terras ocupadas, que
se deu após o afastamento do Capitão. Nessa conjuntura, foi possível
acompanhar uma querela de disputa pelas terras, que, embora não tenha
conseguido garantir a demarcação e a medição das terras prometidas por
sesmaria para o Aldeamento, levou à revogação do título de Sesmaria já
concedido por D. João VI a um sesmeiro, conhecido por Eleutério Del-
fim. Para tanto, observa-se grande mobilização dos agentes sociais dire-
tamente interessados, não apenas grupos indígenas, como ainda párocos
e moradores da região, para os quais supomos que os grupos indígenas
representavam importante mão de obra para a agricultura15.

Após a morte do fazendeiro, o que supomos ter acontecido por volta


de 1805, já que não identificamos com precisão nos documentos, a reali-
dade passa a ser marcada pela ausência de diretores no Aldeamento e pela
acelerada ocupação das terras, seja por sesmeiros ou por moradores sem
títulos legais. Mesmo inseridos em uma política de aldeamentos, os gru-
pos indígenas de Valença não tiveram seus direitos à terra reconhecidos
e garantidos, tornando a experiência mais uma vez elucidativa, demons-
trando as contradições inerentes à própria política e de sua implementa-

15 – Fontes sobre o conflito com: ELEUTÉRIO DELFIM: Requerimentos dos índios da


aldeia de Nossa Senhora da Glória de Valença, de 25 jun. 1818. R.IHGB, n.17, p. 535-7,
1854.

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Expansão de fronteiras e de projetos para os sertões fluminenses:
posse e propriedade nos séculos XVIII e XIX

ção, que, na prática, acabaram por corroborar a ocupação colonial das


terras do Médio Paraíba.

Acreditamos, portanto, que o estudo desenvolvido ajuda a reconhe-


cer a fundamental importância de se compreender os projetos de Aldea-
mentos nos estudos sobre os movimentos nas fronteiras, evidenciando o
empenho em prol da apropriação de terras e a sempre mencionada “solu-
ção para a questão indígena”. Movimentos, nos quais reconhecemos, para
além do avanço de uma nova sociedade, o encontro de diferentes grupos
e a formação de uma nova realidade, um modelo que se nutre das carac-
terísticas dos diferentes grupos que se encontram nesse espaço. A cons-
trução, e mesmo a desconstrução, anos depois, do Aldeamento de Nossa
Senhora da Glória de Valença, revelam uma sociedade única, formada por
indivíduos distintos e gestada por seus próprios interesses, que, em geral,
estavam centradas em um ponto comum: a disputa por terras.

Ao nos voltarmos para as atuações dos diferentes e desiguais indi-


víduos envolvidos, não temos por objetivo criar construções e interpreta-
ções que apresentam a fronteira e seus agentes de forma dicotômica. Não
se trata da coexistência de heróis e vilões, vítimas e vitoriosos, a ideia é
uma interpretação na qual o mundo da fronteira se explique por interesses
específicos e a realidade de cada um dos indivíduos, ou grupos, nesse
espaço.

A terra continuava sendo o objetivo central dos que se direcionavam


para a fronteira. Como apresentado, o posto alcançado por Rodrigues da
Cruz se revelava um importante capital imaterial que, embora não es-
tivesse em disputa, também não era facilmente conquistado. De forma
acelerada, os interesses e as disputas pelas terras tornavam-se mais evi-
dentes, desencadeando novos conflitos que formam parte da história da
ocupação da região de Valença. Uma análise cuidadosa do Aldeamento
de Valença e todo o processo de embates e de negociações no qual esteve
inserido permite observar que os conflitos se misturam e os agentes se
reproduzem.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):247-258, mai./ago. 2019. 255


Marina Monteiro Machado

Se, por um lado, a pesquisa se deparou com uma fronteira que se


entendia aberta, povoada por “perigos” e “ameaçada” por grupos indíge-
nas, é preciso pontuar que, em seu desenvolver, a realidade muda pouco
a pouco, possibilitando novas reflexões sobre a configuração da região.
Aos poucos, o espaço, antes entendido como ermo, passa a ser palco de
disputas por terras, evidenciando os conflitos e a atuação de tantos grupos
e agentes, bem como as políticas assumidas pelos governantes que esti-
veram à frente da questão. As terras ocupadas pelo Aldeamento jamais
foram demarcadas e concedidas tal como fora prometido diversas vezes.

Ainda que aparentemente curto, o recorte temporal se revelou ex-


tremamente plural. Podemos afirmar que são três décadas em que tudo
mudou. Entre 1790 e 1824, o Brasil passou de colônia à capital do Im-
pério Português, depois elevado a Reino Unido a Portugal e Algarves,
para, por fim, em 1822, ser proclamado independente por D. Pedro I.
Ao longo desses quase 35 anos, foram muitas e profundas as mudanças
políticas, acompanhadas claramente por interesses econômicos que se re-
organizavam em função das realidades estabelecidas. Se, na contenda que
envolveu a disputa por terras com Eleutério Delfim, em 1810, D. João
VI manteve-se favorável ao pleito dos grupos indígenas e moradores do
Médio Paraíba do Sul, anos mais tarde, em 1824, seu filho seguiu por ou-
tros rumos. O desfecho pontuado por D. João VI versava sobre o direito
às terras, tendo por base o argumento da presença indígena. Entretanto,
a dinâmica de ocupação da capitania do Rio de Janeiro vinha sofrendo
mudanças e adaptações às novas realidades, com ênfase para o período
em que a Corte Joanina esteve no Brasil.

Ao contrário de seu pai, que tinha anulado a concessão de sesmaria


a Eleutério Delfim, reconhecendo a expressiva presença dos grupos indí-
genas na região, D. Pedro I destaca a necessidade de criação de uma vila,
onde antes se localizava a aldeia de Valença. Refere-se ao Aldeamento
como uma realização do passado, algo que não mais existia, e, portanto,

256 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):247-258, mai./ago. 2019.


Expansão de fronteiras e de projetos para os sertões fluminenses:
posse e propriedade nos séculos XVIII e XIX

não seria conveniente valorizar. Seu argumento central estava na popula-


ção da freguesia e na existência de setenta fazendas16.

D. Pedro I iniciava não apenas seu governo, mas também um projeto


de construção da nação brasileira. Fazia-se necessário, naquele contex-
to, definir cuidadosamente cada política implementada, preocupando-se
diretamente com os grupos sociais envolvidos no processo, com atenção
para cada vantagem ou desvantagem na solidificação de futuras alianças.

O novo Imperador justificava estar agindo em concordância a uma


consulta já realizada, quando buscou informações que lhe embasassem
acerca da criação da vila de Valença, freguesia que vinha sendo destinada
à vila de índios coroados por ordem de agosto de 1801, e confirmada pelo
decreto de março de 1819. A resposta recebida assegurava que a aldeia
contava apenas com 45 moradores, ao passo que a freguesia possuía 1971
habitantes, além das setenta e tantas fazendas. Os índios eram reconheci-
dos pelos moradores, mas estariam dispersos, havendo a necessidade de
chamá-los novamente à diretoria da aldeia lá estabelecida17.

Em conclusão
A fronteira que encontramos na capitania fluminense não era român-
tica nem pacífica. Era cotidiana, gestada a cada dia, em cada ação, pois a
disputa territorial não foi uma ação única, mas um processo diário, per-
meado por políticas que mudavam de rumo em função das ações que
disputavam a posse das terras. É uma fronteira onde uma ampla gama
de atores sociais se encontra e compete, colaborando ou negociando na
luta para defender ou para estender seus interesses específicos acerca do
controle sobre a terra.

O estudo do Aldeamento de Valença, por sua vez, revela-se extrema-


mente elucidativo. Traz ao primeiro plano a história da ocupação tardia
16  –  Alvará de D. Pedro I em CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Legislação Indige-
nista no Século XIX. São Paulo: Comissão pró-índio – EDUSP, 1992, p. 108-109.
17  –  Consulta acerca de uma informação do ouvidor da comarca do Rio de Janeiro sobre
a criação e erecção da aldeia e freguesia de Valença em vilas, a 13 de janeiro de 1823.
R.IHGB, nº 17, p. 543, 1854.

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Marina Monteiro Machado

dos sertões fluminenses e como essa se relaciona diretamente a um proje-


to de fomento agrário, já com traços capitalistas, encaminhado pela me-
trópole ao final do século XVIII. Acompanhar a história do Aldeamento
funciona ainda como um verdadeiro exercício de micro-história, permi-
tindo lançar luz sobre uma problemática específica que também deve ser
acompanhada pela historiografia em lentes mais amplas.

Salientamos, por fim, que esse é apenas mais um olhar sobre a his-
tória da ocupação da capitania do Rio de Janeiro; não é o primeiro, tam-
pouco se pretende o último. Apresentou uma interpretação que se volta
ao mundo rural, aos conflitos e à conquista de terras, em um processo que
continuou nos anos seguintes e foi decisivo para transformar terras antes
entendidas como incultas, “ameaçadas” pela presença de grupos indíge-
nas, em um importante polo produtor de café, grande riqueza do império
brasileiro. O trabalho dialoga com os estudos sobre a história rural no
Brasil, tendo como foco os conflitos e as negociações, tão antigos quanto
atuais. Para tanto, propõe um olhar histórico sobre toda a conjuntura que
consagrou, construiu, fundou e acabou com o aldeamento. É uma história
que pode ser contada ao longo de algumas décadas, mas expressa um pe-
ríodo delicado da história do Brasil, abrindo uma janela para compreen-
der um processo maior de ocupação de terras. Trata-se, portanto, de mais
uma questão que se insere no quadro da amnésia social que recai sobre
conflitos no mundo rural.

Texto apresentado em outubro/2018. Aprovado para publicação em


março/2019

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Um Brasileiro no céu da 1ª Guerra Mundial,
o tenente Luciano de Mello Vieira (1892-1918)

259

III – NOTA DE PESQUISA


RESEARCH NOTE

UM BRASILEIRO NO CÉU DA 1ª GUERRA MUNDIAL,


O TENENTE LUCIANO DE MELLO VIEIRA (1892-1918)
A BRAZILIAN IN THE SKIES OF WORLD WAR 1,
LIEUTENANT LUCIANO DE MELLO VIEIRA (1892-1918)
Jean-Pierre Blay1

Resumo: Abstract:
Antes do Brasil declarar o seu apoio às nações Before Brazil declared its support to the Al-
aliadas da França, já havia cidadãos brasileiros lied nations of France, Brazilian citizens were
participando nos combates. Um deles, Luciano already participating in the combats. One of
de Mello Vieira, matriculou-se no Regimento da them, Luciano de Mello Vieira, had enrolled in
Legião Estrangeira. Ele se formou como piloto the Foreign Legion Regiment. As a graduate pi-
e teve várias atuações no céu da França. Na vol- lot, he participated several times in operations
ta de uma missão, sofreu um acidente mortal, in the skies of France. Returning from a mission,
na cidade de Chantilly, onde foi enterrado. Essa he was fatally injured in the city of Chantilly,
participação no primeiro conflito mundial é o re- where he was buried. His participation in the
sultado de vários fatores emocionais (fascinação first world conflict is the result of several emo-
pela França, pela aviação e pelo contemporâneo tional factors (fascination with France, aviation
Alberto Santos-Dumont), econômicos e diplo- and Alberto Santos-Dumont, his contemporary),
máticos (o avião dele é inglês, mas fabricado na as well as economic and diplomatic factors (his
França, consecutivo ao acordo de 1904,  a cha- airplane was English but made in France, fol-
mada Entente cordiale ). Até agora, ele pode ser lowing the 1904 agreement, the so-called En-
considerado como sendo o primeiro Brasileiro a tente Cordiale). Until today, he is considered to
morrer durante este conflito. be the first Brazilian to die during the conflict.
Palavras-chave: Aviador; Brasileiro; Primeira Keywords: Aviator; Brazilian; First World War;
Guerra Mundial; Herói. Hero.

NB: Considero este texto como uma nota de pesquisa (até mesmo
uma notícia biográfica), porque o corpus histórico solicitado é extrema-
mente reduzido e, consequentemente, eu vejo dificuldades para achar
mais arquivos sobre esse assunto.

Após ter descoberto o túmulo de um soldado brasileiro no cemitério


da cidade de Chantilly, resolvi conhecer um pouco sobre a sua história.
O arquivo departamental da cidade de Senlis e o arquivo municipal de
1  –  Université de Paris-Nanterre. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):259-272, mai./ago. 2019. 259


Jean-Pierre Blay

Chantilly (que são os acervos evidentes para esta pesquisa), entretanto,


sofreram destruições, durante a Primeira Guerra Mundial, que impedem
de se saber mais sobre esse fato. O centro de arquivos do Exército francês
possui um dossiê com poucos detalhes sobre este piloto brasileiro. Existe
um conjunto de documentos publicados em 2005 por André Bergery na
Revue de l’Association de Sauvegarde de Chantilly et de son environne-
ment (A.S.C.E.). Ele reproduziu o formulário do dossiê militar do tenente
Luciano.

A atuação deste soldado, porém, é inédita e merece ser conhecida.


Talvez, a partir daí, será possível que outro pesquisador possa ir mais
além. Contudo, fora algumas linhas na coluna necrológica de jornais
locais ou nacionais, as informações limitam-se ao anúncio da morte de
Luciano. Uma pista é aquela sugerida pelos cinco aviadores brasileiros
alistados no exercito francês no fim do ano 1918.

Escrevi este texto, lembrando uma conversa com o general Jonas


Correia Neto (meu “padrinho” quando entrei no I.HG.B.) sobre “O que é
um herói ?” ; “Este estatuto pode ser adquirido para sempre ?”; “Existe
uma diferença entre herói e grande homem da nação ?”. Essas perguntas
inspiraram este texto.

Com a comemoração do primeiro conflito mundial, a releitura da


história mudou o interesse do público. Agora, não são mais os estrategis-
tas militares e os políticos que motivam admiração e respeito, mas sim
os soldados anônimos de primeira linha, visto que sabemos mais (a partir
da abertura da correspondência de guerra censurada até o início dos anos
2000) sobre o cotidiano nas “tranchées de Verdun”, por exemplo.

Essa contribuição pretende revelar às gerações de hoje um homem


tanto anônimo quanto excepcional.

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Um Brasileiro no céu da 1ª Guerra Mundial,
o tenente Luciano de Mello Vieira (1892-1918)

Do anonimato da História à “heroísação”2


Um historiador biógrafo tem sempre o mesmo desafio: juntar o cor-
pus, o mais completo possível, para seguir o percurso familiar, social,
profissional, político e, às vezes, artístico de um indivíduo.

No arquivo francês, do registro de nascimento até o de óbito, esta-


belecido nas Prefeituras, todos os indivíduos têm uma certa igualdade
perante a História. Todos os traços do passado possuem um potencial
histórico.

O historiador francês, Alain Corbin, escreveu a biografia de um sa-


pateiro rural (Louis-François Pinagot)3. A escolha de Corbin foi determi-
nada dentro de uma sociedade rural sobre a qual ele já havia pesquisado:
o Limousin. A partir dos arquivos públicos referentes ao recenseamento
da população, o historiador detectou profissões mais visíveis por conta de
uma atividade política e econômica tais como médicos, políticos e comer-
ciantes. Após esta primeira pesquisa, o historiador se deu um desafio bem
árduo: o de escolher, por acaso, um indivíduo cuja visibilidade social se
limitava àquela documentação demográfica. Ele reconstruiu o percurso
social de Pinagot a partir de um contrato de casamento, de um inventário
pós-mortem, de um dossiê militar, de um registro escolar e de um mapa
de repartição das propriedades. Enfim, com método e com determinação,
ele chegou a um resultado significante.

Os historiadores da Primeira Guerra Mundial também estudam os


arquivos para estabelecer uma convergência dos interesses diplomáticos
e do cotidiano da guerra, entre outros. Dessa maneira, podem determinar,
com precisão, a evolução da movimentação dos soldados alemães e dos
aliados. O conflito foi, particularmente, mortífero com a introdução de

2 – Este neologismo foi concebido por Maurice Agulhon In vol. III, Histoire de la
France Urbaine, la ville de l’âge industriel. Paris : Ed.Le Seuil, 1983. A heroisação ” é
um processo de reconhecimento de um sacrifício que suscita uma acção coletiva oficial
materializada pela edificação de um “monumento aos mortos pela nação ” ou a entrada
prestigiosa no Panthéon.
3 – CORBIN, Alain. Le monde retrouvé de Louis-François Pinagot, sur les traces d’un
inconnu, 1798-1876. Paris: Flammarion, 1998.

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Jean-Pierre Blay

novas armas: o gás “yperite”4, o submarino e, principalmente, o avião.


O desenvolvimento industrial retornou-se contra o homem e resultou no
maior número de mortos da história das batalhas militares. O balanço
final foi terrível: só do lado francês, contamos em torno de1.250.000 mor-
tos. Esse resultado permite uma infinidade de estudos históricos.

Do ponto de vista demográfico, conhecemos o número de mortos e


de desaparecidos. Podemos repartir as vítimas militares e as civis. Sabe-
mos também o número de mortos referentes a cada nação envolvida. Na
França, os cemitérios militares alemães, americanos, neozelandeses e ca-
nadenses existem e são cuidados. Mas será que, neste conflito mundial, só
a multidão de exércitos seria significante? Será que os casos particulares
de relevante interesse histórico são determinados segundo o valor políti-
co? Poincaré (Presidente da República Francesa), Georges Clemenceau
(presidente do conselho dos ministros), o poeta Guillaume Apollinaire…
entre eles, quem é digno de interessar uma pesquisa e chegar até o esta-
tuto de herói ?

A biografia histórica deve evitar justamente a tentação da “heroí-


sação”, porque, da mesma maneira que nenhum evento tem uma causa
única, um evento é sempre o resultado de convergências de elementos
históricos, misturando indivíduos numerosos. Então, de um certa forma,
todos os indivíduos possuem um valor histórico cuja importância rele-
va da escolha do Historiador. Sobre essa relatividade da “heróisação”,
podemos constatar o seguinte paradoxo: o “soldado desconhecido” da
Primeira Guerra Mundial foi enterrado num lugar prestigioso, o Arco do
Triunfo, localizado no alto da Avenida Champs Elysées, em Paris.

Então, segundo este esquema, será que o historiador poderia achar


um caso particular relevante de uma explicação geral? Minha pergunta
vale para cada túmulo que se encontra nos cemitérios militares franceses.
Interessei-me por um deles: o brasileiro Luciano de Mello Vieira, nasci-

4 – Gás mortal produzido pelos Alemães e usada em setembro de 1917 perto da cidade
belga de Ypres que deu origem ao gás “ypérite” ou “mostarda” em razão do cheiro da
nuvem mortífera.

262 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):259-272, mai./ago. 2019.


Um Brasileiro no céu da 1ª Guerra Mundial,
o tenente Luciano de Mello Vieira (1892-1918)

do em Paris no dia 7 de janeiro de 1892, e morto, em missão militar, no


norte da França, onde ele foi enterrado. Num conflito onde, basicamente,
os soldados eram de origem européia, a nacionalidade sul-americana de
Luciano despertou-me uma curiosidade sobre as motivações da luta deste
homem cujo país não era ameaçado pela ofensiva alemã.

O homem revelado pela comemoração do centenário da Guerra de


1914
O registro de nascimento, guardado no arquivo municipal do bairro
XVII de Paris, indica que seus pais declararam Luciano como sendo o
filho de citados brasileiros que moravam no número 32 da rue de Prony.
Antônio Luiz de Mello Vieira e Elisa Augusta da Rocha moraram no
mesmo apartamento parisiense até a guerra5. Luciano teve uma infância
burguesa em um bairro nobre da capital francesa e assistia às evoluções
aéreas do compatriota, Alberto Santos-Dumont, que morava não muito
longe. Provavelmente, essa proximidade com os vôos do pioneiros da
aviação contribuiu à sua vocação.

A data da morte de Luciano aparece no registro de falecimentos da


cidade de Chantilly, como sendo no dia 31 de janeiro de 19186. Uma nota
informa que Luciano tinha o grau de Tenente e que ele morreu no Hos-
pital Condé, quarto Chartres, cama 1/30. Ele foi transportado para esta
instituição médica depois de sofrer uma acidente de aeroplano durante
uma missão ordenada pelo Exército francês.

Seu túmulo7, em Chantilly, apresenta uma espada em forma de uma


cruz que o governo francês oferece para cada estrangeiro morto pela
França e enterrado fora de um cemitério militar oficial. Nos cemitérios
civis franceses, existe uma quadra destinada a militares de nacionalidades

5 – Archives Municipales de la ville de Paris. Table des naissances du 17ème arrondisse-


ment, V4E 7392, numéro de l’acte 121, page 22.
6 – Archives Municipales de Chantilly. Table des décès. Volume de l’année 1918 (sem
paginação ).
7 – Cimetière du bois Bourillon, avenue du Maréchal Joffre, Chantilly, emplacement
829.

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Jean-Pierre Blay

diversas. É por isso que tanto vilarejos como grandes cidades se compro-
meteram a homenagear os soldados mortos no seu território8.

Dentro das comemorações pelo centenário da guerra de 14, as pre-


feituras restauraram alguns destes túmulos. O de Luciano foi um dos es-
colhidos.

O percurso militar
No arquivo do Exército francês que está guardado no Castelo de
Vincennes, o dossiê do tenente Luciano revela que este assinou seu con-
trato com a Legião Estrangeira, no escritório de Paris, no dia 30 de maio
de 1917 e recebeu a matricula nº : RT 191-929. Ele se formou em um
regimento de infantaria em Juvisy, subúrbio localizado nos arredores de
Paris. Depois, ele foi transferido para o Centro Militar de Pau (Pirineus),
no sul da França, para seguir uma formação de “aluno-piloto” do dia 30
de setembro até o dia 16 de dezembro de 1917. Esse lugar afastado da
zona de combates oferece uma topografia adequada e ventos regulares
para voar. Até Alberto Santos-Dumont e Wilbur Wright chegaram a fre-
quentar o lugar e o aprovaram como uma área perfeita para uma iniciação
à aeronáutica. No fim desse período, Luciano foi nomeado tenente.

A intensificação do conflito, com a chegada dos Americanos, ace-


lerou os recursos destinados à aviação para compensar a falta dos com-
batentes russos no fronte do leste, o que provocou a deslocalização das
tropas alemãs no fronte do oeste. O desequilíbrio foi quase fatal.

A necessidade de reforçar, principalmente, a proteção de Paris redu-


ziu o tempo de formação dos recentes mobilizados. A batalha da Marne,
aquela da Somme e, sobretudo Verdun, consumiram muitos homens. To-

8 – A lei do 25 de outubro de 1919 sobre “a comemoração e a glorificação dos mortos


pela França durante a Grande Guerra” impõe aos municípios franceses edificar monu-
mentos aos mortos e cuidar dos túmulos. Lei citada In: Pierre Nora (dir.), Les Lieux de
mémoire, vol. I (La République), artigo de Antoine Prost : “Les monuments aux morts.
Culte républicain? Culte civique? Culte patriotique?”, p.195-225. Citação da lei p. 196.
Paris: Gallimard, 1984.
9 – As informações citadas vêm deste dossiê.

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Um Brasileiro no céu da 1ª Guerra Mundial,
o tenente Luciano de Mello Vieira (1892-1918)

das formações militares foram reduzidas. Então o jovem oficial brasileiro


foi nomeado, imediatamente, em uma esquadrilha da divisão Bt S para
participar na contra-ofensiva dos Aliados.

Na verdade, a transformação da indústria civil em indústria de guerra


foi particularmente visível na aeronáutica, porque a totalidade dos fabri-
cantes privados de aviões adaptaram suas produções para a luta aérea.
Geralmente, o nome de uma esquadrilha era composto por 2 ou 3 letras
vindas do nome do fabricante e um número de ordem. “MS” por Morane-
-Saulnier, “N” por Nieuport, “V” por Voisin, “BLC” por Blériot, “HF”
por Henry Farman…

A esquadrilha Bataillon Strutter (Bt S) do tenente Luciano era dotada


de aparelhos Sopwith 1 1/210, do construtor inglês Strutter. Esse fabrican-
te intensificou sua produção para responder a um mercado, totalmente,
dominado pelas necessidades bélicas. Assim, 1.250 exemplares foram
montados na Inglaterra e 4.500 na França, entre 1914 e 1918. O Sopwith
serviu no fronte, inicialmente, para cassar outros aviões e, depois, ele
foi adaptado como bombardeio diurno. Para esse tipo de missão, ele foi
transformado de um avião de dois lugares para o de um só, com o objetivo
de substituir o peso de um soldado metralhador, por munições. Em 1918,
este aparelho foi desclassificado e passou a ser usado para a formação de
pilotos ou para a observação das tropas inimigas.

O tenente Luciano não foi o único piloto estrangeiro formado na


França. Charles Kinsolving11 era estudante em Paris quando se alistou na
Legião Estrangeira em 1915. Houve também o bem conhecido tenente
Kirk, que foi o primeiro brasileiro a ser formado na Escola de Aviação de
Etampes. A entrada em guerra desses brasileiros parece antecipar àquela
do oficial do Brasil.

10 – A Ilustração do avião vêm do acervo do Aéro-Club de France.


11 – Colégio Brasileiro de Genealogia (C.B.G., Rio de Janeiro). Charles Kinsolving
nascido no dia 19 de janeiro de 1893, no Rio Grande do Sul. Havia também 5 filhos de
missionários luteranos de origem americana formados na França : Charles Harry Haslin,
Vivian Wigg, Jack Brown, John Meen.

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Jean-Pierre Blay

O Brasil e o primeiro conflito mundial

Em 1917, a fisionomia da guerra mudou. Com a Revolução bolche-


vique, o novo governo concluiu com os Alemães o tratado de Brest-Li-
tosk12, que teve como consequência a limitação do fronte na zona oeste.
Mas o evento decisivo para o Brasil ocorreu o dia 4 de abril, perto do
porto francês de Barfleur. Um submarino alemão torpedeou um navio de
carga brasileiro, “O Paraná”, que transportava produtos para os aliados.
No dia 9 de abril, o governo brasileiro rompeu as relações diplomáticas
com a Alemanha. Em 2 de junho, o Brasil renunciou à sua declaração
de neutralidade e confiscou 230.000 toneladas de mercadorias de barcos
alemães presos nos portos brasileiros. Em 26 de outubro, os senadores
aprovaram o discurso de Rui Barbosa a favor da guerra.

Entre essas datas que marcaram a história diplomática, no dia 26 de


maio, conforme o acordo assinado entre a França e o Brasil, uns oficiais
vieram aperfeiçoar-se como aviadores em Etampes13. O número de alunos
brasileiros chegou a 50 no fim do ano14. É, neste frenesi patriótico, mistu-
rado à busca de aventuras que tanto caracteriza a juventude, que Luciano
entrou no escritório da Legião Estrangeira para assinar seu alistamento no
dia 30 de maio de 1917.

Em agosto de 1914, havia 321 pilotos franceses. Este número subiu


até 6.417 em setembro de 191715, mas muitos pilotos morreram nas ba-
12 – Tratado assinado em 15 de dezembro de 1917.
13 – Ver no artigo de André Bergery ( Revue de l’Association de Sauvegarde de Chan-
tilly et de son environnement – A.S.C.E.- 12 novembre 2005 /C51. Numéro spécial: “Les
Brésiliens en guerre 1917-1919”, p. 17), a citação de uma carta do embaixador da França
no Brasil em 1917-18, Paul Claudel, Rio de Janeiro, dia 2 de janeiro de 1918, sobre o
pedido do governo do Brasil relativa à formação dos pilotos.
14 – Service Historique de la Défense (S.H.D.), Château de Vincennes, Paris. “Registro
quantitativo dos pilotos estrangeiros”, formação no dia 22 de novembro de 1917. NB:
falta a identificação dos nomes e da atuação eventual durante a guerra a partir dos dossiês
particulares dos pilotos do regimento de formação. O S.H.D. é o acervo principal dos
arquivos do Exército francês.
15  –  Aérofrance, La Revue des pionniers de l’avenir, n°132, Aéro-Club de France, 2016.
Les As français de 1916. N.B.: Para receber o título honorífico de “As”, o Exército fran-
cês exigia 5 vitórias aéreas, isto é, 5 aeroplanos destruídos durante um combate aéreo. O
Guynemer foi nomeado “As” em 3 de fevereiro de 1916 depois de totalizar 53 vitórias.

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Um Brasileiro no céu da 1ª Guerra Mundial,
o tenente Luciano de Mello Vieira (1892-1918)

talhas. Até o “As de As” Georges Guynemer. Por conseguinte, o estado


maior francês se viu “obrigado” a aceitar entrada de estrangeiros, perante
uma falta preocupante de pilotos franceses.

Participar da esquadrilha “Bataillon Strutter” era uma etapa da for-


mação antes de uma transferência para um batalhão de combate. Quando
o tenente Luciano encontrava-se em treinamento, ele estava servindo a
menos de 80 km da linha de combate de Verdun. Ele estava baseado no
campo de aviação de Sacy-le-Grand, um campo militar localizado numa
segunda linha de reserva. O Tenente Luciano pertencia à “Division Sal-
mon du Plessis Belleville”, do grupo das divisões de treinamento16, quan-
do ele caiu no hipódromo de Chantilly, no dia 28 de janeiro de 1918. Na
volta da missão, ele não viu as cercas da pista de corrida dissimuladas
pela neblina. Sabemos que, durante esta missão de observação acima das
linhas inimigas, ele estava acompanhado pelo sub-tenente Charles de
Luynes, o duque de Chevreuse. Este representante da alta aristocracia17
foi transferido para aquele batalhão vindo do 13º Regimento de “Hussar-
ds”. Este regimento, de tradição equestre, não correspondia mais às novas
condições de uma guerra mecânica. A cavalaria era pouca usada na guerra
de posição e muitos oficiais se reconverteram na aviação, inclusive o jo-
vem Charles, que queria mostrar sua vontade em combater, utilizando a
tecnologia da sua época, marcada pela aviação. Charles compartilhava o
mesmo ideal que Luciano. A convergência histórica, ou o destino, juntou
os dois.

No início, o aeroplano Strutter era formatado para transportar dois


passageiros, isto é, um piloto e um observador de metralhadora. Na ver-
dade, os dois jovens pilotos (várias vezes associados) se revezavam nas
posições dentro do avião, ora dirigindo, ora observando. Neste dia funes-
to de janeiro de 1918, o inverno foi mais perigoso que o caça alemão e
fez com que a falta de visibilidade da pista provisória em um hipódromo

(pp.13-17). O “As de As” designa o melhor dentre os aviadores do ano.


16 – Em francês : Groupe des Divisions d’Entraînement.
17 – A mãe dele era a duquesa de Uzes, uma família das mais antigas da nobreza france-
sa.

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Jean-Pierre Blay

decidisse a morte de Luciano e de Charles, na frente do castelo de Chan-


tilly. Pela nobre origem de Charles Luynes e pelo local da queda do avião,
o anúncio do falecimento deste francês foi muito comentado na impren-
sa local e nacional. O jornal cotidiano parisiense Le Temps, semanal Le
Moniteur de l’Oise e o jornal da prefeitura de Mouy Le journal de Mouy
escreveram um artigo de destaque sobre este representante de uma famí-
lia histórica. O nome do combatente brasileiro foi homenageado, mas sua
presença na França não deixou nada de memorável até aquele dia. Nenhu-
ma notícia divulgou o percurso social desse brasileiro que se aventurou
no céu da Primeira Guerra Mundial. Face à morte, Luciano e Charles
eram iguais, mas a posteridade histórica os separou.

A trajetória do tenente Luciano era conforme ao sentimento de fran-


cofilia exprimido por uma boa parte da elite social brasileira. Com o con-
flito, houve um movimento de simpatia a favor da França e contra a Ale-
manha. A agressividade contra os alemães criou até mesmo o pensamento
de um movimento para separar o Rio Grande do Sul (estado de imigração
de predominância alemã) do Brasil. Os relatórios secretos que o adido
militar francês, capitão Fanneau de la Horie, produzia, de 1917 até 1918,
no ministério da guerra em Paris18, alertam justamente sobre o fato de que
os estados do sul do Brasil, principalmente o Rio Grande do Sul, amea-
çaram se separar da república federativa sob a influência da comunidade
alemã. A “germanização” desse território constituiu um risco sério para
os interesses franceses.

Por outro lado, as demonstrações de simpatia e apoio à França só


aumentavam. Até a chamada “Liga Brasileira pelos Aliados”, fundada
por Rui Barbosa, ativou-se para converter o governo e o estado maior
do Exército. O tenente Hery anotou em um relatório feito pela embaixa-
da francesa: “Durante minha estadia no Rio frequentei o presidente do
Senado – o senhor Itibirica, nascido num meio germanófilo, formado na
Alemanha para estudar. No final, ele voltou germanófobo e francófilo” 19.

18 – “La coopération militaire entre la France et le Brésil” in Revue Service Historique


de l’Armée de l’Air, vol. 2003.
19 – A. Bergery, op, cit. p. 12.

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Um Brasileiro no céu da 1ª Guerra Mundial,
o tenente Luciano de Mello Vieira (1892-1918)

Itabirica negociou em 1905 com M. Etienne (ministro da Guerra francês)


e De Piza (diplomata brasileiro)20 a missão francesa de instrução da força
pública do estado de São Paulo. Ele subvencionou os mosteiros franceses
e os colégios jesuítas em Itú, de onde saíram turmas inteiras de jovens
francófonos. Itabirica e suas filhas falaram só em francês quando recebe-
ram o tenente Hery e tentaram convencer seus familiares e seus amigos de
que o Brasil não poderia ficar neutro durante conflito armado. O governo
francês ficou satisfeito e, ao mesmo tempo, aliviado, com interesse do
Brasil, porque ele tinha medo de uma possível aliança brasileiro-alemã,
visto que, em 1908, o Marechal Hermes da Fonseca, na época ministro
da Guerra, foi convidado, pelo imperador Guilherme II, para assistir às
grandes manobras de Exercito alemão.

A inauguração no Rio de Janeiro, no dia 2 de fevereiro de 1914, da


Escola Brasileira de Aviação Militar parece o resultado de um movimen-
to histórico antigo e complexo. Os entrelaços diplomáticos não estavam
limitados à iniciativa brasileira. O escritor, Paul Claudel, embaixador da
França, mandou o seguinte telegrama ao ministério das Relações Exterio-
res no dia 2 de janeiro de 1918: “O governo brasileiro seria muito grato
ao governo francês de permitir de receber nos campos de treinamento,
50 alunos aviadores”21. Até o Presidente Wenceslau Brás motivou esse
projeto. O Presidente da República francesa, Raymond Poincaré, tomou
conhecimento desse telegrama em 3 de janeiro e o aprovou22. Naquele
momento, já havia um voluntário da “pátria tropical” que estava se trei-
nando para defender o céu da França: Luciano de Mello Vieira.

A situação do tenente Luciano era diferente dos outros soldados


franceses ou ingleses. O perigo da guerra era duplo para ele, porque, em
caso de uma captura pelo exército alemão, ele não poderia se tornar, ofi-
cialmente, um “prisioneiro de guerra”, com tudo o que isso representava
em garantias jurídicas. Quando Luciano vestiu o uniforme francês, o Bra-
20 – De Piza, ministro plenipotenciário do Brasil em Paris de 1905 até 1910.
21 – A. Bergery, op. cit. p.12.
22 – A. Bergery, op. cit. p.15. O artigo mencionou também o relatório assinado pelo
Commandante de la Horie, pela secção de “Renseignements Généraux (policia segreda
francesa) de l’Etat-Major, 2e bureau,I”, du 22 de novembro de 1917.

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Jean-Pierre Blay

sil não tinha ainda declarado seu apoio à França. Então, ele poderia ser
declarado “franc tireur”23 e ser fuzilado por espionagem. A negação pelo
inimigo, de sua dedicação moral e patriótica em defender sua segunda
pátria, seria como recusar sua existência como soldado da liberdade. Esse
motivo foi expresso por muitos estrangeiros alistados no regimento da
Legião, inclusive os próprios filhos do Giuseppe Garibaldi24.

A Posteridade de um desconhecido
No século XX, o estatuto de herói conheceu um surgimento espe-
tacular por conta do aumento das formas de mediatização. Mas, neste
século, acelerou-se a queda da admiração do herói e dos grandes homens
cuja imagem foi construída pela guerra. É por isso que “um Churchill”
e “um de Gaulle” foram elevados a esse estatuto histórico positivo. Ao
mesmo tempo, o crescimento da compaixão pelas vítimas de guerra ou de
fenômenos naturais (terremotos…) focaliza, hoje, a atenção da opinião
pública sobre os personagens mais simples e o heroísmo de tipo militar
diminui. A glória do “Poilu de 14”25 ganhou uma importância sobre aque-
la dos marechais Foch e Joffre e o general americano Pershing.

A trajetória do tenente Luciano pode beneficiar-se dessa modificação


da sensibilidade sobre a qual repõe a admiração respeitosa de um deter-
minado povo. Dentro das sociedades ocidentais pacificadas, a tendência a
privilegiar o esquecimento das figuras heróicas tradicionais dos grandes
conflitos armados provocou o desinteresse pelo herói carismático. Isso
não quer dizer que o historiador está proibido de exumar um personagem
cuja atuação, durante um determinado período, não merece uma análise
crítica.

Hoje, existe um novo modo de fabricação de heróis26 feito pelas mí-


dias que organizam a repetição de uma imagem quase sagrada e delimita-
23 – Soldado não registrado oficialmente e que age por sua própria vontade.
24 – O responsável da unidade italiana nasceu na cidade de Nice na França e sempre
demonstrou admiração por ela. Ele sensibilizou seus próprios filhos sobre o pais dos direi-
tos humanos.
25 – Sobrenome dado ao soldado francês da tranché por conta da sua barba.
26 – Temática desenvolvida por Corbin, Alain. In. Les héros de l’Histoire de France

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Um Brasileiro no céu da 1ª Guerra Mundial,
o tenente Luciano de Mello Vieira (1892-1918)

da por valores humanistas que seduzem a opinião. A valorização da obra


humanitária (Madre Tereza de Calcutá), a admiração da consciência eco-
lógica (comandante Cousteau), a exaltação da grandeza do pobre (o fenô-
meno dos “coletes amarelos” na França), podem ser vistos como valores
equivalentes entre eles em termos de coragem para que vivam e assumam
suas opções intelectuais. Então, a coragem física, a admiração secreta
pelo país de adoção e o senso de sacrifício do tenente Luciano podem ser
um motivo de reconhecimento nacional no Brasil de 2019. Se o herói é
uma construção dentro de um discurso historizante, mais ou menos ofi-
cial, destacar a atuação do tenente Luciano revela o dever de memória27.

Fonte: Archives de La Défense, château de Vincennes, Paris.


Dossiê do Tenete Luciano de Vieira Mello

expliqué à mon fils. Paris: Seuil, 2011.


27 – Desde 2014, o túmulo do Luciano é florido no dia da comemoração (11 de novem-
bro) e o nome dele foi inscrito no monumento aos mortes pela Nação da cidade de Chan-
tilly.

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Jean-Pierre Blay

Túmulo do tenente Luciano no cemitério de Chantilly - França.

Texto apresentado em abril/2019. Aprovado para publicação em ju-


nho/2019

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Linguagens da identidade e da diferença
no mundo ibero-americano (1750-1890)

273

IV – RESENHAS
REVIEW ESSAYS

ENTRE CONCEITOS E LINGUAGENS POLÍTICAS

Lucia Maria Bastos Pereira das Neves, Fátima Sá e Melo Ferreira,


& Guilherme Pereira das Neves (orgs). Linguagens da identidade
e da diferença no mundo ibero-americano (1750-1890). Jundiaí:
Paco Editorial, 2018, 322 p.
Ana Cristina Araújo1

O livro em epígrafe é o resultado do projeto internacional Lingua-


gens da identidade e da diferença no mundo ibero-americano: classes,
corporações, castas e raças, 1750-1870, coordenado atualmente não só
por Fátima Sá e Melo Ferreira, mas também por Lúcia Bastos. Procu-
ra identificar, na linguagem e nos conceitos dos personagens históricos,
traços constantes que vinculam ideais, expectativas, convenções, práti-
cas e representações comuns, ou seja, expressões coletivas e atuantes de
modos de ser, pensar e dizer a realidade no mundo ibero-americano, no
período compreendido entre 1750 e 1890. A cronologia de longa duração
evidencia permanências estruturais e diferentes fenômenos de contágio
político que encontram eco em linguagens e em conceitos partilhados.

Os marcadores de identidade e de alteridade de que nos falam os


organizadores do livro são precisamente os conceitos e as linguagens
usados, nos planos territorial, étnico, político e social, para exprimir la-
ços de pertença e desatar nós diferenciadores de formas de nomeação
coletiva, como sejam, “Brasileiros” versus “Portugueses” (Lúcia Bastos),
“Pueblos Orientales” versus “Cisplatinos”, no processo de independên-

1  –  Professora Associada com Agregação da Faculdade de Letras da Universidade de


Coimbra. Email: araujo.anacris@sapo.pt.

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Ana Cristina Araújo

cia e de união da Região do Rio da Prata (Ana Frega), “Bascos” e “Es-


panhóis”, (Chácon Delgado), na Revista Euskal-Erria de San Sebastian
(1880-1918).

Nos campos em que se buscam agregações convergentes ou diver-


gentes de sentido – território, raça, formações nacionais ou transnacionais
–, os conceitos são encarados não como entidades estáticas ou atemporais,
mas como ferramentas de temporalização histórica. Daqui advém, aliás,
o potencial hermenêutico da linguagem para nomear o social. Existe, to-
davia, uma brecha entre os acontecimentos históricos e a linguagem uti-
lizada para os dizer ou os representar. A esta dificuldade que a semântica
histórica procura responder, acresce a clarividência hermenêutica do his-
toriador (Gadamer), que identifica as diferenças de linguagem das fontes
que estuda com a sua própria linguagem. A consciência da historicidade
do intérprete, neste caso, do historiador, afasta o tradicional ensimesma-
mento acrítico do objetivismo factualista, centrado na pretensa evidên-
cia do facto. Por outro lado, na relação com as linguagens do passado,
a noção de historicidade previne um outro perigo, o das extrapolações
conceptuais fundadas na atualidade, fonte de anacronismos e de todo o
tipo de “presentismos” deformantes e esvaziadores da memória histórica,
perigo para que alertam Jo Guldi e David Armitage2.

Neste contexto, é aconselhável aliar a História analítica à História


conceptual para responder às questões centrais colocadas por Reinhart
Koselleck e pela tradição da Begriffsgeschichte. Para simplificar, talvez
se possa formular, assim, estas questões: qual é a natureza da relação
temporal entre os chamados conceitos históricos e as situações ou cir-
cunstâncias que ditam a sua utilização? Os conceitos e, especialmente, os
estruturantes a que Koselleck chama “conceitos históricos fundamentais”
(como, por exemplo, o moderno conceito de Revolução) permaneceram
na semântica histórica para lá do tempo em que foram formulados? Será
que cada conceito fundamental contém vários estratos profundos, ou vá-
rias camadas de significados passados unidos por um mesmo “horizon-

2 – Manifesto pela História. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.

274 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (480):273-282, mai./ago. 2019.


Linguagens da identidade e da diferença
no mundo ibero-americano (1750-1890)

te de expectativa”? Na resposta a estas questões, Koselleck assinala, no


processo de construção da semântica histórica da modernidade, quatro
exigências básicas de novo vocabulário, social, político e histórico: a
temporalização, a ideologização, a politização e a democratização. Po-
rém, como bem sublinham os organizadores deste livro, nem sempre são
sincronamente documentáveis estas quatro condições nos processos ana-
lisados na era das revoluções no mundo ibero-americano.

A mudança conceptual no campo da História intelectual e das ideias


é também valorizada, tendo em atenção o contributo de Quentin Skinner.
O historiador de Cambridge prefere uma linha mais analítica e contex-
tualista para explicar mudanças de linguagem, partindo da fixação lexi-
cográfica consagrada nos dicionários. Ao estudar as técnicas, os motivos
e o impacto das mudanças conceptuais valoriza também a utensilagem
retórica, aquilo a que chama rethorical redescription, que consiste em
usar relatos diferentes para descrever uma mesma situação, recorrendo a
certas palavras e a certos conceitos que, pelo seu impacto social, instau-
ram novas interpretações e se impõem como guias de compreensão de
outros discursos. A ideia de um léxico cultural de base conceptual ilumi-
na, assim, numa outra perspetiva, o horizonte compreensivo da História
intelectual, dado que os usos da linguagem não são desligados da inten-
cionalidade dos autores e dos efeitos que os seus discursos produzem.

Feitas estas prevenções, importa perceber como se articulam as nar-


rativas que compõem este livro e, antes disso, como se classificam os
campos que arrumam essas narrativas, tendo em conta que elas são con-
truídas na base da preponderância de certos conceitos.

As questões relacionadas à classificação e à nomeação preenchem


a primeira parte da obra. Os três ensaios, da autoria, respetivamente, de
Fátima Sá e Melo, Guilherme Pereira das Neves e Javier Fernández Se-
bastián revestem um caracter problematizador e sinalizam bem a abran-
gência do conceito mutável de identidade que, como explica Fátima Sá e
Melo Ferreira, começa por conotar, no século XVIII, aquilo que é similar,
por exclusão do que é diferente, para, cem anos mais tarde, e segundo o

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Ana Cristina Araújo

Dicionário de Moraes Silva, traduzir uma forma de autorrepresentação,


cujo significado é expresso nestes termos: “Identidade pessoal: persis-
tência da consciência que um indivíduo tem de si mesmo, consciência
que uma pessoa tem de si”(p.28)3. A este respeito, Fátima Sá e Melo,
salienta, com muita clareza, que essa definição de identidade começa por
ser fixada, primeiro num dicionário espanhol de 1855, acabando por ser
consagrada pela lexicografia portuguesa em 1881. Logo a seguir, coloca
o problema da formulação do conceito de identidade, na primeira e na
terceira pessoa.

De fato, no Antigo Regime, na ausência de uma perspetiva individu-


alista, fundada no autorreconhecimento do poder e da vontade dos indi-
víduos, as categorias do direito, como explica António Manuel Hespanha,
fixavam, numa base particularista e corporativa, a visão do todo social.
Nos umbrais das revoluções liberais, o nós identitário, forjado no mundo
ibero-americano, não se desfaz de um dia para o outro dos traços orgâni-
cos e particularistas do passado colonial. Esses traços são bem evidentes
no estudo de Ana Frega sobre a revolução artiguista de 1810-1820 e no
ensaio de Lúcia Bastos Pereira das Neves que analisa “antigas aversões”
reconstruídas no decurso do processo de independência entre ser portu-
guês e ser brasileiro ou ter direito a ser brasileiro, por lei de 1823. Como
bem sublinha a autora, apesar das persistências sociais e culturais, o dis-
curso político da Independência e em defesa da Constituição contribuiu
para reconfigurar a sociedade brasileira pós-Independência, apontando
para uma vaga identidade, forjada na variedade de povos e de raças que
compunham a população brasileira.

A partir de 1822, para firmar a condição de brasileiro, era tão im-


portante ter nascido no Novo Mundo, como partilhar o sentimento de um
destino comum, ou seja, estar ligado a uma unidade de afetos, aspecto
revelado, desde logo, na antroponímia. Não por acaso, depois da Inde-
pendência, os pernambucanos e os baianos recorreram frequentemente
à troca de nomes, forma simbólica de cunhar uma nova identidade, mais
3 – Dicionário da Lingua Portugueza. 7ª ed. Melhorada e acrescentada. Lisboa: Typo-
grafia de Joaquim Germano de Souza Neves, t. 1, 1877, p. 28.

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Linguagens da identidade e da diferença
no mundo ibero-americano (1750-1890)

fiel a antepassados míticos ou lendários como os Montezuma, ou mais


identificada com a fauna brasileira (Cabra-Bode, Jacaré Bem-te-vi, etc.)
ou, ainda, evocativa da origem da população negra reduzida à escravatu-
ra (Caramuru, Congo, Assuá, etc.). Estes traços de autorreconhecimen-
to foram objeto da retórica anti-brasileira do jornal baiano Espreitador
Constitucional, favorável à causa portuguesa, que lamentava, em 1822,
que “os netos de Portugal” – estabelecidos no Brasil – abandonassem os
sobrenomes dos seus antepassados para adotarem orgulhosos os de “Ca-
ramurus, Tupinambás, Congo, Angola, Assuá” e outros.

A linguagem fixa traços fortes da imagem que se tem dos outros,


como se vê. Portanto, é sempre um veículo privilegiado para expressar
diferenças e classificar pessoas. A questão que, mais uma vez, se coloca
é a da adequação das classificações e marcas das linguagens pretéritas
às classificações e conceitos do historiador. Nas palavras de Javier Fer-
nández Sebastián, que assina um esclarecedor capítulo de cunho mais
teórico, o problema das classificações conceptuais reside em saber se é
razoável usar retrospectivamente conceitos e categorias atuais que não
existiam numa determinada época para classificar e dar sentido às lingua-
gens do passado.

Evitando os perigos de uma utilização ideológica do conceito de


identidade, este “macroconceito”, na acepção de Javier Fernández Se-
bastián, entrou definitivamente na agenda das ciências sociais e forma,
com outros conceitos, uma espécie de galáxia significante. O seu campo
semântico convoca, todavia, distinções jurídicas, étnicas, políticas, socio-
económicas e ideológicas. Assim, e apreciando cada contexto histórico
focado neste livro, não parece ambíguo ou equívoco o uso do conceito de
identidade associado a classes, a etnias e a territórios.

Dois estudos inseridos neste livro, documentam este ponto de vista.


O primeiro remete ao enfrentamento da escravatura negra e da emigração
branca em Cuba ao longo do século XIX. Como explica Consuelo Naran-
jo Orovio, o ideal de cubanidade condensa elementos culturais e étnicos
patentes nas linguagens de identidade insular, em que o estigma negativo

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Ana Cristina Araújo

e o medo do negro se combinam com a atração pelo discurso civilizacio-


nal dos reformistas criolos (1830-1860). Sintomaticamente, o binômio
civilização versus barbárie aparece também associado à forma como são
percecionados os afrodescendentes em Buenos Aires, entre 1810 e 1853-
60, coincidindo com o fim da escravatura. Segundo Magdalena Candioti,
num primeiro momento, as diferenças físicas, morais e culturais atribu-
ídas aos afrodescendentes limitam a sua participação política. No con-
texto da pós-revolução, negros e pardos são definidos como os ‘outros’
do novo corpo soberano, e excluídos da cidadania insaturada pela nova
república, porque a abstração requerida pelo conceito de cidadania iguali-
tária ou tendencialmente igualitária colidia com as marcas impressas pela
natureza e pela cultura herdadas da colonização espanhola. Formalmente,
a partir dos anos 20 do século XIX, os textos legais não estabelecem
reservas especiais ao sufrágio dos negros libertos, contudo persistem as
representações estigmatizadas sobre a negritude, impedindo, na prática,
a consagração plena da cidadania política. Esse tipo de exclusão viria a
ser ideologicamente suportado pelas linguagens cientificistas da segunda
metade do século XIX, inspiradas no positivismo e no darwinismo so-
cial. A visão evolucionista da sociedade, assente na constituição física,
na hierarquia das raças e, consequentemente, na superioridade do homem
branco, acabou, assim, por complementar, com outros argumentos, o bi-
nómio civilização/ barbárie constitutivo das identidades em construção
na Ibero-América.

De forma singular, esta visão antinômica civilização/ barbárie é in-


dissociável das distinções gentílicas da nova entidade política e cultural
nascida com a revolução Bolivariana, ajudando a forjar o mito da nação
mista criolla na Venezuela, tema tratado por Roraima Estaba Amaiz.A
uma escala transnacional – e este é também um dado a destacar neste li-
vro –, o desenvolvimento do conceito de raça no mundo latino-americano
está intimamente associado com o aparecimento do panhispanismo, que,
de certo modo, retomou, numa perspetiva expansionista, a autopercepção
etnocêntrica e neocolonial dos países de matriz hispânica da América do

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Linguagens da identidade e da diferença
no mundo ibero-americano (1750-1890)

Sul, conforme detalha David Marcilhacy no capítulo intitulado “El Pa-


nhispanismo y el mito de la raza” .

O tópico da raça tem, como se percebe, ressonâncias fortes e remete,


a cada passo, para a porosidade entre discursos, ideologias e linguagens
vulgares ou de uso corrente. Como bem sublinha Ana Maria Pina, no ca-
pítulo intitulado “A Raça dos Portugueses”, o conceito de raça, entendido
em termos biológicos, é tardio. Antes do século XIX, andava associa-
do à pecuária e era também usado para identificar linhagens, nações ou
povos. No século XIX, ganha uma conotação biologista e essencialista,
porque se aplica à classificação de tipos humanos, distinguidos pela sua
origem, cor de pele e características físicas. Para esta mutação, muito
contribuíram as teses racistas e poligenistas de Gobineau, autor do Ensaio
sobre a Desigualdade das Raças Humanas (1855), bastante divulgado
na época, os tratados de Darwin – A Evolução das espécies (1859) e a
Descendência do homem e a seleção sexual (1871) – e também as teses
antropométricas de Paul Broca, fundador da Sociedade Antropológica de
Paris. O eco dessas influências em Portugal é percetível em autores como
Teófilo Braga, Júlio Vilhena e outros nomes menos conhecidos. Sutil-
mente, insinua-se na linguagem artística e na literatura, nomeadamente
em Eça de Queirós e Ramalho Ortigão. E, se antes deles, Almeida Gar-
rett e Alexandre Herculano haviam sinalizado as ideossincracias da raça
portuguesa, foi, porém, Oliveira Martins quem melhor exprimiu a ideia
da miscigenação de raças na raiz do ser português. Oliveira Martins esta-
va genuinamente interessado em compreender a originalidade dos povos
ibéricos e a originalidade da civilização que se desenvolveu, ao longo de
séculos, na Península Ibérica, como muito bem assinala Sérgio Campos
Matos no capítulo intitulado Civilização Ibérica: génese e fortuna de um
conceito. A História da Civilização Ibérica, título de uma obra de Oli-
veira Martins, engloba num “nós transnacional”, portugueses, espanhóis
e outros povos de descendência hispânica. Temos, assim, um conceito
totalizante que fixa uma conceção de História, uma visão antropológica
territorializada e uma unidade de experiência com sentido político, social,

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Ana Cristina Araújo

econômico, cultural e moral para ele, Oliveira Martins, e para os seus


contemporâneos portugueses e espanhóis.

O esclarecedor capítulo final de Sérgio Campos Matos convoca a


atenção do leitor para a reflexão em torno da História como instrumento
de identidade, tema tratado por Guilherme Pereira das Neves. Em diálogo
com autores de referência no campo da História conceptual, o autor realça
a ideia de que a História funcionou, desde o século XIX, no Brasil, como
instância compensadora e conservadora de aspirações sociais e políticas
das elites brasileiras. Basta pensar na formação do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro e, sobretudo, no contributo dado pela metanarra-
tiva do historiador Francisco Adolfo de Varnhagen para a construção da
identidade nacional brasileira. Guilherme Pereira das Neves, contudo, vai
mais longe e questiona não só a ideia de História, mas também o lugar
do historiador e dos curricula de História nos liceus e nas universidades
brasileiras, desde os anos 30 do século XX em diante. Refere que, com os
governos de Getúlio Vargas, se dá a criação da USP, em 1934, e se insti-
tucionaliza a formação estadual de professores diplomados em História.
E vem até quase aos nossos dias para pôr em evidência a ideia de que os
maiores sucessos editoriais no campo da História no Brasil pouco devem
à historiografia acadêmica . Entre a ação e o discurso, entre a História que
se faz e a linguagem que dela se apropria para uso público, parece haver
espaço para uma espécie de imaginário alternativo, fantasiado, é certo,
envolvendo numa trama insignificante episódios históricos narrados li-
vremente, mas não totalmente desprovidos de marcas de identidade.

Em síntese, a leitura desta obra é fundamental pelo enfoque transna-


cional dos seus capítulos e pela perspetiva de História conceptual compa-
rada que preside à reavaliação dos processos e linguagens de identidade e
de alteridade forjados no espaço ibero-americano, especialmente, no de-
curso do século XIX. Sendo tributário dos caminhos de pesquisa abertos
pelo Dicccionario político y social del mundo ibero-americano, dirigido
por Javier Fernández Sebastián, este livro concita também outros estudos,
quiçá diferentes, mas igualmente indispensáveis para a compreensão das

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Linguagens da identidade e da diferença
no mundo ibero-americano (1750-1890)

ideias e dos nexos sociais e culturais que presidiram à constituição e à


renovação política dos territórios independentes ibero-americanos.

Texto apresentado em maio/2019. Aprovado para publicação em ju-


nho/2019.

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As duras cadeias de hum governo subordinado:
poder e sociedade na Paraíba colonial

283

UMA RELEITURA DA ANEXAÇÃO

José Inaldo Chaves Júnior. As duras cadeias de hum governo


subordinado: poder e sociedade na Paraíba colonial. Curitiba:
Editora CRV, 2017, 207 p.
Leonardo Paiva de Oliveira1

As duras cadeias de hum governo subordinado: poder e sociedade


na Paraíba colonial foi um livro publicado, em 2017, por José Inaldo
Chaves Júnior. Esse trabalho foi resultado de sua dissertação de mestrado
desenvolvida ao longo dos anos de 2011 e 2013 e, segundo o próprio
autor, o que o instigou a desenvolver essa pesquisa foi a necessidade de
uma revisão na interpretação dominante da historiografia paraibana com
fortes sentimentos nativistas sobre o processo de anexação dessa capita-
nia a Pernambuco. Predominava, até então, a visão de que o século XVIII
paraibano se resumia a uma luta contra a opressão dos governadores de
Pernambuco e de como a anexação tinha sido desastrosa para a capitania.
Incomodado com essa narrativa, o autor procurou apontar que essa rela-
ção de subordinação não implicou necessariamente contrariedades entre
os habitantes desses lugares, mas que existiam diversas relações de coo-
peração, ao invés de resistência, demonstrando o quão mais complexo é o
entendimento desse fenômeno.

É importante chamar atenção para esse aspecto, pois, ao se estudar


a questão das hierarquias espaciais e, consequentemente, sobre o signifi-
cado dos processos de anexação das Capitanias do Norte a Pernambuco,
não se pretende fazer uma análise, demonstrando como é ruim ser con-
siderada uma capitania anexa ou, ao contrário, querendo mostrar como
Pernambuco era importante e superior frente às demais, por isso foi a
capitania responsável pela “tutela” das outras. O que se pretende, com
esse tipo de análise, assim como muito bem fez Inaldo Chaves Júnior,

1  –  Doutorando em História Política – UERJ. Bolsista CAPES.

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Leonardo Paiva de Oliveira

é entender a dinâmica governativa por meio dessas ações dirigidas pela


Coroa portuguesa e refletida nos agentes governativos e nos habitantes
dessas capitanias. Não se trata de afirmar que uma é mais importante que
a outra, mas sim que existia uma configuração territorial política que es-
pelhava uma concepção social/institucional de Antigo Regime.

No que diz respeito às influências teórico-metodológicas presentes


nesse trabalho, o autor fez uso principalmente dos conceitos de Redes
e de Grupos Sociais, baseados nos estudos de John A. Barnes2 e Fredrik
Barth3, utilizando a aplicabilidade deles para o entendimento das relações
entre as elites locais da capitania da Paraíba com as de Pernambuco, bem
como as conexões feitas pelos agentes régios em suas trajetórias adminis-
trativas. Um aspecto que vale destacar sobre a formação do autor e que
reflete diretamente no seu livro é que ele fez mestrado e doutorado na
Universidade Federal Fluminense, e muito de suas ideias desenvolvidas
possuem afinidades teórico-metodológicas com as obras produzidas pelo
grupo Antigo Regime nos Trópicos, que possui bastante influência nesta
instituição. Dessa forma, como Michel de Certeau4 bem destacou, toda
produção histórica está inserida em um lugar que influencia diretamente
no resultado da obra, e isso é possível observar nesse livro.

Com relação à estrutura geral, o livro está dividido em quatro capítu-


los, sendo o primeiro deles intitulado “A capitania da Paraíba: as conquis-
tas e o modelo urbanístico português”. Nesse capítulo, o autor procurou
desenvolver os aspectos históricos do início do processo colonizador na
capitania, apontando as motivações e os caminhos percorridos pela Coroa
e pelos demais agentes. Dois foram os principais motivos do movimento
de conquista das capitanias ao norte de Itamaracá: a defesa da empre-

2  –  BARNES, J. A. Networks and political process. In: CLYDE MITCHELL, J. (Ed.)


Social networks in urban situations. Analyses of personal relationships in central África
towns. Manchester: Manchester University Press, 1969.
3  –  BARTH, Fredrik. Models of social organization (I, II e III). In: Process and form
in social life: select essas of Fredrik Barth. London, Boston, Herley, Routledge e Kegan
Paul, 1981.
4 – CERTEAU, Michel de. A Operação Historiográfica. In: ___. A Escrita da História.
Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982, p. 65-109.

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As duras cadeias de hum governo subordinado:
poder e sociedade na Paraíba colonial

sa açucareira, que se via ameaçada pelos franceses e pelas suas alianças


com os indígenas daquela região; e a necessidade de expansão da elite
pernambucana em busca de novas áreas de reprodução social e econômi-
ca. Apesar do recorte temporal do autor ser a segunda metade do século
XVIII, ele fez esse recuo para a conquista e para a consolidação territo-
rial da Paraíba ao longo dos séculos XVI e XVII para poder subsidiar a
reflexão sobre a composição social das elites das Capitanias do Norte e
demonstrar como surgiram as relações entre esses grupos para além de
Pernambuco, o que reforça a argumentação dele no que diz respeito à
necessidade de uma maior problematização interpretativa sobre a relação
entre as capitanias da Paraíba e de Pernambuco.

Considero esse primeiro capítulo essencial para o entendimento e


o fortalecimento da ideia desenvolvida pelo autor. No entanto, no qua-
dro geral do livro, ele se mostra um pouco desconectado em relação aos
demais, como em alguns momentos quando o autor fala das sesmarias,
mas sem associá-las diretamente a famílias, em específico, que estariam
envolvidas nesses grupos sociais – fator este que ele desenvolve melhor
no próximo capítulo – ou quando narra o processo de invasão holandesa
à capitania. Ele trouxe elementos importantes para a reflexão, todavia,
faltou uma maior sincronia em sua narrativa com o restante do livro.

O segundo capítulo do livro se intitula “A interiorização da coloni-


zação e a administração do território”. Neste capítulo, o autor demonstra
os processos de ocupação territorial no interior da capitania da Paraíba,
apontando algumas importantes e influentes famílias envolvidas nessa
etapa que consolidaram o seu poder para as próximas gerações. Em res-
posta ao crescente poder de algumas famílias, a Coroa portuguesa teria
iniciado uma maior intervenção nas estruturas da administração da capi-
tania, criando novos julgados, novas circunscrições militares e, conse-
quentemente, mais postos oficiais . No entanto, o desenvolvimento dessas
malhas administrativas foi acompanhado pela simbiose entre essas prin-
cipais famílias e as novas formas oficiais de exercer poder e influência,
fazendo com que elas se tornassem ainda mais poderosas.

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Leonardo Paiva de Oliveira

Além disso, o autor ainda trata como a complexificação dessas insti-


tuições acarretava, muitas vezes, conflitos jurisdicionais entre os agentes
régios na tentativa de manter um maior controle sobre o poder local da
capitania, tendo destaque os conflitos entre o capitão-mor Francisco Pe-
dro de Mendonça Gorjão e o ouvidor Tomás da Silva Pereira, envolvendo
as obras da fortaleza do Cabedelo.

No primeiro momento desse capítulo, senti falta de um maior de-


senvolvimento do processo de interiorização com destaque nas famílias
mais importantes envolvidas, pois elas ainda estariam presentes, sendo
uma das “principais das terras” ao longo do século XVIII, como mos-
traram Carmen Alveal e Kleyson Barbosa5, merecendo, portanto, a meu
ver, mais destaque na análise do autor, pois, assim, daria a entender, pelo
próprio título do capítulo, que seria feito e daria uma maior coesão na
continuidade da discussão do primeiro capítulo. Para isso, o autor poderia
ter usado o banco de dados da Plataforma Sesmarias do Império Luso
Brasileiro (SILB), que consiste em um conjunto de informações referen-
tes às sesmarias concedidas pela Coroa portuguesa, possuindo mais de
1.100 sesmarias registradas somente na Paraíba. Os próprios Bandeira de
Melo, família importante do poder local daquela capitania, que será alvo
de análise do autor no terceiro capítulo, poderia ter sido colocada aqui
também, fazendo uma ligação ainda maior entre as partes do livro.

O terceiro capítulo intitulado de “Quando acaba quem governa, até


as pedras tramam contra: trajetórias administrativas e culturas políticas”
trata de uma análise mais detalhada de um importante personagem nessa
história, que foi Jerônimo José de Mello e Castro, governante da capitania
ao longo de quase todo o período em que ela estava anexada a Pernam-
buco. Após uma breve recapitulação genealógica da família de Jerônimo
José de Mello e Castro, destacando membros que ocuparam importan-
tes postos como agentes da Coroa portuguesa, o autor trabalhou com as

5  –  ALVEAL, Carmen; BARBOSA, Kleyson Bruno Chaves. A legitimidade da graça:


os impactos da tentativa de reforço da política sesmarial sobre as terras da Casa da Torre
na capitania da Paraíba (Século XVIII). Topoi (Online): Revista de História, v. 16, p. 78-
100, 2015.

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As duras cadeias de hum governo subordinado:
poder e sociedade na Paraíba colonial

principais causas de desentendimentos do governante da Paraíba com os


governadores de Pernambuco e com os poderes locais, sendo o primeiro
caso mais focado na questão das nomeações das tropas militares, com
várias reclamações por parte Mello e Castro sobre uma suposta usurpação
de sua jurisdição pelos governadores da capitania-geral, tendo destaque
José Cezar de Menezes.

Ao discutir, primeiramente, os problemas enfrentados por Mello e


Castro a respeito das nomeações de postos militares na Paraíba, o autor fez
uma escolha muito coerente, pois esse tipo de poder refletia diretamente
na influência desses agentes régios nas tramas locais, uma vez que a pos-
sibilidade de escolher determinadas famílias para receberem reconheci-
mento e poder oficial dotava o governante de uma influência importante,
no entanto, não a possuía, pois os governadores de Pernambuco estavam
fazendo isso em seu lugar. Sem esse tipo de poder e, aparentemente, com
sua insatisfação de não ser devidamente reconhecido como ele se achava
merecedor, Mello e Castro se envolveu em intensos conflitos com a elite
local da Paraíba, principalmente, com a família Bandeira de Mello, que
culminaria em uma tentativa de assassinato a sua pessoa. Neste momento,
o autor volta a fazer referência e uso de um dos conceitos chaves em seu
trabalho, que foi o de grupo social, demonstrando sua aplicabilidade.

O quarto e último capítulo do livro se intitula “Porque como tem


Pernambuco tão chegado: economia e poderes locais na Paraíba”. Nele,
o personagem principal do capítulo anterior continua como destaque, en-
volvido em outros conflitos, dessa vez, mais focados em questões comer-
ciais relacionando às capitanias da Paraíba e de Pernambuco. Nesta parte,
o autor volta a analisar os laços em comum que essas duas capitanias
possuíam no que diz respeito às famílias e aos negócios desenvolvidos,
dando exemplos de lugares onde as fazendas de açúcar e de outros gêne-
ros escoavam suas produções direto para Recife, sem passar pela capital
paraibana, o que implicava uma perda monetária significativa, motivo de
reclamação por parte de Jerônimo José de Mello e Castro. O autor destaca
que houve certos momentos em que agentes administrativos e camarários
daquela capitania tentaram impedir o escoamento dos produtos para a

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Leonardo Paiva de Oliveira

capitania vizinha. No entanto, apesar do esforço de alguns, no geral, o


quadro encontrado durante todo o período colonial foi o de preferência,
por parte de uma parcela significativa de produtores, de negociarem dire-
tamente com Recife.

Para inserir esses acontecimentos em um contexto mais geral, fez


uma breve recapitulação das mudanças ocorridas no período pombalino,
principalmente, no que diz respeito aos aspectos fiscais e econômicos.
Contudo, com o desenvolvimento desse elemento, ficou faltando uma co-
nexão mais clara, ou uma organicidade, entre a discussão inicial e esse se-
gundo momento, dando a impressão que se tratava de uma outra análise,
que foi colocada no meio da discussão sem ter uma relação direta, apesar
de claramente ter uma ligação importante não apenas com o capítulo,
mas com o trabalho como um todo. Tal fato poderia ser resolvido com
algumas pequenas mudanças na narrativa. Além disso, acredito que vale
destacar algo que tem relação ao período pombalino, mas não se limitou
a ele, que diz respeito a uma expressão utilizada algumas vezes ao longo
do livro bastante significativa que, a meu ver, poderia ter sido melhor
explorada, que foi a “Política das capitanias anexas”. O trabalho do autor
demonstra, na prática, um pouco do que foi essa política, porém, senti
falta de uma explicação mais conceitual do que poderia ser isso, deixando
desvalorizada uma ideia com grande potencial.

Partindo de uma inquietação por parte do autor sobre o discurso his-


toriográfico dominante até então, esse livro certamente é uma referência
obrigatória para todos aqueles que pretendem entender as dinâmicas po-
líticas, econômicas e sociais das Capitanias do Norte, apesar de seu foco
ser apenas a Paraíba. É, nesse sentido, uma grande contribuição para a
renovação da história política do período colonial desses lugares que vêm
ganhando cada vez mais espaço nos debates historiográficos e representa
um avanço significativo nos estudos dos processos de anexação das capi-
tanias subordinadas e, consequentemente, das hierarquias espaciais.

Texto apresentado em abril/2019. Aprovado para publicação em ju-


nho/2019.

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NORMAS EDITORIAIS
• As contribuições deverão ser inéditas e de trabalhos originais do autor, não podendo ter sido publicadas
integralmente ou em parte, tanto impressa ou eletronicamente, ou já submetidas a outras revistas. Os
textos podem ser escritos em português, inglês, francês, espanhol ou italiano.
• Exceto os trabalhos dirigidos à seção Resenhas ou Balanços Bibliográficos, os autores deverão,
obrigatoriamente, apresentar títulos e resumos nos idiomas português e inglês, independentemente do
idioma do texto original, e caso este não esteja em português ou inglês, acrescentar resumo na língua
original, não podendo ultrapassar 250 (duzentos e cinquenta) palavras, seguidas das palavras-chave,
mínimo 3 (três) e máximo de 6 (seis), representativas do conteúdo do trabalho, também em português e
inglês, e no idioma original, quando for o caso.
• Documentos enviados para publicação devem estar transcritos e assinalados o códice ou indicação
arquivística equivalente de onde foram copiados, acompanhados de uma introdução explicativa.
• A Revista reserva-se a oportunidade de publicação de acordo com o seu cronograma ou interesse,
notificando ao autor a sua aprovação ou a negativa para a publicação. Não serão devolvidos originais.

APRESENTAÇÃO DOS TEXTOS


• Página de rosto: todo artigo deverá ter uma página de rosto com o título, nome completo do autor e
instituição de origem a que pertence. O rodapé da página deverá mencionar o endereço completo e o
e-mail do autor, a quem se encaminhará a correspondência. Somente nesta página constará a identificação
do autor, para fins de sigilo.
• Os textos deverão ser apresentados em formato A4, margens 2,5cm, entrelinha de 1,5cm, fonte Times
New Roman corpo 12, e numeração consecutiva. Deverá ser utilizado o editor de texto Microsoft Word
ou compatível. Caso haja imagens, tabelas ou gráficos, deve haver a identificação no texto os locais das
figuras ou outras formas de ilustração. As imagens deverão ser escaneadas em 300 dpi no formato jpg e
dimensionadas no formato de aproximadamente 5 x 5 cm..
• As traduções, de preferência inéditas, deverão estar acompanhadas de autorização do autor e do
respectivo original do texto.
• As notas deverão ser colocadas em rodapé. Não deverá haver bibliografia no final do texto.
• Normas para as notas de rodapé:
• Livro: SOBRENOME, Nome. Título: subtítulo. Tradução. Edição. Cidade: Editora, ano, p ou pp.nnp.
• Capítulo ou parte de livro: SOBRENOME, Nome. Título do capítulo. In: SOBRENOME, Nome. Título
do livro (em itálico): subtítulo. Tradução. Edição. Cidade: Editora, ano, p. nn-nn.
• Artigo em periódico: SOBRENOME, nome. Título do artigo. Título do periódico (em itálico), Cidade:
Editora, v. nn, n.nn, p. nn-nn, ano.
• Trabalho acadêmico: SOBRENOME, Nome. Título (em itálico): subtítulo. Tese (Doutorado em...) -
Instituição. Cidade, ano, nnnn.
• Texto obtido na internet: SOBRENOME, Nome. Título. Data (se houver). Disponível em: www......
Acesso em: dd.mm.aa.

Somente serão aceitos os trabalhos encaminhados de acordo com as normas


acima definidas.

Endereço para correspondência:


Revista do IHGB/IHGB
E-mail: revista@ihgb.org.br
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
AUTHOR GUIDELINES
1. The Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro is a scientific publication, focusing on the
diffusion of historical knowledge, as well as other subjects, foremost when related to Brazilian Studies.
2. The management organs of the Revista are the Editorial Board, the Advisory Board and the Editorial
Committee.
3. The Advisory Board is responsible for the evaluation of the contributions submitted for publication.
4. The publication of each and every collaboration will depend on the compliance to editorial rules and on
the evaluation of the Editorial Board, the Editorial Committee and/or advisors ad hoc. The articles are
submitted to blind peer-review process and, in order to ensure its quality, authors must delete from their
manuscripts all information that might disclose the text’s authorship.
5. The concepts expressed in what is published are entirely the authors’ responsibility.
6. The texts will be published through the authors’ grant of publication copyright to the Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, through the e-mail indicated below.
7. The Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro publish the following kinds of contributions:
7.1 Articles include analytical texts or essays which are the result of studies and researches
concerning themes that are of interest to the R.IHGB (up to ten thousand words).
7.2 Notifications are destined to the publication of brief interventions, made by members or guests in
the sessions of the IHGB (up to four thousand words).
7.3 Research Notes focuses on preliminary reports and partial results of ongoing investigations (up to
five thousand words).
7.4 Documents refer to preferably unpublished sources and should come with comments (up to ten
thousand words).
7.5 Bibliography includes any review essay (up to two thousand words, without summary and
abstract).
8. The article’s author will have a fortnight to send the authorization term back since the date R.IHGB
communicates its approval.

EDITORIAL RULES
• Any submission must be the original work of the author that has not been published previously, as a
whole or in part, either in print or electronically, or is soon to be so published. It may be written in
Portuguese, English, French, Spanish or Italian.
• Except works addressed to the section on bibliography, authors must mandatorily present titles
and 
abstracts in Portuguese and English, independently of the language of the original text. If it is not
in Portuguese or English, it will be necessary to add the abstract in the original language as well. The
abstract cannot have more than 250 (two hundred and fifty) words, followed by the minimum of 3 (three)
and the maximum 6 (six) keywords, in English and Portuguese.
• Documents sent to publication have to be transcribed and bring the archival indication from where they
were copied, accompanied by an introduction.
• The R. IHGB limits the opportunity of publication according to its schedule and interest, notifying
the 
approval or disapproval of the publication to the author. The original texts will not be returned.
TEXTS PRESENTATION
• Front page: all articles should come with an unnumered front page, which should state its title, the
author’s / authors’ whole name(s) and institution(s) to which he / she / they belong. A footnote should
mention the complete address and e-mail of the author / authors, to whom any mail will be sent. The
author’s / authors’ identification should not appear anywhere else;
• Texts should be presented in format A4, margins 2,5cm, space between lines 1,5cm, font Times New
Roman size 12, and consecutive numbering of pages. The Microsoft Word text editor or a compatible
one should be used. If there are tables, graphs, images or any other pictures, they should be presented in
the proper place into which they fit. Pictures and images have to be scanned in 300 dpi in format jpg and
approximately dimensioned to 5 x 5 cm;
• Translations, preferably unpublished, should have the author’s authorization and the respective original
text.
• Notes must come at the end of the page. No bibliography should apppear at the end.
• Norms for presenting footnotes:
• Books: LAST NAME, First Name. Title of the book in italics: subtitle. Translation. Edition. City:
Publisher, year, p. or pp.
• Chapters: LAST NAME, First Name. Title of the chapter. In: LAST NAME, First Name (ed.). Title of
the book in italics: subtitle. Edition. City: Publisher, year, p. nn-nn.
• Article: LAST NAME, First Name. Title of the article. Title of the jounal in italics. City: Publisher. Vol.,
n., p. x-y, year.
• Thesis: LAST NAME, First Name. Title of the thesis in italics: subtitle. Thesis (PhD in .....) Institution.
City, year, p. nn-nn.
• Internet: LAST NAME, First Name. Title. Available at: www....., consulted dd.mm.yy.
• Originals may only be submitted to the e-mail below.

Only the texts presented accordingly to the rules defined above will be
accepted.

Contact Adress :
Revista do IHGB/IHGB
E-mail: revista@ihgb.org.br
REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO

Informações básicas
Circulando regularmente desde 1839, a Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro é uma
das mais longevas publicações especializadas do mundo ocidental. Destina-se a divulgar a produção
do corpo social do Instituto, bem como contribuições de historiadores, geógrafos, antropólogos,
sociólogos, arquitetos, etnólogos, arqueólogos, museólogos e documentalistas de um modo geral.
Possui periodicidade quadrimestral, sendo o último número de cada ano reservado ao registro da vida
acadêmica do IHGB e demais atividades institucionais. A coleção completa da Revista encontra-se
disponível para consulta on line, no endereço: http://www.ihgb.org.br/rihgb.php
A abreviatura de seu título é R. IHGB, que deve ser usada em bibliografias, notas de rodapé e em
referências e legendas bibliográficas.
Fontes de indexação
• Historical Abstract: American, History and Life
• Ulrich's International Periodicals Directory
• Handbook of Latin American Studies (HLAS)
• Sumários Correntes Brasileiros
• Classificação dos veículos utilizados pelos programas de pós-graduação para a divulgação da
produção intelectual de seus docentes e alunos/Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível
Superior - QUALIS/Capes - conceito B1.
Patrocinadores
A publicação recebe apoio do seguinte órgão:
• Ministério da Cultura
Endereço
e-mail: revista@ihgb.org.br

Some basic information


The Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro is published regularly since 1839. It is one
of the oldest western world specialized publications. It aims at publishing the productions of the
members of the Institute, as well as the contributions of historians, geographers, anthropologists,
sociologists, architects, ethnologists, archaeologists, museologists and documentalists in general. It
is published every for four, but the last publication of each year is dedicated to the registry of the
Institute's academic life and other institutional activities. The magazine's complete collection is
available for online consultation, at the site: http://www.ihgb.org.br/rihgb.php
The abbreviation of its title is R. IHGB. It has to be used in bibliographies, footnotes and
bibliographic references and subtitles.
Index sources
• Historical Abstract: American, History and Life
• Ulrich's International Periodicals Directory
• Handbook of Latin American Studies (HLAS)
• Brazilian Current Briefs
• Classification of the vehicles used by Brazilian post-graduate programs for the divulgation of
the intellectual production of teachers and students – QUALIS/Capes – grade B1.
Sponsors
The publication receives support from the following entity:
Ministério da Cultura
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e-mail: revista@ihgb.org.br

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