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Rihgb 2019 Numero 0479

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ISSN 0101 - 4366

479

REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO


Hoc facit, ut longos durent bene gesta per annos.
Et possint sera posteritate frui.

2019 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180, n. 479, pp. 9-250, jan./abr. 2019.
REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO

Informações básicas
Circulando regularmente desde 1839, a Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro é uma
das mais longevas publicações especializadas do mundo ocidental. Destina-se a divulgar a produção
do corpo social do Instituto, bem como contribuições de historiadores, geógrafos, antropólogos,
sociólogos, arquitetos, etnólogos, arqueólogos, museólogos e documentalistas de um modo geral.
Possui periodicidade quadrimestral, sendo o último número de cada ano reservado ao registro da vida
acadêmica do IHGB e demais atividades institucionais. A coleção completa da Revista encontra-se
disponível para consulta on line, no endereço: http://www.ihgb.org.br/rihgb.php
INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO A abreviatura de seu título é R. IHGB, que deve ser usada em bibliografias, notas de rodapé e em
Considerado de utilidade pública: referências e legendas bibliográficas.
Estadual: Lei nº 1.068, de 14-9-1966 (Diário Oficial do Estado, parte I, de 20-9-1966) Fontes de indexação
Federal: Decreto nº 61.251, de 30 de agosto de 1967 • Historical Abstract: American, History and Life
• Ulrich's International Periodicals Directory
Av. Augusto Severo, 8, Rio de Janeiro, CEP 20021-040 • Handbook of Latin American Studies (HLAS)
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Jornal do IHGB. Endereço
e-mail: revista@ihgb.org.br
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estadistas e historiadores, como José Bonifácio, o marquês de Olinda, Varnhagen, Cotegipe, o
conde d´Eu, o visconde de Ouro Preto, Prudente de Morais, Rodrigues Alves, Epitácio Pessoa,
Manuel Barata, Wanderley Pinho, Hélio Viana e Jackson de Figueiredo, entre outros.
A Biblioteca, por compra, doações e permutas, ultrapassa de 500 mil volumes, de grande
interesse para os estudos brasileiros. Some basic information
A Mapoteca dispõe de cerca de 12 mil cartas geográficas, referentes, sobretudo, ao The Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro is published regularly since 1839. It is one
território brasileiro. of the oldest western world specialized publications. It aims at publishing the productions of the
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mortuárias, retratos e lembranças pessoais, exibe hoje peças, como a espada de campanha de sociologists, architects, ethnologists, archaeologists, museologists and documentalists in general. It
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The publication receives support from the following entity:
Ministério da Cultura
Address
e-mail: revista@ihgb.org.br
R IHGB
a. 180
n. 479
jan./abr.
2019
INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO
DIRETORIA – (2018-2019)
Presidente: Arno Wehling
1º Vice-Presidente: Victorino Chermont de Miranda
2º Vice-Presidente: Affonso Arinos de Melo Franco
3º Vice-Presidente: João Maurício de Araújo Pinho
1º Secretário: Lucia Maria Paschoal Guimarães
2º Secretário: Maria de Lourdes Viana Lyra
Tesoureiro: Fernando Tasso Fragoso Pires
Orador: Alberto da Costa e Silva
CONSELHO FISCAL
Membros efetivos: Alberto Venâncio Filho, Luiz Felipe de Seixas Corrêa e Ma-
rilda Correia Ciribelli
Membros suplentes: Marcos Guimarães Sanches, Pedro Carlos da Silva Telles e
Roberto Cavalcanti de Albuquerque

CONSELHO CONSULTIVO
Membros nomeados: Antonio Izaias da Costa Abreu, Armando de Senna
Bittencourt, Carlos Wehrs, Célio Borja, Cybelle Moreira de
Ipanema, Esther Caldas Bertoletti, Maurício Vicente Ferrei-
ra Júnior e Miridan Britto Falci.

DIRETORIAS ADJUNTAS
Arquivo: Jaime Antunes da Silva
Biblioteca: Claudio Aguiar
Cursos: Antonio Celso Alves Pereira
Iconografia: Pedro K. Vasquez
Informática e Dissem. da Informação: Carlos Eduardo de Almeida Barata
Museu: Vera Lucia Bottrel Tostes
Patrimônio: Guilherme de Andrea Frota
Projetos Especiais: Mary del Priore
Relações Externas: Maria Beltrão
Relações Institucionais: João Mauricio de A. Pinho
Coordenação da CEPHAS: Maria de Lourdes Viana Lyra e Lucia Maria Paschoal Gui-
marães (subcoord.)
Editor do Noticiário: Victorino Chermont de Miranda

COMISSÕES PERMANENTES
ADMISSÃO DE SÓCIOS: CIÊNCIAS SOCIAIS: ESTATUTO:
Alberto da Costa e Silva Antônio Celso Alves Pereira Antonio Celso Alves Pereira
Alberto Venancio Filho Cândido Mendes de Almeida Alberto Venancio Filho
Carlos Wehrs José Murilo de Carvalho Célio Borja
Fernando Tasso Fragoso Pires Maria Beltrão João Maurício A. Pinho
Lucia Maria Paschoal Guimarães Maria Cecília Londres Victorino Chermont de Miranda

GEOGRAFIA: HISTÓRIA: PATRIMÔNIO:


Armando de Senna Bittencourt Eduardo Silva Afonso Celso Villela de Carvalho
Cybelle Moreira de Ipanema Guilherme de Andrea Frota Antonio Izaías da Costa Abreu
José Almino de Alencar Lucia Maria Paschoal Guimarães Claudio Moreira Bento
Miridan Britto Falci Marcos Guimarães Sanches Fernando Tasso Fragoso Pires
Vera Lúcia Cabana de Andrade Maria de Lourdes Vianna Lyra Roberto Cavalcanti de Albu-
querque
REVISTA
DO
INSTITUTO HISTÓRICO
E
GEOGRÁFICO BRASILEIRO
Hoc facit, ut longos durent bene gesta per annos.
Et possint sera posteritate frui.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180, n. 479, pp. 9-250, jan./abr. 2019.


Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ano 180, n. 479, 2019.

Indexada por/Indexed by
Ulrich’s International Periodicals Directory – Handbook of Latin American Studies (HLAS) –
Sumários Correntes Brasileiros – Google Acadêmico - EBSCO

Correspondência:
Rev. IHGB – Av. Augusto Severo, 8-10º andar – Glória – CEP: 20021-040 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Fone/fax. (21) 2509-5107 / 2252-4430 / 2224-7338
e-mail: revista@ihgb.org.br home page: www.ihgb.org.br
© Copyright by IHGB
Tiragem: 300 exemplares
Impresso no Brasil – Printed in Brazil
Revisora: Talita Rosetti Souza Mendes
Secretária da Revista: Tupiara Machareth

Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. - Tomo 1, n. 1 (1839) -


Rio de Janeiro: O Instituto, 1839-
v. : il. ; 23 cm

Quadrimestral
ISSN 0101-4366
Ind.: T. 1 (1839) – n. 399 (1998) em ano 159, n. 400. – Ind.: n. 401 (1998) – 449 (2010) em n. 450
(2011)

1. Brasil – História. 2. História. 3. Geografia. I. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Ficha catalográfica preparada pela bibliotecária Maura Macedo Corrêa e Castro – CRB7-1142
CONSELHO EDITORIAL
António Manuel Dias Farinha – Universidade de Lisboa – Lisboa – Portugal
Arno Wehling – Universidade Veiga de Almeida – Rio de Janeiro-RJ – Brasil
Carlos Wehrs – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – Rio de Janeiro-RJ – Brasil
José Murilo de Carvalho – Universidade Federal do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro-RJ – Brasil
Manuela Mendonça – Universidade de Lisboa – Lisboa – Portugal
Maria Beatriz Nizza da Silva – Universidade de São Paulo – São Paulo-SP – Brasil

COMISSÃO DA REVISTA: EDITORES


Eduardo Silva – Fundação Casa de Rui Barbosa – Rio de Janeiro-RJ – Brasil
Esther Caldas Bertoletti – Ministério da Cultura – Rio de Janeiro-RJ – Brasil
Lucia Maria Bastos Pereira das Neves – Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro-RJ-Brasil
Maria de Lourdes Viana Lyra – Universidade Federal do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro-RJ – Brasil
Mary del Priore – Universidade Salgado de Oliveira – Niterói-RJ – Brasil

CONSELHO CONSULTIVO
António Manuel Botelho Hespanha – Universidade Nova Lisboa – Lisboa – Portugal
Fernando Camargo – Universidade Federal de Pelotas – Pelotas-RS – Brasil
Geraldo Mártires Coelho – Universidade Federal do Pará – Belém-PA – Brasil
Guilherme Pereira das Neves – Universidade Federal Fluminense – Niterói-RJ – Brasil
José Marques – Universidade do Porto – Porto – Portugal
Junia Ferreira Furtado – Universidade Federal de Minas Gerais – Belo Horizonte-MG – Brasil
Leslie Bethell – Universidade de Oxford – Oxford – Inglaterra
Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos – Ministério das Relações Exteriores – Brasília-DF – Brasília
Marcus Joaquim Maciel de Carvalho – Universidade Federal de Pernambuco – Recife-PE – Brasil
Maria de Fátima Sá e Mello Ferreira – ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa – Lisboa – Portugal
Mariano Cuesta Domingo – Universidad Complutense de Madrid – Madrid – Espanha
Miridan Britto Falci – Universidade Federal do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro-RJ – Brasil
Nestor Goulart Reis Filho – Universidade de São Paulo – São Paulo-SP – Brasil
Renato Pinto Venâncio – Universidade Federal de Ouro Preto – Ouro Preto-MG – Brasil
Stuart Schwartz – Universidade de Yale-Connecticut – EUA
Ulpiano Bezerra de Meneses – Universidade de São Paulo – São Paulo-SP – Brasil
Victor Tau Anzoategui – Universidade de Buenos Aires – Buenos Aires – Argentina
SUMÁRIO
SUMMARY
Carta ao Leitor 9
I – DOSSIÊ
DOSSIER
A Aclamação de D. João VI – O Rei e o Reino
Reconfigurar a Corte / (re)construir o Estado: 13
o horizonte de expectativas no Brasil do Reino Unido
Reconfiguring the court / (re) building the State: the horizon of
expectations in Brazil of the United Kingdom
Arno Wehling
Historiografia Joanina: confrontos e convergências 49
Historiography on King João VI:
confrontations and convergences
Lucia Maria Paschoal Guimarães
A exaltação da Monarquia na América: 65
D. João e a Aclamação em 1818
The exaltation of Monarchy in America:
D. João and the Aclamation in 1818
Lucia Maria Bastos P. Neves
União dinástica e relações científico-culturais 89
Dynastic Union and Scientific-Cultural Relations
Maria de Lourdes Viana Lyra
“Ao VI, ao grande, ao imortal João”: 101
elogios impressos ao soberano D. João VI
“To the Great and Immortal King”: Printed
Compliments to King D. João VI
Ana Carolina Delmas
A arquitetura efêmera no período Joanino 127
The efemeral architectute at the time of D. João VI
Maria Pace Chiavari
Ordens honoríficas e sociedade: 149
a nobilitação de negociantes na Corte joanina
Honorary Orders and Society: Bestowing Nobility
on Merchants in the Johannine Court
Camila Borges da Silva
A Real Ordem da Torre e Espada 1808-1834: 175
uma Ordem Honorífica Luso-Brasileira
The Royal Order of the Tower and Sword, 1808-1834:
a Portuguese-Brazilian Honorific and Military Order
António Miguel Trigueiros
António Miguel Trigueiros
II – COMUNICAÇÕES
NOTIFICATIONS
Um sábio na Ilha do Governador 209
A wise man in Governor Island
Cybelle Moreira de Ipanema
III – DOCUMENTOS
DOCUMENTS
Um estudo biográfico não publicado sobre 217
o médico-botânico Joaquim Monteiro Caminhoá
An unpublished biographical study about the physician
and botanist Joaquim Monteiro Caminhoá
Alex Gonçalves Varela
IV – RESENHAS
REVIEW ESSAYS
O Cavaleiro Brito e o Conde da Barca: 237
dois diplomatas portugueses e a missão francesa de 1816
Marize Malta
• Normas de publicação 245
Guide for the authors 247
Carta ao Leitor
Em 2018, comemoraram-se os 200 anos da Aclamação de D. João VI
ao trono do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Constituiu-se um
fato inédito no processo histórico do Brasil, que, para além de seu caráter
simbólico, demonstrou a diferença entre o mundo colonial que começava
a ruir e uma nova feição política e econômica que o Reino tomava. Serviu
ainda para reforçar a ascendência do Rio de Janeiro sobre o restante do
país, assim como o peso político da parte brasileira no interior do impé-
rio português. Tais questões orientaram as discussões que repensaram tal
evento, por meio de um Seminário, realizado pelo IHGB e intitulado A
Aclamação de D. João VI no Rio de Janeiro: o Rei e o Reino. Não só se
buscou celebrar a data, por meio da discussão proposta por especialistas
e por estudiosos do Brasil e de Portugal, mas se pretendeu construir uma
memória do acontecimento que trouxesse novas contribuições à historio-
grafia do processo. Investigar práticas políticas e rituais cívicos significa
abrir um leque de possibilidades para se debater as relações da História
com seu passado, além de vislumbrar as articulações simbólicas do po-
der, da sociedade e da cultura na formação do Estado Brasileiro e de suas
repercussões até os dias atuais.
Por conseguinte, os artigos aqui apresentados compõem um dossiê
das reflexões aprofundadas e ampliadas do Seminário. Não se constituem
como uma simples comemoração, sem significado para a memória do
acontecimento histórico, mas como um balanço dessa memória histórica.
O dossiê é iniciado por texto original de Arno Wehling, que propõe
uma análise do horizonte de expectativas no Brasil, entre sua elevação
a Reino Unido em 1815 e os acontecimentos que levaram à sua ruptura
com Portugal, em 1822, demonstrando ainda o papel da Aclamação de
D. João ao longo desse processo. Em seguida, Lucia Guimarães elabora
um balanço crítico sobre o reinado americano de D. João VI, procurando
identificar suas principais vertentes interpretativas, apontando confrontos
e convergências.
Na abordagem da história renovada do político, seguem as contri-
buições de Lucia Bastos Pereira das Neves e de Maria de Lourdes Viana
Lyra. No primeiro trabalho, política e cultura se entrelaçam para se apre-
ender as tensões que se estabeleceram entre as duas partes do Império,
desdobramentos da aclamação realizada nas terras do Reino americano.
No segundo texto, a autora volta sua atenção para demonstrar o Rei, como
defensor do Reino luso, e, depois, como mentor do Reino Unido luso-bra-
sileiro por ele criado. Realça, assim, o alcance da proposta da aclamação
do soberano na parte americana do Império como estratégia em defesa da
própria unidade da Coroa.
Sem abandonar o viés político, mas acrescido de uma perspectiva da
história cultural, cujo principal objetivo é identificar o modo como, em
diferentes lugares e momentos, uma determinada realidade social é cons-
tituída, pensada, dada a ler, nas palavras de Roger Chartier, encontramos
os trabalhos de Ana Carolina Galante Delmas e de Maria Pace Chiavari.
No primeiro texto, Ana Carolina volta-se para a prática do oferecimento
de dedicatórias impressas em um Brasil do início dos oitocentos. Na-
quele momento, as dedicatórias representavam práticas de homenagem,
tornando-se símbolo das relações políticas, apoiadas na hierarquia social
vigente, e das trocas efetuadas em busca por poder e por influência. De-
monstra ainda que a época da aclamação de um soberano, algo inédito
nas Américas, foi espaço de consagração para tais homenagens. Maria
Pace Chiavari propõe uma análise do papel das arquiteturas efêmeras,
especialmente, aquelas projetadas pelos franceses, segundo cânones ne-
oclássicos, como um cenário alegórico que contribuiu para colocar em
evidência a cidade do Rio de Janeiro, transformada em capital do Reino.
A aclamação de D. João VI foi ainda momento fundamental para essa
perspectiva, quando o poder soberano soube explorar o festejo real como
forma de reforçar o poder da Coroa.
As hierarquias sociais e práticas de condecorações e de mercês tam-
bém se fizeram presentes por meio de dois artigos: um, de Camila Borges
da Silva, sobre as ordens honoríficas e a sociedade, analisando a nobi-
litação de negociantes na Corte joanina que direcionavam parte de seu
capital econômico com o objetivo de galgar um lugar social e de prestí-
gio naquela sociedade de feição do Antigo Regime; o outro, de António
Miguel Trigueiros, examina a criação da Real Ordem da Torre e Espada
(1808-1834), que foi criada com o objetivo de ser uma Ordem Honorífica
e Militar luso-Brasileira, que perdurou mesmo após o processo de inde-
pendência do Brasil.
Na parte destinada às Comunicações, em que se divulgam trabalhos
expostos nas sessões da CEPHAS/IHGB, a sócia emérita Cybelle de Ipa-
nema traz uma curiosa informação sobre João Manso Pereira, persona-
gem que viveu entre o século XVIII e XIX e que fabricou louça afamada
com material da Ilha do Governador, pequeno território do município do
Rio de Janeiro.
A seção Documentos apresenta a transcrição de um texto manuscrito
com a biografia do médico-botânico Joaquim Monteiro Caminhoá. Tal
estudo foi localizado na Coleção Claudio Ganns, guardada no Institu-
to Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), sem indicação de autoria.
Nesse documento, encontra-se uma análise sobre a trajetória do cientista
que atuou no Império do Brasil. Ele ainda participou ativamente de diver-
sas instituições e sociedades científicas oitocentistas, bem como publicou
inúmeros artigos e livros no campo da medicina e da botânica.
Finalizando esse número, há a resenha de Marize Malta – De volta
para o futuro... Outras notícias e outros modos de atualizar a Missão Ar-
tística Francesa – sobre o livro de Patricia D. Telles, O Cavaleiro Brito
e o Conde da Barca: dois diplomatas portugueses e a missão francesa de
1816, publicado em Portugal em 2017. Fugindo de uma história oficial,
segundo a resenhista, a autora busca personagens, entendendo-os como
peças de um mosaico de relações, e documentos inéditos que trazem novo
olhar não só sobre os conhecimentos de intelectuais e de cientistas euro-
peus, mas também sobre os elementos que propiciaram a negociação para
a remessa de artistas e de artífices franceses para o Rio de Janeiro.
Aproveitem!

Lucia Maria Bastos P. Neves


Diretora da Revista
Reconfigurar a Corte / (re)construir o Estado:
o horizonte de expectativas no Brasil do Reino Unido

13

I – DOSSIÊ
DOSSIER

A ACLAMAÇÃO DE D. JOÃO VI – O REI E O REINO

RECONFIGURAR A CORTE / (RE)CONSTRUIR O ESTADO:


O HORIZONTE DE EXPECTATIVAS
NO BRASIL DO REINO UNIDO
RECONFIGURING THE COURT / (RE) BUILDING THE STATE:
THE HORIZON OF EXPECTATIONS IN BRAZIL OF THE
UNITED KINGDOM
Arno Wehling1

Resumo: Abstract:
O trabalho apresenta uma análise do horizonte We analyze the horizon of expectations opened
de expectativas aberto no Brasil entre sua eleva- in Brazil between its elevation to the status of
ção a Reino Unido em 1815 e os acontecimen- United Kingdom in 1815, and the events that led
tos que levaram à ruptura com Portugal. Destaca to its rupture with Portugal. We also highlight
a existência de uma política centralizadora do the existence of a centralizing political power
governo joanino, em especial na administração in the Johannine government, especially in the
das capitanias e nos âmbitos judicial e militar, o administration of the captaincies and in the
crescimento econômico do país e, no plano ide- judicial and military spheres; the economic
ológico, o esboço de uma nação brasileira. Fo- growth of the country and, ideologically, the
ram discutidos os caminhos possíveis abertos ao outline of a Brazilian nation. We further discuss
Brasil à época, concluindo-se com a análise do the possible paths open for Brazil at the time,
período 1820-1822, no qual a fórmula do Reino and finally review the period between 1820
Unido caracterizou-se, gradativamente, como and1822, in which the formula for the United
um “desafio perdido”. Kingdom gradually turned out to be a “lost
challenge”.
Palavras-chave: Antigo Regime; Reino Unido; Keywords: Old Regime; United Kingdom;
Justiça; Estado; Constitucionalismo. Justice; State; Constitutionalism.

1  –  Professor Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor do Progra-


ma de Pós Graduação em Direito da Universidade Veiga de Almeida. Do Instituto Histó-
rico e Geográfico Brasileiro e da Academia Brasileira de Letras

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):13-48, jan./abr. 2019. 13


Arno Wehling

Em 16 de dezembro de 1815, quando foi proclamado o Reino Uni-


do de Portugal, Brasil e Algarves, abriu-se um horizonte de expectativas
que apareceu com maior ou menor clareza aos contemporâneos. Ele se
desdobraria nos anos seguintes a partir de situações sucessivas, dentre
as quais a mais desafiadora foi a Revolução Constitucionalista de 1820,
cujo desenvolvimento colocou os “portugueses dos dois lados do oceano”
numa encruzilhada.

Para equacionar a questão do Reino Unido de 1815-1822 em seu lado


brasileiro, é necessário remontar ao momento anterior, de 1808-1815, a
fim de considerar os efeitos da reconfiguração fluminense da Corte e da
(re)construção do Estado no Brasil.

O estado joanino no Brasil


A historiografia do período joanino no Brasil2, mais circunscritamen-
te a do Estado que funcionou entre 1815 e 1822, possui correntes bem
delineadas. A reprodução das instituições portuguesas foi defendida por
Varnhagen e Oliveira Lima, a partir da crítica de Hipólito da Costa no
Correio Brasiliense, para quem os órgãos criados no Brasil meramen-
te reproduziam os metropolitanos, como que copiando o Almanaque de
Lisboa. Varnhagen sublinhava ainda a falta de uma Universidade voltada
para o estudo das engenharias e da técnica e um ministério da coloni-
zação que distribuísse as terras públicas e gerisse a imigração. Variante
dessa perspectiva liberal oitocentista pode ser encontrada no weberiano
Faoro que, em 1958, considerava a reprodução um indicativo do fracasso
da monarquia estamental em reestruturar a política e a administração, de

2 – Para o conjunto do período joanino, GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. “A


historiografia e a transferência da Corte para o Brasil”. Revista do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro, n. 436, 2007, p. 15ss. Para a historiografia do Estado joanino,
WEHLING, Arno. “Estado, governo e administração no Brasil joanino”. In Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. n. 436, 2007, p. 75ss e “Administração joani-
na”. In VAINFAS, Ronaldo e NEVES, Lucia Maria Bastos (orgs.). Dicionário do Brasil
joanino. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008, p. 32ss

14 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):13-48, jan./abr. 2019.


Reconfigurar a Corte / (re)construir o Estado:
o horizonte de expectativas no Brasil do Reino Unido

modo a atender os interesses dos fazendeiros de Minas Gerais, de São


Paulo e do Rio de Janeiro3.

A inversão brasileira, para Silvio Romero, consistiu na mudança de


sentido do vínculo metrópole-colônia, com o Brasil assumindo o primei-
ro papel e Portugal, o segundo. Essa corrente, eco longínquo do livro
do abade De Pradt sobre o Congresso de Viena, de 1816, cresceria com
os estudos de Rodolfo Garcia sobre a administração colonial e de Maria
Odila da Silva Dias sobre a “interiorização da metrópole”4. Na historio-
grafia portuguesa, o tema tomaria o sentido de reforçar a tendência do
Brasil para a independência desde as diatribes de Oliveira Martins até as
perspectivas mais nuançadas de Oliveira Marques e Joel Serrão, não obs-
tante as ponderações de Jorge Borges de Macedo sobre a vitalidade dos
grupos econômicos metropolitanos no período5.

A renovação administrativa representada pelas medidas da Corte jo-


anina no Rio de Janeiro foi defendida por Helio Viana, numa ótica deci-
didamente reabilitadora da ação do monarca em seus anos brasileiros. Ela
teria gerado transformações que se revelariam irreversíveis no momento
da independência. Allan K. Manchester e Richard Graham reconheceram
o fato de que a presença da Corte no Rio de Janeiro não se constituiu
apenas um governo no exílio, mas a “transferência dos elementos de um
Estado soberano”. Sem perceberem renovação, apontaram o que lhes pa-

3 – VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil. São Paulo: Melhora-
mentos, 1975, vol. IV, p. 96ss. LIMA, Manuel de Oliveira. Dom João VI, Rio de Janeiro:
Topbooks: 1997, p. 465. FAORO, Raimundo. Os donos do poder. Rio de Janeiro: Globo,
1984, vol. I, p. 249.
4 – ROMERO, Silvio. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: José Olimpio,
1943, vol. III, passim. GARCIA, Rodolfo. Ensaio da história política e administrativa
do Brasil. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1956, p. 282. DIAS, Maria Odila da Silva. “A
interiorização da metrópole”. In MOTA, Carlos Guilherme (org.), 1822: dimensões. São
Paulo: Perspectiva, 1986, p. 160ss.
5 – MARTINS, Oliveira. O Brasil e as colônias portuguesas. Lisboa: Bertrand, 1880, p.
105ss. MARQUES, A.H. de Oliveira. História de Portugal, Lisboa: Agora, 1975, vol. I, p.
616. “Joel Serrão, D. João VI”. In SERRÃO, Joel (org.). Dicionário de História de Por-
tugal. Porto: Figueirinhas, 1992, vol. III, p. 442. MACEDO, Jorge Borges de. O Bloqueio
Continental. Lisboa: Gradiva, 1990, p. 119.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):13-48, jan./abr. 2019. 15


Arno Wehling

receu contraditório: o fisco, a justiça e a organização militar continuarem


“coloniais nos pontos de vista e na prática”6.

A edificação de um novo ou poderoso Império constitui a perspectiva


pela qual optaram Paulo Otavio Carneiro da Cunha e Maria de Lourdes
Viana Lira, destacando a concepção de D. Rodrigo de Sousa Coutinho e
o papel da reconfiguração imperial representada pela nova centralidade
da Corte e pela dimensão continental do território onde se situava7. A
questão da redefinição do Império aparece em Valentim Alexandre e, no
caso das sugestões de Silvestre Pinheiro Ferreira, nos trabalhos de Maria
Beatriz Nizza da Silva e nos nossos8.

Poucas menções ocorrem sobre a existência de uma política centra-


lizadora a partir da Corte instalada no Rio de Janeiro, como se as medidas
tomadas com intenso furor legislativo, inclusive no âmbito tributário, fos-
sem práticas empíricas tomadas ao sabor dos acontecimentos e às neces-
sidades financeiras imediatas ou, no máximo, correspondessem à gestão
de D. Rodrigo de Sousa Coutinho (1808-1812), quase sempre associado
a muitos planos e poucas realizações9.

Não há dúvida que o transplante das instituições metropolitanas deu


a impressão de se fazer o mesmo do mesmo, como assinalou a primeira
corrente historiográfica. Durante muito tempo, predominou a percepção

6 – VIANA, Helio. História do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1963, vol. II, p. 84.
MANCHESTER, Allan K., A transferência da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro;
e GRAHAN, Richard, “Comentário”. In KEITH, H., Henry e EDWARDS, S.F. (orgs.).
Conflito e continuidade na sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1970, p. 199, 204 e 222.
7 – CUNHA, Pedro Otávio Carneiro da. “A fundação de um Império liberal”. In HO-
LANDA, Sergio Buarque de (org.). História geral da civilização brasileira. São Paulo:
Difel, 1970, t. I, vol. I, p. 135. LIRA, Maria de Lourdes Viana. A utopia do poderoso
Império. Rio de Janeiro: Sete Letras, 1994, passim.
8 – ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos do Império. Porto: Afrontamento, 1993, pp.
69, 232, 420 e 767. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Silvestre Pinheiro Ferreira, ideologia
e teoria. Lisboa: Sá da Costa, 1975, p. 32. WEHLING, Arno. Silvestre Pinheiro Ferreira
e as dificuldades de um Império Luso-Brasileiro. In FERREIRA, Silvestre Pinheiro. As
dificuldades de um Império Luso-Brasileiro. Brasília: Senado Federal, 2012, p. 9ss.
9 – WEHLING, Arno. Estado, governo e administração no Brasil joanino ... p.75ss; Ad-
ministração joanina ... p. 32ss.

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Reconfigurar a Corte / (re)construir o Estado:
o horizonte de expectativas no Brasil do Reino Unido

de que as instituições teriam permanecido aferradas a princípios e prá-


ticas obsoletas e ineficazes face às novas circunstâncias, e os homens
públicos, políticos ou administradores, pautaram-se pelos velhos usos e
hábitos do Antigo Regime, infensos às consequências do clima revolucio-
nário e à modernização econômica, com poucas exceções. O que aparece
nos documentos, entretanto, são situações diversas, que podem subsidiar
outra hipótese.

Ao contrário da percepção usual de instituições modorrentas e ape-


nas reagentes a estímulos, algumas delas mostraram-se bastante efetivas,
se pensarmos na Intendência Geral de Polícia, na atuação de parte da
magistratura e em órgãos militares.

Quanto aos homens públicos, o pensamento e a atuação de conse-


lheiros do príncipe como Silvestre Pinheiro Ferreira e José da Silva Lis-
boa, ou operadores jurídicos como o ouvidor Miranda, os juízes de fora
Antonio Carlos Ribeiro de Andrada e José Clemente Pereira e os desem-
bargadores Carvalho e Melo e Veloso de Oliveira mostram um quadro di-
ferente da interpretação ainda dominante: existiam instituições e homens
em condições de reconfigurar a Corte e (re)construir o Estado no Reino
Unido, como seriam capazes de fazê-lo, mais tarde, no Império do Brasil.

Podemos, assim, constatar a existência de uma política centralizado-


ra, com duas faces.

Em primeiro lugar, havia a centralização da Corte em relação ao Im-


pério. Este ainda existia, não obstante ser clara a consciência de se tratar
de “restos de um colossal poder”, como dizia, em 1821, o ouvidor José
Antonio de Miranda10. Estava reduzido a Portugal, às ilhas do Atlântico,
aos enclaves asiáticos e à África, onde se constituía, em outros tantos en-
claves, diferente do que apregoavam os documentos oficiais11, dedicados,
majoritariamente, ao tráfico de escravos. O alvará de 2 de abril de 1811,

10 – MIRANDA, José Antonio de. Memória constitucional e política sobre o estado


presente de Portugal e do Brasil. Rio de Janeiro: Tipografia Régia, 1821, p. 57.
11 – SILVA, Alberto da Costa e. O Império de D. João. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, n. 436, 2007, p. 336.

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Arno Wehling

permitindo o comércio direto entre os portos brasileiros e os dos domí-


nios, legitimava o que sempre fora admitido (o comércio com a África e
as ilhas) e liberava o menos significativo comércio com o Índico asiático.

Além disso, era notória a centralização no Brasil. Aqui se tratou de


uma evidente inversão de política. Até 1808, os órgãos da administração
metropolitana tinham gestão direta sobre algumas capitanias, que temos
considerado como grandes capitanias: Pernambuco, Bahia, Rio de Janei-
ro, Minas Gerais e São Paulo, além do Estado do Maranhão (ou, após sua
extinção, as capitanias do Grão Pará e do Maranhão)12. A despeito da pre-
sença dos vice-reis na Bahia e, desde 1763, no Rio de Janeiro e das tenta-
tivas de alguns deles de estenderem sua jurisdição, o fluxo administrativo
pode ser representado por um feixe ou conjunto de eixos representados
pelas mencionadas unidades políticas, algumas delas com suas “capita-
nias subalternas”, como Porto Seguro, Espírito Santo, Ceará ou Santa
Catarina, entre outras. A elas, podem ser acrescentadas as “marcas” do
extremo territorial como Goiás, Mato Grosso ou São José do Rio Negro,
cujo contato se fazia com o Rio de Janeiro (as duas primeiras) ou o Pará.

O tradicional empirismo da administração portuguesa e a continen-


talidade dos domínios na América impuseram a solução de fragmentar
os fluxos administrativos em cinco ou seis grandes unidades, conforme
a época e a conjuntura. A rarefação dos núcleos coloniais e esse tipo de
atuação fizeram Capistrano de Abreu concluir os Capítulos de história
colonial com a observação de que o legado português em 1808 era o de
uma frágil unidade baseada na “comunidade ativa da língua e passiva da
religião”, sem que houvesse maior identidade entre fluminenses, baianos,
mineiros, pernambucanos, paraenses ou paulistas – situação que veria
modificada quando do retorno do rei a Portugal, pois este “subordinou-as
[as terras brasileiras] a um centro que até então falhara, pois nesta ausên-
cia se refinava a essência do regime colonial”13.

12 – WEHLING, Arno. Administração portuguesa no Brasil, 1777-1808. Brasília: Fun-


cep, 1986, p. 35ss.
13 – ABREU, João Capistrano de. Capítulos de história colonial. Rio de Janeiro: Brigui-
et, 1954, p. 351. Ensaios e Estudos 3ª. Série. Rio de Janeiro: Briguiet, 1938, p.133.

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o horizonte de expectativas no Brasil do Reino Unido

Desse centro começou a se delinear um discurso de nação brasi-


leira, que o Estado imperial perseguiu nas duas décadas seguintes e que
culminaria com a fundação de uma instituição para polarizá-lo, o Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro.

A nova realidade, com a instalação da Corte no Rio de Janeiro em


março de 1808, mudou o eixo Lisboa – Capitanias para o eixo Rio de
Janeiro – Capitanias. Era mudança ditada pelas circunstâncias, mas não
apenas por elas, pois seu principal implementador até 1812, D. Rodrigo
de Sousa Coutinho, tinha assim a oportunidade de colocar em prática
antigos planos de um “sistema federativo”14. Poucos anos depois, essas
medidas tiveram seu corolário institucional com a proclamação do Reino
Unido.

Mesmo o Maranhão e o Pará, apesar das notórias dificuldades de co-


municação com o sul do país, tiveram seus órgãos judiciais, fazendários e
militares ligados ao Brasil enquanto durou a ocupação francesa na metró-
pole, situação depois corrigida com o restabelecimento do statu quo. Ain-
da assim, quando foi criado o tribunal da Relação de São Luís, em 1812,
num contexto local extremamente perturbado, foi da Corte que saíram
todas as soluções para o saneamento dos problemas da administração da
justiça, confiadas a seu primeiro chanceler, o paulista Antonio Rodrigues
Veloso de Oliveira, com intensa atuação no Rio de Janeiro como desem-
bargador da Casa da Suplicação e membro do Desembargo do Paço.

Foram muitas as medidas tomadas pela administração joanina na


Corte fluminense visando à centralização do poder no Rio de Janeiro.
Com variada efetividade algumas foram bem sucedidas, umas apenas
parcialmente e outras ainda revelaram-se inócuas ou eram redundantes
em relação à realidade, como o alvará de 1811 sobre as relações intraim-
14 – MENDONÇA, Marcos Carneiro de. O intendente Câmara. São Paulo: CEN, 1958,
p. 32. MAXWELL, Keneth. Chocolate, piratas e outros malandros. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1999, p. 157ss. e A devassa da devassa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 233ss.
ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos..., p. 793ss. CARDOSO, José Luís. “Nas malhas
do Império: a economia política e a política colonial de D. Rodrigo de Sousa Coutinho”.
In CARDOSO, José Luís (coord.). A economia política e os dilemas do império luso-
brasileiro. Lisboa: CNCDP, 2001, p.77ss.

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Arno Wehling

periais. Ainda outras medidas, visando a fins específicos, acabaram por se


revelar também instrumentos eficazes de centralização – já examinamos
quatro delas em outro trabalho: a equalização formal das capitanias, o
adensamento e a interiorização da justiça, o estabelecimento das juntas
do Desembargo do Paço em algumas capitais e a criação de novas vilas
e cidades15.

A administração joanina quebrou a hierarquia das capitanias em ge-


rais e subalternas, estabelecendo uma igualdade formal. O crescimento de
algumas capitanias, como a Paraíba e o Ceará, e a situação de permanente
conflito de fronteiras no Rio Grande de São Pedro fizeram com que as
primeiras se emancipassem de Pernambuco em 1799, e esta, do Rio de
Janeiro em 1807. A presença da Corte no Brasil, porém, tornava desne-
cessária a antiga dependência e, dessa forma, tornaram-se capitanias ple-
nas Espírito Santo (simultaneamente dependente das capitanias do Rio e
da Bahia, conforme a área administrativa), Santa Catarina, Piauí, Sergipe,
Rio Grande do Norte e São José do Rio Negro. A comarca de Alagoas foi
elevada a capitania em 1817. Tanto a separação do Rio Grande do Norte
quanto a elevação de Alagoas obedeceram à lógica de enfraquecer a capi-
tania de Pernambuco após a Revolução de 1817.

O adensamento e a interiorização da justiça aparecem como um dos


mais eficazes meios de ampliar a presença do estado no Brasil, num uni-
verso ainda colonial em que predominava o mandonismo rural, com a
presença daquelas figuras que as autoridades portuguesas do século XVIII
frequentemente consideravam potentados ou régulos locais. 38 juizados
de fora foram instalados em 12 anos, contra 13 no período de 1697 (quan-
do foram instituídos no Brasil) a 1808. 8 novas comarcas foram criadas
sob D. João, contra 21 existentes em 1808. No âmbito dos tribunais supe-
riores, a Relação do Rio de Janeiro transformou-se na Casa da Suplicação

15 – WEHLING, Arno. Estado, governo…, pp. 82-83. WEHLING, Arno e WEHLING,


Maria José. “Thémis dans la monarchie des Tropiques (l’organisation de la justice à
l’époque de D. João VI)”. In COUTO, Jorge (org.). Rio de Janeiro, capitale de l’Empire
portugais (1808-1821). Paris: Chandeigne, 2010, p. 219ss.

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do Brasil, mantendo-se a da Bahia e criando-se mais duas: a do Maranhão


em 1812 e a de Pernambuco em 1821.

Não obstante ter se revelado impotente para eliminar a parcialidade


e a precariedade da administração da justiça, objetivos declarados dos
atos instituidores, a criação de novos juizados de fora e novas comarcas
provocou alteração na correlação de forças entre agentes públicos e inte-
resses privados, situação pioneiramente apontada por Gilberto Freire em
Sobrados e Mocambos. Conflitos, cooptação do público pelo privado e
acomodações ocorreram de imediato e se estenderiam ainda por mais de
um século, expressando problemas estruturais da organização social e da
política de vastas regiões do país.

A criação de vilas e/ou a transformação destas em cidades corres-


pondeu a lógica semelhante à do estabelecimento de juizados de fora e
de comarcas, pois tornava mais adensada a máquina institucional e acen-
tuava a aliança “Ancien Régime” entre as elites locais, que passavam a
dispor de novos “cargos da República” para legitimar sua ascensão social
na ordem estamental, e o poder real. Três vilas remotas de Goiás e Mato
Grosso tornaram-se cidades (consequentemente cabeças de comarcas) e
33 novas foram criadas no mesmo período.

O alvará de 10 de setembro de 1811, por sua vez, determinou a cria-


ção de juntas do Desembargo do Paço em algumas sedes de capitania,
com o fim de descentralizar a concessão de cartas de emancipação, pen-
sões, tenças, aposentadorias, mercês e outras prebendas típicas da socie-
dade estamental. Essa delegação do Desembargo do Paço, de que já dis-
punham os Tribunais da Relação do Rio de Janeiro e da Bahia, foi assim
estendida a outras capitanias16.

Cada uma das mencionadas medidas revela traços muito caracterís-


ticos da administração joanina. A equalização das capitanias era um ato
que visava à eficiência administrativa, mas que sinalizava também um
16  –  WEHLING, Arno e WEHLING, Maria José. Direito e justiça no Brasil colonial –
o Tribunal da Relação do Rio de Janeiro, 1751-1808. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p.
219.

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gesto político do príncipe/rei em relação às capitanias assim promovi-


das. A multiplicação de juizados de fora e de comarcas expunha o caráter
inovador pretendido por uma administração ilustrada que em nome do
estado de polícia procurava ampliar a esfera do público em detrimento
dos interesses privados. A criação das juntas do Desembargo do Paço,
exceto pelas cartas de emancipação, reiterava a tradição de uma socieda-
de estamental baseada na aliança entre a elite galardoada e seu soberano
que, algumas vezes, garantia materialmente o aquinhoado e, em outras,
formalizava sua ascensão social à condição de nobreza lato sensu.

Outras medidas ainda devem ser consideradas, como a reorganiza-


ção militar do Brasil e o conjunto de ações relativas à economia. Sem
serem, necessariamente, faces da política centralizadora pelo simples fato
de se definirem no Paço Real do Rio de Janeiro e por implicarem direta ou
indiretamente na reconfiguração/reconstrução do estado como até então
existira, estão, com ela, intimamente relacionados.

A expressão “reorganização militar do Reino” deve-se a José da Sil-


va Lisboa, no necrológio do conde de Linhares e não se constitui para
o caso brasileiro um exagero. Três verbos podem sintetizar sua ação à
frente da pasta da Guerra: conhecer, ocupar e criar. Fiel à ação de seus
antecessores ilustrados, o ministro tomou iniciativas que se baseavam na
busca permanente de informações estratégicas para a formulação de polí-
ticas e a tomada de decisões. Modelar dessa atitude foi o pedido de infor-
mações ao governador da Bahia, conde da Ponte, em que solicita quadros
populacionais e dados sobre efetivos militares, recrutamentos, despesas,
armamentos, fardamentos, número de oficiais em disponibilidade, situa-
ção das milícias e situação defensiva dos portos. Esse procedimento que
repetiu para outras capitanias e seria continuado nas administrações se-
guintes permitiu que se tivesse um quadro relativamente seguro das con-
dições da tropa, que se revelou útil em ações militares na Guiana, no rio
da Prata, na guerra contra os índios botocudos e na repressão à Revolução
Pernambucana de 1817.

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Ocupar dizia respeito à sua política de completar os limites dos do-


mínios portugueses na América com a incorporação de “fronteiras natu-
rais” como a região cisplatina ou a política de represália na Guiana, que
tinha o benefício adicional de melhor reforçar a defesa da foz do Amazo-
nas, afastando a presença francesa mais para o norte.

Na perspectiva da construção do estado, mais significativo ainda


foi criar um “sistema militar” que, se não chegou a todos os objetivos
pretendidos, estabeleceu órgãos permanentes como o Conselho Supre-
mo Militar, a Junta de Fazenda dos Arsenais Reais (responsável pela fa-
bricação de armas e pela instrução militar), o Arquivo Militar (misto de
repartição pública e academia pragmática setecentista, encarregada de
trabalhos topográficos e geodésicos), e a Academia Militar, para a for-
mação de quadros de oficiais. Esse “sistema” previa os meios para a sua
operacionalização, como fábricas de pólvora e de fuzis, laboratório quí-
mico, normas para uniformes e armamento, e financiamento pelo imposto
da décima urbana. Foram também definidos processos e procedimentos,
como a reorganização das unidades militares na capital, em São Paulo e
no Rio Grande do Sul e a reestruturação do impopular recrutamento, com
a conscrição dos vadios, o perdão geral aos desertores e a utilização de
imigrantes da Madeira e dos Açores17.

Se trinta anos antes da chegada da Corte, Martinho de Melo e Castro


já dizia que “o Brasil deveria ser defendido pelas tropas do mesmo Bra-
sil”, referindo-se às milícias, a partir de 1808 desenha-se a organização
institucional do exército e da marinha, embora a tropa miliciana ainda
viesse a ter por muito tempo presença significativa na vida do país.

No âmbito econômico, a torrente de medidas que se referiram ao


comércio interno e externo, à manufatura, à imigração, às finanças, aos
transportes, às comunicações e à tributação – e que não se restringiram

17 – DINIZ-SILVA, Andrée Mansuy. “Introdução, Rodrigo de Sousa Coutinho”. In Tex-


tos políticos, econômicos e financeiros. Lisboa: Banco de Portugal, 1993, vol. I, p. 30ss.
WEHLING, Arno e WEHLING, Maria José. “Rodrigo de Sousa Coutinho e a consolida-
ção institucional do exército no Brasil joanino”. In Revista da Cultura. Brasília: Funceb,
n. 19, 2012, p. 16ss.

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Arno Wehling

ao ministério de D. Rodrigo de Sousa Coutinho – foram, de certo modo,


ofuscadas pelas críticas suscitadas pelos tratados de 1810. Iniciadas por
Hipólito da Costa no Correio Brasiliense, foram consolidadas por Var-
nhagen na História Geral do Brasil e continuaram a ser uma tônica de
análise do tema até a atualidade, com pouco destaque de nuances impor-
tantes, como a previsão de sua transitoriedade e o enfrentamento das con-
sequências negativas às exportações portuguesas advindas do Bloqueio
Continental18. Sem deixarem de representar a dependência do país em
relação à Grã Bretanha, acabaram por colocar em segundo plano a própria
existência de uma política econômica, só no início do século XX intuída
por Euclides da Cunha (“política administrativa onipresente”) e afirmada
com dados empíricos por Roberto Simonsen em sua História econômica
do Brasil. Os contornos dessa política econômica nova foram expressos
no manifesto com o qual o príncipe regente justificou os tratados:
[...] fui servido adotar os princípios mais demonstrados de sã econo-
mia política, quais os da liberdade e franqueza de comércio, o de dimi-
nuição dos direitos de alfândegas, unidos aos princípios mais liberais
de maneira que, promovendo-se o comércio, pudessem os lavradores
do Brasil achar o melhor consumo para os seus produtos e que daí
resultassem o maior adiantamento na geral cultura e povoação deste
vasto território do Brasil, que é o mais essencial modo de o fazer pros-
perar e de muito superior ao sistema restrito, e mercantil[...]19.

A despeito das dificuldades com as quais se costuma associar o pe-


ríodo joanino – a guerra da Banda Oriental, as ações inglesas em relação
ao tráfico, a insatisfação com os impostos e as pressões portuguesas e
inglesas para o retorno da Corte – houve resultados concretos do ponto de
vista material. A expansão do comércio externo, de cabotagem e interno,
o estabelecimento do Banco do Brasil – o primeiro estabelecimento dessa
natureza no mundo luso-brasileiro – a abertura de estradas, o impulso
18 – ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos..., p. 767 ss. Velhos Brasis, Novas Áfricas,
Porto: Afrontamento, 2000, p. 16ss. MACEDO, Jorge Borges de. op. cit., pp. 102-103.
A historiografia anglo-luso-brasileira sobre os tratados de 1810 é tema por si só à parte.
Entre outros, NEVES, Guilherme Pereira das. “Do império luso-brasileiro ao Império do
Brasil”. In Ler História, n. 27-28, 1995, p. 75ss. ARRUDA, José Jobson. Uma colônia
entre dois Impérios. São Paulo: Edusc, 2008, p. 107.
19 – Gazeta do Rio de Janeiro, 19 de fevereiro de 1810.

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dos correios e do telégrafo aéreo no litoral, novos aterros e arruamentos


na capital, foram todos indícios de um novo dinamismo econômico, se
contrastado com o acanhado universo colonial anterior a 1808. Mesmo
o estabelecimento de manufaturas, conquanto modesto, ocorreu, com a
criação no Rio de Janeiro de quatro fábricas de tecidos, três de papel,
duas de metais e sete de produtos alimentícios, bebidas e couros, além
dos arsenais militares e da fábrica de pólvora e, fora do Rio, uma fábrica
de tecidos em Minas Gerais e três fundições de ferro.

Todos esses indicadores econômicos, aos quais é possível acrescen-


tar o início da imprensa, da educação superior e o impulso representado
pela presença de artistas franceses e de artistas e engenheiros austríacos
e alemães patrocinados pelo Estado, atestam, por outro lado, a mudança,
até aqui incruenta, da condição colonial, embora sem que ainda se confi-
gurasse a ruptura com a sociedade e a estrutura estatal do Antigo Regime.

A reconfiguração/reconstrução do Estado com a política de centrali-


zação e a própria centralidade exercida pelo Rio de Janeiro como Corte,
tinham certamente um preço e um preço alto20. Os pernambucanos ex-
pressaram bem seu protesto em relação à drenagem de recursos finan-
ceiros para o Rio de Janeiro antes de 1817. Nesse ponto, pode-se indagar

20 – A “metropolização” do Rio de Janeiro com a instalação da Corte tem sido tradi-
cional objeto da literatura brasileira desde o romantismo, sendo emblemático do tema o
livro de ALMEIDA, Manuel Antonio de. Memórias de um sargento de milícias e também
da historiografia. Exemplos desta são os trabalhos de ABREU, Mauricio de. A evolução
urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Instituto Pereira Passos, 2013; SILVA, Ma-
ria Beatriz Nizza da. Cultura e sociedade no Rio de Janeiro (1808-1821). São Paulo:
CEN, 1978; MALERBA, Jurandir. A Corte no exílio: civilização e poder no Brasil às
vésperas da independência (1808-1821). São Paulo: Cia. das Letras, 2000; SHULTZ,
Kirsten. Tropical Versailles. Empire, monarchy and the portuguese Royal court in Rio de
Janeiro, 1808-1821. Nova Iorque-Londres: Routledge, 2001; SCHWARCZ, Lilian M.,
AZEVEDO, Paulo Cesar de; COSTA, Ângela Marques da. A longa viagem da biblioteca
dos reis. Do terremoto de Lisboa à independência do Brasil. São Paulo: Cia. das Letras,
2002; SLEMIAN, Andrea. Vida política em tempo de crise: Rio de Janeiro (1808-1824).
São Paulo: Hucitec, 2006; CARVALHO, Marieta Pinheiro de. Uma ideia ilustrada de
cidade. As transformações urbanas no Rio de Janeiro de D. João VI (1808-1821). Rio de
Janeiro: Odisseia, 2008; LOPES, Emilio C.R.. Festas Públicas, memória e representação:
um estudo sobre manifestações políticas na Corte do Rio de Janeiro (1808-1822). São
Paulo: Humanitas/USP, 2004.

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Arno Wehling

qual a origem dos recursos para financiar a ampliação da estrutura do


Estado e as guerras em que o governo se envolveu.

A historiografia econômica já estabeleceu os principais parâmetros


da economia luso-brasileira nas duas primeiras décadas do século XIX21.
Não é o caso de revê-la, mas apenas lembrar que a base tributária num
país de grande propriedade rural agrária ou pecuarista e de zonas mi-
neradoras, concentrava-se no comércio de importação (inclusive sobre
a entrada de mão de obra africana) e de exportação, embora o governo
tivesse conseguido ampliá-la com a incorporação do imposto da décima
urbana sobre os imóveis, logo estendido para os imóveis rurais. Em do-
cumento de 1810, Manuel Jacinto Nogueira da Gama, futuro marquês de
Baependi, como escrivão da mesa do Erário (em 1823, seria ministro da
fazenda), dizia ser possível fazer frente às despesas orçamentárias “sem
aumento de tributos, sem o ruinoso sistema de arrecadação de rendas,
sem o temível, péssimo e fatal recurso do papel-moeda”, desde que hou-
vesse melhor arrecadação e controle das despesas, sobretudo militares. E

21 – Além da discussão sobre se haveria uma “crise do sistema colonial”, como defen-
dido em parte da historiografia brasileira desde os anos 1970, posteriormente refutada
ou nuançada, dados empíricos e questões tópicas vêm apontando tais parâmetros. Para o
primeiro aspecto e seu contraditório, são os trabalhos de NOVAIS, Fernando A. Portugal
e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808). São Paulo: Hucitec, 1979; AR-
RUDA, José Jobson A. O Brasil no comércio colonial. São Paulo: Ática, 1980; FRAGO-
SO, João L. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do
Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992; FRAGOSO, João
L. e FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade
agrária e elite mercantil do Rio de Janeiro, c. 1790-1840. Rio de Janeiro: Diadorim,
1993; ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos... Para o segundo aspecto, LENHARO, Al-
cir. As tropas da moderação: o abastecimento da Corte na formação política do Brasil,
1808-1842. São Paulo: Símbolo, 1978; OLIVEIRA, Cecília Salles de. A astúcia liberal.
Relações de mercado e projetos políticos no Rio de Janeiro (1820-1824). São Paulo: Bra-
gança Paulista - São Paulo: Edusf-Ícone, 1999; GORENSTEIN, Riva. Negociantes e caix-
eiros na sociedade da independência. Rio de Janeiro: SMC, 1993. BEAUCLAIR, Geral-
do. Raízes da indústria no Brasil. Rio de Janeiro: Studio F&S, 1992. PEDREIRA, Jorge.
Estrutura industrial e mercado colonial. Portugal e Brasil (1780-1830). Linda-a-Velha:
Difel, 1994. COSTA, Wilma Peres. “Do domínio à nação: os impasses da fiscalidade no
processo de independência. In JANCSO, István (org.), Brasil: formação do Estado e da
Nação. São Paulo: IJUÍ, Hucitec-Unijuí, 2003, pp.143-193

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provava que a despesa de 3.014.000$000 era excedida em 120.000$000


pela arrecadação22.

Não ocorreu, no entanto, o controle das despesas. Ao contrário, elas


aumentaram pela expansão da máquina pública, pelas guerras e pela mal-
versação. Como foram absorvidas pelo país? O orçamento de receita e
de despesa, entre 1808 e 1820, aumentou cerca de quatro vezes nas duas
rubricas, de 2,3 milhões de contos para 9,8 milhões, sendo pouco mais
que duplicadas as rendas aduaneiras23. Isso significa que outras fontes
de renda foram significativas, como as contribuições das capitanias, a
recunhagem de moeda espanhola, os suprimentos do Banco do Brasil e as
receitas dos registros internos, da décima urbana, do dízimo do açúcar, da
sisa, dos contratos, do subsídio literário, da carne, do fumo e dos defuntos
e ausentes, entre outros.

O aumento da atividade econômica, em especial do comércio exte-


rior, não se traduziu num aumento de arrecadação que compensasse o das
despesas. O equilíbrio orçamentário era obtido por meio de expedientes
inflacionários como a recunhagem das piastras espanholas e das emissões
do Banco do Brasil, ou do uso de fundos em depósito, o que aumentava
a dívida pública.

Mesmo com a péssima impressão deixada nos estrangeiros, como


Tollenare e Koster, ou nos brasileiros, como Nogueira da Gama e outros,
sobre a corrupção, a sofreguidão fiscal e o emperramento da máquina
pública, certamente, houve crescimento econômico visível entre 1808 e
1821, ainda que descontada a inflação de 34% no período24 – e foi esse
crescimento que beneficiou tanto comerciantes quanto proprietários e
agentes oficiais, viabilizando a expansão da máquina pública.

22 – GAMA, Manuel Jacinto Nogueira da. “Exposição”. In CARREIRA, Liberato de


Castro. História financeira e orçamentária do império do Brasil. Brasília: Senado Fed-
eral, 1980, vol. I, p. 91ss.
23 – SIMONSEN, Roberto. História econômica do Brasil 1500-1820. São Paulo: CEN,
1969, p. 405.
24 – BUESCU, Mircea. 300 anos de inflação. Rio de Janeiro: APEC, 1978, p. 125.

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Arno Wehling

Não foram, entretanto, apenas materiais os meios de que se valeu


o governo joanino para ampliar a máquina estatal e conquistar apoio na
elite social e política. Os emblemas aristocratizantes do Antigo Regime
foram utilizados à farta: 2630 Ordens de Cristo, 1420 de São Bento de
Avis e 590 de Santiago da Espada foram distribuídas por D. João no Bra-
sil. Se lembrarmos que, 14 anos depois da saída do monarca, em 1835,
as eleições para regente do Império envolveram um universo de cerca de
6.000 eleitores, podemos presumir que a simbologia política joanina con-
templou parte significativa do espectro político-social da época. A atribui-
ção de comendas que emparelhavam em dignidade nativos latifundiários
e transmigrados, como lembrou Faoro25, era prática comum na monarquia
bragantina, mas sua distribuição no Brasil atingiu proporções inusitadas.

A essa prática podemos acrescentar o fato de que os “cargos da re-


pública” nas câmaras municipais e as patentes das milícias e ordenações
tradicionalmente nobilitavam lato sensu seus detentores. Também os ha-
bilitavam e a seus descendentes ao exercício dos cargos públicos mais
ambicionados, como os da burocracia judiciária. Constatamos, em con-
sequência, que o grupo dirigente da Corte procurou atender às novas cir-
cunstâncias geopolíticas e ao contexto revolucionário, com os instrumen-
tos disponíveis do Antigo Regime. Estabelecia-se no caso brasileiro, em
grau muito mais intenso do que ocorria no acanhado universo colonial,
a tradicional aliança tácita entre a monarquia e as camadas emergentes
locais, de modo que se reconhecesse institucional e juridicamente a sua
ascensão social.

Esse quadro geral não pode desconhecer os interesses regionais e


mesmo locais, bem como os conflitos deles decorrentes num processo
político que transcorria em dimensões continentais como o do Brasil. As-
sim é preciso considerar aspectos regionais significativos que distinguem
as capitanias/províncias do centro-sul (São Paulo, Minas Gerais e Rio
de Janeiro), do extremo sul (Rio Grande de São Pedro) e as “do norte”,
expressão genérica que englobava “da Bahia para cima”, notadamente

25 – FAORO, Raimundo. Os donos..., vol. I, p. 259.

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Reconfigurar a Corte / (re)construir o Estado:
o horizonte de expectativas no Brasil do Reino Unido

esta província, Pernambuco, Maranhão e Pará, sem esquecer as áreas de


“marcas” ou fronteiras como Rio Negro, Goiás e Mato Grosso26.

Ameaçava o sucesso dessa aliança o anunciado fim da sociedade es-


tamental e a abolição dos privilégios, como ocorria contemporaneamen-
te no clima revolucionário euro-americano. O grupo dirigente da Corte
tinha diferentes percepções da situação, mas sabia que as reformas do
Estado no Brasil e o fomento econômico eram insuficientes para atender
às demandas revolucionárias, ainda que moderadas, como as expressas
na Constituição de Cádiz, em 1812. Quando Silvestre Pinheiro Ferreira,
atendendo à solicitação do príncipe-regente, apresentou suas opiniões so-
bre o retorno da Corte e o status político do Brasil no quadro do Império,
não deixou de incluir o problema da inviabilidade de se manter intacta
a sociedade estamental, propondo uma nobreza meritocrática para sub-
sidiar a tradicional27. Os três pontos sempre estiveram intrincados e as
sugestões postas à mesa nos palácios do Rio de Janeiro os levaram em
conta.

Reino Unido: os caminhos possíveis

Reconfigurar a Corte no Brasil implicava, – no plano dos domínios


portugueses ou do “Império” – reequacionar geopoliticamente as relações
com Portugal, com as demais áreas da África e Ásia e com as unida-
des até então semidispersas do próprio Brasil. No plano internacional,
num primeiro momento, significava gerir as relações com a Grã Bretanha
(com ampla agenda: exportações brasileiras e portuguesas, importação

26 – Por exemplo, para a aliança entre comerciantes do norte fluminense, sul mineiro,
São Paulo e recôncavo baiano, articulados pela liderança de Gonçalves Ledo, OLIVEI-
RA, Cecília Salles de. A astúcia liberal...; sobre São Paulo, MEDICCI, Ana Paula. “De
capitania a província: o lugar de São Paulo nos projetos de Império, 1782-1822”. In COS-
TA, Wilma Peres e OLIVEIRA, Cecília Salles de (orgs.). De um Império a outro. Forma-
ção do Brasil, séculos XVIII e XIX. São Paulo: Aderaldo & Rotschild, 2007, p. 241; sobre
o Pará, MACHADO, André Roberto A.. “Apontamentos para o estudo da reinvenção do
estado no Grão Pará: 1823-1825”. In Costa, Wilma Peres e OLIVEIRA, Cecília Salles
de (orgs.). De um Império..., p. 322; para Pernambuco, BERNARDES, Denis A.M.. O
patriotismo constitucional: Pernambuco, 1820-1822. São Paulo: Hucitec, 2006.
27 – FERREIRA, Silvestre Pinheiro. “Memórias políticas”. In WEHLING, Arno (org.).
As dificuldades de um Império luso-brasileiro. Brasília: Senado Federal, 2012, p. 39.

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de produtos ingleses, negociações sobre o tráfico, política platina do Rio


de Janeiro) e, passada a fase napoleônica, redefini-las, considerando a
nova conjuntura e os novos atores políticos e econômicos. Estes eram
a França da Restauração, a Áustria de Metternich, com a qual, logo em
1817, haveria uma aliança dinástica, a Espanha restaurada, as cidades
comerciais alemãs, os Países Baixos, os estados italianos, a Suécia e os
Estados Unidos.

(Re) construir o Estado implicava, primordialmente, centralizar a ad-


ministração no Rio de Janeiro, invertendo a política tradicional dos eixos
político-administrativos coloniais e – aqui a novidade ilustrada – apro-
fundar a presença, ou mesmo a intervenção, do Estado na sociedade. A
transposição ao trópico dessa questão foi acelerada pela percepção dos
riscos da Revolução Francesa e dos movimentos emancipacionistas da
própria América, do radicalismo jacobino à revolução dos escravos do
Haiti.

A intervenção estatal seguiu o caminho tradicional das ações nos


setores da Fazenda, Justiça e Guerra. O alargamento da tributação se deu
com a introdução do imposto da décima urbana, em 1808, constituindo
verdadeiro turning point em relação às concepções tributárias do Antigo
Regime. A instalação de tribunais superiores, a criação das novas comar-
cas, dos juizados de fora e de juntas de justiça e a delegação a estas de
atribuições do Desembargo do Paço visaram ao aumento do controle so-
cial a partir de agentes públicos confiáveis, embora possamos questionar
sua real extensão. A reorganização da defesa e a ação da Intendência Ge-
ral de Polícia do Brasil e Corte também convergiam para o mesmo objeti-
vo. A criação de vilas, por sua vez, se não era uma inovação, fortalecia a
presença do Estado, ainda que seus agentes fossem privados, diminuindo
a distância dos sertões brasileiros.

A par do uso de mecanismos institucionais de sempre, chama a aten-


ção o espírito com que tais medidas foram concebidas, a do “estado de
polícia”, na variação semântica que o termo “polícia” tinha no início do
século XIX, denotando uma tentativa de racionalização da sociedade e

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Reconfigurar a Corte / (re)construir o Estado:
o horizonte de expectativas no Brasil do Reino Unido

não apenas do Estado, que podia ir da demografia à economia, passando


pela ordem pública propriamente dita. Não era algo rigorosamente novo,
pois já vinha de Delamare na França e de Justi na Prússia. Em Portugal,
já surgira desde a burocracia pombalina e, no próprio Brasil, apareceria
na política fomentista das décadas de 1760-1770 e no discurso ilustrado
do soteropolitano Luís dos Santos Vilhena28.

Eram muitas variáveis que assim apareciam sob os dois vetores: o da


reconfiguração da Corte e o da (re) construção do Estado. Com a elevação
do Brasil a Reino Unido, em dezembro de 1815, tais variáveis foram con-
frontadas com uma nova realidade institucional. A pergunta é: a esta luz,
que expectativas foram geradas pelo ato do Príncipe Regente no decorrer
dos anos seguintes, sabendo-se que tiveram continuidade as políticas até
então desenvolvidas em ambos os vetores?

Se consideradas as manifestações ao longo de quase cinco anos, en-


tre a proclamação do Reino Unido e a revolução do Porto, em relação às
perspectivas que se abriam para o novo estatuto político, fica evidente
que todas consideravam as diversas possibilidades que se desenhavam,
tornando-se mais ou menos agudas as manifestações em momentos de
júbilo, como o casamento do príncipe herdeiro com a arquiduquesa Leo-
poldina da Áustria e a aclamação de D. João como rei em fevereiro de
1818, ou apreensão, como a Revolução Pernambucana e o movimento de
Gomes Freire de Andrada em Portugal, ambos no ano de 1817. De todo
modo, o conceito de Reino Unido era suficientemente polissêmico para
abranger largo espectro de potencialidades e tal fato já foi constatado em
diferentes trabalhos29.

28 – SEELAENDER, Airton L. Cerqueira-Leite, Polizei, Ökonomie und Gesetzgebung-


slehre. Franckfurt: Klostermann 2003, p. 215ss. SUBTIL, José. Açores, territórios e redes
de poder, entre o Antigo Regime e o liberalismo. Curitiba: Juruá, 2011, p. 257ss.
29 – SILVA, Ana Rosa Clocet. Inventando a nação – intelectuais ilustrados e estadistas
luso-brasileiros na crise do Antigo Regime Português (1750-1822). São Paulo: Hucitec,
2006, p. 250. CASTRO, Zília Osório de. “Portugal / Brasil: imagens cruzadas dos novos
estados”. In ARRUDA, José Jobson e FONSECA, Luís Adão da (orgs.). Brasil-Portugal:
História, agenda para o milênio. Bauru: Edusc, 2001, p. 66. SOUZA, Iara Lis Carvalho
de. Pátria Coroada. O Brasil como corpo político autônomo – 1780-1831. São Paulo:
Unesp, 1999, p. 59 ss. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. D. João, Príncipe e Rei no Brasil.

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Arno Wehling

As possibilidades expressas referiam-se à alternativa entre imple-


mentar o novo modelo político ou manter o statu quo ante, tornando o ato
de 16 de dezembro mero papel sem valor. Se a opção fosse implementar,
como desde logo defendeu Hipólito da Costa no Correio Brasiliense, se-
ria necessário ampliar e aprofundar a ação política e administrativa, re-
desenhando o estado brasileiro, criando novos ministérios, definindo me-
lhor as políticas públicas e criando outros órgãos em sintonia com os no-
vos tempos, inclusive uma universidade. Outra possibilidade mais radical
era constitucionalizar ambos os países, como expresso pelo Português de
Londres30, de modo que as transformações políticas e administrativas se
embasassem em novo pacto social.

As possibilidades implícitas, pouco faladas mas muito pressupostas,


implicavam nas opções de romper “para trás” – extinguir o Reino Unido,
eliminar a liberdade de comércio do Brasil e reduzir as medidas referen-
tes ao Brasil aos estreitos limites do interesse metropolitano – ou romper
“para a frente”, chegando à independência da antiga colônia.

Nas propostas de algumas das principais figuras da época, tais possi-


bilidades aparecem combinadas de diferentes formas e gerando diferen-
tes soluções, todas estas no período 1815-1820, visando à manutenção
da união Brasil-Portugal e submetidas às circunstâncias conjunturais das
relações com as potências europeias, dos conflitos intestinos de ambos os
reinos e do expansionismo na Banda Oriental31.

No âmbito político e na conjuntura de 1814-1816 – tomando-se


como balizas a instalação do Congresso de Viena e a incorporação da

Lisboa: Horizonte, 2008, p. 73. WEHLING, Arno. “A monarquia dual luso-brasileira.


Crise colonial, inspiração hispânica e criação do Reino Unido”. In Anais do Seminário
Internacional D. João VI, um rei aclamado na América. Rio de Janeiro: MHN, 2000,
p. 338. MELO, Evaldo Cabral de. Um imenso Portugal. História e Historiografia. São
Paulo: Editora 34, 2002, p. 46ss.
30 – LOUREIRO, José Bernardo da Rocha. Memoriais a Dom João VI. Paris: FCG,
1973, p. 118.
31 – Quanto ao último aspecto, ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos..., p. 338. PI-
MENTA, João Paulo G., Estado e nação no fim dos impérios ibéricos no Prata (1808-
1828). São Paulo: Hucitec, 2002.

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Reconfigurar a Corte / (re)construir o Estado:
o horizonte de expectativas no Brasil do Reino Unido

Banda Oriental, quando se escancarou a política do Rio de Janeiro no


Prata – ficou evidente o conflito de posições entre o conde da Barca, cuja
perspectiva “brasileira” o fazia defender o tráfico negreiro, avançar sobre
a Banda Oriental e mesmo manter a Guiana e a perspectiva “portuguesa”
do conde de Palmela, focado na anulação dos tratados de 1810 em troca
de concessões na questão do tráfico32. O leque de opções e as hesitações
do período imediatamente anterior ao Congresso de Viena até a decisão
de instituir o Reino Unido foram bem expressas dos pareceres solicitados
por D. João a seus auxiliares sobre a situação e o futuro de seus domínios,
sendo o mais conhecido o de Silvestre Pinheiro Ferreira.

Silvestre Pinheiro Ferreira, em 1814 (ou desde 1810, como se aven-


tou), nas memórias dirigidas a D. João, a seu pedido, sugeriu que este
adotasse o título de Imperador do Brasil e atribuísse ao príncipe herdeiro
D. Pedro a regência de Portugal como príncipe da Beira. Não seria apenas
uma questão de nomenclatura, mas de uma nova entidade política a criar
na América, o primeiro império de raiz europeia quer pela origem da co-
lonização, quer por sua natureza dinástica.

A proposta do diplomata e filósofo já inclinado para o liberalismo


incluía não apenas o redesenho da geografia política da monarquia portu-
guesa, mas a reforma da sociedade, com a substituição gradual da nobreza
de sangue pela nobreza de serviço e a aceleração da mobilidade social a
partir de critérios meritocráticos, o que parece espelhar, além de reflexões
teóricas e de convicções ideológicas, a experiência como encarregado de
negócios de Portugal na Prússia, onde conviviam, com pleno acesso ao
Estado, aristocracia Junker, pequena nobreza rural, grandes comerciantes
e elite administrativa e universitária.

Logo após a proclamação do Reino Unido, foi publicado o livro do


abade De Pradt sobre o Congresso de Viena e sua argumentação deve ser

32 – LIMA, Manuel de Oliveira. D. João VI..., p. 436 e 445. BETHEL, Leslie. A abolição
do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo: Expressão e Cultura-Edusp, 1976, p. 26;
ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos..., p. 329 e 799; PIMENTA, João Paulo G. “O Bra-
sil e a “experiência cisplatina” (1817-1828)”. In JANCSÓ, István (org.). Independência:
história e historiografia. São Paulo: Hucitec, 2005, p. 75 ss.

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lembrada, porque as observações a propósito do Brasil tiveram audiência


local, em grande parte, devido à repercussão dada pelo Correio Brasilien-
se, não obstante Hipólito da Costa criticar as observações do autor sobre
o país.

O clérigo, publicista e diplomata francês dizia em seu livro que a


permanência de D. João no Brasil, após a cessação dos motivos para a
transferência da Corte, fazia surgir a questão inédita de um país da Amé-
rica ter colônias – no caso, Portugal – na Europa. Dava por assente que o
Brasil não precisava de Portugal, mas este do Brasil e que o soberano não
poderia governar ambos os países nas novas circunstâncias que os movi-
mentos coloniais americanos evidenciavam. Se permanecesse no Brasil,
Portugal não aceitaria a condição de província, e reciprocamente. Assim,
não via futuro para um sistema político que lhe parecia bicéfalo. Rocha
Loureiro diria o mesmo em agosto de 1816 no “O Português”33.

O Correio Brasiliense, no número correspondente a fevereiro de


1816, publicou a carta de lei de elevação, com a informação que o prín-
cipe regente “mudou a denominação de Estado do Brasil em Reino do
Brasil e ordenou que o corpo político debaixo de seu governo fosse daqui
em diante denominado Reino Unido...”34.

O redator relacionou, em seguida, considerações sobre o que deve-


ria ser feito a fim de efetivamente dar realidade política à inovação, de
modo que o ato não caísse no vazio. Deixando de lado medidas no âmbito
econômico, que carecia de “reformas essenciais”, mas poderiam ser rea-
lizadas por qualquer regime, preferiu focar no “melhoramento da forma
de governo”. Declarando-se favorável às mudanças graduais em lugar
das “revoluções morais e físicas”, opinava que a elevação a Reino Unido
significava ter o Brasil crescido a tal ponto, que já não era mais mera
colônia. Não deveria, em consequência, haver mais governos militares
nas capitanias, nem outras instituições que lembrassem conquista e admi-

33 – LOUREIRO, José Bernardo da Rocha, Memoriais a D. João VI. Paris: FCG, 1973,
p. 59 e 69.
34 – Correio Brasiliense, vol. XVI, 1816, p. 184.

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Reconfigurar a Corte / (re)construir o Estado:
o horizonte de expectativas no Brasil do Reino Unido

nistração colonial. Os administradores, por sua vez, deveriam afastar-se


de quaisquer arbitrariedades, pautando-se nas suas ações pelas normas
legais. Isso implicava inclusive no respeito aos processos legais em caso
de crimes, pois, exceto em circunstâncias de guerra ou pela condição co-
lonial, os governadores deveriam abster-se de atos que ferissem tal direi-
to. A sociedade seria, assim, governada pelo primado da justiça e da lei e
não da força35.

Sem uma política uniforme para os dois estados, aduzia Hipólito da


Costa, o Reino Unido seria um “monstro de duas cabeças”36, sendo que
era inequívoco ser o Brasil a parte mais importante do Império, necessi-
tando basicamente de imigrantes europeus e da transferência, por razões
de segurança e de fomento econômico, da capital para o interior – tema
pela primeira vez cogitado e que seria retomado à época da independên-
cia por José Bonifácio e pelas mesmas razões, em 1849, por Varnhagen.
Era a mesma crítica ao “despotismo” dos governadores capitães-generais
já feita por Silvestre Pinheiro Ferreira no memorial a D. João.

Em 1818, foi a vez de José da Silva Lisboa, nas Memórias dos bene-
fícios políticos do governo de El Rei Nosso Senhor D. João VI, referir-se
à elevação a Reino Unido. Entre os 12 benefícios que atribuiu à política
joanina, o décimo era a declaração do Reino Unido. Nela, o futuro vis-
conde de Cairu viu a aplicação de uma “grande razão de estado”, desta-
cou o potencial econômico do Brasil, a cessação do sistema colonial, a
igualdade de direitos entre portugueses e brasileiros, geradora do novo
“espírito de nacionalidade” e, citando Adam Smith, comparou o Reino
Unido luso-brasileiro às medidas semelhantes que ligaram a Inglaterra
à Escócia e, em seu tempo, à Irlanda. A partir desse ato, afirmou Lisboa,
D. João imprimiu o padrão de uma “economia imperial perpetuando o
“indissolúvel Império Lusitano”37.

35 – Correio…, pp. 187-190.


36 – Idem, pp. 294-295.
37 – LISBOA, José da Silva. Memória dos benefícios políticos do governo de El Rei
Nosso Senhor D. João VI. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1940, pp. 119-122.

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O contraponto lusitano da questão foi mais uma vez representado


pelo Português de Londres que, dirigindo-se diretamente ao monarca,
comparava sua situação com a do rei da Inglaterra que continuava senhor
de Hannover, na Alemanha. Para que conseguisse fazer o mesmo, porém,
D. João VI precisaria “adquirir (o que não tenho por impossível) a mesma
força da Grã Bretanha”. Mas arrematava: “de outra sorte, arreceio que se
venha a perder o tronco do nome Português”, acenando com os riscos de
uma anexação pela Espanha38.

Entre 1815 e 1820, as possibilidades do Reino Unido estavam em


aberto e os caminhos possíveis a trilhar eram opções perceptíveis no
horizonte político. Que pouco ou nada tinha sido feito de concreto para
avançar no sentido de institucionalizar a fórmula, foi constatado, ainda
em abril de 1820, pelo Correio Brasiliense, quando afirmou que “Todo o
sistema de administração está hoje arranjado por tal maneira que Portugal
e o Brasil são dois Estados diversos, mas sujeitos ao mesmo rei; assim a
residência do soberano em um deles será sempre motivo de sentimento
para o outro...”39.

A falta de desdobramentos efetivos para o Reino Unido, se não re-


tirou o Correio Braziliense da fidelidade à proposta, afastou a imprensa
portuguesa de uma posição “reformista”, que consistiria na recomposição
do Império a partir do pressuposto de sua unidade. Antes que o fenômeno
ocorresse no Brasil, em Portugal, já se manifestava uma transição “do
discurso imperial ao discurso nacionalista”, antibritânico e antibrasilei-
ro40.

O divisor de águas, em ambos os países, foi a revolução constitucio-


nalista de 1820. Nesse ponto pode-se indagar qual a base social sobre a
qual deslizavam as opções políticas. Os proprietários rurais, controlado-
res das câmaras municipais na condição de “homens bons” – exceto no
caso das cidades portuárias nas quais o elemento mercantil predominava
38 – LOUREIRO, José Bernardo da Rocha. Memoriais..., p. 56.
39 – Citação de VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História da independência do
Brasil. Brasília: CSI, 1972, p. 44, muito replicada pela historiografia posterior.
40 – ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos..., p. 433ss.

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Reconfigurar a Corte / (re)construir o Estado:
o horizonte de expectativas no Brasil do Reino Unido

– eram a fonte óbvia de poder local e, como tal, atuaram não apenas no
eixo Rio de Janeiro-São Paulo-Minas Gerais (cuja aliança o regente D.
Pedro alinhavou em pessoa) como também na Bahia, em Pernambuco, no
Maranhão ou no Pará. Ainda deve ser ressaltado o papel dos comerciantes
portugueses em cidades como Rio de Janeiro, Salvador e Recife. No caso
da Corte, somados aos transmigrados e à tropa portuguesa, constituíam
polo importante de poder nesta quadra de 1815-1820.

Oliveira Lima considerou os proprietários rurais das três capita-


nias que circundavam a Corte uma gentry que se aproximou do centro
do poder no governo joanino e que nele se afirmaria após a indepen-
dência. Raimundo Faoro, partindo desse ponto de vista, acrescentou-lhe
uma aliança com a “burocracia de segundo grau exilada nos municípios
e capitanias”41. Isso explicaria a frente comum de proprietários, juízes de
fora e ouvidores que, potencialmente, se opunham aos comerciantes por-
tugueses, já “retraídos”, segundo Faoro, ou debilitados pela concorrência
estrangeira.

A explicação, em seus contornos sociológicos gerais, continua válida


se a considerarmos um instantâneo fotográfico da época do Reino Unido.
Estudos mais recentes não destoam dela, especialmente, se considerada
a posição das elites numa perspectiva regional42. O catalisador que pôs o
instantâneo em movimento foi a Revolução Constitucionalista e, sobretu-
41 – LIMA, Manuel de Oliveira. O movimento da independência (1821-1822). São Pau-
lo: Edusp, 1989, p. 27ss. FAORO, Raimundo, op. cit., vol. I, p. 258.
42 – Cecília Salles de Oliveira associa o grupo de Gonçalves Ledo aos interesses de
comerciantes do norte fluminense articulados aos do sul de Minas Gerais, São Paulo e
Recôncavo Baiano, contrapostos aos grupos mercantis portugueses do Rio de Janeiro,
com fortes vínculos na administração pública. AZEVEDO, Cecília Salles de. A astúcia...,
passim; MEDICCI, Ana Paula. De capitania..., p. 241. Para a suspeição da Bahia em
relação ao Rio de Janeiro, SOUZA FILHO, Argemiro Ribeiro de. “Autonomia política e
centralização: a província da Bahia no Primeiro Reinado”. In De um Império..., p. 297ss;
SLEMIAN, Andréa. Sob o Império das Leis. Constituição e unidade nacional na forma-
ção do Brasil (1822-1834). São Paulo: Hucitec, p. 55. O antagonismo Gonçalves Ledo
versus José Bonifácio foi visto também como um conflito entre duas elites, a luso-brasilei-
ra representada pelo primeiro e a coimbrã; BARMAN, Roderick. Brazil. The forging of
a nation, 1798-1852, Stanford: Stanford University Press, 1988, p. 72ss. NEVES, Lucia
Bastos Pereira das. Corcundas e constitucionais. A cultura política da independência
(1820-1822). Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 55ss.

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Arno Wehling

do, a política das Cortes quando, mais que as discussões de filosofia po-
lítica, definiu posições à ameaça concreta (ou sua percepção como tal) de
uma recolonização do Brasil, com a restauração do sistema colonial. Isso
foi pelo menos o que constatou Saint Hilaire na província de São Paulo,
em 1822. Tal restauração implicaria não apenas o retorno ao exclusivo
comercial português, mas ao autoritarismo dos “governadores capitães-
-generais”, cuja crítica normalmente partia da elite proprietária que, com
eles, conflitava. O mesmo Saint Hilaire, aliás, observou finamente que
“o despotismo dos capitães-generais pesava muito mais sobre os cida-
dãos das principais camadas sociais do que sobre os pobres”43. Os dados,
lançados em Portugal no mês de agosto de 1820, começaram a rolar no
Brasil menos de dois meses depois.

O Reino Unido: o desafio perdido, 1820-1822


O período que vai de outubro de 1820, quando chegaram à Corte as
primeiras notícias do movimento do Porto, a setembro-outubro de 1822,
quando se concretiza a independência do Brasil, é a época de agonia e
morte da fórmula política do Reino Unido. A encruzilhada para o Brasil,
representada pela revolução do Porto, foi descrita na geração seguinte à
da independência por Francisco Adolfo de Varnhagen, ao dizer que ela
marcou nova era para o país, um ponto sem retorno. Se não aderisse,
tornar-se-ia desde logo independente. Se aderisse e também adotasse as
novas instituições, não poderia submeter-se ao risco de retornar à condi-
ção colonial.

Dos últimos meses de 1820 até fevereiro de 1821, o governo joanino


viveu as tensões contraditórias de como se relacionar com os revolucio-
nários portugueses, e o ponto nodal foi o retorno ou não do rei. A chegada
ao Rio de Janeiro do conde de Palmela e sua posse no ministério opôs a
concepção de uma monarquia constitucional, controlada pela nobreza, ao
antiliberalismo do ministro Tomás Antonio de Vilanova Portugal44. Um
43 – SAINT HILAIRE, Auguste de. Segunda viagem do Rio de Janeiro a Minas Gerais
e a São Paulo. São Paulo: Edusp, 1974, p. 88.
44 – FAORO, Raimundo. O processo político da independência. Rio de Janeiro: CFC,
1973, pp. 11-12.

38 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):13-48, jan./abr. 2019.


Reconfigurar a Corte / (re)construir o Estado:
o horizonte de expectativas no Brasil do Reino Unido

servidor leal e dedicado como o ouvidor José Antonio de Miranda chegou


a dirigir-se ao rei num livreto publicado pela imprensa régia – o que atesta
a presença de várias correntes de opinião no governo – para lamentar que
a “ferrugem gótica” de seus ministros o tivesse impedido de conceder,
desde logo, uma constituição moderada, solução muito melhor do que
“esperar que eles [os súditos] a pedissem e reclamassem”45 – sugestão,
aliás, já feita quatro anos antes, em Londres, pelo Português que asso-
ciava a “felicidade de Portugal e Brasil” à outorga pelo rei de uma “livre
constituição que os cimente e uma estreitamente”46.

Em Portugal tinha-se outra ótica para os mesmos problemas. As


opções percebidas em Lisboa passavam pela própria existência do país:
manutenção do statu quo, ou seja, do Império luso-brasileiro, com as mo-
dificações necessárias nos dois lados do Atlântico e nas relações entre as
partes; desvinculação de Portugal do Brasil, com a dinastia de Bragança
ou com outra – já se cogitava da Casa de Cadaval47 - ou mesmo a união
com a Espanha. Quanto ao segundo ponto, a expectativa das Cortes em
relação a D. João era a adesão às Bases Constitucionais da Monarquia
Portuguesa, adotando-se, assim, a matriz liberal, além de modificações na
política econômica do Reino Unido (cogitadas, pelo menos, desde 1816),
de modo a atender aos interesses dos comerciantes portugueses, notoria-
mente prejudicados não apenas pelos tratados de 1810, mas pelo protago-
nismo econômico do Brasil.

No Brasil a agitação constitucional não afetou apenas a Corte em


fevereiro de 1821. Antecipou-a o Pará, onde, em 1 de janeiro, a tropa
constituiu novo governo em Belém. O mesmo ocorreu em Salvador, a 10
de fevereiro.

Em fevereiro, à vista dos acontecimentos, o rei optara por enviar o


príncipe D. Pedro a Portugal e, simultaneamente, convocar novas Cortes,
desta vez, no Rio de Janeiro. Teria o Reino Unido duas constituições? As

45 – MIRANDA, José Antonio de. Memória..., p. 49.


46 – Memoriais…, p. 3 e 11.
47 – LIMA, Manuel de Oliveira, D. João VI..., p. 650.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):13-48, jan./abr. 2019. 39


Arno Wehling

cortes brasileiras se limitariam a adaptar a futura constituição portuguesa


às peculiaridades brasileiras? Eram questões consequentes e que expri-
miam o quadro de turbação política do momento. De qualquer modo, es-
sas medidas provocaram mal estar na tropa portuguesa, nos comerciantes
portugueses do Rio de Janeiro e a demissão de Palmela. A força da reação
fez com que o rei, no dia 26 de fevereiro, anulasse o decreto, constituísse
novo ministério e aprovasse antecipadamente a constituição a ser elabo-
rada pelas Cortes portuguesas.

Março e abril de 1821 foram meses de muita agitação política no Rio


de Janeiro envolvendo diferentes facções políticas nas ruas e em reuni-
ões fechadas, inclusive de caráter maçônico. Corcundas ou absolutistas e
constitucionais, brasileiros e portugueses opunham-se no calor dos acon-
tecimentos. Acentuava-se o que já foi chamado de “a desilusão com o
Império luso-brasileiro”48. Nessa mesma ocasião, José da Silva Lisboa,
fazendo parte do governo, publicou os sete números de seu jornal signifi-
cativamente intitulado Conciliador do Reino Unido, cuja edição inaugu-
ral fazia um apelo “a todas as classes” para que relessem a carta de lei que
criara o Reino Unido, asseguradora da prosperidade e do bom governo.
O segundo número considerava o dia 26 de fevereiro “dia da regenera-
ção do Reino do Brasil”, quando o monarca se comprometeu com uma
“liberal constituição”. A epígrafe de todos os números era uma estância
de Camões em que se realçava a “lealdade firme” e a “obediência” dos
portugueses ao rei49.

Pela mesma época, a posição de José Antonio de Miranda permite


conhecer melhor as opiniões e as questões em debate. Para o ouvidor, ci-
tando o jurista ilustrado Vattel, o fundamento do poder político estava no
fato de a nação ter o direito de estabelecer e de aperfeiçoar a constituição.
Por isso, foi fundamental o juramento constitucional de 26 de fevereiro.
Quanto ao Reino Unido, Portugal e Brasil deveriam permanecer vincu-
lados para serem “grandes e poderosos”; separados, “o Brasil não é nada
e Portugal coisa nenhuma”; a sede seria “onde as Cortes determinarem”.
48 – NEVES, Lucia Bastos Pereira das. Corcundas..., p. 231.
49 – O Conciliador do Reino Unido, n. 1-7, março-abril de 1821.

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Reconfigurar a Corte / (re)construir o Estado:
o horizonte de expectativas no Brasil do Reino Unido

Existiam, entretanto, dois grandes riscos para o Brasil: uma rebelião es-
crava como a de São Domingos e o retorno ao antigo sistema, quando o
rei perderia Portugal, se fragmentaria o Brasil e D. João “seria rei do Rio
de Janeiro”50.

A nova orientação política estabelecida em 26 de fevereiro comple-


tou-se com a decisão do retorno do rei, ficando como regente do Reino do
Brasil o príncipe D. Pedro, decisão comunicada aos eleitores do Rio de
Janeiro numa reunião a 21 de abril, em prédio da Praça do Comércio. Não
há dúvida de que, para essa tomada de posição, após tantas hesitações,
além dos fatores internos brasileiros e portugueses, pesaram a abstenção
da Santa Aliança em imiscuir-se nos assuntos de Portugal e a atitude in-
glesa de não intervenção, que já foi vista como pretensão de constituir-se
a Grã Bretanha em árbitro do contencioso entre as Cortes e o Rei51.

O ato da Praça do Comércio foi tumultuado e se chegou a exigir do


rei que adotasse provisoriamente a constituição espanhola, o que este fez.
Repetia-se o que já ocorrera dois meses antes na Bahia. Uma forte reação,
liderada por D. Pedro e pelo conde dos Arcos, reprimiu a assembleia no
dia 22 e anulou a adoção do texto de Cádiz, afinal vigente por um dia52.
No dia 24 o rei retornou a Portugal, deixando o príncipe regente D. Pedro
com atribuições definidas em decreto datado do dia 22.

O decreto de 22 de abril definiu as atribuições do Regente e a orga-


nização ministerial do país, sendo o mais importante ato no âmbito do
Reino Unido desde a elevação do Brasil. O sucesso da fórmula do Rei-
no Unido dependeria fundamentalmente agora do sucesso do governo do
príncipe regente e da capacidade das Cortes de constitucionalizar ambos
os reinos.

50 – MIRANDA, José Antonio de. Memória..., pp. 47-74.


51 – BETHEL, Leslie, A independência do Brasil, In BETHEL, Leslie (org.). História
da América Latina da independência até 1870. São Paulo: Edusp, 2004, p. 214. ALE-
XANDRE, Valentim. op. cit. p. 802.
52  –  WEHLING, Arno e WEHLING, Maria José. “Liberalismo ou democracia: a recep-
ção brasileira da Constituição de Cádiz”. In ESCUDERO, José Antonio (dir.). Cortes y
Constitución de Cádiz – 200 años. Madri: Espasa, 2011, vol. III, p. 638.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):13-48, jan./abr. 2019. 41


Arno Wehling

A nova etapa inaugurada com a regência de D. Pedro, que se esten-


deria de 24 de abril até a independência, iniciou-se com a eleição de depu-
tados brasileiros às Cortes e desde logo foi conturbada pelos conflitos dos
diferentes grupos políticos e pela presença das tropas portuguesas no Rio
de Janeiro. Nessa etapa, a tônica será a do progressivo esvaziamento da
fórmula do Reino Unido, numa conjuntura de marchas e contramarchas.

Em Portugal, o quadro evoluiria nas Cortes com a incorporação dos


deputados do Brasil a partir de fins de agosto até outubro de 1821, si-
multaneamente à adoção de medidas hostis, como o ato de extinção dos
tribunais e a determinação para o retorno do príncipe.

O segundo semestre de 1821 e os primeiros meses de 1822 assinalam


a existência crescente de percepções diferentes em relação ao problema
da manutenção do Reino Unido, em Portugal e no Brasil, contrastando
com o relativo consenso a favor de reformas liberais. No primeiro caso,
o grupo liderado por Manuel Fernandes Tomás, mais conhecido no Brasil
por sua posição favorável à ruptura, desde março de 1822, adotara uma
política “integracionista”53 que previa a representação provincial nos dois
reinos, sem que tal posição representasse necessariamente um propósito
recolonizador, como era lida no Rio de Janeiro a perda da centralidade
política deste. Era uma posição que coincidia com as manifestações da
Bahia, do Maranhão e do Pará, entre março e junho de 1822, que se re-
cusaram a atender à convocação do príncipe regente de 16 de fevereiro
para enviar representantes ao Rio de Janeiro. A este respeito, assim se
expressaram tanto o Semanário Cívico da Bahia quanto o O Conciliador
do Maranhão: “Como é que uma província, a qual tem em Cortes os seus
deputados ou procuradores [...] mande agora ao Rio de Janeiro novos
procuradores para cuidarem do mesmo objeto?”54. No Pará era a própria
Junta Governativa que se manifestava, reconhecendo como “centro do
poder executivo e legislativo o soberano e augusto Congresso”55.

53 – Expressão de ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos..., p. 801.


54 – O Conciliador do Maranhão, n. 91, 25 de maio de 1822.
55 – Ofício da Junta Provisória da Província do Pará. As Juntas Governativas e a inde-
pendência. Rio de Janeiro: CFC, 1973, vol. I, p. 7.

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Reconfigurar a Corte / (re)construir o Estado:
o horizonte de expectativas no Brasil do Reino Unido

Exatamente oposta era a posição do Rio de Janeiro, onde, desde o


dia do Fico, a 9 de janeiro de 1822, fortalecia-se o propósito de afirmar a
centralidade do Rio de Janeiro, rejeitando os decretos de 29 de setembro
e a exigência do retorno do Príncipe Regente. Mais ainda a da Junta de
São Paulo, cujas manifestações foram consideradas pouco hábeis mesmo
pelos deputados paulistas em Lisboa, que reiteravam ser a presença de D.
Pedro no Brasil a melhor garantia para a unidade da monarquia. À vista
da reação do Rio de Janeiro, uma posição mais moderada dos deputados
portugueses levou à criação de uma comissão específica para temas do
Brasil nas Cortes, mas seu parecer, discutido em fins de março, revelou-se
incapaz de encaminhar uma solução aceitável, cindindo-se a assembleia
em torno aos partidários de Manuel Fernandes Tomás (que então proferiu
o discurso que o celebrizou como catalisador da hostilidade ao Brasil) e
“conciliadores”56.

É bom indicador de uma das últimas opiniões a favor do Reino Uni-


do em Portugal o folheto de Joaquim José Pedro Lopes, publicado ano-
nimamente em Lisboa em 1822, mas referindo-se também aos aconteci-
mentos em Portugal no ano anterior, Reflexões sobre a necessidade de
promover a união dos estados de que consta o Reino Unido de Portugal,
Brasil e Algarve nas quatro partes do mundo. O autor alerta contra os
que diziam ser Portugal metrópole que não deveria tornar-se colônia do
Brasil, além do fato de considerarem a união inviável pela distância geo-
gráfica. Também alerta contra os que, no Brasil, afirmavam que este não
precisava de Portugal, “pequeno e pobre”, pois desejavam um governo
republicano e eram fomentados por estrangeiros interessados na separa-
ção57. Retomando o discurso dos “portugueses de ambos os hemisférios”,

56 – [...] Para uma análise detalhada da situação nas Cortes nos primeiros meses de
1822, inclusive a constituição da comissão especial para tratar dos assuntos do Brasil,
NEVES, Lucia Bastos Pereira das. Corcundas..., p. 337 e ALEXANDRE, Valentim. Os
sentidos..., pp. 609 e 804, BERBEL, Marcia Regina. A nação como artefato. Deputados
do Brasil nas Cortes portuguesas. São Paulo: Hucitec, 1999.
57 – LOPES, José Pedro. Reflexões sobre a necessidade de promover a união dos es-
tados de que consta o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve nas quatro partes do
mundo. Lisboa: Tipografia de Antonio Rodrigues Galhardo, 1822, pp. 104-105.

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Arno Wehling

pregava a aliança do rei e das Cortes no objetivo comum da união, com a


qual seriam lançadas as bases de um dos mais poderosos impérios.

No Brasil, a regência de D. Pedro, seus sucessivos ministérios e a


ação maçônica em especial da loja “Comércio e Artes” consolidaram,
ao longo de 1821, a ideia de manter o Reino Unido, desde que não en-
volvesse dependência a Portugal. Em 15 de setembro de 1821, o primei-
ro número do jornal Revérbero Constitucional Fluminense, de Joaquim
Gonçalves Ledo e de Januário da Cunha Barbosa, saudava a Revolução
Constitucional de 1820 e se dizia confiante nos “gloriosos destinos do
Reino Unido”, o que não impedia o espectro da independência de estar no
horizonte, a ponto de D. Pedro, no mês seguinte, ter de declarar fidelidade
ao regime e desmentir boatos segundo os quais seria Imperador de um
Brasil separado de Portugal.

Em dezembro, a notícia dos atos das Cortes para a extinção de ór-


gãos públicos e o regresso do príncipe aqueceu o clima político, e a virada
do ano assistiu a uma intensa ação no Rio de Janeiro, Minas Gerais e São
Paulo das juntas governativas e das câmaras para a sua permanência, tor-
nada emblemática com a declaração de 9 de janeiro seguinte.

O Fico, liderado pelo Senado da Câmara do Rio de Janeiro, e a as-


sunção de José Bonifácio de Andrada e Silva, então vice-presidente da
junta de São Paulo, ao ministério dão, no mês de janeiro, os primeiros
sinais concretos de que o Reino Unido começava a se tornar inviável, a
menos que as Cortes mudassem de política. A resistência que se poderia
esperar dos comerciantes portugueses no Rio de Janeiro arrefeceu com a
adesão de José Clemente Pereira, português e juiz de fora presidente da
câmara, como uma espécie de avalista dos interesses do comércio lusi-
tano.

No mês seguinte aparece outro sinal: a convocação astuta e ambi-


valente por José Bonifácio do Conselho de Procuradores Gerais das Pro-
víncias do Brasil. Em março, acrescentou-se a recusa ao desembarque de
tropas portuguesas. Dizemos astuta e ambivalente, porque a convocação

44 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):13-48, jan./abr. 2019.


Reconfigurar a Corte / (re)construir o Estado:
o horizonte de expectativas no Brasil do Reino Unido

do Conselho de Procuradores, que seria recusado pelas províncias do nor-


te, era justificada pelo ministro com a necessidade de adaptar a constitui-
ção feita pelas Cortes às necessidades do Brasil. Isso abria caminho tanto
para a conciliação, mantendo-se o Reino Unido, se as Cortes aceitassem
esse poder constituinte derivado, como para uma eventual transformação
do Conselho em Assembleia Constituinte – como ocorrera na França em
1789.

A imprensa e particularmente os panfletos são expressão fiel das di-


ferentes correntes e da crescente tensão58. Sem terem grau mais sofistica-
do de teorização política, sua retórica dá, no entanto, conta do quadro de
opções percebidas pelos contemporâneos e um mínimo de fundamentação
em matéria de filosofia política às diferentes posições, já que aparecem
referências frequentes a, nem sempre bem assimiladas, Locke, Montes-
quieu, Rousseau, Constant e outros autores. Para além da questão espe-
cífica do Reino Unido, entravam as demais que diziam respeito ao novo
pacto social e político, mas que naturalmente com ela se relacionavam: o
caráter da representação, a legitimidade constituinte, a forma de governo,
a organização do Estado e o desenho da nação.

Como exemplos da relação entre esses problemas gerais, comuns a


um processo constituinte, e a questão do Reino Unido são sintomáticas
duas posições aparentemente antípodas: a de Manuel Fernandes Tomás e
seus seguidores, ao atribuir, também com evidente astúcia e ambiguidade,
um caráter nacional comum aos dois lados do Atlântico, de modo que
houvesse representação dos “portugueses” de ambos os hemisférios59 e
58  –  Recentemente foram editados panfletos da época da independência, cuja análise
sistemática está ainda por ser feita, podendo ou não alterar os principais delineamentos
do processo e as atitudes em relação ao Reino Unido. De qualquer modo, sua reunião
é contribuição extremamente útil para a elucidação da cronologia curta dos eventos e
para o mapeamento ideológico e de circunstância das posições dos diferentes atores em
relação ao problema crucial de manter ou não a unidade luso-brasileira. Em quatro vo-
lumes, a coleção reúne respectivamente cartas, análises, sermões/diálogos/manifestos e
poesias/relatos/cisplatina. CARVALHO, José Murilo de; NEVES, Lucia Bastos Pereira
das e BASILE, Marcelo. Guerra literária. Panfletos da independência (1820-1823). Belo
Horizonte: UFMG, 2014.
59 – A expressão é de D. Rodrigo de Sousa Coutinho, mas cabe à conjuntura de quase
trinta anos depois; COUTINHO, Rodrigo de Sousa. “Sistema que mais convém”. In:

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):13-48, jan./abr. 2019. 45


Arno Wehling

não do Brasil e de Portugal; e a do deputado paulista padre Feijó, exposta


em discurso nas Cortes em abril de 1822, portanto depois da polêmica
fala de Tomás no mês anterior. Feijó defendia um caráter distinto para o
Reino do Brasil na futura unidade política luso-brasileira, mas também
que cada província fosse reconhecida como independente enquanto não
se fizesse a constituição, de modo que sua autonomia posterior fosse con-
siderada ao se definir o Império. Enquanto o deputado português diluía
ambos os reinos na mesma “nação”, o paulista fazia o mesmo, mas atri-
buindo às identidades regionais – as respectivas províncias – a titularida-
de da representação60.

Nesse contexto conturbado, José da Silva Lisboa publicou um se-


gundo periódico, com novo título também especialmente revelador,
Reclamação do Brasil, que circulou de janeiro a maio de 1822. Muito
conservador como sempre, Silva Lisboa não deixa de fazer profissão de
fé constitucional enquanto bate fortemente nas Cortes, usando como epí-
grafe, dessa vez, a lei portuguesa de 1 de outubro mandando o príncipe
regressar. Critica as ordens para que os governadores das províncias fi-
cassem subordinados a Lisboa, a extinção dos tribunais e a presença da
tropa portuguesa de Madeira de Melo na Bahia, mas não deixa de fazer
um registro conciliador em abril, quando percebeu posição mais caute-
losa das Cortes em relação ao Brasil61. Mais radical, neste mês, seria o
liberal moderado Revérbero que, na edição de 30 de abril, conclamou a
independência cunhando frase depois muito repetida: “não desprezes a
glória de ser o fundador de um novo Império”62.

De maio em diante já não são mais sinais de esgotamento da fórmula


mas a sua degringolada. Nesse mês declara-se que os atos das Cortes só
MENDONÇA, Marcos Carneiro de. O intendente ... p. 177ss.
60 – 58 FEIJÓ, Diogo Antonio. “Discurso na sessão de 25 de abril de 1822 nas Cortes”.
In CALDEIRA, Jorge (org.). Diogo Antonio Feijó. São Paulo: Editora 34, 1999, pp. 52-
53.
61 – Reclamação do Brasil n. 5-8, 8-10 e 12, respectivamente. Dada a demora das co-
municações, em torno de dois meses, é preciso lembrar que a referência de Silva Lisboa
em abril era à situação das Cortes em fevereiro, portanto anterior ao agravamento da crise
com os liderados de Manuel Fernandes Tomás.
62 – Revérbero Constitucional Fluminense, 30 de abril de 1821.

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o horizonte de expectativas no Brasil do Reino Unido

seriam válidos se promulgados pelo Regente e se oferta a ele o título de


Defensor Perpétuo do Brasil. Em junho, convoca-se uma assembleia na-
cional constituinte, não sem vencer resistências de Pernambuco e do Ce-
ará (contra a centralidade do Rio de Janeiro) e do Piauí, Maranhão, Pará
e Cisplatina, ainda mais vinculados a Lisboa. Em agosto, o manifesto de
Gonçalves Ledo, conclamando à união provincial em torno do príncipe,
falava em “independência”, e o de José Bonifácio às nações estrangeiras
pedindo que continuassem a manter relações com o Brasil acenava com
o fantasma de um novo fechamento comercial do país. A declaração de
7 de setembro do príncipe regente e sua aclamação, em 12 de outubro,
homologaram o fim do modelo institucional criado em 181563.

A viabilidade de se manter a fórmula do Reino Unido dependia do


aprofundamento da reconfiguração da Corte/(re)construção do Estado
em suas repercussões sobre a sociedade brasileira e da possibilidade de
constitucionalizar simultaneamente Brasil e Portugal, reestruturando suas
relações em um novo modelo político.

No primeiro caso, a atitude era negativa. Tratava-se de negar o


passado colonial para atender às novas demandas econômicas (como a
liberalização da economia e as medidas de fomento), sociais (o fim da
sociedade estamental e a decretação da igualdade jurídica para os homens
livres) e políticas (as liberdades de imprensa e de associação e o fim dos
“despotismos” do Antigo Regime, tanto o dos governadores de capitanias
quanto o “ministerial”). Se havia concordância entre as várias elites luso-
-brasileiras (não apenas as duas mencionadas nos estudos de Roderick
Barman e Lucia Bastos, centradas no Rio de Janeiro, mas as regionais, do
Rio Grande do Sul ao Pará) e as portuguesas quanto à agenda liberal, sem
dúvida, o problema de uma relação comercial preferencial entre os dois
reinos esteve longe de ser solucionado.

63 – A sucessão de acontecimentos no final do processo de independência foi objeto de


uma “estratégia da memória” que se oficializou a partir da lei de 9 de setembro de 1826
sobre as “festividades nacionais” no Império. LYRA, Maria de Lourdes Viana. “Memória
da independência: marcos e representações simbólicas”. In Revista Brasileira de História.
São Paulo: ANPUH, n. 29, 1995

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):13-48, jan./abr. 2019. 47


Arno Wehling

No segundo caso, a atitude era afirmativa. Tratava-se de reconstruir


a sociedade civil e o Estado – expressões correntes no discurso da épo-
ca – com base no pacto social, isto é, na constituição, que deveria fixar
as condições para a harmonia entre as classes fundada na liberdade, na
segurança e na propriedade, as fórmulas vitoriosas na primeira fase da
Revolução Francesa. Quanto ao Estado, dever-se-ia determinar a forma
de governo, garantir o funcionamento do governo misto de modelo inglês
quanto aos poderes e definir o grau da representação política.

Eram problemas comuns a todas as revoluções constitucionais, agra-


vados – no caso luso-brasileiro – pelas dificuldades e pelas contradições
da antiga relação colonial, agora transformada epidermicamente em união
política. E foram essas dificuldades e contradições e não o desmonte em
si do universo colonial ou a construção do universo constitucional que
inviabilizaram a fórmula do Reino Unido.

Texto apresentado em outubro/2018. Aprovado para publicação em


dezembro/2018.

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Historiografia Joanina: confrontos e convergências

49

HISTORIOGRAFIA JOANINA: CONFRONTOS E


CONVERGÊNCIAS
HISTORIOGRAPHY ON KING JOÃO VI: CONFRONTATIONS
AND CONVERGENCES
Lucia Maria Paschoal Guimarães1

Resumo: Abstract:
A comunicação tem por objetivo fazer um ba- The purpose of the article is to take stock
lanço da produção historiográfica sobre o rei- of the historiographical production about
nado americano de D. João VI em Portugal e the American reign of King João VI in
no Brasil. Busca-se também identificar as prin- Portugal and Brazil. We also aim to identify
cipais linhagens interpretativas, apontando con- the main interpretive lines and highlight the
frontos e convergências. confrontations and convergences.
Palavras-chave: D. João VI; historiografia joa- Keywords: King João VI; Historiography on
nina; historiografia luso-brasileira. King Joãohn VI; Luso-Brazilian Historiography.

O Dia da Coroação de El-Rei Nosso Senhor D. João VI nesta Primeira


Corte do Novo Mundo, fixa tão Grande Época nos Anais d’América,
que deve ser aclamado, não só em voz transitória mas também em al-
guma Memória que indique os Principais Benefícios que fez ao Esta-
do até a sua Faustíssima Aclamação em 6 de fevereiro do corrente ano
de 1818, narrando-se os prodigiosos sucessos, que enfim ocasionaram
tal mercê à grande Terra cantada pelo príncipe dos poetas lusitanos,
pois como disse o célebre Orador de Roma, passam as cousas e ficam
as escrituras [...]2. Monumentos públicos mostram, que à Sua Majesta-
de o Senhor D. João VI, de Juro e Herdade, pertencem não os Títulos
de Pai da Pátria e Salvador do Estado – mas também de Exemplar de
Virtudes Políticas e Benfeitor da Humanidade. Vindo ao Novo Mundo
para criar um Império, quase no centro do globo, e ai estabelecendo
o liberal sistema econômico, nunca empreendido pelos soberanos da
Europa, [...]3.
(José da Silva Lisboa. Rio de Janeiro, 1818)

1  –  Doutora em História pela Universidade de São Paulo. Professora Titular da Uni-


versidade do Estado do Rio de Janeiro. Bolsista de Produtividade do CNPq nível 1 A.
Pesquisadora do Programa Prociência da UERJ; do Programa Cientista do Nosso Estado/
FAPERJ . Sócia efetiva do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Endereço eletrôni-
co: luciamp@uol.com.br.
2  –  LISBOA, José da Silva. Memória dos benefícios políticos do governo de El-Rei Nos-
so Senhor D. João VI. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1818, p. III.
3 – Idem, pp. 4-5.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):49-64, jan./abr. 2019. 49


Lucia Maria Paschoal Guimarães

Ah! Lembre-te, Senhor, o que Fizeste


Sagrado voto sobre nossas praias:
Por Tua Destra nos juraste em breve
Tornar do Tejo as prateadas ondas.
[...] A negra, infame tirania há muito
Em Tartária prisão jaz aferrolhada [...]
Mas quando Tu, ó Rei, de novo Tornes
Os muros demandar d’alta Ulisséa
Verás a chama do prazer sincero
De nossos corações rompendo ativa:
Oh! ditoso Baixel! Ah! Não demores
Aos Lusos este bem, esta ventura!
Tu não podes, ó Rei, a nossas preces
Teus ouvidos negar: Atende como
Propicia a nossos ais Justiça os ouve
Como nossa esperança anima os votos
Os anos de Titã disfruta e goza,
Mas passa-os entre nós, aqui Te-agrade
De Pai o nome ouvir; então meu estro
Sublime há de crescer; nas asas suas
Eterno se fará Teu Nome Augusto4.
(António Feliciano de Castilho. Lisboa, 1818)

As epígrafes são longas, mas muito ilustrativas. A Aclamação de D.


João VI, no Rio de Janeiro, em 6 de fevereiro de 1818, suscitou reações
distintas no Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Na banda de cá
do Atlântico, entre outras homenagens tributadas ao monarca, José da
Silva Lisboa escreveu uma memória com a síntese dos principais fatos
do seu governo, a partir da transladação da corte para o Rio de Janeiro,
quando o então príncipe regente se propôs a criar um novo Império nos
seus territórios americanos, com a supressão provisória do sistema co-
lonial. No entender de Silva Lisboa, tal decisão havia salvado a coroa,
a monarquia, a nação e a sociedade das garras do “Tigre Corso”5. Silva
Lisboa ressalta as virtudes de D. João – homem justo, piedoso, decente e

4 – CASTILHO, Antonio Feliciano. A faustíssima exaltação de Sua Majestade Fidelíssi-


ma o Senhor D. João VI ao Trono. Poema dedicado ao Mesmo Senhor. Lisboa: Impressão
Régia, 1818, pp. 47-49
5  –  LISBOA, José da Silva. Op. cit., p. 56.

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Historiografia Joanina: confrontos e convergências

de boa ordem, que não abandonou seus vassalos no Reino à própria sorte,
e conclui que “[...] sob os seus auspícios a Nação portuguesa foi compa-
rativamente a mais feliz das Nações e a que menos sofreu do mal geral da
Revolução e guerra que atormentou a Europa e a América”6.

Na banda de lá do Mar-Oceano, o Rei recém-aclamado também foi


merecedor de diversos encômios. Um jovem estudante de Direito da Uni-
versidade de Coimbra, Antônio Feliciano de Castilho, dedicou-lhe um
longo poema em três cantos, que se reportam aos principais fatos do go-
verno de D. João, cujos versos são acompanhados de copiosas notas com
indicações de decretos, cartas, resoluções e alvarás. Tal como José da
Silva Lisboa, Castilho louva os predicados do monarca e enaltece o seu
sacrifício de deixar a pátria para preservá-la. No último canto, porém, o
estudante português diverge do ensaísta brasileiro. Ele reclama a ausên-
cia do soberano, suplica a sua volta ao Reino e lhe cobra o cumprimento
das promessas de regresso, como se observa nos três primeiros versos da
epígrafe acima7.

No mundo luso-brasileiro, o tratamento historiográfico dispensado


ao rei D. João VI também se mostra contraditório – ora percebido como
supersticioso, indeciso e fantoche nas mãos dos britânicos, ora visto como
homem bondoso e hábil estadista, que ludibriou Napoleão e soube preser-
var a integridade da Casa de Bragança. Acrescente-se a isso, a exploração
caricata de certos aspectos da sua personalidade, sobretudo, a fama de
titubeante e glutão.

6 – Idem, p. 189.
7  –  Nas notas que acompanham a publicação do poema, António Feliciano de Castilho
faz referência às promessas externadas por D. João em dois documentos: o Aviso Régio
de 11 de julho de 1814 e a Carta Régia de 26 de agosto do mesmo ano. Em relação ao
primeiro, o poeta afirma: “Sua Majestade conheceu a fiel expressão dos desejos, e reve-
rentes votos da Nação Portuguesa, que o Exmos. Governadores do Reino fizeram chegar
ao Trono, de ver restituída à antiga sede da Monarquia Portuguesa, a soberana pessoa de
Sua Majestade e a sua Augusta Família, e declarou que veria com suma satisfação o dia
feliz de se achar entre os portugueses. Quanto ao segundo, Castilho registra que D. João
“[...] avaliou as fiéis expressões dos portugueses, e patenteou os fervorosos desejos de se
ver em Portugal restituído com a Sua Família Real (O grifo é nosso).
Ver, CASTILHO, António Feliciano de. Op. cit., p. 82.

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Lucia Maria Paschoal Guimarães

Em Portugal, os sentimentos dos contemporâneos exerceram forte


influência nos relatos históricos, dando origem a uma vasta literatura po-
lêmica, em que se sobressai a História geral da invasão dos franceses
em Portugal, e da restauração d’este reino, redigida por José Acúrsio
das Neves, editada entre 1810 e 18118. Trata-se do primeiro relato sobre
o tema e constitui um dos casos mais interessantes do que, hoje em dia,
se denomina de história do tempo presente, na percepção do historiador
Luís Reis Torgal9.

A história do tempo presente, entretanto, convém assinalar, consti-


tui uma resposta a uma necessidade coetânea. De fato, não se trata mais
de organizar o passado em função do presente, conforme definiu Lucien
Febvre, mas sim de utilizar o passado para intervir no presente. A vin-
da da Corte provocou a subversão dos papéis: a colônia transmudou-se
em metrópole, fenômeno histórico que Silvio Romero, mais tarde, de-
nominaria de inversão brasileira. E, no Reino, a memória daqueles que
não acompanharam a comitiva real, sentindo-se abandonados diante do
exército inimigo e depois subjugados pela tirania dos ingleses, acabaria
por prevalecer sobre a história. A solução que a princípio se imaginava
provisória parecia perpetuar-se, consoante os versos de Antonio Feliciano
de Castilho.

Se, em 1807, não restava outra alternativa ao príncipe senão refu-


giar-se no Brasil, conforme admitia José Acúrsio das Neves, a decisão
passou a ser contestada com o correr do tempo, à medida que se alterava o
quadro da política externa europeia. Apesar disso, D. João se deixou ficar
por aqui, mesmo depois que Napoleão já se encontrava preso em Santa
Helena e a paz restabelecida no Velho Mundo. Esses fatos, diga-se de
passagem, também se acham consignados no aludido poema de Castilho.

8  –  NEVES, José Acúrsio das. História geral da invasão dos franceses em Portugal, e
da restauração d’este reino; notas introdutórias de Antonio Almodóvar e Armando Cas-
tro. Porto: Edições Afrontamento, [s.d]. 2v.
9  –  TORGAL, Luís Reis. “Antes de Herculano...”. In: _____, MENDES, José Amado e
CATROGA, Fernando. Historia da história de Portugal sécs. XIX e XX. Volume 1. Lis-
boa: Temas e Debates, 1998, pp. 30-40.

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Historiografia Joanina: confrontos e convergências

Os acontecimentos se precipitaram com a revolução do Porto, forçando,


finalmente, o seu regresso.

A sucessão dos eventos ensejou o aparecimento de uma análise me-


morial, reflexo de experiências vividas, que se prestava a interpretações
variadas, consoante o posicionamento político e o horizonte de expecta-
tivas dos respectivos autores. Tais testemunhos se converteriam em ma-
téria prima para uma reflexão diferente da realidade lusíada, em que se
buscavam respostas no passado para explicar a trajetória descendente que
àquela altura Portugal atravessava. Isso se observa no Ensaio histórico-
-político sobre a constituição e governo do Reino de Portugal, do ex-
-cônego e publicista José Liberato Freire de Carvalho, editado em Paris,
em 183010. Ele qualifica como um retrocesso a política do reinado de D.
Maria I e externa juízo semelhante sobre o governo de seu filho, marcado
pelas invasões dos franceses, pela debandada da família real, pelo domí-
nio britânico e pela perda do Brasil11.

O Ensaio político-histórico, de Freire de Carvalho, converteu-se na


matriz de uma historiografia de cariz liberal, mais tarde incorporada pelos
republicanos e reforçada pela obsessão com a ideia de decadência dos
povos peninsulares, uma das questões que mais mobilizou a intelectuali-
dade lusa no último quartel do século XIX12. Nas palavras do historiador
Fernando Catroga, “colocou-se no pelourinho da história o absolutismo,
o ultramontanismo, a influência inglesa e a dinastia de Bragança13. No
ajuste de contas com passado recente, Teófilo Braga, consoante a con-

10  –  CARVALHO, José Liberato Freire de. Ensaio histórico-político sobre a Constitui-
ção e o Governo do Reino de Portugal; onde se mostra ser aquele reino, desde a sua ori-
gem, uma Monarquia Representativa, e que o Absolutismo, a superstição, e a influência
da Inglaterra são as causas da sua atual decadência. Paris: Casa de Hector Bossange,
1830.
11  –  TORGAL, Luís Reis. Antes de Herculano... Op. cit., pp. 37-38.
12  –  Refiro-me aqui à conhecida conferência “Causas da decadência dos povos penin-
sulares”, pronunciada por Antero de Quental, em Lisboa, no ano de 1871, no âmbito das
Conferências Democráticas do Casino.
13  –  CATROGA, Fernando. In: TORGAL, Luís Reis, MENDES, José Amado e CA-
TROGA, Fernando. Historia da história de Portugal sécs. XIX e XX. Volume 1. Lisboa:
Temas e Debates, 1998, p. 103.

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cepção decadentista, chegaria a condenar d. João VI como um traidor da


Pátria, em razão da fuga para o continente americano!

A par disso, a crescente oposição ao regime monárquico incentivava


o estudo dos primórdios do liberalismo português. Ora, isso significava
trazer à tona, novamente, o movimento constitucional de 1820 e os seus
antecedentes, em especial, a inversão brasileira. Essa historiografia en-
gajada buscava adequar o passado às circunstâncias do presente, como
atesta o relato épico-dramático de José Arriaga, na História da Revolução
Portuguesa de 182014. Enquanto Arriaga, entretanto, parece confiante em
relação ao futuro, Oliveira Martins, na sua História de Portugal, com o
pessimismo que lhe era peculiar, amaldiçoa os Bragança e pinta um retra-
to sarcástico de d. João VI:
[...] Começava por ser quase disforme. Tinha mãos enormes e um in-
chaço nas pernas, [...]. A má saúde amarelara-lhe a cor do rosto flácido
donde pendia o conhecido beiço carnudo dos Bourbon [...] Era muito
sujo [...]; bastante avarento, por desleixo e economia, usava, até caí-
rem de podres, as tradicionais calças de ganga [...] seria o melhor dos
reis constitucionais: bastava-lhe o cantochão e as peças de ouro para
o distrair [...]; preferia os louros frangos assados com que abarrotava
os bolsos da casaca engordurada, comendo-os a mão, polvilhada de
rapé [...]15.

Como se pode constatar, derivam daí as representações burlescas


do monarca, aproveitadas por roteiristas de cinema e por produtores de
seriados para a televisão16. Quanto à transmigração da Corte, em outro
livro, O Brasil e as colônias portuguesas, Oliveira Martins desfere gra-
ves censuras contra o governo metropolitano, embora a sua definição do
problema não se mostre discrepante daquela apresentada pelos historia-
dores brasileiros no século XIX, como veremos mais adiante: “[...] Ao

14  –  ARRIAGA, José. História da Revolução Portuguesa de 1820. Porto: Livraria Por-
tuguesa Lopes & Cia Editora, 1886 – 1889, 4v.
15 – MARTINS, Oliveira. História de Portugal. Lisboa: Livraria de Antonio Maria Pe-
reira, 1880, v. 2, pp. 260-261.
16  –  Refiro-me ao filme histórico-satírico “Carlota Joaquina princesa do Brasil” (1995),
de Carla Camurati e ao seriado “O Quinto dos Infernos”, produzido pela Rede Globo de
Televisão, exibido no Brasil entre 2000 e 2001.

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Historiografia Joanina: confrontos e convergências

desembarcar no Rio de Janeiro, d. João VI e seus mandarins tiveram um


acesso de atividade, que o inglês, sentado com o rei no trono, fomentava
para explorar; um acesso de atividade que, porém, libertava para todo o
sempre o Brasil da metrópole”17.

As reflexões de Oliveira Martins nortearam as narrativas dos princi-


pais historiadores portugueses por longo tempo. E reverberaram aqui no
Império do Cruzeiro do Sul, junto às hostes republicanas, naquela altura,
já em campanha para derrubar a monarquia. Não é demais lembrar que
a coroa brasileira assentava-se sobre a fronte de um neto de D. João VI.

De qualquer modo, em 1925, as diatribes perpetradas contra D. João


pela historiografia liberal seriam contestadas pelo historiador e poeta An-
tonio Sardinha, no ensaio “A retirada para o Brasil”:
[...] Lembrar que foi a 27 de novembro de 1807, com Junot às portas
de Lisboa que o Príncipe Regente embarcou para o Brasil, é lembrar
uma das datas menos compreendidas da nossa história e um dos epi-
sódios mais adulterados. Todo o furor do espírito liberalista se empe-
nhou em considerar uma fuga esse ato político prudente sem o qual
haveríamos perdido de certo a nossa independência18.

Na esteira das refutações de Sardinha, seguiram-se as obras de Alfre-


do Pimenta, Caetano Beirão e João Ameal. Além disso, durante o Estado
Novo salazarista, com o estímulo do governo, ensaiou-se um movimento
de reabilitação da dinastia de Bragança, em particular, das ditas “figuras
caluniadas”, de d. Maria I e de d. João VI19. Entre 1946 e 1958, sob a
chancela da Empresa Nacional de Publicidade, foram editados cinco tí-
tulos sobre a vida e a obra do monarca, escritos por Ângelo Pereira, com
o intuito de “[...] retificar os inumeráveis erros introduzidos na história
do seu reinado por lamentável descuido de uns e por ignorância e má fé

17 – MARTINS, Oliveira. O Brasil e as colônias portuguesas. Lisboa: Livraria Ber-


trand, 1880, pp. 105-106.
18  –  SARDINHA, Antonio. A retirada para o Brasil. In: ___. Ao ritmo da ampulheta
(1925). 2ª. edição. Lisboa: Impretipo, 1978, pp. 246-256.
19  –  Ver a esse respeito TORGAL, Luís Reis. “Formação e consolidação das imagens
oficiais do Estado Novo”. In: MENDES, José Amado e CATROGA, Fernando. História
da história de Portugal (séculos XIX –XX). Op. cit., v. 2, pp.120-121.

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de muitos”20. Se por um lado, no entanto, Pereira parece convincente na


defesa da pessoa de D. João, por outro, não consegue livrá-lo da culpa
pela independência brasileira, e afirma, textualmente, “[...] O gérmen fora
levado pelo próprio d. João, encontrando nas terras de Santa Cruz terreno
fecundo [...]”21.

Na segunda metade do século XX, a historiografia lusa abrandaria,


progressivamente, o tom sarcástico com o qual costumava se referir ao
tipo físico e à personalidade hesitante do filho de d. Maria I, embora per-
severasse na crítica à sua atuação como homem de Estado, como se veri-
fica nos trabalhos de especialistas da envergadura de Antonio de Oliveira
Marques e de Joel Serrão. O primeiro assevera que d. João ambientou-se
tão bem no seu novo Reino tropical, que passou a privilegiá-lo e se esque-
ceu dos interesses metropolitanos, a ponto de prejudicar o seu comércio,
a sua indústria e as suas finanças22. Joel Serrão, no Dicionário de História
de Portugal, no verbete dedicado a d. João VI, bate na mesma tecla: “[...]
enquanto em Portugal continuava a guerra e definhavam as atividades
econômicas”, o Brasil, em cuja capital se encontrava fixada a sede da
monarquia, “[...] caminhava a passos largos para a independência, pelo
alento indireto que a estada da corte imprimiu a tal processo”23.

No Brasil, semelhante ao que ocorreu em Portugal, a memória dos


contemporâneos também exerceu forte influência sobre a historiogra-
fia joanina. Veja-se, por exemplo, o caso do Compêndio de história do
Brasil, de José Inácio Abreu e Lima, cuja primeira edição data de 1843.
Nascido em Pernambuco, em 1894, ex-combatente do exército de Simon
Bolívar, Abreu e Lima se mostra econômico nos comentários sobre D.
João VI: “[...] chamado pela sorte para ocupar o trono [...] vivia apartado

20 – PEREIRA, Angelo. D. João VI Príncipe e Rei – Últimos anos de um reinado tor-


mentoso. Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, 1958, p. XI.
21 – PEREIRA, Angelo. D. João VI Príncipe e Rei: a independência do Brasil. Lisboa:
Empresa Nacional de Publicidade, 1956, p. 275.
22  –  MARQUES, Antonio H. de Oliveira. História de Portugal: das revoluções liberais
aos nossos dias. 3ª edição. Lisboa: Palas Editores, 1986.
23  –  SERRÃO, Joel. D. João VI. In: ___ (dir.) Dicionário de História de Portugal. Por-
to: Livraria Figueirinhas, 1985, v. III. pp. 402-404

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Historiografia Joanina: confrontos e convergências

dos negócios, seguia as suas inclinações pacíficas e religiosas”. Ele ex-


plica a migração da família real para o Rio de Janeiro, de maneira carte-
siana: “[...] cumpria escolher entre Portugal invadido e o Brasil intacto.
Não ficava, portanto, ao regente outro recurso senão trocar uma situação
precária na Europa por um vasto império na América”24.

O general admite que a presença da Corte no Rio de Janeiro trouxe


algumas vantagens ao Brasil. Desloca, contudo, o seu foco para explorar
a rivalidade entre portugueses e brasileiros. A questão lhe serve de mote
para introduzir os antecedentes da revolução pernambucana de 1817, na
qual esteve envolvido seu pai, julgado como traidor e condenado à morte,
cuja execução, aliás, ele presenciou. Presta-se, também, para justificar a
insurreição constitucionalista que irrompeu na cidade do Porto, em 24 de
agosto de 1820, no seu ponto de vista, motivada pelo despeito daqueles
que viram a antiga colônia elevada a Reino. Abreu e Lima, no entanto,
não articula o período joanino com a emancipação política do Brasil. No
seu entender, a independência fora “[...] obra de um povo que reivindi-
ca seus direitos [...], de um Príncipe [d. Pedro] que previne os votos de
seu povo; de um sábio [José Bonifácio] que firma a soberania da sua
pátria[...]”25.

A disputa pelo passado recente, sobretudo na cultura histórica que


se desenvolveu no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a partir
de 183826, impõe à historiografia identificar as tramas da memória, que

24  –  A 1ª edição do Compêndio de História do Brasil, publicado em 2 volumes, data de


1843, dedicada ao imperador d. Pedro II. No presente trabalho utiliza-se a edição con-
densada em formato pequeno, lançada, provavelmente, em 1882. Ver, LIMA, José Inácio
Abreu e. Compêndio de história do Brasil. Rio de Janeiro: Eduardo & Henrique Laem-
mert, [s.d.], pp. 164-169. Cabe acrescentar que Abreu e Lima parece ter sido o primeiro
autor brasileiro a registrar que a decisão de D. João não decorreu de um arroubo momen-
tâneo. Salienta que a ideia da mudança da capital do império português para o continente
americano já havia sido cogitada no passado, em outros momentos de instabilidade polí-
tica da monarquia lusíada.
25 – Idem, p. 126.
26  –  GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Debaixo da imediata proteção de Sua Ma-
jestade Imperial. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889). 2ª. edição. São
Paulo: Annablume, 2011, pp. 81-85

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buscam sacralizar os objetos sobre os quais se debruça27. Se, no relato de


Abreu e Lima, é perceptível o peso das suas experiências pretéritas, por
certo, as considerações políticas externadas por José da Silva Lisboa, por
ocasião da Aclamação de D. João VI, também influenciaram as narrativas
de outros historiadores oitocentistas, a exemplo de Francisco Adolfo de
Varnhagen, de Pereira da Silva e de Alexandre José de Melo Morais.

Francisco Adolfo de Varnhagen, na sua História geral do Brasil an-


tes da separação e independência de Portugal, publicada pela primeira
vez em 1854, adverte que a permanência de D. João VI por 13 anos no
Rio de Janeiro possui diferentes dimensões para as histórias do Brasil e
de Portugal:
[...] Não pertencem à história especial do Brasil os pormenores das
injustiças e horrores e atentados, [...], praticados nessa aleivosa ocupa-
ção [francesa] [...] Pelo que respeita ao Brasil [...]: em vez de colônia
ou de principado honorário, vai ser o verdadeiro centro da monarquia
regida pela casa de Bragança; e para nós daqui começa a época do
reinado, embora o decreto de elevação a reino só veio a ser lavrado
em fins de 181528.

Varnhagen vai ainda mais longe, respaldado em um testemunho de


época, o do pregador real frei Francisco de Montealverne, cujas palavras
reproduz: “[...] E em verdade o senhor D. João foi, se não o primeiro im-
perador”, pelo menos o “primeiro a proclamar a ideia de fundar no Brasil
um novo império. [...] os grilhões coloniais estalaram um a um entre as
mãos de um príncipe, que a posteridade reconhecerá por o verdadeiro
Fundador do Império do Brasil”29.

A linhagem interpretativa inaugurada por Francisco Adolfo de Var-


nhagen ganharia um reforço, na passagem do primeiro centenário da
transmigração da Corte, com a aparição do livro D. João VI no Brasil, do

27  –  GUIMARÂES, Manoel Salgado. A disputa pelo passado na cultura histórica oito-
centista do Brasil. In: CARVALHO, José Murilo (org.). Nação e cidadania no Império:
novos horizontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, pp. 95-122.
28  –  VARNHAGEN, F. A. de. História geral do Brasil ... (1854). 5ª edição integral.
Revisão e notas de Rodolfo Garcia. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1956, v. 5, p. 34.
29 – Idem, p. 90

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Historiografia Joanina: confrontos e convergências

historiador e diplomata Manuel de Oliveira Lima, que refuta os chavões


da historiografia oitocentista lusa30, oferece análises socioculturais que
emprestam densidade à narrativa e antecipa quase todos os temas e as
questões dos trabalhos posteriores mais expressivos sobre o período, a
exemplo dos de Maria Beatriz Nizza da Silva, de Maria Odila Silva Dias,
de José Murilo de Carvalho e de Valentim Alexandre, na avaliação de
Guilherme Pereira das Neves31.

A contribuição de Oliveira Lima, sem dúvida, constitui um divisor


de águas na historiografia joanina. No entanto, permaneceu no limbo du-
rante muitos anos, apesar da recepção favorável à época do seu lança-
mento e da influência que exerceu sobre as análises de Tobias Monteiro32,
de Luiz Norton33, de Pedro Calmon, na biografia O rei do Brasil: vida de
d. João VI 34, e do brasilianista Allan Manchester no bem documentado
estudo “Transferência da Corte Portuguesa para o Rio de Janeiro”35. Tal
esquecimento, em parte, pode ser atribuído à emergência de uma historio-
grafia dita combatente, de cunho nacionalista, intentada por José Honório
Rodrigues, inspirada na conhecida frase de Capistrano de Abreu, “A mim
preocupa o povo, durante três séculos capado e recapado, sangrado e res-
sangrado”. Para José Honório,
[...] a Guerra da Independência tem sido apoucada para valorizar a
obra da Casa de Bragança, para sofrear o papel dos brasileiros e de
José Bonifácio, e, finalmente, para favorecer o congraçamento luso-
-brasileiro. O resultado é que movimentos de massa militares compa-

30  –  LIMA, Manuel de Oliveira. D. João VI no Brasil (1908). 3ª. edição. Rio de Janeiro:
Topbooks, 1996, pp. 21-22.
31  –  NEVES, Guilherme Pereira das. Oliveira Lima – D. João VI no Brasil. In: MOTA,
Lourenço Dantas (org.). Introdução ao Brasil. Um banquete no trópico. v. 2. São Paulo:
editora SENAC São Paulo, 2001, p. 146.
32 – MONTEIRO, Tobias. História do Império: a elaboração da Independência. Rio de
Janeiro: F. Briguiet e Cia, 1927.
33 – NORTON, NORTON, Luiz. A corte de Portugal no Brasil. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1938.
34  –  Ver, CALMON, Pedro. O rei do Brasil: vida de d. João VI. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1943.
35  –  MANCHESTER. Allan K. Transferência da Corte Portuguesa para o Rio de Janei-
ro. Tradução de Américo Jacobina Lacombe. Revista do IHGB, Rio de Janeiro, nº 277:
3-44, outubro-dezembro de 1967.

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rados aos dos grandes chefes libertadores da América do Sul, como


Bolívar e San Martin não têm recebido o destaque merecido36.

José Honório Rodrigues, no fundo, reclamava a falta de um imaginá-


rio heróico, capaz de conferir à independência uma feição nacionalista e
revolucionária, ainda que a desatrelasse do respectivo contexto histórico.
Aliás, existe uma historiografia envergonhada, por assim dizer, que se
esforça para identificar elementos de uma ruptura radical na nossa eman-
cipação política, tentando, assim, aproximá-la do curso seguido pelos pa-
íses vizinhos da América hispânica. Nem tanto nem tampouco, é preciso
reconhecer a singularidade do caso brasileiro, cujos antecedentes se situ-
am, justamente, no reinado americano de d. João VI. Admitir essa especi-
ficidade, entretanto, não significa afirmar que a independência ocorreu de
maneira pacífica, ou descartar do panorama historiográfico o exame das
lutas e dos combates armados que permearam a sua consolidação.

Ao mesmo tempo em que aflorava essa historiografia dita combaten-


te, o campo da história política retraiu-se, passando a ocupar um lugar se-
cundário nas preocupações dos historiadores, fruto da influência francesa
da escola de Annales. A corrente inovadora desprezava os acontecimentos
políticos e insistia nos fenômenos de longa duração37. Por conseguinte,
temas que tradicionalmente pertenciam ao domínio do político, como o
reinado americano de d. João VI e o processo da emancipação brasileira,
foram postos de lado. Cederam lugar ao estudo das questões econômicas,
examinadas por esquemas de viés marxista, que procuravam enquadrar o
Brasil num processo subordinado a uma economia de escala mundial. A
independência passava a ser explicada, predominantemente, por meio da
crise do antigo sistema colonial, modelo interpretativo cujo exemplo mais
conhecido se encontra na obra do professor Fernando Novais38.

36 – RODRIGUES, José Honório. Conciliação e reforma no Brasil: um desafio his-


tórico-cultural. 2a edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 42 (Coleção Logos).
37 – BOURDÉ, Guy e MARTIN, Hervé. As escolas históricas. Tradução de Ana Raba-
ça. Lisboa: Publicações Europa-América [s. d.], p. 118.
38 – NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-
1808). 1ª edição. São Paulo: Hucitec, 1979.

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Historiografia Joanina: confrontos e convergências

Na contra-mão dessa vertente, situa-se a contribuição de Maria Odila


Leite da Silva Dias, A interiorização da metrópole (1808-1853), publicada
por ocasião do sesquicentenário da Independência, uma referência, hoje
em dia, no estudo dos fatores que levaram à independência. Ela confronta
os enfoques europeizantes, retoma em grande medida os eixos interpreta-
tivos propostos por Sérgio Buarque de Holanda, sobretudo a noção de que
o episódio do rompimento com Portugal seria bem mais complexo do que
geralmente se supõe39. Nesse sentido, aponta para outras possibilidades
de abordagem, a partir do pressuposto de que “[...] A vinda da corte com
o enraizamento do estado português no Centro Sul do Brasil daria início
à transformação da colônia em metrópole interiorizada”40.

Nas últimas décadas do século passado, porém, história política re-


apareceria com força no panorama historiográfico, impulsionada por no-
vas abordagens, em que o político deixou de ser compreendido como um
simples reflexo do econômico, passando ser examinado não apenas como
uma esfera autônoma, mas também como um dos motores da mudança
social. Combinada, em boa parte, a enfoques culturais, a história política
revigorada tem propiciado o surgimento de análises originais, multiplica-
do os objetos de estudo e ampliado as problemáticas que se imaginavam
esgotadas, tal como a do estabelecimento da sede da monarquia portu-
guesa no Novo Mundo e os seus desdobramentos. De quebra, favoreceu
a reabilitação de algumas obras clássicas, à semelhança do já citado D.
João VI no Brasil, que ganhou reedição em 1996.

A questão da transferência da Corte, como um dos elementos defi-


nidores do Estado nacional, foi privilegiada, entre outros estudiosos, por
Maria de Lourdes Viana Lyra, em A utopia do poderoso Império41, pela

39  –  HOLANDA, Sérgio Buarque de. “A herança colonial – Sua desagregação”. In: ___
(dir). História Geral da Civilização Brasileira. O Brasil Monárquico. Volume I. São Pau-
lo: DIFEL, 1962, p. 9.
40  –  DIAS, Maria Odila Silva. A interiorização da metrópole (1808-1853). In: MOTA,
Carlos Guilherme (org.) 1822: Dimensões. São Paulo: Perspectiva, 1972, pp.160-204
41  –  LYRA, Maria de Lourdes Viana. A utopia do poderoso império, Rio de Janeiro: 7
Letras, 1994.

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Lucia Maria Paschoal Guimarães

brasilianista norte-americana Kirsten Shultz42, por João Paulo Pimenta e


Andréa Slemian43. A problemática da relação entre representações cultu-
rais e práticas de poder mereceu as atenções de Iara Lis Schiavinatto44, de
Gladys Sabina Ribeiro45 e de Lucia Bastos Pereira das Neves, nas contri-
buições Corcundas e constitucionais: a cultura política da independência
e As representações napoleônicas em Portugal: imaginário e política46.

A passagem do bicentenário dos sucessos de 1808 suscitou a reali-


zação de diversas jornadas acadêmicas que reuniram pesquisadores das
duas margens do Atlântico. Ensejou também a publicação conjunta de es-
tudos documentais, biografias, livros autorais e coletâneas sobre o tema,
além do Dicionário do Brasil Joanino, organizado por Ronaldo Vainfas
e Lucia Bastos Pereira das Neves47. De um modo geral, os trabalhos pro-
curam desconstruir o estereótipo caricato do filho de D. Maria I, tal qual
fazem os seus biógrafos mais recentes Fernando Dores Costa e Jorge Pe-
dreira48. Passados dois séculos, tudo levar a crer que o distanciamento dos
historiadores e do seu objeto tenha se encarregado de esmaecer as críticas
e de avivar os aspectos positivos da persona do único rei aclamado no
Novo Mundo. Hoje em dia, especialistas das duas margens do Atlântico
reconhecem a sua capacidade de estrategista político e compartilham a
ideia de que a mudança do aparato de Estado da monarquia portuguesa
para os seus domínios americanos constituiu o feito mais notável de D.

42 – SHULTZ, Kirsten. Tropical Versailles: empire, monarchy, and the portuguese royal
court in Rio de Janeiro, 1808-1821. Nova York: Routledge, 2001.
43  –  PIMENTA, João Paulo e SLEMIAN, Andréia. O nascimento político do Brasil – As
origens do Estado e da Nação. Rio de Janeiro: DP& A, 2003.
44 – SCHIAVINATTO, Iara Lis. Pátria coroada: o Brasil como corpo autônomo polí-
tico. São Paulo: Editora da UNESP, 1999.
45 – RIBEIRO, Gladys Sabina. Liberdade em construção: independência nacional e
conflitos anti-lusitanos no primeiro reinado. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002.
46  –  NEVES, Lucia M. Bastos Pereira das. Corcundas e constitucionais: a cultura polí-
tica da independência. Rio de Janeiro: Revan, 2003. Ver, também, ___. As representações
napoleônicas em Portugal: imaginário e política. São Paulo: Alameda, 2008.
47  –  VAINFAS, Ronaldo & NEVES, Lucia Maria B. P. das. Dicionário do Brasil Joani-
no (1808-1821). Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.
48 – PEDREIRA, Jorge e COSTA, Fernando Dores. D. João VI: um príncipe entre dois
continentes. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

62 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):49-64, jan./abr. 2019.


Historiografia Joanina: confrontos e convergências

João, cujo governo vem sendo examinado à luz do jogo político e econô-
mico europeu.

As análises dos autores brasileiros, em particular, parecem confluir


para a noção de que o reinado americano de D. João constitui um marco
de suma importância na história nacional. Inferem que a sua permanência
por treze anos no Rio de Janeiro representou um fator fundamental para
tornar possível a unidade do país independente. Caso contrário, o Brasil
correria o risco de fragmentar-se, tal como ocorreu com as antigas colô-
nias da América hispânica.

Seja como for, em que pesem os avanços experimentados ultima-


mente, a historiografia joanina mantém-se orientada pelas duas vertentes
interpretativas que se estabeleceram no Oitocentos, tributárias em boa
parte da memória dos contemporâneos: para a história do Brasil, o perí-
odo joanino simboliza o limiar de uma nova era que haveria de culminar
no processo da independência. Para a história de Portugal, por outro lado,
prevalece a ideia de que a ausência prolongada do rei nos seus domínios
americanos e a transmutação da colônia em sede da monarquia levaram
ao começo da derrocada do Império luso-brasileiro, o que, no fundo, sig-
nifica uma perda.

Texto apresentado em outubro/2018. Aprovado para publicação em


dezembro/2018.

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A exaltação da Monarquia na América: D. João e a Aclamação em 1818

65

A EXALTAÇÃO DA MONARQUIA NA AMÉRICA:


D. JOÃO E A ACLAMAÇÃO EM 1818
THE EXALTATION OF MONARCHY IN AMERICA:
D. JOÃO AND THE ACLAMATION IN 1818
Lucia Maria Bastos P. Neves1

Resumo: Abstract:
O objetivo do trabalho é analisar os motivos The purpose of this work is to analyze the
que explicam a longa demora para a aclamação reasons for the long delay in the acclamation
de D. João VI, ocorrida em 6 de fevereiro de of D. João VI, which took place on February
1818. Parte-se do pressuposto que essa espera 6, 1818. A common assumption has been that
pode ser explicada em função do cenário de dis- the delay occurred because of the scenario of
putas e de tensões internas no Reino Unido de disputes and domestic tensions that were taking
Portugal, Brasil e Algarves. A possibilidade de place in Portugal, Brazil and the Algarve at the
se optar pela parte americana do Império portu- time. The possibility of choosing the American
guês como local, onde aconteceria a cerimônia, colony of the Portuguese Empire for holding the
aliada ao retorno das ideias de legitimidade e acclamation ceremony, and the return of ideas
de restauração dos valores do Antigo Regime, of legitimacy and restoration of the values of the
acarretou desconfianças dos súditos portugue- Old Regime, led to distrust of the Portuguese,
ses, que se sentiram cada vez mais relegados a who felt increasingly pushed to the side in the
um segundo plano no jogo político de poder no political game of power within the Empire. In
interior do Império. Para se entender essas ten- order to understand these tensions, we reviewed
sões, pretende-se ouvir as vozes do passado, por written testimonies of the past, including
meio dos vestígios e dos discursos que legaram, speeches and addresses, that shed light on how
possibilitando desvendar como vivenciavam the Portuguese coped with and experienced that
aquele momento histórico. historical moment.
Palavras-chave: Aclamação; Sede da Monar- Keywords: Acclamation; Headquarters of the
quia; Reino Unido; Relações de Poder. Monarchy; United Kingdom; Power Relations.

Real, Real, Real pelo muito alto, e muito poderoso senhor Rei Dom
João VI nosso senhor!2

Esse era o pregão que o alferes mor devia proferir, em voz alta, para
a multidão e com a bandeira real desenrolada, exclamado do lugar em que
estivesse, após se realizar as várias etapas do cerimonial de aclamação
do novo soberano do Reino Unido de Portugal, Brasil e dos Algarves,

1  –  Professora Titular de História Moderna da Universidade do Estado do Rio de Janei-


ro. Pesquisadora 1 A do CNPq. Cientista do Nosso Estado/FAPERJ. Sócia honorária do
IHGB.
2  –  Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Casa Real e Imperial/Mordomia-mor. Códice
569 (Papeis relativos à aclamação, sagração e coroação de dona Maria I, dom João VI,
dom Pedro I e dom Pedro II, 1777-1841). Plano das ordens que seriam executadas no dia
do cerimonial de aclamação de d. João. Fls. 39-45.

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Lucia Maria Bastos P. Neves

d’Aquém-Mar em África, Senhor da Guiné e da Conquista, Navegação e


Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia.

Como as demais monarquias do Antigo Regime, em Portugal, a


aclamação de um soberano ao trono revestia-se de um caráter oficial e
simbólico3, pois significava a chegada ao poder de forma jurídica de um
novo rei, quando devia se executar um rígido protocolo que indicava as
ações dos indivíduos, as palavras que deviam ser proferidas e os objetos
que precisavam estar presentes na cerimônia. Afinal, nesse ato solene, o
soberano assumia publicamente o trono que lhe era por direito e por legi-
timidade. Para além do caráter oficial do evento, havia também um con-
junto de símbolos que serviam para indicar o próprio ordenamento social
e jurídico da sociedade: a manutenção das hierarquias sociais indicadas
pelo lugar em que cada súdito devia se colocar; a garantia de fidelidade e
de obediência dos súditos ao seu soberano; e a próprio exaltação do rei,
em que se reconhecia a continuidade de uma dinastia4.

O caso de D. João VI tornou-se bastante singular, pois, embora usas-


se o título de rei logo após a morte de sua mãe, D. Maria I, em 20 de
março de 1816, aguardou dois anos para ser aclamado e exaltado ao tro-
no. Por que uma espera tão longa, uma vez que o novo rei, desde 1792,
passou a dirigir e a governar a Coroa portuguesa, ainda que sob o nome de
Maria I, frente à impossibilidade da soberana em se ocupar dos negócios
do Estado? E, mais ainda, em 15 de julho de 1799, quando D. João assu-
mia oficialmente as rédeas do governo, por meio de decreto publicado na
Gazeta de Lisboa5. Neste, assinado pelo próprio príncipe, justificava-se
tal atitude frente à impossibilidade de D. Maria I retornar ao poder, hipó-

3 – Pierre Bourdieu. O poder simbólico. Lisboa/Rio de Janeiro: Bertrand/Difel, 1989.


4  –  Para uma análise da cerimônia de Aclamação de D. João VI, ver SCHWARCZ, Lilia
Moritz; AZEVEDO, Paulo Cesar de; COSTA, Angela Marques da. A longa viagem da
Biblioteca dos reis. Do terremoto de Lisboa à Independência do Brasil. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 2002, pp. 323-327; HERMANN, Jacqueline. O rei da América: notas
sobre a aclamação tardia de D. João VI no Brasil. Topoi, Rio de Janeiro, v. 8, nº 15, jul-
-dez. 2007, pp. 124-158; CASTRO, Giovanna Milanez de. Servir e celebrar o rei: o ceri-
monial de aclamação de D. João VI e a Casa Real Portuguesa no Brasil. Anais Eletrônicos
do XXII Encontro de História da ANPUH-SP, 2014, s. n. p.
5 – Gazeta de Lisboa. nº 30, 23 de julho de 1799.

66 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):65-88, jan./abr. 2019.


A exaltação da Monarquia na América: D. João e a Aclamação em 1818

tese há muito abandonada, apesar de todos os esforços. Logo, em razão


das Leis Fundamentais da monarquia portuguesa, cabia à pessoa do Prín-
cipe todos os direitos de soberania. D. João passava a assinar “Príncipe
Regente” em todos os documentos oficiais da Coroa, pois, até então, os
decretos continuavam a ser formulados em nome da mesma Rainha.

Com a morte de sua mãe, portanto, deveria ser um procedimento


comum a ascensão de D. João ao trono, pois era seu filho único, em quem
recaía o Governo por todas as razões e pela determinação divina. Nesse
sentido, por que aguardar dois anos para que a cerimônia oficial fosse
realizada?

Apesar de poucos estudos na historiografia sobre os motivos da acla-


mação tardia de D. João6, alguns pontos ainda precisam ser esclarecidos.
O objetivo desse trabalho é mais analisar novos indícios que possam ex-
plicar esse atraso no cerimonial da aclamação do que narrar e descrever
a festa real em seu significado. Para tal, pretende-se ouvir as vozes do
passado, por meio dos vestígios que legaram, possibilitando desvendar
como esses indivíduos estruturaram um discurso e procuraram responder
às suas questões por meio de práticas e de princípios que, em certa medi-
da, questionavam ou não as convenções predominantes naquela conjun-
tura histórica do início do oitocentos7.

Um novo mapa político da Europa


Em 13 de novembro de 1815, a Gazeta Extraordinária do Rio de Ja-
neiro, afirmava que: “Sendo o abatido Usurpador o objeto da curiosidade

6  –  Ver, sobretudo, LIMA, Oliveira. D. João VI no Brasil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Top-
books, pp. 549-569 e o trabalho recente e instigante de HERMANN, Jacqueline. O rei da
América ... pp. 124-158.
7  –  SEBASTIÁN, Javier Fernández. “Hacia una Historia Atlántica de los conceptos po-
líticos”. In: Idem. Dicionario politico y social iberoamericano. Iberconceptos I, Madrid:
Fundación Carolina/Sociedad Estatal de Conmemoraciones Culturales/ Centro de Estu-
dios Políticos y Constitucionales, 2009, pp. 25-48; SKINNER, Q.. Visões da política,
Lisboa: Difel, 2005; POCOCK, J. G. A.. Politics, Language and Time. Essays on Political
Thought and History, New York: Atheneum, 1971.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):65-88, jan./abr. 2019. 67


Lucia Maria Bastos P. Neves

e inquietação de todos, começaremos por anunciar que Napoleão [...] [foi


conduzido] para seu destino da ilha de Santa Helena”8.

Proclamava-se o fim definitivo de Napoleão Bonaparte na Europa.


Acabava-se uma era de grandes modificações no jogo político do Velho
Mundo. As monarquias vitoriosas – Inglaterra, Áustria, Prússia e Rús-
sia – e as negociações do Congresso de Viena definiam um novo xadrez
político da Europa que perduraria até o fim do oitocentos9. Ficava claro,
pela ata final do Congresso de Viena (9 de junho de 1815), que o equilí-
brio de poder se deslocava, sobretudo, para a Inglaterra e para os demais
aliados. As outras monarquias tornavam-se satélites de segunda ordem.
Nestas, enquadravam-se Espanha e Portugal. Este último era um reino
sem força, em crise desde a saída da Corte para o Brasil em 1808. Crise
que se agravara com a elevação do Brasil a Reino Unido em 16 de de-
zembro de 1815, pois a questão fundamental que se colocava era a que tal
equiparação representava a possibilidade da permanência efetiva da Cor-
te nesse lado do Atlântico, tornando Portugal cada vez mais dependente
da antiga colônia, com a possibilidade de nunca mais tornar a ser a sede
da monarquia10. De um lado, esse ato podia representar a tentativa de se
estabelecer relativa independência de Portugal frente à Europa, especial-
mente, à Inglaterra. No Rio de Janeiro, D. João possuía maior capacidade
de manobra e a possibilidade de fugir das pressões políticas europeias, a
fim de recuperar relativa importância e poder no velho mundo. De outro,
por sua vez, possibilitava descontentamentos e rumores na antiga sede do

8 – Gazeta Extraordinária. Rio de Janeiro, nº 20, 13 novembro 1815.


9  –  Sobre o Congresso de Viena, cf. KOSELLECK, R. “La Restauración y los aconteci-
mientos subsiguientes (1815-1830)”. In: BERGERON, L.; FURET, F. & KOSELLECK,
R. La época de las revoluciones europeas, 1780-1848. Mexico: Siglo XXI, 1982, pp.
187-216.
10  –  Para algumas reflexões recentes sobre o Reino Unido, ver ARAÚJO, Ana Cristina.
O Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves: 1815-1822. Revista de História das Ideias.
Coimbra, nº 14, 1992, pp. 233-261; R. IHGB. Rio de Janeiro, nº 470, pp. 11-280, jan/mar
2016; PAQUETTE, Gabriel. Império e Nação nas monarquias constitucionais portuguesa
e brasileira. In: RAMOS, Rui; CARVALHO, José Murilo de & SILVA, Isabel Corrêa da
(orgs.). Dois países, um sistema; a monarquia constitucional dos Braganças em Portugal
e no Brasil (1822-1910). Lisboa: Dom Quixote, pp. 34-56, 2018.

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A exaltação da Monarquia na América: D. João e a Aclamação em 1818

Império Português. Eram diferentes horizontes de expectativas11 que se


colocavam para os dois reinos irmãos.

Desse modo, a conjuntura que se estabelece entre 1815 e 1818, ano


da aclamação de D. João, foi um período de tensões, que indicava a de-
cisão pela permanência no Brasil por parte de D. João, naquele momento
da paz europeia, sendo interpretada como uma primeira opção da Coroa
bi-fronte, na expressão de Valentim Alexandre, pela parte americana do
Império12. Como apontava, anos mais tarde, em 1819, com grande luci-
dez, Pedro de Sousa Holstein, conde de Palmela: “Não podemos deixar
de considerar que a Monarquia Portuguesa tem dois interesses distintos,
o Europeu e o Americano, os quais sempre se podem promover juntamen-
te, mas que não devem em caso nenhum sacrificar um ao outro”13. Tais
decisões não tardariam a repecutir, do outro lado do Atlântico, com os
movimentos de 1817 e de 1820, indicando as desgastadas relações de D.
João com seus súditos portugueses14.

É, dentro desse cenário de disputas internas no Reino Unido, aliado


ao retorno das ideias de legitimidade e de restauração dos valores do An-
tigo Regime, que se propõe a discussão acerca da demora da aclamação
de D. João em terras americanas.

O que contam os historiadores


Hoje pelas 11 1/4 horas da manhã foi Deus servido chamar a Augus-
tíssima Senhora Rainha D. Maria I à Santa Glória, que lhe havia des-
tinado pelas suas grandes e raras virtudes; e El-Rei meu Senhor tendo
determinado que por tão justo sentimento se tome luto geral por tempo
de um ano, seis meses rigoroso, e seis meses aliviado, não obstante
o Cap. 17 da Pragmática de 27 de maio de 1749, o participo a Vm.
11 – KOSELLECK, R.. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históri-
cos. Rio de Janeiro: Contraponto/Ed. PUC Rio, 2006, pp. 305-327.
12  –  ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos do Império: questão nacional e questão colo-
nial na crise do Antigo Regime português. Porto: Afrontamento, 1992, p. 355ss.
13  –  Para a citação, ver ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos do Império ... Op. cit., p.
355.
14  –  Para uma visão recente sobre as Revoluções de 1817, ver PEREIRA, Miriam Hal-
pern & ARAÚJO, Ana Cristina. Gomes Freire e as vésperas da revolução de 1820. Lis-
boa: Biblioteca Nacional de Portugal, 2018.

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Lucia Maria Bastos P. Neves

para fazer constar às Câmaras dessa Comarca, não só para que assim
se executem em os seus respectivos Termos, fazendo-se aquelas de-
monstrações de sentimento que são de estilo em semelhantes ocasiões,
mas também para que supliquem a Deus Nosso Senhor auxílio a Sua
Majestade com as suas Divinas luzes para os acertos do Governo com
que deseja felicitar aos seus vassalos15.

Esse era o Decreto passado pelo Marquês de Aguiar, ministro dos


Negócios do Reino, ao ouvidor da Comarca do Rio de Janeiro, bem como
aos governadores e aos capitães gerais das Capitanias, por ordem do so-
berano. Para alguns homens de época, tal acontecimento foi o principal
motivo do adiamento da aclamação de D. João, como pode se ver nas
Memórias de Luiz Gonçalves dos Santos, o conhecido padre Perereca,
escritas em 1821, embora somente publicadas em Lisboa, em 1825:
Depois de termos chorado, e sufragado a nossa rainha de saudosa me-
mória, cumpria, segundo o antigo uso, e costume da nação portuguesa,
que o senhor D. João VI fosse logo aclamado rei do Reino-Unido
de Portugal, Brasil, e Algarves com toda pompa, e solenidade: mas a
piedade de Sua Majestade fez deferir esta augusta cerimônia para uma
época mais longínqua, não querendo misturar com as lágrimas, que
ainda vertiam os seus olhos, outras, que não fossem exprimidas pela
dor, e saudade de sua augusta mãe; portanto determinou El-Rei Nosso
Senhor que depois de passar o ano de luto se faria a sua aclamação no
dia, que o mesmo real senhor fosse servido designar; e enquanto não
chega esse glorioso dia para o Brasil, e especialmente para o Rio de
Janeiro, que tanto suspira por ter a honra, e glória de presenciar o real
ato da aclamação de Sua Majestade Fidelíssima, o primeiro, que se vai
fazer no Novo Mundo, iremos continuando as nossas Memórias [...]16.

Para Perereca, o adiamento explicava-se pela tristeza e pelo respeito


de D. João em relação à sua mãe. Argumento, aliás, usado por outros ho-
mens de época, que justificavam o fato de D. João não ter assumido ime-
diatamente a regência em 1792, quando da impossibilidade de D. Maria I
continuar a governar, uma vez que não deixava “passar algum dia que não
fosse beijar-lhe a mão e prestar-lhe as homenagens próprias do filho mais
15  –  Decreto de 20 de março de 1816. Colleção das Decisões do Governo. S. n. t, p. 8.
16  –  SANTOS, Luiz Gonçalves. Memórias para servir à História do Reino do Brasil.
Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1981, pp. 66-67.

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A exaltação da Monarquia na América: D. João e a Aclamação em 1818

tenro e humilde”17. Digna de destaque, ainda na afirmativa do cronista do


Reino, era a importância simbólica que a aclamação devia ocupar entre
os habitantes do Reino da América. No entanto, tal exaltação ainda levou
dois anos para ocorrer, embora o novo soberano passasse a assinar todos
os atos oficiais como D. João VI.

Deve-se ressaltar ainda que o luto, contudo, não impediu a partici-


pação de D. João em diversos festejos públicos. Em novembro de 1817,
quando da chegada da princesa Leopoldina no Brasil, grandes festas fo-
ram realizadas para marcar a sua união com o jovem príncipe D. Pedro,
embora a cerimônia oficial de casamento tivesse ocorrido em Viena, em
13 de maio daquele ano, data do natalício de D. João18. Nesse caso, o luto
foi esquecido e o Rio de Janeiro, segundo descrição da Gazeta do Rio de
Janeiro e do padre Perereca, conheceu grande alvoroço. O povo corria
pelas ruas. A cidade foi toda iluminada. As casas estavam ornadas com
colchas de várias sedas e de diferentes cores e matizes. As ruas, salpica-
das de folhas aromáticas19.

Outra explicação, no entanto, é oferecida, por uma das primeiras bio-


grafias de D. João, escrita em francês e que veio à luz em 1827 – Histoire
de Jean VI, Roi de Portugal, depuis sa naissance jusqu’a sa mort, en
1826 – de possível autoria de Marie-Anne Adélaide Lenormand (1772-
1843), que era uma adivinha profissional francesa de fama reconhecida
durante o período napoleônico. Foi considerada a maior cartomante de
todos os tempos, altamente influente na onda de cartomancia francesa
que começou no final do século XVIII. Em seu texto, a explicação para
tal demora era simples – o desejo do rei em permanecer no Brasil, sem

17  –  BRANDÃO, F. Mateus da Assumpção. Elogio necrológico do muito alto e pode-


roso o Senhor D. João VI, recitado em sessão pública da Academia Real das Sciencias
de Lisboa aos 19 de setembro de 1826. Lisboa: Academia de Ciências de Lisboa, 1828.
18  –  Para o casamento de D. Pedro e D. Leopoldina, ver MAGALHÃES, Aline; MA-
RINS, Álvaro & BEZERRA, Rafael Z. (coord.). D. Leopoldina e seu tempo: sociedade,
política, ciência e arte no século XIX. Rio de Janeiro: Museu Nacional, 2016.
19 – Cf. Gazeta do Rio de Janeiro, nºs. 90 a 93, de 8, 12, 15 e 19 de novembro de 1817
e SANTOS, Luiz Gonçalves dos [padre Perereca]. Memórias para servir ... Op. cit., pp.
124-140.

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Lucia Maria Bastos P. Neves

ter que se mudar para Portugal a fim de ser aclamado. Tudo isso, por sua
“natural inércia”20.

Por si só, tais motivos não justificavam o adiamento de tal cerimônia.


Outras questões deviam ser levadas em consideração. Oliveira Lima, por
exemplo, em sua obra magistral sobre D. João VI, aponta os problemas
enfrentados ao longo do ano de 1817 – a Revolta de Pernambuco e a
Conspiração de Gomes Freire em Portugal – movimentos que contesta-
vam o poder do monarca como centrais para o adiamento da aclamação21.
No primeiro caso, questionava-se a centralização do poder no Rio de Ja-
neiro com o estabelecimento da Corte, uma vez que, ao invés de regalias
e de privilégios, ocorreu um excesso de cobranças e de imposições, fa-
zendo do Rio a nova metrópole do Império22. Já em Portugal, igualmente
insatisfeitos, os súditos se manifestaram por meio de uma conspiração de
cunho liberal que visava ao afastamento dos ingleses do controle militar
da Regência e à promoção da salvação e da independência de Portugal
por meio de um governo constitucional. Como questiona Jacqueline Her-
mann, com propriedade, se essa foi “uma das causas de mais um adia-
mento da aclamação”, por que não realizar, naquele momento de contes-
tação do poder real, a cerimônia que, por seu caráter oficial e simbólico,
serviria para emprestar uma reafirmação ao poder real?23 Além disso, para
Oliveira Lima, quanto mais tarde se desse a aclamação, mais os ânimos
em Portugal poderiam ser acalmados com a possibilidade de D. João pre-
cisar retornar à antiga sede do Império para ser exaltado24.

Historiadores ainda do início do século XX, como Ângelo Pereira,


autor de uma avolumada obra sobre D. João e Luís Norton, comentaram
a aclamação, mas sem se deterem em sua demora de dois anos. Era como
um processo natural, embora se esquecessem da velha lógica do Antigo

20 – LENORMAND, Marie-Anne Adélaide. Histoire de Jean VI, Roi de Portugal, de-


puis sa naissance jusqu’a sa mort, em 1826. Paris: Ponthieu et Compagne Libraires, p. 65.
21 – LIMA, Oliveira. D. João VI ... Op. cit., pp. 495-519.
22  –  MELLO, Evaldo Cabral de. A outra Independência. O federalismo pernambucano
de 1817 a 1824. São Paulo: Editora 34, 2004, pp. 11-63.
23  –  HERMANN, Jacqueline. O rei na América ... Op. cit., p. 139.
24 – LIMA, Oliveira. D. João VI ... Op. cit., pp. 566-569.

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A exaltação da Monarquia na América: D. João e a Aclamação em 1818

Regime: rei morto, rei posto em seu cargo, por meio de um ritual que im-
plicava o funeral de um soberano e a exaltação de seu sucessor25. O que
acontecia no Império português implicava a quebra de um protocolo que
significava a tradição da monarquia e a grandeza da realeza.

Na historiografia mais recente, Lilia Schwarcz, em seu livro A longa


viagem da Biblioteca dos Reis, partilha do mesmo argumento de Oliveira
Lima. Se a aclamação deveria ocorrer, como determinavam as Leis Fun-
damentais do Reino, após um ano da morte da soberana, a revolução de
Pernambuco alterara os planos, pois “não convinha celebrar tal cerimônia
com o território dividido e diante da ameaça de uma república”. Para
a autora, a aclamação ganhava novo sentido: “representaria o momento
máximo a celebrar a concórdia entre o futuro rei e seus vassalos” 26. Ainda
foi preciso, contudo, esperar cerca de um ano para que a celebração se
realizasse.

Valentim Alexandre, historiador português, em seu marcante traba-


lho – Os sentidos do império – aponta uma série de questões que são
fundamentais para entendermos a aclamação tardia, sendo que algumas
foram retomadas por Jacqueline Hermann: as fortes pressões para a volta
do soberano para Portugal tanto por parte da Inglaterra quanto de seus
súditos portugueses; a política americana que, muitas vezes, ia de encon-
tro aos interesses e aos objetivos do Reino de Portugal; a reação dos por-
tugueses contra a possibilidade de se fazer uma aclamação do soberano
fora das terras europeias, berço da civilização; e, por fim, a quebra das
tradições portuguesas em aclamar um rei sem a representação das Cor-
tes, compostas pelos três estados. Se, para o primeiro autor, esses pontos
transformavam-se na origem das tensões entre os dois reinos sem fazer
menção à demora da aclamação, para Hermann, elas se constituem, so-
bretudo, no cerne da explicação para a delonga da festa27.
25  –  PEREIRA, Angelo. “Coroação de D. João VI”. In: Os filhos de El-Rei D. João VI.
Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, 1946, pp. 263-269; NORTON, Luís. A corte
de Portugal no Brasil. 3ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2008, pp. 101-109.
26  –  SCHWARCZ, Lilia Moritz; AZEVEDO, Paulo Cesar de & COSTA, Angela Mar-
ques da. A longa viagem da Biblioteca ... Op. cit., p. 322.
27  –  ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos do Império ... Op. cit., pp. 355-366; HER-

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Por conseguinte, alguns indícios ainda podem ser levantados para


explicar a demora da decisão de D. João ou em ser aclamado como pri-
meiro Rei na América ou em retornar aos costumes e tradições, em que o
regente só se fazia rei depois de um longo ritual, em que se realizavam o
juramento e a confirmação de seu poder perante as Cortes tradicionais que
serviam de bastião à monarquia portuguesa desde os tempos medievais28.

Não à toa o bibliotecário Joaquim dos Santos Marrocos, em suas


cartas a seu pai, relatava, em maio de 1816, a necessidade da manutenção
dessa tradição em se aclamar um novo rei com a presença da representa-
ção dos três Estados:
Dizem-se que a aclamação não se faz ainda, sem chegarem as deputa-
ções dos reinos de Portugal e Algarves, em razão de não haver a Junta
dos Três Estados: não sei se isso é suprimento de cortes, mas parece-
-me um passo muito acertado para não haverem depois questões, por
não ser feita a aclamação na sede da monarquia. E porque não se fará
lá? Dicant Paduani29.

Provavelmente, Marrocos, nessa passagem, fazia alusão aos proble-


mas enfrentados por D. João quando este assumiu oficialmente a Regên-
cia em 1799. Em 25 de julho daquele ano, por meio de um decreto de sua
autoria, D. João tornava-se oficialmente o regente de Portugal, perspecti-
va que era um procedimento comum, face aos problemas de sua mãe. No
entanto, nem todas as personagens que frequentavam o círculo de poder
da Corte, naquela época, aceitaram essa opinião. O ministro e secretário
dos Negócios do Reino José Seabra da Silva mostrou-se contrário à no-
meação do príncipe como regente oficial sem a convocação de Cortes. A
atitude de Seabra não se explicava por um argumento meramente legal,
nem por uma postura com veleidades liberais, mas por uma perspectiva
reformista que acreditava que a recuperação das leis fundamentais do rei-
MANN, Jacqueline. O rei na América ... Op. cit., pp. 137-144.
28  –  Cf. CARDIM, Fernão. As Cortes de Portugal e o governo dos "territórios ultrama-
rinos" (séculos XVI-XVIII). Lisboa: ICS/Imprensa de Ciências Sociais, 2016.
29  –  MARROCOS, Luís Joaquim dos Santos. Cartas do Rio de Janeiro, 1811-1821.
Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal, 2008. Carta de 28 de maio de 1816, p. 339. A
expressão em latim é retirada do Respondo de Santo António, segundo nota do organiza-
dor da edição.

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A exaltação da Monarquia na América: D. João e a Aclamação em 1818

no e a convocação das antigas Cortes possibilitariam uma nova inserção


no tecido da nação30. Além disso, sua posição indicava tensões internas
na cúpula política, que recrudesceram nos primeiros anos do século XIX.
Apesar da oposição de Seabra, D. João ordenou que ele mandasse avisar
aos órgãos competentes e à Corte que todos os seus súditos viessem lhe
prestar os testemunhos de sua vassalagem e de seu contentamento. Talvez,
D. João, em 1816, não desejasse passar por nova tentativa de oposição ao
seu legítimo poder, caso realizasse a aclamação, sem a representação da
Junta dos Três Estados. Instituição que, no entanto, não foi conhecida no
território americano, uma vez que o príncipe regente, mais tarde, o sobe-
rano D. João VI, só manteve ligações com seus ministros mais próximos.

Um novo olhar para a festa tardia ...


Para se vasculhar ainda os motivos desse adiamento, a opinião dos
contemporâneos da época pode ser de grande utilidade. Nesse caso, en-
contra-se um relato digno de menção.Trata-se de uma relação do Duque
de Luxemburgo, em missão à Corte do Rio de Janeiro, em 1816, com
o objetivo de reforçar os laços entre as cortes da França e do reino de
Portugal e do Brasil. Ao chegar à nova Corte, em abril de 1816, a rainha
D. Maria I havia falecido. Segundo o autor, tal acontecimento não repre-
sentava qualquer motivo de mudança no governo, pois D. João há muito
já governava por si. A questão fundamental, que chamava a atenção de
todos, voltava-se para o local da “coroação” do novo soberano. O corpo
diplomático ensaiava conjecturas particulares, uma vez que, na visão de
época e do próprio autor, o local escolhido significaria a permanência de
D. João no Brasil ou o seu retorno a Portugal. Enfim, o estabelecimento
“definitivo” da sede do império31. Esse era o nó górdio do problema. Para

30  –  Cf. NEVES, Guilherme Pereira das. Guardar mais silêncio do que falar: Azeredo
Coutinho, Ribeiro dos Santos e a Escravidão. In José Luís Cardoso (coord.). A economia
política e os dilemas do império luso-brasileiro (1790-1822). Lisboa: Comissão Nacional
para as comemorações dos descobrimentos Portugueses, 2001, pp. 35-37.
31 – Relation de l’Ambassade du Duc de Luxembourg. Transcrita em Jean de Pins.
Sentiment et diplomatie d’après des correspondances franco-protugaises. Contribution
à l’Histoire des mentalités au début du XIXe siècle. Paris: Fund. Calouste Gulbenkian,
1984, pp. 527-540. Para as citações, ver pp. 538-539.

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satisfazer o reconhecimento público da dignidade da exaltação de D. João


ao trono, era necessário que se estabelecesse, com todo o cuidado, o local
da aclamação. Jogava-se, nesse ponto, a sorte e o destino do Império por-
tuguês. As experiências acumuladas com a vinda da Corte para o Brasil, o
estado de abandono de Portugal após findas as invasões francesas, as for-
tes pressões da Inglaterra e da regência e dos próprios súditos portugueses
indicavam toda cautela na decisão final. Esta cabia somente ao novo so-
berano, ouvido seu ministério, uma vez que as Cortes ou a Junta dos Três
Estados não se faziam presentes. Para o duque de Luxemburgo, no entan-
to, a decisão não era tomada, pois permanecia a imagem contraditória de
um rei “singularmente orgulhoso de sua autoridade”, mas que a deixava
escapar, a cada instante, por indolência ou por desconfiança em relação
às suas próprias luzes. Afirmava ainda que, por hábito, D. João indagava
seus ministros sobre todos os assuntos que não conseguia examinar por si.
Por conseguinte, o rei voltava sua atenção para coisas pequeninas e sem
grande importância, como o atendimento nas audiências públicas, em que
ele ouvia as súplicas de seus súditos – tanto homens nobres quanto “supli-
cantes frívolos, indignos e sem mérito”32.

A importante decisão sobre a aclamação, entretanto, custava a ser


resolvida, pois D. João sabia da indignação e da forte reação que poderia
causar entre os súditos portugueses, caso o rei resolvesse ser aclamado
fora de Portugal. Desse modo, a longa espera podia aquietar os ânimos
do outro lado do Atlântico enquanto D. João cuidava dos interesses da
política americana do reino, como suas pretensões imperialistas, na vi-
são de Oliveira Lima, de expansão para o sul. Se a questão do Prata era
antiga e delicada, muitos acontecimentos ocorreram, como a morte de
D. Rodrigo de Sousa Coutinho, as rebeliões independentistas do Prata,
a aproximação de Portugal e Espanha por meio da volta dos casamentos
dinásticos entre as duas famílias – as duas infantas portuguesas, por obra
de Carlota Joquina, casaram-se com seus tios espanhois –, o afastamento
da Inglaterra desta região. Sem dúvida, a política joanina lograra êxito,

32 – Ibidem. p. 538.

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com a ocupação de Montevidéu em novembro de 1816. Era, dessa forma,


um bom momento para a aclamação como parte do triunfo português.

Outros problemas ainda viriam à tona como a morte do ministro


e secretário dos Negócios Estrangeiros da Marinha e Domínios do Ul-
tramar – D. Antonio de Araújo e Azevedo, o conde da Barca, em 1817.
Substituído pelo conde de Palmela, representante português na Inglaterra
e na França, este retardou ao máximo a sua vinda para o Brasil, ocorrida
somente em 1820. O ministério passou a ser exercido na prática por To-
más Vilanova Portugal, que já começava a demonstrar um interesse pela
parte americana do reino. Homem de grande confiança de D. João, fato
que pode ser demonstrado pela troca de bilhetes e correspondência entre
os dois, transformou-se no ministro poderoso que passou a intermediar
as relações entre os governadores e o soberano33. Em carta a D. João, al-
guns anos mais tarde, confirmava sua posição, afirmando que, em tempos
de crise, “quaisquer outras mudanças” mais radicais vão acrescentar um
mal a outro. “Um velho edifício conserva-se, se não o querem consertar
demasiadamente”. Afirmava ainda que, em Portugal, “todos ainda [esta-
vam] cansados da Guerra”, sem dinheiro nem forças para quererem se
revoltar34. Entre permanecer na América e ainda tentar ser rei absoluto,
ou soberano constitucional de potência de segunda ordem na Europa, Vi-
lanova Portugal defendia a primeira proposição.

Embora fosse um espírito ilustrado, permanecia fiel aos valores do


Antigo Regime, que sempre orientaram suas ações para o fortalecimento
do poder real, fosse no momento da repressão à revolta de Pernambuco,
fosse mais tarde quando da revolução liberal de 1820, sendo ainda o men-
tor do alvará de 1818, que proibia todas as sociedades secretas no Reino,

33  –  NEVES, Lucia Maria Bastos. P. Tomás Vilanova Portugal. In: VAINFAS, Ronaldo
& NEVES, Lucia Maria Bastos P. (orgs.). Dicionário do Brasil Joanino (1808-1821). Rio
de Janeiro: Objetiva, 2008, pp. 421-422. Para a troca de bilhetes entre o ministro e D.
João, cf. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Divisão de Manuscritos. 5, 1, 40. Bilhetes
de D. João VI e de D. Carlota Joaquina a Tomás Antônio Villanova Portugal (1816-1821).
34  –  Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Divisão de Manuscritos. II-30,32,012. Carta
a D. João VI, sugerindo algumas providencias para acalmar o descontentamento em Por-
tugal, abril de 1820.

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inclusive a maçonaria35. Logo, pode-se afirmar que seu perfil político,


como Jacqueline Hermann também o faz36, foi um dos responsáveis pela
festa de casamento de D. Pedro e da esperada aclamação de D. João. Tais
cerimônias, em sua simbologia, reforçavam o poder da monarquia abso-
luta na América.

A atitude de Vilanova Portugal procurava atenuar as tensões entre


Brasil e Portugal, demonstrada por cartas anônimas enviadas ao Rei ou
pela imprensa portuguesa estabelecida em Londres. No ano da aclama-
ção, uma carta anônima lamentava a triste situação de Portugal:
Agora por nossa desgraça, estamos vendo os louros voltados, a que vi-
nha do Brasil, para Portugal, vai agora de Portugal para o Brasil, pois
não basta a gente, que de lá vai, senão também o pouco drº [dinheiro]
que tão preciso lá se faz? E não somos por ventura, vassalos de V. M.
para sermos tratados da mesma maneira que são hoje os brasileiros?
Que tão felizes se achão e nós em tanta desgraça? Há muito bem pode
V. M. socorrer-nos, quando não, será por tempos, V. M. Um Rei de um
povo mendigo e desgraçado37.

Da mesma forma, os jornais portugueses em Londres não viam com


bons olhos a realização da aclamação no outro lado do Atlântico. José
Liberato Freire de Carvalho, em seu jornal O Investigador Portuguez,
afirmava que a “Aclamação de um Soberano aparece uma vez na vida do
homem” e, no ano da aclamação, transcreve um artigo denominado “Con-
siderações sobre a sede da Monarquia Portuguesa”, em que se afirmava
que “Lisboa é a capital mais própria e natural do Brasil, do que o Rio
de Janeiro, Bahia ou outra alguma de suas cidades”38. Logo, somente na
capital do reino, podia ser realizada a cerimônia da Aclamação. Em 1819,
as críticas eram mais contundentes, acentuando cada vez mais a inversão
35  –  Alvará de 30 de março de 1818. Proíbe as sociedades secretas debaixo de qualquer
denominação que seja. Collecção das Leis do Brazil de 1818. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1889, pp. 26-28.
36 – HERMANN, Jacqueline. O rei na América ... Op. cit., pp. 141-143.
37  –  “Carta de hum fiel vassallo a El rei D. João VI, relatando o estado do reino de Por-
tugal sob o governo regencial e pedindo a volta se S. M.” In: Documentos para a História
da Independência. Rio de Janeiro: Officinas Graphicas da Biblioteca Nacional, 1923, p. 6.
38 – O Investigador Portuguez em Inglaterra ou Jornal Literário, Politico &. V. XXI,
Londres, 1818. Para a primeira citação, ver p. 342; para a segunda, p. 442.

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de papéis entre o Brasil e Portugal e insistindo que o centro do império


devia retornar a Portugal. Naquele momento, redator de um novo jornal
– o Campeão Português, Amigo do Rei e do Povo – José Liberato de Car-
valho afirmava que Portugal encontrava-se reduzido “a uma progressiva
decadência, sendo obrigado a constantes sacrifícios, “ora em homens,
ora em dinheiro”, que se destinavam ao Brasil. Os portugueses, portanto,
encontravam-se “sem rei e quase sem pátria”, gemendo em silêncio e per-
manecendo “órfãos”39. Atribuía-se, assim, ao processo de autonomia do
Brasil, consolidado com a sua elevação a Reino Unido e a sede da acla-
mação do soberano, o estado lastimável em que se encontravam a econo-
mia e as finanças em Portugal, que fora duramente atingido não só com
a transferência volumosa e contínua de créditos públicos e particulares
para a corte do Rio de Janeiro, como também com os pesados encargos
militares e a drástica recessão no comércio luso-brasileiro. Além disso, a
ausência do soberano abalava a autoestima dos portugueses.

Numa abordagem mais crítica, encontravam-se os escritos redigidos


por Bernardo da Rocha Loureiro. Publicados em seu periódico O Portu-
guez, nos artigos intitulados “Memorial à Majestade do meu Alto e Mui
Poderoso Senhor D. João VI, Rei do Reino Unido de Portugal, Brasil,
e Algarves”, apontavam com rigor algumas fraquezas, defeitos e erros
de seu soberano. Os escritos, iniciados quando D. João tornou-se rei,
constituíam-se em “representações enérgicas”, mas “respeitosas”, consi-
derando-o como um “rei sagrado”. Em sua opinião, um rei era “um chefe
supremo, destinado a fazer a felicidade de seus súditos”. E, continuava:
Porém, se Vossa Majestade esquecer (o que Deus não permita) das
tremendas obrigações de quem meneia as rédeas do governo, então,
para o seu povo e até para V.M., melhor fora o não ter nascido ou ter
a estrela de ter vindo ao mundo na ordem e classe do último dos seus
súditos40.

39 – O Campeão Portuguez, Amigo do Rei e do Povo, Londres, no 1, julho 1819 e no 3,


agosto 1819.
40  –  LOUREIRO, João Bernardo da Rocha. Memoriais a D. João VI. Edition et com-
mentaire para Georges Boisvert. Paris: Fundação Calouste Gulbenkian, 1973, pp. 53-54.
A data do artigo é de 1816.

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Nas páginas seguintes, fazia duras críticas ao monarca, descrevendo


o lastimoso estado em que Portugal se encontrava: “Sim, Portugal, depois
de tantos serviços, está abandonado, reduzido ao estado de colônia e com
um governo que pode fazer todo o mal e nenhum bem”41. Demonstrava
o grande descontetamento que existia no Reino, que não rompeu ainda
em sedição, devido à força armada. Fazia, então, um irônico comentário
sobre os festejos da aclamação em Lisboa: “Quando agora foi V. M. Acla-
mado em Lisboa, na parada das tropas o Marechal [Beresford] e alguns
oficiais do estado maior romperam voz, Viva El Rei! Porém, a tropa, fria
de gelo, respondeu com silêncio que diz muito”42. Afirmava ainda que
a Gazeta de Lisboa referia-se com as “palavras as mais pomposas” que
sabia seu redator, que houve grande entusiasmo e repetidos vivas, nas
celebrações da aclamação em Portugal. Novamente, advertia, no entanto,
que D. João não devia dar a esses pregões maior crédito43. Por isso, ao
fazer referência à corte do Rio de Janeiro, após a exaltação de D. João ao
trono, chamava-a de Corte Tupinambá.

Mesmo nos escritos em que se faziam saudações ao novo soberano,


demonstrando seu contentamento com a “coroação” de El-Rei, como o
do Juiz do Povo de Lisboa – Vicente Ferreira Antunes –, encontravam-se
críticas veladas. Assim, aquele, ao final de sua proclamação, afirmava:
Graças dirigimos ao Altíssimo por tanto Benefício, e visto que termi-
nou o motivo que nos roubara o maior dos bens, qual contemplamos
a Real Presença, e toda a Real Família, roubo sensível e que jamais
pode ser suprido sem a pura e exata e formal restituição, no nome de
todos, pelo meu cargo, pelo meu sentir, e as instâncias gerais, reclamo,
e exorto com o mais profundo respeito tão apreciável restituição, e a
possível brevidade mesmo em desempenho da Real Palavra que V.
Majestade nos prestou quando providencialmente se ausentara44.

41  –  LOUREIRO, João Bernardo da Rocha. Memoriais a ... p. 117.


42 – Idem. Ibidem. p. 120.
43 – Idem, Ibidem. p. 120.
44  –  Transcrição do documento em PEREIRA, Ângelo. Os filhos de El-Rei ... pp. 268-
269.

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A exaltação da Monarquia na América: D. João e a Aclamação em 1818

Era uma clara alusão à necessidade imperiosa do retorno de D. João


VI a Portugal, uma vez que os motivos de sua ausência cessaram com a
queda de Napoleão Bonaparte.

Tais escritos revelavam as tensões que pairavam no ar e que, sem


dúvida, contribuiram para que D. João refletisse com muita tranquilidade
sobre a opção a ser adotada: a sede do reino permanecer na América ou
retorná-la para Portugal. Qualquer opção acarretava inúmeras e desagra-
dáveis implicações.

Outro relato de um visitante estrangeiro, embora apontando para as-


pectos distintos da questão, em seu final, deixava uma questão intrigante
no ar. Tratava-se de Henry Marie Brackenridge, secretário da Missão nor-
te-americana, que, no final de 1817, por ordem do governo dos Estados
Unidos, partia para uma viagem à América do Sul45. A missão tinha como
objetivo demonstrar a “disposição fraterna”46 desse governo para com os
recém constituídos estados das antigas possessões espanholas e para com
o império luso-brasileiro. Chegando ao Rio de Janeiro, poucos dias an-
tes da “coroação ou aclamação” de D. João, Brackenridge descreveu a
cerimônia, um espetáculo totalmente inédito para ele. Ficou estupefato
com as descargas da artilharia, que pareciam nunca cessar, com as ilumi-
nações, com o tremendo ruído que todos produziam e com a magnitude
da arquitetura efêmera, construída para tal fim. Tendo vivenciado uma
cultura política que se distanciava do mundo do Antigo Regime, ele esta-
belecia, então, uma curiosa comparação entre uma simples e espontânea
cerimônia que instalava um chefe de governo escolhido por um povo li-
vre e essa barulhenta e artificial aclamação de um soberano hereditário.
Enquanto, no primeiro caso, o apelo aos povos era produzido pela razão e
bom senso, no segundo, era provocado por todo um ruído e um esplendor
“calculados para aturdir e assombrar o intelecto humano”. Não era uma
45  –  Agradeço essa indicação a Neil Safier, historiador e professor da Universidade de
British Columbia, Vancouver, Canadá. O texto encontra-se acessível no Google Books.
BRACKENRIDGE, H. M.. Voyage to South America performed by order of the American
Government, in the years 1817 and 1818, in the Frigate Congress. Baltimore: Published
by the autor, 1819, 2 v.
46 – BRACKENRIDGE, H. M.. Voyage to South … Op. cit., p. 100.

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emoção que saía da alma do indivíduo, mas, sim, produzida por objetos
externos. O entusiasmo dos homens livres era capaz por si só de elevar
seu pensamento e sentimento sem a ajuda de banalidades como essas que
ocorreram na aclamação de D. João VI. Demonstrava, assim, como as
monarquias ainda estavam profundamente ligadas às “antiguidades”. Os
soberanos encontravam-se muito longe de adotarem os melhoramentos da
época que vivenciavam; “encontravam-se tão afastados da civilização”,
como os indígenas norte-americanos. E concluía com uma questão: “Esta
era a primeira coroação de rei na América – será também a última”?47.

Se tais escritos revelam descontentamento, outros textos foram re-


digidos no Rio de Janeiro em virtude da própria aclamação de D. João
VI, demonstrando contentamento pela opção cada vez mais clara pela
via americana da monarquia portuguesa. De um lado, o áulico José da
Silva Lisboa, escrevia sua Memória dos Beneficios Políticos do Governo
de D. João VI, vinda à luz no Rio de Janeiro, em 1818. Apesar de seu
caráter extremamente laudatório, ela trouxe à tona alguns dos aspectos
mais importantes do período de D. João. O livro, encomendado pelo so-
berano, apresenta uma satisfação ao público, em que o autor indicava
seu objetivo: fixar “tão Grande Época dos Anais da América” em “al-
guma Memória”, que indicasse os principais benefícios políticos que D.
João fez ao Estado até a sua Faustíssima Aclamação em 6 de Fevereiro
de 181848. Segundo o autor, a aclamação do príncipe como o monarca
D. João VI, do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, emprestou
uma nova dimensão à escolha cada vez mais clara pela via americana da
monarquia portuguesa transformava o Brasil na terra da Promissão. Não
se tratava mais de procurar uma nova terra, mas de consolidar a doação
da “grande Terra”, mostrada pelo dedo de Deus. Silva Lisboa utilizava,
sobretudo, a linguagem de um fiel súdito de Sua Majestade, acreditando
ser útil ao rei e à Coroa, ao construir uma imagem de D. João, por meio

47 – BRACKENRIDGE, H. M.. Voyage to South … Op. cit., pp.150-152.


48 – LISBOA, José da Silva Lisboa. Memória dos benefícios políticos do governo de
el-rey nosso senhor D. João VI. Por ordem de Sua Magestade. Publicada em conjunto a
Synopse da legislação principal do Senhor d. João VI pela ordem dos ramos da economia
do Estado. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1818, p. III.

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A exaltação da Monarquia na América: D. João e a Aclamação em 1818

de fatos curiosos e memoráveis e de uma história com uma abrangência


ampla, que oferecia a visão de um reino unido, herdeiro de um grande
império, como argumentou Kirsten Schulz49 brilhantemente, ainda que
por uma dinastia – a de Bragança e por uma religião – a católica. Em sua
visão, reviviam-se as glórias do antigo império português, criando-se, no
lado de cá do Atlântico, um novo Império, mas que continuava as virtudes
e as honras do antigo império português. Repetia-se, no Brasil, a mesma
história vivenciada no Reino de Portugal50.

Também o padre Luís Gonçalves dos Santos, em suas Memórias


para servir à História do Reino, possuía um objetivo claramente definido
– memorar todos os fatos que lhe pareceram dignos de construírem uma
futura história que ilustrasse e imortalizasse o augusto nome do senhor D.
João VI, que “estabelecendo a sede de seu governo no Brasil, felicitou-o;
elevando-se a Reino, o honrou; e com a sua coroação o encheu de glória”.
Tecia, ainda, uma curiosíssima narrativa para explicar e para descrever o
acontecimento da aclamação real51.

Outras duas narrativas podem ser retomadas para demonstrar o es-


plendor e o brilho da cerimônia da aclamação: a da Gazeta do Rio de Ja-
neiro, cujo relato foi transcrito não só na Gazeta de Lisboa, como também
serviu de referência para o comentário, em 20 de abril, no jornal londrino
The Times, sobre a ocasião; e o texto publicado, no mesmo ano de 1818,
pelo oficial da Secretaria da Intendência da Polícia do Rio de Janeiro na
época, Bernardo Avellino Ferreira e Souza. Ambas faziam descrições mi-
nuciosas que procuravam demonstrar todo o cuidado da preparação da ce-
rimônia, bem como o esplendor dos festejos que serviam para representar
o dia da glória do Brasil “com a exaltação ao trono do primeiro soberano,
que cingiu a coroa no Novo Mundo”. Como afirmava o padre Perereca,
o dia 6 de fevereiro foi um “dia sempre glorioso, e memorável dos fastos
brasileiros, em que vimos representar-se na praça principal desta Corte do
49 – SCHULTZ, Kirsten. Versalhes Tropical. Império, monarquia e a Corte Real Por-
tuguesa no Rio de Janeiro, 1808- 1821. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, pp.
282-294.
50  –  LISBOA, José da Silva. Memória dos ... Op. cit., pp. III-VI.
51  –  SANTOS, Luiz Gonçalves dos. Memórias para ... Op. cit., pp.152-181.

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Lucia Maria Bastos P. Neves

Brasil a cena mais magnífica, e brilhante, que se pode imaginar”52. A ce-


rimônia da aclamação obedeceu, portanto, aos costumes antigos e serviu
como meio para reforçar a imagem plena de D. João enquanto soberano
do Reino Unido de Portugal, Algarves e Brasil e demonstrar a carga sim-
bólica daquela encenação.

Provavelmente, em função dessa representação, a data escolhida


para a aclamação era o dia das Chagas de Cristo, uma referência essen-
cial à fundação da monarquia portuguesa. De acordo com a tradição, D.
Afonso Henriques recebeu as chagas de Cristo, após a batalha contra os
mouros (1139), como um sinal divino de que era o escolhido para reinar53.
Tal fato foi recordado no poema de Antonio José Osório de Pina Leitão
– Alfonsíada, poema heroico da fundação da monarquia portuguesa – pu-
blicado em 1818 e oferecido a D. João VI por sua exaltação ao trono54.

As diversas regiões do Brasil também enviavam os relatos dos fes-


tejos realizados em homenagem à aclamação do soberano. A Câmara da
Cidade de Belém, por exemplo, “animada dos mais puros sentimentos de
amor e lealdade para com o melhor dos soberanos”, mandava um repre-
sentante, em nome de seus habitantes, para felicitar e para cumprimen-
tar Sua Majestade55. Também um discurso recitado por Joaquim Teonio
[Teotônio] Segurado, na vila de S. João da Palma, no dia da aclamação
de D. João VI, destacava que a “sucessão da antiquíssima Casa de Bra-
gança no Trono de Portugal” fundava um novo Reino no Brasil, onde
se celebrava o “Ato de Preito e Homenagem” – a aclamação de D. João
– motivo de júbilo de todos os fieis brasileiros. Inaugurava-se “uma das
52  –  SANTOS, Luiz Gonçalves dos. Memórias para ... Op. cit., p. 151.
53  –  Para essa questão, ver SOUZA, Iara Liz Carvalho. D. João VI no Rio de Janeiro.
Entre festas e representações. In: Anais do Seminário Internacional D. João VI: um rei
aclamado no Brasil. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2000, p. 58.
54  –  LEITÃO, Antonio José Osório de Pina. Alfonsíada, poema heroico da fundação da
monarquia portuguesa ... Bahia: Typographia de Manoel Antonio da Silva Serva, 1818.
Também, Luiz Gonçalves dos Santos, em suas Memórias para servir à História do Reino
do Brasil, faz a mesma associação ao afirmar que D. João VI, zeloso de seus augustos
antecedentes, conservava esta “celestial herança” escolhendo a mesma data para a glória
de sua “exaltação ao trono”. Ver Memórias para ... Op. cit., pp.153-181.
55  –  Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Divisão de Manuscritos. II-32,15,011. Re-
presentação da Câmara de Belém para cumprimentar D. João. 11 de junho de 1817.

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A exaltação da Monarquia na América: D. João e a Aclamação em 1818

mais memoráveis épocas do Universo”, da qual se datava a “felicidade


dos Brasileiros”56. Ainda para celebrar tão importante data, D. João en-
carregava ao músico Marcos Portugal a composição de um hino – Himno
para a Feliz Aclamação de S. M. F. o Senhor D. João VI, que por ordem
do mesmo augusto Senhor compôs Marcos Portugal. O hino foi finaliza-
do ainda em 1817, ano provável da exaltação do soberano. Era um texto
elogioso, que servia de instrumento para manter a coesão de seu Império,
em época de transtornos na Europa, com contestações ao Antigo Regime,
bem como meio de apaziguamento entre as duas partes que compunham
o Império Português57.

No entanto, apesar de tantos festejos, de minuciosos relatos e da pu-


blicação de poemas e odes a D. João, nem todos os súditos portugueses
achavam-se satisfeitos. O já citado Luís Joaquim dos Santos Marrocos,
em carta ao pai, que narrava o “desejado e aparatoso Ato da Aclamação
de Sua Majestade”, enviando os relatos da Gazeta do Rio de Janeiro que
descrevia a festa, advertia que, neles, “há muita falta de exacção, e muito
mentira”, pois narravam coisas não existentes, ou davam “valor a ninha-
rias”. Caía mesmo “no absurdo, ou talvez no desaforo, de não publicar
fatos e circunstâncias as mais essenciais daquele Ato”. Podia ser uma re-
ferência ao seu mal-estar em não ter visto a aclamação realizada em terras
portuguesas ou apenas o seu mau humor costumeiro58.

Muitos outros pontos ainda podiam ser destacados: a narrativa da


festa em seus distintos rituais que reforçavam o poder do soberano; a
montagem da arquitetura efêmera, os festejos (luminárias, fogos de artifí-
cios, cerimônias religiosas, entre outros) ou a questão que, muitas vezes,
paira ainda como dúvida entre os historiadores: coroação ou aclamação?
56  –  Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Divisão de Manuscritos. I-32,10,1. Discurso
recitado por Joaquim Teonio [sic] Segurado na villa de S. João da Palma no dia da accla-
mação de D. João VI.
57  –  O original deste hino encontra-se guardado, segundo Alberto José Vieira Pacheco,
na Biblioteca Alberto Nepomuceno da Universidade Federal do Rio de Janeiro. MS(E)
P-XI-2. Cf. PACHECO, Alberto José Vieira. Hino para Aclamação de D. João VI: edição
e contextualização (com partitura inédita). Opus. Porto Alegre, v. 18, nº1, 2012, pp. 41-71.
58  –  MARROCOS, Luís Joaquim dos Santos. Cartas do Rio de Janeiro ... Carta de 24
de fevereiro de 1818, p. 114.

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Lucia Maria Bastos P. Neves

Sem dúvida, deve-se destacar que, em toda a cerimônia, D. João apresen-


tou-se com o uniforme de gala, sem a coroa na cabeça. Tema já estudado
por José Mattoso e Jacqueline Hermann59, a coroa representava um im-
portante símbolo ao longo do cerimonial, mas não adornava a cabeça do
soberano. Para alguns, tal fato se explica, em virtude do costume estabe-
lecido desde a morte de D. Sebastião, na África, em 1580. D. Sebastião,
“dizem, foi levado ao céu de coroa à cabeça e deve trazê-la novamente a
Lisboa”. Por tal motivo, a coroa é sempre representada ao lado de D. João
VI, ou, algumas vezes, sobre o trono.

Fonte: Jean-Baptiste Debret. Voyage pittoresque et historique au Brésil. v. III.


Paris: Firmin Didot Frères, 1835, Prancha 37, p. 204.

Em verdade, os reis portugueses, regra geral, não eram coroados,


nem sagrados, como os reis franceses e ingleses. Eram aclamados ou
exaltados, sendo o cetro a principal insígnia real das cerimônias de acla-
mação.

59  –  MATTOSO, José. A coroação dos primeiros reis de Portugal. In: BETHENCOURT,
Francisco & CURTO, Diogo Ramada (orgs.). A Memória da Nação. Lisboa: Livraria Sá
da Costa Editora, 1991, pp. 187-200. HERMANN, Jacqueline. No reino do desejado. A
construção do sebastianismo em Portugal, séculos XVI-XVII. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998, capítulo 3.

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A exaltação da Monarquia na América: D. João e a Aclamação em 1818

Sem dúvida, fato inédito, a aclamação de D. João VI na América


reforçava a ascendência do Rio de Janeiro sobre o restante do país, assim
como o peso político da parte brasileira no interior do império, aspecto
este que não podia deixar de melindrar os sentimentos dos súditos no
continente europeu. Eram imagens distintas que revelam percepções, se-
gundo a perspectiva de cada ator, inserida ainda em contextos históricos
específicos. De um lado, entre Portugal e os Braganças, em especial D.
João, as cicatrizes provocadas pelo exílio ou pela fuga da Corte não se
dissiparam completamente – de outro, no Brasil, o filho de D. Maria I
permaneceu, de uma forma geral, no entanto, uma figura simpática, per-
mitindo que a nova Corte vislumbrasse uma festa inédita. Essas visões
distintas, no entanto, encobriam a realidade dos fatos: um Império coeso
formado por dois reinos em que apenas a um cabia a proeminência polí-
tica. Fazer a aclamação em terras da América podia representar a escolha
do Brasil para ser a parte principal do Império, o que não agradava a
Portugal. A escolha foi difícil. As tensões e as disputas tornaram-se ingre-
dientes fundamentais para a decisão final, além de, no Brasil, não estarem
presentes as antigas Cortes ou a Junta dos Três Estados que deviam con-
firmar o rito da Aclamação de um soberano português, conforme as leis
Fundamentais do reino. Tudo isso pode explicar a aclamação tardia. Esta,
sem dúvida, além de se constituir em evento inédito no Brasil, possuiu um
caráter simbólico que, segundo Arno e Maria José Wehling, contribuiu
para demarcar definitivamente a diferença entre o mundo colonial que
se começava a ruir e uma nova feição política e econômica que o Reino
tomava60. Se é possível, todavia, afirmar que D. João soube, sem abrir
mão das convicções que trazia e em meio a hesitações e a tergiversações,
conciliar as tensões internas de um império, naqueles anos entre 1816 e
1818, essas mesmas tensões explodiram, dois anos depois, com a Revolta
de 1820, quando, enfim, foi obrigado a retornar a Portugal para se tornar
um rei Constitucional, ainda que por pouco tempo.

60 – WEHLING, Arno & WELHLING, Maria José. Um espelho que se distancia. A


crescente diferenciação do Brasil no período joanino. In: Um novo Mundo. Um novo Im-
pério. A Corte portuguesa no Brasil, 1808-1822. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacio-
nal, 2008, pp. 35-39. Citação à p. 37.

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Texto apresentado em outubro/2018. Aprovado para publicação em


dezembro/2018.

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União dinástica e relações científico-culturais

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UNIÃO DINÁSTICA E RELAÇÕES


CIENTÍFICO-CULTURAIS
DYNASTIC UNION AND
SCIENTIFIC-CULTURAL RELATIONS
Maria de Lourdes Viana Lyra1

Resumo: Abstract:
O objetivo deste texto é realçar a estreita ligação This paper aims to emphasize the close
existente entre o Rei D. João VI e o Reino Unido connection between King D. João VI and the
luso-brasileiro, por ele criado, e, ao mesmo tem- Luso-Brazilian United Kingdom he created, and
po, destacar o alcance político da estratégia por at the same time aims to highlight the political
ele adotada, tanto em prol da sobrevivência do reach of the strategy he adopted, both for the
velho Reino europeu como em defesa da conso- survival of the old Portuguese Kingdom and
lidação do novo Reino Unido sediado no Brasil. the defense of the consolidation of the new
Por meio da reflexão, sob outra perspectiva de United Kingdom based in Brazil. Through some
análise, acerca da atuação do rei, elabora-se uma new reflections and under another perspective
interpretação distinta da versão tradicionalmen- of analysis – about the actions of the king-, a
te construída, aquela que traça a imagem de um different interpretation is constructed, unlike
rei “fraco e fujão” que ainda resiste em manuais the traditional version that traces the image
escolares e na mente da população em geral. of a “weak and runaway” king. A version that
Apresenta-se, assim, uma nova versão sobre os still persists in school textbooks and in the
fatos históricos e sobre as decisões consequen- minds of the population in general. Therefore,
tes tomadas pelo rei, entendendo tais fatores no it is a new version of the historical facts and of
cenário de dinamismo das relações então esta- the consequential decisions taken by the king,
belecidas no plano geral da política e da admi- understanding these factors within a scenario
nistração governamental. Além disto, ressalta of dynamism of the relations established in
o lugar privilegiado desfrutado pelo Brasil, a the general plan of government policy and
partir de 1808, e ampliado no contexto do Rei- administration. In addition, it highlights the
no Unido, bem como o implemento da pesquisa privileged place enjoyed by Brazil, from 1808,
científico-cultural estabelecido a partir da união and extended in the context of the United
dinástica com os Habsburgo, como fatores de- Kingdom, as well as the implementation of
terminantes e decorrentes da política joanina. scientific-cultural research established from
the dynastic union with the Habsburgs, as
determinants and due factors of the Johannine
politics.
Palavras-chave: D. João VI; Estratégia políti- Keywords: D. João VI; Political strategy; Luso-
ca; Reino Unido luso-brasileiro; União dinásti- Brazilian United Kingdom , Dynastic union;
ca; Relações científico-culturais. Scientific-cultural relations.

Ao ser convidada pelo presidente Arno Wehling para participar do


Seminário A Aclamação de D. João VI – O Rei e o Reino, percebi que o
subtítulo – o Rei e o Reino –, não poderia ser mais pertinente! Isso, por-

1  –  Historiadora, mestre e doutora em História do Brasil, professora de História do Bra-


sil - UFRJ, sócia titular do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB, e da Aca-
demia Portuguesa da História – APH.

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Maria de Lourdes Viana Lyra

que torna explicita a estreita ligação existente entre o sujeito da ação – o


Rei, aclamado como D. João VI, e o seu objeto, o Reino Unido de Portu-
gal, Brasil e Algarves, instituído em dezembro de 1815. Retomo, assim,
a análise que, nos últimos anos, vem constituindo objeto de minhas refle-
xões: centrar a atenção no contexto histórico correspondente, com a in-
tenção objetiva de apontar a existência dessa interligação entre o Rei – no
início, como resoluto defensor do Reino luso, e, depois, como mentor do
Reino Unido luso-brasileiro por ele criado – e, ao mesmo tempo, realçar
o alcance político dessa estratégia adotada em defesa da própria Coroa e
em prol da consolidação do Reino Unido sediado no Novo Mundo. Ainda
é pouco explorado esse enfoque sobre o qual direcionarei o olhar a seguir.

Inicialmente, destacarei as decisões tomadas por ele, como príncipe


regente e como rei, no contexto da guerra europeia, provocada pela inva-
são das tropas francesas sob Napoleão, entendendo-as como alternativas
extraordinárias para salvaguardar a existência da própria Coroa e do Rei-
no luso face à ofensiva napoleônica. No primeiro momento, não titubeou
em adotar uma estratégia de defesa nunca antes utilizada: a de transferir a
sede de sua Corte monárquica da Europa para as terras do Novo Mundo,
alternativa sempre sugerida em tempos de graves crises no passado do
reino luso e finalmente efetivada em momento extremo, quando as tropas
francesas ultrapassaram as fronteiras do território português. Essa deter-
minação, sem dúvida, foi admirável, mesmo tendo deixado de esclarecer
à população portuguesa que se tratava de uma mudança definitiva, tanto
do local de residência da família real quanto da transferência de sede da
Corte monárquica, de Lisboa para as terras do Ultramar.

No segundo momento, ao perceber que tanto a preservação do Esta-


do monárquico português quanto a consolidação do governo monárquico
na América dependiam da permanência dele e da sede da Corte lusa no
Brasil, mais uma vez, D. João atuou com determinação e avançou na
estratégia de defesa da política empreendida. Ao reagir com a rapidez ne-
cessária para deter o crescente movimento de pressão, que se avolumava
em Portugal, apoiado pelos ingleses, que reivindicavam o retorno do rei,
de todos os membros da família real e da Corte monárquica para Lisboa,

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União dinástica e relações científico-culturais

a antiga sede do Reino luso, determinou, por Carta Régia, a elevação do


Brasil à condição de Reino Unido a Portugal, posição de fato já usufruída
desde 1808, o que oficializava a posição do Rio de Janeiro como sede
efetiva do novo Reino Unido luso-brasileiro, apesar de, mais outra vez,
limitar o avanço da decisão tomada, ao deixar de estabelecer a necessária
reestruturação administrativa, deixando de decretar a conversão das capi-
tanias coloniais em províncias do novo reino2.

Remarcarei, em seguida, o lugar privilegiado que o Brasil desfrutava


no contexto do Reino Unido, pela proeminência adquirida ao sediar a
Corte monárquica, além de constituir o celeiro da produção e do comércio
luso desde o início da colonização, entendendo essa posição adquirida
como fator decorrente da política joanina, ângulo de análise bem pouco
explorado, mas que aponta um caminho profícuo para desenvolver a re-
flexão ora apresentada e que formula uma interpretação bem diversa da-
quela tradicionalmente construída, cuja imagem predominante é a de um
rei fraco e fujão, além de glutão, que ainda persiste em alguns manuais
escolares e na mente da população em geral. Ou seja, apresento, sob outra
perspectiva de análise, uma nova interpretação dos fatos históricos então
ocorridos com o propósito de demonstrar que é, no contexto da atuação
político-administrativa do príncipe regente D. João, que se enquadra, por
exemplo, o cenário de dinamismo das relações estabelecidas no plano ge-
ral da economia e da política, além do incentivo às artes no Brasil, a partir
de 1808. Além disso, realço que, a partir da criação do o Reino Unido
luso-brasileiro, no final de 1815 e logo após a oficialização da sua inves-
tidura como rei, fica em evidencia a atuação positiva de D. João quanto
ao implemento da pesquisa científico-cultural. Quando se sentiu forte o
suficiente para buscar apoio internacional à diretriz política empreendi-
da, empenhou-se com afinco para consolidar o Reino Unido sediado no

2  –  Sobre essa questão, consultar: Coleção de Leis do Brasil. 1814 – 1815, Carta de
Lei de 16 de dezembro de 1815; HIPÓLITO da COSTA, José. Correio Brasiliense ou
Armazém Literário. “Edição fac-similar”, 2001. Imprensa Oficial do Estado: São Paulo/
Brasília, DF. Vol. XVI, pp. 184-190; e também, ver análise elaborada por LYRA, Maria
de Lourdes Viana. “O Brasil como Reino Unido a Portugal: um modelo de emancipação
colonial”. R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177, n. 470, pp. 149-172.

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Maria de Lourdes Viana Lyra

Brasil, através do fortalecimento da união dos interesses entre as partes


dos dois lados do Atlântico, com o objetivo de criar reais condições para
edificar o poderoso império luso-brasílico3.

Esse intento poderia ser melhor alcançado com o apoio efetivo de


uma potência europeia a ser buscado através da união dinástica entre as
Casas de Bragança e Habsburgo, enlace que atendia aos interesses mútu-
os entre o Reino Unido instalado nos trópicos e o império austríaco, um
dos mais importantes da Europa e uma das dinastias mais antigas e pode-
rosas do Velho Mundo, além de líder da Santa Aliança – união dinástica
que propiciou o progressivo desenrolar das relações políticas e cientifico-
-culturais estabelecidas a partir de então4.

Antes de prosseguir, no entanto, vale acentuar que o fato extraordi-


nário da interiorização da metrópole portuguesa no Brasil, além de carac-
terizar de forma diversa o modelo da independência colonial brasileira,
representou um ponto importante de inflexão no desenrolar dos aconteci-
mentos daquele momento histórico, como bem anotou o historiador Sér-
gio Buarque de Holanda ao apontar que 1808 marcou o início de uma
“nova descoberta do Brasil”5, uma vez que, até então, a colônia portugue-
sa permanecera completamente fechada ao restante da Europa, com suas
fronteiras interditadas aos estrangeiros, além de serem proibidos quais-
quer meios de divulgação sobre as potencialidades ali existentes. Isso
causava consternação aos estudiosos das ciências naturais e provocava
protestos aos mercadores desejosos de acesso à comercialização do que
era ali produzido. Até então, eram escassas as informações no restante
da Europa sobre a qualidade produtiva do solo, os habitantes, o mundo
vegetal e a riqueza mineral das terras do Brasil. O pouco que se conhe-
cia era proveniente de correspondências esparsas de religiosos, ou dos

3  –  Cf. LYRA, Maria de Lourdes Viana. A Utopia do Poderoso Império: Portugal e Bra-
sil – bastidores da POLÍTICA, 1798-1822. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1994.
4  –  Cf. LYRA, Maria de Lourdes Viana. Rainhas de Portugal no Novo Mundo. Leopoldi-
na de Habsburgo. Coleção Rainhas de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2011.
5  –  Cf. HOLANDA, Sérgio Buarque. “A herança colonial – sua desagregação”. In: Sér-
gio Buarque de HOLANDA (Org.) História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo:
DIFEL, 1970. Tomo II, v.1.

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União dinástica e relações científico-culturais

relatos, muitas vezes, fantasiosos dos viajantes que conseguiam aportar.


Também se sabia algo por meio de escritos e de imagens divulgadas por
pintores, cartógrafos, naturalistas, que estiveram na hoje Região Nordeste
no período da ocupação holandesa, no século XVII. Assim, apenas após
a chegada da Corte portuguesa ao Rio de Janeiro, as fronteiras do Brasil
se abriram ao mundo, fazendo convergir para cá todos os olhares e inte-
resses. É, nessa perspectiva de análise, que o cenário dos acontecimentos
transformadores da condição do Brasil – de colônia a Reino –, e da con-
sequente política em prol da união dinástica entre as Casas de Bragança e
de Habsburgo, que as relações de interesses então estabelecidas assumem
significativa importância.

Vejamos então: com o fim da guerra na Europa e os acordos fechados


no Congresso de Viena – incluindo Portugal no sistema de alianças de
Metternich (o todo poderoso ministro da Áustria) –, criaram-se condições
favoráveis à instauração do Reino Unido luso-brasileiro, sendo também
demonstrado ao rei quanto seria vantajoso o estabelecimento de uma
aliança mais estreita com o império austríaco, como garantia de maior
segurança face ao poder de dominação imposto pela Inglaterra. Entendia-
-se que seria bastante providencial ao Reino Unido o apoio de um aliado
forte e ideologicamente sintonizado com o empreendimento de fundação
de um almejado poderoso império luso-brasileiro6. Ao mesmo tempo, a
identidade ideológica entre ambos era favorável à pretendida união dinás-
tica - além do fato de a existência de um império unificador do Velho e
Novo Mundo, sob as mesmas bases político-ideológicas das monarquias
ilustradas, era encarada pelas duas casas reinantes como necessária ao
fortalecimento do sistema monárquico tradicional, o absolutista, já bas-
tante enfraquecido na Europa.

É certo que interessava à Áustria estabelecer relações comerciais


com o novo império em construção, mas o anseio maior era obter facili-
dades de acesso às terras ainda inexploradas do Brasil. A pesquisa cientí-
fica era uma atividade especialmente cultivada pelos austríacos e bastante
6  –  Cf. LYRA, Maria de Lourdes Viana. A Utopia do Poderoso Império. Op. cit., e “O
Brasil como Reino Unido a Portugal: um modelo de emancipação colonial”. Op. cit.

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Maria de Lourdes Viana Lyra

apreciada pelos membros da família imperial, sobretudo pelo imperador,


um estudioso tanto da mineralogia como da botânica e da zoologia, tendo
despertado o gosto pelo estudo das ciências naturais e desenvolvido o
prazer de coletar e de formar coleções de espécimes raras em seus filhos.
Dentre eles, a filha Leopoldina destacou-se pelo acentuado interesse e
pela dedicação ao estudo de tais ciências, chegando a ser apelidada pelos
familiares como a “Mineralogista da Corte”. O especial interesse da jo-
vem arquiduquesa pelo estudo das ciências, ao lado da acurada formação
intelectual, constituiu característica marcante de sua personalidade e, nas
conversações diplomáticas em torno do ajuste matrimonial, esse foi um
fator determinante para ser escolhida como noiva e futura esposa do prín-
cipe D. Pedro7.

Esse aspecto assume dimensão particular no encaminhamento da


política em prol da união entre as duas dinastias e nas relações científico-
-culturais decorrentes. Esclarecedor é o “Tratado Matrimonial”, usual
nas uniões dinástica e que investia Leopoldina com o título de princesa
real de Bragança, incluir uma cláusula extra, determinando a ida para o
Brasil de uma expedição composta de cientistas escolhidos entre mais ex-
poentes estudiosos das ciências naturais na Áustria, para viajarem como
parte da comitiva real da jovem noiva8. Tal cláusula atendia ao princípio
das “relações recíprocas”, compromissadas e seladas por ocasião das tra-
tativas diplomáticas para oficializar o enlace matrimonial, e cujos pesqui-
sadores recebiam a incumbência de explorar as vastas regiões do Brasil,
catalogar as espécies encontradas e coletar os exemplares raros, para en-
riquecer as coleções dos museus e dos jardins botânicos da Áustria. Essa
expedição, conhecida como Missão Científica Austríaca, evidencia uma
face central entre os múltiplos interesses envolvidos na união dinástica e
na aliança estabelecidas entre o Império da Áustria e o Reino Unido de
Portugal e Brasil.

7  –  Cf. LYRA, Maria de Lourdes Viana. “Relações diplomáticas e interesses políticos


no casamento de D. Leopoldina”. In: 200 anos: Imperatriz Leopoldina. Coord. Guilherme
Schubert. Rio de Janeiro: IHGB, 1997.
8  –  Cf. RAMIREZ, Ezekiel Stanley. As relações entre a Áustria e o Brasil: 1815-1889.
São Paulo: Ed. Nacional (Brasiliana), 1968.

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União dinástica e relações científico-culturais

O empenho no bom êxito dos trabalhos dos cientistas a serem rea-


lizados foi grande. Organizada diretamente pelo governo imperial, sob
o comando do chanceler Metternich, que encarregou o diretor do Mu-
seu Imperial da escolha dos eminentes estudiosos, entre eles: o zoólogo
Johann Natterer, o mais notável entre os austríacos; o botânico Heinrich
Wilhelm Shott, o veterinário Mathias Unterholzer, o pintor de plantas
Johann Buchberger e o paisagista Thomas Ender. Foram também escolhi-
dos o professor de Botânica, Johann Sebastian Mikan, e o de História Na-
tural, Emanuel Pohl, ambos da Universidade de Praga, além dos natura-
listas Johan Baptist Von Spix e Karl Friedrich Von Martius, por indicação
do rei da Baviera, além do conservador do Museu de Florença, Giuseppe
Raddi, indicado pelo grão-duque da Toscana. Todos foram embarcados
no porto de Trieste, juntos ao corpo de funcionários da embaixada austrí-
aca a ser instalada no Brasil, antes do embarque da comitiva da princesa
Leopoldina, no porto de Livorno, ambos rumo ao Rio de Janeiro9.

A chegada dos ilustres estudiosos europeus, exclusivamente dedi-


cados à pesquisa e ao estudo da natureza vegetal, animal e mineral do
Brasil, marca o início de um tempo alvissareiro de desbravamento da
natureza e de conhecimento do potencial ainda a ser explorado no recém-
-criado Reino Unido luso-brasileiro. Foi um tempo caracterizado pela
efervescência da pesquisa científica e pela ampliação do conhecimento
sobre as possibilidades de progresso do novo império em construção, um
tempo novo marcado por descobertas inéditas do Brasil e que represen-
ta um tento de considerável importância no contexto científico-cultural
da política joanina, tanto quanto a acolhida do rei aos artistas franceses,
aqui chegados nessa mesma época, entre os quais se destacam o pintor
Jean Baptiste Debret e o arquiteto Grandjean de Montigny. Esse é um
ângulo de análise ainda insuficientemente explorado, mas necessário para
aprofundar o conhecimento sobre as afinidades e os interesses do rei em

9  –  CF. LEONTSINIS, Solon. “A Imperatriz Leopoldina e a História Natural do Brasil”.


In: 200 anos: Imperatriz Leopoldina. Coord. Guilherme Schubert. Rio de Janeiro: IHGB,
1997; e LYRA, Maria de Lourdes Viana. Rainhas de Portugal no Novo Mundo. Leopol-
dina de Habsburgo. Op. cit.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):89-100, jan./abr. 2019. 95


Maria de Lourdes Viana Lyra

relação ao desenvolvimento das artes e da pesquisa científica, no sentido


de objetivamente entender a amplitude da política joanina empreendida.

Assim, há a necessidade de reavaliação do conhecimento produzido


sobre o papel desempenhado por D. João VI. Isso não apenas pela cons-
tatação do destemor por ele empreendido na luta pela sobrevivência do
Reino e da própria Coroa – mesmo remarcando a limitação das decisões
tomadas tanto em 1807, ao não declarar aos reinóis o real propósito da
ida para o Brasil, como, em 1815, ao não converter as capitanias em pro-
víncias do novo Reino, com foi acima já mencionado, mas também pelo
cenário de esplendor da cidade do Rio de Janeiro, a sede da nova Cor-
te monárquica, verificado no período de vigência do Reino Unido face
às celebrações consequentes e frequentemente ali realizadas; à chegada
constante de estrangeiros em levas, desejosos de aproveitar as oportuni-
dades disponíveis no novo e poderoso império em construção; além do
empenho do rei em projetar na Europa a pujança do Reino Unido sediado
no Novo Mundo. Esse empenho, por exemplo, foi demonstrado no alto
investimento empregado no cerimonial do casamento do filho Pedro com
a austríaca Leopoldina, realizado em Viena, e na esmerada preparação da
cidade para a suntuosa recepção da noiva, na sua chegada ao Brasil, para
exibir o potencial de riqueza do novo Reino Unido e evidenciar a prospe-
ridade que poderia ser usufruída por todos.

A festa monumental acontecida no Rio de Janeiro, em novembro de


1817, para recepcionar a princesa real Leopoldina, foi diretamente orga-
nizada por ele, contando com vultosos investimentos do comércio local
para ornamentar a cidade, que vinha sendo preparada desde maio, quando
chegara ao Brasil a notícia da oficialização do casamento. Era a primeira
celebração realizada na nova sede da Corte com a pompa majestosa e dig-
nificante do império em construção, como já foi analisada no seminário
passado10. Outras celebrações públicas se sucederam a partir de então,
mas não tão imponente como essa primeira nem tanto quanto a que foi

10  –  Cf. LYRA, Maria de Lourdes Viana. “A Imperatriz Leopoldina entre o público e o
privado”. D. Leopoldina, e seu tempo: sociedade, política, ciência e arte no século XIX.
Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2016.

96 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):89-100, jan./abr. 2019.


União dinástica e relações científico-culturais

realizada poucos meses depois, para celebrar a apoteótica Aclamação do


rei, que figura nos anais da História como a primeira entronização de um
rei europeu em terras do Novo Mundo.

Aliás, a presença da princesa Leopoldina na Corte do Rio de Janeiro


e a aproximação afetuosa com o sogro, logo estabelecida, propiciou a
criação na Corte de um ambiente favorável ao estudo das ciências e da
cultura em geral. Esse aspecto revela um traço de atuação positiva do
rei em relação ao estímulo à pesquisa científica. E, consequentemente,
ao estudo das ciências naturais no Brasil. Possuidora de profundo co-
nhecimento sobre as diversas áreas da História Natural, Leopoldina se
encantou com a exuberância da natureza do Brasil, o que a estimulou à
continuidade do hábito de recolher novos exemplares para ampliar sua
coleção particular e também sugerir ao rei o recolhimento do que restara
da antiga Casa dos Pássaros, ou Casa de História Natural, criada em fins
do século XVIII, mas extinta em 1813, com a finalidade de aproveitar
esse acervo para criar um Museu Real, de fato, aberto em 1818.

Leopoldina também organizou um posto de Zootecnia na Fazenda


Santa Cruz e, auxiliada pelo seu antigo professor, Roque Schuch, que
viera junto na comitiva real, instalou seu próprio Gabinete de História
Natural no Palácio de São Cristóvão, onde alocou sua biblioteca parti-
cular, relevante pelo acervo de numerosas obras sobre ciências naturais,
história, literatura, música - a maioria nos idiomas alemão, francês e por-
tuguês. Além disso, também havia estampas de mapas, manuscritos e fo-
lhetins diversos, grande parte trazida na bagagem, em 42 enormes caixas,
tendo sido acrescida de novas publicações, solicitadas aos amigos e aos
familiares e enviadas com frequência, sobretudo relativas à mineralogia e
à botânica. É pertinente ressaltar que o acervo desse Gabinete de História
Natural, junto ao do Museu Real, deu origem, mais tarde, ao Museu Na-
cional, patrimônio cultural do Brasil que lamentavelmente acaba de ser
destruído pelo fogo11.

11  –  Cf. OBERACKER JR, Carlos H. A imperatriz Leopoldina: sua vida e sua época.
Ensaio de uma biografia. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura/IHGB, 1973.

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Maria de Lourdes Viana Lyra

Somado a esses fatores, a convivência dos pesquisadores da Missão


Científica no Brasil deve ter tido influência na criação e no desenvolvi-
mento de um ambiente cultural na sociedade, fato que deve ser entendido
nesse contexto de empreendimento da política joanina, cujo interesse e
provável acolhimento dispensado pelo rei, nesse sentido, ainda carece de
pesquisa e de estudo mais aprofundado.

No momento, o que podemos destacar é o que resultou de positivo da


política joanina empreendida na época e, ainda hoje presentes, no campo
das relações científicas e culturais. Como exemplo, há a criação do Mu-
seu Brasileiro (Brasilianum ou Brasilianisches), instalado no centro da
cidade de Viena, em 1821, para abrigar e para expor os exemplares das
remessas chegadas do Brasil e, consequentemente, incentivar a pesquisa
científica na Europa, cuja Exposição foi também considerada na época
como “a mais popular durante o século” face ao expressivo número de
visitantes, além de propiciar a publicação de trabalhos dos cientistas, ser-
vindo de estímulo aos estudos da ciência na época e, ainda hoje, lidos e
servindo de estímulo aos estudos científicos12.

Vale ressaltar ainda as atuações expressivas de alguns membros


dessa Missão Austríaca pela importância do trabalho de exploração e de
recolhimento de espécimes, assim como pela divulgação das pesquisas
realizadas sobre as potencialidades da natureza do Brasil. Nesse sentido,
destaca-se a atuação dos naturalistas Von Martius e Von Spix, do zoólo-
go Johann Natterer e do paisagista Thomas Ender, exemplos marcantes
quanto à transmissão do conhecimento e à produção de imagens sobre o
tempo histórico aqui enfocado.

Enquanto o jovem pintor Thomas Ender registrou recantos pitores-


cos da cidade em belas gravuras e em aquarelas, mas logo retornou à
Europa, o zoólogo Johann Natterer permaneceu no Brasil por 18 anos,
organizou coleções notáveis no campo da ornitologia e da parasitologia,
publicou ensaios e artigos relevantes sobre o material coletado no Brasil,

12  –  Cf. RAMIREZ, Ezekiel Stanley. As relações entre a Áustria e o Brasil: 1815-1889.
Op. cit.

98 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):89-100, jan./abr. 2019.


União dinástica e relações científico-culturais

tendo reunido importante acervo sobre a natureza brasileira, como exem-


plo, uma coleção de 60.000 insetos, expostos no Museu Brasileiro. Digno
de nota é a pesquisa que vem sendo feita atualmente sobre o cientista,
como o trabalho primoroso elaborado por Christa Riedl-Dorn, Johann
Natterer e a Missão Austríaca, publicado em 2000, cuja autora, Diretora
do Arquivo do Museu de História Natural de Viena, esteve entre nós no
ano passado, participando das comemorações pelos 200 anos do casa-
mento e da chegada da imperatriz Leopoldina ao Brasil13.

Merecem atenção também os naturalistas bávaros Von Martius e


Spix, apontados como os exemplos mais expoentes da Missão Científi-
ca. Juntos, eles percorreram, durante três anos, 10.000 km do território
brasileiro, partindo do Rio de Janeiro rumo ao Norte, passando inicial-
mente por São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Bahia. Seguiram, depois,
pelo Rio São Francisco, atravessaram Pernambuco, alcançaram o Piauí,
o Maranhão, onde restaram alguns meses, até iniciar o percurso da bacia
amazônica, partindo do Pará até alcançar o Alto Amazonas. Realizaram o
primeiro levantamento da flora brasileira, ainda hoje considerado o mais
significativo, que apresenta o território dividido em regiões identificadas
por um com conjunto de cinco biomas diversos: cerrado, caatinga, mata
atlântica, selva amazônica e pampa. Eles coletaram cerca de 6.500 espé-
cimes de plantas, além de volumoso material etnográfico e filológico, que
ficaram expostos no Museu Real de Munique.

Ao retornarem à Europa, em 1820, cuidaram de selecionar material


suficiente para uma primeira edição, publicada em 1823, intitulada Rei-
se in Brasilien, que foi traduzida e publicada no Brasil, em 1938, pelo
IHGB, sob o título Viagem ao Brasil. Spix voltara já doente para a Europa
e faleceu em 1826, enquanto Von Martius continuou escrevendo e publi-
cando estudos relevantes sobre o material coligido no Brasil, tendo se
destacado como o maior conhecedor da natureza brasileira pelo volume
de obras publicadas e pela forte ligação estabelecida com Brasil no cam-
po da produção científico-cultural. Entre seus estudos de maior importân-
13 – Cf. RIEDL-DORN, Christa. Johann Natterer e a Missão Austríaca para o Brasil.
Banco BBA – Creditanstalt S.A., 2000.

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Maria de Lourdes Viana Lyra

cia, estão os primeiros volumes da obra Flora Brasiliensis, que retratam


paisagens expressivas de locais diversos em belas litografias, editados
entre 1840 e 1868, ano em que faleceu. Essa obra monumental continuou
sendo elaborada por seus discípulos e publicada até 1906, computando o
total de 40 volumes, com cerca de vinte mil espécimes de vegetais.

Reconhecido na sua terra pelo alto grau de conhecimento científico,


o ilustre naturalista Von Martius foi membro e secretário vitalício da Real
Academia de Ciências e diretor do Jardim Botânico de Munique, além
de professor de Botânica da Universidade de Berlim, tendo também sido
admitido como sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em
1840, e participado do concurso aberto pela instituição, em 1843, cujo
edital requisitava aos candidatos a elaboração de um texto para servir de
guia aos futuros historiadores do Brasil e para o qual Von Martius laborou
um texto apresentado sob o título “Como se deve escrever a História do
Brasil”. Nele, propôs que a História do Brasil fosse escrita seguindo cri-
tério ao mesmo tempo filosófico e pragmático, tendo como eixo a forma-
ção do povo brasileiro e levando em conta a mistura das três raças que o
constituíam. O texto foi aprovado pelos sócios examinadores e escolhido
como o roteiro a ser seguido a partir de então, o que ampliou considera-
velmente a ligação estabelecida entre o eminente cientista e o Brasil14.

Texto apresentado em outubro/2018. Aprovado para publicação em


dezembro/2018.

14  –  Cf. WEHLING, Arno. “A conspiração histórica de Von Martius”. R. IHGB, n. 385,
1994.

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“Ao VI, ao grande, ao imortal João”: elogios impressos ao soberano D. João VI

101

“AO VI, AO GRANDE, AO IMORTAL JOÃO”: ELOGIOS


IMPRESSOS AO SOBERANO D. JOÃO VI
“TO THE GREAT AND IMMORTAL KING”: PRINTED
COMPLIMENTS TO KING D. JOÃO VI
Ana Carolina Delmas1

Resumo: Abstract:
O presente artigo debruça-se sobre a prática do The present paper focuses on the practice of
oferecimento de dedicatórias impressas em um offering printed dedications in a Brazil that
Brasil que há pouco se tornara impressor e, ago- had just stepped into the printing world, and
ra, assistia à aclamação de D. João VI. As dedi- was now witnessing the acclamation of D. João
catórias, representativas das práticas de home- VI. The dedications, representative of homage
nagem e das relações de mecenato, são símbolo practices and patronage relationships, were
das relações políticas apoiadas na hierarquia vi- symbols of the political relations supported by
gente e das trocas efetuadas na busca por poder the hierarchy at the time, and of the exchanges
e por influência. Em uma época onde viver da that were made in search of power and influence.
própria pena constituía um desafio, era necessá- In an age when living by one’s own pen was a
rio utilizar-se das convenções para adquirir pa- challenge, it was necessary to use conventions
trocínio e proteção, e o oferecimento público de to gain patronage and protection, and so the
lealdade e de submissão por meio das páginas public offering of loyalty and submission
dos livros abria novas possibilidades. A abertura through the pages of books opened new
da Impressão Régia contribuiu para o despertar possibilities. The opening of the Royal Printing
da vida cultural da nova corte, permitindo tam- House contributed to the awakening of cultural
bém que os impressos fizessem parte da vida life in the new court, while also allowing for
política e das comemorações da corte. Nesse the printed pages to be part of political life and
ambiente, a necessidade de conquistar as boas court celebrations. In this environment, the need
graças do soberano para obter prestígio fez com to get in the good graces of the king in order
que as publicações do início do oitocentos con- to gain prestige encouraged the publications of
tassem com páginas destinadas às dedicatórias, the early nineteenth century to contain pages
cujo tom laudatório visava ao convencimento reserved for dedications with a laudatory tone
sobre o merecimento de mercês e de favores. E in an effort to convince the king that their
a aclamação de um soberano, algo inédito nas authors deserved his grace and favors. And the
Américas, foi espaço de consagração para tais acclamation of a king, something unheard of in
homenagens. Muitas das obras publicadas pela the Americas, was a space of consecration for
Impressão Régia no período joanino foram ex- such homages. Many of the works published
plicitamente dedicadas a alguma figura social by the Royal Printing House in the Johannine
ou política importante, e um número expressivo period were explicitly dedicated to some
dirigiu-se ao soberano D. João. A utilização dos important social or political figure, and an
elogios impressos por muitos letrados permite expressive number of them addressed to King
observar que a prática atravessou o oceano, com D. João. Worth mentioning is that this use of
a Família Real, e perdurou ao longo do oitocen- printed dedications by many men of letters
tos no Brasil. crossed the ocean with the Royal Family and
lasted throughout the 19th century in Brazil.
Palavras-chave: Dedicatórias impressas; So- Keywords: Printed dedications; sociabilities;
ciabilidades; Aclamação. acclamation.

1  –  Bolsista Pós doc FAPERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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Ana Carolina Delmas

SENHOR,
Três são os motivos, que obrigam os Escritores a dedicar suas obras
aos Grandes Príncipes: procurar que possam correr por todas as partes
livres da censura, a que se expõem todas as obras públicas; esperar do
conhecimento de tão altos Senhores uma pia correção; e finalmente
ganhar por este meio suas Régias considerações: e como todas es-
tas circunstâncias me assistem para com VOSSA MAJESTADE, não
poderia, sem que fosse taxado de ingrato, dedicar este meu primeiro
trabalho senão a VOSSA MAJESTADE, que me pondo a coberto de
qualquer censura, ao mesmo tempo me assegura do acolhimento que
devo esperar de todos, que a exemplo de VOSSA MAJESTADE, se
dedicam ao conhecimento das Artes Ciências2.

A passagem acima é fragmento de uma dedicatória oferecida a D.


João VI, no ano de 1817. Além de ser exemplo da existência da prática
das homenagens impressas na América Portuguesa, deixa transparecer
que essa importante expressão sócio-político-cultural seguia, no Brasil,
princípios semelhantes àqueles de seu contexto original. A prática das
dedicatórias tomou forma no complexo contexto do Antigo Regime que,
apesar de ter suas estruturas abaladas pela Revolução Francesa, deixou
permanências no ambiente da Europa do século XIX e também do Brasil
oitocentista. Tal prática residia nas relações entre soberanos e letrados e
em um complexo sistema de mercês e de concessões, presentes de forma
latente nos costumes e nos hábitos de corte. Esta possuía um significado
central e representativo para a maioria dos países da Europa ocidental do
seiscentos e do setecentos: não era a cidade, mas a corte e a sociedade
de corte que formavam o centro nervoso social e cultural3. Constituíam
o ponto essencial e determinante, concentrador da vida social, sendo o
palácio do rei o epicentro dos poucos locais considerados distintos para
o convívio social. Nessa sociedade, estavam presentes, nos mais diversos
aspectos, os privilégios e as estruturas de manutenção do poder, por parte
do rei e dos indivíduos; o valor era determinado pela importância so-
2  –  SILVA, Roberto Ferreira da. Elementos de desenho, e pintura. E regras geraes de
perspectiva. Dedicadas ao Senhor Rey D. João VI. Rio de Janeiro: Impressão Régia,
1817, p. 3.
3 – ELIAS, Norbert. A sociedade de Corte. Investigação sobre a sociologia da realeza e
da aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, p. 62

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“Ao VI, ao grande, ao imortal João”: elogios impressos ao soberano D. João VI

cial, adquirido pelo reconhecimento dos demais4. Nessa estrutura social,


apoiada em interdependências, a importância de determinado aconteci-
mento ou indivíduo não estava em sua essência, mas naquilo que signifi-
cava para determinadas pessoas. A independência do soberano em relação
aos demais é, por sua vez, algo apenas aparente; este também se apoia
no sistema de trocas e de privilégios para manter sua valorização: torna
todos seus dependentes para que continuem reunidos à sua volta5.

O âmbito social era marcado por obrigações peculiares de todas as


partes que o compunham; o destino de todos os homens, sua posição na
escala social, tudo dependia, em certa medida, da vontade do rei. Os cor-
tesãos viviam em uma ordem hierárquica cujo rigor podia variar, mas, em
todos os casos, eram ligados por uma rígida etiqueta estabelecida para
suas posições6. Igualmente, o pertencimento à corte do rei ou o privilégio
de comparecer à sua presença eram posições extraordinariamente impor-
tantes na escala de valores sociais.

Nessa sociedade de poderes simbólicos, a economia dos privilégios


encontrava-se de tal forma enraizada no ambiente de corte, que se tornou
sua essência. O sentido da vida de um privilegiado residia no próprio fato
de haver recebido uma benesse, e sua perda significava um esvaziamen-
to de sua existência. A necessidade do prestígio e a facilidade de perdê-
-lo – arruinando-se, dessa forma, a existência social e o próprio meio de
vida – eram elementos impulsionadores da manutenção desse esquema
de privilégios.

Esse privilégio, ou dádiva, é a expressão de uma relação em que,


muitas vezes, eram simulados a gratuidade e o desinteresse, mas em que,
verdadeiramente, predominavam o interesse e a equivalência. A dádiva
serve, antes de tudo, à busca pelo estabelecimento de relações, em que é
predominante a esperança por um retorno, por uma reciprocidade ao ges-
to inicial, busca por uma situação geralmente assimétrica de poder, per-
4 – BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva,
1974, p. 119
5 – ELIAS, Norbert. A sociedade de Corte..., p. 151.
6 – ELIAS, Norbert. A sociedade de Corte..., p. 61.

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Ana Carolina Delmas

meada pela pessoalidade e por determinadas obrigações, assentida tanto


por aquele que oferece, como pelo que aceita a homenagem na atmosfera
do Antigo Regime7. Nessa sociedade, que se distancia da racionalidade
do mercado moderno, a dádiva não só se faz presente como instrumento
de dominação, mas também como engrenagem de relações políticas e
sociais.

Igualmente importantes na manutenção do poder do rei, eram sua


imagem pública e seu lugar na imaginação coletiva. Manifestações de
poder, de riqueza, de sabedoria e de esplendor não eram apenas formas
insensatas de ostentação: magnificência e glória tinham a função política
de imprimir respeito, de impressionar, de seduzir os súditos, de dominar e
de desviar os olhos do povo dos acontecimentos políticos8. O tratamento
e a utilização da imagem real eram meios de produção, circulação e re-
cepção das formas simbólicas. No processo de enaltecimento da figura do
soberano, cerimônias e cerimoniais eram fundamentais para a construção
de uma atmosfera de sacralidade que lhe concedia legitimidade. Elogios
públicos em forma de imagem ou de texto também eram responsáveis
pelo processo de legitimação do poder. No procedimento de construção
da imagem do soberano, persuasão, manipulação e retórica se faziam pre-
sentes, sem que, no entanto, os envolvidos nessa relação fossem ingênuos
no que era pertinente à sua condição. No caso específico das dedicatórias,
aquele que homenageava conhecia bem seus objetivos; e o homenage-
ado também era capaz de reconhecer por que estava sendo elogiado. O
sistema constituído ao redor do soberano utilizou-se de práticas como as
do mecenato e da criação de instâncias de consagração, como as acade-
mias, onde os artistas se reuniam para glorificá-lo. Em resposta a esse
“espontâneo” movimento de homenagens, o rei concedia a esses súditos
uma série de benefícios, consolidando uma rede de interdependências,
capaz de sustentar sua importância e seu valor naquela sociedade. O rei
(o homenageado) utilizava-se da dádiva para manutenção da honra e do
7  –  GODBOUT, Jacques T. (em colaboração com Alain Caillé). O espírito da dádiva.
Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1999, pp. 13-19; 238-247.
8 – BURKE, Peter. A Fabricação do Rei: a construção da imagem pública de Luis XIV.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994, pp. 13-27.

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“Ao VI, ao grande, ao imortal João”: elogios impressos ao soberano D. João VI

prestígio, obrigado, por sua vez, a retribuir os gestos de submissão, para


assegurar seu próprio prestígio e sua própria autoridade, envolvido em
uma relação pautada nas obrigações de oferecer, de receber e de retribuir9.

A dedicatória impressa era, então, personificação das trocas de be-


nefícios por prestígio e por afirmação de poder; manifestação textual de
tais relações de interdependência, das trocas de poder simbólico por pri-
vilégios com rendimentos materiais. Manifestação de um poder simbóli-
co que, em si, era uma forma transfigurada, irreconhecível e legitimada
de outras formas de poder10. Representava um poder invisível exercido
quando as partes envolvidas o reconheciam e ignoravam, quando essas
partes compreendiam estar inseridas em uma relação de poder, contudo
por meio de uma espécie de consenso velado. Em determinado momen-
to, a participação em um sistema simbólico assumia uma função social
e política: as produções simbólicas relacionavam-se aos interesses das
elites dominantes e as ideias prestavam-se a servir interesses particula-
res, travestidos de interesses universais. Naquele momento, os sistemas
simbólicos serviam à afirmação de uma cultura dominante, legitimando,
assim, o poder das elites dominantes11.

Para compreender a dinâmica das recompensas e o papel das dedica-


tórias, faz-se necessário destacar o papel de afirmação dos letrados, o que
aconteceu após a Revolução Francesa, inserindo-os no processo de uma
secularização mais ampla do pensamento em geral. Nessa perspectiva,
verifica-se que, ao longo do oitocentos, os letrados começaram a adquirir
maior peso dentro da sociedade do Antigo Regime. Reunidos em acade-
mias e em sociedades secretas, desde o século XVII, eles começaram a
desejar transformações e a formular projetos, que se exprimiram por meio
de um número crescente de periódicos e de livros em circulação12. Tais
letrados, contudo, continuavam a depender das graças e das benesses do
9  –  MAUSS, Marcel. “Ensaio sobre a dádiva - forma e razão da troca nas sociedades
arcaicas”. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003, pp. 195-200.
10 – BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Lisboa: Difel, 1989, pp. 14-15.
11 – BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico, pp. 10-11.
12  –  NEVES, Guilherme P. & VAINFAS, Ronaldo. “Antigo Regime”. In: Ronaldo Vain-
fas (dir.). Dicionário do Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, pp. 43-46.

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Ana Carolina Delmas

soberano. Daí a permanência de grande número de livros dedicados ao


rei, como forma de garantir a inclusão desses indivíduos nas sociedades
de corte da Europa Ocidental13.

Assim, a instabilidade acerca da propriedade intelectual personifica-


va o principal motivo da inconstância da vida do homem de letras. Não
era possível viver da própria pena, fazendo com que o autor procurasse
outros trabalhos, especialmente os cargos públicos. Buscava-se também o
apoio de um mecenas, alguém que fosse capaz de lhes oferecer tanto um
suporte financeiro quanto a estabilidade de que se necessitava para que
houvesse dedicação às suas obras. Os cargos públicos eram conseguidos
por meio do mesmo prestígio, das mesmas trocas com que se acordavam
às práticas do mecenato, e eram variadas as considerações que determina-
vam o patrocínio do Estado, recompensando-se, em certos casos, letrados
cujos escritos constituíssem propaganda favorável ao regime vigente14.

No processo para a aquisição de tais privilégios, encontram-se as


dedicatórias impressas, significando a homenagem e o prestígio de se ob-
ter uma obra dedicada a si mesmo. Esse era um procedimento carregado
de simbologia, que abria as portas e garantia o futuro de muitos letrados.
Além disso, o mecenato privado era menos almejado que o apoio de um
soberano; aqueles que não podiam contar com propriedades, cargos ou
rendas, aparentemente eram agradecidos por depender de gratificações da
realeza. O amparo de um soberano ia além das ambições de um mecenas
opressor: o autor que dependesse apenas de si mesmo estava sujeito à
ganância do mercado livreiro em formação, estando exposto à exploração
dos livreiros e da cobiça de autores concorrentes. Contar com a proteção
do soberano ultrapassava a ajuda financeira. Os protetores aristocráticos
não deixavam de impor seus caprichos, mas ser um mero autor, em um
ambiente livreiro daquele tipo, poderia significar exposição a situações
humilhantes. Com a proteção de um soberano, apesar de algumas con-
13  –  CHARTIER, Roger. “O Príncipe, a Biblioteca e a Dedicatória”. In: Marc Baratin
e Christian Jacob. O Poder das Bibliotecas – a memória dos livros no Ocidente. Rio de
Janeiro: Ed. UFRJ, 2000, pp. 182-199.
14 – DARNTON, Robert. Boemia literária e revolução. São Paulo: Companhia das Le-
tras, 1987, pp. 20-21

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“Ao VI, ao grande, ao imortal João”: elogios impressos ao soberano D. João VI

cessões serem necessárias, como as obras encomendadas, o letrado sofria


menos censura e podia obter maior liberdade para seu pensamento e seu
espírito filosófico15.

Dessa forma, a dedicatória personificava, no universo dos livros, a


relação de patronato e de proteção já existente nas relações sociais. No
contexto do Antigo Regime, o oferecimento de um livro ao soberano,
com o objetivo de elogiá-lo e homenageá-lo, constituiu um dos gestos
mais tradicionais de submissão do autor e uma das melhores formas de
atrair-lhe as boas graças. Estabelecia-se uma relação entre autor e sobe-
rano, ao se publicar uma dedicatória, iniciando-se esse relacionamento
nas primeiras páginas de um livro saído de um prelo. Reis também eram
leitores que organizavam suas próprias coleções e se utilizavam de suas
bibliotecas para demonstrar seu poder. As obras podiam ser colecionadas
por meio do depósito obrigatório – e pouco praticado – de exemplares por
livreiros e por impressores para o rei; por trocas; por meio de expedições
militares; pela aquisição no exterior, através de viajantes, diplomatas e
correspondentes; pela reunião de coleções dos membros da família real;
pela doação (inclusive de bibliotecas inteiras); e por meio do recebimento
das obras dedicadas. O ato de homenagear o soberano, por meio da dedi-
catória de uma obra, sustentou-se como prática central em uma economia
de mecenas. Em uma sociedade de trocas, a dedicatória favorecia aquele
que oferecia a homenagem e, também, ao soberano que, elogiado e re-
conhecido, muitas vezes, como fonte de inspiração, colecionava, em sua
biblioteca, símbolos de seu poder absoluto16.

O oferecimento de uma obra estava ainda sujeito a outra ocorrência,


a da apropriação de uma publicação. A valorização do ato de se dedicar
uma obra e dos privilégios que poderiam ser adquiridos levou livreiros e
tradutores a se apropriarem de uma obra para dedicá-la. Doavam obras
que não haviam escrito, utilizando-se do texto das dedicatórias para bus-
car para si a proteção real, o que ocasionava rivalidade, especialmente

15  –  CHARTIER, Roger. “O Homem de Letras”. In: Michel Vouvelle (dir.) O Homem do
Iluminismo. Lisboa: Presença, 1997, pp. 121-122.
16  –  CHARTIER, Roger. “O Príncipe, a Biblioteca e a Dedicatória ...”, pp. 182-199.

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entre o autor da obra e aquele que havia produzido a edição. Em livros


científicos, anunciadores de novidades, era fato comum o autor colocar-se
no papel secundário de transmissor de algo que já existia, mas era desco-
nhecido. O autor assumia a responsabilidade de mero portador de ideias
inspiradas pelo soberano, atribuindo ao homenageado os conhecimentos
descritos, afirmando-o como autor primordial. No caso, oferecia-se en-
tão o livro, o invento e as possibilidades decorrentes do feito. Tal elogio
era capaz de posicionar o súdito como realmente merecedor da proteção,
pois afirmava o rei como autor, reconhecendo não só sua autoridade e
sua soberania, mas lisonjeando sua capacidade intelectual e de inspiração
ao conhecimento. Nesse caso, o rei, ao escolher aceitar ou recusar uma
dedicatória, legitimava ou desqualificava uma obra e o conhecimento que
anunciava17.

Esse tipo de homenagem atuava para os dois lados da relação, não


favorecendo apenas aquele que dedicava a obra. O autor buscava prote-
ção em troca da afirmação de submissão ao poder real e do prestígio que
concedia ao prestar a homenagem. O soberano, o homenageado, recebia
esses tributos simbólicos e podia conceder o apoio e a proteção reque-
ridos. Quando bem sucedido o tributo, o que homenageava garantia um
protetor; ao ser elogiado, o soberano sentia-se louvado e demonstrava seu
poder sobre os demais. Com a compilação de várias obras dedicadas, vá-
rias joias na coleção, a biblioteca passava a ser mais do que uma coleção
de riquezas ou de obras úteis, mas “um espelho onde se reflete o poder
absoluto do príncipe”18.

Independentemente de serem organizadas em uma coleção, as dedi-


catórias destacaram-se como objeto personificador da troca de poder sim-
bólico e como representação do reconhecimento público de submissão ao
poder do soberano. Essas relações de mecenato, características do Antigo
Regime, também se manifestaram nos trópicos. Na América Portuguesa,
manifestavam-se, desde o final do século XVIII, características político-
-sociais, acolhedoras para esse tipo de trocas simbólicas. Antes mesmo
17 – CHARTIER, Roger. “O Príncipe, a Biblioteca e a Dedicatória ...”, pp. 192-193.
18 – CHARTIER, Roger. “O Príncipe, a Biblioteca e a Dedicatória...”, p. 199.

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“Ao VI, ao grande, ao imortal João”: elogios impressos ao soberano D. João VI

das primeiras publicações da Impressão Régia contarem com páginas


destinadas às dedicatórias, reproduzia-se, no Brasil, um débil ambiente
europeu: sua política, sua burocracia e suas relações de sociabilidade fo-
ram trazidas pelos portugueses, características que seriam compartilhadas
de forma mais profunda após 1808.

O sistema de mercês era prática antiga na sociedade lusa, forma de


acumulação presente em todo o âmbito do Antigo Regime português,
uma vez que produzia súditos para a coroa, gerando laços de lealdade e
de interdependência. A chamada “economia do bem comum” apoiava-se
na concessão de privilégios, pelo Rei ou por suas autoridades, em troca
de serviços prestados, como garantia de monopólios e de apoio político.
Esse sistema de alianças, baseado em uma rede de reciprocidades, por
meio de dons e de contradons, era arquitetado em nome da manuten-
ção do “interesse do bem comum” e do “bem-estar dos vassalos”; leia-se
do bom funcionamento do governo e dos interesses da coroa, admitidos
como o bem comum. Tal sistema permitia não somente o monopólio de
bens e de serviços indispensáveis ao público, como a estruturação de um
mercado regulado pela política e uma hierarquização social excludente,
típica do Antigo Regime19.

Para organização e para afirmação do governo de D. João, no Bra-


sil, fez-se necessária a distribuição de títulos, comendas, honras, mercês,
cargos públicos e privilégios. Essas benesses, porém, foram menos gene-
rosas com os naturais da terra, que, além de representarem um número
menor de indivíduos que receberam títulos, também foram agraciados
com titulações mais baixas, na hierarquia nobiliárquica, perdendo espaço
para os recém-chegados portugueses20. Ainda assim, as elites da América
Portuguesa não deixaram de buscar melhorias em sua distinção social. O
ato régio de concessão de honras e de privilégios aos súditos de origem
19  –  FRAGOSO, João. “A formação da economia colonial no Rio de Janeiro e de sua
primeira elite senhorial (Séculos XVI e XVII)”. In: João Fragoso et al. O Antigo regime
nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (Séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civi-
lização Brasileira, 2001, pp. 29-50.
20  –  LIMA, Manoel de Oliveira. D. João VI no Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks, 2006,
pp. 123-158.

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portuguesa ou aos nascidos no Brasil foi elemento que instituiu a chama-


da “economia do dom”, em que os beneficiados passaram a estar ligados
ao monarca por uma rede assimétrica de relações de trocas de favores e
de serviços.

Ainda que, no período colonial, os livros já fossem utilizados como


fonte de saber, como meios de acesso ao sagrado e mesmo como obje-
tos de entretenimento, o uso do livro ainda se caracterizava como um
privilégio, sendo um direito exclusivo de grupos sociais determinados e
seletos21. No início do século XIX, a antiga colônia apenas começava a se
estruturar em sede da monarquia: os letrados estavam sujeitos a um fraco
mercado literário, o que os tornava, fundamentalmente, dependentes do
poder da Coroa, fato que se perpetuou ao longo de quase todo o oitocen-
tos.

A Impressão Régia, apesar de seus altos custos e de sua morosidade,


além de publicar a legislação oficial, não deixou de contribuir para a di-
fusão das novas ideias, ao imprimir periódicos como A Gazeta do Rio de
Janeiro (1808/1822, primeiro jornal brasileiro) e O Patriota (1813/1814);
obras de ciências e de artes; ao divulgar poetas e autores famosos; ao in-
troduzir o romance e a novela no Brasil; ao editar manuais para os cursos
superiores e obras de cunho propriamente histórico. Reeditou diversas
obras do período colonial que haviam sido impressas em Lisboa, como
Caramuru, de Fr. José de Santa Rita Durão, e O Uraguai, de Basílio da
Gama22 (esta última oferecida em homenagem no ano de 1811). Na época
da Independência, teve ainda um papel decisivo ao fazer circular jornais,
panfletos e folhetos políticos. Em 1809, sofreu sua primeira expansão
para atender a demanda de trabalhos23 e sempre passou por dificuldades
21  –  VILLALTA, Luiz Carlos. “Os leitores e os usos dos livros na América portuguesa”.
In: Márcia Abreu. Leitura, história e história da leitura. 2ª reimpressão. Campinas/São
Paulo: Mercado de Letras/ALB/FAPESP, 2002, pp. 211-212
22 – RIZZINI, Carlos. O livro, o jornal e a tipografia no Brasil: 1500-1822. Rio de
Janeiro/ São Paulo: Kosmos, p. 222.
23  –  CAMARGO, Ana Maria de Almeida & MORAES, Rubens Borba de. Bibliografia
da Impressão Régia do Rio de Janeiro. São Paulo: Edusp/Kosmos, 1993. V.1, p. XX. NE-
VES, Lúcia Maria Bastos P. "Impressão Régia". In: Ronaldo Vainfas (dir.). Dicionário do
Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, pp. 365-366.

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“Ao VI, ao grande, ao imortal João”: elogios impressos ao soberano D. João VI

financeiras, pois, além de imprimir os documentos oficiais, era ainda res-


ponsável por outros tipos de obras. Esse monopólio perdurou até 1811,
quando o comerciante português Manoel Antônio da Silva Serva abriu
uma tipografia em Salvador. No Rio de Janeiro, porém, as primeiras tipo-
grafias privadas surgiram apenas em 1821, quando da regulamentação da
liberdade de imprensa.

Como se pode observar, a produção de livros no Rio de Janeiro, no


governo joanino, dependia exclusivamente da Impressão Régia. O mer-
cado literário no Brasil mal começava a se formar, sendo também parte
integrante das condições que se constituíam em obstáculos para a forma-
ção de um público leitor mais expressivo. Além disso, o preço dos livros
era demasiado alto para competir com os periódicos, que começaram a
pulular após a liberdade de imprensa, em 1821, no mundo luso-brasileiro.
A leitura de livros continuava, portanto, sendo um privilégio de poucos,
persistindo, por algum tempo, a concepção clássica do Antigo Regime de
ver o escrito como um texto secreto, reservado apenas a alguns homens
notáveis, por sua dignidade, por sua formação e por suas luzes24.

Saíram de seus prelos, entre 1808 e 1822, 1428 obras. Destas, 229
foram oferecidas em homenagem, dividindo-se da seguinte forma:
Ano Obras Publicadas Obras oferecidas
1808 37 09
1809 69 21
1810 94 15
1811 73 25
1812 72 22
1813 37 09
1814 35 09
1815 56 07
1816 52 14
1817 66 19
1818 50 17
1819 43 09

24  –  Cf. NEVES, Lúcia Maria Bastos P. "Censura, circulação de idéias e esfera pública
de poder no Brasil, 1808-1824". In: Revista Portuguesa de História. t. 33, Coimbra, 1999,
pp. 665-697.

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1820 46 07
1821 270 24
1822 428 22
Total 1428 229
Fonte: Ana Maria de Almeida Camargo & Rubens Borba de Moraes. Bibliografia da Impressão Régia do
Rio de Janeiro. São Paulo: Edusp/Kosmos, 1993. V. 1.

Dentre as obras oferecidas em homenagem, a maior parte foi direcio-


nada a alguma figura social ou política de destaque, mas também foram
encontradas obras oferecidas aos amigos do autor (especialmente poesias
e cantigas), ou ainda, diretamente, relacionada a algum acontecimento
(e, indiretamente, relacionada a alguém envolvido com tal fato). Infeliz-
mente, não foi possível localizar exemplares de todas as 229 obras, mas
por meio do inventário da Bibliografia da Impressão Régia25, bem como
de outras obras de referência, foi possível estabelecer o número de obras
oferecidas a diversos indivíduos, das quais 96 foram direcionadas ao mo-
narca D. João e 30 a outros membros da Família Real (sendo 17 para D.
Pedro).

D. João foi recebido com louvores, odes e orações gratulatórias,


agraciando a atitude de deixar Lisboa e escapar de Napoleão, e foi com
seu governo, enquanto regente ou enquanto rei, que se iniciou, de fato,
o oferecimento das dedicatórias impressas em homenagem. A prática foi
além dos elogios à figura do soberano e acompanhou a dinâmica política
do século XIX. O monarca era um governante paternal e patriarcal, que
se preocupava em promover a cerimônia do beija-mão, para reafirmar os
laços com seus fiéis vassalos. Não foi conhecido por ser econômico na
distribuição de mercês aos súditos de diferentes qualidades26. Foi, por
meio da manutenção de uma sociedade em que o lugar dos indivíduos se
estabelecia por critérios de honra e de prestígio, que o soberano foi capaz
de estabelecer o aparelho político de seu governo nos trópicos e ativá-lo,
de forma que, ao deixar o Brasil, este estivesse profundamente modifi-

25  –  CAMARGO, Ana Maria de Almeida & MORAES, Rubens Borba de. Bibliografia
da Impressão Régia do Rio de Janeiro. São Paulo: Edusp/Kosmos, 1993. v. 1
26  –  HOLANDA, Sérgio Buarque de apud MALERBA, Jurandir. A Corte no Exílio. São
Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 216.

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“Ao VI, ao grande, ao imortal João”: elogios impressos ao soberano D. João VI

cado. As ocasiões para distribuição dessas mercês eram, geralmente, os


aniversários de membros da Família Real e os eventos festivos, como
casamentos e nascimentos.

Aproveitando-se de tais ocasiões, um expressivo grupo de autores


ofereceu suas homenagens. Nota-se que não era constituído por indiví-
duos totalmente desconhecidos, uma vez que se destacavam pelo simples
fato de terem tido acesso à educação. Necessitavam, porém, das benesses
reais para manter uma carreira estável e para alcançar cargos na burocra-
cia administrativa. No ambiente luso-brasileiro, carente de um público
consumidor mais amplo, era a Coroa quem assumia a função não só de
mercado para os bens simbólicos que surgiam, como, sobretudo, de ins-
tância de consagração para eles27.

As obras contendo dedicatórias foram então escritas por inte-


grantes das elites letradas e tiveram na retórica a tônica de seus discursos.
Esta se encontrava enraizada na tradição da educação portuguesa desde
os tempos coloniais, e se fazia ainda presente na geração coimbrã do oi-
tocentos, raramente deixando de figurar nos textos das obras publicadas.
Utilizada como instrumento dessas elites como chave de leitura, funda-
mentando argumentações específicas para o público (ou indivíduo) a que
se dirigia, era capaz de seduzir o leitor, atestar a autoridade do composi-
tor do texto e levar o leitor a acreditar no que lia, envolvendo-o para se
atingir o objetivo desejado28. O tom laudatório visava ao convencimento
do soberano sobre a lealdade e sobre o merecimento de algum favor ou
mercê, além de buscar impressionar e convencer, exibindo erudição. O
prestígio da palavra escrita em uma sociedade de Corte, especialmente
quando a educação era vista como ornamento, permite compreender por
que a frase bem escrita e a retórica do convencimento e do elogio assu-
miram tanta importância no ambiente joanino. A retórica constituiu-se,

27 – BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva,


1974, pp. 90-105.
28  –  CARVALHO, José Murilo de. “História intelectual no Brasil: a retórica como chave
de leitura”. In: Topoi, nº 1, Rio de Janeiro: Editora 7 Letras, 2000, pp. 127-142

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ainda, como elemento fundamental para as dedicatórias impressas, por


oferecer diversas possibilidades no engendramento de elogios.

Os textos publicados pela Impressão Régia são permeados de ele-


mentos clássicos, latinos e, sobretudo, bíblicos; citações de fatos histó-
ricos, relacionando-os à argumentação sustentada; citações em latim, em
francês e em inglês; afirmações de submissão e de lealdade; elogios a
toda a ascendência do homenageado; enaltecimento às características de
temperamento e de caráter; além dos desejos de um futuro próspero e de
merecidas bênçãos. Os textos são, fortemente, marcados por noções reli-
giosas, e, em grande maioria, terminam em uma espécie de “expressão-
-padrão” – “o mais fiel e humilde vassalo” –, antecedendo a assinatura
daquele que oferece a obra.

As dedicatórias, no Brasil joanino, não foram impressas apenas em


obras literárias ou científicas com suas primeiras páginas reservadas ao
espaço da homenagem. Grande parte das obras elogiosas constitui-se de
orações, sermões, odes, poesias e cantigas em louvor. As primeiras se
destacam em número, oferecidas em ação de graças, confirmando a im-
portância do fervor religioso da corte portuguesa. Ao publicar uma ora-
ção que já havia sido pronunciada, anteriormente, em ocasião importante,
era muito frequente que essa publicação não fosse dedicada ao objeto de
seu pronunciamento, mas a outra figura expressiva que guardasse relação
com o elogio original. Também se observa, de maneira geral, que, inde-
pendente de quem fosse o alvo das dedicatórias, estavam presentes os
elogios ao soberano D. João.

No Rio de Janeiro, por sua vez, a nova diplomacia trouxe outra dinâ-
mica cultural. Durante os anos de 1815 e 1820, o Brasil recebeu músicos
e artistas franceses. Atribui-se aos anos de 1817 e 1818 a qualidade de te-
rem sido os mais faustosos da estadia da Corte no Brasil. Entre a chegada
da esposa de D. Pedro e futura imperatriz, D. Leopoldina, em1817, a acla-
mação de D. João, em 1818, e o aniversário do agora Rei, em 13 de maio
do mesmo ano, os fluminenses tiveram a oportunidade de presenciar não
só os festejos, mas também os efeitos do casamento do herdeiro da Coroa

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“Ao VI, ao grande, ao imortal João”: elogios impressos ao soberano D. João VI

e da aclamação do novo Rei, nos moldes tradicionais europeus, como


nunca se havia visto nas antigas terras coloniais29. O ano de 1817, por sua
vez, foi dos mais conturbados do governo joanino, com tensões dos dois
lados do Atlântico30, e a aclamação de D. João, cerimônia pela primeira
vez vista nas Américas, acalmaria os sentimentos dos brasileiros, porém
acirraria ainda mais os ânimos dos portugueses.

No meio de tais festejos, estão presentes muitas homenagens impres-


sas. Do total de 96 dedicatórias oferecidas a D. João, das quais muitas já
se referiam ao soberano como D. João VI, mesmo antes de sua aclama-
ção, 37 encontram-se no período de 1815 a 1820. Das 17 homenagens pu-
blicadas pela Impressão Régia no ano de 1818, 15 dirigiram-se ao monar-
ca. Uma delas foi oferecida por Bernardo Avelino Ferreira e Souza, que
publicou mais oito obras dedicadas, em geral, voltadas aos membros da
Família Real. Relação dos festejos não foi a primeira dedicatória ofereci-
da por Avelino, mas é uma das obras mais conhecidas do autor, que então
ocupava o cargo de Oficial Supranumerário da Secretaria da Intendência
Geral da Polícia. Como ocorria com outras obras, é a primeira parte que
exerce a função de dedicatória. A obra oferecida a D. João descrevia todas
as homenagens oferecidas pela população, desde a chegada da Família
Real ao Rio de Janeiro, em 1808. Começa com a epígrafe:
Em presença Tens honras sazonadas
Altares a TEU NOME consagrados
Que de coisas por vir, nem das passadas
Nenhuma há de igualar-TE, confessamos31.
29 – MALERBA, Jurandir. A Corte no exílio..., pp. 91-93.
30  –  NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das & MACHADO, Humberto Fernandes.
Império do Brasil, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, pp. 59-63
31  –  SOUZA, Bernardo Avellino Ferreira e. Relação dos festejos, que a feliz acclama-
ção do Muito Alto, Muito Poderoso, e Fidelissimo Senhor D. João VI, Rei do Reino Unido
de Portugal, Brasil, e Algarves. Na noite do Indelevel, e Faustissimo dia 6 de fevereiro, e
nas duas subsequentes, com tanta cordialidade, como respeito votarão os Habitantes do
Rio de Janeiro; seguida das Poesias dedicadas ao mesmo Venerando Objecto, collegidas
por Bernardo ***, Official Supranumerario da Secretaria da Intendencia Geral da Poli-
cia, e dada ao Prelo, e gratuitamente distribuida pela mesma Intendencia, a fim de per-
petuar a Memoria do Plauzivel Successo, de que mais se glorião os Fastos Portuguezes.
Rio de Janeiro: Typographia Real, 1818. Por Ordem de Sua Magestade, snp. Disponível
em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/174428

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Em seguida, descrevia as iluminações e os retratos do soberano, co-


locadas nas frentes das casas e das janelas, que saudavam AO LIBERTA-
DOR DO COMÉRCIO, O MELHOR DOS SOBERANOS, bem como
as decorações elaboradas nas ruas para que o ambiente se tornasse mais
aprazível e não restasse dúvida da satisfação do povo em acolher a Corte.
Derramavam-lhe ainda palavras como:
O Tejo, o Amazonas, e Guadiana,
Cingindo a Régia Coroa Lusitana
Ao Heroico, e Piedoso João Sexto.
Fazem votos ao Céu de leais serem,
Em quanto os Rio para o mar correrem

Eles alçam as frentes majestosas


E, pondo as mãos nas urnas preciosas
Ao Rei juram constante, e puro amor,
Soltando todos três vivas jocundos,
Que transportam de gosto ambos os Mundos.

Debaixo de um tal REI que imenso Império


Se verá florescer neste Hemisfério!32

Outra descrição é da iluminação erguida na Rua dos Pescadores,


com desenho de Grandjean de Montigny:
O arco sustinha-se sobre oito colunas da ordem Dórica Romana, de 26
palmos de altura, sendo a geral deste monumento de 50, e a largura
a de todo o espaço da rua. Em ambos se inverteram os emblemas,
acomodando-os ao novo OBJETO; e do último, de que tratamos, pen-
diam entre as colunas seis medalhões cobertos de seda azul com estas
letras douradas – D. J. VI. –, e cruzava-o esta legenda:
AO VI., AO GRANDE, AO IMORTAL JOÃO33.

Ao fim dessa primeira parte, foram compiladas as homenagens e as


odes direcionadas à aclamação do soberano. De À FELIZ ACLAMA-
ÇÃO DO MUITO ALTO E PODEROSO REI O SENHOR D. JOÃO VI,
são as seguintes palavras:

32  –  SOUZA, Bernardo Avellino Ferreira e. Relação dos festejos..., pp. 5-6.
33 – SOUZA, Bernardo Avellino Ferreira e. Relação dos festejos..., p.7.

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“Ao VI, ao grande, ao imortal João”: elogios impressos ao soberano D. João VI

Ó dia mais que venturoso


Ó dia de prazer, de entusiasmo!
Dos três Reinos Unidos REY potente.
Hoje João de Aclama.

Se é o Sexto no Nome, em nada cede,


Ao primeiro, e Segundo, que fizeram
Na arte de reinar tais maravilhas.
Que muito os sublimaram.

O teu Trono Real, Monarca Augusto,


Não é esse que vemos rutilando
De metal preciosos, tirias sedas.
E gemas contilantes.

Nos fieis corações de teus Vassalos


É onde reconheço estar firmado
Esse Trono, que firme permanece,
Zomba da mão do tempo.
[...]

Dia feliz! Ó dia triumfante!


No qual solenemente o Rei se liga
A ser Pai do seu Povo; e em que este Povo
Fidelidade Jura.

É aclamado Rei João o Sexto.


O Rei vertendo lágrimas de gosto
Ao Povo se apresenta: o Povo clama:
Viva o Nosso Monarca34.

E, em Canto épico a Aclamação Faustíssima do muito alto, e muito


poderoso Senhor D. João VI:
O Magnânimo Esforço, e os Claros Feitos
Com que o Excelso JOÃO, o Sexto em Lísia,
Do ímprobo Corso Às tramas evadido,
Deu novo Realce à Quarta Parte Nova;
A Pátria salva em portentosas Lides,
E o Zênite da Realeza ufano canto.

34  –  SOUZA, Bernardo Avellino Ferreira e. Relação dos festejos..., pp. 25-28.

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Musa que inspiras Épica Poesia,


Pois que é digno do Pindo o Objecto Augusto,
Possantes Versos em meu estro infunde,
Digno de ti, Calíope, e da Empresa35.

Ainda foram publicados na mesma edição: Por ocasião da faustíssi-


ma aclamação de d’elrei Nosso Senhor; odes e um soneto. Eram elogios
ao caráter do soberano, aos seus feitos políticos e ao fato de ter escolhido
o Brasil para lugar de sua aclamação, e, por conseguinte, para sede do
Império luso-brasileiro.

A obra Oração Fúnebre nas exéquias da Muito Alta, Muito Pode-


rosa, e Fidelíssima Senhora D. Maria I foi texto publicado no mesmo
ano de 1818, por Januário da Cunha Barbosa. Uma das quatro homena-
gens publicadas por ele saiu dos prelos da Tipografia de Antônio Manoel
de Silva Serva, tipografia particular que funcionou entre 1811 e 1819. A
oração em lamento pela morte da soberana, que não deixou de elogiar o
rei, foi oferecida a D. João VI por Fernando José de Almeida, Coronel
Comandante do Regimento de Milícias, como indicado em carta que pre-
cede a oração36.

O Arcebispo da Bahia Romualdo Antônio de Seixas, futuro Marquês


de Santa Cruz, ofereceu três obras. Dentre elas, o Sermão de ação de
graças pela aclamação de D. João VI, apresentado no dia do aniversário
do soberano, como forma de celebração do Senado da Câmara do Pará
por aquele evento. O discurso iniciava-se por meio da afirmativa de que
os fiéis vassalos do Reino de Portugal eram muito felizes. Fundamenta-
va os elogios e o merecimento de D. João, utilizando-se de elementos
bíblicos, comparando-o a Davi. Destaca ainda a clemência do soberano
35  –  SOUZA, Bernardo Avellino Ferreira e. Relação dos festejos..., pp. 37-51.
36  –  BARBOZA, Januario da Cunha. Oração Funebre nas exequias da Muito Alta, Mui-
to Poderosa, e Fidelissima Senhora D. Maria I. Rainha do Reino-Unido de Portugal,
Brazil e Algarves, celebradas na Igreja da Ordem Terceira de S. Francisco de Paula,
pelos officiaes do Regimento de Melicias No 3 do Rio de Janeiro. Recitada por Januario
da Cunha Barbosa, Presbytero Secular, Pregador de S.M., Cavalleiro da Ordem de Chris-
to, Professor Regio de Philosophia Racional e Moral, e Pro-Commissario dos Terceiros
Minimos. Bahia: Typographia de Manoel Antônio de Silva Serva, 1818. Com as Licenças
necessárias, pp. 3-4.

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“Ao VI, ao grande, ao imortal João”: elogios impressos ao soberano D. João VI

e convocava todos os súditos para exaltar um rei tão bondoso, verdadei-


ro presente dos céus. Por conseguinte, a aclamação era um momento de
extrema felicidade. Destacava também os gloriosos antepassados de D.
João, evocando D. Manoel I, D. João III e D. João IV. Exclamava que o
soberano era benfeitor, honrado e vitorioso sobre Napoleão Bonaparte na
difícil situação da Europa e citava os diversos benefícios que o regente
realizou entre 1808 e 1810. Os elogios ao caráter do soberano permeiam
todo o texto que segue a dedicatória:
Senhor
Tendo eu a fortuna, e a honra de ser escolhido já por duas vezes, para
anunciar do Púlpito a faustíssima exaltação de V. Majestade ao Trono;
uma quando o Prelado desta Diocese, apenas recebeu a participação
da Secretaria d’Estado, convocando o Clero, e o Povo celebrou na
Catedral as devidas Ações de Graças por tão grande Benefício da Pro-
vidência, e outra quando o Senado da Câmara, depois da consumada
Cerimônia da Aclamação concorreu à mesma Catedral, para tornar
mais solenes as Demonstrações da sua fiel vassalagem; parece justo,
e natural, que o Sagrado Nome de V. MAJESTADE, objeto de todo
o nosso júbilo, seja também o Nume Tutelar, sob cujos Auspícios eu
exponha à Luz pública esta fraca produção do meu rude engenho, ao
mesmo tempo, que os mais abalizados talentos de toda a Monarquia
se esforçam à porfia em exaltar as Virtudes de V. MAJESTADE, e a
felicidade da Nação, que tem a dita de obedecer a um Rei tão digno
de seu amor.
[...]
Mas sendo tão Exemplar, e edificante a Modéstia de V. MAJESTADE,
quanto são raras, e singulares as sublimes Virtudes, que distinguem a
V. MAJESTADE entre todos os Soberanos do Mundo, eu não hesito
em chegar aos Pés do Real Trono, na humilde confiança, de que V.
MAJESTADE se Dignará de receber este pequeno tributo da minha
vassalagem com a mesma afabilidade, com que V. MAJESTADE me
Honrou, e Atendeu tantas vezes que tive a felicidade de beijar as Re-
ais Mãos de V. MAJESTADE, e oferecer-lhe as congratulações desta
Igreja pela sua sempre memorável Chegada aos Estados do Brasil37.

37  –  SEIXAS, Romualdo Antonio de. Sermão de acção de graças que no dia 13 de maio
celebrou o Senado da Camara desta capital do Pará pela feliz acclamação do muito alto,
e poderoso senhor D. João VI. Rey do Reino Unido de Portugal, do Brazil, e Algarves

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Ana Carolina Delmas

Por fim, é preciso destacar José da Silva Lisboa, autor de algumas


dedicatórias e de muitos elogios, e o primeiro a publicar uma homenagem
impressa. Mesmo em obras não oferecidas diretamente, não deixou de
estender seus elogios sempre que possível. Em suas Observações sobre
o comércio Franco no Brasil, publicada em partes entre 1808 e 1809,
considerada por muitos a primeira obra publicada Impressão Régia38,
encontra-se a dedicatória para o “Augusto João VI”, uma manifestação
impressa de uma relação que havia se iniciado em Portugal e continuado
no Brasil:
Senhor
Devendo ser o voto de quaisquer fieis Vassalos, que o Nome de V.A.R.
seja celebrado em todas as Nações; e sendo o meu principal empe-
nho, que a Humanidade Consagre a V.A.R. o Título de Libertador do
Comércio; Mostrando-se V.A.R. entre as Potências da Terra, como o
mais Sábio dos Reis, Salomão, e o mais Opulento, o Monarca de Tiro,
com quem se aliou, cuja riqueza, a magnificência as Sagradas Escri-
turas tão sublimemente descrevem, conservando sempre o sistema de
Paz e Comércio com todas as Gentes, e abrindo os seus Portos para
receber as mercadorias de todas as partes do Mundo; [...]; conside-
res que seria de algum Serviço ao Estado o fazer apreciar no Público
a incomparável Mercê, que V.A.R. se Dignou Conferir a estes seus
Domínios Ultramarinos, Permitindo a Franqueza do Comércio; sendo
este imenso Benefício o Precursor de muitos outros, com que Se Li-
beraliza continuamente para o Bem Geral, e que assemelham a V.A.R.
ao Grande Tito, Imperador de Roma, a quem os contemporâneos de-
nominarão as Delicias da Humanidade, transmitindo-nos a Historia a
sua insigne máxima, de que julgava perdido o dia, quando não fazia
algum benefício ao Império39.

A homenagem iniciava-se a partir de elogios exaltados e por meio


de uma inflamada declaração de fidelidade do súdito, que desejava ser-

Recitado, e Offerecido a Sua Magestade Fidelissima pelo Presbytero***, Professo da Or-


dem de Christo, e Conego da Cathedral da mesma Cidade. Rio de Janeiro, na Impressão
Régia, 1818. Com Licença da Mesa do Desembargo do Paço. s.n.p.
38  –  CAMARGO, Ana Maria de Almeida & MORAES, Rubens Borba de. Bibliogra-
fia..., v.1, p. 10.
39  –  LISBOA, José da Silva. Observações sobre o comércio franco no Brazil. Parte I.
Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1808. pp. 3-6.

120 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):101-126, jan./abr. 2019.


“Ao VI, ao grande, ao imortal João”: elogios impressos ao soberano D. João VI

vir com os seus conhecimentos. A proteção requisitada por José da Silva


Lisboa começou a se manifestar ainda no ano de 1808, e o futuro Vis-
conde de Cairu, mesmo em obras sem dedicatória, não deixaria de render
homenagens e elogios ao soberano. É o caso de Memória dos Benefícios
Políticos do Governo de El-Rei D. João VI, publicada em 1818. Apesar
de não ter sido diretamente dedicada, constituiu-se de uma relação e de
uma avaliação de todos os movimentos políticos realizados por D. João,
apreendendo-se somente os pontos positivos e transformando-os em “be-
nefícios políticos”. Ao final, elegeu o dia da aclamação como marco de
uma época distinta nos anais da América, aproveitando para fazer elogios
ao governo de D. João, à fidelidade da nação portuguesa e aos sucessos
do governo. Visava à indicação das benfeitorias do governo estabelecido
até o momento, demonstrando o progresso do Brasil sob aquela admi-
nistração. Na obra, encontra-se ainda uma significativa “Satisfação ao
Público” que enaltecia as qualidades do antigo príncipe regente, tornado,
então, Rei:
O Dia da Coroação de El-Rei Nosso Senhor D. João VI nesta Primeira
Corte do Novo Mundo, fixa tão Grande Época nos Anais d’América,
que deve ser aclamado, não só em voz transitória, mas também em
alguma Memória, que indique os Principais Benefícios Políticos que
Fez ao Estado até a sua Faustíssima Aclamação em 6 de Fevereiro do
Corrente ano de 1818; narrando-se os prodigiosos sucessos, que enfim
ocasionaram tal Mercê à Grande Terra cantada pelo Príncipe dos Po-
etas Lusitanos; pois, como disse o célebre Orador de Roma, “passam
as coisas, e ficam as escrituras”.
[...]
Conforme ao dito do Virgílio do Tejo40, sendo as palavras amorosas
dos Reis um mando que mais obriga41, bem que exceda a minha esfera
engrandecer ao Estado, é do patriotismo fazer respeitar o seu Gover-
no. E posto reconheça a minha incompetência para narrar dignamente
os objetos desta Memória, contudo, vivendo das Mercês do Trono,
incorreria, pela Lei do Reino em nota de ingratidão42, se não fizesse

40  –  Assim intitulou a Camões o celebre La Harpe, Mestre do atual Imperador da Rús-
sia. [nota original da publicação]
41  –  Lus. IV. 78. [nota original da publicação]
42  –  Ord. Liv. IV. tit. 63.§. 10. [nota original da publicação]

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Ana Carolina Delmas

algum esforço para também, em aplauso de tão Fausto Dia43, dar um


grão de incenso no Altar da Pátria. [...] faço observações históricas e
econômicas, para mostrar a grandeza dos Benefícios Soberanos desde
esse tempo, e afervorar os espíritos dos compatriotas, a fim de faze-
rem cordiais e perenes votos de ser longo e próspero o reinado de
El-Rei Nosso Senhor.

Vale lembrar que, na mesma data da aclamação de D. João VI, ocor-


reu a nomeação de José da Silva Lisboa como desembargador da Casa
da Suplicação do Reino do Brasil, sem que deixasse o exercício da Real
Junta do Comércio. Sempre enfatizando a questão do comércio e em meio
aos eloquentes elogios, o autor abordava as questões que procurava de-
fender, afirmando seu papel de súdito, ao mesmo tempo, que buscava a
proteção do soberano. Os votos de submissão e de vassalagem, aliados
à afinidade de ideias, levaram a uma relação entre monarca e autor. Este
se encontrava envolvido com a elite letrada do país desde suas primeiras
atuações. A dedicatória, dessa forma, se transformava em um impulso à
sua carreira política, estreitando as relações com as elites políticas e com
o círculo social da família real. A identificação entre as ideias do letrado
e as de D. João, certamente, contribuíram para a manutenção da relação
estabelecida: Silva Lisboa acreditava no poder da monarquia e nos ideais
defendidos em suas publicações.

O presente artigo debruçou-se sobre a prática da utilização de dedi-
catórias impressas como elemento de troca simbólica em uma socieda-
de de corte. Compreendidas, primeiramente, em seu contexto original, é
possível perceber o caminhar da prática no Brasil do oitocentos e, espe-
cialmente, ao longo do governo de D. João. Destacaram-se também em
um momento importante para o Brasil e para a monarquia portuguesa: a
aclamação do soberano D. João VI. Momento esse em que letrados que
já haviam se envolvido com tais homenagens não deixaram de aprovei-
tar. O grupo responsável pela publicação de mais de 200 obras contabili-
za mais de 130 letrados. Se consideradas as possibilidades de acesso ao

43  –  Foi anunciado no Alvará de 17 de Março de 1817. [nota original da publicação]

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“Ao VI, ao grande, ao imortal João”: elogios impressos ao soberano D. João VI

letramento, esse número torna-se expressivo. Ainda assim, observam-se


possibilidades variadas para o uso das homenagens impressas. Tal grupo
era constituído por um seleto conjunto de letrados, bacharéis, militares,
funcionários da burocracia real, que ansiavam por uma promoção em
suas carreiras e em suas trajetórias de vida, bem como o estabelecimento
de relações duradouras com o governante. De certo, os letrados, pareciam
disputar o título de “o mais fiel e humilde vassalo”, uma vez que esse era
o “encerramento-padrão” das dedicatórias a D. João, ou ainda “súdito fiel
que muito admira”, ao se tratar de outra figura a ser homenageada. Essa
despedida simbolizava um prenúncio de atitude que seria reiterada ao
longo de seus trabalhos.

Os textos das dedicatórias seguiram de maneira muito próxima à ex-


pressão da prática em sua forma original. Em geral, seguiam o propósito
de homenagear o soberano, procurando também chamar atenção para a
requisição de seus autores, bem como para suas atitudes, na tentativa de
valorização do letrado e de afirmação do merecimento de graças e de mer-
cês. Buscava algum tipo de patrocínio ou de concessão de privilégio. É
interessante notar que, muitas vezes, assumiam outros significados, sendo
as dedicatórias utilizadas não só como um impulso à trajetória do autor,
mas caracterizando-se como agradecimento por algo que já havia sido
recebido, procurando demonstrar gratidão pelo voto de confiança perso-
nificado na concessão de cargos ou mesmo de remunerações. Utilizavam-
-se do espaço da homenagem para ratificar sua posição de súdito fiel,
procurando comprovar o merecimento de mais benesses: uma maneira de
manter intacta e ativa uma relação já estabelecida.

Outro uso para as dedicatórias era a justificativa para a escolha do


conteúdo e para a metodologia empregada na compilação do texto, expla-
nando sobre os motivos que levaram à publicação daquela obra e de que
forma tal publicação poderia ser útil às aspirações do homenageado. Essa
exposição também se apegava ao valor da obra para os leitores, transfor-
mando seu texto em algo de utilidade pública. Quando tal feito não era
possível, como visto em obras de pura e simples homenagem, os elogios
eram garbosos em todas as páginas da edição.

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Ana Carolina Delmas

A busca por patrocínio direto também podia ocorrer. Os elogios di-


recionavam-se em exaltação à figura do soberano, de forma nada sutil, a
fim de levantar fundos para a impressão de uma obra, e que, de preferên-
cia, afiançassem toda a carreira do letrado. À utilização da homenagem
como troca simbólica de proteção, uniam-se alvarás e cartas régias que
narravam as despesas com a publicação de tão importantes escritos, re-
querendo privilégios, como exclusividade dos direitos de impressão e a
obrigatoriedade do pagamento por esses direitos, entre outros.

Alguns autores valiam-se do espaço aberto pela homenagem para


comprovar suas habilidades intelectuais e sua importância na vida políti-
ca, social e econômica do Brasil, muitas vezes, tentando demonstrar que
eram figuras de capacidade indispensável. Nesse ensejo, ainda que de for-
ma incomum, observam-se sugestões para elaboração de novas e, igual-
mente, úteis e imprescindíveis publicações. De forma modesta, oferecem
suas destrezas, naturalmente inspiradas pelo soberano, para a elaboração
dessas obras, aproveitando-se do espaço para sugerir uma encomenda.
Constatava-se que, sem a inspiração provocada pelo homenageado, o
desenvolvimento do conteúdo da publicação não seria possível. Afinal,
a busca pelas boas relações com Príncipe-Regente/Rei objetivava algo
duradouro, repleto de obras licenciadas e, se possível, de futuros pedidos
de escritos.

Quaisquer que fossem os objetivos para se oferecer uma obra ao


soberano, no caso D. João, encontravam-se presentes as humildes afir-
mações de súditos e de vassalos prontos para utilizarem seus préstimos a
fim do engrandecer e do glorificar o soberano e o Brasil. Soma-se a isso a
afinidade de ideias entre os autores e o monarca, levando a uma relação de
homenagem e de mecenato. Além disso, as homenagens extrapolavam o
espaço das dedicatórias e se faziam presentes ao longo do texto dos livros
e também de outros impressos capazes de manifestar apoio – como perió-
dicos e folhetos. Mais do que apoio, os escritos revelavam concordâncias
com as atitudes do soberano em questão, concedendo argumentos a este
e ao regime de governo, destacando-se os benefícios concedidos. Inten-
tavam desmistificar argumentos e manifestações políticas que houvessem

124 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):101-126, jan./abr. 2019.


“Ao VI, ao grande, ao imortal João”: elogios impressos ao soberano D. João VI

sido ditas ou escritas e que afrontassem suas ideias ou as do monarca,


arquitetando uma base sólida de amparo. Afirmavam, assim, o papel de
súdito fiel e incondicional para conquistar o régio apoio.

É possível observar que, mesmo quando as publicações são ofere-


cidas para personalidades de expressão política e social que não fossem
o soberano D. João, por exemplo, nas obras publicadas entre os anos de
1821 e 1822, quando D. Pedro começa a se assumir como figura política
central, são mantidos, ao longo do texto, elogios ao Príncipe Regente e
Rei. Nas obras que agradeciam a D. Pedro pela Independência e pelo
governo constitucional, figuravam, portanto, o reconhecimento pelas ati-
tudes de D. João. Estas, segundo as homenagens, teriam possibilitado
a liberdade política, desde a transferência da corte, passando, especial-
mente, pela aclamação em terras brasileiras, até sua decisão de jurar a
constituição.

Outra expressão da prática que se destaca é a abundância de orações,


de sermões e de odes. Essa presença possibilitou o oferecimento duplo
de homenagens. Uma vez que eram feitas para serem apresentadas em
louvor de um indivíduo ou de um acontecimento como, por exemplo, o
nascimento de um príncipe, ao serem publicadas, reiteravam a homena-
gem original, mas eram comumente dedicadas a outra figura de destaque,
como um ministro ou o próprio soberano. Aproveitava-se, também, o es-
paço da obra, ainda que fosse a primeira vez que viesse ao conhecimento
do público, para o oferecimento de “sub-dedicatórias”, que se seguiam
nas primeiras páginas dos textos, após a dedicatória principal.

Conclui-se que, além de se assemelhar à prática das dedicatórias nas-


cida no ambiente do Antigo Regime, o uso dessas homenagens conseguiu
trilhar um caminho próprio em sua manifestação tropical. Tão logo se co-
meçou a imprimir no Brasil, já saiam dos prelos dedicatórias impressas.
Dividiram-se entre obras políticas, literárias e científicas e um elevado
número de orações e de sermões, como não poderia deixar de ser em uma
sociedade marcada pelo fervor religioso. Os letrados cujas ideias estavam
em sintonia com os rumos do governo de D. João fizeram uso da prática

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):101-126, jan./abr. 2019. 125


Ana Carolina Delmas

como ferramenta de ascensão de seu status político, social e financeiro.


Ainda que a maior parte dos autores tenha publicado apenas uma obra
ao longo de suas vidas, diversos nomes ampliaram suas possibilidades
ao publicar 3, 4 e, até mesmo, 9 homenagens, mostrando ser um recurso
que, apesar de não ser acessível a todos aqueles que possuíam instrução,
foi valioso para alguns desses indivíduos.

O mais importante acerca do trabalho de levantamento, de recupe-


ração e de análise da prática das dedicatórias, é a constatação de que no
Brasil, no início do oitocentos, ao qual parte da historiografia atribui o
desconhecimento das Luzes, estavam presentes impressos, ideias e no-
ções de sociabilidades que não puderam ser contidas. Com a oportunida-
de de imprimir obras dos mais variados gêneros, já se utilizavam modos
de sociabilidades próprios do mundo dos livros e dos impressos: a primei-
ra obra saída dos prelos da Impressão Régia contava com uma dedicatória
em suas páginas iniciais. Embora as ideias ilustradas, a princípio, fossem
restritas, caminhavam para uma disseminação mais abrangente a partir
das obras e dos periódicos que começavam a circular. Havia uma circu-
lação de ideias ilustradas, ainda que sob uma censura vigilante. Enfim,
a observação e a análise da prática das dedicatórias impressas compro-
vam que o Brasil pôde desenvolver relações de sociabilidade complexas
e aprimoradas, por meio das páginas dos livros.

Texto apresentado em outubro 2018. Aprovado para publicação em


dezembro de 2018.

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A arquitetura efêmera no período Joanino

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A ARQUITETURA EFÊMERA NO PERÍODO JOANINO


THE EFEMERAL ARCHITECTUTE AT THE TIME OF D. JOÃO VI
Maria Pace Chiavari1

Resumo: Abstract:
A proposta deste trabalho é olhar para a acla- The purpose of this paper is to look at the
mação de Dom João VI, acontecida em 6 de fe- acclamation of King John VI, that took place on
vereiro de 1818, como a ocasião utilizada pelo February 6th, 1818, as the occasion used by the
monarca para colocar em evidência a transfor- monarch to highlight the transformation of Rio
mação do Rio de Janeiro, de cidade colonial à de Janeiro from colonial city to the capital of the
capital do Reino Unido. Na passagem históri- United Kingdom. In the thirteen years’ historical
ca de treze anos em que o monarca residiu no passage in which the monarch resided in Brazil,
Brasil, ele soube explorar, nos grandes festejos he was able to explore the role of ephemeral
reais, o papel das arquiteturas efêmeras, tanto architectures in the great royal celebrations,
as tradicionais, projetadas pelos portugueses, both traditional, designed by the Portuguese,
quanto as realizadas pelos franceses segundo and those designed by the French according
os cânones neoclássicos. O resultante cenário to the neoclassical canons. The resulting
alegórico, além de contribuir para converter a allegorical scenario, besides contributing to
imagem da capital do novo reino, deixou im- convert the image of the new kingdom’s capital,
portantes heranças, no que se refere a modernos left important heritage regarding modern urban
códigos urbanos e arquitetônicos, para o futuro and architectural codes for the future Empire.
Império.
Palavras-chave: Arquitetura; Festa; Dom João; Keywords: Architecture; Celebration; King
Rio de Janeiro. João; Rio de Janeiro.

As celebrações festivas, “máquinas de propaganda” dos estados


absolutistas
Desde o Renascimento, durante o qual se tornaram famosos os luxu-
osos festejos em Florença — como as fantásticas núpcias de Francesco de
Médici com a arquiduquesa Giovanna d’Asburgo —, se afirma a tradição
das arquiteturas efêmeras. A iconografia visual em forma de retrato ou
de festas, utilizada desde a obra de catequese da Igreja Católica, assume,
nas grandes cortes europeias do Antigo Regime, a função de exaltar, de
promover e de consolidar o poder do soberano e o do próprio estado ab-
solutista.

Na evolução histórica das festas, o evento artístico se torna cada vez


mais autônomo, assim como o aparelho arquitetônico festivo. Esse últi-

1  –  Doutora em Urbanismo, PROURB- UFRJ.

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Maria Pace Chiavari

mo, após desenvolver um papel simplesmente decorativo, adquire cada


vez mais importância junto ao próprio autor, o arquiteto.

Embora tenham sido perdidos todos os aparatos criados em tais oca-


siões, por sua natureza efêmera, chegaram até nós heterogêneas formas
escritas e figurativas que trazem informações detalhadas sobre programas
de festas, sua organização e sua cenografia. Trata-se de verdadeiros tra-
tados e manuais, às vezes, sátiras burlescas, capazes de fornecer expli-
cações sobre inscrições, figuras alegóricas, uso de fogos de artifício e de
tipologias de construções efêmeras em função das diferentes destinações.

Em algumas dessas publicações, são anexados desenhos ilustrativos


nos quais é possível observar as arquiteturas provisórias e as formas de
iluminação utilizada. Projetos arquitetônicos reproduzidos pela técnica
da gravura funcionam como testemunho da festa, documento histórico e
meio de publicidade pelo autor e pelo comitente. Nesse conjunto de tex-
tos e iconografias, podem-se identificar os “documentos-monumentos”
das festas2.

O valor cultural da arquitetura efêmera


Para pintores, escultores e arquitetos, também de grande renome, os
festejos reais durante o Antigo Regime representavam as privilegiadas
ocasiões para desenvolver não só obras duráveis, mas também estruturas
decorativas temporárias.

O processo de produção da “arquitetura das festas” iniciava pelo es-


queleto estrutural da construção, realizado, na maioria das vezes, em ma-
deira. Nas fases sucessivas do projeto, o papel predominante era atribuído
à decoração. A função que se pretendia dessa arte era a de reproduzir
monumentos, desde arcos, templos ou fachadas inteiras de edifícios, com
baixos relevos, ornamentos e esculturas de forma que parecessem os mais
2  –  INHA Institut National d'Histoire de l'Art. Chroniques de l’ephmère. Le livre de fête
dans la collection Jacques Doucet. Paris:IHHA, 2010. No que se refere às ricas e variadas
publicações sobre os festejos organizados em Paris e na corte nos séculos XVII e XVIII,
milhares de documentos são digitalizados e guardados na Biblioteca do Institut National
d'Histoire de l'Art de Paris.

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A arquitetura efêmera no período Joanino

próximos possíveis aos modelos. Para alcançar tão alto nível de ficção
com a mínima despesa, os materiais dos quais podiam então se dispor
eram gesso, papel e papelão pintados, além de colas, de tintas e de grande
variedade de tecidos. Por meio dessa bagagem, era possível conseguir
fingir o material do elemento que se pretendia reproduzir, como estuque,
ouro, bronze e as mais variadas qualidades de mármores e granitos. Para
essa complexa produção, contribuíam artistas e artesãos das mais dife-
rentes especialidades e com diferentes conhecimentos. Sob o olhar do
arquiteto ou do diretor das festas, as mãos dos artífices transformavam
simples apetrechos em soberbas figuras ou objetos alegóricos colocados
a serviço da comunicação política.

Dentre as diferentes funções atribuídas à arquitetura efêmera, no âm-


bito da festa, assumia grande importância a de servir de sustentação para
numerosas fontes luminosas. A luz constituía o elemento fundamental da
festa. Se, em qualquer espetáculo, a iluminação é fator determinante, até
o final do século XX, essa se tornava sinônimo de riqueza e de luxo de-
vido ao alto preço dos diferentes combustíveis como óleo, cera ou sebo.

Resultado de pesquisas bélicas, os fogos de artifício contribuíam


para animar os festejos desde o século XVII. Edifícios provisórios em
forma de monumentos, como templos, arcos e até chafarizes, serviam
para ocultar as máquinas e para criar mais glamour.

J.F. Neufforge, na publicação sobre as arquiteturas e as diversas or-


dens utilizadas, realizada entre 1757 e 1780, insere projetos de arquite-
tura de festa como parte do repertório arquitetônico3. A relação que se
gera entre as duas categorias arquitetônicas explica a adoção dos escritos
de Cahusac sobre a arquitetura de festa na “Encyclopédie” (1756)4. Tal
inclusão sublinha o importante papel desenvolvido pelas arquiteturas efê-
meras para a história e para o progresso das artes5.

3 – NEUFFORGE, Jean-François. Recueil Elémentaire d'Architecture Contenant Plu-


sieurs Etudes des Ordres d'Architecture. Paris: Chez l’auteur, 1757-80.
4 – Encyclopédie ou Dictionnaire Raisonné des Sciences, des Arts et des Métiers. VI.
Paris, 1756.
5 – OECHSLIN, Werner; BUSCHOW, Anja. Architecture de fete. L'architecture comme

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):127-148, jan./abr. 2019. 129


Maria Pace Chiavari

Os festejos no Brasil colônia: a livre leitura das tradições portuguesas


A partir do século XVIII, foram impostas normas para as celebra-
ções das festas públicas no Brasil com o objetivo de induzir a colônia a
se adequar ao espírito de corte. As festas religiosas eram determinadas
pelo calendário litúrgico, enquanto as recorrências civis se verificavam
em ocasião da recepção de importantes autoridades ou das recorrências
da família real portuguesa. Embora as encenações herdadas de Portugal
devessem seguir os rituais barrocos, uma vez chegadas aos trópicos, eram
carregadas de novos significados. Fulcro de todas as manifestações era
o cortejo. Em função da festa, esse podia se transformar em procissão,
carrossel ou cavalgada.

Devido ao custo que as festas geravam ao cofre público, era obriga-


tória, para cada manifestação pública, a compilação do relato que justifi-
casse todas as despesas realizadas. Nos arquivos do Rio de Janeiro, por
ser capital da colônia, encontram-se numerosos documentos no que diz
respeito aos festejos anteriores ao século XIX, o que compensa a pobreza
do aspecto iconográfico. Pela leitura dessas detalhadas descrições, é pos-
sível acompanhar a progressiva passagem dos festejos realizados segun-
do as tradições coloniais aos improntados no estilo introduzido por Dom
João VI na capital do novo Reino.

A mise-en-scène da cidade de São Sebastião de Rio de Janeiro pela


chegada da família real
No dia 7 de março de 1808, um rígido cerimonial acompanha o de-
sembarque de Dom João na então capital da colônia. Pelo detalhado re-
lato redigido pela Câmara da cidade e divulgado graças às memórias de
Luiz Gonçalves dos Santos (Padre Perereca)6, é possível reconstruir a
cenografia que marcou o breve percurso que, do cais do porto, no Largo

metteur en scène. Bruxelles: Pierre Mardaga, 1984.


6  –  SANTOS, Luiz Gonçalves dos. Memórias para servir à história do Reino do Brasil,
divididas em três épocas da felicidade, honra, e glória; escritas na Corte do Rio de Janei-
ro no ano de 1821. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1981.

130 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):127-148, jan./abr. 2019.


A arquitetura efêmera no período Joanino

do Paço, trouxe o monarca à Igreja do Rosário, onde foi celebrada sua


recepção.

Pode-se servir de várias narrativas para reconstruir a história. Pelo


relato que chegou até nós, o primeiro contato que o jovem soberano teve
com a cidade após seu desembarque foi o resultado de uma construção
cenográfica. Jogos de luzes e de sombras, decorações e construções pro-
visórias pretendiam fazer o recém-chegado esquecer os anos do regime
colonial com escassos investimentos na estrutura urbana, embora o esta-
do político de capital se datasse de um século.

Visões de artistas que, naquele mesmo período, retrataram o Rio de


Janeiro, como Miguel Angelo Blasco ou Thomas Ender (imagem 1), aju-
dam a confirmar o estado precário das arquiteturas, mesmo se compa-
radas às de Salvador, antiga capital, onde Dom João tinha permanecido
antes da chegada ao Rio. Na grande amálgama de influências que carac-
terizava a colonização portuguesa, se destacavam, como ilhas, igrejas e
conventos de inspiração barroca. O próprio Paço dos Governadores ou
Palácio dos Vice-Reis, embora restaurado e reformado para receber os
habitantes ilustres, não brilhava pelo seu estilo.

Imagem 1 – Thomas Ender. Panorama da cidade do Rio de Janeiro,


vista do terraço do Morro da Conceição. 1817-1818. Biblioteca da Academia de Belas Artes de Viena.

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Maria Pace Chiavari

Nas observações sobre a cidade, Conde Thomas O’Neill, imediato


do navio London pertencente à esquadra inglesa que acompanhou a nau
que trazia o príncipe regente, elogia as igrejas assim como o aqueduto
da Lapa, que dominava, com majestade, os edifícios que se encontram
nas suas redondezas. A admiração do nobre inglês é atraída pelo presti-
giado jardim do Passeio Público, em estilo francês, encomendado pelo
vice-rei Luís de Vasconcelos ao arquiteto e escultor Mestre Valentim e
realizado entre 1779 e 1783. Destinado à recreação, segundo O’Neill, era
um espaço vigiado por duas sentinelas e mantido em excelente estado de
conservação7.

Ao seguir o relato dos festejos reais transmitido por Luiz Gonçalves


dos Santos, a visão da cidade que é proporcionada a D. João se reduz ao
cenário construído ao longo do trajeto do cortejo real. No Largo do Paço,
entre o chafariz de Mestre Valentim e o cais do porto, surgia uma arqui-
tetura efêmera erigida por encomenda dos próprios vereadores. Sua “fa-
chada monumental” emoldurava o retrato de S.A.R. “pintado ao natural
que parecia ele mesmo”. Em uma escrita, seguindo as tradições barrocas,
eram mencionadas “suas reconhecidas virtudes”. A figura de um índio
que oferecia ao jovem monarca frutos tropicais, como produtos da terra,
simbolizava o Brasil. Com essa imagem, se defrontava a comitiva real ao
chegar do mar. Completavam a ornamentação 5 ou 6 mil pontos de luzes,
capazes de enaltecer o Largo do Paço. Ao longo do caminho percorrido
pela família real, o piso era coberto por tapete de areia branca e verme-
lha e ervas odoríferas que, junto às flores jogadas no cortejo, serviam
para perfumar o ar. Suntuosas colchas de damasco colocadas nas janelas
disfarçavam a falta de arquitetura definida que caracterizava numerosas
casas acanhadas. Durante os nove dias de festa, a cidade permaneceu ilu-
minada, dia e noite.

Ao transpor na colônia a organização das festas da antiga tradição


portuguesa, os mesmos artifícios assumem diferentes significados. O efê-

7  –  O’NEILL, Thomas. A escolta de Dom João VI. In: FRANÇA, Jean Marcel Carvalho.
Outras visões do Rio de Janeiro Colonial. Antologia de textos 1582-1808. Rio de Janeiro:
José Olympio, 2000. pp. 314-315.

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A arquitetura efêmera no período Joanino

mero, em suas diversas versões, torna-se a forma para compensar a falta


de recursos e de civilização, esconder o estado de miséria e de degradação
de grande parte da população e disfarçar o desleixo urbano e arquitetôni-
co da própria capital.

O desafio de Dom João: a transformação do Brasil inicia pela


renovação de sua capital
A sistemática dualidade entre o centro metropolitano e as periferias
coloniais é colocada em crise, uma vez que Dom João decide transfe-
rir para a colônia a “centralidade do centro”8. Adquirida consciência da
estabilidade da nova posição, o monarca enfrenta seu grande desafio: o
de transformar o Brasil, a começar pela renovação de sua capital. Para
realizar esse empreendimento, o que mais faltava eram equipamentos cul-
turais enquanto principais fontes de civilidade. Para o desenvolvimento
desse setor, o governo de Dom João contribuiu por meio de importantes
investimentos a partir da fundação da Impressão Régia (1808), da Bi-
blioteca Nacional (1810), da Academia Militar (1811), da construção do
Teatro Real São João (1813) e da criação do Museu Real (1818).

Qualquer projeto de modernização devia considerar os novos signi-


ficados simbólicos a serem atribuídos ao Rio de Janeiro enquanto sede da
Corte e capital de um reino europeu nos trópicos. No ambicioso sonho de
Dom João, o processo de renovação não pretendia se limitar ao aspecto
espetacular da Corte, a criação de uma “Versailles tropical”. Era preciso
olhar a cidade como um todo, envolvida, desde a chegada da corte, em um
processo de urbanização9.

O que mais faltava na corte era pessoal qualificado para elaborar


uma imagem da capital do Reino Unido, capaz de se tornar ponto de
referência da nação e de projeção externa do país. O novo reino preci-

8  –  SCHIAVINATTO, Iara Lis. Entre história e historiografia: algumas tramas do gover-


no joanino. In: GRINBERG, Keila e SALLES, Ricardo (Orgs.). O Brasil Imperial Vol.1
– 1808-1831. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. p. 68.
9 – SCHULTZ, Kirsten. Versalhes tropical: império, monarquia e a Corte real portu-
guesa no Rio de Janeiro. 1808-1821. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

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Maria Pace Chiavari

sava de artistas em grau de ilustrar, na perspectiva de diferentes artes e


com moderna linguagem, a sua “história oficial”. Nesse contexto, surge
o interesse do monarca em atrair artistas europeus ao Rio de Janeiro. Tal
proposta não se reduz ao dito “projeto civilizatório”10. A esse propósito, é
bom lembrar que o mecenato joanino se refaz à antiga tradição das gran-
des cortes europeias de receber artistas e cientistas de diferentes países
para que contribuíssem para o esplendor e a riqueza do reino.

Os contatos com a França, iniciados desde o Congresso de Viena,


por Talleyrand, se fortalecem pelas articulações do Marquês de Marialva,
sob a direção do Conde da Barca. O principal objetivo das tratativas é
a construção da Academia de Belas Artes no Rio de Janeiro. Das varia-
das trocas de comunicações, resulta a chegada da denominada “Missão
Francesa”, que desembarca no Rio em 26 de março de 1816. Fazem parte
do grupo diferentes artistas. Junto com Lebreton, artista e organizador
da empresa, chegam os pintores Jean-Baptiste Debret, Nicolas-Antoine
Taunay e seu filho Félix-Émile Taunay, o escultor Auguste-Marie Taunay,
o arquiteto Grandjean de Montigny, e outros artistas, ajudantes e artífices
de diversas profissões.

Devido à espera demorada para o projeto da Academia se realizar,


os artistas franceses são consultados para contribuírem na preparação de
um grande evento. Trata-se da organização dos festejos reais para o ca-
samento de Dom Pedro com a arquiduquesa austríaca Dona Leopoldina.
Tornava-se urgente encontrar soluções autônomas capazes de articular
a festa, o culto e a cerimônia. A chegada de Dona Leopoldina se apre-
sentava como a primeira ocasião para expor a imagem oficial do Rio de
Janeiro, capital do Reino Unido.

Devido às então circunstâncias políticas, econômicas e sociais do


país, a real reformulação da cidade torna-se um projeto impossível. Para
enriquecer e para renovar o contexto urbano colonial e, ao mesmo tem-
po, obedecer às normas dos tradicionais festejos, a solução encontrada é

10  –  BARRA, Sergio Hamilton da Silva. Entre a corte e a cidade. O Rio de Janeiro no
tempo do Rei (1808-1821). Rio de Janeiro: José Olympio, 2008. p. 151.

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A arquitetura efêmera no período Joanino

engajar os profissionais franceses na construção das arquiteturas de festa.


Tal resolução permite que as construções provisórias, além de desenvol-
verem sua original função decorativa, possam divulgar a nova linguagem
arquitetônica, o neoclassicismo, trazida pelos artistas franceses.

Em novembro de 1817, a arquiduquesa austríaca desembarca no Rio


de Janeiro. Ao longo do trajeto da carruagem nupcial, está previsto que
o projeto tradicional, como o pavilhão que acolhe Dona Leopoldina, se
alterne com as arquiteturas de matriz neoclássica, como os arcos de triun-
fo romanos projetados pelos artistas franceses. Foi essa a solução viável
adotada.

Os conhecimentos dos artistas franceses sobre o estilo neoclássico,


elevado na França a estilo oficial, vinham das obras realizadas por oca-
sião das grandes celebrações em Paris durante o período napoleônico.
Apesar das divergências políticas que distanciaram D. João de Napoleão,
o processo de recuperação do mundo clássico se apresenta a ambos os
soberanos como a forma ideal para celebrar o poder e a própria glória. No
âmbito do projeto joanino, a transposição do neoclassicismo para o Brasil
se torna também a maneira de enaltecer, valorizar, divulgar e impor no
Novo Mundo as raízes da civilização ocidental.

Os festejos pela chegada de Dona Leopoldina11


Nos anos após a vinda da Família Real, a cidade do Rio de Janeiro
cresceu em direção ao morro de São Bento pelo eixo da Rua Direita, atual
Primeiro de Março. Resultado da abertura dos portos às Nações Amigas,
o desenvolvimento das atividades portuárias deslanchou o processo de
urbanização das áreas costeiras, do Arsenal até o Saco do Alferes. Tais
transformações fizeram com que, em vez do Largo do Paço, onde aproou
a nau que trouxe Dom João de Portugal, fosse o Arsenal da Corte, assim

11  –  CHIAVARI, Maria Pace. A entrada de uma Habsburgo-Lorena na corte portuguesa:


a arquitetura de festa como auspicio de transformação. In: MAGALHÃES, Aline; MA-
RINS, Álvaro; BEZERRA, Rafael Zamorano (Coord.). Leopoldina e seu tempo: socie-
dade, política, ciência e arte no século XIX. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional,
2016. pp. 38-52.

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Maria Pace Chiavari

denominado após a chegada da família real, que acolhesse Dona Leopol-


dina ao descer do navio que a trouxe da Europa.

O jornal Gazeta do Rio de Janeiro publicou, na época, detalhados


relatos dos festejos reais12. Essas preciosas descrições chegaram até nós
graças às suas transcrições presentes nas memórias de Luiz Gonçalves
dos Santos, o Padre Perereca. Devido à importância política do evento,
a documentação escrita tem respaldo em representações iconográficas. O
conjunto dessas imagens, pinturas e gravuras assume o sentido e deve ser
tratado, segundo Le Goff, como documento-monumento que enriquece os
próprios relatos escritos13.

É o caso do desembarque de Dona Leopoldina, retratado pelo artis-


ta francês Jean-Baptiste Debret (imagem 2). Nessa visão, encontra-se o
pavilhão, em forma de baldaquim, exemplo de arquitetura efêmera cuja
função era de abrigar a família real na acolhida da arquiduquesa. No livro
em que Debret relata sua viagem ao Brasil, ele se refere a esse pavilhão
como “monumento fantasista” em “estilo português”, realizado por “ofi-
ciais de marinha”14. A rígida formação neoclássica de Debret e os contí-
nuos contrastes no Rio de Janeiro entre artistas franceses e portugueses
estimulam o sentido crítico do autor da pintura ao perceber, na construção
provisória, a falta de claras referências estilísticas.

12 – Gazeta do Rio de Janeiro, quarta-feira, 12 de novembro de 1817.


13  –  LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução Bernardo Leitão et al. Campi-
nas: Editora Unicamp, 1990.
14 – “Voyage pittoresque et historique au Brésil, ou Séjour d'un artiste français au Brésil,
depuis 1816 jusqu'en 1831 inclusivement par J.B. Debret. Paris, 1834-1839”. In: DE-
BRET, Jean Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro,
s/d.

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A arquitetura efêmera no período Joanino

Imagem 2 – Jean Baptiste Debret. Desembarque de D. Leopoldina no Brasil.


Original Fundação Biblioteca Nacional.

O trajeto do cortejo real, que do Arsenal segue pela Rua Direita até
chegar no Largo do Paço, é assinalado por uma série de arcos de triun-
fo. Nessa circunstância, a arquitetura efêmera, resultado de projetos de
artistas franceses, serve para introduzir novas visões urbanas baseadas
na harmonia clássica. A estrutura dos dois primeiros, segundo os relatos,
segue as normas dos arcos de triunfo napoleônicos. Através das memórias
de Luís Gonçalves dos Santos, dito Padre Perereca, é possível obter des-
crições detalhadas dos mencionados arcos e de sua simbologia figurativa,
compensando a falta de documentos iconográficos sobre essas constru-
ções provisórias.

Ao começar a percorrer a Rua Direita, o Cortejo real passa por bai-


xo da abertura central do primeiro arco de triunfo. Projeto do arquiteto
Grandjean de Montigny, tal construção provisória foi encomendada pelo
Comércio. Nas variadas alegorias que decoram o monumento, é lembra-
da a feliz união dos dois países, o Reino Unido e a Áustria, dos quais
são exibidas as armas e a simbologias expressas pelo Rio de Janeiro e o
Rio Danúbio. Por meio desse importante investimento, a corporação do
Comércio pretendia desejar uma feliz união ao jovem casal real, como
testemunha a escrita “À feliz união, o Comércio”. O grande homenage-

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ado, todavia, é o soberano a quem o Comércio pretendia exprimir oficial


agradecimento pela abertura dos portos, o que tinha oferecido grandes
vantagens a essa categoria, como está escrito na alegoria colocada na base
do monumento.

Nos dois primeiros arcos de triunfo, em forma de paralelepípedo re-


tangular vertical, segundo o esquema clássico romano, das três aberturas
em forma de arcos, a central era maior por ser destinada à passagem do
cortejo real. Nos dois arcos laterais, fluía o público. Pelas medidas de al-
tura, mencionadas nos relatos (até 39 metros), é possível constatar que o
impacto dessas arquiteturas efêmeras na volumetria urbana correspondia
a edifícios de três andares, raros na então estrutura colonial. No que se
refere à largura desses arcos, a medida varia entre 10 e 12 metros. Tais
medidas correspondem à largura de trechos da Rua Direita que, portanto,
é totalmente atravessada por tais monumentos. A partir dessas relações
entre os monumentos provisórios e o então logradouro, é possível afirmar
que, além do estilo, os arcos de triunfo introduzem e impõem, na trama
colonial, uma nova escala urbana (imagem 3).

Imagem 3 – Thomas Ender. Arcos triunfais na Rua Direita.


Original Biblioteca da Academia de Belas Artes de Viena.

O terceiro arco, situado sempre na Rua Direita, quase em frente à


Igreja de Santa Cruz dos Militares, se diferencia dos anteriores. Projeto

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A arquitetura efêmera no período Joanino

de Grandjean de Montigny, é denominado pelo próprio arquiteto de arco


romano. Sua feição, talvez por ter exclusiva dedicação à Dona Leopol-
dina, se destaca pela sua leveza. Essa caraterística se reflete na menor
largura em relação aos arcos anteriores. Isso faz com que esse arco possua
uma única abertura central em arco destinada à exclusiva passagem da
carruagem real (imagem 4).

Imagem 4 – Marie Hippolyte Taunay. D. Pedro e Dona Leopoldina passam por debaixo do Arco do Triunfo espe-
cialmente projetado por Grandjean de Montigny. Fundação Biblioteca Nacional.

Para homenagear a jovem princesa, o arquiteto francês recorre a


folhas de palmeiras entrelaçadas para cobrir a estrutura de sustentação,
constituída por estandartes fincados no chão. Uma série de medalhões
decora as partes laterais do arco. Neles, estão gravadas as virtudes de
Dona Leopoldina. O uso de elencar as qualidades do personagem presti-
giado fazia parte do protocolo real, como foi registrado anteriormente ao
falar da arquitetura efêmera construída no Largo do Paço por ocasião da
chegada de D. João ao Rio de Janeiro, onde eram mencionadas, ao lado
do seu retrato, as virtudes do monarca. No uso dos medalhões, Grandjean
recupera fórmulas do código barroco.

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A aclamação de D. João VI

A cerimônia de ascensão de um rei europeu nos trópicos


A decisão do próprio monarca de eleger o Rio de Janeiro como palco
de aclamação do primeiro rei do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algar-
ve assume forte conotação simbólica no que se refere ao papel atribuído
à ex-colônia. Como observa o negociante inglês John Luccock, a morte
de D. Maria, em 1816, abre uma nova fase na forma de o monarca se
relacionar com o Brasil15. O explícito reconhecimento por parte da popu-
lação brasileira de pertencer ao mesmo conjunto político, demonstrado
pela realização das exéquias da rainha em todo o país, o apoio do partido
luso-brasileiro e das elites portuguesas que acompanharam a família real
fortalecem a posição de D. Dom João frente a Portugal. Na vitória contra
a revolta de Pernambuco, em 1817, D. João encontra ulterior motivação
para defender sua presença no país e a escolha do Rio de Janeiro como
lugar onde celebrar a aclamação que se realizará no ano seguinte.

No tempo que separa a vinda da arquiduquesa Leopoldina da orga-


nização dos festejos em vista da aclamação, a cidade do Rio de Janeiro
se renova e passa por numerosas obras de urbanização. Trata-se de refor-
mas promovidas pela Intendência Geral de Polícia, instituição criada, em
1808, por D. João. Para realizar tais tarefas, foi incumbido Paulo Fernan-
des Viana. Titular do cargo desde que a instituição foi criada, sua proposta
era de “civilizar” a cidade16.

D. João VI, em 6 de fevereiro de 1818, para anunciar a solene festa


da aclamação, se serve do peso e da força da tradição para ganhar honra
e respeito.
E sendo justo que, conforme o uso antigo, costumes destes Reinos,
se me faça o juramento, preito e homenagem, pelos grandes títulos,
seculares e eclesiásticos, vassalos e mais pessoas de nobreza: fui ser-
15 – LUCCOCK, John. Notes on Rio de Janeiro and the southern parts of Brazil. A resi-
dence of ten years in the Country. From 1808 to 1818. Londres: Samuel Leigh, MDCC-
CXX. p. 569.
16  –  SILVA, Maria Beatriz Marques Nizza da. Cultura e sociedade no Rio de Janeiro,
1808-1821. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1977. p. 43, pp. 153-154.

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A arquitetura efêmera no período Joanino

vido nomear o dia 6 do mês próximo futuro para esta solenidade, que
se há de celebrar na varanda que para este efeito se mandou levantar
no terreiro do Paço17.

Por seguir o ritual indispensável que marca a celebração da acla-


mação do novo rei, a mencionada varanda devia possuir valor simbólico
capaz de sacramentar tal evento. O projeto dessa arquitetura efêmera foi
confiado ao arquiteto de Sua Majestade, João da Silva Muniz, enquanto
Joaquim José de Azevedo, Barão de Rio Seco, assumiu a direção das
obras. Na escolha dos profissionais portugueses, acha-se a garantia para a
festa encontrar seu histórico significado no que concerne o “decorum” e
a linguagem estilística enquanto expressão da forma cerimonial e do seu
conteúdo.

Imagem 5 – Caetano Alberto Nunes de Almeida. Planta e prospecto geométrico da régia varanda para a feliz
aclamação de D. João VI na corte do Rio de Janeiro. Fundação Biblioteca Nacional.

Na planta da régia varanda (imagem 5), é possível observar o com-


primento de 55 metros da construção provisória, toda de madeira, edi-
ficada em frente ao antigo convento. Pela legenda que acompanha o tal
prospecto e planta, é possível apreciar amplo e comprido salão retangular
e sua divisão interna por colunas quadradas. Essas, além de dividir os
espaços em função da categoria dos convidados, assinalam o percurso
17  –  Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (ANRJ), Fundo Casa Real e Imperial Mordo-
mia-Mor, Códice 569 – Papéis relativos à sagração e coroação de D. Maria I, D. João
VI, D. Pedro I e D. Pedro II (1777-1841).

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do soberano, desde sua entrada até sua chegada à sala do trono, que se
encontra no final do salão, em um estrado mais elevado, em direta comu-
nicação com o Paço. As letras F, G, H, I, L ­– presentes na legenda do pro-
jeto –, assinalam a tribuna e os balcões onde eram acomodadas a rainha,
as princesas e as infantas. Toda a descrição da cerimônia é relatada por
Luiz Gonçalves Santos18.

Uma ideia mais precisa do interior da varanda pode ser obtida pela
pintura “Aclamação do rei D. João VI no Rio de Janeiro”, realizada por
J.B. Debret. Graças ao talento pictórico do artista francês, a arquitetura
efêmera adquire solenidade e majestade. Ao ver reproduzidos na pintura
os elementos construtivos e decorativos que compõem a sala do trono,
o observador tem a impressão de que tudo o que olha seja verdadeiro. É
o caso do teto realizado em simples madeira e enriquecido por decorati-
vas pinturas ou dos capitéis pintados sobre o mesmo material pobre, mas
apresentados como se fossem de ouro, assim como outros detalhes que
simulam mármore, bronze ou tecidos preciosos. A retratação de Debret da
cerimônia na sala do trono faz parte das imagens documentos. Confirma
isso a presença, no quadro, de todos os membros da família real, assim
como dos componentes da corte, de forma que cada um possa ser reco-
nhecido (imagem 6).

Imagem 6 - Jean Baptiste Debret. Aclamação do rei D. João VI no Rio de Janeiro. 1835.
Fundação Biblioteca Nacional.

18  –  SANTOS, Luiz Gonçalves dos. Op. cit., (Vol. 1), pp. 224- 377.

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A arquitetura efêmera no período Joanino

No desenho da fachada principal da varanda, a sequência de dezoito


arcos, divididos por colunas e adornados por cortinas, recupera elementos
do código barroco. É possível encontrar um paralelo na decoração tempo-
rânea realizada em S. Giacomo degli Spagnoli, em Roma, pelo arquiteto,
cenógrafo e arqueólogo italiano Giuseppe Pannini (1720-1812), por oca-
sião da celebração em memória de Carlos III (imagem 7). As aberturas
na frente da varanda permitiam à multidão que se adensava no Terreiro
do Paço olhar para dentro, assim como os convidados participavam da
movimentação no exterior.

Imagem 7 – Giuseppe Pannini. Decorações temporárias de S.Giacomo degli Spagnoli em Roma. Gravura de
Giovanni Volpato. In: Descrizione dell’apparato funebre per le esequie celebrate dalla nazione Spagnuola nella
sua Chiesa di S. Giacomo in Roma alla memoria di Carlo III. Roma, 1789.

Imagem 8 – Jean Baptiste Debret. Vista do exterior da galeria da Aclamação do rei D. João VI no Rio de Janei-
ro.1835. Fundação Biblioteca Nacional.

A pintura “Varanda de D. João”, de Debret (imagem 8), na qual a va-


randa é vista do exterior, possui uma forte carga simbólica. Na visão dos

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Maria Pace Chiavari

convidados, no interior da varanda, e, à sua frente, da multidão que esta-


va, segundo Luiz Gonçalves Santos, no mais completo júbilo pela possi-
bilidade de ver e de homenagear o soberano, se reflete o original sentido
da aclamação. A função da cerimônia era confirmar a relação entre o novo
rei e o conjunto dos vassalos que representava o corpo do reino. Segundo
o cerimonial, no caminho de volta que levava o rei do trono até a Capela
Real, o soberano deveria passar na frente das janelas da varanda e fazer
três paradas para se mostrar ao povo. Na pintura acima mencionada, De-
bret, ao retratar o soberano aparecendo na edícula construída no meio da
varanda, pretende dar visibilidade à realeza. O aspecto cenográfico dessa
arquitetura efêmera, embora a ocupação dos espaços obedeça a uma rígi-
da hierarquia social, suscita a impressão de um grande teatro. Como aos
súditos, na praça, é concedida a rápida visão do rei e da nobreza, o vice-
-versa também é possível, permitindo a cada um ver e ser visto.

Tradição e Modernidade
Fazem parte do processo de transição do modelo arcaico português
da capital colonial para uma estrutura urbana movida pelo progresso, as
fórmulas arquitetônicas adotadas por ocasião da aclamação19. O estilo tra-
dicional e o moderno neoclassicismo determinam a divisória conceitual
entre os projetos de arquiteturas efêmeras que contribuíram à mise-em-
-scène da solene cerimônia.

O Terreiro do Paço foi eleito, desde a chegada de Dom João no Rio


de Janeiro, como cenário privilegiado para sediar festas e comemorações.
Durante a aclamação, esse espaço se tornou um grande palco. A parte do
fundo do Terreiro, ocupado pela Varanda, refletia o poder do soberano
exaltado pelo tradicional cerimonial. Na parte oposta do logradouro, em
frente ao próprio Paço e estendendo-se até o chafariz de mestre Valen-
tim, surgiam arquiteturas efêmeras em estilo neoclássico que seduziam
o observador pela grandiosidade e pela beleza. A mensagem alegórica
nelas contidas se servia da mitologia grega e da antiguidade clássica para

19  –  NEVES, Lucia Maria Bastos P.; MACHADO, Humberto Fernandes. O império do
Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

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A arquitetura efêmera no período Joanino

elogiar a sabedoria do soberano, seu amor à cultura e às artes. Para a edi-


ficação desse conjunto arquitetônico, foi utilizada a melhor colaboração
artística então disponível no Rio de Janeiro.

Nessa duplicidade de estilos, se reflete o espírito da própria ceri-


mônia. O respeito ao cerimonial português era norma obrigatória por se
tratar da aclamação do rei do Reino Unido, do qual Portugal constituía
a principal matriz histórica. Todavia, a decisão de Dom João de realizar
tal solenidade pela primeira vez nos trópicos, onde nenhum rei europeu
tinha sido antes aclamado, continha, em si, grande força inovadora que a
própria arquitetura efêmera assumiu o papel de divulgar.

Um templo de ordem dórico-grega, dedicado a Minerva, a deusa da


sabedoria, foi erguido em frente ao Paço da cidade. O projeto tinha sido
encomendado pelo Senado da Câmera ao arquiteto Grandjean de Montig-
ny e a Jean-Baptiste Debret20. Ladeado por dois semicírculos formados
por colunas lisas, o dito templo se elevava acima de uma escadaria. Em
seu interior, encontravam-se dois bustos monumentais que representavam
a deusa grega e D. João. Na base do templo, estavam duas estátuas que
representavam a Poesia e a História.

Participou da decoração dessa construção, em particular no que se


refere às grandes esculturas, o também artista francês Auguste-Marie
Taunay. Na aquarela de Nicolas-Antoine Taunay: “Monumento erigido
pelo Senado do Rio de Janeiro em 6 de fevereiro de 1808, em ocasião
da aclamação de D. João VI como Rei do Reino Unido” (imagem 9), é
possível notar, por meio das cores, a riqueza e a variedade dos materiais
utilizados na construção desse monumento. Para obter essa fictícia sun-
tuosidade, os artistas franceses se serviram das técnicas de trompe-l’oeil.
Tal jogo de efeitos artificiais é confirmado pelas informações transmitidas
pelo Padre Perereca. Ao se referir às colunas lisas do colunado, ele fala
que seu material, simples madeira pintada, “imitava granito rosa”, assim

20 – Os festejos reais: arquiteturas efêmeras de D. João VI a D. Pedro II. Catálogo da


exposição homônima. Curadores: Maria Pace Chiavari e Piedade Esptein Grinberg, 19 de
agosto a 19 de setembro de 2008. Solar Grandjean de Montigny, PUC-RIO.

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como o entablamento do templo “fingia granito cinzento” ou as cornijas


“pareciam de bronze”.

Imagem 9 – Nicolas-Antoine Taunay. Monumento erigido pelo Senado do Rio de Janeiro, em 6 de fevereiro de
1808, em ocasião da aclamação de D. João VI como Rei do Reino Unido. Palácio Nacional D’Ajuda, Lisboa.

A leitura das memórias de Luiz Gonçalves dos Santos (Padre


Perereca)21 permite também obter a descrição detalhada de todas as de-
corações que compõem o monumento e entender o significado simbólico
das figuras inspiradas na mitologia grega. Como isso poderia ser traduzi-
do nos trópicos? Talvez hoje se possa encontrar um paralelo na figura dos
carnavalescos que se tornam os “tradutores” capazes de transformar texto
em imagens, trajes, carros alegóricos e muito mais.

O que impressiona na grandiosidade do monumento erigido pelo


Senado é a inovação que suas dimensões trazem no skyline da cidade.
Trata-se, em particular, da altura do templo, que chega a 63,60 metros.
Na aquarela mencionada, parece ter sido a intenção de Taunay colocar
em competição a arquitetura efêmera com o Pão de Açúcar, desde então
presente nas rotas de navegação como marco geográfico de identificação
da cidade.

A dualidade presente na geografia do Largo do Paço reflete-se tam-


bém na divisão dos patrocinadores, entre entidades públicas e particu-
lares, dessas arquiteturas efêmeras. Colocadas em frente ao chafariz de
Mestre Valentim, duas arquiteturas efêmeras em forma de arcos romanos
21  –  SANTOS, Luiz Gonçalves dos. Op. cit., pp. 154-156.

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A arquitetura efêmera no período Joanino

são projetos encomendados pela Junta do Comércio aos artistas france-


ses, Grandjean de Montigny e Jean-Baptiste Debret.

Tanto os arcos como o obelisco egípcio, que se destacava pela sua


altura de 20 metros, no meio do Largo, tinham motivação decorativa e
também funcional. Por suas dimensões, essas arquiteturas efêmeras ser-
viam como importantes fontes de iluminação com o objetivo de dar mais
brilho à cenografia construída na praça. Lembra-se de que Padre Pere-
reca, em suas memórias, coloca tais construções no capítulo dedicado à
iluminação.

Os arcos romanos mencionados tinham dimensões semelhantes aos


dos arcos construídos em virtude da chegada de Dona Leopoldina. Mu-
davam as alegorias, as decorações e as mensagens. Tratava-se, de fato,
de uma moderna operação de recuperação e de reciclagem realizada pela
Real Junta do Comércio22. Os velhos arcabouços eram reutilizados para
se adaptarem às novas funções. Por essa motivação, a Junta incumbiu aos
mesmos artistas dar novo visual e significado aos arcos por eles projeta-
dos e guardados após os festejos de 1817. Tal prática também foi assimi-
lada pelo Carnaval.

O Campo de Santana e as festas populares


No segundo dia dos festejos, reservado às manifestações populares,
a festa se espalhou pelas ruas e teve o Campo de Santana como polo de
concentração. Nesse lugar, foi erguido um palacete de madeira para abri-
gar o rei e a família real.

Em outubro do mesmo ano, pelo natalício de D. Pedro, foi encomen-


dado ao arquiteto Grandjean de Montigny um estádio elíptico na forma
das antigas arenas romanas para ser colocado no meio do mencionado
campo. Para assistir aos jogos, foi erigida, no mesmo Campo, a Tribuna

22  –  CHIAVARI, Maria Pace; GRINBERG, Piedade Epstein. Arquitetura efêmera, ar-
quitetura de festa. In: 200 anos da chegada da família real portuguesa no Brasil: da aber-
tura dos portos às Nações Amigas e seus reflexos na arquitetura e no espaço brasileiro.
Vol. 1. Rio de Janeiro: PROARQ UFRJ, 2007. p. 48.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):127-148, jan./abr. 2019. 147


Maria Pace Chiavari

Real, em forma de templo grego, cujo acesso era assinalado por um arco
de triunfo.

O interesse em mencionar tais construções efêmeras, embora sem


grande valor arquitetônico, realizadas durante o período joanino, se jus-
tifica pelo papel desenvolvido por elas no âmbito do desenvolvimento da
cidade. A área do Campo de Santana, até então fora dos limites da cidade,
no caminho que levava do Paço à residência real de São Cristóvão, graças
às festas populares e às respectivas construções provisórias, começa pro-
gressivamente a fazer parte da área urbana. Na aclamação de Dom Pedro
I, o Campo de Santana torna-se o teatro dos festejos em substituição do
Largo do Paço.

O efêmero como visibilidade simbólica


Dar visibilidade à realeza é o principal objetivo das grandes come-
morações reais. Para alcançar isso, as formas adotadas se servirão, direta-
mente, de sua própria exposição ou, indiretamente, farão uso da represen-
tação, como é o caso das arquiteturas efêmeras. Elas se tornam os meios
para transmitir a visibilidade simbólica do rei.

Durante o período joanino, as arquiteturas efêmeras fazem parte da-


quilo que Bourdieu denomina produções simbólicas culturais23. A transi-
toriedade de tais produções arquitetônicas não diminui seu sentido, tanto
no que se refere à memória histórica quanto a sua atualidade no sentido
crítico e polêmico em relação ao permanente.

Texto apresentado em outubro/2018. Aprovado para publicação em


dezembro/2018.

23 – BOURDIEU, Pierre. O Poder simbólico. Rio de Janeiro: Editora Bertrand, 1999.

148 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):127-148, jan./abr. 2019.


Ordens honoríficas e sociedade:
a nobilitação de negociantes na Corte joanina

149

ORDENS HONORÍFICAS E SOCIEDADE: A NOBILITAÇÃO


DE NEGOCIANTES NA CORTE JOANINA
HONORARY ORDERS AND SOCIETY: BESTOWING
NOBILITY ON MERCHANTS IN THE JOHANNINE COURT
Camila Borges da Silva1

Resumo: Abstract:
O presente artigo tem como objetivo analisar o We analyze in this article the role of the
papel das ordens militares distribuídas durante o military orders bestowed during the stay
período da estadia da corte portuguesa na Amé- of the Portuguese royal family in America.
rica. Esses instrumentos produziam uma hierar- The decorations would produce a social
quização social, visto que permitiam a entrada hierarchy, since those who received them were
do agraciado na nobreza e, como dependiam da incorporated into the nobility. And since the
realização de serviços diversos para serem obti- orders were only bestowed upon provision
dos, eram utilizados pela Coroa portuguesa com of various services, the Portuguese Crown
o intuito de contribuir para a manutenção do used them as a way of holding together their
próprio Estado. A partir da identificação da pre- own state. We first identified the names of the
sença de nomes pertencentes à elite mercantil merchants that belonged to the commercial elite
que habitava a Corte e que detinha um vasto ca- that inhabited the Court and who held a large
pital entre os condecorados, buscou-se verificar amount of capital among those awarded with a
as formas como esses grupos serviam ao Estado, decoration. We then reviewed the ways in which
constatando-se que eles direcionavam à Coroa they served the State. The findings show that
parte de seu capital econômico com o intuito de they allocated part of their capital to the court
alcançar um lugar social prestigioso naquela so- with the aim of achieving a prestigious social
ciedade, ou seja, de adentrar a nobreza. position in society and becoming a member of
the nobility.
Palavras-chave: D. João IV; corte joanina; or- Keywords: D. João IV; Johannine court;
dens militares; condecorações; comerciantes. military orders; decorations; merchants.

Portugal, no Antigo Regime, assim como outras monarquias basea-


das na hierarquia nobiliárquica, possuía, como instrumento fundamental
para o exercício do poder, as chamadas ordens militares. Tratava-se de
condecorações honoríficas concedidas pelos reis e pelas rainhas portu-
gueses a pessoas que realizassem serviços à Coroa. Esses serviços abran-
giam diferentes esferas de atuação como a ocupação de cargos civis,
eclesiásticos e militares e a participação em guerras, fossem no território
europeu ou nos diferentes espaços do Império Ultramarino.

Inúmeros sentidos atribuídos às condecorações permitiam sua vin-


culação ao seu caráter distintivo. Originalmente, eram ordens militares

1  –  Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Email: camilaborgesbr@gmail.com.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):149-174, jan./abr. 2019. 149


Camila Borges da Silva

ligadas diretamente à Santa Sé, cujos cavaleiros atuaram nas Cruzadas


e no processo de Reconquista Cristã da Península Ibérica. Evidentemen-
te, tinham um profundo sentido religioso na medida em que cada ordem
possuía uma regra, ou seja, compromissos e práticas religiosas às quais o
cavaleiro deveria obedecer como a participação em missas, em orações e
na realização de jejuns. Dessa forma, esses cavaleiros levavam uma vida
monástica quando não estavam servindo em batalha ou auxiliando enfer-
mos, sendo obrigados a votos de pobreza, de castidade e de obediência2.
Com o passar do tempo, contudo, os reis portugueses incorporaram pro-
gressivamente as ordens militares existentes ao seu domínio por meio de
uma série de bulas papais, tornando-se administradores dos Mestrados e,
portanto, grão-mestres das ordens. A mais expressiva delas nessa direção
foi a bula do papa Julio III, de 1551, quando as ordens de Cristo, de São
Bento de Avis e de Santiago foram postas sob a administração direta da
Coroa portuguesa. O caráter religioso das ordens acabaria por legitimar
a exigência de um “sangue puro” para adentrar em uma delas no perío-
do moderno, o que implicava pertencimento às famílias cristãs antigas.
Assim, pertencer a uma ordem validava a linhagem do membro pela via
religiosa, o que era, especialmente, relevante em uma sociedade cujos
princípios cristãos ordenavam as formas de ver o mundo dos sujeitos. Por
outro lado, uma bula passada por Pio V, em 1570, contemplava, igual-
mente, outro princípio: a necessidade de isenção de “ofícios mecânicos”
na linhagem, o que, somado ao sentido de cavalaria das ordens durante
o período medieval, atrelava diretamente o membro à própria nobreza.

Após ser condecorado, o agraciado deveria “professar” em uma igre-


ja ligada à ordem na qual estivesse adentrando e investir-se do hábito,
recebendo os símbolos distintivos relativos a ela. O padre e dicionarista
Raphael Bluteau descreve o hábito como “vestidura” e “vestido” e como
“se chama a insígnia das Ordens de Cristo, Santiago, & Aviz”3. Além do

2  –  Para as ordens militares no período medieval ver DEMURGER, Alain. Os cavalei-


ros de Cristo: as Ordens Militares na Idade Média (sécs. XI-XIV). Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2002.
3 – BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Portuguez e Latino. Coimbra: Collégio das Artes
da Companhia de Jesus, v.2, 1712, p. 5.

150 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):149-174, jan./abr. 2019.


Ordens honoríficas e sociedade:
a nobilitação de negociantes na Corte joanina

hábito, o cavaleiro deveria portar também a medalha da ordem à qual per-


tencesse, tornando visualmente reconhecível o lugar ocupado por ele na
sociedade. Essa era justamente a função da insígnia que, para Bluteau, era
o “sinal, que dá a entender a insigne diferença, que há entre uma coisa e
outra”, elemento que ele exemplifica, entre outros, com as insígnias reais
do cetro e da coroa e com as insígnias das ordens militares4. Se o Antigo
Regime se baseava no princípio da hierarquia e na lógica de que cada um
pertencia a um corpo e que estes eram diferentes entre si, a visibilidade
alcançada pelo cavaleiro se tornava fundamental tanto para ele quanto
para o regime como um todo. Este último, ao desempenhar o papel de
construtor dessas hierarquias e, portanto, de centro de referência da socie-
dade, conseguia capitanear os serviços necessários à própria manutenção
do sistema. Na prática, eram os sujeitos se mobilizando em troca dessas
condecorações e de outras mercês régias que permitiam a ampliação dos
braços da Coroa tanto no Reino quanto nas inúmeras partes do Império
Ultramarino. Esses sujeitos atuavam em função da expectativa de pre-
miação, realizando simultaneamente a tarefa de presentificação do Estado
sem a qual o mesmo não poderia se manter. Entende-se, dessa forma,
que a Coroa dependia dos serviços realizados na expectativa de receber
uma condecoração de maneira que ampliou sobremaneira o número de
condecorados, arriscando, por outro lado, “desvalorizar” as ordens, visto
que era a entrada em um círculo, relativamente, restrito que motivava a
realização de serviços. Descontentava, principalmente, a alta nobreza do
Reino que entendia ser desprestigiada por conta da entrada nas ordens de
um número cada vez maior de pessoas que adquiriam as chamadas “dis-
pensas”. Estas significavam a isenção, mediante graça ou pagamento,
das proibições acarretadas por não serem cristãos velhos ou por terem
“defeito mecânico”, isto é, terem, fosse pelo próprio candidato ou por sua
linhagem, ofícios considerados impeditivos para a entrada nas ordens.
Nesta categoria, estavam os comerciantes, cujo número, segundo Fernan-
da Olival, estava em ascensão nas ordens, saltando para quase metade
do total de agraciados no século XVIII5. Além disso, no meados daquele
4 – BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Portuguez e Latino, v. 2, p. 147.
5 – OLIVAL, Fernanda. As ordens militares e o Estado Moderno. Honra, mercê e vena-

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Camila Borges da Silva

século, os chamados negociantes de grosso trato passaram a ser aceitos


como integrantes das ordens sem necessidade de dispensa. Isso ocorreu
devido a uma mudança na legislação que retirou algumas profissões do
rol de ofícios mecânicos, de maneira que os negociantes ganharam o di-
reito de adentrar nas ordens sem solicitar dispensa6.

A possibilidade de desvalorização alarmou a monarquia por isso,


em 19 de junho de 1789, D. Maria I realizou a reforma das três ordens
militares portuguesas seguindo “o Parecer de muitas pessoas das Ordens,
do Meu Conselho, e outras muito Doutas, e zelosas do serviço de Deus,
e Meu, e da Causa Pública do Estado, que nisto se interessa”. O motivo
para reformá-las foi tornado explícito no próprio corpo da lei, onde se
alegava que
de muitos anos a esta parte se tem de maneira confundido, e perturba-
do a Dignidade, e Consideração Civil, e Temporal das ditas Ordens,
principalmente no provimento dos Cavaleiros delas, que a Eu não au-
xiliar com Providências próprias, e acomodadas a tanta desordem, e
relação, se chegaria por fim ao ponto extremo de elas não serem, nem
consideradas, nem estimadas, como Insígnias de honra; e de dignida-
de7.

Para continuar a motivar uma ampla gama de serviços e, simultane-


amente, não descontentar a alta nobreza portuguesa, a carta de lei previa
uma gradação hierárquica nas ordens por meio da criação da figura dos
grão-cruzes, além dos comendadores e dos cavaleiros. Dessa forma, a
base da pirâmide era composta pelos cavaleiros, que eram sempre em

lidade em Portugal (1641-1789). Lisboa: Estar Editora, 2001, p.185.


6  –  Segundo Olival, mesmo quando o comércio de grosso deixou de ser impeditivo me-
cânico, buscava-se comprovar que o candidato, caso tivesse loja, não tenha permanecido
no estabelecimento e comerciado por si próprio. Isso, porque "o modelo de negociante
que a Mesa da Consciência aceitava nobilitar era aquele que apenas comandava os seus
agentes e criados; vivia dos lucros, como o fidalgo das rendas do seu morgadio, patrimó-
nio, ou bens da Coroa". OLIVAL, Fernanda. As ordens militares e o Estado Moderno, p.
365.
7 – Livro das Leis. Chancellaria-Mor da Corte, e Reino. Lisboa: Impressão Régia, s/d,
p. 552.

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Ordens honoríficas e sociedade:
a nobilitação de negociantes na Corte joanina

maior número; o grau intermediário era ocupado pelos comendadores e


o alto, restrito a um grupo muito pequeno de pessoas, pelos grão-cruzes8.

Para ser elevado a grão-cruz, era necessário ter passado pelo grau de
comendador e ter mais de quarenta anos. Entre os grão-cruzes, estavam
todos os infantes e as infantas de Portugal, que não necessitavam atingir
a idade mínima exigida para todos os demais. Desse modo, chegar a essa
gradação implicava a participação em um seleto grupo. A lei de 1789
delimitava em doze o número de grão-cruzes para além dos membros da
família real, sendo seis na Ordem de Cristo e três nas ordens de São Bento
de Avis e de Santiago9. Posteriormente, em alvará de 10 de junho de 1796,
o número de grão-cruzes nas ordens de Avis e de Santiago foi equiparado
ao da Ordem de Cristo, por se entender que a diferenciação no número
transmitia a imagem de uma desigualdade entre as ordens, o que tanto a
lei de junho de 1789 quanto o alvará subsequente de 15 de setembro de
1789 tentaram sanar10. Na carta de lei, reservava-se ao monarca o direito
à escolha dos contemplados nesse grau de maneira muito mais direta do
que nos demais, visto que os candidatos a cavaleiros, por exemplo, passa-
vam por um processo altamente burocratizado para alcançar a condecora-
ção11. No caso do grão-cruz, D. Maria I previa que
À Dignidade de Grão-Cruz somente será promovida Pessoa, por qua-
lidade preeminente, ou por Serviços Militares, ou Políticos se faça
recomendável, e benemérito dela: devendo reservar-se ao Supremo
Arbítrio do Grão-Mestre o pesar individualmente, e com a maior cir-
cunspecção as circunstancias dos que se propuser honrar com esta

8  –  Nuno Gonçalo Monteiro já havia apontado que a estratégia da Coroa portuguesa


especialmente no século XVIII no que se referia à nobreza era ampliar a baixa nobreza
e restringir o topo. MONTEIRO, Nuno Gonçalo. O crepúsculo dos grandes: a casa e o
patrimônio da aristocracia em Portugal (1750-1834). Lisboa: Casa da Moeda, 1995.
9 – Livro das Leis. Chancellaria-Mor da Corte, e Reino. Lisboa: Impressão Régia, p.
553.
10  –  Alvará de 10 de junho de 1796 transcrito em POLIANO, Luiz Marques. Ordens ho-
noríficas do Brasil (história, organização, padrões, legislação). Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1943, pp.193-194.
11  –  Para o processo burocrático na busca pelas condecorações ver OLIVAL, Fernanda.
As ordens militares e o Estado Moderno, especialmente capítulo 2, item 2.2 e Figura 30
no anexo.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):149-174, jan./abr. 2019. 153


Camila Borges da Silva

Distinção, considerando que deixará de ser prezada logo que se facili-


tar, sem toda a prudência12.

Se, durante o período medieval, o grão-mestre costumava ser esco-


lhido pelos cavaleiros, a partir da incorporação dos Mestrados, o monarca
tornou-se o grão-mestre das ordens. O príncipe herdeiro do trono era, por
sua vez, o comendador-mor, pois cabia a ele assumir os Mestrados após
o falecimento do rei ou rainha13. Por isso, esse lugar foi ocupado por D.
João que, após o afastamento de D. Maria I, reuniu em sua pessoa tanto
o papel de grão-mestre quanto de comendador-mor, não tendo repassado
este último a seu filho.

Como já se mencionou, a lei de 1789 tinha também o objetivo de


aumentar o prestígio das ordens de Avis e de Santiago, visto que elas
eram consideradas menos prestigiosas que a Ordem de Cristo. A valori-
zação dessas duas ordens era, evidentemente, importante para a Coroa,
visto que, dessa forma, tornavam-se instrumentos mais úteis na tarefa de
angariar serviços. Percebe-se essa intenção no fato de que D. Maria I de-
clara na dita lei que passaria a utilizar as insígnias de todas as três ordens,
assim como o comendador-mor, ao invés do costume até então de utilizar
apenas a da Ordem de Cristo. Ela explicita que “não havendo razão para
que sendo Grã-Mestra das Três, pareça pela Insígnia que o Sou somente
de uma; devendo antes honrar e prezar a todas”14. A intenção de valorizar
as duas ordens esbarrava, contudo, na própria lei de junho de 1789, que
atribuía à Ordem de Cristo o prêmio aos altos postos militares, políticos
e civis, enquanto a Ordem de Avis premiava os serviços ao longo das
trajetórias militares e a Ordem de Santiago era atribuída a “pessoa que
sirva na magistratura até o lugar de desembargador dos agravos da casa
de suplicação”15. De acordo com Fernanda Olival, tradicionalmente, os

12 – Livro das Leis. Chancellaria-Mor da Corte, e Reino. Lisboa: Impressão Régia, p.


553. Grifo meu.
13 – Livro das Leis. Chancellaria-Mor da Corte, e Reino. Lisboa: Impressão Régia, p.
552.
14 – Livro das Leis. Chancellaria-Mor da Corte, e Reino. Lisboa: Impressão Régia, p.
552.
15 – Livro das Leis. Chancellaria-Mor da Corte e Reino. Lisboa: Impressão Régia.

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Ordens honoríficas e sociedade:
a nobilitação de negociantes na Corte joanina

hábitos de Avis e de Santiago eram concedidos a pessoas não fidalgas


e compreendidos como um primeiro degrau para alcançar a Ordem de
Cristo16. Os casos de solicitação de transferência daquelas ordens para
esta última também apontavam para uma certa hierarquização entre elas
aos olhos dos pretendentes17. Além disso, se, por um lado, a própria lei
de junho de 1789 queria sanar a hierarquização entre as ordens, acabava
por ratificá-las, visto que, no artigo XX, estabelece a precedência dos
condecorados em cerimônias públicas, apontando que os grão-cruzes de
Cristo antecederiam os de Avis e os de Santiago. As precedências, em
cerimônias públicas do Antigo Regime, eram extremamente importantes,
pois atuavam na consolidação da hierarquia, visto que a concretizava pelo
simples fato de explicitá-la aos olhos do público e dos pares. Assim como
o artigo que estipulava o número de grão-cruzes de cada ordem teve que
ser “corrigido” em alvará posterior, também o artigo das precedências foi
objeto do já mencionado alvará de 15 de setembro de 1789, que regulava
que não haveria precedência entre os grão-cruzes das ordens e que o úni-
co critério seria o de corte propriamente dito18.

A corte no Rio de Janeiro: angariando serviços


Como se apontou, a principal estratégia da Coroa portuguesa ao re-
alizar a reforma das ordens foi ampliar a base da pirâmide, de cavaleiros,
para continuar a receber inúmeros serviços, e estreitar o topo, de modo
que não descontentasse a alta nobreza portuguesa. Embora desde o perí-
odo da regência de D. João em Portugal já tenha ocorrido uma ampliação
dessa base, essa tática continuou a ser implementada e intensificada no
Rio de Janeiro, a partir de 1808. Assim, somente sete pessoas receberam
a grã-cruz da Ordem de Cristo, seis a de Avis e oito a de Santiago. Já o
grau de comendador de Cristo contemplou 443 pessoas e o de cavaleiro
de Cristo, 3.635 pessoas. A Ordem de Avis, por sua vez, recebeu 136
16 – OLIVAL, Fernanda. As Ordens Militares e o Estado Moderno ..., p. 141.
17  –  Para alguns desses casos de transferência, ver SILVA, Camila Borges da. As ordens
honoríficas e a independência do Brasil: o papel das condecorações na construção do
Estado Imperial Brasileiro (1822-1831). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2018, p. 51.
18  –  Cf. Alvará de 15 de setembro de 1789, transcrito em POLIANO, Luiz Marques.
Ordens honoríficas do Brasil, p. 192.

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Camila Borges da Silva

comendadores e 1.279 cavaleiros e a Ordem de Santiago apenas 15 co-


mendadores e 83 cavaleiros19. O baixo número de condecorados nessa
última ordem demonstra que, de todas, era efetivamente a que menos
despertava o desejo dos vassalos reais, de modo que foi pouco mobilizada
pelo monarca.

Se tomarmos o perfil dos grão-cruzes, perceberemos as diferenças


entre as ordens, visto que, neste grau, na Ordem de Cristo, encontram-
-se, em sua maioria, pessoas já com títulos como marqueses, condes e
“dons”, além de príncipes de casas reais estrangeiras como o príncipe
Metternich Wisnebourg Ochenhausen da Áustria. Na lista de grão-cruzes
da Ordem de Avis e de Santiago, por sua vez, aparecem pessoas sem ti-
tulação. Dessa forma, entre os grão-cruzes de Avis, encontram-se nomes
como Bernardim Freire de Andrade, condecorado em 21 de dezembro de
1808, José Caetano de Lima, em 17 de dezembro de 1814, e Francisco de
Paula Leite, em 13 de maio de 1820. Estes, contudo, aparecem em meio a
titulados como o conde de Itaparica, o conde das Galveas e o marquês de
Marialva. Ocorre o mesmo na Ordem de Santiago, visto que pessoas sem
titulação como José Narciso de Magalhães, Francisco da Cunha e Mene-
zes e Antônio Soares de Noronha alcançam o título em 11 de setembro
de 1809, em 13 de maio de 1812 e em 17 de dezembro de 1813, respec-
tivamente. Entretanto, na listagem dos grão-cruzes de Santiago, titulados
como, o conde de Cavaleiros, o conde de Funchal e o Marquês de Borba
também se fazem presentes.

Se o título de grão-cruz era concedido apenas a um grupo muito


restrito, o número de pessoas compreendidas na base da pirâmide, de ca-
valeiro, era gigantesco, conforme expusemos mais acima. Isso fazia com
que esse grau, embora também um importante elemento de distinção, não
trouxesse um enorme prestígio, situando o condecorado na baixa nobre-
za. Por isso, é possível compreender o motivo pelo qual os grandes nego-
ciantes estabelecidos na praça do Rio de Janeiro, que financiaram, de uma

19  –  Arquivo Nacional, cód. 790. Foi tomado como data de corte para o cômputo dos
agraciados o mês de abril de 1821, quando d. João VI retorna a Portugal.

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Ordens honoríficas e sociedade:
a nobilitação de negociantes na Corte joanina

forma ou outra, tanto o Império português quanto a estadia da corte no


Rio de Janeiro, fossem alocados no grau intermediário, de comendadores.

A classificação dos negociantes em grandes, médios e pequenos é um


elemento complexo, sobretudo em virtude da grande variedade de suas
atividades. Analisando o caso de Minas Gerais, no século XVIII, Júnia
Furtado aponta que havia “negociantes de grosso trato, mercadores a re-
talho de secos ou molhados, lojistas, taverneiros, tratantes, tendeiros, cai-
xeiros, escriturários, mascates, viandantes dos caminhos, lavradores que
comerciavam seus gêneros, comboieiros de escravos etc”. Havia também
a distinção entre o comércio considerado fixo, ou seja, realizado em lojas,
vendas e tavernas, e o comércio volante, realizado por mascates, viandan-
tes, comboieiros e negras do tabuleiro. Um comerciante, contudo, podia
atuar em vários desses setores, o que incluía o grande negociante. Estes
últimos podiam diversificar suas atividades abrindo lojas comerciais fi-
xas e empregando agentes responsáveis por elas, não deixando ainda de
enviar mercadorias para o interior, além de financiarem “comerciantes
de pequeno porte e volantes”, o que implicava atividades usurárias além
das mercantis20. Segundo ela, isso torna mais complexa a classificação
que identifica o grande negociante como o que atuava apenas no “grande
comércio” e que desenvolvia atividades financeiras, o médio comerciante
como os proprietários de lojas fixas e o pequeno como aquele que fazia o
comércio ambulante, sem estabelecimento fixo21.

Antônio Carlos Jucá de Sampaio, por sua vez, analisando os nego-


ciantes do Rio de Janeiro entre 1650 e 1750, conclui que a distinção en-
tre o pequeno capital mercantil e a elite seria especialmente a escala do
comércio, visto que, muitas vezes, o mercador envolvia-se nas mesmas

20 – FURTADO, Júnia. Homens de negócio: a interiorização da metrópole e do comér-


cio nas Minas setecentistas. São Paulo: Hucitec, 2006, p. 230, 231 e 240.
21  –  Esta classificação aparece em BOXER, Charles. A Idade de Ouro do Brasil: 1695-
1750. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. Para outra autora que aborda o comércio na
região das Minas, ver CHAVES, Cláudia Maria das Graças. Perfeitos negociantes: mer-
cadores das Minas setecentistas. São Paulo: Annablume, 1999 e ___.Comerciantes das
Minas setecentistas: a diversidade de atuação no mercado colonial. Cadernos de Filosofia
e Ciências Humanas, ano VI, n.10, pp. 135-143, UFMG, Belo Horizonte, 1998.

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Camila Borges da Silva

atividades do que o negociante. O mercador, todavia, atuava prioritaria-


mente no abastecimento interno, não tendo sido identificada sua presença
de forma assídua nos eixos intercontinentais centrais para a colônia como
Portugal e África. Além disso, uma outra diferença seria que o mercador
tendia a restringir-se a alguns poucos ramos da atividade comercial, visto
que não possuía capital para uma grande variedade de setores. Os ramos
nos quais atuavam se tornavam mais visíveis quando, na própria fonte,
era adotado algum tipo de classificação como, por exemplo, “mercador
de loja”. Para Sampaio, o pequeno capital investia mais diretamente em
lojas no Rio de Janeiro, atividade em que os “homens de negócios” não
aparecem. Tratar-se-ia, portanto, de uma distinção em relação ao caso de
Minas Gerais e mesmo da Bahia, onde Rae Flory já havia identificado
a presença do grande capital também no comércio fixo22. As diferenças
centrais entre mercadores e negociantes são, portanto, para Sampaio, o
tamanho da riqueza e a diversificação dos investimentos, pois o grande
negociante atuava em vários setores simultaneamente e com grande vulto
de capital. Entretanto, além disso, a elite de negociantes concentrava-se
no comércio que trazia maior capital - o intercontinental - atuando menos
no comércio interno do que os mercadores23.

Abordando mais diretamente o perfil da elite de negociantes no sé-


culo XIX24, João Fragoso e Manolo Florentino já haviam apontado que se
tratava de um grupo bastante restrito, o que indicava uma hierarquia mer-

22 – FLORY, Rae. Bahia Society in the Mid Colonial Period: the sugar planters, tobacco
growers, merchants, and artisans of Salvador and the Recôncavo, 1680-1725. Tese - Uni-
versidade do Texas, Austin, 1978. A mesma informação foi confirmada mais recentemente
por SOUSA, Avanete Pereira. A Bahia no século XVIII: poder político local e atividades
econômicas. São Paulo: Alameda, 2012. Para a análise dos comerciantes na região do Rio
Grande, ver OSÓRIO, Helen. Estancieiros, lavradores e comerciantes na constituição da
estremadura portuguesa na América: Rio Grande de São Pedro, 1737-1822. Tese (Douto-
rado em História) - UFF, Niterói, 1999.
23  –  SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Na encruzilhada do Império: hierarquias so-
ciais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (c.1650-c.1750). Rio de Janeiro: Arqui-
vo Nacional, 2003.
24  –  Riva Gorenstein já havia abordado a presença desses comerciantes nas primeiras
décadas do século XIX. Cf. GORENSTEIN, Riva. O enraizamento de interesses mercan-
tis portugueses na região do Centro-Sul do Brasil (1808-1822). Dissertação (Mestrado
em História) - USP, São Paulo, 1978.

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cantil bastante concentrada. Era caracterizado, especialmente, pela atua-


ção nas trocas internacionais, embora tivesse investimentos em proprie-
dades urbanas e rurais, no mercado de ações e em seguradoras. A atuação
no comércio internacional de longo curso era aquilo que os possibilitava
ser uma das pontas de uma cadeia de “adiantamento/endividamento” que
abarcava toda a sociedade colonial e, inclusive, os comerciantes de menor
estatura, permitindo que esses negociantes controlassem os mecanismos
de reprodução da própria sociedade, visto que, por suas mãos, passavam
todos os gêneros destinados à exportação e todas as mercadorias e mãos
de obra necessárias para a produção e para a vida, em geral, naquele sis-
tema25.

A corte estabelecida no Rio de Janeiro não poderia abdicar do auxí-


lio dos serviços monetários desses comerciantes devido às dificuldades
financeiras em que se encontrava naquele contexto, envolvida que estava
com uma guerra no território europeu, em conflitos na América que se
fizeram presentes durante todo o período da estadia da corte, no sustento
do Estado que, além de transferir todo o aparato burocrático e uma cor-
te para o Rio de Janeiro, o que exigia gastos para alocar e para adaptar
a cidade para seu recebimento, buscou também recompensar, por meio
de pensões, aqueles que mostraram fidelidade à Coroa e se transferiram
também para a América. Se observarmos os dispêndios pecuniários rea-
lizados pelo grupo dos grandes negociantes, podemos perceber o quan-
to a Coroa se beneficiava, pois se tratavam de serviços que garantiam
diretamente o sustento da monarquia. Um dos exemplos, nesse sentido,
era a participação desses comerciantes nas festividades e nas celebrações
especiais ocorridas no Rio de Janeiro. Muitos deles financiaram a cons-
trução de arcos que tinham o intuito de celebrar o poder real e reafirmar
seu esplendor aos olhos dos súditos. Neste caso, a beleza e a imponência
do arco, bem como os elementos simbólicos que apontavam a grandeza
da monarquia, eram cuidadosamente pensados de modo que valorizas-
sem e dessem visibilidade àquele que havia encomendado a obra, que,
25  –  FRAGOSO, João e FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto: mercado
atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia. Rio de
Janeiro, c.1790-c.1840. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 198.

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evidentemente, não deixava de ter seu nome destacado. Com esse intuito,
artistas franceses chegados em 1816 eram contratados para realizarem
verdadeiras obras de arte a céu aberto. Em 1817, no momento da chegada
ao Rio de Janeiro da princesa real da Áustria, D. Carolina Josefa Leopol-
dina, que havia casado por procuração com o príncipe real D. Pedro em
Viena, erigiu-se um arco romano na rua Direita patrocinado pelo “corpo
do comércio” com a administração de dois grandes negociantes, Joaquim
José Pereira do Faro e Francisco Pereira de Mesquita. O arco foi realizado
pelo arquiteto Grandjean de Montigny e pelo pintor Jean Baptiste Debret
e, de acordo com a narrativa do padre Luiz Gonçalves dos Santos, ocu-
pava toda a largura da rua, tendo ainda “cinquenta palmos” de altura. O
material com que foi construído imitava um mármore branco e possuía,
em seus lados, “as figuras do Rio de Janeiro, e do Danúbio”, simbolizadas
pelas armas do Reino Unido, ao qual o Brasil foi incorporado em 1815,
e pelas águias do Império Austríaco, respectivamente. Em baixo relevo,
apareciam “em bronze dourado os emblemas do antigo, e novo mundo”
e o caduceu do comércio “em ação de fazer sacrifícios”. Continha ainda
duas figuras da Fama, uma das quais depositava sobre o altar do Himeneu
as iniciais P, de Pedro, e C, de Carolina. Além disso, o arco todo tinha
inúmeros festões feitos de flores com as iniciais de D. Pedro e D. Leopol-
dina com “medalhões revestidos de seda cor de ouro e além de outros de
seda azul, cujas letras P C eram de ouro”. Em ambos os lados da cornija,
lia-se: “À Feliz União, o Commercio”26. Além do arco descrito acima, a
rua Direita recebeu mais dois deles, que acabavam competindo na busca
pela visibilidade de seus patrocinadores.

Percebe-se que, por meio das representações presentes no arco, os


comerciantes reforçavam não apenas a monarquia portuguesa, mas a im-
portância da América, e, especialmente, do Rio de Janeiro no Reino. Um
processo de disputa simbólica pela permanência da Corte, após o fim da
guerra em Portugal, que apareceria ainda em outros arcos. Não deixavam
igualmente de destacarem seu papel no engrandecimento da monarquia,

26  –  SANTOS, Luiz Gonçalves dos. Memórias para servir à História do Reino do Bra-
sil. 2t. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981, tomo II, p. 129.

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visto que várias partes do arco destacavam seu financiamento por parte
deles.

Enquanto alguns comerciantes atuavam coletivamente, outros pre-


feriam custear sozinhos essas esculturas. O negociante Amaro Velho da
Silva, por exemplo, mandou erguer um verdadeiro monumento de treze
arcos em frente às suas casas, na Glória, no período da aclamação de D.
João VI, em 1818. Os arcos eram compostos de iluminação no centro
onde foi colocado um templo da imortalidade, dentro do qual os gênios
de Portugal, Brasil e Algarves, partes que compunham o Reino Unido,
eram representados “abraçando-se mutuamente e jurando fidelidade”.
Na empena do templo, foi posta a inscrição “J VI”, sendo que, ao lado
direito, aparecia a figura da Justiça e, ao lado esquerdo, a da Verdade.
Viam-se também as figuras da Memória, que trazia, em uma das mãos,
um livro com os dizeres “o imortal João VI” e, em outra, uma pena, e da
América, a qual retirava, com uma mão, o cocar da cabeça e, com outra,
colocava a coroa real. Retratava-se, junto à figura da América, a Aurora
que, no horizonte, conduzia à Razão e à Abundância. Todo o conjunto era
complementado com dez lustres, gênios de mármore, cornucópias bron-
zeadas, leões e uma pirâmide, além de mil e quinhentas luzes. Segundo
Luiz Gonçalves dos Santos, o monumento foi um dos escolhidos para ser
visitado pelo rei e pela família real27.

Mais uma vez, está presente a glorificação da monarquia que, nos


arcos, foi atrelada a aspectos positivos como justiça, verdade, imortali-
dade e memória. Por meio desses signos, a Coroa se beneficiava dos ele-
mentos simbólicos apresentados para a população mais ampla, sem que
precisasse despender qualquer recurso de seus cofres. Evidentemente, a
contrapartida explícita presente no monumento era a própria permanência
da corte, uma vez que a América era aquela que retirava o cocar e colo-
cava, em seu lugar, a própria coroa. Implícita estava a mensagem que era,
na América, que a monarquia portuguesa teria a possibilidade de realizar
sua grandeza, visto que, enquanto esta figura colocava a coroa, a aurora
27  –  SANTOS, Luiz Gonçalves dos. Memórias para servir à História do Reino do Bra-
sil..., tomo II, p. 172 e 173.

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representada no horizonte direcionava para a abundância, mas apenas por


meio da razão, ou seja, a decisão mais acertada, mais racional, seria per-
manecer. A riqueza estava atrelada também ao papel do comércio, ambos
simbolizados pela cornucópia. Por fim, os laços que uniam o reino de
Portugal ao Brasil eram também explicitados por meio das figuras dos
gênios que se abraçavam e juravam fidelidade dentro de um templo dedi-
cado à imortalidade, o que apontava para a indissolubilidade desses laços.
A visita da família real tanto valorizava o esforço do comerciante quanto
a própria escultura, que era ressaltada, dessa forma, como significativa
para a população, possivelmente, atraindo um público mais amplo que
visitaria o monumento. A presença ilustre implicava também uma apro-
vação dada pela coroa ao conteúdo simbólico presente nos arcos que,
como apontado, a enaltecia, embora, por outro, construía obrigações por
meio da lógica da reciprocidade. Financiar esses arcos, não era, com isso,
uma ação inocente ou meramente altruísta, pois se intencionava produzir
compromissos entre o governo e o patrocinador.

Amaro Velho da Silva, por conta de sua posição como grande nego-
ciante, já havia alcançado inúmeras distinções extremamente significati-
vas para uma sociedade de Antigo Regime. Logo no momento do desem-
barque da família real no Rio de Janeiro, ele foi escolhido para carregar
uma das varas do pálio no qual estavam D. João e D. Carlota. Isso, pro-
vavelmente, aconteceu, porque a Coroa já tinha conhecimento dos nomes
dos principais negociantes que habitavam a cidade, já que, em 1799, foi
realizado um levantamento dos principais comerciantes situados no Rio
de Janeiro28. Além disso, cedo conseguiu recompensas, pois, em 1808,
recebeu o grau de cavaleiro da Ordem de Cristo. Como apontado, por se
tratar de uma das grandes fortunas do Rio de Janeiro, rapidamente ascen-
deu na Ordem, tendo sido condecorado comendador da mesma em 1811.
Além disso, em 20 de agosto de 1812, recebeu, juntamente a seu irmão,
Manoel Velho da Silva, o título do Conselho, uma grande honraria29, por-
que implicava oferecer aconselhamento ao rei por meio de pareceres30.
28  –  FRAGOSO, João e FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto..., p. 202.
29 – Gazeta do Rio de Janeiro, 26 de agosto de 1812, nº 69.
30 – RAMINELLI, Ronald. Nobrezas do novo mundo: Brasil e ultramar hispânico, sécu-

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A ereção de monumentos em celebrações públicas era apenas uma


das formas dos comerciantes prestarem serviços à Coroa. Além disso,
eles poderiam financiar obras públicas como aquedutos, iluminações ur-
banas e estradas, ajudar no pagamento das tropas envolvidas ou não em
conflitos, na construção de navios, realizar doações de gêneros diversos
ao Estado etc. Tratando-se de grandes fortunas e de negociantes, uma das
melhores formas de realizar serviços era, evidentemente, pela via pecu-
niária. Entre os serviços dessa natureza, encontravam-se não apenas as
doações diretas feitas à Coroa, mas também as “indiretas”, que acabavam
por poupar dispêndios do bolso real, como os exemplos citados acima. As
doações, contudo, fossem diretas ou indiretas, não representavam uma
“venda” de insígnias, visto que era proibido que se afixassem preço para
elas. Em alguns momentos, contudo, a Coroa chegou próximo de atrelar
as condecorações a uma questão monetária explicitamente, como na lei
de 3 de dezembro de 1750, na qual o capítulo IX do parágrafo quarto
estabelece a concessão de mercês e de honrarias para quem fizesse entrar
oito arrobas de ouro em uma Casa de Fundição. De qualquer forma, tam-
bém neste caso não se previa a fixação de um preço para a condecoração.
O custo evidente de vendê-las diretamente era a própria perda do sentido
simbólico dessas condecorações, muito ligadas à percepção de uma hie-
rarquia social nobiliárquica e, portanto, não marcadas pela hierarquização
pela via econômica.

Os serviços pecuniários permitiam angariar recursos, sem a neces-


sidade de colocar um preço nas insígnias, o que, de outro modo, acabava
por ser muito vantajoso para a Coroa. Se o candidato à condecoração não
sabia ao certo o quanto ela custaria, o potencial que gastasse uma soma
considerável com a intenção de mostrar seus “préstimos” à monarquia
se tornava maior. O montante doado poderia significar a alocação em
um grau maior ou menor de uma ordem, embora não fosse determinante.
Isso, porque, como esse tipo de serviço não estava determinado em ne-
nhuma legislação, o interessado precisava assegurar por outras formas
que seu interesse não esbarraria no parecer do fiscal das mercês, que tinha

los XVII e XVIII. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015, p. 108.

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por função verificar se a pretensão do requerente era condizente com toda


a legislação das ordens. Por isso, muitos negociantes optavam também
por adquirir algum tipo de patente militar, adentrando as milícias ou os
corpos de ordenança, que garantia que tivessem uma posição adequada
para receber a insígnia tal como previa a legislação. Conforme já mencio-
nado, a lei de D. Maria I, de 1789, apontava claramente a relação entre as
insígnias e os cargos ocupados. Como negociante não era cargo e doação
financeira não estava prevista em nenhuma legislação, portanto, era ne-
cessário assegurar minimamente o cumprimento da legislação, embora,
no caso do grau de cavaleiro de Cristo, fosse mais factível que um pre-
tendente que fosse apenas negociante alcançasse sucesso. Assim, muitos
buscavam cargos e patentes, mesmo que, ao fim e ao cabo, a condecora-
ção fosse concedida em função de um aspecto econômico.

Durante o período da estadia da corte portuguesa no Rio de Janei-


ro, os serviços pecuniários realizados eram extremamente variados e, até
mesmo, surpreendentes. O negociante Elias Antônio Lopes, por exemplo,
cedeu sua residência, a Quinta da Boa Vista, para moradia da família real,
tendo recebido o título de cavaleiro da Ordem de Cristo em maio de 1808
e, no mesmo mês, foi promovido a comendador da mesma Ordem.

Na busca pelas mercês régias, os negociantes se preocupavam em


tornar os serviços realizados visíveis, de modo que o pretendente assumi-
ria uma posição de prestígio aos olhos da sociedade. Ao mesmo tempo,
a visibilidade, especialmente das doações, era um elemento importante
também para o Estado, visto que, dessa forma, ela estimulava mais ser-
viços ao promover uma espécie de “competição” entre os doadores. Um
exemplo dessa visibilidade é o fato de que listas com nomes de pessoas
que forneciam algum tipo de ajuda financeira à Coroa eram exibidas re-
gularmente na Gazeta do Rio de Janeiro, periódico estabelecido após a
chegada da família real portuguesa e publicado pela Impressão Régia.
Em outubro de 1808, a Gazeta já divulgava listas de subscrição onde
constavam negociantes do Rio de Janeiro. O objetivo da lista era auxiliar
pecuniariamente o Reino de Portugal na guerra acarretada pela invasão
das tropas francesas em seu território e que motivou a própria transferên-

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cia da corte. Nestas listas, aparecem comerciantes como Antônio Gomes


Barroso e Francisco Caetano Pinto, que doaram 400$000 e 100$000, res-
pectivamente31.

Em alguns casos, eram os próprios comerciantes que organizavam as


listas de subscrição e divulgavam na Gazeta. Em 2 de abril de 1817, por
exemplo, o jornal anunciava que “Capitalistas, Proprietários, Negocian-
tes, e Pessoas de todas as classes” haviam subscrito “espontaneamente
para as despesas do Estado”, que se encontrava “na urgência atual”. Em-
bora o jornal não aponte o motivo das doações, é provável que se referisse
à revolução que havia tomado Pernambuco no mesmo ano. Segundo o
periódico, aqueles que quisessem participar com doações, deveriam se
dirigir às casas comerciais pertencentes aos negociantes João Rodrigues
Pereira de Almeida, Francisco Xavier Pires, Amaro Velho da Silva e Fer-
nando Carneiro Leão. A Gazeta reforçava que todos os que colaborassem
teriam seus nomes publicados nas listas impressas por ela, seguindo o que
se fazia para aqueles que “tem já dirigido às Autoridades públicas os seus
donativos e oferecimentos por esta ocasião”. Os nomes responsáveis pela
lista compunham as maiores fortunas da cidade e, por meio dessa ação,
ganhavam maior visibilidade e maior respeito na corte.

Os esforços promovidos pelos comerciantes, especialmente os de


alto cabedal, que implicavam gastos consideráveis de suas fazendas em
prol do Estado, demonstram que a busca por uma visibilidade que pu-
desse se converter em mercês e em signos de prestígio se dava, muitas
vezes, em oposição a um interesse econômico mais direto. Embora as
condecorações pudessem se reverter em ganhos monetários, o montante
gasto por alguns desses nomes superava o retorno financeiro. O Estado,
por sua vez, em função de suas necessidades ampliou “o leque das mercês
honoríficas [...] a um número muito maior de indivíduos naturais do Bra-
sil, ou que aqui tinham desempenhado suas atividades”32. Isso demonstra
que as representações que permeavam aquela sociedade eram ainda muito

31 – Gazeta do Rio de Janeiro, 14, 19 e 22 de outubro de 1808.


32  –  SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Ser nobre na colônia. São Paulo: Editora Unesp,
2005, p. 11.

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atreladas à lógica do Antigo Regime, ou seja, de uma sociedade cujos


critérios de hierarquização social ainda se embasavam no modelo nobili-
árquico, a despeito do desenvolvimento de atividades comerciais e finan-
ceiras por parte de setores da sociedade. Estas atividades, embora muito
rentáveis, ainda não embasavam a construção de uma ordem hierárquica.
Capital econômico não se revertia, portanto, em capital social, de modo
que a busca dos grandes negociantes para ocupar um lugar social era ain-
da marcada pelas representações do que, para nós, se convencionou cha-
mar de Antigo Regime. Para isso, utilizavam de seu capital econômico
em busca do capital social.

A possibilidade de os grandes negociantes alcançarem a nobilitação


foi dada pela legislação Josefina, quando foi permitido à elite mercantil
adentrar a nobreza civil, que, até então, era compreendida pelas digni-
dades eclesiásticas e por aqueles que ocupassem cargos ligados à Co-
roa. Nesse sentido, foi estipulada uma diferença entre os negociantes que
atuavam no grande comércio transatlântico e aqueles que atuavam nas
escalas intermediária e baixa do comércio. Isso gerou uma produção por
parte de tratadistas da nobreza que buscaram justificar e explicar essa
mudança de interpretação. Um destes tratadistas, Luís da Silva Pereira
Oliveira, afirmava que havia uma diferença entre o pequeno comerciante
e o grande, porque este último atuaria em um setor de muita importância,
de modo que os reis deveriam promovê-lo e honrá-lo, enquanto os peque-
nos, que atuavam em lojas, vendas e botequins vendendo a retalho, “en-
trando no comércio por uma porta tão baixa e estreita, longe de ganharem
nobreza, perdem e derrogam a que tiverem”33. Manuel Luís da Veiga, por
sua vez, afirmou que os grandes negociantes eram aqueles que “tratam
nobremente sem retalhar, nem varejar suas fazendas, como costumam
os mercadores de panos e outros lojistas, que vendem por miúdo suas
mercadorias”34. Por isso, segundo Maria Beatriz Nizza da Silva, aqueles

33  –  OLIVEIRA, Luís da Silva Pereira. Privilégios da nobreza e fidalguia de Portugal.


Lisboa, 1806. Apud SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Ser nobre na colônia..., p. 175.
34  –  VEIGA, Manuel Luís da. Escola mercantil sobre o comércio assim antigo como
moderno entre as nações comerciantes dos velhos continentes. Lisboa, 1803. Apud SIL-
VA, Maria Beatriz Nizza da. Ser nobre na colônia..., p. 175.

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que haviam sido incluídos na nobreza civil “eram aqueles que participa-
vam como acionistas nas Companhias Gerais de Comércio, aqueles que
serviam de deputados da Junta do Comércio, aqueles que frequentavam a
Aula de Comércio para adquirir o saber necessário à sua arte”35. Por conta
dessas transformações, esses grandes negociantes deixaram de necessitar
de “dispensa de mecânica” ao solicitarem mercês honoríficas, o que não
se aplicava ao pequeno e ao médio comerciante. Esse processo foi tam-
bém acompanhado de uma mudança semântica, pois, segundo Silva, a
palavra mercador deixou de ser aplicada ao grupo mercantil de alta renda
na segunda metade do século XVIII, o que remontava à sua valorização
desde o ministério pombalino36.

Apesar, entretanto, das mudanças semânticas, legais e da necessi-


dade dos serviços e, especialmente, do capital dos grandes negociantes
do Rio de Janeiro, o número de agraciados entre este grupo representava
uma porcentagem bastante pequena, se compararmos com a quantida-
de de condecorações concedidas. Aqueles que atingiram a recompensa
não raro compunham o círculo restrito das altas fortunas da cidade. Entre
1808 e abril de 1821, 15 negociantes alcançaram a comenda de Cristo e
85 foram feitos cavaleiros da mesma ordem. Isso em um universo, como
já mencionado, de 443 comendadores e 3.635 cavaleiros. Nenhum deles
conseguiu atingir o grau de grão-cruz de Cristo37.
35  –  SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Ser nobre na colônia..., p. 175.
36  –  SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Ser nobre na colônia..., p. 176.
37  –  Arquivo Nacional. Índice de Condecorações das Ordens de Cristo, S. Bento de Aviz
e S. Tiago – cód. 790 e Listagem de Matrículas de Negociantes de Grosso Tracto – Real
Junta do Comércio – cód. 170. É importante ressaltar que o levantamento enfatizou os
comerciantes de maior cabedal e matriculados no livro de registro de comerciantes de
grosso trato, entre 1808 e 1821. Buscou-se superar as dificuldades impostas pela varie-
dade de formas de escrita dos nomes, visto que, em algumas vezes, letras e até mesmo
sobrenomes aparecem trocados ou escritos de maneira incompleta. Foram identificados
ainda alguns casos em que a pessoa matriculou-se após o recebimento da condecoração
como, por exemplo, um Carlos José Moreira, que se registrou, em 1811, tendo recebido
o hábito de cavaleiro de Cristo em maio de 1808, um Manoel Lobo de Sousa Bastos, ma-
triculado em 1813, e cavaleiro de Cristo em maio de 1811 e um José Antônio de Oliveira
Guimarães, matriculado em 1812, e cavaleiro de Cristo em maio de 1810. Neste último
caso, o mesmo nome aparece novamente entre os contemplados com a cavalaria de Cristo
em abril de 1820. Pode tratar-se de um erro, tendo-se concedido uma segunda condeco-
ração sem perceber que ele já havia sido contemplado, como algumas vezes ocorria, ou

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Se compararmos o caso dos negociantes com as pessoas já tituladas,


a estratégia da Coroa de ampliar a base e restringir o topo se torna eviden-
te. Durante a estadia da corte, 44 titulados (fossem condes, marqueses,
viscondes ou “dons”38) receberam a comenda de Cristo, ou seja, mais que
o dobro do número de negociantes agraciados. Em contraposição, os titu-
lados são diluídos no grau de cavaleiro. Apenas 27 deles aparecem neste
grupo sendo, neste caso, majoritariamente pessoas com a denominação
de “dom”, 24 deles, aos quais se somam um visconde, um conde e um ba-
rão. Dessa forma, há uma maior presença desses titulados nos patamares
mais altos, onde se invertem também os tipos de títulos com maior pre-
sença. Entre os comendadores, estão mais bem representados marqueses,
condes, barões e viscondes, perfazendo um total de 25 deles, enquanto os
“dons” são minoria, 19. Isso é o inverso do que ocorre com os negocian-
tes que se encontram, em sua maioria, na base, sendo o nível intermedi-
ário reservado para aqueles com alto cabedal, estando ainda ausentes do
grau mais distintivo: a grã-cruz. Da mesma maneira, se tomarmos como
ponto de partida o universo dos comerciantes matriculados na Junta do
Comércio do Rio de Janeiro, percebemos que eles se encontram pouco re-
presentados entre os condecorados. De um total de 343 comerciantes que
se registraram, entre 1808 e abril de 1821, foi possível identificar apenas
58 entre os condecorados com a Ordem de Cristo39.

Se os comerciantes ficavam restritos aos graus de cavaleiro e de co-


mendador, este último só estava acessível às mais altas fortunas do Rio

poderia se tratar de outra pessoa com o mesmo nome ou até um parente do agraciado em
1810. Outros casos semelhantes foram também identificados. Outro aspecto importante
que deve ser ressaltado é que, para a análise das condecorações concedidas a comercian-
tes, estabeleceu-se como objeto de análise a Ordem de Cristo. Isso, porque das demais
ordens, uma, a Ordem de Avis, foca-se apenas em serviços militares, enquanto a outra, a
Ordem de Santiago, é destinada à magistratura.
38  –  Segundo Maria Beatriz Nizza da Silva, “Dom” era uma forma de tratamento desti-
nada, de acordo com o alvará de 3 de janeiro de 1611, aos bispos, aos condes, aos filhos
de fidalgos da Casa Real, aos filhos bastardos dos titulares e aos desembargadores. SILVA,
Maria Beatriz Nizza da. Ser nobre na Colônia..., p.26.
39  –  Arquivo Nacional. Índice de Condecorações das Ordens de Cristo, S. Bento de Aviz
e Santiago – cód. 790 e Listagem de Matrículas de Negociantes de Grosso Tracto – Real
Junta do Comércio – cód. 170.

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de Janeiro que aproveitavam a situação privilegiada para abarcar o maior


número de membros da família nessas mercês. Dessa forma, conquistar
um título era, muitas vezes, uma estratégia familiar, pois tanto era possí-
vel renunciar à sua condecoração em nome de um terceiro, como se podia
doar os serviços realizados para seus herdeiros e seus familiares. Por isso,
mesmo depois de agraciado, era possível que a pessoa continuasse a ser-
vir com esse intuito.

Vejamos então algumas das principais famílias que atuavam no co-


mércio de grosso trato. No caso do citado Amaro Velho da Silva, seu
parente, Amaro Velho da Silva Sobrinho, recebeu a comenda da Ordem
de Cristo, em maio de 1809, e Manoel Velho da Silva, a mesma distin-
ção em maio de 1811. O mesmo se observa na também importante fa-
mília de negociantes Gomes Barroso. Temos Antônio Gomes Barroso,
comendador da Ordem de Cristo em outubro de 1810, Antônio Gomes
Barroso Júnior, comendador da mesma Ordem, em fevereiro de 1818,
e João Gomes Barroso, comendador da dita Ordem, em novembro de
1820. A família Gomes Barroso continuou sua estratégia familiar mes-
mo depois da volta de D. João VI para Portugal, visto que João Gomes
Barroso assegurou para seus filhos, Alexandre Alves Gomes Barroso e
Antônio Alves Gomes Barroso, o hábito de cavaleiros de Cristo em junho
de 1822 e em setembro de 1824, respectivamente. Em ambos os casos,
o motivo da condecoração foram os serviços realizados pelo pai, que fez
o requerimento para os filhos. Alexandre tornou-se ainda comendador da
mesma Ordem em 1824. Por fim, em outubro de 1830, João Gomes Bar-
roso Sobrinho, recebeu também o grau de cavaleiro da Ordem de Cristo.
Além deles, Diogo Gomes Barroso ascendeu a comendador de Cristo em
dezembro de 1828. Diogo, entretanto, foi condecorado por seus próprios
serviços tendo se identificado como negociante, proprietário de terras em
Campos e coronel de milícias, além de apontar os cargos públicos que
ocupou, especialmente, na Câmara de Campos. Em seu requerimento,
disse ter ido à Corte cumprimentar D. João em duas ocasiões, na chegada
da família real e na elevação do Brasil a Reino Unido, e ter oferecido, em
vários momentos, auxílio financeiro à Coroa. Informava que havia “sem-

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Camila Borges da Silva

pre contribuído em todas as ocasiões em que foi chamado” como, por


exemplo, para iluminações públicas realizadas pelo Senado da Câmara
e em doações diretas ao Estado. Por fim, também Antônio Alves Gomes
Barroso recebeu a comenda de Cristo em outubro de 182940.

Já a família Carneiro Leão teve José Alexandre Carneiro Leão, ca-


valeiro da Ordem de Cristo, em maio de 1808, e comendador da mesma
Ordem, em maio de 1814, e Fernando Carneiro Leão, comendador da
dita, em março de 1810. Ambos eram filhos de Brás Carneiro Leão, que
recebeu a comenda de Cavaleiro da Ordem de Cristo, em fevereiro de
1810. A matriarca da família Carneiro Leão, D. Anna Francisca Maciel
da Costa, foi um dos poucos casos de títulos de nobreza atribuídos a nas-
cidos no Brasil, pois ela se tornou Baronesa de São Salvador dos Campos
em 1814.

Entre aqueles que não foi possível identificar a família entre os con-
decorados, mas que também eram grandes negociantes, estavam João
Francisco da Silva e Souza, Comendador da Ordem de Cristo, em agosto
de 1814, e João Rodrigues Pereira de Almeida, Comendador da Ordem de
Cristo, em março de 1810.

O pertencimento à elite mercantil produzia contatos que se davam


via comércio, e as boas relações travadas poderiam ajudar a alcançar um
hábito. Foi assim que o também negociante José Antônio de Freitas Dan-
tas, que recebeu o grau de cavaleiro de Cristo em outubro de 1825, foi
contemplado. Dantas, que era também capitão das ordenanças da Corte,
estava com casamento marcado com D. Maria José Balbina do Vale Ba-
tista. O pai da noiva, Estevão do Vale Batista, renunciou então aos 35
anos de serviços militares que lhe dariam direito a uma condecoração em
nome de seu futuro genro. O fiscal das mercês, contudo, comunicou que
“deve o suplicante ajuntar a sua fé de ofício, escritura pública de renúncia
de serviços, e justificar pelo juízo das justificações do Império a qualida-
de e modo de vida do renunciado, e os serviços que este tem prestado ao

40  – Arquivo Nacional, cód.14, vol. 1, cód.15, vol.9, 10 e 11 e Biblioteca Nacional.


Divisão de Manuscritos, Coleção de Documentos Biográficos.

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Ordens honoríficas e sociedade:
a nobilitação de negociantes na Corte joanina

Império”, ou seja, além dos documentos comprobatórios de seus serviços,


ele deveria provar a “qualidade” e o “modo de vida” de João, além de
quais serviços o genro havia prestado. Esse pedido do fiscal era motiva-
do pelo fato de que cabia ao condecorado se tratar com “decência” e de
modo condizente com um membro da nobreza. Ter recursos era necessá-
rio, visto que, após receber a condecoração, o agraciado deveria adquirir
as insígnias das ordens, que, nos graus de cavaleiro e de comendador, se
constituíam em mantos e em medalhas, enquanto, no de grão-cruz, era
adicionada uma banda ou faixa. A importância desse elemento se dava
pela necessidade de que a Coroa tinha de que as ordens fossem vistas
com respeito e transmitissem um ar de dignidade, pois, de outro modo,
perderiam seu caráter distintivo e não motivariam os desejos dos súditos
de alcançaram o hábito, de modo que o Estado perderia um elemento
fundamental para angariar serviços. João Dantas então providenciou um
documento assinado por vários negociantes do Rio de Janeiro, como Ma-
noel Caetano Pinto, Antônio José da Costa Ferreira, Antônio Ferreira da
Rocha, Antônio Gomes Barroso, Lourenço Antônio do Rego, João Tei-
xeira Guimarães, entre outros, que atestava que ele tinha “todo o crédito,
com fundos suficientes para se tratar com toda a decência”. Para compro-
var serviços, João optou por ressaltar sua atuação militar, mais segura de
gerar a condecoração, ajuntando ainda uma atestação do coronel gradua-
do das ordenanças da Corte e cavaleiro professo de Cristo, José Cardoso
Nogueira, que mostrava que ele sempre cumpria com suas obrigações
militares e que “teve a distinta honra de fazer o serviço de guarnição desta
praça”. Com isso, o fiscal respondeu que “estando no posto de primeiro
tenente, que corresponde a capitão, está nas circunstâncias de merecer a
graça [...] por este ser pessoa apta para conservar a decência da Ordem,
como abastado negociante, capitão, e com alguns serviços”41.

Alguns dos negociantes mencionados participavam do alto comércio


e suas fortunas eram provenientes de uma grande variedade de ativida-
des. No caso da família Gomes Barroso, por exemplo, ela atuava no trá-

41  –  Arquivo Nacional, cód.15, vol. 10 e Biblioteca Nacional. Divisão de Manuscritos,


Coleção de Documentos Biográficos. Grifo meu.

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Camila Borges da Silva

fico de escravos, no comércio com Portugal e com a Ásia, no comércio


de cabotagem, negociando açúcar, charque e trigo e possuía ações em
companhias de seguro e no Banco do Brasil. A família Carneiro Leão
desenvolvia as mesmas atividades, com exceção do comércio de charque,
de trigo e das ações em companhias de seguro. A família Velho da Silva
só se diferenciava da Gomes Barroso, porque não realizava comércio de
trigo, não negociava com a Ásia e não tinha ações no Banco do Brasil42.
Pelo vulto de seus negócios, entendemos o motivo pelo qual foram tão
bem sucedidos em sua busca pelas condecorações.

Considerações Finais
Embora o processo de nobilitação de uma elite de negociantes pu-
desse estar em curso desde antes da transferência da família real, o que
teve reflexos na própria mudança da legislação que retirou os grandes ne-
gociantes do rol de ofícios mecânicos43, a presença da corte efetivamente
abriu o leque dessas distinções aos negociantes que habitavam o Rio de
Janeiro. Como se abordou, essa abertura não foi ampla e irrestrita a todos
que viviam do comércio, mas localizada na elite mercantil, especialmente
se tomarmos o grau de comendador da Ordem de Cristo. Conforme a lei
de 1789, a Coroa conseguiu resguardar o lugar de grão-cruz a um círculo
bastante restrito, de modo a não desagradar a nobreza titulada que acom-
panhou a corte na travessia do Atlântico.

O interesse gerado na classe mercantil pela presença da corte, com


a facilitação das mercês às grandes fortunas do Rio de Janeiro, produ-
ziu, por outro lado, o desejo pela permanência da família real. Isso era
explicitado por esses negociantes em momentos de celebração, quando
o financiamento de arcos do triunfo servia para louvar a monarquia, ao
mesmo tempo em que enviavam uma mensagem ao rei, apontando o va-
lor da América e do Rio de Janeiro e atrelando ao continente e à cidade a
própria possibilidade de riqueza futura. Evidentemente, as condecorações

42  –  João Fragoso e Manolo Florentino. O arcaísmo como projeto..., p. 200.


43 – RAMINELLI, Ronald. Nobrezas do novo mundo..., p. 106.

172 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):149-174, jan./abr. 2019.


Ordens honoríficas e sociedade:
a nobilitação de negociantes na Corte joanina

concedidas demonstram um reconhecimento do Estado da importância


desse grupo que se tornava então um ator relevante no tabuleiro político.

Texto apresentado em outubro/2018. Aprovado para publicação em


dezembro/2018.

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A Real Ordem da Torre e Espada 1808-1834:
uma Ordem Honorífica Luso-Brasileira

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A REAL ORDEM DA TORRE E ESPADA 1808-1834:


UMA ORDEM HONORÍFICA LUSO-BRASILEIRA
THE ROYAL ORDER OF THE TOWER AND SWORD, 1808-1834:
A PORTUGUESE-BRAZILIAN HONORIFIC AND MILITARY
ORDERANTÓNIO MIGUEL TRIGUEIROS
António Miguel Trigueiros1

Resumo: Abstract:
Neste texto “A Aclamação de D. João VI no Rio In this paper “The Acclamation of King João
de Janeiro em 1818: o Rei e o Reino”, o autor VI in Rio de Janeiro in 1818: the King and the
revela alguns documentos inéditos de arquivos Kingdom”, the author reveals some unpublished
e de bibliotecas do Brasil e de Portugal, que documents from national archives and libraries
contam a verdadeira génese da Real Ordem da in Brazil and Portugal that uncover the true
Torre e Espada, de Valor e Lealdade, criada em origins of the Royal Portuguese Order of the
1808, no Rio de Janeiro, acompanhando os seus Tower and Sword, for Bravery and Loyalty,
primeiros passos, o desenho das suas insígnias e created in 1808 in Rio de Janeiro, following
as condecorações concedidas por D. João, até se its first steps, the design of its insignia and the
transformar na mais prestigiada Ordem Militar decorations granted by D. João, until becoming
europeia do período da Guerra Peninsular. Dos the most prestigious European Military Order of
964 agraciados com as insígnias da Real Ordem the Peninsular War. Of the 964 graced with the
nos seus três graus de Grã-cruz, Comendador e insignia of the Royal Order in their three classes
Cavaleiro, mais de metade foram-no durante a of Knight Grand Cross, Knight Commander and
permanência da Corte no Brasil. As atribuições Knight, more than half were awarded during the
das insígnais e as nomeações na Ordem revelam stay of the Court in Brazil. The assignments of
facetas desconhecidas da historiografia portu- the insignia and the appointments in the Order
guesa e brasileira, impondo a Real Ordem da reveal new facets unknown in the Portuguese
Torre e Espada, de Valor e Lealdade, como uma and Brazilian historiography, imposing the
Ordem Honorífica e Militar luso-brasileira. Royal Order of the Tower and Sword, for
Bravery and Loyalty, as a Portuguese-Brazilian
Honorary and Military Order.
Palavras-chave: Ordens Honoríficas; Torre e Keywords: Honorary Orders; Tower and Sword;
Espada; Valor e Lealdade. Valour and Loyalty.

Introdução
A história da Real Ordem da Torre e Espada, de Valor e Lealdade,
instituída em novembro de 1808, no Rio de Janeiro, pelo príncipe regente
D. João e extinta, em 1834, com o exílio do rei D. Miguel I, seu último
Grão-Mestre, nunca foi objecto de um estudo completo, com recurso às
fontes documentais coevas dos arquivos nacionais portugueses e brasi-
1  –  Sócio Honorário da Academia Portuguesa de História. Sócio Efectivo do Institu-
to Dom João VI. Engenheiro-químico, foi diretor técnico da Casa da Moeda de Lisboa,
vogal da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses e
diretor da Sociedade de Geografia de Lisboa. E-mail: engtrig@sapo.pt

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António Miguel Trigueiros

leiros, até a publicação do meu livro A Viagem das Insígnias. Valor e


Lealdade, 1808-2018, cujo lançamento, no Rio de Janeiro, teve lugar, em
novembro último, no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Esquecida pelos historiadores da segunda metade do século XIX e


de todo o século XX, as parcas referências existentes na bibliografia por-
tuguesa e internacional estão cheias de erros, mitos e omissões, já que
todos os autores misturam e confundem nos seus textos como só tendo
existido uma única Ordem da Torre e Espada, quando, de facto, existiram
duas Ordens com o mesmo nome, mas com estatutos muito diferentes,
que coexistiram em Portugal durante oito meses: a primeira foi a Real
Ordem da Torre e Espada, de Valor e Lealdade, de 1808, cujas insígnias
continuaram a ser concedidas por D. Miguel I aos seus soldados durante
o cerco da cidade do Porto, até maio de 1833, data do seu último alvará;
e a segunda, A Ordem Militar da Torre e Espada, de Valor, Lealdade e
Mérito, instituída, em Julho de 1832, na cidade do Porto, pelo duque de
Bragança D. Pedro, numa estratégia de uma “guerra de insígnias”, desti-
nada a desprestigiar a Real Ordem do seu irmão.

A divulgação da sua história em livro e a comunicação apresentada


ao Seminário “A Aclamação de D. João VI no Rio de Janeiro em 1818: o
Rei e o Reino” tiveram como objectivos principais:

1 – Resgatar a memória de uma Ordem Honorífica e Militar luso-


-brasileira, injustamente esquecida nos Anais da História de Portugal e
nos Anais da História do Brasil-Reino;

2 – Declarar que a Real Ordem da Torre e Espada, de Valor e Leal-


dade, deve passar a constituir uma entidade historiográfica autónoma nos
estudos luso-brasileiros;

3 – Honrar a memória dos 964 agraciados com as suas insígnias nas


três classes de Grã-cruz, de Comendador e de Cavaleiro;

4 – Mostrar a portugueses e a brasileiros que temos um novo emble-


ma do nosso passado histórico comum de que nos podemos orgulhar: as

176 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):175-208, jan./abr. 2019.


A Real Ordem da Torre e Espada 1808-1834:
uma Ordem Honorífica Luso-Brasileira

insígnias da Real Ordem da Torre e Espada, de Valor e Lealdade, de D.


João VI.

Bahia, 15 de fevereiro de 1808: a génese da Ordem da Torre e Espada


Na tarde do dia 22 de janeiro de 1808, um pequeno esquadrão de
quatro navios entrou na Baía de Todos os Santos, fundeando em frente da
cidade do Salvador. Vinha de Lisboa, com 54 dias de navegação oceânica
e transportava uma carga de subido valor: a Rainha de Portugal, o Prín-
cipe Regente, a sua família e alguns dos seus principais conselheiros e
ministros. O navio-capitânia era a nau “Príncipe Real”, um navio de linha
de belo porte com três convés de baterias de 84 peças e uma numerosa
guarnição de 950 marinheiros, comandada pelo capitão de mar e guerra
Francisco José de Canto e Castro e Mascarenhas. Transportava 100 pas-
sageiros, entre os quais Sua Majestade Fidelíssima, a rainha D. Maria I,
então com 73 anos, o seu filho D. João, Príncipe Regente e do Brasil, com
40 anos, e três dos seus netos, os infantes D. Pedro de Alcântara, de 9 anos
de idade, D. Miguel Maria, de 5 anos e D. Pedro Carlos, de 21 anos, in-
fante de Espanha e de Portugal. Juntamente com a família Real, viajavam
o vice-almirante Manuel da Cunha Souto Maior, o chefe-de-divisão Joa-
quim José Monteiro Torres (Ajudante General), o conselheiro de Estado
D. Fernando José de Portugal e Castro, de 55 anos, o visconde da Anadia,
D. João Rodrigues de Sá e Melo, de 52 anos e outros cortesãos, com as
respetivas famílias.

Tinha largado de Lisboa a 29 de novembro, arvorando o pavilhão


de navio-almirante de uma grande esquadra de 54 navios, escoltados por
quatro navios de linha britânicos, no início de uma jornada marítima que
os levaria ao Brasil, pondo a família real, o tesouro régio, os principais
ministros e conselheiros, bem como a quase totalidade da Armada Real,
guarnições, guardas-marinha, soldados-marinheiros e navios de linha, a
salvo dos invasores franceses2.
2 – A esquadra portuguesa era composta por 23 navios de guerra, com 7.971 marinhei-
ros de guarnição, transportando 2.124 fuzileiros e 60 guardas-marinha; e 31 navios mer-
cantes, onde estavam embarcados 2.000 familiares dos marinheiros. Como passageiros,
teriam entre 400 a 500 dignitários da Corte e suas famílias, além de muitos civis de di-

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António Miguel Trigueiros

Perto da ilha da Madeira e de alguns dos seus perigosos baixios, a


tempestade rebenta na noite de 8 de dezembro, fazendo a esquadra dis-
persar-se e provocando danos avultados em muitos navios. E, na manhã
de 9 de dezembro de 1807, amainado o vento e clareado o dia, a “Príncipe
Real” encontrou-se sozinha no oceano, simplesmente acompanhada pela
pequena “Urânia”, uma fragata de 32 peças e 329 homens de guarnição,
comandada pelo capitão-tenente D. João Manuel de Meneses.

Outros navios da esquadra estavam também dispersos no mar, como


a nau de linha “Afonso de Albuquerque”, de 74 peças e uma guarnição
de 634 homens, comandada pelo capitão de mar e guerra Inácio da Costa
Quintela, onde vinham embarcados a princesa real e do Brasil, D. Carlota
Joaquina, de 32 anos, com quatro das suas filhas, D. Maria Teresa, de 14
anos, princesa da Beira, as infantas D. Maria Isabel, de 10 anos, D. Maria
d’Assumpção, com 2 anos, e D. Anna de Jesus Maria, de 1 ano de idade,
acompanhadas pelas famílias de outros dignitários da Corte; e a fragata
“Minerva”, de 44 peças e 349 homens de guarnição, comandada pelo
capitão de mar e guerra Rodrigo José Ferreira Lobo. Sem o saber, tinham
navegado no mesmo rumo noroeste, avistando e juntando-se à “Príncipe
Real” a 11 de dezembro, formando um pequeno esquadrão naval onde
vinha embarcada a totalidade da família real de Portugal.

Cumprindo um protocolo pré-combinado, rumam em direção à ilha


de Ferro, nas Canárias, onde já um outro navio se encontrava à espera.
Tratava-se da nau de linha HMS “Bedford”, de 74 peças, com uma guar-
nição de 550 homens sob o comando do capitão James Walker, de 43
anos, um experimentado marinheiro com uma já longa folha de serviços.
No dia 15 de dezembro de 1807, pela tarde, o capitão inglês sobe a bor-
do da Príncipe Real, apresenta os seus cumprimentos ao comandante do
navio e ao vice-almirante, é recebido pelo príncipe regente e assume a
responsabilidade de escoltar a família real até ao Brasil.

ferenciado estatuto. No total, seriam mais de 13.000 os portugueses que atravessaram o


Atlântico nessa esquadra real.

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A Real Ordem da Torre e Espada 1808-1834:
uma Ordem Honorífica Luso-Brasileira

A 21 de dezembro, há mudança de planos. D. João tinha decidido ru-


mar diretamente ao Brasil, em vez de ir tocar no terceiro ponto de reunião,
na cidade da Praia. A fragata “Minerva” foi despachada para São Tiago,
para avisar que Sua Alteza Real seguiria adiante, ordenando a todos os
navios que prosseguissem a sua rota até ao Rio de Janeiro. Nos próximos
32 dias de navegação conjunta, num mar calmo, por vezes calmo demais
e sem vento para se navegar, as visitas sociais entre os navios prolongam-
-se por horas, há tempo para tudo, há tempo para se fazerem planos. D.
João terá então aproveitado a companhia de D. Fernando José de Portugal
e do visconde de Anadia, ministro da Marinha em Lisboa, para conversar
e para discutir assuntos de Estado, trocando ideias que irão ser postas na
prática à chegada ao Brasil.

A 17 de dezembro, aniversário natalício da rainha D. Maria I (dia


de Grande Gala na Corte), a nau “Bedford” participa no cerimonial
naval comemorativo, com salvas reais e as vergas dos mastros guarne-
cidos com todo o seu pessoal uniformizado, sem os seus chapéus, com
os fuzileiros apresentando armas. Um gesto protocolar de cortesia que
muito agradou a D. João. A linha do equador é cruzada a 9 de janeiro
de 1808, e logo nesse dia o capitão Walker oferece o seu navio para
acomodar a família real portuguesa e comitiva, evitando as incómodas
e já insalubres instalações da “Príncipe Real” e da “Afonso de Albu-
querque”. Esta prova de estima e de respeito calou fundo no coração
de D. João, que não a esquecerá. Nova mudança de planos tem lugar a
16 de janeiro: rumariam à Bahia, em vez do Rio de Janeiro, pela pro-
ximidade daquele grande porto e antiga capital. E assim foi. Na tarde
do dia 22 de janeiro, o pequeno esquadrão fundeou na Baía de Todos
os Santos3.

3 – Uma das principais fontes da narrativa desta histórica travessia atlântica, que teve
acesso aos arquivos do Almirantado inglês, é a conhecida obra de Kennett Light, A trans-
ferência da capital e corte para o Brasil 1807-1808. Lisboa: Tribuna da História, 2007.

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António Miguel Trigueiros

A estadia baiana do Príncipe Regente


A historiografia portuguesa nunca deu muita atenção aos 34 dias
nos quais a família real permaneceu em Salvador, antes de rumar ao
Rio de Janeiro. Com uma única exceção, a da famosa Carta Régia de
28 de janeiro de 1808, dirigida ao conde da Ponte, D. João Saldanha
da Gama, governador e capitão-general da Capitania da Bahia, deter-
minando a abertura dos portos do Brasil ao comércio de nações estran-
geiras amigas de Portugal (um diploma que só foi publicado depois de
13 de maio desse ano).

Para além dessa famosa lei, outros documentos existem, no en-


tanto, que atestam o que de facto aconteceu: – mal se encontrou de-
vidamente acomodado em terra brasileira, o príncipe regente D. João
começou a governar de direito próprio, mesmo sem governo que o
assistisse.

Desembarcado a 23 de janeiro, sempre acompanhado por D. Fer-


nando José de Portugal e pelo visconde da Anadia, recebe, pouco de-
pois, a representação do conde da Ponte, que fazia eco de outras repre-
sentações de comerciantes locais, que estiveram na origem dessa carta
régia de 28 de janeiro. Outros despachos e decretos foram lançados nos
dias 4, 10, 13, 15, 18, 21 e 23 de fevereiro, com extensas promoções
no corpos de exército de linha e nos regimentos de milícias da Bahia,
de Pirajá, da ilha de Itaparica e da vila da Caxoeira. A 18 de fevereiro,
tem lugar mais um marco histórico da estadia do príncipe regente, com a
criação da Escola de Cirurgia da Bahia (atual Faculdade de Medicina da
Universidade Federal da Bahia), sob proposta do Dr. José Maria Picanço,
brasileiro natural de Goiana, Pernambuco, lente de Anatomia jubilado da
Universidade de Coimbra, cirurgião da Real Câmara, que tinha viajado
com a família real e que fora nomeado cirurgião-mor do Reino por decre-
to de 7 de fevereiro. Poucos dias depois e já na véspera da largada para o
Rio de Janeiro, D. João assina o decreto de 23 de fevereiro, que cria, na
cidade do Rio de Janeiro, uma cadeira de Ciência Económica e nomeia
José da Silva Lisboa, deputado e secretário da Mesa de Inspeção da Agri-

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A Real Ordem da Torre e Espada 1808-1834:
uma Ordem Honorífica Luso-Brasileira

cultura e Comércio da cidade da Bahia, para ocupá-la. Finalmente, no


próprio dia da largada, ainda tem tempo para assinar o decreto de 24 de
fevereiro, que autoriza o estabelecimento de uma companhia de seguros
marítimos, a Companhia de Seguros Boa Fé, sedeada na Bahia, a primeira
a atuar no Brasil e que nasce precisamente como consequência da abertu-
ra dos portos brasileiros ao comércio internacional.

Outros navios da esquadra saída de Lisboa arribaram à Bahia. A


10 de fevereiro, entrou a nau “D. João de Castro” (de 64 peças e uma
guarnição de 663 homens), em muito mau estado, comandada pelo ca-
pitão de mar e guerra Manuel João de Locio. Além de passageiros,
entre os quais a família do 5.º duque de Cadaval, D. Miguel Caetano
Álvares Pereira de Melo, de 42 anos, a nau transportava a totalidade do
Tesouro Régio, para cima de 84 caixotes, que tinham sido preparados e
embarcados sob as ordens judiciosas do tesoureiro da Casa Real, Joa-
quim José de Azevedo. Os caixotes contendo o Tesouro real português
foram então, por ordem de D. João, transferidos para bordo da nau
inglesa Bedford, uma medida que espelhava bem o grau de confiança
que o capitão Walker e a sua tripulação mereciam ao príncipe regente.
Muito doente, D. Nuno Caetano e a sua família ficaram hospedados
numa casa particular em Salvador, onde terá recebido a visita de D.
João e de outros membros da família real. Faleceria a 14 de março.

A 16 de fevereiro, entrou, no porto, a nau “Medusa” (de 74 peças e


669 homens de guarnição), vinda do Recife, comandada pelo capitão de
mar e guerra Henrique da Fonseca de Sousa Prego, também muito cas-
tigada pelo temporal ao largo da Madeira. O seu principal passageiro,
D. António de Azevedo de Araújo, secretário de Estado dos Negócios
Estrangeiros e da Guerra e ministro do Reino (futuro conde da Barca),
trazia consigo outra preciosa carga, todos os livros e os documentos
das suas secretarias de Estado, um conjunto completo de equipamento
tipográfico pronto a ser utilizado, uma coleção mineralógica e um la-
boratório de química desmontado. Esteve poucos dias na companhia do
príncipe regente, e não há memória de ter exercido qualquer influência
nas decisões tomadas por D. João enquanto permaneceu na Bahia.

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António Miguel Trigueiros

A primeira carta do Brasil: Bahia, 6 de fevereiro de 1808


A primeira carta enviada da Bahia em nome do príncipe regente data
de 6 de fevereiro, assinada por D. Fernando José de Portugal, endereçada
ao seu representante diplomático em Londres, D. Domingos António de
Sousa Coutinho, o qual passaria a ser o principal interlocutor da Corte no
Rio de Janeiro, nesses meses em que a comunicação entre Brasil e Portu-
gal estava interrompida ou dificultada pela guerra.

Que vai dizer D. João nessa carta primeira do seu novo assento
brasileiro? Pedir que lhe mandem roupa, meias de seda, brancas e pre-
tas, lenços de cambraia, galões de prata e dourados? O príncipe regente
de Portugal tem outras ideias, nada quer pedir para si, quer pedir, sim,
mas em favor dos dois oficiais da nau inglesa Bedford que o acompa-
nhou na travessia atlântica, o capitão James Walker e o tenente David
Scott. Vamos acompanhar o pensamento do monarca, transcrevendo a
sua primeira carta do Brasil:
N.º I // Com a chegada de Lord Strangford a essa Capital seria V.
S. sabedor que o Príncipe Regente Nosso Senhor tomou a resolução
de partir de Lisboa com toda a Sua Augusta Família no dia 29 de
novembro do ano passado para o Brazil, em direitura para o Rio de
Janeiro prestando o Contra Almirante Sir William Sydney Smith com
a maior prontidão, e atividade todos os auxílios, e socorros que se lhe
requereram nesta ocasião, destacando tão bem da Esquadra do seu
comando quatro Naus para reforçar a nossa, e a seguirem até ao Porto
do seu destino, as quais se separarão da Nau Príncipe Real, em que
Sua Alteza se transporta com Seus dois Filhos por causa do tempo, na
noite de 8 para 9 de dezembro; e que igualmente aconteceu a quase
todas as Naus, e Fragatas Portuguesas, incorporando-se depois no dia
15 para 16 do dito mês a Nau Inglesa Bedford, comandada por James
Walker. Este oficial é sumamente civil e polido, e tem praticado toda
a qualidade de obséquio e atenção, e Sua Alteza Real não pode deixar
de o recomendar a Sua Majestade Britânica, o que V. S. fará da parte
do mesmo Senhor, que se interessa para que ele seja promovido em
Comissário de Marinha, e o Primeiro Tenente David Scott em Coman-
dante de Navio.

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A Real Ordem da Torre e Espada 1808-1834:
uma Ordem Honorífica Luso-Brasileira

Sua Alteza Real, a Princesa Carlota Sua Augusta Esposa, Seus Filhos
e Filhas, chegaram felizmente a esta Cidade donde em poucos dias
partirão para o Rio de Janeiro, e gozam uma saúde tão perfeita e ro-
busta como lhes desejam todos os seus fiéis Vassalos.
Deus Guarde a V. S.. Bahia 6 de fevereiro de 1808 = D. Fernando José
de Portugal = Sr. D. Domingos Antonio de Souza Coutinho 4.

A primeira carta da Bahia: 6 de fevereiro de 1808. ANTT. MNE, livro 512, fol. 1.
Reprodução autorizada.

Perpassa já, nesta carta, aquele sentimento de generosidade que ve-


mos atravessar toda a regência e o reinado de D. João: a sua gratidão com
todos aqueles que lhe prestem um Real Serviço.

Pela correspondência do embaixador em Londres para a Corte no


Rio de Janeiro, ficamos a saber que a nota oficial da embaixada sobre
este assunto, de junho de 1808, arrastou-se sem solução, porque, con-

4  –  Arquivo Nacional de Portugal / Torre do Tombo (ANTT), fundo Ministério dos Ne-
gócios Estrangeiros (MNE), livro 512, fol. 1. Originais recebidos do Brasil, encadernados
em livro.

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António Miguel Trigueiros

forme daria conta o nosso embaixador em abril de 1809, “o Almiran-


tado está renitente sobre a pretensão de S. A. R. da promoção”, dos
oficiais da Marinha inglesa5.

“Por amor de um só homem”


O papel desempenhado por D. Fernando José de Portugal, junto ao
príncipe regente D. João, quer durante os dois meses de navegação oceâ-
nica, quer durante o mês de permanência na cidade do Salvador, deve ter
sido de tal importância que, logo à chegada ao Rio de Janeiro, é nomeado
ministro assistente ao despacho (primeiro-ministro), ministro do Reino e
presidente do Real Erário. Na Bahia, no entanto, era o único conselheiro
de Estado presente6 e foi ele o autor de um parecer que permaneceu iné-
dito até agora, onde, pela primeira vez, se dá a conhecer os verdadeiros
fundamentos e os reais motivos que estiveram na génese da instituição da
Real Ordem da Torre e Espada. Trata-se de um manuscrito da Biblioteca
Nacional do Brasil, cuja existência só foi revelada em 2008, por ocasião
das comemorações dos 200 Anos da Transferência da Corte para o Brasil.
Catalogado como mss1289260, sem data, título ou assinatura, vem des-
crito como:
Dissertação sobre a necessidade do príncipe regente D. João,
criar uma ordem civil, para condecorar estrangeiros e civis.
(fol. 1) Criar uma Ordem nova fora de ocasião, sem haver para quê,
não me atrevera a aconselhar a S.A.R., muito mais em circunstâncias
de mil embaraços em que se devem fazer grandes coisas, como já
se tem feito algumas, mas somente as necessárias. Contudo porém é
preciso confessar, que logo que S.A.R. se visse precisado de uma total
e indispensável necessidade a condecorar algum Estrangeiro com esta
qualidade de Mercê, não podendo conferir-lhe nenhuma das 3 Ordens
Militares estabelecidas, por ser de diferente comunhão, não haveria
outro remédio se não o de instituir de novo uma Ordem Civil. Ora para

5 – Ibid, idem, livro 449, copiador dos ofícios de Londres para o Rio de Janeiro, 1808-
1809.
6  –  Todos os outros conselheiros do príncipe regente, como D. Rodrigo de Sousa Couti-
nho (futuro conde de Linhares) e António de Araújo de Azevedo (futuro conde da Barca),
viajaram nas embarcações que aportaram ao Rio de Janeiro.

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A Real Ordem da Torre e Espada 1808-1834:
uma Ordem Honorífica Luso-Brasileira

o fazer de propósito, com o fim de premiar um homem só, seria preci-


so, que este tivesse feito relevantes serviços. Era portanto para desejar,
que o Comandante da única Nau Inglesa, que teve o feliz sucesso de
nunca largar S.A.R, e que aliás tem feito todo o possível para lhe agra-
dar, se contentasse com uma boa Joia, principalmente com o Retrato
do Príncipe, com que se costumam contentar os maiores Generais.
Porém esta condescendência não está na Mão de Sua Alteza Real. No
caso que não possa vencer-se sem grande desconsolação, supostas al-
gumas antecedências, ou mexericos, resta ver e pesar se convém des-
contentar este Oficial, e aos mais da Marinha Inglesa por uma coisa,
que se poderá fazer mais pequena do que parece à primeira vista: e se
o Coração de S.A.R. que se acha empenhado em fazer Mercê a este
homem, que salta de contente por levar uma distinção daquele género,
e rejeita tudo o mais, consentirá em que se use com ele de um rigor
ou escrúpulo (fol. 1 v.) demasiado. O qual talvez seja fóra de ocasião
o negar-se-lhe, e muito próprio conceder-se-lhe numa época tal, que
obriga de necessidade a olhar muito para a sua, e nossa Marinha.
Por ventura há de ser o Príncipe o único Soberano, que não possa
dar uma Ordem a quem muito quiser, não tendo nenhuma que dar a
algumas Pessoas, como sucede com este Comandante, que não tem a
felicidade de ser católico Romano? E quantas ocasiões destas aparece-
rão daqui por diante? Deve pois fazer como os mais Príncipes fazem,
e constituir uma de novo, que seja apta para todos.
É portanto de considerar como se há de instituir uma Ordem, que
aproveite para o futuro, e que sirva para o caso presente, sem parecer,
que se fez de propósito por amor de um só homem, que não tem feito
serviços para tanto, mas sim em favor da nossa Marinha, em uma
época em que a Marinha Portuguesa talvez seja mais útil e necessária,
do que serão as Tropas de terra. E que a primeira pedra da sua criação
seja lançada na Bahia, por ser a primeira terra do Brasil aonde S.A.R.
aportou, considero muito a propósito.
Não importa, antes é muito conveniente, que se não complete esta obra
desde logo, e que se vá aperfeiçoar ao Rio de Janeiro para não acusar
pressa, e ligeireza. Basta que a data da sua criação seja da Bahia, e que
se anuncie já qual há de ser a venera com a sua legenda e exergua: Se
se pudesse aqui fundir na Casa da Moeda em tão poucos dias, seria
de estimar, quando não apresentando-se o desenho a S.A.R., e sendo
por Ele aprovado, está feito tudo quanto é necessário. (fol. 2.) Para dar

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António Miguel Trigueiros

tom a esta Ordem, sem o qual não pode ter a estimação devida, seria
preciso fazer logo um General do Mar, com a Patente que tiveram o
Senhor D. João, e o Marquês de Angeja, assentando bem este grande
Posto na Pessoa do Duque de Cadaval, principalmente nas atuais cir-
cunstâncias, e para o fim de se lhe conferir esta Ordem em primeiro
lugar do que a todos. Segue-se depois o Vice-almirante, que teve a
honra de acompanhar S.A.R.: o 3.º deve ser o Capitão da única Nau
Inglesa, que acompanhou S.A.R. a este Porto. No Rio de Janeiro se
regulará daí por diante tudo o mais que lhe pertencer.
Não pode haver coisa mais simples, nem mais abreviada para não cau-
sar espanto, contudo eu ainda insisto em que melhor seria contentar
o Inglês, se fosse possível por bons modos, com o Retrato de S.A.R.,
principalmente achando votos contrários negativos, que quase sempre
são os melhores, e mais seguros. Não desejo que se siga o meu conse-
lho quando é solitário.
Fundo-me porém em que todos os Príncipes têm Ordens para darem
a Estrangeiros: Que o corpo da Marinha Portuguesa, principal objeto
desta Instituição, merece ser muito considerado: Que não só se deve
ganhar o Governo de Inglaterra, mas as Pessoas que vierem ajudar-
-nos: Que o modo que tenho declarado, e porque entendo se deve isto
fazer, não é de muito aparato: E finalmente, que não é a 1.ª Ordem
Civil, que se inventou neste Reino, porque El-Rei D. Afonso 5.º che-
gou a formalizar uma Ordem chamada da Espada, como se pode ver
na História Genealógica de Sousa, tomo 3.º pag. 6.ª, cuja exergua se
deve aproveitar agora (fol. 2 v.) por memória antiga, suposto que não
é muito feliz, mas a repetição vale nestes casos.
E sobretudo seguro-me mais em que me foi ordenado por S.A.R., que
visse se se podia descobrir algum caminho para o caso que se propu-
nha, e não achando outro de menos espinhos, satisfaço com apontar
em dúvida e com temor, aquele que me lembra: fala o coração, e o de-
sejo de livrar a S.A.R. de um embaraço, que o aflige, e o entendimento
suposto duvida, não repugna pelas razões, que tenho declarado7.

7 – Biblioteca Nacional do Brasil, Secção de Manuscritos, mss1289260, dois fólios,


frente e verso. Leitura, interpretação e atualização gramatical pelo autor. Por “exergua”,
ou exergo, entende-se o espaço na orla inferior do reverso de uma moeda ou medalha
onde se grava a data ou uma inscrição.

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A Real Ordem da Torre e Espada 1808-1834:
uma Ordem Honorífica Luso-Brasileira

O manuscrito inédito da Biblioteca Nacional do Brasil, que conta a verdadeira génese


da Real Ordem da Torre e Espada. BNB, ms1289260. Reprodução autorizada.

A data em que este manuscrito foi ditado por D. Fernando José de


Portugal, na Bahia, pode ser fixada como posterior a 10 de fevereiro de
1808 (data da chegada da nau D. João de Castro, transportando o duque
de Cadaval: “especialmente nas atuais circunstâncias”, fol. 2), mas bem
próxima dessa data: fixaremos a data de 15 de fevereiro de 1808.

Este documento permite-nos agora entender, de maneira bem di-


ferente daquela que as fontes oficiais mais tarde revelariam, a génese
da Real Ordem da Torre e Espada, instituida como Ordem da Espada,
no Rio de Janeiro, por Decreto de 13 de maio de 1808 e regulamentada
pela Carta de Lei de 29 de dezembro do mesmo ano.

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António Miguel Trigueiros

O mito da Ordem da Espada de D. Afonso V


Essa Ordem da Espada afonsina, referida neste manuscrito, vem,
de facto, mencionada na História Genealógica da Casa Real Portugue-
sa:
[...] E tendo notícia, quando esteve em África, que na Cidade de Fez
havia uma torre, por cujo capitel ou remate, passava uma espada, e
que entre os Mouros era tradição, que passava supersticiosamente me-
drosa, de que a tiraria um Príncipe Cristão, acabando então o domínio
Agareno em África; não desprezou ElRey a notícia, parecendo-lhe,
que para ele podia ser reservado esta fortuna. E determinado na con-
quista de África, e querendo com o seu ardor infundir maiores espí-
ritos nos Cavaleiros, instituiu uma nova Ordem Militar, a que deu o
nome da Espada, com alusão à Torre de Fez, e assim intentada a pôs
em prática. Era a divisa, pendente de um colar de ouro, uma venera
redonda, também de ouro, em a qual em esmalte branco, se via atra-
vessada uma Torre com a Espada [...]8.

De nada valeram as doutas palavras de Caetano de Sousa, páginas


adiante, quando diz desta Ordem da Espada, que “nenhum vestígio acha-

8  –  SOUSA, António Caetano de. História Genealógica da Casa Real Portuguesa. Lis-
boa: 1738; nova edição revista, Coimbra: Livraria Atlântida, 1947; fac-simile, Lisboa:
Academia Portuguesa de História, 2007. Tomo 3º, p. 6 (vindo da página anterior) e tomo
4º (estampa D 27)

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A Real Ordem da Torre e Espada 1808-1834:
uma Ordem Honorífica Luso-Brasileira

mos do seu princípio, nem do seu estabelecimento” e que a referência à


sua instituição afonsina foi feita com esta dúvida. Porque, se dúvidas hou-
vesse, logo a seguir, dá conta do lavramento de uma moeda de D. Afonso
V, chamada Espadim, que, de um lado, tinha uma mão com uma espada,
com a ponta para baixo, e, do outro lado, o escudo real sobre a cruz de
Avis, moeda essa cujo lavramento o chantre Manuel Severim de Faria
quis ligar em memória da dita Ordem da Espada e cujo desenho aparece
no tomo 4º da mesma obra.

Era tudo quanto bastava para, “por memória antiga” – como escre-
veu D. Fernando José de Portugal – se aproveitar o desenho do espadim
afonsino e a lenda da torre de Fez, no desenho da venera da nova Ordem
que se vai criar de novo.

A primeira divisa de “União e Lealdade” da nova Ordem da


Espada
A divisa originalmente pensada na Bahia para a nova Ordem da Es-
pada não era “Valor e Lealdade”, mas sim “União e Lealdade”, numa
clara referência à união entre o Reino Unido e o Reino de Portugal contra
o invasor francês. Pela datação cronológica da correspondência da Corte
no Rio de Janeiro com a embaixada de Portugal em Londres, em conjunto
com a legislação publicada sobre a nova Ordem honorífica, pensada na
Bahia em fevereiro de 1808 e decretada no Rio de Janeiro em maio des-
se ano, é agora possível ficar a saber outros importantes pormenores da
criação da Real Ordem da Torre e Espada, que se descrevem por ordem
cronológica.

1808, 13 de março – Num extenso ofício do ministro D. Rodrigo


de Sousa Coutinho, no Rio de Janeiro, para D. Domingos de Sousa
Coutinho, em Londres, iniciado pela comunicação do pedido de de-
missão do conselheiro de Estado António de Araújo de Azevedo e da
nomeação do signatário para o cargo de ministro e secretário de Estado
dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, declara-se:

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António Miguel Trigueiros

[...] e em consequência, tenho a honra de participar a V. Sª. que S.


A. R. o Príncipe Regente Nosso Senhor havendo creado uma Ordem
da Espada com uma Medalha de Ouro, em que de um lado há o Seu
Retrato, e do outro uma Espada com as palavras = UNIÃO E LEAL-
DADE =; e querendo dá-la ao Comodoro Moore, e aos outros mais
Oficiais Comandantes das outras três Naus, o que eles não poderiam
aceitar para se servirem da mesma, sem ordem de S. M. Britânica, é
S. A. R. Servido que V. Sª. peça oficialmente esta licença, afim que
eles possam receber este sinal distintivo, e que talvez se converta em
uma Ordem de merecimento para a Marinha, servindo também esta
petição, que V. Sª. deve fazer, de prova da justiça, que S. A. R. rende
ao modo distinto, e muito louvável, com que se tem conduzido o Co-
modoro Moore, e os outros Oficiais de Marinha, que tiveram a honra
de acompanhar a S. A. R. [...]9.

13 de maio – Decreto da criação de uma nova Ordem da Espada,


com a nova divisa de Valor e Lealdade, de que se falará mais adiante.

31 de julho – Nova insistência do ministro Sousa Coutinho so-


bre o importante assunto de se obter o consentimento da Corte de St.
James, mas com dados reveladores dos propósitos do príncipe regente
D. João:
[...] Havendo-se S. A. R. dignado crear uma nova Ordem da Espada
que, não sendo propriamente religiosa, pudesse servir para recom-
pensar os grandes serviços dos ilustres estrangeiros de diferente co-
munhão que, ou Lhe tivessem sido úteis, ou estivessem empregados
no Seu Real Serviço, o mesmo Augusto Senhor se propunha nomear
Gram Cruzes da mesma Ordem com Comendas ao Enviado Extraor-
dinário e Ministro Plenipotenciário Lord Strangford e a Sir Sydney
Smith, assim como Comendadores a Mr. Hill Secretário da Legação, o
Comodore Moore e aos três capitães da Esquadra que acompanharam
a S. A. R. até ao Brasil, e que como seria necessário para que eles acei-
tassem, que precedesse a licença de S. M. Britânica, que V. Sª. devia
com memória pedir e anunciar o consentimento, que é de esperar S.
M. Britânica mande dar [...]10.

9  –  ANTT, MNE, livro 512, ofício DNº I, 2.ª via, original.


10  –  ANTT, MNE, livro 512, fol. 90.

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A Real Ordem da Torre e Espada 1808-1834:
uma Ordem Honorífica Luso-Brasileira

Nesse espaço de tempo, o nosso embaixador em Londres tinha já


entregue ao governo inglês uma nota solicitando as licenças para as con-
decorações, dando conta à Corte no Rio de Janeiro, por ofício de 4 de
agosto de 1808, de que:
[...] 4 - A multiplicidade de negócios tem também impedido que Mr.
Cunning desse resposta à nota que ele mesmo me pediu, tocante à
Ordem de União e Lealdade para os oficiais Ingleses [...]11.

Era grande a resistência da Corte de St. James em permitir que


súbditos britânicos aceitassem Ordens Honoríficas estrangeiras, que
lhe poderiam dar acesso ao grau de “Knight Bachelor” ou de Cavaleiro
do Reino Unido e ao tratamento de Sir. As guerras napoleónicas vieram
dar um tal ímpeto à concessão de insígnias honoríficas estrangeiras a
súbditos ingleses, que o governo de S. M. Britânica viu-se na contin-
gência de regular, de forma eficaz, essas concessões, o que fez pelo
Regulamento de 1812 e adicional de 1813.

Original autógrafo da Carta de Lei de 29 de novembro de 1808 (primeiro e último fólio) existente no Arquivo
Nacional do Rio de Janeiro, Ordens Honoríficas, fundo “BR AN, RIO 69”, caixa 786, Ordem da Torre e Espada,
diplomas de 1808. Reprodução autorizada.

11  –  ANTT, MNE, livro 449, ofício n.º 3.

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António Miguel Trigueiros

Os diplomas originais de uma nova Moeda de Honra


Cumprindo uma tradição centenária, de assinalar os dias festivos da
Corte (dias de Gala e de Grande Gala, coincidentes com aniversários na-
talícios dos soberanos e da sua família), tudo foi preparado no Rio de
Janeiro para o dia dos anos do príncipe regente D. João, no seu 41º aniver-
sário natalício. Além das paradas militares, das cerimónias religiosas, das
luminárias públicas e das outras festividades populares, guardaram-se,
para esse faustoso dia, a divulgação de um número significativo de di-
plomas, que seriam, mais tarde, publicados em folhas avulsas pela recém
criada Impressão Régia do Rio de Janeiro, mais tarde compilados, desde
1811, no tomo primeiro do “Código Brasiliense ou Coleção das Leis,
Alvarás, Decretos, Cartas Régias etc, promulgadas no Brasil...”, desde a
chegada do príncipe regente à Bahia, com índices cronológicos anuais,
pela data dos diplomas e pelos seus títulos, que também passariam a ser
transcritos, de forma resumida e desde 10 de setembro de 1808, na pri-
meira publicação periódica feita no Brasil, a Gazeta do Rio de Janeiro ou
jornal oficial da Corte.

A 13 de maio de 1808, o príncipe regente D. João assina o famoso


decreto que “confirma, renova e aumenta a antiga Ordem de Cavalaria da
Espada”, e que servirá de base à instituição de uma nova Ordem Honorí-
fica, inteiramente civil e política, inspirada na lendária Ordem da Espada
de D. Afonso V, dando, assim, corpo às recomendações ditadas por D.
Fernando José de Portugal na Bahia. No Código Brasiliense de 1811, este
diploma figura no índice de 1808 como: “13 de maio – Decreto da Instau-
ração da Nova Ordem da Espada”. Na sua impressão, foi utilizada uma
composição característica da Impressão Régia do Rio de Janeiro, seguida
desde então em todos os diplomas deste mesmo tipo: a letra capitular
inicial (neste caso, um “S”), serifada e de grande corpo a negro, está co-
locada no início da primeira linha do texto. Nas duas páginas impressas,
a da frente termina com “na Ci-” e, no verso, com as indicações “Regist.
// Na Impressão Regia.” Na versão da Imprensa Nacional de Lisboa, só
publicada em 1811, a mesma letra capitular S serifada, de grande corpo

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A Real Ordem da Torre e Espada 1808-1834:
uma Ordem Honorífica Luso-Brasileira

a negro, está embebida nas quatro primeiras linhas, e o texto termina na


página da frente em “= Valor, e Lealda-“.

Segue-se a instituição da Real Ordem e a definição dos seus Estatu-


tos, por Carta de Lei de 29 de novembro de 1808, cujo original manuscri-
to e autógrafo do príncipe regente existe no Arquivo Nacional do Brasil.
No Código Brasiliense, figura no índice de 1808 como: “29 de novembro
– Carta de Lei da Instauração e Creação da Ordem da Espada: Creação
dos Comendadores, e Cavaleiros; e Providências sobre o seu Estabeleci-
mento”. Este diploma também só seria registado a 2 e a 10 de dezembro
de 1808, o que permitiu que os primeiros agraciamentos tivessem tido
lugar a 17 de dezembro, aniversário natalício da rainha D. Maria I, dia
de Grande Gala na Corte. Tal como o anterior decreto, esta carta de lei só
seria publicada em impresso avulso a 13 de maio de 1809, conforme se lê
no seguinte aviso na Gazeta do Rio de Janeiro dessa data: “Sairão à luz:
Decreto de 13 de maio de 1808; da Instauração, e Renovação da Ordem
da Espada: carta de Lei de 29 de novembro de 1808; da Creação, e Ins-
tauração da mesma Ordem; Creação dos Grans Cruzes, Comendadores, e
Cavaleiros, etc. etc. com a Estampa das Insígnias 12”.

Um aviso que, desde logo, nos permite deduzir que esses desenhos
originais das insígnias da Ordem da Torre e Espada foram os primeiros
gravados na Impressão Régia do Rio de Janeiro. Seriam depois enviados
para Lisboa a 20 de março de 1810, conforme consta na correspondência
com os governadores do Reino em Lisboa13, onde foram copiados e no-
vamente gravados em chapas de cobre na Imprensa Nacional de Lisboa,
que os editou em 1811 (juntamente com o alvará de 23 de abril de 1810).

As primeiras medalhas de Valor e Lealdade


A 31 de maio, D. Fernando José de Portugal ordena ao provedor da
Casa da Moeda do Rio de Janeiro que realize os primeiros ensaios para as
12 – Gazeta do Rio de Janeiro. n.º 70, de 13 de maio de 1809.
13 – ANTT. fundo Ministério do Reino (MR), Livro 380, fol. 121. Nessa data foram
enviados 100 exemplares impressos de cada uma das leis, alvarás e decretos “que nesta
corte se tem publicado, para serem distribuídos pelos tribunais e magistrados”.

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António Miguel Trigueiros

insígnias da Ordem (designadas por medalhas), chamando para esse fim


os “lavrantes e abridores julgados necessários” (gravadores de cunhos),
comprando uma barra de ouro “para as medalhas de que foi encarregado”.
Nessa data, já estavam então determinados os desenhos das insígnias, que
seriam agora gravados no aço dos cunhos e estampados no ouro das me-
dalhas. Cada medalha seria composta de frente e verso (anverso e rever-
so, na nomenclatura numismática): na frente, o retrato de D. João de perfil
à direita, com a sua legenda titular de regente de Portugal e príncipe do
Brasil (grafado com S, como nas legendas em latim das suas moedas); no
verso, o distintivo da nova Ordem, uma espada atravessada numa coroa
de louros, com a legenda “Valor e Lealdade”14.

O busto de D. João que figura nos desenhos de 1808-09, no entanto,


não confere com a efígie gravada nas medalhas em 1808. Nos desenhos,
o busto é drapejado à romana, com laço na nuca, em campo estriado na
horizontal; nas medalhas, foi gravada uma efígie degolada, sem paneja-
mento ou laço, em campo liso. Neste particular, levanta-se uma questão:
por que razão a Casa da Moeda do Rio de Janeiro não gravou no meda-
lhão central das insígnias o busto de D. João, tal qual como figurava nos
desenhos oficiais da nova Ordem e nas moedas de ouro da sua regência, e
teve que fazer uma adaptação, transformando um busto vestido à romana,
numa efígie degolada?

A resposta passa pela análise das condições industriais de funciona-


mento da Casa da Moeda do Rio de Janeiro nesses anos da chegada da
Corte, e da constatação de que a efígie degolada do príncipe regente mais
não é que uma adaptação do busto que figura nas suas moedas de ouro
cunhadas em Lisboa e no Rio de Janeiro, às novas e grandes medalhas
de ouro da Torre e Espada, tendo em conta as condições instrumentais
disponíveis. Uma adaptação necessária, já que, no Rio de Janeiro, não
existiam nem gravadores de cunhos experimentados em obra de retrato,

14 – POLIANO, Marques. As Ordens Honoríficas do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa


Nacional, 1943, pp. 100-101. Perdidos os livros originais de registo da correspondência
da Casa da Moeda do Rio de Janeiro desta época, a única fonte disponível são as referên-
cias que Poliano publicou nessa sua obra.

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A Real Ordem da Torre e Espada 1808-1834:
uma Ordem Honorífica Luso-Brasileira

nem prensas monetárias (balancés de parafuso) com a potência necessária


para estampar grandes medalhas de 76 mm de módulo com gravuras mui-
to relevadas como as do desenho aprovado. Por isso, tiveram que adaptar
esse desenho oficial aos recursos humanos e fabris existentes.

O que esses gravadores da Casa da Moeda do Rio de Janeiro fize-


ram, de forma muito prática, foi aproveitar o retrato numismático do
príncipe regente, de baixo-relevo, dos punções de retrato reprodutores
de cunhos para moedas de ouro (enviados de Lisboa em 1804 e recebi-
dos em 1805), recortá-lo para passar a ser uma efígie “degolada”, em
vez de um busto com paludamento à romana, e voltar a gravá-lo no
centro do cunho do anverso das medalhas, conforme as dimensões de
cada um dos seus tipos.

Com esta habilidade técnica, os gravadores do Rio de Janeiro acaba-


ram por criar um novo retrato numismático de D. João, de baixo relevo:
Anv. – (florão) JOÃO D.G. REG. DE PORT. PRINCIPE DO BRASIL
(João pela Graça de Deus Regente de Portugal Príncipe do Brasil), na
orla circular. Ao centro, em campo liso, a efígie do príncipe regente à
direita, laureada e degolada. Estrela de oito pontas filetadas e maça-
netadas, assente numa grinalda de três varas enleadas por uma fita e
sobrepujada por uma torre com ameias e remate cónico.

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António Miguel Trigueiros

Rev. – (florão) VALOR E LEALDADE, na orla circular. Ao centro,


uma espada nua curva em pala, atravessando uma coroa de carva-
lho (orientada no sentido Oeste-Leste), em campo liso.

Os primeiros condecorados a 17 de dezembro de 1808


A divulgação tardia do diploma da criação da nova Ordem não im-
pediu que as primeiras nomeações tivessem tido lugar no aniversário na-
talício da rainha D. Maria I, a 17 de Dezembro de 1808, onde foram
entregues as primeiras insígnias das três classes da Ordem:

Grã-cruzes: D. Lourenzo Caleppi, núncio apostólico de Sua Santi-


dade; Lord Viscount Strangford, enviado extraordinário de SM Britânica
na corte do Brasil; e o contra-almirante W. Sidney Smith, comandante-
-em-chefe das forças navais britânicas no Rio de Janeiro; Comendadores
todos os comandantes dos navios ingleses que comboiaram a esquadra
real desde Lisboa;

Cavaleiros: o pessoal da delegação britânica no Rio de Janeiro15.

As cartas régias originais desta primeira nomeação de Comendado-


res e de Cavaleiros estão no Arquivo Nacional do Brasil, redigidas de
uma forma mais protocolar do que pessoal. Para o capitão James Walker,
comandante da nau “Bedford”, o texto diz:
Desejando dar um público testemunho que fixe na Posteridade o cui-
dado, o desvelo com que Jaime Walker Me acompanhou, e auxiliou
a Minha retirada para o Estado do Brasil: Hei por bem, obrando com
o consentimento do seu Soberano, fazer-lhe mercê de Comendador
Honorário da Ordem da Torre e Espada, que Fui servido criar, para
servir de Monumento à Resolução com que salvei a Minha Coroa, à fi-
delidade dos Meus Vassalos, e a uma Aliança não interrupta de muitos
séculos, com a Gram-Bretanha, com uma Comenda de légua e meia
de raiz, ou duas e um quarto quadradas de terra, que pela estimação
que Me merece, e por Graça especial, terá a natureza de Sesmaria, que
em tempo competente será designada, e ficará apartada da Ordem,

15 – Gazeta Extraordinária do Rio de Janeiro. n.º 18, de 20 de dezembro; e n.º 30, de 24


de Dezembro. Gazeta de Lisboa, n.º 16, de 21 de abril de 1809.

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A Real Ordem da Torre e Espada 1808-1834:
uma Ordem Honorífica Luso-Brasileira

podendo desde logo usar da Insígnia de Comendador. Palácio do Rio


de Janeiro em 17 de dezembro de 1808 = PR16.

A licença de S. M. Britânica, para que o capitão Walker pudesse acei-


tar e usar da insígnia de Comendador Honorário da Real Ordem da Torre
e Espada, só foi assinada a 30 de abril de 1816 e publicada na Gazeta de
Londres de 11 de maio. Perto da sua retirada do Rio de Janeiro, o capitão
Walker receberia das mãos de D. João, em janeiro de 1809, dois valiosos
presentes, uma caixa com o seu retrato, orlada por um círculo de brilhan-
tes, e um anel com um grosso diamante de 4 quilates, que importaram em
mais de 2 contos de réis17.

Os primeiros condecorados portugueses, escolhidos entre os muitos


que acompanharam o príncipe regente ao Brasil e os escalonados nas di-
ferentes classes da Ordem de acordo com a sua posição social, seu cargo
público ou seu posto militar, foram nomeados no dia 21 de Dezembro,
já depois de se ter tido conhecimento da feliz restauração de Portugal: 6
Grã-cruzes efetivos; 6 Grã-cruzes honorários; 8 Comendadores efetivos;
17 Comendadores honorários e 43 Cavaleiros.

16  –  Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (ANRJ). Ordens Honoríficas, fundo “BR AN,
RIO 69”, caixa 786, Ordem da Torre e Espada, diplomas de 1808.
17 –  ANTT. fundo Casa Real, ex-AHMF, Livro 3000. “Livro do Assento das Joias que
se fazem para o Real Serviço, Rio de Janeiro, 1808 a 1821”. Assento de 24 de janeiro de
1809, pelo Guarda-Joias de D. João, visconde de Vila Nova da Rainha. Este valor de 2
contos equivaleria hoje a 40.000 euros ou 172.000 reais.

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António Miguel Trigueiros

Nesta segunda promoção, merecem destaque os primeiros portugue-


ses que receberam uma Comenda da Torre e Espada, por valorosos feitos
de armas na Restauração de Portugal:
Tomando em consideração a honra, interesse, e zelo, com que pelo
bem do Meu Real serviço se interessaram na ocasião da Restauração
do Reino de Portugal, Manuel Gomes de Sepúlveda, Tenente General
dos Meus Exércitos, e Governador das Armas da Província de Trás-
-os-Montes, José Lopes de Sousa, e Manuel Pinto Bacelar, Marechais
de Campo, e Francisco da Silveira Pinto, Brigadeiro: Hei por bem... 18.

Nas Cartas Régias de nomeação dos primeiros portugueses que via-


jaram na esquadra real até ao Brasil, a justificação para as condecorações,
em qualquer um dos graus, é revelada de forma direta, embora simples:
Querendo premiar as Pessoas declaradas na Relação que será com
este, assinada pelo Conde de Aguiar, do Conselho de Estado, e Minis-
tro Assistente ao Despacho do Meu Gabinete, que preferirão aos seus
interesses a honra de Me acompanharem para este Estado do Brasil:
Hei por bem fazer Mercê às referidas Pessoas de os nomear (Cavalei-
ros = Comendadores) da Ordem da Torre e Espada. Palácio do Rio de
Janeiro em 21 de dezembro de 1808. PR.

18  –  ANRJ. Ordens Honoríficas, fundo “BR AN, RIO 69”, caixa 786, Ordem da Torre e
Espada, diplomas de 1808.

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A Real Ordem da Torre e Espada 1808-1834:
uma Ordem Honorífica Luso-Brasileira

Merece destaque, entre os primeiros Comendadores Efetivos e no


meio de tanta nobreza, aquele comandante português da pequena fragata
“Urânia” que nunca deixou de comboiar e proteger a nau “Príncipe Real”
durante toda a travessia oceânica, o agora capitão de fragata D. João Ma-
noel de Menezes. O príncipe regente não se esqueceu dele e deu-lhe uma
condecoração em pé de igualdade com oficiais de patente muito superior.
Teria, no Brasil, uma brilhante carreira naval, seria promovido a Grã-cruz
da Real Ordem da Torre e Espada no dia da aclamação de D. João VI
e teria a honra de ser o comandante da esquadra naval que transportou
o rei de Portugal de regresso à sede da Monarquia, em 1821. Conde e
marquês de Viana, é uma referência incontornável nos anais da Armada
de Portugal.

No final de 1808, já estavam fechados os números dos membros da


Real Ordem consignados na lei de 29 de novembro: 12 Grã-cruzes (6
efetivos e 6 honorários), além das 4 Reais Pessoas e 8 Comendadores
efetivos. Um número que seria, pouco depois, aumentado pelo alvará de
5 de julho de 1809, para 24 Comendadores honorários, fixando em 100
o número de Cavaleiros efetivos. Até ao final de 1809, todas as vagas
seriam preenchidas, em todas as classes da Ordem19.

Com base nos decretos originais preservados no Arquivo Nacional


do Rio de Janeiro, é agora possível reconstituir os verdadeiros motivos
que levaram o príncipe regente D. João a instituir, em 1808, no Rio de
Janeiro, uma nova Ordem honorífica, civil e política, para:

1 – Servir de monumento à gloriosa jornada da salvação da Mo-


narquia, pela transferência do Governo de Portugal para este Estado do
Brasil;

2 – Premiar os marinheiros da Real Marinha da Grã-Bretanha que o


acompanharam nesta viagem;

19 – O Rol Geral da Ordem da Torre e Espada de 1808 a 1834, contemplando 964 agra-
ciados nas três classes, vem publicado no nosso livro A Viagem das Insígnias. Valor e
Lealdade, 1808-2018. Lisboa e Rio de Janeiro: ed. do autor, 2018.

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António Miguel Trigueiros

3 – Premiar a fidelidade dos seus Vassalos que preferiram aos seus


interesses a honra de o acompanharem a este Estado do Brasil.

Mais tarde, a Real Ordem da Torre e Espada havia de transformar-


-se na mais prestigiada Ordem militar europeia do período das guerras
napoleónicas.

A Torre nas medalhas dos Cavaleiros


A Carta de Lei de 1808 seria modificada no desenho das insígnias
pelo alvará de 23 de abril de 1810, que criou duas inovações emblemáti-
cas: nas placas de peito e nos medalhões centrais das medalhas, a legenda
= Valor e Lealdade = passou a ser de letras douradas em campo de esmal-
te azul ferrete; e, nos hábitos dos Cavaleiros, foi acrescentada uma torre
no topo da estrela, da mesma forma como a tinham os Comendadores.

No Rol Geral das pessoas agraciadas com a Ordem da Torre e Es-


pada, que divulgamos em primeira-mão no nosso livro, são contabiliza-
dos 107 Cavaleiros nomeados entre dezembro de 1808 e março de 1810
(numerados CV-1 a CV-107), os quais teriam recebido ou adquirido as
insígnias primitivas da Ordem, sem a torre cimeira, dos quais 7 oficiais
ingleses e os restantes portugueses, entre os muitos que acompanharam
a família real na viagem ao Brasil. A maioria destes recipiendários terá
depois trocado a medalha original pela nova versão com a torre cimeira.
Estas insígnias originais de 1808-1810 são as mais raras da toda a coleção
da Real Ordem da Torre e Espada, só sendo conhecido um exemplar de
ouro, conferido ao 1º tenente da Royal Navy David Scott ( - 1852), que
era imediato da nau HMS Bedford. Foi leiloado, em Londres, em 1999,
e novamente, em 2015, tendo as seguintes características: diâmetro da
estrela: 43,5 mm; diâmetro do medalhão interior: 17 mm; peso (sem a
fita): 20,34 g.

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A Real Ordem da Torre e Espada 1808-1834:
uma Ordem Honorífica Luso-Brasileira

A viagem das insígnias dos militares da Guerra Peninsular


Nenhum militar inglês em campanha na Península seria condecorado
antes de 13 de maio de 1811. Os primeiros nomeados, na dignidade de
Grã-cruz, seriam Lord Wellington, marechal-general e comandante-em-
-chefe dos exércitos combinados de Portugal e da Grã-Bretanha, desde
então também conde de Vimeiro, e Sir William Carr Beresford, marechal
e comandante-em-chefe do exército de Portugal, também nomeado con-
de de Trancoso; e, na dignidade de Comendador, os coronéis Sir Robert
Thomas Wilson (comandante da Leal Legião Lusitana) e Nicholas Trant
(comandante do corpo de Voluntários Académicos de Coimbra). As res-
pectivas medalhas de ouro foram expedidas para Lisboa a 17 de Maio de
1811 e recebidas em Setembro. Foram enviadas aos agraciados, acompa-
nhadas por cartas dos governadores do reino, datadas de 18 de Setembro,
cujas cópias ainda se conservam na Torre do Tombo20.

A primeira grande nomeação de oficiais britânicos e portugueses,


por proposta conjunta de Wellington e de Beresford, teve lugar a 12 de
outubro de 1812 (natalício do príncipe D. Pedro), consistindo em 1 Grã-
-cruz, 11 Comendadores e 29 Cavaleiros britânicos, cujas insígnias de
ouro e respectivas cartas régias foram recebidas, em Lisboa, em Março de
20  –  ANTT. MR, Livro 380, fol. 247; e MR, maço 429, caixa 536.

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António Miguel Trigueiros

1813, tendo sido enviadas ao embaixador britânico, Charles Stuart, para


as distribuir aos condecorados. A 6 de Abril, comunica-se para o Rio que
“O príncipe regente da Grâ-Bretanha tinha permitido que os ditos oficiais
pudessem aceitar as respectivas insígnias21”.

Os condecorados portugueses, 5 Comendadores e 11 Cavaleiros,


apenas receberam do príncipe regente “as Portarias do estilo para pode-
rem usar das insígnias”, que tiveram que mandar fabricar em Lisboa, no
Arsenal Real do Exército, à sua custa.

À medida que chegavam de Lisboa mais listagens de oficiais re-


comendados pelos comandantes-em-chefe dos exércitos aliados, outras
nomeações foram sendo publicadas no jornal oficial no Rio de Janeiro,
cujos diplomas originais existem no Arquivo Nacional do Rio de Janei-
ro. A última listagem, por informação de Beresford, então já marquês de
Campo Maior, foi servida a 17 de dezembro de 1815 (natalício da rainha
D. Maria), contemplando 1 Grã-cruz, 7 Comendadores e 17 Cavaleiros
entre os oficiais britânicos. O aviso dessa nomeação foi expedido do Bra-
sil por correio marítimo a 3 de Fevereiro de 1816, mas as cartas régias e
as insígnias “para os oficiais ingleses mencionados nas listas e que foram
condecorados”, não se remeteram nessa ocasião, “por não se terem aca-
bado de aprontar as respectivas medalhas”. Seriam remetidas do Rio em
19 de Junho e recebidas, em Lisboa, a 18 de Setembro.

De toda a correspondência consultada, merece especial referência


o aviso enviado do Rio a 18 de maio de 1814, contendo a relação dos
oficiais do exército português que foram reputados dignos de serem con-
decorados com as insígnias da Real Ordem da Torre e Espada, condeco-
rações essas conferidas, no dia 13 de maio (natalício do príncipe regente),
a 5 Comendadores e 2 Cavaleiros britânicos, e a 3 Comendadores e 1
Cavaleiro portugueses:
Remetem-se 12 cópias da lista dos despachos e as Portarias de estilo
para os Oficiais Portugueses, que serão contemplados, poderem usar
das suas insígnias; e por não estarem ainda prontas as Medalhas, que

21 – Ibid. Idem. Livro 315, fol. 164 v.º

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A Real Ordem da Torre e Espada 1808-1834:
uma Ordem Honorífica Luso-Brasileira

SAR costuma enviar aos Oficiais Ingleses, não vão nesta ocasião, e
serão daqui remetidas pelo próximo navio com os seus corresponden-
tes títulos22.

Essas insígnias ou medalhas de ouro, fabricadas na Casa da Moeda


do Rio de Janeiro, seriam recebidas, em Lisboa, a 20 de Agosto. As insíg-
nias dos oficiais portugueses deveriam ser adquiridas em Lisboa, à custa
dos condecorados. Entre 1811 e 1822, os oficiais Britânicos combatentes
da guerra na Península, condecorados com a Real Ordem, somaram 13
Grã-cruzes, 56 Comendadores e 106 Cavaleiros.

22 – Ibid. Idem. Livro 381, fol. 441; Livro 382, fol. 8; Livro 317, fol. 215; e Livro 381,
fol. 197.

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António Miguel Trigueiros

Insígnias brasileiras e insígnias portuguesas


Os desenhos de 1809 das insígnias da Real Ordem da Torre e Espada
seguiram também para o Arsenal Real do Exército em Lisboa, onde foram
gravados no aço dos cunhos com grande rigor e qualidade, respeitando
escrupulosamente os padrões originais das diferentes insígnias da nova
Ordem, já então conformes às alterações determinadas em 1810.

Tem aqui génese a característica mais peculiar desta Ordem luso-


-brasileira, que lhe confere um lugar único entre a emblemática de todos

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A Real Ordem da Torre e Espada 1808-1834:
uma Ordem Honorífica Luso-Brasileira

os tempos e de todas as nações. A Real Ordem da Torre e Espada foi e,


ainda é, a única distinção honorífica que teve dois modelos diferentes de
insígnias oficiais, um feito no Brasil (Rio de Janeiro), o outro, em Portu-
gal (Lisboa), ambos concordando com a divisa de = Valor e Lealdade =,
mas profundamente distintos nas suas características intrínsecas e icono-
gráficas.

No modelo dito português, de Lisboa, a descrição dos dois meda-


lhões do anverso e do reverso é a seguinte:
Anv. – (heptafólio) JOÃO D.G. REG. DE PORT. PRINCIPE DO
BRAZIL (João pela Graça de Deus Regente de Portugal Príncipe do
Brasil), na orla circular. Ao centro, em campo estriado horizontalmen-
te, o busto do príncipe regente à direita, laureado (com orelha desco-
berto) e drapejado, com paludamento preso sobre o ombro direito e
um grande laço pendente da nuca. Estrela de oito pontas maçanetadas
com duplo filete, assente numa grinalda enleada por uma fita e sobre-
pujada por uma torre com ameias e remate cónico.
Rev. – (quadrifólio) VALOR E LEALDADE (letras riscadas no inte-
rior), na orla circular. Ao centro, uma espada nua curva atravessando
uma coroa de carvalho (orientada no sentido Leste-Oeste), em campo
estriado horizontalmente.

A grafia da palavra “BRAZIL”, com Z, aparece em todas as in-


sígnias do modelo de Lisboa, porque era assim que se escrevia vulgar-
mente nessa época e assim figura na documentação oficial, ao passo
que, nas moedas, aparecia a grafia “BRASIL”, da legenda em latim,
razão por que foi adotada nas estampagens da Casa da Moeda do Rio
de Janeiro. Na estampa dos desenhos das insígnias da Real Ordem,
impressa, em 1811, na Imprensa Nacional de Lisboa, bem como, na
estampa avulsa publicada no Almanaque de Lisboa para o ano de 1817,
as legendas das medalhas aparecem todas com a grafia “BRAZIL”,
reproduzindo o modelo cunhado no Arsenal Real do Exército.

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António Miguel Trigueiros

As condecorações de militares luso-brasileiros no Brasil


Desde a primeira campanha militar contra a colónia francesa de Caie-
na, em 1809, até a conquista de Montevideu, em 1817, e às campanhas
cispalinas de 1820, foram muitos os militares brasileiros, portugueses e
luso-brasileiros que se distinguiram, recebendo de D. João as insígnias da
Real Ordem da Torre e Espada. Entre eles, citamos:

Luiz da Cunha Moreira (1777-1865), comandante do brigue


D. Pedro na conquista de Caiena em 1809, mais tarde vice-almirante e

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A Real Ordem da Torre e Espada 1808-1834:
uma Ordem Honorífica Luso-Brasileira

1.º ministro da Marinha Imperial, visconde de Cabo Frio – Cavaleiro da


Torre e Espada em 1809.

Rodrigo José Ferreira Lobo, comandante da fragata “Minerva” em


1807, apoiou a expedição a Montevideu e o bloqueio de Pernambuco em
1817, mais tarde vice-almirante da Marinha Imperial, comandante da es-
quadra no Rio da Prata em 1826 - Cavaleiro da Torre e Espada em 1808,
Comendador em 1817.

Joaquim Xavier Curado (1746-1830), tenente-general em 1813,


herói das campanhas de Montevideu, mais tarde conde de S. João das
Duas Barras – Comendador da Torre e Espada em 1818, “[...] pelos bons
e distintos serviços que Me tem prestado nas Campanhas do Sul, dando
repetidas provas de valor, e brio militar.”

Carlos Frederico Lecór (1764-1836), comandante da Divisão de


Voluntários Del´Rei em 1815, conquistador de Montevideu em 1817 e
seu governador, barão de Laguna em 1818 – Comendador da Torre e Es-
pada em 1812, Grã-cruz em 1820.

A história da Real Ordem da Torre e Espada depois continuaria em


Portugal, com o regresso do Rei à sede da Monarquia, até a sua extinção
em 1834. Mais de metade das suas nomeações foram conferidas no Bra-

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António Miguel Trigueiros

sil, no entanto, conforme revela a estatística geral da Real Ordem, que


segue em quadro anexo, conferindo à Real Ordem da Torre e Espada de
D. João VI o seu caráter de Ordem Honorífica luso-brasileira.

Portugueses e Brasileiros podem sentir orgulho por terem tido a mais


prestigiada Ordem Militar e Honorífica da primeira metade do século
XIX. Concebida na Bahia e nascida no Rio de Janeiro, as insígnias da
Real Ordem da Torre e Espada de D. João VI são um precioso testemunho
do nosso passado histórico comum.

Texto apresentado em outubro/2018. Aprovado para publicação em


dezembro/2018.

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Um sábio na Ilha do Governador

209

II – COMUNICAÇÕES
NOTIFICATIONS

UM SÁBIO NA ILHA DO GOVERNADOR


A WISE MAN IN GOVERNOR ISLAND
Cybelle Moreira de Ipanema 1

Resumo: Abstract:
A comunicação refere-se, especificamente, a The paper is focused solely on João Manso
João Manso Pereira, personagem do século Pereira, who was born in mid-18 th century and
XVIII ao XIX, morto em 1820, considerado died in 1820. He was considered "a wise
“um sábio”, por suas múltiplas atividades, entre man" for having been engaged in many
as quais a de ter produzido louça afamada com different activities, among which the production
material da Ilha do Governador, pequeno terri- of famous porcelain pieces made of a material
tório do município do Rio de Janeiro. Deixou, from Ilha do Governador, an island in the city of
igualmente, obras publicadas, todas em Lisboa. Rio de Janeiro. He is also the author of a number
Foi lembrado pelo fluminense Joaquim Manuel of works, all published in Lisbon. He has been
de Macedo e pelo dicionarista baiano Sacra- remembered by Joaquim Manuel de Macedo,
mento Blake, e incluído no Índice Alfabético e from Rio de Janeiro, and the lexicographer
Remissivo do Ano Biográfico Brasileiro, orga- Sacramento Blake, from Bahia. His name is
nizado por José Marcello Moreira. included in the Alphabetical and Subject Index
of the Brazilian Biographical Annual organized
by José Marcello Moreira.
Palavras-chave: romantismo; política; sé- Keywords: romanticism; politics; nineteenth,
culo XIX; século XX; século XXI. twentieth and twenty-first centuries.

João Manso foi águia, a que faltou espaço, foi gênio, a que faltaram
recursos e condições favoráveis para revelar-se na altura de suas facul-
dades.
Da nossa ligação com a História da Ilha do Governador e com os
seus personagens, pareceria um elogio com que faríamos questão de abrir
a trajetória de alguém que, do século XVIII ao XIX, deixou marca indelé-
vel, embora não tão lembrada, de sua passagem. Tal, porém, não é o caso,
senão que a apreciação vem da pena de Joaquim Manuel de Macedo, em
o Ano Biográfico Brasileiro.

1  –  Livre Docente e Doutora em Comunicação pela UFRJ, Sócia Emérita do Instituto


Histórico e Geográfico Brasileiro.

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Cybelle Moreira de Ipanema

Foi a obra “escrita a convite da ilustrada Comissão Superior da Ex-


posição Nacional de 1875, com o fim de aparecer na Exposição de Fila-
délfia”. Impressa (em port.) no Rio de Janeiro, na Tipografia e Litografia
do Imperial Instituto Artístico, no ano seguinte. Neste, também foi im-
pressa em inglês, como o depõe Sacramento Blake.
Trata-se de biografias de brasileiros e de alguns portugueses que di-
zem respeito à nossa formação, escolhidas as datas do ano por alguma
circunstância ligada à vida do biografado: nascimento, morte, nomeação,
renúncia ao cargo etc. São três volumes que, por óbvio, não se encontram
alfabetados, o que, em muito, dificulta a pesquisa: é preciso percorrer
todos para que se encontre o nome desejado. São biografias que muito
importam, sobretudo daqueles com quem Macedo conviveu.
Aqui, há a síntese dos volumes, com duração, número de biografias
e de páginas:
De 1o de janeiro a 30 de abril, 120 biografias em 541 páginas; de 1o
de maio a 31 de agosto, 123 biografados em 543 páginas, e de 1o de se-
tembro a 31 de dezembro, 122 biografias e 627 páginas, comportando, os
três volumes, necessariamente, 365 analisados.
Em 1880, apareceu um Suplemento ao Ano Biográfico Brasileiro,
constante do nome de 100 personagens (e não, 120), já agora em ordem
alfabética. A consulta a este é mais fácil, pela edição fac-similar, em 1970,
de responsabilidade do Conselho Federal de Cultura, do Dicionário Bi-
bliográfico Brasileiro, de Sacramento Blake, de 1895.
Veja-se em que se assentam os dados biográficos de João Manso
(Manso Pereira, aliás), nosso interessado de hoje.
Duas são as fontes em que se apoiam: o Ano Biográfico Brasileiro,
de Macedo, e o Dicionário Bibliográfico Brasileiro, de Blake.
Para Macedo, sua origem é o Rio de Janeiro, enquanto, para o dicio-
narista baiano, ele era nascido em Minas Gerais. Ambos convergem em
decliná-lo como tendo estudado no Seminário da Lapa, conhecedor do

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Um sábio na Ilha do Governador

grego e do hebraico, professor de latim na cidade do Rio “e tão afamado


que seus discípulos tinham por glória nomear o seu mestre”.
Versado nas ciências naturais, foi pelo governo encarregado da aná-
lise do ferro de Ipanema.
Estudou ciências naturais em seu gabinete, especialmente a química,
pela qual era apaixonado, tornando-se uma notabilidade “quanto era pos-
sível sê-lo no Brasil, colônia peada pelo egoísmo da metrópole”.
Fabricou vários produtos, como vinho, açúcar, aguardente destilada
da raiz de sapê, camafeus de barro do país etc. Nesse sentido, “alguns dos
mais considerados habitantes da cidade do Rio de Janeiro se desvaneciam
de possuir louça do país fabricada pelo célebre João Manso”.
Podemos inserir nota de pesquisa local, lembrada por Magda Bea-
triz Vilela, museóloga do IHGB. No acervo da Casa, existe um prato de
sobremesa, do serviço oferecido a D. Pedro I, pelo povo fluminense, em
1822.
É indicada: Louça. Manufatura de João Manso. Ilha do Governador.
É o prato “dito do versinho” cujos termos se podem ver nesta reprodução:
Vivaó os Brasileiros
Vivaó os Mineiros
Vivaó os Fluminenses
Vivaó os Paulistas
Ocupando as quatro faces do prato, em posição fronteira, vis-à-vis,
enquadrados por cercaduras de pequenas folhas. No meio, circundado
com a mesma decoração e mais dois ornamentos, o célebre “versinho”
(que é, por sinal, uma quadrinha):
Pafsar de Reino a Colonia
He desar, e humihaçaó,
Que soffrer jamais podia
Brazileiro Coraçaó2.

2 – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – 150 anos (1838-1888). Projeto e reali-


zação – Isa Adonias. Rio de Janeiro: Studio HFM, 1900, p. 115.

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Cybelle Moreira de Ipanema

Às autoridades da terra, João Manso Pereira oferecia peças de sua


inventiva confecção como estas: “ao vice-rei Luís de Vasconcelos uma
mesa, só por ele trabalhada, onde se viam representadas, em ouro e em di-
versas cores, a baía do Rio de Janeiro e suas ilhas, e a d. João VI ofereceu
um aparelho e uma caixa para sabão de barba, de fina porcelana, como a
da Índia, que ele sabia imitar, assim como o charão, feita com argila da
Ilha do Governador. Fez também os bustos de d. Maria I e de seu esposo
/d. Pedro III/, os quais foram enviados para Lisboa e aí admirados”.

Era João Manso Pereira comendador da Ordem de Cristo e morreu


no Rio de Janeiro, em 20 de agosto de 1820, com mais de 70 anos de
idade. Já Macedo, por ignorar-lhe qualquer data respeitante à vida, lança,
aleatoriamente, seus dados, em o Ano Biográfico Brasileiro, em 14 de
junho3. Escreveu:
– Memoria sobre a reforma dos alambiques ou de um próprio para des-
tilação das águas-ardentes. Lisboa, 1797, 42 pags. in-8o.
– Memoria sobre o método econômico de transportar para Portugal a
água-ardente do Brasil com grande proveito dos fabricantes e comer-
ciantes. Lisboa, 1798, 28 pag. in-8o.
– Memoria sobre uma nova construção de alambique para se fazer toda
a sorte de destilações com economia e proveito, traduzida do francês
e acrescentada com anotações. Lisboa, 1805, in-8o.
– Carta sobre a nitreira artificial, estabelecida na vila de Santos da ca-
pitania de S. Paulo, dirigida a esta corte por João Manso Pereira e
publicada por frei José Mariano da Conceição Vellozo. Lisboa, 1800,
19 pags. in-4o – Depois, neste mesmo ano, se publicou a continuação
dessa carta, in-8o.
– Considerações sobre as cinzas do cambará, do Imbé, etc. Lisboa,
1800, in-4o – Foram também enviadas com uma carta, e publicadas
por frei José Mariano4.

3  –  MACEDO, Joaquim Manuel de. Ano Biográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Tipogra-
fia e Litografia do Imperial Instituto Artístico, 1876, II volume, pp. 199-200.
4  –  BLAKE, Augusto Vitorino Alves Sacramento. Dicionário Bibliográfico Brasileiro.
Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1895, vol III, p. 479. (Reimpressão de off-set, Conse-
lho Federal de Cultura, 1970).

212 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):209-216, jan./abr. 2019.


Um sábio na Ilha do Governador

A Memória sobre o método... diz que foi reimpressa no Auxiliador


da Indústria Nacional, tomo 8o, p. 321 e segs., e que, nesta Memória, à
p. 26, declara João Manso “que a perdição no Brasil da indústria da co-
chonilha proviera de certo químico infernal que a falsificava com farinha
de mandioca”.

De seu interesse por livros, há uma relação dos que adquiriu na “Li-
vraria do Teixeira”, conforme Nireu Cavalcanti5.

Livros adquiridos por João Manso Pereira, Arquivo Nacional da Tor-


re do Tombo – Mss. cx 153:
– Annales de chymie – e uma coleção em brochura de várias memórias
químicas de diferentes autores – 8o
– Chymie – par Foureroy
– Recherches sur les vegetaux – par Parmentier – 1 vol. 8o
– Analyse du fer – par Bergman – 1 vol. 8o
– Affinités chymiques – par Bergman – 1 vol. 8o
– Recreations physiques, economiques et chymiques – de M. Model, tra-
duit de Allemand – 2 vol. 8o
– Institutions chemic – Francisci de Wasergerg – 2 vol. 8o
– Demonstração das grandes utilidades e das fracas, e tecelagem de
algodão em Portugal – brochura – 1 vol. 4o
– Dicionário da Língua do Brasil – brochura – 25 vols. 4o

Admitindo nós – também aleatoriamente – que tivesse nascido em


cerca de 1750 e falecido em 1870, estaria em razoáveis condições para
comprar, no livreiro de 1794, as obras da especialidade e um Dicionário
da língua do Brasil, em 25 volumes. Teria tempo de consultá-lo...

5  –  OLIVEIRA, Nireu Cavalcanti de. A livraria do Teixeira e a circulação de livros na


cidade do Rio de Janeiro em 1794. Acervo. Revista do Arquivo Nacional, vol. 8, no 01/02,
jan./dez. 1995. Leituras e Leitores, p. 195.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):209-216, jan./abr. 2019. 213


Cybelle Moreira de Ipanema

Segunda parte
Orientado por seus pais, um ginasiano aluno do Colégio Mendes de
Moraes, na Ilha do Governador, preparou o Índice Alfabético e Remissivo
do Ano Biográfico Brasileiro, de Joaquim Manuel de Macedo.

Com estímulo de José Gabriel da Costa Pinto, foi editado pelo Arqui-
vo Nacional, subordinado ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores,
em 1965, no tempo da Direção do Arquivo, de Pedro Moniz de Aragão.

Filho de dois futuros sócios do Instituto Histórico e Geográfico Bra-


sileiro, Marcello e Cybelle, licenciados em Geografia e História, pela Fa-
culdade Nacional de Filosofia, da então Universidade do Brasil, mereceu
Prefácio de mestre Helio Vianna que ressalta a circunstância de terem
sido, ambos, seus ex-alunos da FNFi. Por outro lado, sobre Índices, es-
clarece:
Ninguém ignora a necessidade, para quaisquer estudos e pesquisas,
da existência de bem feitos índices onomásticos que poupem tempo e
inúteis canseiras aos estudiosos e pesquisadores.

Nesse momento, acrescentamos depoimento pessoal, relacionado à


feitura do Índice. Na ocasião em que o ginasiano José Marcelo o ela-
borava, era professora do Colégio Mendes de Moraes. À nossa revelia,
evidentemente, a diretora do Colégio, professora Maria Amelia Penna,
fretou um ônibus local para que os colegas do jovem de 12 anos pudes-
sem assistir à tarde de autógrafos no antigo prédio do Arquivo Nacional.

Fica a imagem do Índice Alfabético e Remissivo do Ano Biográfico


Brasileiro, de Joaquim Manuel de Macedo, que contempla também João
Manso Pereira, acabado de retraçar-se como um sábio na Ilha do Gover-
nador.

214 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):209-216, jan./abr. 2019.


Um sábio na Ilha do Governador

Louça. Manufatura de João Manso. Ilha do Governador.

Índice Alfabético e Remissivo do Ano Biográfico Brasileiro.

Texto apresentado em agosto/2018. Aprovado para publicação em


dezembro/2018

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):209-216, jan./abr. 2019. 215


Um estudo biográfico não publicado sobre
o médico-botânico Joaquim Monteiro Caminhoá

217

III – DOCUMENTOS
DOCUMENTS

UM ESTUDO BIOGRÁFICO NÃO PUBLICADO SOBRE


O MÉDICO-BOTÂNICO JOAQUIM MONTEIRO
CAMINHOÁ
AN UNPUBLISHED BIOGRAPHICAL STUDY ABOUT
THE PHYSICIAN AND BOTANIST JOAQUIM MONTEIRO
CAMINHOÁ
Alex Gonçalves Varela1

Resumo: Abstract:
O artigo tem como objetivo publicar um texto We publish in this paper a handwritten bio-
biográfico manuscrito sobre o médico-botânico graphical text about the botanist Joaquim Mon-
Joaquim Monteiro Caminhoá. O estudo foi lo- teiro Caminhoá. The study was located in the
calizado na Coleção Claudio Ganns, guardada Claudio Ganns Collection, housed in the Bra-
no instituto Histórico e Geográfico Brasileiro zilian Historical and Geographical Institute
(IHGB), não possuindo autoria. O documento se (IHGB), and it´s authorship is not indicated.
revela uma importante análise sobre a trajetória The document reveals an important analysis on
do cientista que atuou no Império do Brasil, que the career path of a scientist who worked in the
participou ativamente de diversas instituições e Empire of Brazil and was an active member of
sociedades científicas oitocentistas, bem como several institutions and scientific societies of the
publicou inúmeros artigos e livros no campo da eighteenth century, having also published nu-
medicina e da botânica. merous articles and books in the fields of medi-
cine and botany.
Palavras-chave: Joaquim Monteiro Caminhoá; Keywords: Joaquim Monteiro Caminhoá; Em-
Império do Brasil; século XIX; Medicina; Bo- pire of Brazil; 19th century; medicine; botany.
tânica.

I – Apresentação do Documento
Joaquim Monteiro Caminhoá foi um dos mais importantes homens
de ciência que atuou no Império do Brasil, tendo, inclusive, uma carreira
consolidada e reconhecida internacionalmente. Ele atuou em instituições
científicas, foi sócio de diversas sociedades científicas e publicou inú-
meros livros e artigos. O estudioso se dedicou a produzir conhecimento

1  –  Professor do Departamento de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro


(UERJ). Integra o Laboratório Redes.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):217-236, jan./abr. 2019. 217


Alex Gonçalves Varela

científico sobre questões médicas e botânicas. Sua trajetória acadêmica,


contudo, ainda não foi devidamente estudada, e suas produções científi-
cas ainda não foram analisadas profundamente. Dessa forma, não só há
lacunas que precisam ser preenchidas pelos estudiosos que se dedicam a
pesquisar as relações entre ciências e trajetórias, mas também caminhos
amplos e profícuos que merecem ser explorados e que estimulam novas
reflexões.

Joaquim Monteiro Caminhoá nasceu em 21 de dezembro de 1836,


na cidade de Salvador, província da Bahia. Era filho de Luiza Monteiro
Caminhoá e Manuel José Caminhoá, além de irmão de Luiz Monteiro Ca-
minhoá. Ele tornou-se doutor em Medicina pela Faculdade de Medicina
da Bahia (1858). Em 1861, entrou para a Faculdade de Medicina do Rio
de Janeiro como opositor de Ciências Acessórias, sendo depois nomeado
Lente de Botânica e Zoologia (1871), com a tese “Das plantas tóxicas
do Brasil”. Foi também nomeado Lente de história natural do Colégio
Pedro II.

Joaquim Monteiro Caminhoá integrou, como sócio, a Academia


Imperial de Medicina. Foi um dos fundadores da Associação Brasileira
de Aclimação, foi Patrono da cadeira nº 57, destinada à cirurgia naval,
da Academia Brasileira de Medicina Militar, e membro de associações
científicas estrangeiras, como a Sociedade de Botânica da França e da
Sociedade de Ciências Naturais de Edimburgo. Caminhoá faleceu em 28
de novembro de 1896, no Rio de Janeiro.

A pesquisa sobre a trajetória de Joaquim Monteiro Caminhoá foi


iniciada com o levantamento da bibliografia que já foi produzida sobre
a vida do personagem. Em outras palavras, procuramos localizar o con-
junto de textos, aí incluindo verbetes, artigos, livros, discursos, dentre
outros, produzidos sobre o botânico.

A primeira obra redigida sobre Caminhoá que localizamos foi o ver-


bete elaborado pelo médico e escritor Sacramento Blake para o Dicioná-

218 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):217-236, jan./abr. 2019.


Um estudo biográfico não publicado sobre
o médico-botânico Joaquim Monteiro Caminhoá

rio Bibliográfico Brasileiro, obra produzida no final do século XIX2. O


Dicionário de Augusto Victorino Alves Sacramento Blake é, por muitos
autores e críticos especializados, considerada a mais completa bibliogra-
fia de autores brasileiros do período colonial até o século XIX. Essa obra
apresenta a biografia de cada autor e faz uma compilação das obras por
eles produzidas e é, no quarto volume dessa obra, publicado em 1898,
que Sacramento Blake se debruça sobre a vida de Joaquim Monteiro Ca-
minhoá. O verbete de Blake se propõe a fazer uma análise biográfica
de Caminhoá, chamando atenção para aspectos da vida do personagem,
como: nascimento e morte, filiação, formação, serviços prestados, títulos,
medalhas recebidas, sociedades médicas as quais pertenceu, além de uma
enumeração das obras produzidas por Caminhoá.

Já no século XX, no ano de 1932, Magalhães – médico, professor,


orador e ex-ocupante da cadeira 33 (trinta e três) da Academia Brasileira
de Letras - escreveu o livro do “Centenário da Faculdade de Medicina do
Rio de Janeiro”3. Nessa obra comemorativa, Fernando Augusto Ribeiro
Magalhães redigiu uma curta biografia sobre Joaquim Monteiro Cami-
nhoá, que fora um dos mais notáveis pesquisadores das áreas de botânica,
biologia e zoologia, no século XIX. No texto, Fernando Magalhães apre-
sentou uma biografia que seguia o mesmo padrão do conjunto de dados
biográficos apresentado por Blake, e apresentou, como este último, uma
lista das publicações de Caminhoá.

Por sua vez, na década de sessenta do século XX, o médico Car-


los da Silva Araújo, patrono da Cadeira nº 95 da Academia Nacional de
Medicina, redigiu um artigo sobre Caminhoá4. No estudo apresentado,
Araújo comentou sobre a trajetória de vida do personagem, enfatizando
sua atuação como professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro,

2 – BLAKE, Sacramento. Dicionário Bibliográfico Brasileiro. vol. IV. Rio de Janeiro:


Imprensa Nacional, 1898.
3 – MAGALHÃES, Fernando. Centenário da Faculdade de Medicina do Rio de Janei-
ro. Rio de Janeiro: Typ. A. P. Barthel, 1932.
4  –  ARAÚJO, Carlos da Silva. Joaquim Monteiro Caminhoá. Patrono da Cadeira nº
95. Datilografado. Arquivo pessoal da Academia Nacional de Medicina. [Rio de Janeiro]:
[s.n.], [s.d.].

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):217-236, jan./abr. 2019. 219


Alex Gonçalves Varela

a admissão como sócio na Academia Imperial de Medicina e alguns de


seus trabalhos realizados na mesma instituição. Em relação às atividades
que realizou como botânico, comentou sobre a mais importante obra pro-
duzida por Caminhoá, Elementos de Botânica Geral e Médica, sobre a
nomeação para a Cátedra de História Natural do Colégio Pedro II, e men-
cionou títulos, comendas e homenagens póstumas recebidas pelo estu-
dioso. Esse estudo, portanto, se diferiu dos demais até então apresentados
pelo fato de Araújo ter escolhido alguns temas na trajetória do letrado e
não ter apresentado uma biografia de forma linear, que apresentasse uma
narrativa que privilegiasse datas e fatos da vida do homem de ciência do
Império.

No ano de 1971, o médico e professor Lacaz publicou também uma


curta biografia sobre Caminhoá no livro Vultos da medicina brasileira5.
Carlos da Silva Lacaz apresentou o mesmo tipo de informações biográ-
ficas sobre Caminhoá em consonância às apresentadas por Blake e por
Fernando Magalhães, conforme acima comentamos. Listou apenas al-
guns trabalhos acadêmicos de Caminhoá. Um dos diferenciais do texto
de Lacaz foi a anexação de uma matéria do Jornal do Comércio, que,
em alusão à morte de Joaquim Monteiro Caminhoá, escreve que o autor
fora um dos mais notáveis botânicos brasileiros, cujas obras serviriam de
referência para as gerações posteriores de estudantes, especialmente por
conta da precisão e da minúcia, além da escrita atraente de Caminhoá. O
jornal considera que seus escritos marcam como um dos mais eficientes
estudos das ciências naturais.

Outro autor analisado foi Giffonni, médico e dedicado ao Magistério,


sendo professor por longos anos6. Orsini Carneiro Giffoni foi Professor
de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Catan-
duva, interior de São Paulo, bem como Professor de Biologia do Instituto
de Educação Padre Anchieta. Sua principal obra foi o Dicionário Bio-

5  –  LACAZ, Carlos da Silva. Vultos da medicina brasileira. São Paulo: Laboratório Pfi-
zer do Brasil, 1971.
6  –  GIFFONI, Orsini Carneiro. Dicionário Bio-bibliográfico brasileiro de escritos médi-
cos (1500-1899). São Paulo: Nobel, 1972.

220 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):217-236, jan./abr. 2019.


Um estudo biográfico não publicado sobre
o médico-botânico Joaquim Monteiro Caminhoá

Bibliográfico brasileiro de escritores médicos – 1500-1899, publicada


pela primeira vez em 1972. Na obra, o autor se dedica a apresentar uma
biografia daqueles que eram considerados os mais importantes médicos
escritores do período por ele escolhido (1500-1899). Apesar das muitas
críticas, por deixar de fora de seu dicionário médicos escritores muito
importantes, o autor não deixou de citar Joaquim Monteiro Caminhoá.

Outro autor analisado foi Lycurgo Santos Filho, médico, professor


universitário e autor da obra História Geral da Medicina Brasileira, com-
posta por dois volumes, cuja 1ª edição foi publicada em 1977. Essa publi-
cação era a ampliação e a reforma da obra História da Medicina no Brasil
do século XVI ao século XIX, que havia sido publica em 19477.

Lycurgo dos Santos Filho, juntamente a Carlos da Silva Lacaz, se


insere numa tradição de pesquisa de médicos que se interessaram pela
história da medicina brasileira e passaram a realizar pesquisas na área e
a publicar livros e artigos. Registra-se que a história da medicina que a
maioria destes médicos apresenta em suas obras tem um caráter memo-
rialístico, preocupada especialmente em referir-se aos grandes vultos da
área no Brasil e em mencionar seus feitos. É importante destacar, todavia,
que muitas destas obras, igualmente, informam sobre fontes para subsi-
diar futuras pesquisas. No volume dois da supracitada obra, cujo con-
teúdo é centrado na história da medicina do Império, Lycurgo, na parte
referente à Botânica e Zoologia Médicas, mencionou Joaquim Monteiro
Caminhoá, apresentando um curto trecho sobre o personagem em que
mencionava dados sobre sua formação, atuação e citação de alguns de
seus títulos publicados.

Todos os trabalhos supracitados produzidos sobre Caminhoá, portan-


to, foram produzidos por médicos, que redigiram curtas biografias, apre-
sentadas de forma linear, privilegiando uma narrativa de datas e de fatos,
com exceção de Carlos da Silva Araújo, que selecionou alguns temas para
comentar sobre a trajetória do estudioso. Toda a produção mencionada,

7  –  SANTOS FILHO, Lycurgo de Castro. História Geral da Medicina Brasileira. v.


2. São Paulo: Editora Hucitec, Editora da Universidade de São Paulo, 1991.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):217-236, jan./abr. 2019. 221


Alex Gonçalves Varela

contudo, não se caracteriza por serem estudos de análise crítica profunda,


que não contextualizam a produção científica do médico do Império do
Brasil. Eles limitaram-se apenas a elencar uma lista das suas obras, sem
apresentarem uma reflexão crítica sobre elas.

O primeiro estudo que localizamos realizado por um historiador sobre a tra-


jetória de vida de Caminhoá foi da historiadora das ciências, pesquisadora do
Departamento de Pesquisa da Casa de Oswaldo Cruz, professora do Programa
de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde, Maria Rachel Fróes
da Fonseca. Ela é coordenadora do Dicionário Histórico Biográfico das
Ciências da Saúde no Brasil – 1832-1930, publicado em versão on-line
no início do século XXI8.

A autora apresenta uma biografia mais detalhada da vida de Cami-


nhoá, apresentando informações mais precisas sobre dados pessoais, tra-
jetória profissional e produção intelectual. Neste último item, apresentou
uma relação minuciosa das suas conferências, cursos, artigos, pareceres,
teses, relatórios, entre outros. Por exemplo, Fonseca destacou, dentre ou-
tras coisas, os dez cursos de botânica popular proferidos por Caminhoá
nas Conferências Populares da Glória, que eram realizadas na cidade do
Rio de Janeiro desde 1873.

Inserido também no mesmo espaço institucional da pesquisadora


Maria Rachel, o historiador Jaime Larry Benchimol, na obra intitulada
Dos Micróbios aos Mosquitos. Febre Amarela e a Revolução Pasteuria-
na no Brasil, analisou a trajetória de Domingos José Freire e de João
Batista de Lacerda, dois personagens que enfrentaram, de forma teórica e
prática, a febre amarela e os outros flagelos que grassavam as populações
dos núcleos urbanos do sudeste do país durante o Império9. Um dos ho-
mens que atuou com o primeiro citado foi Joaquim Monteiro Caminhoá,
que integrou a Comissão de Estudos Sobre Febre Amarela (1883 a 1885),

8  –  FONSECA, Maria Rachel Fróes da. Dicionário Histórico-Biográfico das Ciências


da Saúde no Brasil (1832-1930). Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, 2000 –
Disponível em: http://www.dichistoriasaude.coc.fiocruz.br. (acessado no dia 17/09/2017).
9  –  BENCHIMOL, Jaime Larry. Dos Micróbios aos Mosquitos. Febre Amarela e a Re-
volução Pasteuriana no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ/ Editora UFRJ, 1999.

222 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):217-236, jan./abr. 2019.


Um estudo biográfico não publicado sobre
o médico-botânico Joaquim Monteiro Caminhoá

dirigidos por Freire, e foi também seu auxiliar, depois, na continuação


dos referidos estudos. Benchimol também argumenta que Caminhoá foi
o principal porta-voz de Domingos Freire na Academia Imperial de Me-
dicina. O historiador utilizou diversas obras de Caminhoá como fonte de
análise.

Prosseguindo, o primeiro trabalho acadêmico de pós-graduação que


localizamos foi a dissertação de mestrado de Wandir Vieira Leal Santos,
defendida no Programa de História da Ciência da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo10. Nesse estudo, Santos analisou a principal obra de
Caminhoá intitulada Elementos de Botânica Geral e Médica, publicada
no ano de 1877, enfatizando a análise do conceito de espécie. O trabalho
de Wandir ganha relevância, pois se insere numa perspectiva de analisar
as obras do médico-botânico do Império brasileiro dentro do contexto só-
cio-científico de sua produção, observando com quais autores Caminhoá
dialogava e quais ele refutava para a construção do conceito de espécie.

Joaquim Monteiro Caminhoá foi um dos mais importantes homens


de ciência que atuou no Império do Brasil, tendo, inclusive, uma carreira
consolidada e reconhecida internacionalmente. O estudioso se dedicou
a produzir conhecimento científico sobre questões médicas e botânicas.
Sua trajetória acadêmica, contudo, ainda não foi devidamente estudada,
e suas produções científicas ainda não foram analisadas profundamente.
Muitos estudos ainda precisam ser feitos.

A pesquisa em bibliotecas e em instituições arquivísticas tem sido


bastante profícua. No Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB),
localizamos o estudo intitulado Apontamentos biográficos sobre o Con-
selheiro Doutor Joaquim Monteiro Caminhoá. S/l., S/d., pertencente à
Coleção Cláudio Ganns.

10  –  SANTOS, Wandir Vieira Leal. A Concepção de espécie na visão do botânico brasi-
leiro Joaquim Monteiro Caminhoá. Dissertação de Mestrado. São Paulo: PUC-SP, 2017.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):217-236, jan./abr. 2019. 223


Alex Gonçalves Varela

No inventário analítico de Cláudio Ganns11, há uma lata (622) em


que há uma série de documentos biográficos, como a Biografia de João
Mendes de Almeida, de Cláudio Manuel da Costa, de Isidoro Martins Jr.,
de Afonso Arinos de Melo Franco, entre outras, todas manuscritas, sem
autor e data. Buscamos compará-las para verificar se a grafia da biografia
sobre Caminhoá era a mesma dos demais. Visualizamos que não. São,
portanto, textos de autores diferentes.

Comparamos, por sua vez, o texto biográfico sobre Caminhoá com o


caderno de notas de Cláudio Ganns (L. 621 P. 4) para verificar se a grafia
era a mesma e também constatamos que eram grafias distintas. Também
não é, portanto, um texto de autoria de Cláudio Ganns.

Como Claudio Ganns era o editor da Revista do IHGB, acreditamos


que o texto tenha sido submetido por algum autor para ser publicado no
periódico. Após uma consulta ao índice geral dos artigos publicados na
Revista, visualizamos que o Apontamentos Biográficos ... não foi publi-
cado em nenhum dos seus volumes.

O texto “Apontamentos Biográficos”[...] é um estudo biográfico que


apresenta uma narrativa linear e um forte tom laudatório, aproximando-
-se, assim, dos primeiros escritos sobre o personagem, sobretudo aqueles

11  –  Nasceu no Rio de Janeiro, em 12 de junho de 1896, e faleceu em 8 de julho de


1960, na mesma cidade. Cursou o Colégio Diocesano e São José (1907/1912). Ingressou
na Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do RJ, formando-se bacharel em 1917. Exer-
ceu a advocacia e o jornalismo, até ser convidado pelo presidente do Estado de Sergipe
(Gracco Cardoso) para secretário do Governo (1922). Nomeado procurador do Estado,
no RJ, continuou a zelar pelas tradições sergipanas. Incumbiu-se de editar as obras de
Tobias Barreto. Ao mesmo tempo, praticava a profissão de advogado, que levou a cargo
de relevo na “Equitativa”, companhia de seguros, e, mais tarde, à presidência da Socieda-
de Brasileira de Direito Aeronáutico. Ingressou no IHGB, como sócio honorário, em 15
de dezembro de 1939, passou a efetivo em 26 de junho de 1940, a benemérito em 15 de
agosto de 1949 e a grande-benemérito em 15 de dezembro de 1959. Dirigiu a Revista do
IHGB. Rapidamente, a publicação que vinha com atraso de muitos números foi colocada
em dia. Sem dúvida, grande serviço prestado ao Instituto. Pertenceu também a outros
institutos, como a Sociedade Brasileira de Geografia, a Sociedade Capistrano de Abreu, a
Sociedade Brasileira de Direito Aeronáutico. Conferir a biografia de Claudio Ganns em:
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Sócios Falecidos. Claudio Ganns. In: https://
ihgb.org.br/perfil/userprofile/claudioganns.html (consultado em 11/07/2018).

224 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):217-236, jan./abr. 2019.


Um estudo biográfico não publicado sobre
o médico-botânico Joaquim Monteiro Caminhoá

que tiveram como autores os profissionais da área da Medicina, como


Lycurgo dos Santos Filho, Carlos da Silva Lacaz, entre outros. O texto
apresenta a trajetória de vida de Caminhoá do nascimento ao falecimento,
sua filiação, os primeiros estudos, a sua formação superior, a participação
em associações científicas, o seu ingresso como médico da Marinha, a
participação na campanha de combate à peste, o seu casamento, a partici-
pação em comissões científicas, os estudos publicados, o ingresso como
professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e a sua admissão
como sócio da Academia Imperial de Medicina, a inserção como médico
na Guerra do Paraguai socorrendo feridos e mortos, entre outros assuntos.
Todos esses fatos são narrados numa sucessão cronológica, que, como
argumentou Bourdieu, “também é uma ordem lógica, desde um começo,
uma origem, no duplo sentido de ponto de partida, de início, mas também
de princípio, de razão de ser, de causa primeira, até seu término, que tam-
bém é um objetivo”12.

Expressões como “a dedicação e coragem que mostrara” e “os servi-


ços excepcionais” deixam transparecer o forte tom laudatório da narrativa
do texto, que buscou enaltecer as grandes ações e os feitos do cientista.
A exaltação ao personagem aparece de forma nítida no trecho final do
estudo: “Poucos servidores do Estado puderam concentrar em sua exis-
tência tantos serviços à sua Pátria nas ocasiões mais perigosas (de guerra,
epidemias) e ao mesmo tempo cultivando as ciências e trabalhando pela
humanidade”.

O Apontamentos Biográficos[...] é, portanto, um texto de caráter bio-


gráfico, apresentando uma narrativa linear, que privilegia os principais
eventos da trajetória de Caminhoá sem problematizá-los, buscando sem-
pre exaltar o médico que atuou no Império do Brasil. Tal característica,
contudo, não invalida sua publicação, uma vez que traz à cena informa-
ções sobre a vida de um importante cientista brasileiro do século XIX que
teve uma atuação em nível nacional e internacional bastante reconhecida.

12  –  BOURDIEU, Pierre. A Ilusão Biográfica. In: FERREIRA, Maria de Moraes; AMA-
DO, Janaína. (Org.) Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas, 1996, p. 184.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):217-236, jan./abr. 2019. 225


Alex Gonçalves Varela

Possibilita, ainda, conhecer um pouco da forma como Caminhoá teve a


sua trajetória de vida analisada pelos diversos autores.

II – Documento
Apontamentos biográficos sobre o Conselheiro Doutor Joaquim
Monteiro Caminhoá. S/l., S/d. (Coleção Cláudio Ganns) Loc.: Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) 24,4,14

Notas biográficas sobre o Conselheiro Doutor Joaquim Monteiro Ca-


minhoá.

Professor jubilado de Botânica e Zoologia Médica da Faculdade de


Medicina do Rio de Janeiro. Membro da Sociedade Botânica de França,
da de Ciências Naturais de Cherburgo, e da Velosiana do Rio de Janeiro,
da Imperial Academia de Medicina do Rio de Janeiro, Membro fundador
da Associação Brasileira de Aclimação, da Sociedade Abolicionista da
Escravidão no Brasil, e de diferentes Sociedades sábias estrangeiras. Co-
mendador da Ordem da Rosa (Brasil) e de Francisco José (da Áustria),
Cavaleiro das Ordens de Cristo e de S. Bento de Aviz (do Brasil), con-
decorado com diversas medalhas de campanha, delegado do Governo do
Brasil e Vice-Presidente da seção de quarentenas no Congresso médico
internacional de Viena da Áustria, Primeiro Cirurgião da Armada Bra-
sileira, Lente Catedrático de História Natural no Ginásio Nacional, etc.

Nasceu na cidade da Bahia a 20 de Dezembro de 1836.

É filho legítimo de Manoel José Caminhoá e Dona Luiza Monteiro


Caminhoá.

Seu pai foi soldado da Independência do Brasil e modesto empre-


gado público – Ele e sua mulher procediam de famílias de agricultores.

O Dr. Caminhoá fez seus estudos preparatórios na Bahia onde se


matriculou, depois, na Faculdade de Medicina, em 1854.

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Um estudo biográfico não publicado sobre
o médico-botânico Joaquim Monteiro Caminhoá

Por ocasião da primeira e terrível epidemia de Cólera morbus, estan-


do ele a terminar o terceiro ano do curso, ofereceu ao governo seus ser-
viços gratuitos, que foram aceitos; sendo ele mandado para a Cachoeira
e, de lá, para o Iguape, lugares onde o flagelo devastava possivelmente,
a ponto de terem as autoridades abandonado seus postos e de não haver
sequer quem sepultasse os cadáveres, que estavam sendo dilacerados até
pelos cães e porcos!

Caminhoá foi atacado do mal; escapando milagrosamente, à vista da


falta de recursos que ali havia.

A dedicação e a coragem que mostrara, e os serviços excepcionais


que prestara ali e noutras localidades da Bahia até finalizar aquela medo-
nha epidemia, com grande risco de vida e gratuitamente, corresponderam
às mais honrosas provas de distinção do governo e das populações.

Manifestando-se, logo após, noutras províncias do norte do Brasil,


a epidemia, acompanhada das mesmas cenas de horror, os respectivos
presidentes enviaram emissários à Bahia, a fim de contratarem médicos
e estudantes de medicina que já tivessem prática de tratar de coléricos.

Por esse motivo, foi Caminhoá procurado em sua casa pelo capitão
de fragata Araújo Amazonas, em nome do presidente de Alagoas (Dr. Sá
e Albuquerque), por causa das informações que recebera dele pelo presi-
dente da Bahia.

À vista de tão honrosa demonstração, Caminhoá seguiu para Ala-


goas, sem pedir nem apresentar condição alguma. Ali foi hospedado no
palácio da presidência, recebendo as maiores provas de apreço do Dr. Sá
e Albuquerque, o qual lhe pediu que seguisse, imediatamente, para as
povoações do Rio São Francisco onde, com mais intensidade e extensão,
flagelava a cólera, e que ministrasse também às populações de Sergipe os
possíveis socorros, e conselhos higiênicos.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):217-236, jan./abr. 2019. 227


Alex Gonçalves Varela

Poucas horas depois de partir a Comissão para Penedo, morreram de


cólera fulminante Medeiros, estudante de medicina, e mais outro compa-
nheiro; sendo raro o dia em que algum outro não adoecesse.

Pão-de-Açúcar, Piranhas e Mata Grande foram os pontos em que


permaneceu por mais tempo Caminhoá, que depois seguiu, com terrível
seca, internando-se pelos sertões de Pernambuco, Bahia e Sergipe.

Tanta era a confiança, que merecia Caminhoá para o presidente de


Alagoas, que este lhe oficiando sobre qualquer assunto, escrevia-lhe ao
mesmo tempo em cartas particular dizendo que se fosse preciso, não cum-
prisse, ou mesmo contrariasse a ordem oficial, e, quando teve de terminar
a Comissão e regressar à sua terra natal, recebeu provas as mais honrosas
do governo das Alagoas e da imprensa.

O nome de Caminhoá figura entre os fundadores da “Associação


abolicionista da escravidão no Brasil” – isso 25 anos antes de se tratar do
assunto em qualquer outro ponto do país.

Doutorou-se em dezembro de 1858. Sua tese inaugural tratou da


“origem parasitária da febre amarela e da cólera morbus”, ideia então
havida por quiméricas e, hoje, confirmada em Bacteriologia.

Durante seu tirocínio acadêmico, ele colaborou na parte científica


em alguns periódicos, principalmente, no Acadêmico.

Em 1859, foi nomeado médico da marinha; embarcando imediata-


mente em navios cruzadores, destinado a impedir o contrabando de es-
cravos.

Em sua primeira viagem, sofreu no brique Maranhão tremenda pro-


cela, no qual esteve este navio quase desarvorado e prestes a naufragar;
manifestando-se, na mesma ocasião, em alto mar a epidemia de febre
amarela, começando pelo guarda marinha Marques Guimarães (hoje con-
tra-almirante) e 2 ingleses da marinhagem, escapando os 3.

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Um estudo biográfico não publicado sobre
o médico-botânico Joaquim Monteiro Caminhoá

Em Angra dos Reis, deu-se, pouco depois, um desastre no qual resul-


tou a perda dos dois braços de um carregador do rodízio – Por este modo,
fez o Dr. Caminhoá sua estreia de marinheiro, médico e cirurgião.

Em 1860, casou com sua prima Dona Delmira Monteiro, com a qual
teve 3 filhos: o mais velho, com mesmo nome que o pai, formou-se em
Medicina e faleceu há pouco, sendo lente substituto da Faculdade de Me-
dicina do Rio de Janeiro, e 2 filhas, ambas hoje casadas.

Entre as Comissões para que foi nomeado o Dr. Caminhoá, citare-


mos a de cirurgião da esquadra que acompanhou o imperador às provín-
cias do norte, por especial lembrança do próprio imperador; depois da
que seguiu para Santa Catarina, a fim de fazer parte da grande divisão em
evoluções, sob as ordens do Chefe Doudain, destinada a operar mais tarde
no Rio da Prata.

Durante esta Comissão, ele estudou os [sambaquis] ou [ostreiras],


bem como os campos e florestas daquela rica região, cuja flora e cuja
fauna lhe eram familiares.

Esteve em Itajaí, em excursão científica, quando o presidente Brus-


que ali foi a fim de fundar a colônia de seu nome, e, depois, foi ao Cuba-
tão, em direção a Caldas, para o mesmo fim.

Em 1864, à Academia Imperial de Medicina, um aparelho de sua


invenção foi apresentado por ele, e fez ali perante o Ministro da Marinha,
o Cirurgião mor da Armada brasileira (Dr. Soares de Meirelles) e nume-
roso e escolhido auditório profissional a leitura de uma pesquisa intitu-
lada ‘Dos aparelhos anestésicos em geral, e particularmente do inalador
adjuvante, para os casos em que o cirurgião da armada não tiver auxiliar
profissional’, acompanhada da experiência com o respectivo aparelho.

Ao terminar a leitura desta Memória, o presidente da Academia, Dr.


Félix Martins (depois barão de São Félix), fez um grande elogio ao tra-
balho e ao aparelho, salientando a agradável impressão que causara ao
auditório a leitura, e convidou o Dr. Caminhoá para entrar para o grêmio

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Alex Gonçalves Varela

da Academia; sendo, para isso, suficiente declarar que a referida memória


serviria para título de admissão.

Tão honrosa proposta foi cordialmente aceita e, depois das formali-


dades legais, foi autor da Memória unanimemente escolhido e, pelo Go-
verno, nomeado membro titular de número.

Na Faculdade de Medicina, o Dr. Caminhoá fez concurso para Opo-


sitor da Seção de Ciências Acessoriais. A dissertação de sua tese versou
sobre Paleontologia vegetal – ‘No aparecimento dos vegetais nos diversos
períodos da vida na Terra, e causas que determinaram suas modificações’.

Foi aprovado e nomeado para o dito lugar em 1861.

O Conselheiro Paulo Cândido, sábio lente da Faculdade de Medicina


do Rio, que assistira o concurso, tomou afeição a Caminhoá e o convidou
a auxiliá-lo em seus trabalhos tanto do gabinete de Física da Faculdade
como nas suas observações meteorológicas destinadas ao estudo das cau-
sas das epidemias no Brasil, e, como estivesse lecionando Física a suas
Altezas as princesas D. D. Isabel e Leopoldina, propôs ao Imperador o
nome do seu companheiro para encarregar-se da parte prática do curso
feito no Paço, proposta que foi imediatamente aceita; sendo-lhe marcado
o ordenado de 400$ mensais, que Caminhoá, apesar de pobre, agradeceu,
preferindo servir gratuitamente.

Fato idêntico se fez em relação ao curso de Química feito pelo erudi-


to Dr. Ferreira de Abreu, depois Barão de Teresópolis, às princesas; sendo
Caminhoá igualmente encarregado da parte prática.

Desde que entrou para a Faculdade, como para a Academia de Me-


dicina, realizou uma série não interrompida de serviços e trabalhos; co-
meçando por estabelecer, na primeira, o ensino prático, por meio de her-
borisações, que até então não se faziam ali, e por fundar os gabinetes de
Botânica e Zoologia às suas custas e de seus alunos, pelo que mereceu um
grande encômio na Memória histórica do Dr. Paulo Fonseca, em nome da

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Um estudo biográfico não publicado sobre
o médico-botânico Joaquim Monteiro Caminhoá

Faculdade e em agradecimento, oficial também, do Conselheiro Paulino


José Soares de Sousa, ministro do Império então.

Declarando-se a guerra ao Estado Oriental do Uruguai, seguiu Ca-


minhoá no vapor de guerra – “Paraense” – a fazer parte da esquadra em
operações naquele Estado e, depois, na corveta “Baiana”; fazendo ali toda
a campanha e dirigindo, em Buenos Aires, enfermarias de oficiais, no
hospital brasileiro, depois da tomada de Paysandú.

Declarada por Lopes a guerra do Paraguai, entre os oficiais do corpo


de saúde da nossa Armada, lá se achou Caminhoá, que assistiu a rendição
de Uruguaiana perante o exército aliado sob o comando em chefe do Im-
perador: trabalhou nos hospitais de sangue e de campanha do Passo-de-
-los-libres, depois da derrota completa do exército paraguaio ali.

Depois disso, foi mandado ao Rio de Janeiro, acompanhando feridos


e doentes de Buenos Aires; depois dessa comissão, voltou de novo para a
Campanha do Paraguai, onde foi mandado para a divisão de vanguarda.

Assistiu a tomada de Corrientes, depois do bombardeio da nossa es-


quadra como cirurgião do “Parnahiba”, ali ficando até o dia 11 de junho
(combate do Riachuelo), em que, por ordem do Almirante Barroso, fora
mandado acompanhar feridos e doentes, entre os quais ele se achava gra-
vemente, para Buenos Aires.

Serviu nos hospitais de sangue argentinos “Pavon e Pampêro”, auxi-


liando os cirurgiões dessas instituições.

Em Buenos Aires, logo que melhorou, foi mandado servir no Hospi-


tal brasileiro, e, de novo, pediu para regressar para a esquadra em opera-
ções; seguindo com a divisão comandada pelo chefe Secundino Gomen-
soro, como cirurgião da canhoneira Iguatemy; passando, no porto do Pa-
raná, para bordo da pequena canhoneira Henrique Martins que foi, pouco
depois, o teatro das façanhas legendárias do bravo Jeronymo Gonsalves,
o grande herói de nossa Marinha.

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Alex Gonçalves Varela

Seu navio entrou várias vezes em fogo contra fortalezas, chatas e


os exércitos inimigos: fez parte da divisão de vanguarda, exposto aos
numerosos torpedos inimigos que, a cada momento, explodiam; sofren-
do, por várias vezes, avarias grossas no Passo da Pátria, por ocasião de
atacar o forte Itapirú e por defender nosso exército na ilha da Cabrita ou
da Redenção, causando delirante entusiasmo aos exércitos aliados que,
da barranca oposta, assistiam luta tão desigual e brilhante para o pequeno
Henrique Martins.

Por terem sido considerados relevantes os serviços de guerra do Dr.


Caminhoá, foi ele promovido a primeiro Cirurgião e condecorado por 2
vezes.

Além das comissões na esquadra, serviu também nos hospitais de


sangue flutuantes, bem como nos do exército, no Passo da Pátria, Tuyuty,
Curussú, Burupaity: Foi, depois, encarregado de enfermarias de coléri-
cos, de beribéricos e de feridos oficiais do exército.

Voltou de novo, acompanhando feridos e doentes para o Brasil, de-


pois da ocupação de Assunção, quando o exército brasileiro, do bravo e
patriota Conde d’Eu, terminava a Campanha, perseguindo Lopes e o seu
exército pelos sertões daquele país.

Terminada a guerra, o Dr. Caminhoá fez concurso para obter a ca-


deira de lente de Botânica e Zoologia na Faculdade de Medicina do Rio,
onde já era opositor.

A dissertação de sua tese foi sobre plantas tóxicas do Brasil, assunto


sobre que pela primeira se escreveu. Em pouco tempo, se esgotou a edi-
ção dessa tese, que mereceu a grande honra de ser traduzida para várias
línguas, sendo o Dr. Henri Rey cirurgião em chefe da marinha francesa
quem fez a tradução para o francês.

Resumindo e corrigindo suas notas e estudos feitos durante 16 anos


no Brasil e no estrangeiro, escreveu Caminhoá seu compêndio de Botâni-
ca geral e médica, para uso das Faculdades brasileiras; obra que foi una-

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Um estudo biográfico não publicado sobre
o médico-botânico Joaquim Monteiro Caminhoá

nimemente aprovada pela congregação da Faculdade e mereceu o prêmio


pecuniário máximo, além da publicação pelo Estado.

Essa obra foi criticada [sic] em grandes elogios dentro e fora do país.

Por ocasião da Exposição Universal de Viena da Áustria (1873),


o Dr. Caminhoá foi um dos escolhidos pelo governo do Brasil para ali
representá-lo, tendo sido, além disso, encarregado de comissões do mi-
nistério da guerra, para estudar o pessoal e o material de ambulâncias em
tempo de guerra e paz. Do ministério de estrangeiros, [voltou-se] para no
congresso médico tratar da questão das quarentenas, então em discussão
calorosa entre os governos brasileiro, argentino e oriental. Do ministé-
rio d’Agricultura levou a incumbência de estudar Jardins Botânicos e de
Aclimação na Europa.

Por tal modo, desobrigou-se ele das três comissões, que recebeu do
ministério da guerra, depois de lido o circunstanciado relatório acom-
panhado de numerosos desenhos, e de modelos de padiólas e de carros
fogões para acompanharem os exércitos em fogo, elogios.

Quanto à comissão do ministério de estrangeiros, Caminhoá, que se


tinha inscrito entre os primeiros para discutir sobre quarentenas, foi acla-
mado vice-presidente dessa seção no grande congresso médico interna-
cional de Viena.

Da discussão por ele provocada, resultou evidenciar-se a iniquidade


das quarentenas, como eram feitas na América do Sul e em Portugal, e
sua ineficácia mostrou a impossibilidade de serem elas realizadas cienti-
ficamente nos rios; conseguindo que fossem estas últimas modificadas e
mesmo suprimidas em certos casos.

Relativamente às questões de Jardins Botânicos, escreveu um com-


pleto relatório, com estampas e com gravuras numerosas, que foi manda-
do imprimir pelo governo, enviando este em honrosíssimo ofício, agrade-
cendo o bom desempenho da Comissão e condecorando o relator com a
comenda da Ordem da Rosa.

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Alex Gonçalves Varela

O Imperador deu ao Dr. Caminhoá, quando partiu para a Europa,


cartas de apresentação para vários sábios, seus amigos e, sobretudo, para
sumidades em Botânica e em Ciências naturais.

Terminada a Comissão, o governo austríaco condecorou com a co-


menda de Francisco José ao Dr. Caminhoá.

Suas atividades estenderam-se também a outros assuntos de utilida-


de geral, tais como questões humanitárias e sociais.

Fundou a Associação Internacional Anti Epidêmica perante suas


Majestades e Altezas, o corpo diplomático e o consular; conseguindo a
promessa de proteção do nosso governo, do norte americano, argentino,
oriental, italiano, espanhol, austríaco e francês, por intermédio de seus
representantes no Brasil.

Fez conferências sobre as Irmãs de caridade civis, sobre a Organi-


zação do serviço agrícola, depois da lei da abolição do elemento servil;
sendo esta última perante o ministério João Alfredo.

Entre as comissões científicas de que fez parte, a mais importante foi


a da província do Paraná, na qual foi ele o Presidente.

Reformou-se no posto de 1º Cirurgião e, depois, jubilou-se na forma


da lei; tendo, nessa ocasião, tido o título de Conselho, por terem sido con-
siderados relevantes seus serviços no Magistério.

Achando-se ainda no caso de prestar serviços de sua especialidade


ao ensino, fez concurso de novo (embora isso fosse desnecessário, pois
ele já o tinha feito para a Faculdade), para entrar para o Colégio de Pedro
II; hoje, chamado Ginásio Nacional.

Como seu testamento científico, está finalizando seu Dicionário de


Botânica brasileira, começado há cerca de 30 anos.

Os anais e os boletins da Academia de Medicina estão cheios de tra-


balhos de Caminhoá, que também colaborou em vários jornais, entre os

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Um estudo biográfico não publicado sobre
o médico-botânico Joaquim Monteiro Caminhoá

quais o Globo, Mercantil, Diário do Rio, Gazeta de Notícias, Jornal do


Comércio, Jornal do Brasil e outros, sempre em relação aos assuntos de
História natural aplicada, febre amarela e sua vacinação.

Colaborou na Polyanthea oferecida ao velho e virtuoso Imperador


D. Pedro II.

Detestando a política e ainda mais os políticos que causaram e cau-


sarão grandes males ao Brasil, não quis jamais ser candidato às eleições
para deputado nem aceitou presidências de províncias, como, por vezes,
lhe foram oferecidas.

Poucos servidores do Estado puderam concentrar em sua existência


tantos serviços à sua Pátria nas ocasiões mais perigosas (de guerra, de
epidemias) ao mesmo tempo em que cultivam as ciências e os demais
trabalhos pela humanidade.

Texto apresentado em setembro/2018. Aprovado para publicação em


dezembro/2018.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):217-236, jan./abr. 2019. 235


O Cavaleiro Brito e o Conde da Barca:
dois diplomatas portugueses e a missão francesa de 1816

237

IV – RESENHAS
REVIEW ESSAYS

TELLES, Patricia D. O Cavaleiro Brito e o Conde da Barca: dois


diplomatas portugueses e a missão francesa de 1816. Lisboa:
Documenta / Sistema Solar, 2017.

DE VOLTA PARA O FUTURO... OUTRAS NOTÍCIAS E


OUTROS MODOS DE ATUALIZAR A MISSÃO ARTÍSTICA
FRANCESA
Marize Malta1

Figura 1 – capa do livro.

1  –  Escola de Belas Artes. Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: marizemal-


ta@eba.ufrj.br.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):237-244, jan./abr. 2019. 237


Marize Malta

Em 1917, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro premiou o


estudo pioneiro sobre a Missão Artística Francesa, de autoria de Afonso
d’Escragnolle Taunay. Mais de 100 anos se passaram e muitas histórias
se desenvolveram sobre a vinda de um grupo de artistas e de artífices
franceses para o Rio de Janeiro, então capital do Reino Unido de Portu-
gal, Brasil e Algarves. Seus componentes foram responsáveis por darem
corpo conceitual e constituírem o núcleo docente fundamental da Escola
Real de Ciências, Artes e Ofícios, instituição criada em 6 de agosto de
1816 por Decreto Real do Príncipe Regente D. João. A partir de então,
muitas narrativas se constituíram para dar conta da biografia de uma ins-
tituição que ultrapassou os 200 anos, um pouco mais velha que o IHGB,
mas igualmente responsável por construir referências visuais e escritas
sobre a história da nação. Do primeiro título formalizado pelo decreto,
passou a ser reconhecida como Academia Imperial de Belas Artes e, em
1826, pôde funcionar plenamente. Após o advento da República, ganhou
a denominação de Escola Nacional de Belas Artes e, hoje, recebe o título
de Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, con-
dição que adquiriu quando incorporada à então Universidade do Brasil.
Passando por diversos estatutos, denominações e conformações, parece
distante e sepultado o mito de sua origem – a dita missão.

Quem acredita que tudo já se falou sobre a famigerada Missão Ar-


tística Francesa no Brasil não imagina as surpresas que o livro “O Cava-
leiro Brito e o Conde da Barca: dois diplomatas portugueses e a missão
francesa de 1816 ao Brasil” (Fig. 1), editado em dezembro de 2017 pela
Documenta/Sistema Solar, pode apresentar. Arriscaríamos iniciar, cha-
mando atenção para a marcação em itálico no título da expressão “missão
francesa”, o que demarca o compromisso da autora de afirmar sua obso-
lescência, grifando um termo datado, ultrapassado pelos vários estudos
de pesquisadores que a antecederam e desfizeram a ilusão de que houve
uma intenção deliberada do Príncipe Regente de criar uma academia de
belas artes nos trópicos, influenciado por um dos seus ministros, o futuro
conde da Barca, diante de uma missão de acelerar o processo civilizador
na colônia americana e levar as benesses da arte aos “nativos”. É inegá-

238 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):237-244, jan./abr. 2019.


O Cavaleiro Brito e o Conde da Barca:
dois diplomatas portugueses e a missão francesa de 1816

vel, porém, a eficiência do termo para situar os leitores sobre a temática


do livro, sem, entretanto, tratar desse projeto, mas daquilo que o antece-
deu e propiciou, resgatando o papel português nesse empreendimento e
relativizando o papel de Lebreton como propositor acidental da futura
Academia.

Os personagens do título, especialmente o conde da Barca, já são ve-


lhos conhecidos dos historiadores e foram objetos de inúmeros trabalhos
publicados. Como se trata de edição portuguesa, poderíamos imaginar
que o livro se caracterizasse como uma antiga história contada com nova
roupagem, uma outra volta ao passado sem perspectivas futuras. Não. O
livro não é uma compilação de informações organizadas com moderna
arquitetura criativa como muitas publicações que costumamos encontrar.
Incentivada por bolsa de pesquisa da Fundação Calouste Gulbenkian, Pa-
tricia Telles enfrentou documentação, em parte inédita, no Arquivo Dis-
trital de Braga. Brasileira, residente há dez anos em terras lusas, doutora
pela Universidade de Évora, interessada nas questões da história da di-
plomacia, na arte oitocentista das primeiras décadas, estudiosa de retratos
e miniaturas, com bagagem nada desprezível de formação e vida ligada
à arte e aos livros, a autora realizou uma investigação que evidencia a
importância da reunião das fontes primárias existentes nos arquivos de
Portugal e Brasil para incrementar as histórias desses dois países, irreme-
diavelmente, interligados. O período da trasladação da corte portuguesa
para o Rio de Janeiro e de seu retorno a Lisboa ainda carece da junção de
documentações que se encontram em distâncias transatlânticas, dispersas
em diferentes instituições, para se compreender melhor a circulação de
personagens, objetos, livros, coleções, ideias.

Distanciando-se de uma história dura e oficial, a autora mergulha


em personagens, entendendo-os como tacelos de um mosaico de rela-
ções – relações complexas – que permitiram, por questões de ofício (a
diplomacia), a constituição de conhecimentos de intelectuais e de cientis-
tas europeus e propiciaram a negociação para a remessa de artistas e de
artífices franceses para o Rio de Janeiro, mencionados por Debret como
notre colonie. São cartas, centenas delas, cartas pessoais, por vezes com

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Marize Malta

mensagens cifradas, entre o cavaleiro Brito e o conde da Barca, amigos


apaixonados, convencidos dos benefícios da educação, que configuram
os principais fios da trama histórica. Uma relação entre um pequeno fi-
dalgo – Francisco José Maria de Brito (1760-1825) – e António de Araújo
de Azevedo (1754-1817), o futuro conde da Barca, diplomata da corte
portuguesa, cujas viagens e residências fora de Portugal, acompanhadas
de ideais iluministas e de comprometimentos maçônicos, possibilitaram
a aproximação com Joaquim Lebreton, secretário perpétuo da Classe de
Belas Artes no Institut de France. Nesta instituição, foi colega de Alexan-
dre von Humbolt, cujo irmão, por sua vez, era conhecido do marquês de
Marialva, embaixador em Paris. Se a história acabou por valorar o papel
de Marialva e Barca nesse processo, e do projeto de Lebreton para uma
dupla escola, pouco se fez menção à atuação do cavaleiro Brito, oficial de
menor escalão, que amargurou anos em exílio e sem recursos financeiros
em Paris, mas que atuou de modo decisivo para que os artistas e os artí-
fices franceses empreendessem uma caravana, como a designava Brito,
ao Brasil. O livro procura restituir algum protagonismo ao esquecido
cavaleiro.

A narrativa se estrutura sobre a vida dos dois principais personagens,


com particular acuidade de fontes, envolvendo origens, parentescos, for-
mações, viagens, relações sociais e amistosas entre eles e com diversas
outras personalidades com as quais travaram contato na vida profissional
e particular. Organizado em cinco capítulos, o livro começa pelo final,
ou seja, realizando uma retomada das questões ditas e não ditas sobre
a fundação da Academia de Belas Artes no Rio de Janeiro para, depois,
compreender os personagens que estiveram envolvidos na sua proposi-
ção, com foco no cavaleiro Brito e no conde da Barca, e as tramas que a
engendraram.

Acompanhando os percursos dos dois protagonistas, os lugares que


frequentaram, as pessoas com quem conviveram, o livro desenvolve um
interessante panorama sobre o ambiente intelectual de fins do século
XVIII e de início do XIX na Europa, bem como das hierarquias burocrá-
ticas das secretarias de Estado portuguesas, ainda em formação. Brito,

240 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):237-244, jan./abr. 2019.


O Cavaleiro Brito e o Conde da Barca:
dois diplomatas portugueses e a missão francesa de 1816

como secretário de Araújo de Azevedo, inicialmente em Haia, desenvol-


veu uma relação de intensa amizade e de convivência com seu superior
que, mesmo depois de estarem separados por um oceano, não permitiu
arrefecer a cumplicidade de seus interesses comuns.

Os dois principais personagens nutriam grande apreço pelos livros.


Como descreve a autora:
Ao logo das suas vidas, a sua correspondência está repleta de envios e
recebimentos dos mais diversos volumes, às vezes sequer encaderna-
dos, versando geralmente sobre história, política ou ciências naturais.
Liam e trabalhavam muitíssimo, comentavam as novas descobertas
científicas e as publicações recentes sempre pensando no que pode-
riam aproveitar a bem de Portugal.

Essas paixões em comum pelo conhecimento fizeram com que a du-


pla de funcionários do governo português fosse entusiasta em procurar
promover as artes e as ciências como propulsores da modernização e do
progresso de seu país, todas percebidas nas cartas em que trocavam.

Mais do que as notícias e a decifração do que estava escrito nas car-


tas, de vários cognomes e formas de tratamentos, as omissões também se
revelam como importantes fontes de informações pela autora. Em tempos
de instabilidade política, as cartas eram provas incontestes de traições, de
chantagens ou de discordâncias de sistemas de governo, sendo a escrita
por mensagens cifradas um necessário subterfúgio para se falar com sin-
ceridade, confirmando de que a “época era de segredos e meias palavras”,
nos dizeres de Telles. O livro, entretanto, não se propõe a apresentar
biografias, bem mais atento nas verificações e nos cruzamentos das infor-
mações que as cartas forneciam, demandando meticulosa pesquisa.

Se, com as palavras, todo o cuidado é pouco, os relacionamentos são


delicados e dificilmente postos às claras: amizades, amores, respeito e
admiração se confundem. Algumas personalidades são retomadas, outras
são retiradas das sombras: cientistas, artistas, fidalgos, padres, embaixa-
dores, criados, maçons, poetas... São tantos indivíduos envolvidos, bem
como vários lugares registrados, que se tornou necessária a criação de

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):237-244, jan./abr. 2019. 241


Marize Malta

índices – onomástico e geográfico, além do analítico – configurando-se


um auxílio generoso aos pesquisadores, também ofertados por anexo do-
cumental e minuciosa relação de fontes e de bibliografia.

Apesar da preponderância de personagens masculinos, mulheres


vêm à tona: Maria Urbana de Lima Barreto (1778?-1831) – Baronesa
de Beaumont, Marianne da Silva (1777-1843) e, especialmente, Selly
Capadoce Pereira (1760?-1831), discípula de botânica, judia convertida,
casada com Abraham Capadoce-Pereira, cônsul na Dinamarca. Esta inte-
ligente senhora, que também se constituía assídua correspondente do con-
de da Barca, nutrindo por ele grande apreço, acolheu o cavaleiro Brito em
suas casas em Paris, um amigo confidente, desenvolvendo um triângulo
de relações que se inscreve no mosaico maior das outras individualidades
presentes no livro e que colocam a presença do feminino em um lugar
nada trivial na vida dos principais personagens. É justamente a condição
de morador em Paris que permitiu ao cavaleiro Brito proceder às negocia-
ções com Lebreton e financiar, por suas próprias expensas, a viagem da
caravana. Desse modo, o ambiente parisiense pós-bonapartista também
é retratado, reforçando as relações complexas da última geração transa-
tlântica portuguesa e que contribuiu com significativos desígnios para os
rumos das muitas transformações ocorridas no Brasil oitocentista.

Entre afeições e sociabilidades, a obra de Patricia Telles reafirma a


importância de uma história a partir das práticas do vivido, das relações
pessoais que atuam de forma direta nos caminhos e nas decisões de Esta-
do. E, se hoje as mensagens se esvaem pelos aplicativos de comunicação
via internet, as cartas em papel guardadas por Antonio Araújo de Azevedo
garantem a possibilidade de se empreender outras histórias que se atua-
lizam pelo trabalho do vasculhar arquivos e nos surpreender com a reno-
vação do olhar sobre personalidades, como no caso do cavaleiro Brito,
que nem sempre ganharam as pinceladas mais destacadas dos quadros da
historiografia brasileira e portuguesa.

242 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):237-244, jan./abr. 2019.


O Cavaleiro Brito e o Conde da Barca:
dois diplomatas portugueses e a missão francesa de 1816

Longe de dar respostas conclusivas e, em meio a muitos questiona-


mentos instigantes, a autora faz um convite aos colegas pesquisadores
brasileiros e portugueses:
Mais do que notas biográficas, pretendemos fazer um convite. Pre-
cisamos estudar a fundo e em conjunto toda uma geração, nascida
e renascida nos escombros do terramoto de Lisboa, frequentadora e
curiosa dos trabalhos da Academia de Ciências, dos primórdios da
Revolução Francesa, das sociabilidades iluministas, um grupo de ho-
mens e mulheres cosmopolitas por acção ou por pensamentos, grupo
heterogêneo embora coeso, próximo – fossem amigos ou inimigos –
ao longo de suas vidas, com muitos livros e parcos recursos financei-
ros, agarrados aos seus sonhos de juventude.

É hora de mais uma volta ao futuro...

Texto apresentado em agosto/2018. Aprovado para publicação em


dezembro/2018

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180 (478):237-244, jan./abr. 2019. 243


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original, não podendo ultrapassar 250 (duzentos e cinquenta) palavras, seguidas das palavras-chave,
mínimo 3 (três) e máximo de 6 (seis), representativas do conteúdo do trabalho, também em português e
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New Roman corpo 12, e numeração consecutiva. Deverá ser utilizado o editor de texto Microsoft Word
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respectivo original do texto.
• As notas deverão ser colocadas em rodapé. Não deverá haver bibliografia no final do texto.
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• Capítulo ou parte de livro: SOBRENOME, Nome. Título do capítulo. In: SOBRENOME, Nome. Título
do livro (em itálico): subtítulo. Tradução. Edição. Cidade: Editora, ano, p. nn-nn.
• Artigo em periódico: SOBRENOME, nome. Título do artigo. Título do periódico (em itálico), Cidade:
Editora, v. nn, n.nn, p. nn-nn, ano.
• Trabalho acadêmico: SOBRENOME, Nome. Título (em itálico): subtítulo. Tese (Doutorado em...) -
Instituição. Cidade, ano, nnnn.
• Texto obtido na internet: SOBRENOME, Nome. Título. Data (se houver). Disponível em: www......
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2019 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 180, n. 479, pp. 9-250, jan./abr. 2019.

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