O "Ethos" Atual e A Ética
O "Ethos" Atual e A Ética
O "Ethos" Atual e A Ética
F. Javier Herrero
UFMG
A
Ética é a ciência do ethos . Toda ciência procura racionalidade. A
cultura ocidental é eminentemente uma cultura da razão. Desde
seus inícios na Grécia, ela colocou no seu centro de referência sim-
bólica o “logos apodeiktikos”, i. é, a razão demonstrativa
demonstrativa. Esta razão que
se tornou reflexiva, i. é, que explicitou e codificou a sua lógica, fez da
cultura ocidental uma cultura logocêntrica
logocêntrica, que colocou a ciência no centro
de seu universo de formas simbólicas, ciência antiga, primeiro, coroada
pela Filosofia, ciência moderna, depois, na forma de razão científico-técni-
ca com seus métodos experimentais. Importante para nós é salientar que
essa revolução científica transcreveu primeiro a physis (natureza) na or-
dem e coerência do logos, dando origem à primeira ciência da natureza.
Ela tentou, em segundo lugar, submeter e transcrever igualmente o ethos
humano às exigências do logos, dando origem à ciência do ethos ou sim-
plesmente Ética
Ética. De qualquer forma que isso tenha acontecido, surgia as-
sim uma razão teórica e uma razão prática como eixo ordenador de toda
uma forma de vida da cultura ocidental. Desde então a Ética é uma instân-
cia legitimadora da sociedade.
*
Reproduzimos aqui a Aula Inaugural proferida pelo professor Francisco Javier Herrero
no dia 03 de março de 2004, no Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus,
na Sessão de Abertura do Ano Acadêmico 2004.
1
Ver H.C. DE LIMA VAZ, Fenomenologia do ethos, in Escritos de Filosofia II – Ética e
Cultura, São Paulo, Loyola, 1988, 11-35.
2
G.W.F. HEGEL, Grundlinien der Philosophie des Rechts, ed. por J. Hoffmeister, Ham-
burgo, 1955, nº 153.
3
Ver J. RITTER, Metaphysik und Politik. Studien zu Aristoteles und Hegel, Frankfurt,
1969.
Mas Hegel foi ainda mais longe na sua leitura histórica do princípio da
liberdade. A realização política e jurídica deste princípio na Revolução
francesa foi, por sua vez, possibilitada historicamente pelo desenvolvimen-
to da Economia Política
Política. Pois justamente porque esta considera o homem
unicamente do ponto de vista de suas necessidades naturais (como produtor
e consumidor), é que pode estruturar a sociedade como sociedade universal
sobre o princípio da igualdade e da liberdade de todos os indivíduos. Pois é
por referir unicamente a comunidade social ao homo oeconomicus (no qual
todos somos iguais
iguais), que ficam fora dela todas as características diferenciadoras
pessoais, religiosas, raciais, etc., que fundamentavam tradicionalmente os
privilégios e escravidões (mesmo na polis grega). É assim que a Economia
Política possibilitou a realização na história real do princípio da liberdade
segundo o qual todos os homens são igualmente livres.
4
G.W.F. HEGEL, Vorlesungen über die Philosophie der Weltgeschichte, vol. 1, ed. por J.
Hoffmeister, Hamburgo, 1955, 62.
5
G.W.F. HEGEL, Grundlinien der Philosophie des Rechts, nº 209.
6
G.W.F. HEGEL, Grundlinien der Philosophie des Rechts, nº 238.
7
Ver J. HABERMAS, Teoria de la acción comunicativa, 2 vol., Madrid, Taurus, 1988.
Porém, como descobrir alguns conteúdos do pacto para que todos ga-
nhem? Como garantir que cada um possa esperar razoavelmente que to-
dos cumpram o pacto? Onde há corrupção generalizada, que acaba geran-
do também desconfiança generalizada, como agir “como se” todos cum-
prissem as normas? Como evitar o “espertinho” que sempre vai procurar
tirar vantagem só para ele? E, finalmente, que os pactos devam ser cum-
pridos é uma norma moral que só a obedecem aqueles que já estão conven-
cidos dela. Assim, a teoria do interesse racional é uma peça-chave para a
reconstituição do ethos moral, mas não é um móbil suficiente para possi-
bilitar uma convivência justa, porque, finalmente, quem age por interesse
pode mudar de jogo quando percebe uma vantagem maior a curto prazo.
Os jogos auto-interessados, competitivos ou cooperativos, não resolvem os
conflitos com justiça.
8
D. GAUTHIER, Morals by Agreement, Oxford, Clarendon, 1986 (trad. esp., La moral por
acuerdo, Barcelona, Gedisa, 1994).
9
Ver A. CORTINA, Hasta um pueblo de demonios. Ética pública y sociedad, Madrid,
Taurus, 1998, 74.
10 Ver J. RAWLS, Uma teoria da justiça (trad. bras. Almiro Pisetta e Lenita), São Paulo,
Martins Fontes, 1997; ID., El liberalismo Político (trad. esp. de Antoni Domènech),
Barcelona, Crítica, 1996.
A relação dos dois princípios nos mostra como a teoria da justiça de Rawls
contribui para a reconstituição do ethos. Não adiantaria garantir a liberda-
de de todos se só os que contam com mais bens materiais, sociais e cultu-
rais podem tirar proveito. Importa ser livre, mas não numa situação de
miséria e necessidade. Proteger a liberdade obriga
obriga, pois, a sociedade que
quer ser justa a distribuir eqüitativamente bens que possibilitem exercer a
liberdade. Assim é importante proteger a liberdade das pessoas, não por-
que isso maximize o benefício, mas porque exercer a capacidade de auto-
determinação tem um valor em si mesmomesmo. E o que é valioso em si mesmo
11
A. MACINTYRE, After Virtue. A Study in Moral Theory, London, Duckworth, 21985
(trad. esp. Tras la virtud, Barcelona, Crítica, 1987).
12
B. BARBER, Strong Democracy, Berkeley, Univ. of California P., 1984. Ver também Ch.
Taylor, As fontes do self, São Paulo, Loyola, 1997.
13
Ver Mt 7,12: “Tudo o que quereis que os outros vos façam, fazei-o também vós a eles”;
Lc 6,31: “Como quereis que vos façam os homens, assim fazei-lhes vós”.
14
A. ETZIONI, The New Golden Rule. Community and Morality in a Democratic Society,
Nova York, Basic Books, 1996.
15
Ver, sobretudo, K.-O. APEL, Die Logosauszeichnung der menschlichen Sprache, in H.
G. BOSSHARDT, ed., Perspektiven auf Sprache, Berlin, W. de Gruyter, 1986, 45-87 (trad.
franc.: Le logos propre au langage humain, Ed. de l’Éclat, 1994); K.-O. APEL, Diskursethik
als Verantwortungsethik. Eine postmetaphysische Transformation der Ethik Kants, in
R. FORNET-BETANCOURT, ed., Ethik und Befreiung, Aachen, Augustinus-Buchhandlung,
1990, 10-40 (trad. esp. in K.-O. APEL, Teoria de la verdad y ética del discurso, Barcelona,
Paidos, 1990, 147-184); K.-O. APEL, Estudos de Moral Moderna, Petrópolis, Vozes, 1994.
J. HABERMAS, Que significa pragmática universal?, in ID., Teoria de la acción comunica-
tiva: Complementos y estudios previos, Madrid, Cátedra, 1989, 299-368; J. HABERMAS,
Teoría de la acción comunicativa, 2 vol. Madrid, Taurus, 1988; J. HABERMAS, Individuação
através de socialização. Sobre a teoria da subjetividade de George Herbert Mead, in ID.,
Pensamento Pós-metafísico, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1990, 183-234; J. HABERMAS,
Uma visão genealógica do teor cognitivo da moral, in ID., A Inclusão do Outro. Estudos
de teoria política, São Paulo, Loyola, 2002, 11-60.
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