Antes e Depois Da Rosângela
Antes e Depois Da Rosângela
Antes e Depois Da Rosângela
INTRODUÇÃO
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Artigo publicado na Revista Ciranda da Ciência nº 06, p. 16-31, 1999, a partir da palestra
proferida pelo autor no VI Encontro Nacional de Professores de Ciências do Projeto Ciranda da
Ciência (Fundação Roberto Marinho/Hoechst), realizado em 1998.
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Doutor em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (Brasil) e pela Universidade de
Salamanca (Espanha). Professor visitante na Faculdade de Educação da Universidade de
Magalhães (Chile), atuando como formador de professores no âmbito do Programa de
Fortalecimiento de Líderes Pedagógicos para la Implementación de las Bases Curriculares de la
Educación Básica (Ministerio de Educación de Chile).
e do pensamento positivista que permeou minha formação escolar e universitária, havia
incorporado uma série de idéias estereotipadas a respeito de homem, mundo, nação,
sociedade e educação, sem conseguir compreender criticamente a realidade em que
vivia. Tornei-me professor segundo os modelos didáticos com os quais tive contato,
exercendo a abordagem tradicional do processo de ensino-aprendizagem uma influência
direta e significativa sobre o ensino de Ciências que desenvolvia.
Somente após vivenciar uma dramática experiência pedagógica de reprovação de
alunos pobres, em 1988, é que dirigi minha atenção e formação para as questões ligadas
à educação. Acreditava estar trabalhando em prol dos interesses das classes populares,
entretanto, apenas depois de tomar consciência do “eu” educador e do “outro” enquanto
educando (Freire, 1986) é que passei a questionar o papel social do ensino de Ciências e
a incorporar, de modo consciente, em minhas práticas educativas aspectos ligados às
dimensões humana e social.
Ao buscar promover aprendizagens que fossem realmente significativas para os
alunos, no sentido de formar cidadãos críticos e conscientes de seu papel no âmbito da
coletividade, passei a perceber o papel estratégico que apresentava o professor na
implementação de mudanças educativas e na possibilidade de transformação da
sociedade por meio da educação.
Minha infância e adolescência foram vividas num bairro da periferia da Zona Leste
da cidade de São Paulo.
Por dezesseis anos vivi numa casa alugada de apenas dois cômodos, juntamente
com meus pais e meu irmão menor. Meu pai era operário numa indústria e minha mãe
costureira, ambos pouco conscientes da situação de exploração econômica que viviam,
possivelmente devido sua pouca escolarização, já que cursaram apenas as quatro
primeiras séries do antigo Ensino Primário numa escola pública do interior de Minas
Gerais, que contava essencialmente com professores leigos.
Apesar de sua pouca escolaridade, freqüentemente ouvia deles, de uma velha tia
analfabeta e de um tio que cursava o Madureza que “pra vencer na vida, os pobres
tinham que estudar muito”.
Mesmo vivenciando a experiência da escassez material (Santos, 1984), a prática
da solidariedade se fazia presente naquele contexto, ao ponto de minha família e outras
dividirem entre si o pouco que possuíam para garantir formas mais dignas de
sobrevivência.
Vivia num contexto feliz, numa rua com muitos terrenos desprovidos de
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construções e cheios de vegetação, onde podia brincar, observar e coletar pequenos
invertebrados. Juntamente com outras crianças jogava futebol, brincava na rua, soltava
pipas e confeccionava brinquedos artesanais como, por exemplo, carrinhos de lata e de
rolimã.
Em 1973 ingressei numa escola estadual do bairro, sem ainda ter completado os
sete anos de idade, onde cursei o primeiro grau e o concluí em 1980. Tratava-se de uma
escola pequena e bastante modesta, que atendia alunos pobres e de classe média baixa.
Vivíamos nesse período em plena ditadura militar, que influenciava direta e
significativamente nossas vidas e nossa formação escolar, sem que nos déssemos conta.
Na escola, às quartas-feiras, cantávamos o Hino Nacional com a mão sobre o “lado
esquerdo do peito”; ouvíamos frases de efeito do tipo “Brasil: ame-o ou deixe-o”, porém,
sem compreender seu real significado; nos livros didáticos, muitas vezes emprestados ou
comprados com muita dificuldade devido às nossas limitações financeiras, líamos textos
ilustrados alienadores e preconceituosos. Lembro-me de uma figura na qual um índio
estendia sua mão a um bandeirante, agradecendo-lhe as “grandes contribuições” que
trouxeram ao seu povo e à civilização brasileira.
Por haver aprendido que muitos indígenas foram escravizados, humilhados e
mortos questionei a professora a esse respeito, porém, sua resposta foi que “aquilo não
era assunto pra quarta série” e que “tinha muita coisa que não era pra ser falada na
escola”.
Ciências era a disciplina que mais gostava e com a qual mais me identificava, pois
explicava parte de minhas principais indagações a respeito da natureza. No entanto, era
ensinada apenas através de leitura dos livros didáticos, de explicação de tópicos pelas
professoras e de resolução de questionários nos cadernos.
A partir da quinta série passei a ser rotulado como um aluno “rebelde e
questionador”, porém, tinha receio de manifestar-me publicamente por ouvir
freqüentemente de meu pai e de meu tio que “deveria ficar quieto na escola”, pois
vivíamos um momento no qual “não podíamos falar tudo o que pensávamos”. Nem
sempre conseguia levar em conta tal conselho e era chamado à atenção por alguns
professores por fazer perguntas “difíceis de responder”.
Na oitava série fomos induzidos a continuar os estudos em cursos técnicos em
nível de segundo grau. Os professores diziam que para atingir a condição de país
desenvolvido, o Brasil precisava de “mão de obra qualificada”; que cursar faculdade era
“algo pra quem podia”, “pra quem tinha dinheiro” e que este não era o nosso caso. No
entanto, no último dia de aula, resolvi discordar da professora que ministrava uma
disciplina denominada Programa de Informação Profissional, dizendo-lhe que iria “fazer o
segundo grau comum” e tentar cursar uma faculdade para “estudar bichos e plantas”,
sem saber e sem ser informado por ela que a disciplina que os estudava era a Biologia.
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Lembro-me bem de sua fisionomia discordante e arrogante, dizendo-me apenas “Deus te
ajude, menino...”.
Ao longo do primeiro grau havia incorporado uma série de idéias estereotipadas a
respeito de homem, mundo, nação, sociedade e educação, sem conseguir compreender
criticamente o contexto em que vivia.
Em 1981 ingressei numa escola estadual de segundo grau num bairro de classe
média baixa, também na Zona Leste de São Paulo, não muito distante de casa e concluí
o curso em 1983.
Por estar trabalhando como conferente numa distribuidora de produtos
farmacêuticos estudei no período noturno, o que dificultou-me ainda mais ter acesso a
uma formação consistente, primeiro, pelo cansaço físico; segundo, pela falta de
condições objetivas de trabalho existentes na escola; e, terceiro, pela carência de
professores bem formados e preocupados com a efetiva aprendizagem de seus alunos.
Desde o primeiro grau, meus interesses se dirigiam às Ciências Biológicas,
principalmente para as curiosidades a respeito da vida animal. No primeiro mês de aulas
já havia decidido prosseguir os estudos em nível universitário e formar-me biólogo.
Procurei dedicar-me principalmente ao estudo das disciplinas que teriam um peso maior
no vestibular para o curso de Ciências Biológicas. Era considerado um excelente aluno
em disciplinas como Biologia e Química, razoável em Física, Matemática, Geografia,
História e Educação Artística, porém, medíocre em Língua Portuguesa e Inglês.
Antes mesmo de concluir o curso de segundo grau, já havia vivenciado a
experiência e a frustração do fracasso nos exames vestibulares.
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qualidade formativa, e ingressavam em instituições de ensino superior privadas, também
de qualidade duvidosa; enquanto os mais ricos estudavam em escolas privadas de
primeiro e segundo graus, que ofereciam maior qualidade formativa, e ingressavam em
instituições públicas e gratuitas de ensino superior, geralmente de melhor qualidade
(Harper et alii, 1984; Buffa e Nosella, 1991).
Mesmo sabendo que esta instituição não iria oferecer-me a mesma qualidade
formativa daquela que havia pretendido inicialmente, decidi permanecer no curso e
complementar minha formação participando de atividades de divulgação científica e
cursos extra-curriculares.
Já no final do primeiro semestre do curso de graduação havia decidido ser
pesquisador e não professor de Ciências e/ou Biologia, realidade que pode ser verificada
entre a maioria dos estudantes de cursos de Licenciatura e Bacharelado em Ciências
Biológicas de instituições privadas de ensino, mesmo estas não tendo institucionalizada a
prática da pesquisa científica (Nascimento, 1998).
Por identificar-me com a Zoologia procurava aperfeiçoar-me profissionalmente
nesta área, participando de diversos cursos de atualização, porém, freqüentava
atividades de divulgação científica de outras áreas, tendo em vista superar parte das
limitações formativas do curso de graduação em que estava matriculado.
Devido à incessante busca por melhorias em minha formação acadêmica e das
boas notas obtidas nas avaliações, no último ano de curso fui convidado pelo professor
de Zoologia, também diretor do Museu do Instituto Butantan, para atuar como monitor
das disciplinas as quais estava responsável, pois conhecia meu interesse em atuar
futuramente como pesquisador. Sob sua orientação, em 1987 elaborei um programa de
pesquisa a respeito da ocorrência de um determinado grupo de insetos numa região
agrícola, o que possibilitou-me a elaboração da monografia de conclusão de curso para a
obtenção do título de Bacharel em Ciências.
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questões de múltipla escolha e questões analítico-reflexivas muito semelhantes àquelas
dos exames vestibulares. Por exemplo, de uma sala com trinta e dois alunos cheguei a
reprovar quatro, sem direito à recuperação, junto com outras disciplinas. Os vinte e oito
restantes ficaram de recuperação em Ciências, ou seja, não aprovei ninguém! Pelo
menos na recuperação aprovava a metade da turma... Mesmo assim, continuava sendo
visto pelos alunos, por suas famílias e pelo diretor da escola como um “ótimo professor”.
Essa forma de trabalhar seguiu até o final de 1988, ocasião em que, pela primeira
vez, fiquei em dúvida quanto à reprovação ou não de uma aluna, a “Rosângela”.
Tratava-se de uma menina muito pobre, que se levantava diariamente por volta
das 05h e 30min para ir ao trabalho. No final do expediente ela ia diretamente para a
escola, sem ter tempo sequer para tomar um banho e jantar. Freqüentemente costumava
chamar sua atenção por dormir em classe e repetia enfaticamente o que meus familiares
haviam dito ao longo de toda minha infância e adolescência a respeito da “necessidade
dos pobres estudarem para vencer na vida”.
Numa dessas provas de recuperação, a Rosângela confundiu-se e respondeu que
“aracnídeos tinham seis pernas” e “insetos tinham oito pernas”. Resposta errada! Faltou-
lhe apenas meio ponto para ser aprovada. No entanto, minha “ética profissional” impediu-
me de dar-lhe o meio ponto necessário, já que teria que fazê-lo também por outros
alunos que julgava não serem merecedores de “tamanha benevolência”. Passei, então, a
responsabilidade ao Conselho de Classe, que decidiu por sua reprovação. Ao “lavar as
mãos” e deixar a “condenação ou libertação” daquela aluna a cargo de outrem permaneci
tranqüilo, isentando-me da responsabilidade que cabia-me como educador.
Naquele início de noite caiu um temporal e tive que ficar por mais tempo na
escola. Mesmo sabendo que o resultado do Conselho de Classe somente seria divulgado
no dia seguinte, a Rosângela apareceu na escola, molhada da cabeça aos pés; vestida
com uma camiseta muito velha, cheia de pequenos buracos e uma calça de jeans
completamente desbotada e desfiada; calçava um chinelo velho de dedos nos pés; e
tinha em suas mãos uma sacola plástica transparente, que deixava à mostra uma
marmita de alumínio e um garfo preso à mesma por elástico de câmara de pneu. Com um
lindo e cativante sorriso aquela menina perguntou-me:
-Passei, “fessor”?
Naquele momento senti-me gelado dos pés à cabeça e não consegui dizer-lhe
que havia sido reprovada. Vi projetada sobre aquela menina minha condição pessoal,
familiar, social e profissional de pessoa oprimida. Disse-lhe apenas que voltasse à escola
no dia seguinte para tomar conhecimento do resultado final. Esquecendo-me do temporal
fui para casa, porém, naquela noite não consegui dormir. A imagem da singeleza do
sorriso daquela menina me atordoara. Questionei meu papel de professor diante da
reprovação de uma aluna que apenas confundiu o número de pernas que diferenciavam
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aracnídeos e insetos; questionei que utilidade teria para a vida daquela menina e dos
demais alunos saberem que aranhas tinham oito pernas e insetos seis pernas; pensei se
não seria mais útil e interessante conhecerem as relações dos seres vivos entre si, com o
ambiente e com o ser humano...
Sem ter clareza estava questionando o papel social do ensino de Ciências e
considerando que o conhecimento científico específico poderia vir a ser adquirido pelos
alunos como uma decorrência de sua contextualização e da problematização de aspectos
da realidade cotidiana (Amaral, 1988; Delizoicov e Angotti,1991) e não o contrário, como
vinha fazendo.
Naquele momento acabava de tomar consciência da existência do “eu” educador
e do “outro” enquanto educando e sujeito histórico (Fiori, 1986; Freire, 1992). Passei a
questionar não apenas minha atuação como docente, mas as possíveis influências de
minha formação pessoal, escolar e universitária sobre minha prática educativa. Havia
aprendido a ser professor segundo modelos didáticos fundamentados pela abordagem
tradicional do processo de ensino-aprendizagem (Mizukami, 1986) e incorporado a idéia
de que o “bom professor” era aquele que conhecia bem a matéria e a transmitia aos
alunos com segurança e boa comunicação. Até aquele dramático momento pedagógico
agia como imagem e semelhança daquele odiado, porém, competentíssimo professor de
Zoologia e não havia percebido que o trabalho educativo desenvolvido na escola se
articulava diretamente às dimensões pessoal e social dos sujeitos (Nascimento, 1998).
Na manhã seguinte retornei à escola para dizer ao diretor que gostaria de rever o
caso da Rosângela, por considerar injusta sua reprovação. No entanto, ele disse que
somente iria revê-lo caso a família protocolasse na escola um recurso contra sua
reprovação.
Aguardei que a família protocolasse o tal recurso até dois dias depois da
reprovação da aluna, porém, como não o fizeram, sem que o diretor e os demais
professores soubessem, fui à casa da menina conversar com sua mãe e orientá-la a
“entrar com recurso contra mim” na secretaria da escola. Foi muito difícil convencê-la,
pois, assim como a equipe administrativo-pedagógica da escola, ela culpava apenas a
própria filha pela reprovação, dizendo que havia dito a ela para que estudasse mais, que
prestasse mais atenção nas aulas e não dormisse em classe.
Aquela situação representava um típico caso de culpabilização da vítima pelo
fracasso escolar (Patto, 1988). Para convencer aquela senhora a protocolar o recurso na
escola eu mesmo redigi o requerimento, pedi a ela que o reescrevesse para não “levantar
suspeitas” e que o entregasse na secretaria da escola.
Indignado com o recurso, o diretor reuniu novamente o Conselho de Classe, que
ratificou a reprovação da menina, afinal, segundo seu ponto de vista a decisão daquela
família era uma “afronta contra o melhor professor de sua escola”!
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Ainda muito angustiado com a reprovação da Rosângela e sentindo-me culpado
pela reprovação dos demais alunos, dois dias depois retornei novamente à sua casa e
levei quase uma hora para convencer sua mãe a protocolar um novo recurso no âmbito
da Delegacia de Ensino da região. Somente consegui convencê-la ao dizer que se não o
fizesse eu deixaria de ser professor e que ela seria “culpada” pelo fim de minha carreira
profissional. Tendo funcionado aquela chantagem emocional, a acompanhei e, como
ninguém me conhecia na Delegacia de Ensino, apresentei-me indignado com a
reprovação da aluna, esbravejando à distância:
- Onde é que já se viu isso! A menina passou em todas as matérias e ficou por
meio ponto só em Ciências? Que absurdo!
Novamente, auxiliei aquela senhora muito simples e com pouca escolaridade a
redigir o requerimento. Corria o risco de perder o cargo de professor temporário caso
fosse reconhecido por alguém, porém, através da busca pela aprovação da Rosângela,
procurava a todo custo redimir-me da culpa pela reprovação de todos aqueles alunos.
Na noite seguinte, ao chegar à escola, o diretor estava apreensivo e ainda mais
indignado. Chamou-me até sua sala e, com as mãos sobre a cabeça, disse-me:
- Professor, o senhor não sabe o que aconteceu! A família da Rosângela entrou
com um recurso “contra o senhor” na Delegacia de Ensino!
Tranqüilo, mas escondendo um enorme sarcasmo, disse ao diretor que
concordava em resolver definitivamente aquele caso, dando o meio ponto que faltava à
aluna. No entanto, ele retrucou e disse:
- Não, professor, de jeito nenhum! Não se preocupe! Nós vamos levar esse caso
até o fim!
Minha insistência na aprovação da aluna fora interpretada tanto pelo diretor como
pelos demais professores da escola como um receio de vir a ser prejudicado
profissionalmente. Desse modo, no dia seguinte, o diretor reuniu novamente o Conselho
de Classe, desta vez contando com a presença de todos os professores de Ciências da
escola. Novamente ratificaram sua reprovação, sem saberem que eu era o verdadeiro
articulador de toda aquela situação tragicômica.
No sábado à tarde daquela semana fui novamente à casa da Rosângela para
tentar convencer seus pais a protocolarem um novo recurso contra a reprovação no
âmbito da Secretaria de Educação. No entanto, nem mesmo minhas chantagens
emocionais surtiram efeito. As justificativas daquela família para não prosseguirem com
os recursos deixaram evidentes a aceitação passiva de sua condição de pessoas
oprimidas (Freire, 1986).
Analisavam aquela situação como algo natural e próprio das comunidades
excluídas economicamente, pois estavam acostumados a enfrentar as dificuldades com
poucas perspectivas de superação ou de obtenção de êxito. Mesmo chateada, a própria
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Rosângela tentou convencer-me a deixar de lado aquela história, dizendo que eu não
tinha culpa por sua reprovação. Ela disse que não havia estudado o suficiente, que
“repetir de ano” serviu para ver que deveria dedicar-se mais aos estudos e que gostaria
de continuar tendo aulas comigo no ano seguinte...
Esta traumática experiência pedagógica possibilitou-me uma série de reflexões a
respeito do papel educativo e social do ensino de Ciências e buscar formas para
transformar minha prática educativa.
Não satisfeito com o fato de não haver conseguido resolver o problema de
reprovação daquela aluna, no início do ano seguinte fui a uma escola privada que
oferecia cursos supletivos para adultos e adolescentes em situação de atraso escolar e
pedi à secretária que enviasse à Rosângela um comunicado a respeito da possibilidade
dela cursar duas séries num único ano letivo, através do oferecimento de uma bolsa de
estudos. Por saber que a família não a aceitaria, caso soubessem que eu a estava
oferecendo, pedi para não ser identificado.
Soube que a Rosângela cursou o supletivo e não perdeu um ano letivo apenas
por haver confundido o número de pernas de aracnídeos e insetos. Assim, consegui a
paz necessária para prosseguir com minha carreira docente, porém, de modo bastante
diferente do que vinha fazendo anteriormente. Passei a buscar formas de transcender a
abordagem tradicional do processo de ensino aprendizagem e a assumir uma perspectiva
reflexiva, crítica e cidadã no ensino das ciências (Nascimento, 1998).
Enfim, em minha trajetória como docente, a necessidade de fazer uma opção de
classe e trabalhar em função dos interesses das pessoas oprimidas (Freire, 1986) se
tornara clara a partir do desenvolvimento de uma consciência reflexiva e crítica.
Desse modo, deixei a pesquisa científica de lado e passei a dedicar-me
essencialmente à tarefa de educar.
Por haver revelado ao diretor ser o responsável direto pelos recursos contra a
reprovação da Rosângela, fui “gentilmente convidado” por ele a deixar de lecionar
naquela escola. Indignado, ele disse haver perdido a confiança em mim e não querer em
“sua” escola professores “fracos” emocionalmente.
Discordando de seus argumentos, mas respeitando sua posição, no início de 1989
deixei de lado o direito de assumir aulas naquela escola e inscrevi-me em outra
Delegacia de Ensino da Zona Leste da cidade de São Paulo. Apenas consegui assumir
aulas em uma escola bastante distante de casa, situada num conjunto habitacional, local
com péssima fama devido aos altos índices de violência, precárias condições de vida e
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sérios problemas de abastecimento de água.
Antes de iniciar o ano letivo procurei ler e compreender o que diferentes autores
diziam sobre educação pública, interdisciplinaridade, construtivismo, formação de
professores, entre outros temas. Estava definitivamente convencido de que os aspectos
didáticos e metodológicos na formação e atuação de professores não eram “meras
perfumarias”. Na verdade, eu era um professor em construção (Pimentel, 1994), que
buscava transformar sua própria prática educativa.
Minhas primeiras leituras foram desastrosas. Iniciei lendo algumas obras de
autores como Paulo Freire, Jean Piaget, Moacir Gadotti, Makarenko, Freinet, porém, não
conseguia compreender como suas idéias e teorias se aplicariam à realidade da sala de
aula e aos processos de ensino-aprendizagem das ciências. Resolvi, então, seguir um
caminho didático próprio, considerando que aulas de Ciências ministradas através de
lousa, giz, explicação, exercícios de fixação e atividades práticas para comprovar a
veracidade de conceitos e conhecimentos científicos não seriam suficientes para garantir
aprendizagens efetivas e formar cidadãos críticos e conscientes de seu papel na
sociedade (Nascimento, 1998).
No primeiro dia de aulas, ao invés de apresentar o programa da disciplina
Ciências Físicas e Biológicas, como costumeiramente fazia, tentei estabelecer um diálogo
com os alunos, perguntando-lhes quais eram os principais problemas que existiam onde
viviam e que achavam ter relação com as ciências. Foi bastante difícil compreender o que
diziam, pois falavam todos ao mesmo tempo e sem articular muito bem suas idéias.
Percebi que tinham bem desenvolvida a habilidade da fala, mas não a habilidade de
escuta...
Procurei organizar suas idéias na lousa e perceberam que, entre muitos, o
principal problema que enfrentavam era a falta de água no bairro. Conversamos um
pouco mais e despedi-me, refletindo sobre como poderia encaminhar o processo
educativo a partir daquela demanda social. Mesmo sem ter consciência, estava
colocando em prática os pressupostos da reflexão na e sobre a ação educativa (Shön,
1992; Nóvoa, 1992), essenciais para a transformação do ensino (Pérez Gómez, 1998).
Na aula seguinte sugeri que estudássemos, através de um projeto didático, como
a água chegava à torneira de casa. Mesmo sem ter clareza estava problematizando
situações científicas (Carvalho, 1991) e estabelecendo junto com os alunos temas
geradores de ensino (Freire, 1992) a partir de situações vivenciadas por eles. Além dos
temas de Ciências propostos nos livros didáticos, os alunos iriam estudar outros temas
não convencionais ao programa da disciplina. Passei a considerar que a aprendizagem
de conteúdos de ensino não deveria representar a finalidade última da aprendizagem,
devendo estes serem meios para que os alunos viessem a desenvolver-se cognitiva e
socialmente, bem como serem críticos e conscientes de seu papel no contexto em que
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viviam (Nascimento, 1998).
Os alunos passaram a fazer uma série de leituras; exemplificaram com
canudinhos de refrigerante o encanamento de uma casa; realizaram uma série de
experimentos simples, tendo em vista compreender como ocorria a distribuição de água
num bairro; analisaram contas de água; resolveram uma série de problemas a respeito de
seu consumo; mesmo vivenciando a experiência da escassez de água, discutiram
alternativas para um consumo racional e consciente; e confeccionaram um livro ilustrado
a respeito do que haviam aprendido ao longo do desenvolvimento deste projeto didático.
Por fim, tomaram consciência de que as explicações dadas pelo pessoal da SABESP3
para justificar a falta de abastecimento de água no bairro não eram coerentes com os
conceitos científicos e conhecimentos que haviam adquirido. Desse modo, surgiu a idéia
de realizarmos uma feira de Ciências, tendo algumas atividades prático-experimentais a
finalidade de divulgar para a comunidade como funcionava uma estação distribuidora de
água da SABESP e como ocorria a distribuição de água no bairro.
A partir daquela feira de Ciências, no sábado seguinte, houve uma ampla
discussão na escola a respeito do problema que mais afligia aquela população, contando
com a presença de alunos, alguns professores e representantes da comunidade local.
Tal discussão possibilitou a organização de algumas passeatas de protesto contra
a falta de água no bairro. Por contar com pouco mais de cem pessoas, principalmente
alunos da escola, a primeira passeata não alcançou seu principal objetivo. Sequer uma
comissão fora recebida pela diretoria da estação de distribuição de água da SABESP,
ficando premente a necessidade de ampliar o alcance daquele movimento.
A partir do apoio da diretora da escola, durante o período de aulas, alguns
professores e alunos puderam visitar outras escolas na tentativa de mobilizarem pessoas
para uma nova manifestação, enquanto outros discutiam e confeccionavam cartazes com
frases de protesto em aulas de diferentes disciplinas como Educação Artística, Língua
Portuguesa, História e Geografia.
Naquele momento, estávamos desenvolvendo um projeto educativo que, além de
articular os conhecimentos de diferentes disciplinas, transcendia as paredes da sala de
aula (Nascimento, 1998).
Contanto com a participação de alunos e professores de outras escolas e de
vários representantes da comunidade local, uma nova passeata foi realizada, contando
com mais de trezentas pessoas, alcançando seu objetivo e amenizando de modo
bastante significativo o problema que mais afligia aquela comunidade.
A partir destas experiências educativas passei a crer na possibilidade de
transformação da sociedade por meio da educação, ainda que em ambiente de
simplicidade (Demo, 1995; Nascimento, 1998). Passei a compreender que a sociedade
3
Refere-se à Companhia de Abastecimento de Água e Esgoto do Estado de São Paulo.
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não era fixa e que poderia ser mudada pela mobilização daqueles que ainda não tinham
tido nem vez nem voz (Harper et al., 1984). Compreendi que mudanças poderiam ocorrer
ao nível de uma instituição, podendo avançar em relação às transformações da
sociedade global e que se o professor quisesse implementar mudanças teria que
começar a realizá-las dentro de sua sala de aula (Fernandes, 1987).
Considero, portanto, que minha prática educativa tem dois momentos
pedagógicos distintos: “antes da Rosângela” e “depois da Rosângela”. Antes da
Rosângela, fundamentada pela abordagem tradicional do processo de ensino-
aprendizagem (Mizukami, 1986) e por uma concepção descontextualizada e acrítica de
ciência, entendida essencialmente como produto acabado (Amaral, 1988; Nascimento,
1998), o que possibilitava aos alunos basicamente a memorização de informações e a
aquisição de produtos da ciência4 (Krasilchik, 1987; Nascimento, 1998). Depois da
Rosângela, fundamentada pelos pressupostos das abordagens libertadora e cognitivista
do processo de ensino-aprendizagem (Mizukami, 1986) e por uma concepção de ciência
contextualizada historicamente, caracterizada como processo em construção,
possibilitando aos alunos a apropriação de conhecimentos científicos significativos e o
desenvolvimento de habilidades cognitivas e sociais relevantes no contexto em que
viviam (Nascimento, 1998).
Em minha prática educativa, portanto, as mudanças ocorreram a partir do
momento em que passei de uma consciência alienada para uma consciência reflexiva, a
qual possibilitou-me perceber o papel estratégico que apresenta o professor nas
transformações educativas (Aikenhead, 1994; Pérez Gómez e Gimeno Sacristán, 1998).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nosso país conta com muitas instituições preocupadas com a melhoria dos
processos de formação de professores.
No entanto, creio que os principais problemas relacionados à formação e à
atuação de professores não residem na ausência de propostas formativas, mas nas
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Apesar de vivenciarem um modelo de ensino-aprendizagem fundamentado essencialmente em
processos de transmissão e assimilação de conhecimentos científicos acabados, considero que,
mesmo através da abordagem tradicional do processo de ensino-aprendizagem, os alunos
poderiam vir a ultrapassar a cultura primeira e atingir uma cultura elaborada (Snyders, 1988),
passando de uma consciência alienada a uma consciência reflexiva (Freire, 1992), desde que se
apropriassem de saberes escolares estratégicos (Libâneo, 1988, Saviani, 1991; Demo, 1995). No
entanto, esta passagem pressupõe um movimento cognitivo bastante complexo, algo que nem
sempre se viabiliza no âmbito epistemológico e pessoal dos sujeitos que vivem em contextos
sociais pobres e carentes de intervenções educativas de caráter crítico-reflexivo por parte dos
educadores (Nascimento, 1995). É nesse sentido que defendo o papel estratégico da ação
educativa do professor na transformação do ensino e da formação de sujeitos críticos e
conscientes na sociedade contemporânea (Nascimento, 1998).
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influências diretas das opções político-econômicas dos governantes sobre a educação;
nos controles exercidos pelo estado capitalista sobre a educação pública; na falta de
continuidade de políticas educativas significativas; nas deficiências formativas de
profissionais da educação; e em inconsistências teóricas e/ou metodológicas inerentes às
praticas educativas, nem sempre percebidas pelos professores.
A superação de parte dos problemas da educação científica depende de
melhorias nos processos de formação de professores e em suas condições objetivas de
trabalho, bem como de mudanças em suas concepções científicas e pedagógicas.
Formados num curso teórica e metodologicamente consistente, os futuros
professores de Ciências poderiam vir a atuar crítica e reflexivamente, considerando
problemas e demandas locais e regionais, o que indicaria a possibilidade de construção
de um caminho desejável e promissor para a educação científica do país, ainda bastante
carente de profissionais com sólida formação científica e pedagógica.
Apesar dos esforços de muitos docentes e pesquisadores comprometidos com a
busca de melhorias para o ensino de Ciências e para a formação de professores, as
universidades brasileiras ainda carecem de iniciativas verdadeiramente transformadoras.
Suas propostas deveriam considerar as necessidades formativas dos professores em
função de suas futuras realidades de atuação. Enquanto instituição plurifuncional,
democrática e crítica, a universidade pode contribuir de modo significativo para que os
futuros professores venham a ultrapassar o mero papel de repetidores de informações,
fatos e conceitos científicos (Menezes, 1987), de forma a atingirem a condição de
agentes críticos em busca da construção de uma sociedade verdadeiramente
democrática (Giroux, 1987; Freire, 1992).
Acredito residir nesse âmbito a importância da implementação de uma vertente
crítica e cidadã nos cursos de formação docente, tendo em vista levar os professores a
se apropriarem de saberes estratégicos e a desenvolverem a capacidade de atuar crítica
e reflexivamente em distintas realidades (Nascimento, 1998).
Neste momento, estamos oferecendo no Centro Interdisciplinar de Ciências da
Universidade de São Paulo (CIC-USP) cursos de formação docente nessa perspectiva e
avaliando suas possibilidades educativas em situações reais de ensino-aprendizagem.
Apesar desta ser uma iniciativa notadamente insuficiente para a transformação da
educação científica em nosso país, estamos fazendo uma provisão de otimismo, pois se
educação é em essência emancipação cabe-nos fazer acontecer a transformação
desejada e não esperar que ela aconteça a partir da “boa vontade” de nossos
governantes.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AIKENHEAD, G. S. The social contract of science: implications for teaching science. New
York: Teachers College Press, 1994.
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