Nannini PBR DR Ia
Nannini PBR DR Ia
Nannini PBR DR Ia
São Paulo
2016
PRISCILLA BARRANQUEIROS RAMOS NANNINI
Tese apresentada para o Programa de Pós Graduação em Artes como requisito parcial para
obtenção do título de Doutor em Artes junto ao Instituto de Artes da Universidade Estadual
Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo.
São Paulo
2016
Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do
Instituto de Artes da UNESP
CDD 869.9105
PRISCILLA BARRANQUEIROS RAMOS NANNINI
PALAVRA E IMAGEM:
POSSÍVEIS DIÁLOGOS NO UNIVERSO DO LIVRO DE ARTISTA
Tese de doutorado aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Artes
no Curso de Pós-Graduação em Artes, do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista
– Unesp, com a área de conhecimento Artes Visuais, pela seguinte banca examinadora:
________________________________________________________
Prof. Dr. Omar Khouri
Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista/SP – Orientador
________________________________________________________
Prof. Dr. José Spaniol
Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista/SP
________________________________________________________
Profa. Dra. Rita Luciana Berti Bredariolli
Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista/SP
________________________________________________________
Profa. Dra. Maria dos Prazeres Santos Mendes
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas / Universidade de São Paulo
________________________________________________________
Prof. Dr. Júlio César Mendonça
Secretaria de Educação e Cultura da Prefeitura de São Bernardo do Campo
Aos amores da minha vida,
Marcelo e Marina.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a todos que me incentivaram e colaboraram para a realização desta pesquisa, pela
paciência, escuta e trocas em um momento tão importante da minha vida.
Agradecimentos especiais ao Professor Dr. Omar Khouri, meu orientador, pela firmeza,
paciência e dedicação, possibilitando o meu crescimento como pesquisadora.
Que é um livro, se não o abrirmos? É, simplesmente, um cubo de papel e couro, com folhas.
Mas, se o lemos, acontece uma coisa rara: creio que ele muda a cada instante.
Jorge Luis Borges
A ideia é traçar o caminhar dessas linguagens desde seus primórdios até os dias de hoje,
relatando seus diálogos e retomando as origens dessas relações, pesquisando onde palavra e
imagem iniciam seus encontros, quais suportes usados e sua exploração, quais as influências
dos movimentos artísticos e como isso refletiu nas representações artísticas.
O que se consegue elaborar em termos de conhecimentos nessas relações? Após a leitura dos
autores, análise dos Livros de Artista, conversas e entrevistas com a artista Edith Derdyk,
buscou-se um entendimento sobre os diálogos entre a palavra e a imagem, suas relações,
encontros e desencontros. Esta pesquisa finaliza com um relato de experiência realizado com
alunos do ensino médio na construção do livro de artista.
8
ABSTRACT
The goal of this research is to find possible dialogues between word and image within visual
poetry, art and design. The proposal is to interweave word and image within these languages,
seeking agreements and disagreements, using as a thread for these reflections the production
of artistsʼ books made by Mira Schendel, Lygia Pape, Edith Derdyk and by visual poet
Ronaldo Azeredo, who investigated verbal and visual relationship through different
possibilities of representation, creating representative works with great artistic, aesthetic and
cultural value.
The idea is to outline the evolutions of these languages from their beginnings to the present
day, narrating their dialogue and looking back on the origins of these relationships,
researching where word and image started to merge, what media were used and how they
were used. This paper also reflects on the influence of the avant-garde and how these
movements are expressed in the artistsʼ books.
The contemporary world is marked by a proliferation of images in the media and in everyday
life, but how is this reading done? The critical eye toward the visual is seen today as highly
important. This accounts for the relevance of this study, which proposes to think about the
image and its relationship with the word, raise contemporary issues such as the large amount
of images we receive from day to day and corroborate the idea that you must have a sharp eye
on them.
What knowledge can we draw from these relationships? After reading authors, analyzing
artistsʼ books, interviewing the artist Edith Derdyk, we looked for an understanding of the
dialogue between word and image, their relations, agreements and disagreements. This
research concludes with an annexe that describes the experience undertaken with high school
students during the creation of artistsʼ books.
9
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1: Lewis Carroll, The mouse’s tale, 1865. 40
Fonte: http://www.giadacoppi.com/teaching-calligrams.html
Figura 16: Munari, Libro illeggibile MN1, design concebido em 1949 e impresso em 1984. 51
Fonte: http://www.design-is-fine.org/post/76418633863/bruno-munari-illegible-book-four
-inches-square
10
Figura 19: Die Scheuche, 1925. 55
Fonte: http://beinecke.library.yale.edu/exhibitions/power-pictures/pictures-and-words
-illustrated-stories
11
Figura 38: Max Bill, Unidade Tripartida, 1951. 75
Fonte: http://www.brasilartesenciclopedias.com.br/internacional/bienal02.html
12
Figura 58: Alexandre Vilas Boas, Livro de tempo, verdades provisórias, 2014. 99
Fonte: exposição Livraria de artistas, 2014 (foto da autora).
Figura 60: Nuno Ramos, Caldas Aulete – para Nelson 3 (2006). 100
Fonte: exposição A tara por livros ou a tara de papel, 2014 (foto da autora).
Figura 64: Fábio Morais. Romance para ser lido sob a chuva, 2008/2011. Livro cortado. 102
Fonte: http://www.museusegall.org.br/mlsItem.asp?sSume=20&sItem=380
Figura 65: Lucia Mindlin Loeb, sem título, 2000. Folhas de madeira e encadernação manual. 102
Fonte: exposição Aberto e Fechado: caixa e livro na arte brasileira, 2012 (foto da autora).
Figura 68: Hilal Sami Hilal. Livro Prego (corrosões sobre o cobre), 2012. 104
Fonte: http://www.galeriaclima.com.br/portu/comercio.asp?flg_Lingua=1&cod_Artist a=93&cod_Serie=49
Figura 69: Marilá Dardot. Instalação Avant et après la lettre, França, 2011. 107-8
Fonte: http://www.mariladardot.com
Figura 71: Schendel, s/ título (série Bombas), 1965. Nanquim sobre papel. 121
Fonte: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa2450/mira-schendel
Figura 72: Schendel, O retorno de Achilles I, 1964. Óleo sobre tela. 122
Fonte: catálogo da exposição Mira Schendel, pintora, 2009, p. 51.
Figura 73: Schendel, s/ título (Monotipias), 1965. Óleo sobre papel arroz. 124
Fonte: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa2450/mira-schendel
Figura 74: Schendel, Datiloscritos, 1973/1974. Técnica mista sobre cartão. 125
Fonte: http://studionobrega.com/Collection
13
Figura 78: Schendel, s/ título, série Cadernos, anos 1971. Letraset sobre papel vegetal. 130
Fonte: exposição Aberto fechado, caixa e livro na arte brasileira. Pinacoteca SP, 2012.
Figura 80: Schendel, s/ título, série Cadernos, 1971. Papel recortado. 131
Fonte: exposição Aberto fechado, caixa e livro na arte brasileira. Pinacoteca SP, 2012.
Figura 81: Schendel, s/ título, série Cadernos, anos 1971. Letraset sobre papel vegetal. 132
Fonte: exposição Mira Schendel. Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2014.
Figura 83: Schendel, s/ título, série Cadernos, 1970. Letraset e técnica mista sobre papel. 133
Fonte: http://www.frieze.com/issue/review/mira-schendel/
Figura 85: Schendel, s/ título, série Cadernos, 1971. Letraset sobre papel. 134
Fonte: http://www.artnet.de/kunstler/mira-schendel/auktionsresultate
Figura 86: Schendel, s/ título, série Cadernos, 1970. Letraset sobre papel. 135
Fonte: http://www.minusspace.com/2009/06/mira-schendel-stephen-friedman-gallery
-london-united-kingdom/
Figura 87: Schendel, s/ título, série Cadernos, 1971. Letraset e grafite sobre papel. 135
Fonte: exposição Mira Schendel. Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2014.
Figura 90: capas das revistas Noigandres 3; Noigandres 4 e Antologia Noigandres 5. 143
Fonte: livro Poesia Concreta: o projeto verbivocovisual, 2008, p. 24, 30 e 36.
Figura 91: Fiaminghi, Círculos concêntricos e alternado, 1956. Esmalte sobre eucatex. 143
Fonte: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa8784/hermelindo-fiaminghi
14
Figura 97: Augusto de Campos, olho por olho, 1964. 149
Fonte: livro Poesia Concreta: o projeto verbivocovisual, 2008, p. 54.
Figura 99: Azeredo, livro s/ título, referido como poema da célula, 1972. 151
Fonte: exposição Ronaldo Azeredo, Casa das Rosas, 2013 (foto da autora).
Figura 109: Azeredo, 1991. Texto explicativo que acompanha a obra noitenoitenoite. 158
Fonte: exposição Ronaldo Azeredo, Casa das Rosas, 2013 (foto da autora).
15
Figura 117: Lygia Clark, Plano em superfícies moduladas nº 2, 1956. 172
Fonte: http://www.mac.usp.br/mac/templates/projetos/seculoxx/modulo3/frente/clark/obra.html
Figura 132: Livro da criação: Fogo. 1959-1960. Guache sobre cartão. 186
Fonte: http://www.lygiapape.org.br/
Figura 133: Livro da criação: As águas foram baixando e O homem começou a marcar o tempo. 187
Fonte: livro Lygia Pape: Espaço Imantado, 2012, p. 225.
16
Figura 137: Lance livre de concreto, 1959-1960. 189
Fonte: http://www.lygiapape.org.br/
Figura 140: Livro dos caminhos, 1963-1976. Madeira, têmpera e óleo. 190
Fonte: http://www.lygiapape.org.br/
Figura 142: Instalação Livros: Esferas, Sempre, Luz e Silencioso, 2001. 191
Fonte: http://www.lygiapape.org.br/
Figura 146: Vão, Edições A, 1999. Impressão digital. Tiragem: 100 exemplares. 200
Fonte: http://cargocollective.com/edithderdyk/Livros-de-Artista
Figura 148: Rasuras, Edições A, 2002. Impressão digital - Takano. Bolsa Vitae. Tiragem única. 202
Fonte: http://cargocollective.com/edithderdyk/Livros-de-Artista
Figura 153: Desenhos, Edições A, 2007. Impressão Gráfica Águia - offset. 206
Fonte: fotos tiradas pela pesquisadora.
17
Figura 157: Avesso, Edições Tijuana, 2012. 210
Fonte: http://cargocollective.com/edithderdyk/Livros-de-Artista
Figura 160: Cifrado, Edições A, 2014. Impressão offset - gráfica Águia. 212
Fonte: fotos tiradas pela pesquisadora.
Figura 162: exposição Ângulos, 2004. Galeria Marília Razuk, São Paulo. 215
Fonte: http://www.edithderdyk.com.br/
Figura 163: exposição Onda Seca, 2007. Pinacoteca do Estado de São Paulo. 216
Fonte: http://www.edithderdyk.com.br/
Figura 165: Metragem, 2011. Sesc Bom Retiro, exposição Lições da linha. 217
Fonte: http://www.edithderdyk.com.br/
Figura 168: Cópia: Dia um, Edições A., 2010. Tiragem: 50 exemplares. 220
Fonte: http://www.edithderdyk.com.br/
Figura 173: Tábula, 2015. Livro contemplado pelo Edital Proac em parceria com Edições Ikrek. 225
Fonte: http://cargocollective.com/edithderdyk/Livros-de-Artista
18
SUMÁRIO
RESUMO 8
ABSTRACT 9
INTRODUÇÃO 20
BIBLIOGRAFIA 233
ANEXO
Brincando com o livro de artista 239
19
INTRODUÇÃO
20
Cada palavra potencialmente é uma imagem e cada imagem
potencialmente é uma palavra [...] Toda imagem sobrevive na
palavra de outro que fala dessa imagem e toda a palavra
sobrevive na imagem que essa palavra potencialmente
constrói.
Luiz Pérez-Oramas1
A relação palavra e imagem sempre foi presença marcante em minha vida, seja
profissionalmente ou artisticamente. No mestrado pesquisei esse tema dentro do recorte da
literatura infantil, explorando os diálogos entre a ilustração e o texto. Trabalhei a leitura de
ilustração e sua relação com o verbal, que se encontra nos títulos, nas expressões, na narrativa
1
PÉREZ-ORAMAS, Luis. Falar imagens. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=8alRYmRm0M8.
Acesso em: 15 out. 2011.
21
da história. A vontade de continuar estudando esse assunto me levou a uma nova pesquisa,
com mais abrangência, abrindo novas janelas de conhecimento.
Desvelar pontos de encontro entre palavra e imagem dentro das Artes, Poesia e Design é o
objetivo desta pesquisa. Onde palavra e imagem iniciam seus encontros? Pretendo retomar as
origens dessas relações, sendo o Livro de Artista uma das vertentes desse estudo, um fio
condutor dessas reflexões. Quais suportes usados e sua exploração, quais as influências dos
movimentos artísticos e como isso refletiu nas representações artísticas são alguns dos meus
questionamentos iniciais. Artes, Poesia e Design se intercambiam principalmente dentro das
explosões de experimentações dos movimentos que surgiram no início do século XX.
Na verdade, as fronteiras entre essas linguagens foram sendo diluídas com o tempo. Marshall
Berman (1986: 26) afirma que artistas, escritores, compositores, dançarinos, cineastas
deveriam “romper os limites de suas especializações e trabalhar juntos em produções e
performances interdisciplinares, que poderiam criar formas de arte mais ricas e polivalentes”.
Para Bauman (2001: 7), a fluidez sofre uma constante mudança da forma quando submetida a
uma determinada tensão. Fronteiras líquidas, que não mantêm sua forma com facilidade, não
fixam o espaço e nem prendem o tempo.
Essa é a metáfora que escolhi para representar essa mistura de fronteiras, onde uma linguagem
interfere na outra, usando os códigos uma da outra o tempo todo, ocorrendo assim a
flexibilização, fluidez crescente, derretimento, rompimento de limites. A poesia, além das
palavras, usa códigos visuais em suas representações, assim como a arte. O design usa e
formata a escrita e a imagem, dispondo do verbal e visual no espaço gráfico, retirando
recursos das mídias e das artes. Por fim, as artes retiram recursos da escrita, como palavras e
letras, em que temos a artista Mira Schendel como exemplo dessa forma de expressão. A
revolução industrial permitiu que essas linguagens se aproximassem, havendo uma
transgressão dos meios.
22
Hoje somos submetidos diariamente a grande quantidade de imagens vindas das mídias, como
televisão, videogame, meios eletrônicos, revistas, livros, cartazes; logo, a capacidade de ler
imagens é indispensável para a formação de pessoas atuantes. Discutir o verbal e o visual nos
permite a construção de um olhar mais sensível para a nossa realidade, gerando pessoas
críticas e participativas de todo o universo icônico que nos cerca. Ou seja, melhores leitores e
apreciadores das artes visuais e da visualidade em nosso entorno.
Ler imagem é diferente de enxergar, é um processo de análise e reflexão, uma das faculdades
do pensar. Dondis (1997: 227) discute essa questão em Sintaxe da linguagem visual e elabora
a ideia de alfabetismo visual:
Acredito na importância do olhar crítico em relação à visualidade, por isso a relevância desse
estudo. Devemos pensar sobre a imagem e sua relação com o verbal, levantando questões tão
contemporâneas como a grande quantidade de imagens que recebemos no dia-a-dia e a
constatação que precisamos ter um olhar apurado sobre elas, por isso a necessidade de ver o
mundo com um novo olhar. Ao fazer o entrelaçamento entre Artes, Poesia e Design, discuto a
questão da visualidade hoje.
A paixão pelo livro me guiou na escolha desse tema. O primeiro contato começa com o olhar,
que pouco a pouco desvenda cada detalhe desse objeto: capa, cores, disposição do título,
imagens escolhidas. Também me atrai os recursos de impressão, texturas e suas infinitas
possibilidades de combinações. Depois vem o formato, fontes eleitas, papel, projeto gráfico.
23
Uma nova descoberta e surpresa ao folhear o material, o toque para, finalmente absorver as
informações e propostas.
O livro, para mim, é um objeto de desejo. A presença da palavra e da imagem, seja no livro,
na arte ou na poesia, reflete muito das minhas escolhas de vida: amor pela arte e pelo design.
O diálogo entre essas linguagens leva-me a repensar seus desdobramentos no decorrer da
história da arte até os dias de hoje. Admirar o design trabalhado em cada obra me fascina.
Devido a essa paixão e curiosidade, surgiu a vontade desta pesquisa.
Pretendo explorar os seguintes entrelaçamentos: a palavra nas artes plásticas, como os artistas
usaram esses recursos, a imagem na literatura, o design gráfico como arte, a literatura e o
design gráfico, a poesia visual e o concretismo, e finalmente, o Livro de Artista. Qual é o
diálogo entre palavra e imagem que poderei encontrar no Livro de Artista? Como ocorre? As
barreiras entre as linguagens (arte, poesia e design) são de fato líquidas? Dentro desse
diálogo, como cada artista ou poeta trabalhou essa relação? Quais semelhanças ou diferenças
foram encontradas em suas produções de Livros de Artista?
A relação verbal e visual existe há muito tempo. A imagem é uma das expressões mais
antigas do homem, e seria interessante pensar nas pinturas rupestres como narrativas visuais
onde os homens transmitiam mensagens. Desenhando, eles se comunicavam, construíam uma
narrativa do seu cotidiano, expressando seus medos e desejos. Com o uso de tábuas de argila,
papiros, pergaminhos, o homem traça sinais variados. Desde os primórdios da escrita (que
hoje conhecemos) palavra e imagem interagem. No Egito, temos os Livros dos Mortos, que
eram ilustrados com cenas muito vivas, acompanhando o texto com singular eficácia. Na
Idade Média, no início do século XIV, a iconografia bíblica foi reunida em forma de livro, os
manuscritos; e o diálogo entre o verbal e o visual começa a se fazer presente com as
iluminuras. Artistas e gravadores passam a representar imagens em pergaminho e papel. A
linguagem escrita era privilégio de uma casta monárquica e religiosa, para a grande massa só
existia a linguagem oral. Livros de imagens tornaram-se populares e ficaram conhecidos
como “Bibliae pauperum, ou Bíblia dos pobres” (Manguel, 1997: 123), eram grandes livros
de figuras e ficavam abertas sobre um suporte para expor imagens aos fiéis.
A Bíblia foi o primeiro livro impresso, em 1450, graças à invenção da tipografia (método de
impressão por tipos móveis) por Johannes Gutenberg em Mainz, na Alemanha (Fischer, 2006:
24
188). Importante ressaltar que os chineses já haviam usado, vários séculos antes, o tipo móvel
na impressão. Os livros tinham letra irregular, ausência de paginação ou assinatura, imitando
o manuscrito; a partir de 1500, com o aperfeiçoamento da impressão, o livro vai se
modificando, possibilitando tiragens e divulgação maiores e mais rápidas. O desenvolvimento
da indústria do livro permitiu a expansão da escrita.
Durante o século XX, pode-se constatar um forte diálogo entre as artes visuais e a literatura,
ocorrendo a diluição dos limites, provocando a aproximação entre essas linguagens. Nas
colagens cubistas, artistas se apropriam de fragmentos de textos e palavras em suas obras, os
poetas começaram a se conscientizar da visualidade da escrita e do espaço da página.
Como exemplo dessa integração entre palavra e imagem, tem-se os Livros de Artista, em que
antigas formas de expressão foram retomadas com novos contornos. Obras que rompem as
fronteiras atribuídas aos livros de leitura e se assumem como objetos de arte, representando
uma nova linguagem, entre o linear e o visual, entre a literatura e as artes. No Livro de
Artista, os conhecimentos extrapolaram a leitura textual e foram potencializados com imagens
e vice-versa. O design gráfico mostrou-se como campo de ação importante no sentido de abrir
caminho para outras interações, não apenas da leitura verbal.
Ao estudar os precursores do Livro de Artista, a relação entre Arte, Design e Poesia é bem
nítida. Segundo Drucker (2012: 21), o Livro de Artista não surgiu de maneira linear, havendo
pontos simultâneos de origem, pode-se localizar seus primórdios nas vanguardas artísticas do
início do século XX: quando artistas desses movimentos fizeram diversas experimentações
entrelaçando palavra e imagem. No Brasil, as experiências dos poetas e artistas visuais no
período Concreto (1950 a 1960), são apontadas como o início de uma preocupação com o
verbal e sua relação com a estrutura visual, havendo o uso de signos gráficos na poesia. Em
1952 ocorre a formação do Grupo Noigandres, com Décio Pignatari e Augusto e Haroldo de
Campos (São Paulo). Poetas se ligam a outras linguagens como as artes plásticas e a música.
Das atividades desse grupo emergiu o movimento Poesia Concreta.
Na Poesia Concreta são trabalhados os aspectos formais e sonoros das palavras. Há uma nova
sintaxe-visual do texto. Os poetas concretos desenvolveram experiências que se desdobraram
em muitas pesquisas relacionadas ao campo das artes gráficas. Desenvolveram seus próprios
livros-objeto, como Poemóbiles e Caixa Preta de Augusto de Campos e Julio Plaza. Os
25
poetas concretos estavam mais para “designers de linguagem” do que para escritores
(Campos, 1974: 137). Baseando-se nos princípios de relação, justaposição, correlação, escrita
ideogrâmica, na Poesia Concreta trabalha-se os elementos gráficos; explorando os fatores
gestálticos de proximidade e semelhança visual. Essas experiências foram precedidas por
Wlademir Dias Pino e a criação do livro-poema A Ave (1956), cuja poética propunha a
simultaneidade do visual e verbal e, obteve importância pela participação dada ao fruidor para
a obra se completar. Conforme manipulava suas páginas e camadas de códigos, determinava o
ritmo da leitura, possibilitando uma experiência poética cinético-temporal.
Poesia visual, arte, tipografia, texto, imagem, design se intercambiam de uma maneira que
seus limites vão se esvaindo. As fronteiras de nomeações somem: arte ou poesia, livro-objeto
ou arte, design ou poesia? Palavra e imagem se entrelaçam, dialogando.
São vários os meus questionamentos, e minha intenção nessa pesquisa é descobrir algumas
respostas, fazer novos recortes e, quem sabe, propor novas questões para novas pesquisas. A
ideia é situar as descobertas feitas na pesquisa bibliográfica e na análise das obras em um
contexto mais profundo. Analisar mais a fundo, buscando resultados implícitos deixando,
assim, a pesquisa instigante para novos olhares, e questionamentos, não se encerrando nela,
abrindo janelas que ampliem mentes e pensamentos.
No capítulo 1, conceituo Livro de Artista partindo da leitura de diversos autores, entre eles
Ulises Carrión, Julio Plaza, Paulo Silveira, Johanna Drucker, Riva Castleman, Anne Moeglin-
Delcroix, Clive Phillpot, Annateresa Fabris, Márcio Doctors, Maria do Carmo de Freitas
Veneroso. Traço a contextualização histórica, explicitando quais os precursores dessa
modalidade e as influências que as vanguardas artísticas europeias exerceram nessa arte,
usando como suporte as obras de Rafael Cardoso (Uma introdução à história do Design) e
26
Richard Hollis (Design Gráfico: uma história concisa). Finalizo fazendo relações com a
Poesia e Arte Concreta no Brasil, assinalando seus desdobramentos e influências nos artistas
brasileiros, traçando diálogo entre palavra e imagem, usando o Livro de Artista como fio
condutor desse processo.
Dentro da Poesia Concreta, autores como Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos,
forneceram base para meus estudos. O livro Teoria da Poesia Concreta (2006) traz textos e
manifestos publicados entre 1950 e 1960, que prepararam e fomentaram o movimento da
Poesia Concreta. Entre os artigos, estão as influências que sofreram da Arte Concreta, seus
precursores (Mallarmé, Ezra Pound, James Joyce, e. e. Cummings, Apollinaire), referências
nacionais (João Cabral de Melo Neto e Oswald de Andrade) e internacionais, além dos
procedimentos empregados na construção poética pelos concretistas, sua nova linguagem e
visualidade; e os documentos em Arte concreta paulista (2002), de João Bandeira e Lenora de
Barros, fonte de referência desse movimento no Brasil e suas influências na Poesia Concreta.
Delimitei o tempo histórico da pesquisa trabalhando no início do século XX, época da eclosão
dos movimentos artísticos modernistas, em plena revolução industrial, quando houve grande
desenvolvimento dos recursos materiais, pesquisas, e que possibilitou o uso desses recursos
no design gráfico, artes e poesia visual. Meu recorte no Brasil se dá por volta dos anos 1950,
auge da Poesia Concreta, e quando poetas e artistas se unem para grandes experimentações
visuais, sonoras e da forma, explorando possibilidades de suporte e materiais. Essas
experimentações refletiram na arte e no design.
27
classificações, fornecendo uma gama de ferramentas úteis para poder analisar e penetrar a
fundo nos signos. Exploram a relação palavra e imagem, indagando sobre os atributos
imagéticos na própria palavra, assim como o que a imagem tem em comum com a palavra.
Como corpus inicial da pesquisa, decidi trabalhar com os chamados Cadernos, livros de
artista da suíça radicada no Brasil, Mira Schendel, que pesquisou de diversas maneiras a
disposição das letras no espaço, explorando a visualidade de seu suporte. Trabalhou sua obra
centrada na linguagem como materialidade, e pensou a palavra como algo verbalmente
inteligível, transformando-a em imagem visível. Sendo sua produção muito vasta, realizo um
recorte em obras diretamente relacionada com o uso das palavras.
Não posso deixar de fora dessa trajetória a obra de Lygia Pape, artista, designer, professora
universitária, poeta visual, e participante do movimento de Arte Concreta e Neoconcreta do
Brasil. Artista que se destacou no cenário da arte brasileira, seja devido ao grau de
experimentação atingido em sua produção ou pela constante mutação de suas obras; suas
experiências com os livros de artista, pensando espaço, espectador, poesia, palavra, acabam
fortalecendo minhas investigações e as relações entre palavra e imagem que surgem a partir
da narrativa visual dessas obras. No capítulo 4, Caixas de Poesia de Lygia Pape, busco a
relação entre palavra e imagem em suas produções de livros de artista, importantes obras
devido ao tratamento dado a essas criações; as páginas de seus livros se desdobram na
tridimensionalidade, ocorrendo leituras sem palavras e narrativas que se constroem a partir de
formas, páginas, objetos.
28
Continuo minhas costuras no capítulo 5: Amarrando linhas com Edith Derdyk, onde pesquiso
uma artista brasileira que trabalha com o Livro de Artista há muito tempo, pensando e
questionando essa mídia de diversas formas, sempre transitando entre os territórios da arte, da
palavra, da música e do design; sendo uma artista contemporânea com obras reconhecidas,
como os livros de artista que foram selecionados para fazer parte do acervo do Museu de Arte
Contemporânea da Universidade de São Paulo (USP). Derdyk produz, cria, risca, rabisca,
rascunha, escreve, tece, textualiza e assim nasce uma nova arte, um novo objeto, um novo
livro. Realizei um levantamento de sua produção de livros de artista, fazendo relação com sua
poética artística; fiz entrelaçamento entre palavra e imagem, pensando nas fronteiras e os
transbordamentos entre as linguagens e, observando o diálogo existente nos livros de artista.
Com a obra de Derdyk, busco um fechamento das linguagens, das conversas, dos livros, das
produções, finalizando com minhas considerações sobre essa caminhada. Como ocorreu o
diálogo entre palavra e imagem frente a diferentes produções feitas por um poeta ou por
artistas visuais? As fronteiras que questiono ainda existem? Diálogos que nem sempre
significaram concordância, resultando muitas vezes em diferenças entre as linguagens.
Fecho esta pesquisa com Brincando com o livro de artista, onde compartilho o relato de
experiência sobre a produção de livros de artista feita pelos alunos de 1º ano do ensino médio
da Escola Técnica Estadual São Paulo. Descrevo como foi feita a proposição, as temáticas
trabalhadas, as materialidades do suporte e relação entre esta produção e os livros de artista
estudados. Buscando demonstrar, com a aplicação prática da construção do livro de artista, o
entrelaçamento que ocorre entre Poesia, Arte e Design, mais uma vez, explicitando as
fronteiras líquidas entre essas linguagens.
29
CAPÍTULO 1: CAMINHAR DO LIVRO DE ARTISTA
30
1.1 Desvelando esta arte
Apenas recentemente, a partir do ano de 1980, é que o Livro de Artista começou a ser alvo de
uma investigação crítica por parte dos pesquisadores no Brasil. Começo citando o artigo
escrito por Julio Plaza O livro como forma de arte, publicado em duas partes na revista Arte
em São Paulo, em 1982, que trouxe as primeiras contribuições acerca dessa arte. Outros
registros encontrados foram os textos teóricos dos catálogos das mostras Tendências do Livro
de Artistas no Brasil, São Paulo, 1985, com curadoria de Annateresa Fabris e Cacilda
Teixeira da Costa; Livro-Objeto: a Fronteira dos Vazios, São Paulo, 1994, com curadoria de
Marcio Doctors; Ex Libris/Home Page, São Paulo, 1996, com curadoria de Giselle
Beiguelman e Sérgio Pizoli; Arte Livro Gaúcho: 1950-1983, Porto Alegre, 1983, com
curadoria de Vera Chaves. Assim como os textos do catálogo da mostra itinerante na Itália, de
1993, Brasil: sinais de arte, livros e vídeos 1950-1993, embora as experimentações feitas
pelos poetas concretos paulistas Décio Pignatari, Haroldo e Augusto de Campos juntamente
com Julio Plaza tenham ocorrido cedo, a partir do movimento construtivo no Brasil dos anos
1950, 1960, estendendo-se por 1970, promovendo um estreito vínculo entre poesia e artes
plásticas.
2
Silveira, 2008: 21.
31
Castleman publicou A century of artists books (Um século de livros de artista), 1994, para a
exposição do mesmo nome que ocorreu no MOMA (Museu de Arte Moderna de Nova York),
da qual foi curadora-geral, com intenção de mostrar como a presença ou interferência do
artista visual conformou os modernos livros de artistas feitos na Europa e nos Estados Unidos,
durante um período de cem anos. De acordo com Castleman (apud Silveira, 2008: 36), livros
de artista são a “obra do artista cujo imaginário, mais do que estar submetido ao texto, supera-
o por traduzi-lo dentro de uma linguagem que tem mais significados do que as palavras
sozinhas podem transmitir”. Para a pesquisadora, a totalidade do objeto livro deveria ficar no
controle criativo do artista.
A obra The century of artistsʼ book (O século dos livros de artistas), 1995, de Johanna
Drucker foi resultado de uma profunda pesquisa, onde a autora percebeu a necessidade de um
estudo crítico nesse campo, buscando manter vivo o embate conceitual para melhor
entendimento dessa mídia. Segundo a autora, o Livro de Artista é uma forma de arte exclusiva
do século XX, e embora tenha recebido influências de experiências anteriores, como os livres
d’artistes (livro ilustrado ou edições de luxo, finamente produzidos e voltados para um
mercado de elite), houve muito poucas ocorrências no século passado. Para Drucker, os livros
de artistas operam no espaço conceitual, ou seja, questionam sua forma conceitual ou material
do livro como parte do processo criativo, diferentemente do que ocorria com os livres
d’artistes. “Livros de artistas são quase sempre autoconscientes sobre a estrutura e significado
do livro como forma” (2012: 4). Considerando também os livros de artistas como um espaço
construído pelas intersecções de linguagens, ideias, campos de atividade, materiais, técnicas.
Anne Moeglin-Delcroix aparece como um dos principais nomes nesse campo de estudos na
Europa, sendo Esthétique du livre dʼartiste: 1960-1980, de 1997, uma obra de fôlego que
sucedeu as produções anteriores de Castleman e Drucker. Anteriormente, em 1985, havia
escrito o catálogo da exposição Livres d’artistes, onde levantou problemas e particularidades
das expressões livre d’artiste (livro de artista) e livre illustré (livro ilustrado), tendo respaldo
em importantes nomes como Clive Phillpot, Paul-Armand Gette e Hubert Kretschmer, sem
deixar de lado a tradição francesa do livro ilustrado. Neste catálogo, a autora buscou uma
organização que equilibra o conceito entre a arte e a bibliofilia, mas apenas com obras a partir
de 1960, provocando o “rompimento da qualificação entre livre d’artiste da qualificação livre
illustré, afirmando a autonomia da obra plástica de vanguarda da obra de colaboração
conservadora” (Silveira, 2008: 41). Caracteriza, assim, um campo a ser subdividido pelo
32
papel desempenhado pelo livro na produção do artista, o livro atuará como suporte ou como
objeto: livro-objeto, trabalhos escultóricos e não-livro. Em entrevista concedida a Silveira, em
1999, Moeglin-Delcroix afirma:
o que me parece essencial ao livro de artista (e por isso tem esse nome) é que o artista
exerce total responsabilidade sobre o livro, da concepção à realização e, às vezes, à
divulgação. Ele tem o domínio total sobre tudo (mesmo que não o fabrique com suas
próprias mãos) justamente porque o livro é uma obra no sentido pleno do termo, ou
seja, é concebido de tal maneira que todos os aspectos do livro participam da
significação. O livro não é aí um simples continente ou suporte para uma mensagem
que seria independente dele, como é o caso dos livros de literatura ou dos livros em
geral (2008: 286-287).
Clive Phillpot se destaca devido sua experiência na direção da biblioteca do MOMA em Nova
York, local onde constituiu a maior coleção mundial de livros de artista. Books, book objects,
bookworks, artists’ books foi um importante artigo publicado na revista Artforum, em maio de
1982, onde amplia o conceito que ainda estava se estabelecendo de “livros feitos por artistas”
para “feitos ou concebidos por artistas” (apud Silveira, 2008: 46). Phillpot leva em conta a
presença eventual de outros profissionais no processo de construção do Livro de Artista e
também reconhece a tendência das artes visuais contemporâneas serem categorizadas segundo
sua mídia, como vídeo-arte ou body art. Para o autor havia a necessidade de estabelecer o
termo Livro de Artista para poder demarcar território que excluísse a antiga tradição da arte
do livro e a indústria do livro de arte. Havia o conceito implícito que os livros de artistas eram
somente uma linha secundária para artistas, cuja principal atividade era outra, como a pintura
ou escultura. Definindo, cita Carrión (apud Silveira, 2008: 46) e seu entendimento de
bookworks, livros em que a forma do livro, uma sequência coerente de páginas, determina
condições de leitura que são intrínsecas ao trabalho: livro-obra.
Silveira afirma que para Phillpot (2008: 47), “o Livro de Artista pode ser apenas um livro
convencional, pode ser um livro-objeto, ou pode ser um livro-obra, pertencendo tanto à arte
como à bibliofilia”, que podem ser únicos ou múltiplos. Os livros-objetos frequentemente
apenas se parecem com livros, podendo ser objetos sólidos que não podem ser abertos, se
tornando assim uma escultura.
33
O artigo O livro como forma de arte, escrito por Julio Plaza, foi pioneiro em sua contribuição,
colocando à nossa disposição uma série de ferramentas para classificar e começar a entender o
livro de artista. Plaza demonstra que o Livro de Artista poderia se apresentar em três tipos de
montagem: a sintática, onde a mensagem estética é voltada para si mesma, aparecendo nos
livros que tem seu suporte como forma significante, ou seja, onde existe interpenetração entre
a informação e o suporte, como no livro-objeto, e a estrutura espaço-temporal do livro é
levada em conta, sendo intraduzível para outro sistema ou meio; montagem semântica
(colagem) ou montagem por contiguidade, caso dos livros ilustrados; e montagem
pragmática ou bricolagem, onde ocorre a mistura de elementos provenientes de outras
estruturas estéticas, como nos livros formados por documentos e publicações coletivas.
Plaza também construiu um diagrama onde pretendia reunir todas as categorias de livros
encontradas em dois grandes grupos: o sintético-ideogrâmico, formado pelo livro ilustrado, o
poema-livro e o livro-poema (livro-objeto, livro-obra) e o analítico-discursivo ou livro
anartístico, formado pelo livro conceitual, o livro-documento e o livro intermedia. Além do
antilivro, classificação fora dos livros de artistas, onde a ideia do livro se esvai e extrapola
para outra linguagem.
A leitura de diversos autores contribuiu para que houvesse uma maior compreensão sobre o
campo do Livro de Artista e suas conceituações. A ideia foi buscar o entendimento das
especificidades dessa linguagem, evidenciando qual o espaço ocupado pelo livro de artista,
por ser este um campo de natureza híbrida, com fronteiras fluidas.
34
Para Fabris e Costa, o Livro de Artista constitui uma forma de arte em si, configurando-se
como uma “unidade expressiva que veicula uma determinada ideia de arte e que incorpora em
seu processo estrutural o elemento fundamental na construção do livro: sua natureza
sequencial” (1985: 5). No Livro de Artista é trabalhada a sequência de espaços (as páginas) e
o tempo que o leitor usa para manuseá-las, estabelecendo uma relação entre objeto e fruidor.
Segundo Carrión (2011: 5), um livro é uma sequência de espaços, de momentos. Um livro é
uma sequência de espaço-tempo. O Livro de Artista explora sempre as características
estruturais do livro, sendo a soma de todas as páginas percebidas em momentos diferentes. As
páginas funcionam como espaços ativos para a construção da obra, fazendo parte do processo
poético, uma vez que podem gerar significações próprias.
O Livro de Artista pode ser compreendido como obra intermidiática, uma vez que possui
natureza híbrida. Está situado na interseção entre diferentes mídias: impressão, palavra,
escrita, fotografia, imagem, design. Essa expressão artística convive num espaço no qual não
cabem definições fechadas. “O Livro de Artista é múltiplo, possibilitando assim diversas
formas de aproximação” (Veneroso, 2012: 83).
Quando palavras e imagens dialogam, ocorre a fusão entre códigos, sendo que o elemento
visual funde-se conceitual e visualmente com as palavras. Essas relações no Livro de Artista
são recorrentes, podendo ocorrer de várias maneiras.
35
Grande número de artistas do livro exploram a iconicidade da letra, a
visualidade do texto, além de outras relações nas quais palavras e imagens
convivem sem que haja necessariamente uma relação hierárquica entre elas.
Não ocorre uma relação de dependência entre texto e imagem (Veneroso,
2012: 83).
Todo livro é um objeto, mas quando rompem as fronteiras atribuídas aos livros de leitura e se
assumem como objetos de arte, passam a representar uma nova linguagem, entre o linear e o
visual, entre a literatura e as artes, extrapolam o conceito livro, pois a “narrativa literária é
substituída por uma narrativa plástica” (Doctors, 1994: 4).
O livro existia originalmente como recipiente de um texto, mas pode conter qualquer
linguagem, não somente a linguagem literária. Para Carrión, “fazer um livro é perceber sua
sequência ideal de espaço-tempo por meio da criação de uma sequência de signos, sejam
linguísticos ou não” (2011: 15).
A estrutura livro passa a ser capturada pela estrutura plástica e vemos nascer uma nova forma
expressiva. Os livros de artista não se prendem a padrões de forma ou funcionalidade, são
obras raras, únicas ou com pequenas tiragens. São objetos de percepção visual, verbal, tátil.
Os artistas trabalham em função da espacialidade, questionando o material proposto.
“O espaço é a música da poesia não cantada” (Carrión, 2011: 25). A introdução do espaço na
poesia, ou da poesia no espaço com a poesia concreta e visual, permite um desenvolvimento
natural da realidade espacial que a linguagem ganhou desde o momento em que a escrita foi
inventada.
36
Silveira (2008: 16) afirma que
[…] pelos seus insumos materiais e pela sua variedade temática, a categoria
livro de artista é uma categoria mestiça, instaurada a posteriori a partir da
apropriação de objetos gráficos de leitura. É uma categoria definida por sua
mídia e não por sua técnica. Ela abarca desde o livro até o não-livro.
A forma e a configuração do livro são usadas para exprimir as ideias do artista, que exploram
o potencial do veículo, testando seus limites, podendo manter página, sequência, texto,
ilustração, impressão dos livros tradicionais ou se tornar quase escultóricos.
Provoca reflexões sobre a história e o papel do livro como fenômeno cultural, aparece com
uma nova função: objeto de contemplação. As palavras no Livro de Artista não são portadoras
de uma mensagem, nem estão ali para transmitir determinadas imagens mentais com certa
intenção, “estão ali para formar, junto com outros signos, uma sequência de espaço-tempo que
identificamos com o nome do livro” (Carrión, 2011: 43).
A página do livro é matéria expressiva, um local plasmável por sua interação positiva com a
palavra e a imagem, e também porque “é rasgada, furada, colada, feita, desfeita ou refeita, por
mutilação ou reciclagem” (Silveira, 2008: 23). Para o autor, o Livro de Artista pode mesmo
designar tanto a obra, como a categoria artística; a concepção e execução podem ser apenas
parcialmente executadas pelo artista, com colaboração interdisciplinar. Não necessariamente
precisa ser um livro; basta ele ser o referente, mesmo que remotamente. Os limites envolvem
questões do afeto, expressadas através das propostas gráficas, plásticas ou de leitura.
37
Por ser uma conceituação abrangente e abarcando meu objeto de pesquisa, acredito que este
termo corresponde às minhas expectativas, e por isso adoto a nomenclatura Livro de Artista
durante o decorrer dessa pesquisa, que se refere ao produto gerado através das
experimentações conceituais realizadas por artistas, poetas e designers, desde 1960, no Brasil.
Objeto poético, suporte para experimentações, onde ocorre o diálogo entre palavra e imagem
a partir de registros visuais e literários, sendo formado por elementos de natureza e arranjos
variados, entrelaçando linguagens e mídias.
38
1.2 Vanguardas artísticas
O começo do século XX foi marcado por transformações sociais, políticas e econômicas, que
ocorreram paralelamente ao desenvolvimento filosófico e científico, refletindo a mudança na
visão que o homem tinha do mundo como um todo. Nas artes, a tradição do passado foi
contestada, por ter sido um período caracterizado por uma grande complexidade e
simultaneidade de ideias.
39
1.2.1. Precursores
Com os movimentos de vanguarda, início do século XX, podemos localizar as origens do
Livro de Artista e também relacionar com formas de representação no design gráfico. Drucker
(2012: 21) afirma que o Livro de Artista não surge de maneira linear, havendo pontos
simultâneos de origem e que é difícil encontrar um movimento artístico que não tenha vínculo
com o livro, além de haver muitos artistas com dedicação primordial ao livro.
Porém, antes do advento das vanguardas, já existiam referências de artistas e escritores que
realizaram trabalhos em que o verbal e o visual dialogavam, como Lewis Carroll, com o
poema The mouse’s tale (1865), que tem o formato de uma cauda (tail) expressando o modo
como a narrativa exposta pelo rato teria figurado na mente de Alice, o texto se torna imagem.
Precedentes genuínos para a prática conceitual do Livro de Artista podem ser encontrados na
produção de diversos indivíduos, como Gustave Flaubert (novela Bouvard e Pécuchet, 1896),
os artistas ingleses William Blake e William Morris, e os poetas Stéphane Mallarmé e
40
Edmund Jabès (O livro das questões, 1963), possuidores de obras que possibilitaram levantar
questões filosóficas, poéticas, culturais para entender o livro como um conceito: considerados
precursores da representação da palavra e da imagem de forma cuidadosa.
As obras produzidas por William Blake no século XVIII, e William Morris, no século XIX,
exemplificavam certas características que mais tarde encontrariam expressão variada nos
livros de artista; estabeleceram precedentes únicos para fazer uso do livro como uma
produção artística. Segundo Drucker, ambos foram artistas com uma “visão desenvolvida do
livro como uma forma que poderia funcionar como uma força para a transformação espiritual
e social” (2012: 22).
Blake defendia a “ideia da não existência de artes (pintura, escultura, poesia), mas da Arte,
como pura atividade de espírito que escapa à matéria” (Garcia, 2008: 26), colocando texto e
imagem em um mesmo patamar, buscando uma grande interação entre eles. Ele ilustrava,
escrevia à mão, diagramava as páginas dos seus livros, como em Songs of Experience (1789),
cujas páginas foram reproduzidas pela técnica de gravura em metal e coloridas com aquarela.
Os espaços independentes do texto poético e das pinturas existiam em uma relação dialógica.
41
considera a página como um todo, onde suas divisões devem estar inter-relacionadas, gerando
unidade no livro. Para Drucker (2012: 26) a obra de Blake tem muita importância para a
construção do livro de artista, uma vez que “serve como a personificação do pensamento
independente realizando-se através das formas e estruturas do livro”.
William Morris e o movimento Arts and Crafts (Artes e Ofícios) tinham interesse na
produção de livros bem compostos, com ênfase no trabalho artesanal e melhoria da qualidade
dos objetos industrializados. O Arts and Crafts surgiu na Inglaterra em meados do século
XIX, reunindo teóricos e artistas, sendo um movimento que reclamava do excesso de
especialização provocada pela Revolução Industrial, buscando revalorizar o trabalho manual,
para poder recuperar a dimensão estética dos objetos produzidos industrialmente.
De acordo com Hollis (2001: 20), as obras produzidas por Morris geralmente continham
bordas e ilustrações em xilogravuras e usavam tipos criados a partir de fotografias de letras
impressas no século XV. Para Morris, a obra de arte era objeto de contemplação, e os livros
deveriam resultar em prazer visual ao serem contemplados como peças de impressão e
composição tipográficas. Em função disso participava da escolha do papel, da tinta, do
design, do livro como um todo. Havendo preocupação estética em suas produções.
42
O poeta Stéphane Mallarmé trabalhou a visualidade própria do texto, sem depender para isso
de imagens externas. Acreditava no valor do som das palavras e como estas evocavam
imagens. Em 1897, publicou o poema Un coup de dés jamais n’abolira le hasard (Um lance
de dados jamais abolirá o acaso) que quebrou as convenções tipográficas da época. Via as
duas páginas abertas do livro como um espaço único, deu a seu verso livre de rima e métrica,
o aspecto de uma partitura musical, para quem quisesse ler em voz alta. Usou diferentes tipos
para determinar a importância de cada palavra ao ser declamada. O espaço em branco era
como se fosse o silêncio. Usou as palavras espalhadas pela página, como degraus. Essa
distância permitia acelerar ou desacelerar o movimento.
Com o poema Un coup de dés ocorre a explosão gráfico-espacial, que inaugura a semântica
do espaço em branco. Pausas e silêncios dão novos significados às palavras. O objetivo do
poeta está ligado à sonoridade, não à visualidade das palavras. Para isso cria uma hierarquia,
usando diferentes corpos de impressão: “a diferença dos caracteres de impressão entre o
motivo preponderante, um secundário e outros adjacentes, dita sua importância à emissão
oral...” (Mallarmé apud Campos 2006: 32).
Ocorre dessa maneira o uso dinâmico dos recursos tipográficos, possibilitando toda uma gama
de inflexões ao pensamento poético, livre de regras e amarras formais. O espaço gráfico
permite que haja maior plasticidade nas pausas e intervalos da leitura.
43
A partir desse poema, surgem novas maneiras de usar as palavras e o alfabeto na literatura e
no design gráfico, tornando-se ícone de um processo de emancipação da linguagem poética,
onde se iniciava um afastamento do discurso de ideias. A poesia modernista se nutriu
intensamente dos experimentalismos realizados a partir dessa marcante obra.
No entanto, durante o século XVI, foram encontrados cadernos que associavam ilustrações
feitas por artistas, com temáticas que iam desde anatomia humana, natureza, arquitetura, que
funcionavam como diários de anotações ou documentação, a exemplo, os cadernos de
Leonardo da Vinci, que deixou páginas e páginas de pensamentos, rascunhos, desenhos,
invenções nas mais diversas áreas. Em seus manuscritos registrou com detalhes suas
pesquisas e seu processo criativo (na pintura e anatomia).
Fabris localiza os primórdios do Livro de Artista na união entre arte e literatura, destacando
Blake e sua produção de poemas ilustrados por ele, além das parcerias colaborativas entre
artistas e escritores que ocorreram durante o século XIX e XX, como Fausto (1828), de
Goethe e Delacroix; Saint Matorel (1911), de Max Jacob e Pablo Picasso, ou La Fin du
Monde (1919), de Blaise Cendrars e Léger, entre outros. Essas produções foram feitas em sua
44
maioria “com base em afinidades no processo estrutural da criação, em intercâmbios
fecundadores, que fazem da expressão gráfica o equivalente plástico da palavra” (1988: 6).
A autora também cita obras em que o artista realiza texto e imagem, tendência que nos levará
à atual concepção de livro de artista. Podemos destacar a série de gravuras Os Caprichos
(1799), de Francisco de Goya e os manuscritos Noa Noa (1894), de Paul Gauguin, assim
como Jazz (1947), de Henri Matisse, e Cirque (1950), de Fernand Léger, trabalhos com
projetos gráficos integrais, onde as imagens dos artistas eram combinadas com seus textos
manuscritos. Nessas obras, ilustração e texto foram tratados com cuidado artístico, havendo
uma preocupação estética com acabamento e visualidade.
Os Caprichos é um livro formado por oitenta gravuras com uma evidente intenção satírica,
com uma narrativa predominantemente visual. O artista utilizou técnicas mistas de água-forte,
água-tinta e retoques com ponta seca. A obra pode ser dividida em duas partes: a primeira
uma sátira sobre a loucura e a maldade humanas, com referências aos hábitos e costumes da
45
época de Goya, e a segunda parte, a série Sonhos, representando fantasias e bruxarias. As
primeiras imagens eram mais realistas, depois foram tornando-se cada vez mais fantásticas.
As legendas e títulos são comentários críticos, possuindo sempre um duplo significado.
Noa noa são narrativas da experiência de Gauguin no Taiti, onde o artista descrevia a beleza e
o colorido dessa região. Escreveu em um caderno, decorou a capa com aquarelas, as páginas
internas foram preenchidas com textos de sua autoria. As composições eram simplificadas,
sem o uso da perspectiva e feitas com cores intensas. O artista documentou dois anos de sua
vivência em uma exótica ilha, retratando a cor e o calor da natureza e das mulheres, costumes,
religião, história, através de manuscritos, desenhos e gravuras.
Figura 9: Matisse, Jazz (obra composta por 38 folhas separadas: entre as folhas escritas estão intercalados
imagens inspiradas no circo, dança, teatro e viagens, todos armazenados em uma caixa), 1947.
46
1.2.2. Futurismo (1909)
Marinetti publicou, em 1914, o livro (parole in libertà) intitulado de Zang Tumb Tumb, a obra
era um tipo de pintura verbal para celebrar a batalha de Trípoli. Poema visual, caótico e ligado
à sonoridade. A tipografia foi o artifício explorado para concretizar palavras em liberdade,
palavras livres da sintaxe tradicional e revigoradas visualmente. Buscou equivalentes visuais
para sons através do uso de diferentes formatos e tamanhos de palavra. Este é um exemplo da
literatura futurista, “que prognosticava as muitas maneiras de as palavras virem a ser
utilizadas no design gráfico” (Hollis, 2000: 36).
3
Hollis, 2000: 35.
47
Figura 10: Marinetti, Zang Tumb Tumb, 1914.
Figura 11: Soffici, página e capa do poema BIF & ZF + 18, 1915.
As letras que compunham as palavras não eram meros signos alfabéticos, uma vez que pesos
e formatos diferentes davam às palavras um caráter expressivo distinto. No poema de
Ardengo Soffici, podemos ver pequenos versos se confundindo com a explosão de tipos e
elementos gráficos, dando ideia de simultaneidade na comunicação. Para produzir a capa
desse poema, reuniu composições comuns, tipos de madeira recortados, letras de pôsteres e
fotogravuras prontas, usando-os com uma técnica que viria a ser adotada pelos dadaístas
alemães, anos mais tarde.
48
Palavras e letras eram usadas quase como se fossem imagens visuais. Este procedimento
usado pelos poetas futuristas foi similar às colagens cubistas feitas por Pablo Picasso e
Georges Braque, que recortavam e colavam fragmentos de textos de jornais e revistas, os
papiers collés (papéis colados). Dessa forma, quando os signos verbais eram tirados de seu
contexto comunicacional, acabavam adquirindo novos significados, iniciando assim as
pesquisas com a linguagem verbal nas artes visuais do século XX.
Figura 12: Picasso, Copo e garrafa de Suze (papéis colados, guache e carvão), 1912.
Por volta de 1930 e 1940, fase final do futurismo, houve um afastamento da colagem, sendo
priorizado um novo procedimento, a montagem, solução mais intelectual e racional do que a
colagem, buscando o equilíbrio da forma visual, com “uso de poucas palavras, combinadas
numa forma quase matemática” (Menezes, 1998: 26).
49
mudadas de posição conforme a vontade do leitor. O livro era um catálogo de design de
publicidade e foram feitos apenas três exemplares desse trabalho.
D’Albisola também lançou, em 1934, o livro L’Anguria Lirica, com design feito pelo milanês
Bruno Munari, que ocuparia lugar de destaque no design italiano. Este livro foi totalmente
impresso em folhas de metal, ou seja, uma obra com uso da tecnologia moderna.
50
Figura 15: D’Albisola, L´Anguria Lirica, 1932.
Munari produziu um dos mais impressionantes trabalhos da fase inicial do design gráfico
italiano, a partir de um poema de Marinetti, Il poema del vestito di latte (O poema do terno de
leite), onde usou técnicas totalmente modernas: fotografias recortadas impressas em preto,
sobrepostas por texto impresso em cores, e tipo Bodoni justificado, para formar uma área
quadrada. O artista seguiu realizando estudos sobre a espacialidade do livro em seu formato
de códex. Sempre refletindo sobre a estrutura do livro tal como a conhecemos, muitas vezes
sem usar palavras ou imagens; questionando códigos de leitura e linguagens e trabalhando
com diferentes papéis, com tamanhos e texturas diversas, sempre pensando na
experimentação do contato com essa obra, trabalhando os sentidos e percepções.
Figura 16: Munari, Libro illeggibile MN1, design concebido em 1949 e impresso em 1984.
O Futurismo tem sua importância em romper com o layout simétrico e tradicional da página
impressa. “Abriu caminho para inovações tipográficas dos dadaístas na Alemanha,
emprestando seu nome para o experimentalismo russo, que surgiu um pouco antes da
revolução de 1917” (Hollis, 2000: 41).
51
1.2.3. Construtivismo Russo (1910)
Este movimento foi a expressão de uma convicção de que o artista podia contribuir para
suprir as necessidades físicas e intelectuais da sociedade como um todo. Seu objetivo era a
socialização da arte. No movimento ocorre a união de formas puramente plásticas para um
propósito utilitário (cartazes, folders, publicações).
A produção artística deveria ser funcional e informativa (Scharf, 2000: 140), pois a arte nova
estava a serviço da revolução de 1917 (Revolução Russa) e de produções concretas para o
povo. Integração entre as técnicas artesanais e a produção industrial. Fizeram parte desse
movimento jovens artistas como Alexander Rodchenko, Natalia Goncharova, Vladmir Tatlin
e El Lissitzky.
Rejeitavam a ideia de que uma obra de arte era única, queriam demolir a divisão entre arte e
trabalho. A produção mecânica de imagens através da fotografia se adequava à sua ideologia e
a reprodução industrial por meio de máquinas impressoras, também era coerente com o
pensamento comunista de trabalharem todos juntos.
Até que Stalin reprimisse o vigor vanguardista, a União Soviética, aos olhos
de muita gente do Ocidente, parecia conciliar as necessidades sociais com a
estética revolucionária. O design gráfico soviético, além disso, era visto como
a expressão de uma sociedade de massa na era da máquina (Hollis, 2000:
50).
Em 1922, foi à Europa como um embaixador cultural da União Soviética, quando publica o
livro História suprematista de dois quadrados. A narrativa se desenvolve nas margens das
52
páginas, com legendas explicativas das composições geométricas quadradas, em tipografias
dinâmicas. Devido ao tratamento dispensado a esse livro, pode ser considerado exemplo de
livro de artista. El Lissitzky aliou abstração geométrica e sequencialidade de imagens, o que
lembra um filme cinematográfico, pois o grupo de imagens forma a narrativa, uma vez que
não há texto verbal a ser ilustrado.
Este livro foi elaborado de maneira que os poemas pudessem ser localizados facilmente,
usando como modelo o índice da caderneta telefônica, onde cada poema é acessado a partir de
um ícone com parte do título em legenda. O ícone representa parte da ilustração que introduz
cada poema, como uma partitura do modo como aquele poema deveria ser lido. Trechos em
53
vermelho destacavam passagens que precisavam de maior ênfase. As ilustrações foram
construídas a partir de materiais usados pela gráfica, como fios – peças de metal ou madeira
usadas para imprimir linhas de espessuras variadas.
Kandinsky é um dos principais nomes da experiência abstrata. Realizou uma série de estudos
envolvendo conceitos unindo arte e espiritualidade, dando origem ao livro Do Espiritual na
Arte, de 1910, ano em que pintou sua primeira aquarela abstrata, uma composição não
figurativa, livre da representação de imagens reconhecíveis. Continua suas pesquisas
buscando correspondência entre cores, sons, estados emocionais.
Suprematismo (1913)
Kazimir Malevich desejava renovar a arte e a vida. Para pesquisar as estruturas mais
profundas da imagem, estudou a obra de Cézanne, Picasso e artistas russos para chegar ao
significado primário da forma. Foi simplificando cada vez mais cores e formas de sua obra,
usando apenas algumas tonalidades e contornos geométricos, pesquisando a essência da
poética da representação que chamou de Suprematismo. O artista busca a não-objetividade em
suas pinturas, um mundo livre da representação de objetos reais. A obra seria uma ideia
mental e abstrata, e não mais um objeto.
54
Grupo De Stijl (Neoplasticismo)
Movimento holandês de vanguarda na arte, arquitetura e design. Piet Mondrian lançou a
revista The Stijl (O estilo), em 1917, junto com Theo van Doesburg, pintor, arquiteto e poeta.
Seu layout tinha compromisso com o funcionalismo, com designs estritamente geométricos e
serviu de base para grande parte do trabalho pioneiro de Schwitters e da Bauhaus.
Kurt Schwitters compartilhava o mesmo interesse de van Doesburg em usar a tipografia para
criar figuras sonoras. Junto com Käthe Steinitz, em Hanôver, produziram um pequeno livro de
conto de fadas criado por Schwitters. Os três criaram ilustrações a partir de elementos
encontrados na caixa de tipos da gráfica, Die Scheuche (O espantalho), de 1925, com páginas
impressas em vermelho ou azul, “como um irônico e encantador pós-escrito do dadaísmo”
(Hollis, 2000: 69).
Mondrian foi fortemente influenciado pelo Cubismo de Picasso e Braque, e teve contato com
o Construtivismo russo, onde buscava simplificar imagens, cores e geometrizar formas. Suas
pesquisas abstratas o levaram a caminhos cada vez mais radicais, onde as figuras foram
substituídas por simples composições de formas geométricas e poucas cores. Publicou A nova
plástica na pintura, onde procurava uma nova forma de expressão plástica, livre de sugestões
representativas e composta a partir de elementos mínimos: a linha reta (horizontal e vertical),
o retângulo e as cores primárias (azul, vermelho e amarelo), além do preto, branco e cinza.
Criação da arte pura e uso da abstração geométrica.
55
1.2.4. Dadaísmo (1916)
Movimento radical de contestação de valores, com crítica cultural mais ampla. Questiona não
somente as artes, mas os modelos culturais passados e presentes. Surgiu durante a I Guerra
Mundial (1914-1918), refletindo o estado de descontentamento que sentiam os artistas e
poetas da época. As manifestações são intencionalmente desordenadas, com a intenção de
chocar. No Cabaré Voltaire, em Zurique (1916), esse movimento recebeu o nome Dada pelo
poeta romeno Tristan Tzara, inaugurando oficialmente o Dadaísmo, onde nega e ironiza a
própria arte. Com a frustração e a decepção causadas pela Guerra, proclamavam uma antiarte;
uma criação baseada no acaso e no absurdo.
Assim como Mallarmé, diversos poetas que se voltavam para a exploração da sonoridade
acabavam desembocando na visualidade. Como por exemplo, a poética nonsense do
Dadaísmo, que se baseava na pureza da língua destituída da função representativa. Os poetas
destruíam o léxico para dar lugar ao som, havendo a desestruturação do verso.
Os poemas eram feitos para serem declamados, e neles só havia vocalizações, como no poema
optofonético, onde existia uma combinação de respiração e ação da fala. Para isso foram
criados registros visuais ou tipográficos. Para expressar a ideia do poema tipograficamente,
eram usadas letras pequenas ou grandes, dando assim um caráter de escrita musical, como em
Un coup de dês (poema visual).
56
A revista Dada (1917), organizada, editada e distribuída por Tzara, servia para divulgar os
eventos e poemas dadaístas, sendo apresentada com estilo tipográfico fragmentado.
Exemplares dessa revista chegaram às mãos do poeta Apollinaire, em Paris. Guillaume
Apollinaire publicou versos figurados, uma poética visual de grande força, que passou a ser
chamado Caligrama. Derivam da escrita caligráfica (caligrafia, que vem do grego Kalos =
beleza e graphos = escrita), encontrando-se na fronteira entre o desenho e a escrita dos signos,
poemas escritos representando imagens. “O caligrama pretende apagar ludicamente as mais
velhas oposições de nossa civilização alfabética: mostrar e nomear; figurar e dizer; reproduzir
e articular; imitar e significar; olhar e ler” (Foucault, 1989: 7).
Em 1918, Apollinaire publicou um livro chamado Caligrammes, com poemas que não eram
versos livres ou poemas futuristas, eram obras em que o texto tinha a forma visual do objeto
correspondente, como os Poemas da Paz e da Guerra, 1913-1916 ou A Chuva, 1918.
Apollinaire explorou a forma gráfica das palavras, dando movimento ao poema. Com o uso
das palavras para configurar imagens, os poetas ampliaram as possibilidades de representação
da palavra como imagem.
57
Apollinaire reconhecia a influência dos futuristas em seus experimentos. Foi o primeiro a
tentar explicar o poema visual por via do Ideograma, embora Campos (2006: 37) acredite que
houve uma confusão desmedida de Apollinaire ao forçar uma simplificação do tema poético,
condenando o Ideograma poético à mera representação figurativa do tema, caindo no
decorativismo sem sentido.
Merz (parte da palavra alemã Kommerzbank ou Banco do Comércio) foi um termo que
Schwitters retirou de um fragmento de impresso de banco, decidindo usar para designar o
conjunto das suas colagens, pinturas, poemas, performances criados a partir de uma
combinação de elementos, como, pedaços de papel encontrados nas ruas, trechos de conversa
ou fragmentos de texto. De maneira típica Dadá, incluía elementos aleatórios, como
fragmentos tipográficos e imagens fotográficas em suas poesias visuais.
58
1.2.5. Bauhaus (1919)
Após a I Guerra Mundial na Alemanha, houve desemprego, caos político e inflação. No
entanto, é quando o design gráfico surge como parte de uma sociedade moderna nas cidades
do meio da Europa, através de cartazes, letreiros, folhetos, catálogos de peças e feiras
comerciais. Em 1920, a comunicação visual foi moldada pelos artistas de vanguarda, sendo
que os movimentos mais proeminentes ao final da guerra eram o Expressionismo e o
Dadaísmo:
A fundação da Bauhaus, Escola de Artes e Ofícios, em Weimar (1919), por Walter Gropius,
provocou mudanças no design gráfico, gerando progresso como a mudança do
expressionismo para o funcionalismo, e do artesanato para designs feitos em máquinas.
Passaram a estudar os elementos do design e a função de cada um deles na transmissão de
informação. Os fios e tipos sem serifas tornaram-se o estereótipo da tipografia Bauhaus.
Começaram a realizar uma completa análise do alfabeto, uma vez que na Alemanha
prevaleceu o estilo de escrita gótico, formato inadequado à era das máquinas.
Gropius imaginou um novo tipo de ser humano integrado com todas as áreas de conhecimento
criativo. Esse pensamento se refletiu na prática de ensino da Bauhaus, onde foram chamados
professores de diversas áreas, como o artista Wassily Kandinsky, que levou para a escola suas
descobertas sobre abstração, formas, cores e espiritualidade; Joseph Albers, com estudos
sobre a teoria e experiência sobre cores, realizando pinturas apenas com representações
geométricas (obra Homenagem ao quadrado); o arquiteto Marcel Brauer, que teve
importantes obras de arquitetura e design; além de Johannes Itten, El Lissitzky, Paul Klee,
Theo van Doesburg, entre outros.
59
Herbert Bayer, em 1925, estabeleceu regras pensando em maneiras mais simples de escrever,
surgindo a Nova Tipografia. As formas de letra que a Bauhaus criou tinha uma base
geométrica, uma maneira encontrada pelos designers de fugir ao estilo renascentista e à
tradição de tipos manuscritos pesados e artesanais.
Um dos principais ativistas da Nova Tipografia foi o dadaísta Schwitters, juntamente com Jan
Tschichold (designer de livros e calígrafo), com o jornal Merz (1923). Na quarta edição
imprimiu Topografia da Tipografia, de El Lissitzky, com um conjunto de princípios do
design sobre a importância dos elementos visuais e das palavras na folha impressa, que
estavam lá para serem vistos e não ouvidas.
60
insistindo no uso de clareza absoluta e na organização das palavras por tamanho, conforme
sua importância dentro do texto e da mensagem.
Quando a Bauhaus se mudou para Dessau, em 1925, Moholy-Nagy ficou responsável pela
publicidade, pelo layout do jornal e livros da escola. Começa uma tentativa de quebrar a
continuidade do texto e organizá-lo de maneira a refletir seu conteúdo.
André Breton publica em 1924, o Manifesto Surrealista, onde explica a estética surrealista.
Apoiado na livre interpretação da psicanálise de Freud destaca a importância do mundo
onírico e do irracional para a obra surrealista. Inicialmente, era um movimento de cunho
literário que pretendia expressar verbalmente ou por escrito o funcionamento do pensamento,
mas com a total ausência da razão. A criação ocorre sem o controle consciente.
Artistas como Max Ernst, Joan Miró, Salvador Dalí, René Magritte, Giorgio De Chirico
exploram as artes do imaginário e os impulsos ocultos da mente. As pinturas passaram a
61
representar cenas alucinatórias e objetos distorcidos em uma atmosfera onírica. Os surrealistas
viam nos sonhos a “imaginação em seu estado primitivo e uma expressão pura do
maravilhoso” (Ades, 2000: 111). Para eles, a arte deveria se libertar das exigências da lógica e
da razão, indo além da consciência cotidiana, expressando o inconsciente e os sonhos.
Max Ernst ampliou as possibilidades da colagem, realizando uma articulação imprevista dos
elementos e uma abertura ao irracional. Sendo seguido pelos surrealistas, levam ao limite a
ideia de associação de elementos díspares e de construção de uma realidade imaginária. Unia
imagens absurdas ao acaso, realizando elaboradas colagens narrativas.
Realizou alguns trabalhos em colaboração com o poeta surrealista Paul Eluard. Desenvolveu
diversos projetos de livros, onde o método da colagem alcança o auge da narrativa e da forma
visual. The hundred headed woman e A week of kindnes (Uma semana de bondade), de 1934,
são exemplos da integração entre conceito experimental e conteúdo, total expressão
surrealista em forma de livros. Nesses trabalhos foi levado em conta o vocabulário formal
posteriormente utilizado nos livros de artista (Drucker, 2012: 61).
Eluard em parceria com o artista Joan Miró, criaram um livro único, obra de grande harmonia
estética, A Toute Épreuve (1947-1958). As imagens criadas por Miró, em xilogravura e
litogravura, foram impressas em cores puras, convidando o leitor a pensar texto e imagens
quase como sinônimos, dando nova vida e significado à poesia de Eluard. Deixam explícito
como esses artistas e poetas contribuíram para influenciar a produção de livros de artista.
62
Embora tivesse se iniciado com o caráter verbal, o movimento difunde-se através da imagem.
O campo mais rico de criação foi a dos objetos, que consistia na combinação de objetos do
cotidiano, aflorando assim o surrealismo da imagem, surgindo o conceito de poema-objeto.
O ready-made foi muito importante para a instauração da ideia de poema-objeto. O termo foi
criado por Marcel Duchamp, em 1914, para designar objetos encontrados ao acaso, no dia-a-
dia e que, os artistas deveriam se apropriar para criar arte elegendo-os como uma obra de arte
elaborada. Duchamp, que transitou entre o Dadaísmo e o Surrealismo, foi um grande expoente
dessa manifestação artística, em que para se observar um objeto como forma, é necessário
retirá-lo de seu contexto convencional, despi-lo da função que desempenha.
Duchamp confeccionou a Caixa de 1914, espécie de museu portátil dentro de uma caixa de
fotografia da Kodak, na qual o artista se propôs a expor o seu trabalho sob a forma de
reproduções fotográficas de dezesseis notas e manuscritos que discorriam sobre sua obra, e o
desenho Avoir l’apprendi dans le soleil. Havia três exemplares dessa caixa, um múltiplo.
Em 1934, criou a Caixa verde (The green box), feita de cartão e revestida de veludo verde, um
importante precedente dos livros de artista, considerado por Drucker (2012: 13) um livro
conceitual. Duchamp reproduz em fac-símile toda a documentação (notas, esboços, desenhos
e rascunhos) da construção da obra La mariée mise à nu par ses célibataires même (A noiva
despida por seus celibatários) ou Grande Vidro, concedendo ao leitor prováveis caminhos
para entender a obra.
63
Figura 27: Duchamp, boîte-en-valise The green box, 1934.
Entre 1935 e 1941, produziu cerca de trezentos exemplares da Boîte en Valise, verdadeiros
livros-objeto, que incluíam textos em suportes em formas de caixas não tradicionais. Boîte-en-
valise era uma espécie de mala-museu que continha réplicas em miniatura de seus trabalhos
(69 itens de sua obra artística realizada entre 1910 e 1937), armazenados em uma caixa
desmontável, revestida de couro, com reproduções fiéis em cores, recortes, estampas ou
objetos reduzidos de vidro, pintura, aquarelas, desenhos e ready-made (Naumann, 1999: 16).
1.2.7. 1950/1960
Era do consumo, da informação, da desmaterialização. Surgem novas tecnologias, novas
mídias, signos e simulacros. Ocorre a digitalização do social, da informatização, da arte. Fase
do pós-modernismo. A Pop Art explode na Europa e Estados Unidos, tendo Andy Warhol
como grande ícone. Há a recusa da separação entre arte e vida. Surgem ícones dos meios de
comunicação em massa (mass media). No pós-guerra, há a banalização do objeto de arte; as
fronteiras entre as artes se diluem, aparecem novos conceitos de arte. Novas tecnologias
permitem suportes variados, surgem novas mídias. Signos são retirados da cultura de massa e
do cotidiano (HQ, cartazes, anúncios, letreiros, reprodução). Marcel Duchamp e os ready-
made foram grande influência para o movimento pop. Dentro desse contexto, a partir da 2ª
metade do século XX, a atividade com livros de artistas se desenvolve com mais intensidade e
de forma sistemática.
64
Grupo COBRA (Copenhague, Bruxelas e Amsterdã), 1948 a 1951, a produção do grupo
combina artes visuais com música, cinema, literatura. Nos encontros internacionais que
promoveram, cabe destacar a publicação de livros, como a La Bibliothèque de Cobra, com
volumes das quais fazem parte os artistas do grupo.
Letrismo francês, movimento baseado na sonoridade, criado na França, em 1947, pelo poeta
romeno Isidore Isou. Usa poesia fonética ou auditiva, de natureza não-vocabular, um novo
método para suscitar imagens acústicas através da justaposição de sonoridades (letras). De
acordo com Garcia (2008: 30), no Manifesto Letrista, o poeta combate as palavras, havendo a
construção de uma arquitetura de ritmos létricos com a destruição das palavras, fazendo com
que o poema ganhe corpo e visualidade.
65
Grupo Fluxus (1962), menos que um estilo, um conjunto de procedimentos. O movimento
Fluxus traduz uma atitude diante do mundo, o fazer artístico, a cultura que se manifesta nas
mais diversas formas de arte: música, fotografia, teatro, artes visuais, poesia, vídeo, dança,
literatura. Inicialmente, o nome de origem latina fluxu (fluxo, movimento, escoamento) foi
criado por George Maciunas para nomear uma revista de arte de vanguarda que publicaria
textos de artistas, que se fortaleceu ampliando seu campo de atuação: política, social,
filosófica. Utilizou diferentes meios para a difusão de suas ideias e ações a partir de 1960.
Desenvolveram as Caixas Fluxus, espaço de exposição experimental das obras de seus artistas
(textos e partituras impressos em cartões individuais) junto com a apropriação de pequenos
objetos, onde usavam originais para isso (materiais industriais retirados do cotidiano).
Posteriormente passaram a ser denominadas Múltiplos Fluxus, feitas com objetos achados em
lojas, colocados em caixas de tamanhos diferentes.
66
A primeira publicação, conhecida como Fluxus 1 (1964), consistia de vários envelopes de
papel presos com parafusos, intercalados de folhas impressas, colocados dentro de uma caixa
de madeira. Segundo Panek (2005: 7), cada envelope continha a obra de um artista individual,
apresentando processos de encadernação não tradicionais, que incluíam cartões gravados,
luvas, discos, folhas de papel, fitas magnéticas. Dentre o material mais convencional havia
fotografias, textos, cartões nominais dos artistas, desenhados por Maciunas e documentações
sobre performances Fluxus.
Segundo Silveira (2008: 32), Castleman observa a importância da arte conceitual para o
desenvolvimento dos livros de artista, citando alguns artistas que se destacaram a partir de
1960, como Edward Ruscha, Diether Roth (Dieter Roth), Marcel Broodthaers.
Drucker (2012: 11) também aponta Twentysix gasoline stations (1962), de Ruscha, importante
por sua ruptura na forma de construção dessa obra. Embora a autora não goste de se limitar a
apenas um marco de origem do livro de artista, destaca Ruscha como importante para as
produções iniciais nos Estados Unidos, e Roth (Daily Mirror, 1970), na Europa; artistas que
apontariam as direções que esta forma de publicação seguiria nos anos seguintes.
Figura 31: Ruscha, Twentysix gasoline stations, 1962. Livro composto por fotografias de postos de gasolinas ao
longo de uma rodovia que atravessa os Estados Unidos. Impresso em offset, gerando um livro de baixo custo.
Ruscha juntamente com Andy Warhol, são alguns dos artistas associados à Pop Art, que
usaram muito do método publicitário para destacar um objeto isolado, definindo uma
experiência visual; faziam pinturas com cores saturadas e formas simples, feitas com
materiais industriais, como tinta acrílica, látex, poliéster, usando ícones do consumo de massa
67
ou objetos do cotidiano. Outros artistas que produziram obras nessa linguagem foram Robert
Barry, Sol Lewitt, Lawrence Weiner.
Warhol produziu livros de artista como o Red Books (1960), usando a câmera Polaroid para
unir a natureza descartável do consumismo moderno e a fotografia como ready-made. Fez
milhares de fotografias instantâneas, estabelecendo um rigoroso sistema de catalogação e as
colocou em álbuns vermelhos individuais, e depois em uma caixa vermelha. Podemos
considerar Red Books como um diário visual do artista, que nos oferece uma visão do seu
processo criativo.
De 1980 em diante, esse campo se consolida cada vez mais, aumentando o número de
profissionais especializados e pessoas interessadas em pesquisa; além de oficinas, exposições,
feiras, sempre refletindo sobre a produção de livros de artista. Não cabe aqui levantar toda a
produção contemporânea, onde a intenção foi a de destacar precursores, marcos, origens do
livro de artista, em diversas épocas e movimentos.
68
1.3 Manifestações no Brasil
No Brasil, o movimento Modernista começa com Lasar Segall e Anita Malfatti;
consolidando-se com a Semana de Arte Moderna de 1922, onde ocorre grande liberdade de
pesquisa estética e a redescoberta das raízes culturais brasileiras.
O artista lituano Lasar Segall chega ao Brasil em 1913. Realiza uma exposição em São Paulo,
onde apresenta trabalhos com influências do Expressionismo e dos movimentos de vanguarda
que se encontravam em ebulição na Europa. Sua arte foi cada vez mais conectando-se com
essas vanguardas, com formas simplificadas, geometrizadas e coloridas com maior liberdade
em relação ao Realismo. Retornando para morar no Brasil em 1924, com uma pintura que
combina as influências cubistas e expressionistas, utilizando paisagens e temas sociais
brasileiros, entrando em contato com poetas e artistas simpatizantes do Modernismo.
Esses artistas desejavam uma renovação na linguagem artística brasileira, realizando uma
ruptura com o passado acadêmico, usando elementos brasileiros, buscando a “inovação
temática, o maior interesse pelo motivo e cores brasileiras” (Rosseti, 2007: 62).
69
A partir de 1920, acontecia a produção de obras que podem ser consideradas como
precursoras do livro de artista, no Brasil; artistas e escritores trabalhavam na criação de livros
com visual e estética elaborados. Tais como: Feuilles de Route (1924), com texto de Blaise
Cendrars e ilustrações de Tarsila do Amaral, e Pau Brasil (1925), de Oswald de Andrade e
Tarsila do Amaral.
Tarsila voltou de Paris, onde entrou em contato com obras de artistas cubistas, futuristas,
dadaístas. Influenciada pelo clima de mudanças nas Artes, após a Semana de 22, formou O
Grupo dos Cinco, dos quais faziam parte Anita Malfatti, Oswald de Andrade, Mário de
Andrade e Menotti del Picchia.
Em 1924, Tarsila, Oswald e o poeta franco-suíço Blaise Cendrars (hóspede de Paulo Prado),
realizaram uma viagem ao interior do Brasil, pelas cidades coloniais de Minas Gerais, e pelo
Rio de Janeiro, para conhecer o carnaval; que serviu como referência para uma nova fase na
pintura de Tarsila, onde trabalhou com cores caipiras (verde, rosa, azul) e temáticas de sua
infância (café, fazenda, natureza). Dessa viagem, resultou um grande projeto, uma coletânea
de poemas e escritos de Cendrars, Feuilles de Route: I. Le Formose4 (um diário de bordo em
forma de poema, de sua viagem por navio até o Brasil). O livro é ilustrado por Tarsila e, a
capa tem esboço de A Negra. Seus desenhos buscavam valorizar a banalidade do cotidiano,
conservando seu impacto e espontaneidade.
4
Disponível em: http://www.mac.usp.br/mac/EXPOSI%C7OES/2012/folhas/textos.htm. Acesso em 18 de
novembro de 2014.
70
Oswald influenciado pelo que observou, escreve o Manifesto da Poesia Pau-Brasil, publicado
pelo Correio da Manhã, em 1924. O escritor sintetiza as pesquisas modernas internacionais,
que valorizavam a arte por seu valor próprio, com formas, cores, linhas, independente da sua
representação; com valorização de referências brasileiras, uma produção própria que poderia
ser exportada.
Em 1925, Oswald publica em Paris, sua coletânea de poemas Pau-Brasil, cujas ilustrações
foram desenvolvidas por Tarsila, com temas brasileiros; obra onde poemas e imagens estavam
em consonância.
71
Figura 34: Prosa do transiberiano, 1913.
Vicente do Rego Monteiro também teve um papel pioneiro na concepção de livro como Arte,
com uma escrita ideogramática, com a obra Quelquer visages de Paris, em 1925, onde o
artista realiza uma transcriação do poema em forma de imagens, fazendo outra leitura do
poema, em escrita visual.
72
Os projetos editoriais possuíam um caráter experimental, com propostas visuais inusitadas
para a época; tinham por objetivo dissociar a ideia de qualidade gráfica associada apenas ao
livro de luxo. Privilegiam o caráter plástico e visual do fazer livro. Segundo os participantes
do grupo, a ideia era misturar a inventividade criativa ao rigor gráfico; tinham a intenção de
demonstrar que “o livro, no seu aspecto material, deveria ser encarado como uma obra de
arte” (Leite, 2003: 91).
As principais características dos livros que editaram foram tiragem e formatos reduzidos (15
cm x 21 cm). O texto era impresso em tipografia e para ilustrar usavam diversas técnicas de
impressão, litografia, xilogravura, clichê de metal, e outras. Produziram livros, volantes ou
folders culturais (suporte para uma poesia ilustrada), folhetos.
A obra Pregão Turístico no Recife (1955), criada por João Cabral de Melo Neto, foi ilustrada
e projetada por Aloísio Magalhães. Os textos e desenhos foram feitos diretamente sobre as
chapas de impressão, folhas emendadas e dobradas em sanfona.
73
A cada trabalho desenvolvido por Aloísio, fortalece a relação entre arte e design. Na obra
Aniki Bobó, o texto de João Cabral de Melo Neto surge como uma espécie de ilustração da
forma plástica, uma vez que é posterior à ilustração de Magalhães. Esse livro foi impresso por
tipografia e clichê de barbante.
74
design foram igualmente importantes. O Construtivismo exerceu grande influência nos
artistas gráficos brasileiros.
No cenário internacional, quem mais divulgou essa disposição pragmática foi o suíço Max
Bill. Frequentou a Bauhaus entre 1927 e 1928, onde entrou em contato com Kandinsky e Paul
Klee. Esteve envolvido com importantes obras em todos esses campos: artes plásticas,
escultura, design gráfico, tipografia, design de produtos, arquitetura, engenharia.
75
Sua escultura Unidade Tripartida, recebeu o primeiro prêmio da I Bienal Internacional de São
Paulo (1951). Essa obra abstrata, feita em aço, simboliza uma fita contínua onde todos os
pontos se unem, tornou-se uma referência da arte abstrata para os brasileiros e, símbolo de
experimentação nesse campo.
Nos anos 1950, o Brasil passava por um momento de promessas de grande desenvolvimento
econômico, na era do Presidente Juscelino Kubitschek, começando com a construção de
Brasília, planejada por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, criando um contexto de entusiasmo em
torno da modernização do país.
Essa mobilização formava a base de posicionamento das artes, ante um modernismo que não
alcançou as grandes conquistas da Arte Moderna, e que, apesar do interesse nas experiências
de Tarsila e Oswald de Andrade, voltava a se aproximar das antigas formas de representação.
Com o crescimento da Arte Abstrata no Brasil, surgem grupos que pesquisam e estudam-na,
como o Grupo Ruptura, em São Paulo e o Grupo Frente, no Rio de Janeiro (fundado por
Lygia Clark, Lygia Pape, Ivan Serpa, e outros. Criticava o excesso do racionalismo teórico
dos paulistas e considerava que a abstração geométrica poderia ter corpo e alma). Mais tarde
dariam origem aos grupos abstratos: Concreto (São Paulo) e Neoconcreto (Rio de Janeiro).
O artista Waldemar Cordeiro conhece Geraldo de Barros, Lothar Charoux e Luiz Sacilotto,
originando o Grupo Ruptura, voltado para o estudo das Artes Plásticas Abstratas, e
trabalhando com formas geométricas. Seus integrantes estavam em sintonia com os
movimentos artísticos internacionais e reuniam-se para discutir conceitos teóricos da pura
visualidade e da Gestalt.
76
Figura 39: Geraldo de Barros, Movimento contra movimento, 1952.
A exposição do Grupo Ruptura, em 1952, no Museu de Arte Moderna, em São Paulo, marcou
o início oficial da Arte Concreta no Brasil. A mostra tinha como objetivo introduzir o
movimento da Arte Abstrata e Concreta na vida artística da cidade. Fizeram parte dela
Cordeiro, Geraldo de Barros, Charoux, Sacilotto, Anatol Wladyslaw, Kazmer Féjer, Leopoldo
Haar.
77
- as expressões baseadas nos novos princípios artísticos;
- todas as experiências que tendem à renovação dos valores essenciais da arte
visual (espaço-tempo, movimento e matéria);
- a intuição artística dotada de princípios claros e inteligentes e de grandes
possibilidades de desenvolvimento prático;
- conferir à arte um lugar definido no quadro do trabalho espiritual
contemporâneo, considerando-se um meio de conhecimento deduzível de
conceitos, situando-a acima da opinião, exigindo para seu juízo conhecimento
prévio, arte moderna não é ignorância, nós somos contra a ignorância
(Bandeira, 2002: 50).
A Arte Concreta materializa uma ideia, busca uma arte rigorosamente geométrica; quer
representar elementos intrínsecos à própria obra, como linhas, planos, progressões,
modularidade, bidimensionalidade.
A rigor, o que vem a ser reconhecido como poema concreto típico (brevidade,
sintaxe por justaposição, ritmo fônico-plástico, construído pela paronomásia
e pela diagramação que procura isomorficamente estabelecer relações
conceituais com o que diz o texto) é dado a público por inteiro em março de
1958, cerca de um ano depois da Enac (Exposição Nacional de Arte
Concreta), pelos poetas de São Paulo, com a edição de Noigandres 4
(Bandeira, 2006: 131).
A capa foi criada pelo artista Hermelindo Fiaminghi, a revista tinha formato de caixa e folhas
soltas, trouxe o Manifesto e poemas de Décio, Haroldo, Augusto e Ronaldo Azeredo. Os
poemas apresentavam o mesmo padrão gráfico, com tipo futura extra bold (com exceção do
poema-livro Life, de Décio, que teve a fonte desenhada por Maurício Nogueira Lima) e o
princípio de poemas-cartazes.
78
A publicação da revista Noigandres 4 pode ser vista como o marco da Poesia Concreta,
representando a chamada fase ortodoxa dessa poesia. A teoria e prática do projeto foi o
resultado de anos de trabalho.
79
Das atividades do grupo Noigandres e do grupo de outros poetas, da qual Wlademir Dias Pino
fazia parte, emergiu o movimento da Poesia Concreta. Esse grupo sofreu influências de
Mallarmé e o Livro passa a ser uma forma a ser trabalhada visualmente. Na Poesia Concreta
são trabalhados os aspectos formais e sonoros das palavras.
Wlademir Dias Pino lança, em 1956, o livro-poema A Ave, considerado o primeiro Livro de
Artista brasileiro pleno, uma vez que foi concebido e executado por um único artista. A
sequencialidade das páginas é inadaptável para outros meios. O livro é um objeto-poema e
não apenas suporte, que propunha a simultaneidade de visualidade, superposição de camadas
de códigos, se constituindo um “exemplo fundamental para a renovação da prática do Livro
de Artista levado à cabo pelos neoconcretos” (Fabris, 1988: 7). Sua estrutura física é parte
integrante do poema, e para sua existência se faz necessária a manipulação de suas páginas,
determinando o ritmo da leitura, sua decodificação e as relações espaciais entre as páginas.
Dias Pino tinha concepção própria de Poesia Concreta. Segundo ele “seis ou sete páginas
discursivas podem ser expressas num simples gráfico e é esse poder de síntese de expressão
que a poesia concreta poderá utilizar também” (apud Bandeira, 2006: 131). Seu poema Solida
serve de exemplo dessa afirmação. Aparece em cada uma de suas quatro pranchas com uma
diferente representação diagramática da composição/decomposição, letra por letra, da frase
sólida solidão só lida sol saído da lida do dia, e suas possíveis subdivisões de sentido,
geradas a partir da palavra-título.
80
Figura 42: Dias Pino, Solida, 1956.
Os poetas concretos trabalharam, desde o começo, sua produção poética relacionando-a com a
música contemporânea, as artes e o design Construtivista, estabelecendo um diálogo
intersemiótico entre essas linguagens.
As experiências dos poetas e artistas visuais, dos períodos Concreto e Neoconcreto (anos
1950/1960), são apontadas como a origem do Livro de Artista no Brasil. Nessa época, a
concepção dessa representação artística se consolida.
81
Figura 43: Objetos, 1969.
Objetos (1969) se posiciona entre livro e escultura, Livro-Objeto. Essa obra encomendada por
Julio Pacello (editora Cesar), consistia em um álbum com treze serigrafias executadas por
Julio Plaza nas cores primárias (azul, vermelho, amarelo). Duas folhas de papel superpostas e
coladas, com uma dobra central, formavam páginas e conforme fossem desdobradas,
revelavam formas tridimensionais, geométricas e orgânicas, de acordo com o corte que havia
nelas. Augusto de Campos e Julio Plaza conheceram-se durante esse processo de criação.
Augusto de Campos foi convidado a escrever um texto crítico dessa obra; partindo de um
objeto em branco de Plaza, criou um poema análogo à proposta plástica do artista. Nasceu o
primeiro poemóbile (Abre), nome que foi dado ao poema-objeto que, ao abrirem suas páginas,
tem suas palavras projetadas para frente, em diversos planos, sugerindo múltiplas relações de
significado.
82
A partir da experiência de Plaza com Objetos, realiza com Augusto de Campos em 1974,
Poemóbiles, onde reeditam o primeiro poema-objeto e reúnem novas criações. Peças soltas
que configuram o Poema Concreto, que conforme é realizado o movimento de abrir e fechar,
são projetadas formas tridimensionais geométricas com palavras variadas: open, cable,
change, entre, luxo, voo, abre, vivavaia, rever, e outras. Escrita e imagem possuem uma
dimensão única, resultando na criação de móbiles, que exploram todos os componentes da
estrutura espacial. Formas, relevos, cores, integram-se numa leitura lúdica e com grande
dinamismo. Segundo Campos (2013: 84), queriam fugir tanto da
Caixa Preta (1975) reunia trabalhos de Plaza e Campos de 1960 a 1970, para serem montados
em estruturas geométricas. Essa obra rompia com o suporte tradicional do livro e o conceito
de interdisciplinaridade foi posto em prática. A caixa continha obras individuais de cada um,
como os objetos visuais de Plaza ou poemas concretos de Campos, e também seus trabalhos
colaborativos, os poemas-objeto, além de um disco de Caetano Veloso com os poemas
musicados dias dias dias e pulsar. Caixa Preta realiza uma clara conversa com as publicações
do grupo Fluxus, as Caixas Fluxus.
83
Figura 45: Caixa preta, 1975.
84
1.3.4. I Exposição Nacional de Arte Concreta (1956)
Em 1956, acontece a I Exposição Nacional de Arte Concreta (Enac), no MAM em São Paulo
e no Rio de Janeiro, reunindo artistas e poetas concretos. Nesta exposição mostraram um
amplo panorama das artes (obras abstratas ou concretas) e da Poesia Concreta. A mostra foi
composta de cartazes-poemas, obras pictóricas, desenhos, esculturas. Seguiram os ideais
sociais difundidos pela Escola de Ulm (Alemanha); foi o momento de implementação do
projeto artístico construtivo no Brasil.
Em São Paulo, cada poeta apresentou de três a cinco poemas, impressos em preto sobre papel
branco, na família de tipo Futura, e sem identificação do autor. Os poemas foram colocados
na parede entre os quadros, com uma escala semelhante à deles, dentro da concepção de
poema-cartaz, mostrando seu potencial de reprodutibilidade e difusão no ambiente urbano,
com uma diagramação geometrizante e acompanhados de pinturas e esculturas construtivistas.
O núcleo dos poetas paulistas era um grupo muito coeso, em função de trabalharem em
conjunto, desde 1950, editaram a revista Noigandres, onde divulgavam seus poemas, e
elaboraram uma base teórica para a Poesia Concreta. Formavam o grupo Noigandres.
As obras de poetas e artistas que integravam o movimento poderiam ser vistas lado a lado, e
as divergências teóricas e estéticas vieram à tona; concretistas paulistas (liderados por
Waldemar Cordeiro e o grupo Noigandres) e cariocas (Ferreira Gullar). De acordo com
Mammi (2006: 25), “Cordeiro acusou a representação carioca de falta de rigor construtivo e
Gullar viu nos paulistas uma aplicação mecânica dos princípios da Escola da Ulm”.
Entretanto essa discussão resvalou logo para os fundamentos teóricos do movimento Concreto
e as estratégias de sua aplicação à situação atual.
1.3.5. Neoconcretismo
Em 1959, ocorrem divergências entre o Grupo Ruptura e o Grupo Frente. O resultado dessa
polêmica foi o surgimento do movimento Neoconcreto e da Teoria do não-objeto de Ferreira
Gullar, no Rio de Janeiro, que defendia a introdução da expressão na obra de arte e rejeitava o
primado da razão sobre a sensibilidade, havendo o resgate da subjetividade e da poesia.
85
a forma enquanto narrativa, havendo a dissolução das fronteiras entre poesia e artes visuais. A
própria condição da Arte nesse período produziu um transbordamento de limites, fazendo
com que os artistas lançassem-se em múltiplas direções, explorando as mais diferentes
possibilidades de expressão. Diversos artistas brasileiros produziram Livros de Artista, como
Arthur Barrio, Lygia Clark, Antonio Dias, Waltércio Caldas, Mira Schendel, Alex
Hamburguer, Delson Uchoa, Liuba, Renina Katz, Lygia Pape, Paulo Bruscky, Waldemar
Cordeiro, e outros.
Na construção dos Livros de Artista, muitos aspectos plásticos do objeto livro são explorados.
Como o fato de que ele proporciona prazer intelectual, através de seu texto, mas também
prazer táctil e visual. O Livro pode ter uma leitura contínua, que vai da capa à sua última
página, todavia mantém uma relação de interatividade com o leitor, que é o manipulador, o
regente da orquestra de páginas, podendo abri-lo aleatoriamente fazendo uma leitura ao acaso,
ou sendo guiado pelas sinalizações gráfico/verbais de sua narrativa.
Para João Bandeira (2006: 137), o gênero Livro-Poema foi praticado não só na esfera
neoconcreta. Décio Pignatari mostrou na Exposição Nacional de Arte Concreta a obra semi di
zucca, que já trazia essa ideia, assim como os cartazes de O formigueiro (ou melhor, páginas
selecionadas de um conjunto maior), de Gullar, obra que colaborou na heterogeneidade de
experiências na exposição sob a rubrica da Poesia Concreta.
De acordo com Julio Plaza (1982: 12), no Livro-Poema ocorre intersecções de vários códigos
e/ou sistemas de signos, visuais, textuais, desenhos, fotografias, organizados isomorficamente
86
no suporte. Sua característica principal seria a fisicalidade do suporte, devido a estrutura física
do livro ser parte integrante do poema. Seus elementos plásticos e gráficos são igualmente
determinantes. Os Livros-Poemas requerem sempre a interação do leitor para a obra
acontecer, o manuseio por parte do leitor é condição de sua existência.
Após a Enac, Pignatari fez Life (1957) e Organismo (1960), chamados por ele de Poemalivro.
Em ambos, a “visualidade colabora na construção do sentido já não mais, ou não apenas, pela
diagramação do texto, como na chamada fase ortodoxa da poesia concreta, mas pelo próprio
desenho tipográfico” (Bandeira, 2006: 137), onde os elementos foram adicionados
progressivamente (I L F E). Em Organismo ocorre a alteração de escala até a distorção.
Porém, isso ocorre na bidimensionalidade das páginas, onde cada uma delas funciona como
um fotograma desses Cinepoemas; o suporte Livro não está em questão em sua materialidade
de objeto, podendo assim Life e Organismo serem considerados mais como Poemalivros do
que Livros-Poemas.
87
A espessura do tempo, Livro-Poema neoconcreto de Jardim, se faz na sucessão temporal dos
chamados verbos significando estado (ser, estar, parecer, permanecer, ficar), procurando
trabalhar o tempo como duração, desacelerá-lo para dar-lhe espessura, usando outras camadas
de folhas transparentes entre cada verbo.
O Livro-Poema Oxigênesis (1977), de Villari Herrmann, propõe uma leitura circular, onde as
palavras da página central remetem a ritmos, formas geométricas e orgânicas. Palavra e
imagem aparecem em um contexto único e simultâneo.
Segundo Plaza (1982, s/p), Oxigênesis (1977) tem uma proposta de imagens com valor
diferente na inversão (criando trocadilhos visuais), com uma circularidade que rompe com o
princípio-meio-fim característico no livro tradicional. A circularidade da narrativa visual
também é isomórfica ao significado-resumo do livro: Orgasmo. O livro é todo azul, com
imagens coloridas em cada dupla de página. Ao lermos essas imagens temos terra, árvore,
raio, +ou-sopesados-ou+, k-oito, voa e coração, e fazendo uma inversão do modo de ler o
livro, temos coração, voa, koito, +no-sopesados-no+, rio, pulmão e mulher. Terra ou mulher,
representada por uma linha amarela que conforme o lado da leitura, temos o perfil de uma
mulher ou uma montanha. Árvore ou pulmão, um desenho em branco, representando o
oxigênio, a respiração. Na dupla com fundo azul escuro, desenhado em branco, um raio ou
um rio, eletricidade, água. +ou-sopesados-ou+ é igual a +no-sopesados-no+. K-oito ou k-8,
igual a coito (usou três cores na página, rosa, azul claro e escuro). Voa construído apenas com
formas geométricas, triângulo, oval e triângulo invertido, formando a escrita VOA, êxtase; e
um eletrocardiograma em vermelho, sinalizando o coração. Plaza resume o poema como
orgasmo contínuo.
88
mais na esfera das Artes, do objeto mesmo. Em termos de poesia propriamente dita, o
Neoconcretismo não teve continuidade, sendo que sua descendência mais rica foi nas artes
visuais.
Da mesma forma que na Enac não havia uma homogeneidade formal, por volta de 1960, a
produção dos poetas do grupo paulista e de outros poetas que se aproximaram deles, como
Edgar Braga, José Lino Grunewald e Pedro Xisto, já não se atém a ortodoxias. Pode-se
concluir que Concretos e Neoconcretos colaboraram uns com os outros para o
amadurecimento de suas obras, sendo que parte da poesia e da arte brasileiras apontam para
os benefícios que seus descendentes colheram das diferenças entre eles.
89
1.4 Experimentações
Suzanne Hoffberg5
O Livro de Artista não é somente o recipiente de ideias como a maioria dos livros que são
uma experiência consumada. Essa forma de expressão artística usa todas as suas qualidades
para desafiar o leitor a criar diferentes tipos de leituras, ocorrendo uma experiência interativa.
O leitor completa a obra, havendo assim um diálogo entre artista e observador. Sendo
necessário um olhar sem barreiras para usufruir, entender, consumir o Livro de Artista.
Para alguns artistas, o livro tornou-se suporte para uma prazerosa experiência visual, espacial,
sequencial; onde podem ser misturadas poesia e formas escultóricas. No Livro de Artista são
trabalhadas texturas, formas, cores, conteúdo, imagens, ocorrendo uma profunda investigação
de materiais.
5
Horvitz; Raman; Hoffberg, 1995: 11.
90
Os artistas exploram os limites da técnica, com interferências, transgressões, transformações.
Colagem, fotocópia, recortes ou novas tecnologias, desafiam o artista em suas
experimentações para a realização dessa obra. Ao modificar livros prontos, surge uma nova
obra sobre outra que já existe, transformando nosso relacionamento com o objeto. Passamos
de leitor a contemplador, havendo um deslocamento da nossa orientação do visual (leitura)
para o tátil. No Livro de Artista há mais preocupação com a forma de que com a função,
gerando impacto visual.
91
linguagem que o livro quer comportar, a procura de outra sintaxe cultural
(Navas, 2013: 39-40).
Alguns artistas trabalharam estas experimentações usando a temática dos componentes visuais
do livro, construindo obras ligadas às evidências plásticas e volumétricas, como página, capa,
lombada, textos, estrutura; outros exploraram a fusão das artes e técnicas variadas ou
resgataram componentes estéticos puros, como forma, linha, cor, volume, não dirigidos para a
representação da realidade, sempre pensando nessas experiências como maneiras de ampliar
olhares e significados dentro de seu processo na criação do Livro de Artista.
A experiência Neoconcreta usa imagens sonoras, poesia visual, formas livres, reinterpretações
do espaço narrativo, experimentação de materiais e articulação das partes compositivas. A
cena artística reflete “fusão e interpenetração entre pintura, fotografia, literatura, colagem,
montagem, desenho, escultura, fundição, impressão” (Paiva, 2010: 93). Artistas e poetas
passam a pensar este suporte livro como obra de arte, objeto de reflexão e de intervenção.
6
Disponível em http://seminariolivrodeartista.wordpress.com/2009/09/22/o-livro-de-artista-da-ilustracao-ao-
objeto/. Acesso em 18 de março de 2010.
92
Dentre os artistas brasileiros que trabalharam com a produção de Livros de Artista, podemos
destacar alguns, como Lygia Clark, Lygia Pape, Hélio Oiticica, Raymundo Collares, Paulo
Bruscky, Waltercio Caldas, Arthur Barrio, Amélia Toledo, Mira Schendel. Esses artistas
ajudaram a ampliar a função de informar e o acesso à individualidade da leitura e percepção
do olhar do outro.
Lygia Pape junto com Lygia Clark e Hélio Oiticica fizeram parte da tríade Neoconcreta de
maior ruptura. Oiticica tinha em mente o livro Conglomerado, no qual caberiam todos os
tipos de materiais. Pape trabalhou a sequencialidade do objeto de forma diferente: seja no
Livro de criação, no Livro da arquitetura ou no Livro do tempo.
Com o Livro da criação, Pape propunha uma nova leitura do mundo, onde as palavras foram
abolidas, restando apenas formas abertas à conjugação de significados, a partir do olhar, do
manuseio e da descoberta de correspondências entre elas e os elementos da natureza e da
história humana.
Clark foi uma das primeiras artistas a convidar o espectador a participar da obra. Concebeu a
mesma não só como objeto, mas como veículo da imaginação e interação; usa o livro como
uma estrutura em aberto, havendo uma circularidade infinita. Em sua série Bichos (1960)
realizou esculturas com lâminas articuladas de metal. Livro-obra (1964) era um trabalho que
estava em sintonia com suas experiências construtivas e sensoriais, onde buscava em sua
estética a “conciliação entre a racionalidade da tradição construtiva e uma intuição que se
revela no onírico e no sensório” (Paiva, 2010: 93).
93
Em Gibis (1970-1972), Raymundo Collares realiza uma riquíssima pesquisa plástico-formal
que vai de encontro com as ideias da Pop Art e do Neoconcretismo, diálogo da vertente
construtiva com o imaginário (da cor do pop), sendo exemplares únicos. Trabalha o equilíbrio
das cores e formas; e o tempo e o espaço, com o gesto de virar as páginas, formando em cada
ato, novos planos. “Seus gibis, remetem ao Livro da Criação de Lygia Pape, são obras em
processo, as imagens se fazem, ou se desfazem à medida que as folhas vão sendo
movimentadas. Virtualidade pura” (Morais, 2012: 309).
94
O aspecto lúdico e a experimentação sensível, tátil e olfativa, são
significativos. Livrobjetojogo é um livro costurado com retalhos de tecidos
coloridos, em suas páginas prendem-se aleatoriamente zíperes e fechos de
formatos diversos [...] A leitura desse livro é feita pelas mãos, convidadas a
brincar em movimentos guiados pelo acaso, sem o automatismo dos gestos
cotidianos (Freire, 1993: 51).
Waltercio Caldas possui uma produção instigante, tanto pela “valorização do objeto livro
como paradigma da cultura humanista como também por ser um território de ensaio visual,
ideal para uma epistemologia da percepção” (Navas, 2013: 48). Em seu trabalho realizou uma
sensível conversa com os diferentes elementos estruturais (páginas, volume, encadernação,
conteúdo). A centralização de seu trabalho é o espaço, e quando utiliza o formato livro, as
questões espaço-tempo ficam evidentes ao deslocar a sequência narrativa para a narrativa
poética da obra, também ao destacar as características temporais e esculturais do livro,
buscando unir escrita e tridimensionalidade. Caldas pensa o livro como objeto circular em seu
movimento de páginas e investiga a condição gráfica que representa a impressão (edições em
offset, carimbos ou intervenções digitais), sempre trabalhando com uma nova significação do
espaço do livro, em busca de um novo limiar perceptivo.
Também existem edições cuidadosas com tiragens comerciais, como Barroco de lírios
(1997), de Tunga e Balada (1995), de Nuno Ramos. São obras-livros que registram ousados
gestos gráficos e performáticos. Já Arnaldo Antunes representa outro caminho entre o
manuscrito e o design; poeta visual pós-concreto, intersemiótico e multimídia. Seus livros de
95
poemas são ricamente inventivos, devido à sua organização visual, profusão de caligrafias-
desenhos e pelo trabalho propriamente dito sobre o formato livro.
1.4.2. Cadernos
Em relação aos formatos, além do códice ou da caixa, há os chamados cadernos, de grande
acento conceitual, como cadernoslivros, de Artur Barrio (1960, 1970), um suporte imagético
sem fronteiras de gênero, com inscrições, desenhos, objetos e textos; tipo de produção que o
artista ainda trabalha na contemporaneidade. O artista também produziu edições únicas, Livro
dos ruídos (1980) e Pensamentos, escritos, lidos... (2000-2001); e um livro orgânico, o Livro
de carne, que representava união da arte e da vida, com extrema fisicalidade. Sobre a forma
de decifrar este livro, Barrio escreve:
96
Figura 54: Amelia Toledo, Rosa Contemporânea, 1965.
De certa maneira, as obras de Mira Schendel e Amélia Toledo dialogam, seja pela
transparência do suporte de seus livros, seja pela relação da sequencialidade, do movimento
de virar as páginas realizadas pelo leitor.
Schendel realizou um trabalho com pureza de forma, letras e números; buscava valores
espaciais na inter-relação signo e página. A transparência permitindo a leitura dos dois lados
das páginas. Seus Cadernos estão no limite da linguagem escrita-visual, ao explicitar a
procura de uma escrita essencial, nesses Livros de Artista transparência e palavras (signos em
letraset) aparecem interpenetrados na espacialidade da página.
Anna Bella Geiger realizou diversos cadernos com temáticas significativas: Passagens
(1974), História do Brasil (1975), Os dez mandamentos ilustrados (1975), Sobre a arte
(1976), Novo atlas I e Novo atlas II (1977). Eram tiragens limitadas e representavam
reflexões sobre a linguagem, territórios, política e sistema de arte, misturados a um humor
97
conceitual e técnicas mistas. Seus cadernos se interrogam por necessidade de novas
cartografias, por questionamentos críticos transversais.
Regina Silveira nos cadernos, Anamorfas (1977), Executivas (1979) e Corredores para
abutres (2003), propõe investigações linguísticas-críticas, que na verdade seriam uma
continuação de sua pesquisa semântico-estética que coloca a dialética da percepção-
representação em xeque. Em Wild Book (1997), livro-objeto único, pegadas foram
serigrafadas em páginas de feltro, reunidas em amplas capas de pele de animal.
98
representação, entre a fragilidade dos códigos e potência dos signos (palavras, fotos,
imagens), contudo explorando a sequência do Livro de Artista.
Figura 58: Alexandre Vilas Boas, Livro de tempo, verdades provisórias, 2014.
A tara por livros ou a tara de papel, ocorreu em 2014, na Galeria Bergamin, e sua proposta
foi pensar o objeto livro como material sedutor e a compulsão pelo belo. Contou com alguns
livros raros como o Livro-obra (1983), de Lygia Clark; Certas sutilezas humanas (s/d), peça
99
única de Leonilson e Paisagem dobrada (2000), de Rivane Neuenschwander, um de seus
trabalhos mais importantes, além de obras de Anna Maria Maiolino, Artur Barrio, Artur
Lescher, Beatriz Milhazes, Edward Ruscha, Fabio Moraes, Julio Plaza, Augusto de Campos,
Mira Schendel, Paulo Bruscky, Raymundo Colares, Regina Silveira, Rosângela Rennó,
Waltercio Caldas, e outros artistas.
Figura 59: Beatriz Milhazes, Meu Bem, 2008. Colagem e impressão sobre papel. Referências do Rio de Janeiro.
Figura 60: Nuno Ramos, Caldas Aulete – para Nelson 3 (2006). Homenagem ao compositor Nelson Cavaquinho
em que cada um dos cinco volumes do Dicionário Caldas Aulete tem as páginas cavadas por quatro letras do
verso de uma música.
100
Figura 61: Luise Weiss, Cadernos, s/d.
Aberto e Fechado: caixa e livro na arte brasileira, 2012, na Pinacoteca do Estado de São
Paulo, com curadoria do crítico de arte Guy Brett. A exposição mostrou uma seleção das
produções de Livros de Artista e Caixas-Obras realizados por artistas brasileiros a partir de
1950, apresentando grande diversidade de materiais e muita experimentação; além de
conceitos vitais como a obra de arte como um organismo vivo e a participação ativa do
espectador. Essa mostra trouxe ao público reflexões acerca desse fenômeno comum na arte
brasileira, caixa e livro como suporte da arte, veículos restritos, fechados e que remetem às
bibliotecas e aos arquivos. Estavam presentes obras de Amelia Toledo, Anna Bella Geiger,
Anna Maria Maiolino, Antonio Dias, Artur Barrio, Cildo Meireles, Ferreira Gullar, Hélio
Oiticica, Jac Leirner, Luciano Figueiredo, Lygia Clark, Lygia Pape, Mira Schendel, Paula
Gaitán, Raymundo Collares, Regina Silveira, Regina Vater, Ricardo Basbaum, Rubens
Gerchman, Sérgio Camargo, Tunga, Waltercio Caldas, Willys de Castro.
101
Além da Biblioteca, em 2011, no Museu Lasar Segall, reuniu obras que encontram sua
configuração ideal no livro, evidenciando seus aspectos formais e conteúdo funcional, além
de explorar a espacialidade do mesmo. Exposição que disponibilizou um recorte significativo
da produção de Arte Contemporânea, respeitando as necessidades expositivas peculiares do
Livro de Artista. Alguns artistas presentes foram Edith Derdyk, Fabio Morais, Lucia Mindlin
Loeb, Marilá Dardot, Odires Mlászho, e outros.
Figura 64: Fábio Morais, Romance para ser lido sob a chuva, 2008/2011. Livro cortado.
Figura 65: Lucia Mindlin Loeb, sem título, 2000. Folhas de madeira e encadernação manual.
102
Marilá Dardot é uma artista que tem a escrita como matéria-prima frequente de sua criação;
quer seja em instalações, vídeos, esculturas ou em Livros de Artista. Suas obras exploram o
potencial imagético, a etimologia e o papel antropológico da palavra, transitando o tempo
todo no campo da literatura e das artes gráficas (letra impressa, livros e suas páginas,
lombadas, capítulos, marcadores, diagramação de imagens, etc). Experimental, às vezes se
apropria de tecnologias obsoletas da informação, como o mimeógrafo e a máquina de
escrever, para refletir sobre conceitos do mercado de consumo nos dias de hoje; embora
também trabalhe com tecnologias novas, conforme sua proposta poética do momento. Para a
artista7, sua Arte e seus Livros de Artistas, são objetos inertes, até que sejam lidos pelo fruidor
da obra, construindo assim uma nova narrativa. A cada leitura do leitor, a obra se transforma,
porque ocorre uma nova releitura a cada encontro com fruidor/obra.
Hilal Sami Hilal, artista capixaba de origem síria, em sua obra mistura influências culturais
entre o Oriente e o Ocidente, entre a tradição moderna ocidental e a antiga arte islâmica. Obra
com profunda pesquisa de materiais (papéis, retalhos de tecido, metais) e símbolos poéticos,
com a forte presença da ideia de escritura e valores espirituais cristãos e islâmicos. A partir da
pesquisa das possibilidades de criação de diferentes formas com papel artesanal, onde
aparecem rendilhados cheios de leveza, parte para as folhas de alumínio e de cobre, criando
uma nova forma de escrever, ficando apenas as letras. Explora a escrita em livros de todos os
tamanhos, unindo desenho e escultura, o corpóreo e o sensível, o cheio e o vazio.
7
Entrevista realizada em 2009 para a Refil. Disponível em http://www.mariladardot.com/bibliografia.php. Acesso
em 6 de setembro de 2015.
103
Figura 67: Hilal Sami Hilal, Cobre e corrosão, 2004.
Figura 68: Hilal Sami Hilal, Livro Prego (corrosões sobre o cobre), 2012.
Feira Tijuana
Como exemplo do crescimento da linguagem Livro de Artista, também temos a Feira Tijuana
de Arte Impressa, que acontece desde 2009. Reúne editores, artistas e produtores gráficos,
funcionando como um ponto de troca de conhecimento e produção editorial e artística;
ampliando e divulgando cada vez mais essa mídia. O Tijuana nasceu como uma iniciativa da
Galeria Vermelho (São Paulo) para criar um espaço que pudesse mostrar obras de formato
incompatível com o espaço expositivo tradicional, especialmente os Livros de Artista.
Esse é apenas um pequeno recorte do que vem sendo mostrado e divulgado em São Paulo,
além de encontros e seminários organizados para pensar e refletir sobre práticas e pesquisa do
Livro de Artista, como o que ocorreu no SP Arte em 2013, com exposição de obras, debates e
lançamento do livro Entre ser um e ser mil: o objeto livro e suas poéticas, com organização
de Edith Derdyk.
104
Minas Gerais
Esse movimento em direção à reflexão sobre o objeto livro está crescendo cada vez mais. Em
2009, a Escola de Belas Artes, da Universidade Federal de Minas Gerais, teve formada a
primeira coleção especial de Livros de Artista em uma biblioteca universitária no Brasil; com
destaque para a colaboração do professor Amir Brito Cadôr, artista e pesquisador dessa mídia.
Essa coleção, com mais de 285 títulos de artistas brasileiros e estrangeiros, foi divulgada em
diversas exposições: Livro de Artista no Brasil, na Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa,
Belo Horizonte, em 2015; Pensamento impresso, exposição de poesia visual em Livro de
Artista, no Centro Cultural da UFMG, em 2014. A morte do autor, apropriação de obras
literárias em Livros de Artista, em 2014, e Exposição Nacional de Livro de Artista, em
comemoração aos 30 anos da 1ª Exposição Nacional de Livro de Artista, Recife (1983), em
2013; ambas aconteceram na Biblioteca Universitária, Belo Horizonte. O desenho como
instrumento, exposição de Livros de Artista no Sesc Pompeia, São Paulo, em 2014, Ainda: o
livro como performance, exposição de Livros de Artista, no Museu de Arte da Pampulha
(2013). Além de encontros e pesquisas sobre o assunto, como a 2ª edição do seminário
internacional Perspectivas do livro de artista: o livro de artista na universidade, em 2013,
com um espaço de trocas para refletir sobre essa prática e também duas mostras, Publicações
de artistas: o códice e variações e Ensinar e Aprender como Formas de Arte.
105
Não tenho a pretensão de mapear toda a produção de Livros de Artista que ocorreram no
Brasil (prática que aumenta a cada dia); busco apenas destacar alguns locais onde essas
produções e reflexões estão se firmando cada vez mais, não se esgotando por aqui os
exemplos de como essa prática tem crescido e se disseminado. No decorrer da trajetória da
construção do Livro de Artista, percebo que ocorre cada vez mais uma mistura de disciplinas
e suportes, permitindo que artistas e poetas caminhem em todas as direções. A presença
contemporânea da palavra e do texto como configuração simbólica e artística aparece em alto
grau. O formato livro feito obra, livro como imagem, aparece na pesquisa de diversos artistas,
resultante de um meio hibridizado que permite as misturas das linguagens, ampliando
experiências e processos criativos. Fronteiras se diluem, se entrelaçam, gerando novas obras.
1.4.4 Espacialidade
Quando estudamos o Livro de Artista, é necessário pensar essa obra como um volume; um
corpo que ocupa um lugar no espaço, refletindo sobre sua fisicalidade e também sobre suas
relações de espacialidade. Conforme afirma Carrión, “um livro é um volume no espaço”
(2011: 29), uma arte que se estabelece em um espaço concreto, real, físico. O deslocamento
ou abertura de cada página forma um volume, marcando sua presença espacial.
A maioria das obras que vimos ocupam o espaço ao serem manuseadas, como por exemplo,
Poemóbiles, de Julio Plaza, ou o Livro da Criação, de Lygia Pape, saem do bidimensional e
expandem-se para o espaço tridimensional, ocorrendo a integração do espaço da obra com o
espaço real.
8
Arnheim, 1989: 209.
106
Existem também obras que são verdadeiras construções no espaço, ocupações de um
determinado ambiente. Johanna Drucker (2012: 13) afirma que a partir de 1980 alguns livros-
objetos ou livros escultóricos começaram a se direcionar para o campo da instalação,
ocupando ambientes complexos; sempre com a ideia do livro como elemento principal da
obra. A autora acredita que, essas obras se encontram em uma esfera além do Livro de Artista,
em escultura ou instalação, apenas. Podemos pensar esses trabalhos como ampliações do
conceito de Livro de Artista, não são Livros de Artista, todavia podem ser criadas novas
relações nesse local, onde as produções se potencializam.
“O espaço de uma sala pode ser tratado como o espaço interno de um livro” (Fiera, 2015: 76).
Essa frase toma forma quando vemos a obra Avant et après la lettre (Antes do estado
definitivo ou antes do termo existir), de Marilá Dardot, onde um livro repousa sobre uma
pilha de pequenos fragmentos de frases, que parecem sair ou entrar nele. Os fragmentos de
livros diversos cobrem quase todo o chão do espaço. Sendo o objeto repensado como um
espaço tridimensional onde forma e conteúdo dão lugar a uma reapropriação espacial.
Segundo Audrey Illouz9, “este livre des livres (livro dos livros) não é apenas um livro a mais
feito a partir da técnica de recortes, ele pretende ser, potencialmente, todos os livros possíveis,
como uma condensação da Biblioteca de Babel, de J. L. Borges”.
9
ILLOUZ, Audrey. Curadora da exposição Chambres Sourdes, no Parque Cultural de Rentilly, França, 2011.
Disponível em http://mariladardot.com/files/AudreyIllouz_Portugues.pdf. Acesso em 6 de setembro de 2015.
107
Figura 69: Marilá Dardot. Instalação Avant et après la lettre (livro interferido e fragmentos de livros),
biblioteca do Chateau de Rentilly, França, 2011.
Na obra Sherazade, Hilal Sami dispõe sobre o chão da galeria 180 livros entrelaçados,
construindo um tapete literário, onde suas páginas se comunicam, formando uma história sem
fim; em referência aos contos As mil e uma noites e à sua personagem principal, narradora das
tramas que poupou sua vida contando histórias fantásticas ao rei Shariar.
Livros que ocupam um espaço próprio, de volume, e também em conjunto, uma instalação
que invade o espaço expositivo, ampliando significados.
Figura 70: Hilal Sami Hilal. Sherazade (pequenos livros com as páginas se comunicando, formando uma
história sem fim), 2014.
108
CAPÍTULO 2:
CONVERSAS INICIAIS, QUANDO A PALAVRA VIRA IMAGEM
109
2.1 Sobre palavras e imagens
Alberto Manguel10
Gerheim acredita que o homem é um produtor de signos, dos quais sempre lançou mão, pois
sua produção é indissociável da reflexão, e que precisa dos signos para reflexão, sua e das
coisas, sendo os signos o suporte da mesma. Considerando o funcionamento de signo dos
fenômenos, tudo pode ou não, ser um signo.
A imagem tem sido meio de expressão da cultura humana desde a época das pinturas
rupestres, milênios antes do aparecimento do registro da palavra pela escrita (Santaella e
Nöth, 2008: 13). Embora, a palavra escrita tenha evoluído muito (a partir do século XV) com
a descoberta de Gutenberg, o mundo imagético teve que esperar até o século XX para se
desenvolver. Até hoje, era do vídeo e das novas mídias, com uma vida cercada por mensagens
visuais, não temos uma tradição na pesquisa da imagem, como ocorreu com a palavra, onde
estudiosos investigaram a fundo, a natureza e estrutura da palavra, criando regras e teorias.
10
Manguel, 2001: 21.
110
Para investigar a imagem, não existe um suporte institucional de pesquisa que lhe seja
próprio, diversas disciplinas servem como base nesse tipo de investigação, como a semiótica
visual, crítica da arte, história da arte, teorias psicológicas da arte, estudos das mídias, e
outras, pois, o estudo da imagem é interdisciplinar.
Santaella e Nöth (2008: 13) cita o semioticista Emile Benveniste, segundo ele
Em Leitura sem palavras, Ferrara reflete sobre isso, afirmando que todo código é constituído
de signos, com sintaxe própria e maneira de representar. Para decodificar qualquer sistema é
preciso identificar o signo e a sintaxe que o constituem. “A dificuldade de tal caracterização
aponta, paradoxalmente, a primeira e maior dificuldade do texto não-verbal, ao mesmo tempo
que é o elemento básico de sua definição” (2007: 14).
Uma das características do texto não-verbal é que se configura como uma linguagem sem
código, sendo a fragmentação sígnica sua marca estrutural. No texto não-verbal não há apenas
um signo, mas aglomerados sem convenções: sons, palavras, cores, traços, tamanhos,
texturas, cheiros. As emanações dos cinco sentidos surgem no não-verbal, juntas, simultâneas,
porém desintegradas, pois, não há sintaxe que as relacione. Todavia, sua associação está
implícita e precisa ser produzida, uma vez que o significado não está dado:
O texto não-verbal mescla todos os códigos, e o próprio verbal pode fazer parte do não-
verbal; embora não tenha sobre ele qualquer força hegemônica. A palavra surge nele, mas não
apresenta a lógica central que caracteriza o texto verbal. O não-verbal não possui a linearidade
111
e a contiguidade11 do verbal, possui outra lógica, onde o significado não se impõe, contudo,
pode se distinguir sem hierarquia, em uma simultaneidade. Gerando não apenas um sentido,
mas sentidos que não se impõem, porém que podem ser produzidos.
Entretanto, é importante notar que também o código verbal não pode se desenvolver sem
imagens, nosso discurso verbal está permeado por elas. Sendo a abordagem teórica a mais
adequada ao estudo da imagem.
“A imagem dá origem a uma história, que, por sua vez, dá origem a uma imagem” (Manguel,
2001: 24). As narrativas existem no tempo, as imagens, no espaço. Quando lemos algum tipo
de imagem, pintura, fotografia, ilustração, atribuímos a ela o caráter temporal da narrativa.
Toda imagem se expande mediante incontáveis camadas de leituras, e o leitor para ter acesso
a elas, precisa removê-las. Com o tempo, podemos ver cada vez mais, novas informações em
uma mesma imagem, descobrir detalhes, relacionar com outras, usar palavras para contar o
que vemos.
Desde a sua origem, palavra e imagem estão inter-relacionadas. Maria Augusta Babo discute a
relação entre o traço, a letra e o desenho; salientando o caráter figural da escrita. Segundo a
autora, quanto mais afastado da representação está o traço, mais perto se encontra de sua
materialidade: “o traço, vestígio do corpo, do gesto, seria o elemento comum entre o desenho
e a palavra. A letra, na palavra, perde sua opacidade de traço porque se faz transparente,
11
A contiguidade é uma forma de pensamento que permite que qualquer elemento de um sistema é capaz de
suscitar, despertar, em nossa mente, todo o conjunto de que faz parte. O hábito da associação por contiguidade
é que orienta toda a cultura ocidental e que dá ao verbal (escrito ou falado), o reconhecimento da competência
máxima para a expressão dos nossos pensamentos (Ferrara, 2007: 9).
112
portadora de um significado; o que caracteriza a legibilidade” (apud Walty; Fonseca; Cury,
2001: 15-16).
Durante a leitura, não se presta atenção à letra em si, porque nela o traço perde a visibilidade
que tem no desenho, mas artistas, poetas e designers exploraram essa visibilidade da letra
quando transformaram a palavra em imagem, brincando com seu aspecto figurativo.
Podemos afirmar que a escrita, desde seus primórdios, foi desenho, imagem. Os escritos mais
antigos, encontrados na Suméria (região sul da Mesopotâmia), eram caracteres cuneiformes
(sinais e números) gravados sobre placas de argila úmida, conhecidos como pictogramas.
Depois vieram os hieróglifos egípcios, escrita sagrada, feitos à tinta em rolos de papiros ou
entalhados na pedra, pictogramas que funcionavam como palavras ou sequência de
consoantes, escrita composta de imagens que mostrava pensamentos simples. Era uma
linguagem visual independente, que podia contar uma história sem palavras.
Com o tempo, houve uma extensão dos limites das escritas pictográficas, que eram incapazes
de registrar pensamentos abstratos. Surgem os ideogramas (escrita chinesa), e através de
associações lógicas de imagens simples, foram criando conceitos novos. Até chegar à escrita
alfabética, feita a partir de elementos fonéticos (baseado em sons), havendo uma transcrição
mais precisa do pensamento a ser traduzido em palavras. Linguagem gráfica, capaz de dar
uma verdadeira dimensão espaço-temporal ao pensamento do homem. De acordo com
Santaella e Nöth (2008: 68)
longe de ser uma simples cópia do som numa imagem do som, o alfabeto
codificou visualmente a descoberta de que os idiomas nascem de uma bateria
combinatória, isto é, de um sistema de regras para a combinação basicamente
arbitrária de um número finito e reduzido de sons.
Podemos afirmar que, palavra e imagem estão indissociavelmente ligadas desde sua origem
no traço, nas escritas pictográficas ou quando se complementam em livros, revistas, cartazes
ou nos modernos textos multimídias, logo colocar a imagem e a escrita em campos opostos
seria ingenuidade, uma vez que esses códigos se encontram em constante interação, sendo sua
relação variada e multifacetada.
113
Neves (2009: 311) afirma que “interação, subordinação, ordenação, hierarquização e
reconfiguração de características” são alguns recursos utilizados para a construção de
narrativas plásticas e literárias dentro da relação estabelecida entre palavra e imagem, no
espaço do livro.
Pensando nesses encontros, vem meus anseios em desvendar esse diálogo travado entre
palavra e imagem. Como vimos anteriormente, dentro da arte e da literatura no decorrer da
história foram diversas as possibilidades onde palavras e imagens se entrelaçavam dentro do
espaço do livro, diluindo as fronteiras que separavam essas linguagens. Artistas, poetas,
designers exploraram a palavra, a imagem e o espaço de forma única, articulando os
elementos estruturais da página e do formato livro de maneira inovadora.
De acordo com os primeiros registros na história, podemos observar que o livro é, desde o
princípio, um objeto variado, que nasce de uma longa evolução da escrita, do suporte, das
técnicas, da aprendizagem e do conhecimento. Desde as inscrições, em superfícies de pedras
nas cavernas a gravações em blocos de pedras; de placas de argila a metais variados e
suportes incomuns como, pele de peixe, ossos, carapaças de animais, e marfim.
Paiva (2010: 16) define escrever como “desenhar, traçar, marcar, designar, tornar visível e
riscar, arranhar e raspar de novo, começar de novo”, e para isso serviam as tabuletas de argila
ou madeira, recobertas com estuque ou cera para escrever e apagar, muito usadas devido à sua
baixa resistência ao manuseio.
Também, foram encontrados livros feitos: com casca de árvore na Indonésia, bambu na
China, inscrições em cortiça na Índia. Todavia, o livro mais antigo, que se tem notícia, é um
rolo de papiro (feito da haste desse vegetal), descoberto em Tebas, suporte muito difundido
para a escrita durante a Antiguidade. Por ser um material muito frágil, era colocado em
varetas formando os rolos ou volumen (em latim, rolo ou algo enrolado). Outro suporte muito
comum foi o pergaminho (pele de carneiro, cabra ou ovelha) ou o velino (vellum), feito de
pele de novilhos, muito fina e usado para a escrita de documentos mais valiosos. Estes meios
possibilitavam uma qualidade de escrita melhor e um material adequado à ornamentação, com
excelente efeito visual para as imagens.
114
O pergaminho deu origem ao precursor do livro (em sua forma que conhecemos atualmente),
com escrita em linha reta e o uso do verso da folha; possibilitando a criação da primeira forma
do códice (códex), manuscritos com as folhas reunidas e cobertas por uma capa. Durante a
difusão do Cristianismo, houve a generalização do códice; mesma época em que foi criado
um “padrão estético de ornamentação, divisão de capítulos, paginação, títulos, separação de
palavras, incremento de acabamento e encadernação” (Paiva, 2010: 22).
É quando a conjunção entre escrita e imagem fica evidente. Principalmente, no trabalho das
iluminuras, arte que nos antigos manuscritos unia ilustração e ornamentação, por meio de
pinturas com cores vivas, além de ouro e prata, ocupando parte do espaço reservado ao texto.
Na Idade Média, o texto feito à mão, era extremamente rico em linguagem visual e
ornamentos, sendo o trabalho dos escribas complementado pelos pincéis dos iluministas. “A
beleza e riqueza eram fundamentais nos escritos religiosos” (Lins, 2002: 19).
Com o passar do tempo, houve um grande desenvolvimento nos meios de impressão, sendo
produzidos novos suportes para a escrita alfabética, havendo o crescimento e sofisticação da
impressão. Abrindo novos campos de possibilidades, “rumo à exploração da natureza plástica,
imagética, do código alfabético” (Santaella e Nöth, 2008: 69).
Jakobson (2007: 65) aborda essa relação ao descrever e definir os possíveis tipos de tradução
entre signos: interlingual, intralingual, intersemiótica. A tradução intersemiótica seria a
interpretação dos signos verbais por meio de signos de sistemas de signos não-verbais, ou de
um sistema de signos para outro, como da arte verbal para a música, cinema, pintura, imagem.
115
Tradução criativa de uma forma estética para outra. Júlio Plaza (2010) também reflete sobre
essas questões da tradução de cunho intersemiótico, pensadas como forma de arte e prática
artística, transcriação que passa por diversas linguagens, como comunicação e artes.
Este é um tema complexo, uma vez que grandes teóricos se debruçaram sobre essa questão,
principalmente a partir do século XX, como Saussure, Jakobson, Chomsky, Derrida, Lacan,
estudando a palavra, e Gombrich, Arnheim, Panofsky e Gibson, pensando a imagem,
alargando assim a apreensão de suas complexidades.
Palavra e imagem não são mais o que os iluministas sonharam que fossem:
meios transparentes através dos quais a realidade se apresenta à
compreensão. Elas se tornaram tão enigmáticas, problemas para serem
decifrados, quanto é enigmática a realidade que, sempre com certa distorção
e ambiguidade, elas intentam representar (Santaella, 1992: 37).
116
2.2 Mira Schendel e o universo das palavras
Mira Schendel12
Mira Schendel foi escolhida por sua relação com poetas do grupo Noigandres, como Haroldo
de Campos (que a aproximou da Poesia e da Arte Concreta), pelo uso recorrente da palavra
em suas produções; possuindo uma série de trabalhos com construções visuais onde utiliza
letras, signos, escritas. Meus questionamentos são em torno da construção da palavra como
imagem em sua obra e possíveis desdobramentos, para depois costurar as relações palavra e
imagem dentro de sua produção de Livros de Artista, Cadernos.
A Arte Concreta brasileira é conhecida por sua proximidade com a fisicalidade das letras;
onde a imagem é transposta em construções estruturais precisas. Frequentemente em uma
Poesia Concreta totalmente autônoma. E, segundo Dias (2009: 19), Schendel situa-se tanto no
centro como no limite dessas poéticas, trabalhando com o sinal gráfico desenhável, afastando-
se do construído, preservando assim “tanto para o espaço pictórico-imagístico como para o
signo abstrato uma vida reiteradamente pulsante e mutuamente penetrável e uma comunicação
existencial”.
Mira Schendel (1919-1988) foi uma artista fortemente intelectualizada, com preocupações em
filosofia e metafísica. No campo gráfico, suas especulações estéticas giravam em torno do
espaço, como o silêncio ou o vazio, e, do puro signo linguístico. Produziu e pesquisou
exaustivamente, explorando diversas técnicas (óleo, têmpera, monotipia, tipos transferíveis,
grafite, aerógrafo) usando a composição de letras no espaço da tela ou do papel.
Importante dar destaque à sua forte relação com a linguagem, o que transformou em sua
principal fonte visual, tanto escrita como gesto, ou seja, “como algo verbalmente inteligível e
como matéria estritamente visível” (Pérez-Oramas, 2010: 11).
12
Couri, 2009: 229.
117
Realizou uma arte impregnada de linguagem; do alfabeto à poesia, da letra à frase, do silêncio
ao diálogo. Buscando sempre uma materialidade escrita e dos signos, justamente em uma
época em que muitos intelectuais (antropólogos, cineastas, filósofos) fizeram da linguagem
um paradigma do pensamento e do próprio mundo. Nos, Estados Unidos e Europa foi o
período em que estava surgindo uma nova forma de arte, a arte conceitual (vanguarda surgida
no fim da década de 1960). Não havia um suporte específico ou determinado material, o que
importava era a ideia ou o conceito da obra.
Trabalhou com a materialidade escrita, e embora sua arte trate de ideias e conceitos, a
execução é um aspecto muito importante em sua produção, e não apenas uma questão menor,
como ocorre com os artistas conceituais. Enquanto o Conceitualismo é uma arte centrada no
protagonismo ideal da linguagem, Schendel é uma artista “focada no aspecto da linguagem,
cujas obras manifestam e mostram a linguagem encarnada e vinculativa” (Pérez-Oramas,
2010: 14).
Em sua obra está interessada na materialidade da linguagem, ou seja, em seus aspectos como
aparência visual e material, resultando em uma arte que não se baseia na clareza da
linguagem, mas sim em seu potencial de ambiguidade:
As imagens se manifestam por meio dos textos, e estes por meio das imagens,
– na realidade, as imagens são textos, e os textos são imagens. [...] Ocorre
uma reinvenção da arte visual por meio de operações envolvendo a
linguagem (Pérez-Oramas, 2010: 16).
Schendel sempre foi muito experimental, gerando um mundo próprio repleto de signos,
símbolos, letras e números; livres e desprovidos do conteúdo que carregam. Alguns críticos a
consideram uma artista minimalista, outros como caligráfica, não havendo unanimidade de
opiniões sobre ela.
Nasceu em 1919, em Zurique e veio para o Brasil em 1949. Começou a pintar dedicando-se à
natureza-morta, onde usava objetos do cotidiano e fazia composições de espaços interiores,
explorando as possibilidades da pintura, experimentando materiais e texturas.
Em 1951, participa da I Bienal de São Paulo, com a pintura a óleo sobre cartão, Paisagem.
Momento em que aconteciam diversas atividades, promovidas pelos primeiros museus de arte
moderna, fundados no Brasil; provocando mudanças significativas na cultura artística do país.
Esse evento trouxe diversas tendências internacionais, com destaque para a Arte Concreta
alemã e suíça; e para os artistas italianos, Lucio Fontana, com seus conceitos espaciais, e
Giorgio Morandi.
O artista suíço Max Bill, autor da obra Unidade tripartida, premiada nessa Bienal, exerceu
forte influência sobre os artistas brasileiros. Os trabalhos do pintor construtivista uruguaio
Joaquín Torres-Garcia que também foram expostas, chamaram a atenção de Schendel. O
contato com esses artistas a fez refletir sobre a sua própria relação com a arte e repensar sua
maneira de produzir.
Em São Paulo, e no Rio de Janeiro, estavam ocorrendo debates artísticos entre os artistas da
tradição figurativa, que tinha Emiliano Di Cavalcanti, Candido Portinari e Lasar Segall como
representantes, em oposição aos defensores da Arte Abstrata. As exposições de Alexander
Calder (1949) e de Max Bill (1950), no Museu de Arte de São Paulo, também causaram
grande impacto no meio artístico.
A polêmica em torno da Arte Concreta, surgida na I Bienal de São Paulo, aumentou com a
apresentação dos artistas que integravam o Grupo Ruptura, no Museu de Arte Moderna, de
São Paulo, em 1952. Esse grupo era liderado por Waldemar Cordeiro, cujo Manifesto fazia
uma “crítica à arte naturalista e a valores expressivos e simbólicos. Propunham que a arte
alcançasse o estatuto autônomo do conhecimento, considerando o espaço, o tempo, o
movimento e a matéria como elementos essenciais” (Marques, 2011: 16).
Schendel veio morar em São Paulo, em 1953, entrando em contato com a efervescência da
vida cultural e do momento de renovação da Arte Moderna brasileira, mesma fase em que sua
pintura estava na fronteira entre a figuração e a abstração. Nesse momento, as poéticas
abstracionistas ganhavam cada vez mais espaço em São Paulo, e o mesmo ocorria no cenário
119
internacional. Com a série Fachadas ou Geladeiras (entre 1954 e 1956) a artista traduziu a
maneira que assimilou os pressupostos da Arte Concreta e as discussões em foco nos meios
artísticos, marcando sua transição para a abstração. Começou a fazer uso de matéria densa,
cores escuras (tons ocres e cinzas opacos). Suas pinturas pareciam advir de um exercício de
abstração das superfícies plana alcançadas pelos objetos de Morandi, sendo obras com formas
irregulares e com um impulso construtivo, em busca de ordenação geométrica.
Pensando na relação Arte, Poesia e Design, observo que em 1953, a artista trabalhou como
desenhista na seção de serigrafia da Tipografia Mercantil e também desenvolveu croquis para
cartazes para a Companhia Cinematográfica Vera Cruz. Entre 1960 e 1964 realizou projetos
gráficos de capas de livros para a Editora Herder, e ilustrações para contos literários,
ressaltando a fluidez das fronteiras entre as artes e a relação entre palavra e imagem.
Na Bienal, de 1955, entra em contato com a Bauhaus e com as obras de Constantin Brancusi,
estabelecendo uma maior relação com a produção de artistas brasileiros e estrangeiros, mesma
fase em que passou a conviver com o crítico de arte Theon Spanudis, o filósofo Vilém Flusser
e o físico, filósofo e crítico de arte Mario Schenberg, nomes significativos para sua trajetória e
pensamento artístico. Mais tarde manteve contato com o poeta Haroldo de Campos, formando
assim o núcleo intelectual de amigos, os quais exerciam, às vezes, a função de críticos de seus
trabalhos.
Dias (2009: 162) afirma que Flusser considerava os trabalhos de Schendel extraordinários por
mobilizar um novo tipo de força imaginativa, e que possibilitava a visualização de
pensamentos.
Flusser (2007: 102-105) explica que as superfícies seriam a base das imagens, que podem ser
cartazes, filmes, fotografias, pinturas, vitrais ou inscrições rupestres. Ao contrário da leitura
linear, a superfície permite uma leitura diferente da mensagem, ou seja, num olhar podemos
abarcar sua totalidade e depois analisá-la seguindo os caminhos sugeridos pela composição da
imagem. A superfície (imagem) comunica todo seu conteúdo de uma vez.
120
Mira Schendel inicia suas pesquisas com materiais transparentes, semitransparentes ou
translúcidos com a série Bordados, entre 1962 e 1964 (primeiras obras feitas em papel
japonês, conhecido como papel-arroz). Eram desenhos feitos com ecoline, cujos motivos
geométricos, faziam relação direta com o ato de bordar. O papel seria o tecido e os traços os
fios do bordado. Depois começou a trabalhar com a aquarela e o nanquim sobre o papel
umedecido, série que ficou conhecida como Bombas (1965). Contudo, anteriormente, tinha
feito algumas experiências usando a têmpera com elementos do repertório de Morandi.
Figura 71: Schendel, s/ título (série Bombas), 1965. Nanquim sobre papel.
Pouco a pouco, sua obra vai distanciando-se da estética formal do grupo concretista de São
Paulo, a forma deixa de ser plástica para ser cognitiva, “as formas geométricas tornam-se
progressivamente irregulares e assimétricas em relação às bordas do suporte e transmitem
intensidade emocional” (Dias, 2009: 65), o que a aproxima mais do conceito de forma
expressiva dos teóricos, do grupo neoconcreto do Rio de Janeiro, fazendo o uso subjetivo da
cor e demonstrando uma sensibilidade, para o espaço vazio em seus trabalhos.
121
Ao começar sua pesquisa de monotipias sobre papel-arroz, conhecidas como linhas,
arquiteturas ou linhas em U, letras e símbolos matemáticos, e escritas (com trechos
compostos em diferentes idiomas), inicia sua relação com a palavra em sua produção.
Em outras pinturas, acrescentou palavras e letras impressas, recurso que mais tarde foi muito
explorado em trabalhos sobre papel e em acrílico. Este procedimento remete às composições
ideogramáticas (sinais exprimindo uma ideia) de Paul Klee, artista cujas obras foram
referências para a artista. Para Klee, não havia diferença entre desenho e escrita, estas seriam
ações idênticas (devido à cursividade de ambos), em sua obra, figura e letras são dispostas na
tela como linhas de um texto, sendo representadas no mesmo espaço.
A obra, O retorno de Achilles I, foi provavelmente a primeira pintura, na qual a artista aplicou
letras com padrão industrial. Sobre a base a óleo, colocou trechos da Ilíada, de Homero, o que
foi uma exceção em sua obra, já que costumava com grande frequência incluir “letras e
números em um léxico banal, desenraizado da tradição literária” (Marques, 2011: 22).
122
Com a escrita associada à imagem, Dias afirma que seus trabalhos passaram a ser
“classificados juntos ao de Cy Twombly, Mark Tobey e Hans Hartung, e outros, como
exemplos de pintura-escritural” (2009: 178).
Schendel gerou um mundo próprio, repleto de signos, símbolos, letras, números, livres e
desprovidos do conteúdo semântico. Além do uso recorrente de palavras em diversos idiomas,
usou muito a espiral, associada ao seu interesse em pesquisar as ideias de movimento,
progressão e duração, desdobramentos de sua pesquisa de tempo e espaço; manteve assim,
uma atividade experimental durante a maior parte de sua trajetória, investigando grande
variedade de material, intercaladas com suas reflexões filosóficas sobre a existência humana e
o fazer Arte em pinturas, gravuras, desenhos, objetos e instalações.
Monotipias
As Monotipias eram um conjunto de aproximadamente dois mil desenhos, realizados entre
1964 e 1966, e retomados em 1970. A artista usou como base desses trabalhos o papel
japonês, que possuía uma superfície delicada e transparente, permitindo olhar o desenho
através desse suporte. A superfície era preenchida por letras, formas, manchas, pontos,
massas, signos.
O autor, sempre defendeu, que as monotipias de Schendel deveriam ser compreendidas antes
como desenho, do que como um processo de impressão. Os desenhos foram feitos por trás,
pela ação de algum instrumento, mais ou menos pontiagudo, sobre as costas do papel-arroz
posto sobre uma placa de vidro entintada e coberta com talco; fazendo com que as imagens
surgissem da própria trama do papel poroso, como um material orgânico, quase como se
confundisse com sua textura.
Sempre com o espírito investigativo, começou a pensar a forma como o material e o gesto
respondiam um ao outro, promovendo relações entre papel, tinta e gestualidade.
123
Nesses trabalhos, que resultam da tenuidade da tinta sobre a fragilidade do
papel japonês, Mira operou com campos vazios ativados por linhas
irregulares e, junto às marcas gestuais, aplicou letraset, traçou frases e
símbolos. Embora a transparência das monotipias contrastasse com a
materialidade de sua obra pictórica, ambos os processos aparecem resultar
de uma vontade de alcançar a essência das coisas (Marques, 2011: 23).
O vazio, presente em suas monotipias não se opõe à linha, um depende do outro para existir.
O vazio do papel é um vazio ativo, e a linha, antes de dominar expressivamente o campo em
que é traçada, é absorvida por ele. Em uma carta a Guy Brett, Schendel afirmava que “a linha,
na maioria das vezes, apenas estimula o vazio. Não estou certa de que a palavra estimular
esteja correta. De qualquer modo, o que importa na minha obra é o vazio, altivamente o
vazio” (2011: 54).
Em suas produções, o espaço aparece como uma potência de conexão, anterior à distinção
entre forma e conteúdo. Suas monotipias, em sua maioria, possuem formato vertical, pois a
artista considera a verticalidade como a mesma do corpo, o que acaba contribuindo para a
constituição desse espaço e da experiência que tem no mundo. Suas linhas dão origem ao
espaço e o captam ao mesmo tempo, dividem o papel e acabam definindo as relações
espaciais, que nos fazem vislumbrar letras, figuras abertas, fechadas ou em processo de se
formar, sempre relacionando-se com o espaço ao seu redor.
124
Schendel, sempre explorou a materialidade do papel. A transparência desse suporte parecia
ser a continuidade de sua relação com o entorno, podendo assim a artista estabelecer uma rica
relação entre o ar, a atmosfera ao redor, a transparência e a leveza do corpo do papel. A
linguagem presente em grande parte de seus papéis é alusiva e indireta, buscando uma escrita
originária, anterior aos significados já estabelecidos.
“Seus gestos fixados nos papéis, assim como suas letras e palavras manuscritas, são
instituintes; ao mesmo em que instituem novos sentidos, recorrem à origem do próprio gesto,
ao que ele possui de primordial e inaugural” (Alves, 2011: 58). Por isso o silêncio e o vazio
são tão significantes em sua obra, é como se reinventassem a caligrafia e a própria língua. Em
sua escrita, nem sempre havia coerência dentro de um sistema semântico, a artista não seguia
regras gramaticais, parecia que misturava diversos idiomas, articulando sua liberdade criativa.
A artista, também usou o signo em seu aspecto gráfico em vários trabalhos, como nas séries
Toquinhos (1970/1971) e Datiloscritos (1974), revelando algo que não pertence a nenhuma
língua e de onde nascia uma complexa relação entre o desenho e a palavra, o gestual e o não
gestual, em sua produção.
125
Datiloscritos foram experimentos, que Schendel realizou com a máquina de escrever,
explorando a lógica e a matemática. A partir dos caracteres datilografados, formou desenhos
geométricos, que pareciam tramas ou massas sólidas conforme o olhar sobre o trabalho.
A repetição incessante de uma mesma letra ou sílaba fazia com que seu significado se
dissolvesse; com isso o signo ganhava importância, desdobrando-se graficamente no espaço.
Schendel também explorou muito a dimensão gráfica dos tipos nos Cadernos, quando
rotacionava as letras em 360 graus, o que fazia com que perdessem sua correspondência com
a oralidade.
Droguinhas e Toquinhos
Seu trabalho ganha maior consistência física com Droguinhas (formas tridimensionais feitas
com trançados de fios grossos de papel-arroz, de 1966) e depois com a série Toquinhos
(1970/1971), obras feitas sobre suporte de papel artesanal tingido e colado sobre outras
formas, e também colava letras formando imagens.
O papel vai se transmutando em sua trajetória, cada vez mais foi adquirindo um corpo mais
sólido, tendo uma presença maior no espaço tridimensional. Essa noção de corpo frágil e
sólido, permanente e descartável, matérico e espiritual, aproximava-se das questões filosóficas
que a inquietavam. Corpo reflexivo, não que apenas ocupe espaço.
Figura 75: Schendel, s/ título, série Toquinhos, 1972. Letra adesiva (letraset) e blocos de acrílico montados
sobre placa de acrílico.
126
Em meados dos anos 1960, Schendel desenvolvia capas de livros paralelamente ao seu
processo de criação artística, e para essa atividade era necessária muita precisão e habilidade
manual. Com a criação em artes gráficas desenvolveu um sentido de equilíbrio visual e rigor
na sua execução, qualidades que provavelmente transportou para seu trabalho artístico e que
podem ser comprovadas ao analisar a produção Toquinhos.
Letras (tipo sem serifa e fonte Futura) e números assumiam assim um caráter novo,
puramente plástico, pela redução de suas formas a círculos e retas. O tratamento da artista aos
sinais gráficos, junto com o espaço que os circunda, fez com que os mesmos adquirissem
significados interessantes.
Em 1968, essas obras foram consolidando-se, e Schendel começou a trabalhar com peças de
acrílico transparente (com pequenos cubos do mesmo material), sobre os quais ela aplicava
letras, signos gráficos ou pedaços de papel japonês tingidos com ecoline, estudando as
possibilidades de planos pictóricos luminosos.
Objetos gráficos
Desenvolvidos a partir da segunda metade dos anos 1960, essa série não tem espaços vazios,
onde a artista trabalhou com suporte de papel-arroz em grandes dimensões, aplicando letras
manuscritas, impressas ou letraset.
Schendel já havia transformado a escrita em quase objetos em seus grafismos sobre papel-
arroz, para depois transpô-las para o espaço nos Objetos Gráficos, onde novamente explorou
a exaustão: letras, signos e palavras desconstruídas. Trabalhou com textos inteligíveis,
puramente visuais, ou seja, sem tradução, parecendo que essas linhas escritas foram usadas
para tecer uma nova realidade, “oscilando entre uma trama de significados e uma dimensão
material mais opaca” (Naves, 2010: 63), gerando continuidade e emaranhamentos.
127
Figura 76: Schendel, s/ título, série Objetos gráficos, 1969. Grafite e óleo sobre papel, entre placas de acrílico
com tipos transferíveis.
Letras e grafismos são sobrepostos, ressaltando a transparência das obras, que foram
montadas entre duas placas de acrílico e suspensas por fios de nylon, permitindo uma visão de
ambos os planos, não havendo frente ou verso, o que possibilitava uma leitura circular e
virtual. “A sobreposição dos elementos intensificada pela transparência das obras, restituía-
lhes uma espessura que a clareza das palavras havia posto de lado” (Naves, 2010: 59 e 60).
Figura 77: Schendel, s/ título, série Objetos gráficos, 1972. Tipos transferíveis entre placas de acrílico fosco
transparente.
128
A repetição, sem parar, de uma mesma letra faz com que seu significado se dissolva, fazendo
com que o signo se desdobre graficamente no espaço do suporte.
Nesses objetos que contém constelações de letras e signos e palavras desconstruídas, a artista
trabalhou conceitos de tempo-espaço, transparência e opacidade. Objetos que são esculturas
escritas, mas com textos ininteligíveis.
129
2.3 Cadernos: narrativas visuais
Como desdobramento de seus trabalhos, entre 1970 e 1971 criou mais de 150 Cadernos13, nos
quais utilizou palavras, letras e signos gráficos, aliando transparência às composições
geométricas em séries. Essas obras foram divididas em séries: Cadernos transparentes,
Desenhos lineares, Furinhos, entre outros, e foram expostos pela primeira vez no Museu de
Arte Contemporânea de São Paulo, nessa mesma época. Os Cadernos eram feitos com folhas
de acetato, papel branco ou transparente (papel vegetal) e eram encadernados com capas de
acrílico ou papel mais encorpado.
Segundo Carrión, no livro da nova arte as palavras não transmitem nenhuma intenção, servem
apenas para formar um texto, que é elemento do livro. “Este livro, em sua totalidade, que
transmite a intenção do autor” (2011: 52). Emprestando sua definição sobre os livros da nova
arte, acredito que as produções Cadernos possam ser consideradas verdadeiros Livros de
Artista, onde, Schendel trabalhou signos verbais de forma não semântica, sem a preocupação
de transmitir uma determinada mensagem.
Uso de letras e palavras despojadas de intencionalidade, que não são portadoras de mensagens
e não estão ali para transmitir determinadas imagens mentais com determinada intenção:
“estão ali para formar, junto com outros signos, uma sequência de espaço-tempo que
identificamos com o nome do livro” (Carrión, 2011: 43).
Figura 78: Schendel, s/ título, série Cadernos, anos 1971. Letraset sobre papel vegetal.
13
Mira Schendel, pintora. Catálogo da exposição. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2011: 121.
130
Cada livro requer uma leitura diferente, conforme o material utilizado, tipo de encadernação,
formato, sequencialidade. O leitor precisa de tempo para experienciar cada sensação
provocada ao folhear as páginas, tocar e sentir texturas, interferências em forma de relevos,
detalhes. Tato, olhar, toque. O ritmo da leitura muda, aumenta, acelera. E nem seria
necessário ler o livro inteiro, uma vez que “a leitura pode parar no momento em que se
compreende a estrutura total do livro” (Carrión, 2011: 65). Nos Cadernos de Schendel, fica
evidente a relação com o ritmo e movimento, estabelecendo uma relação cinética ao manusear
suas páginas, instigando inúmeras leituras do trabalho.
Nos Cadernos conhecidos como furinhos, Schendel oferece ao espectador “furos como pontos
de vista que, graças a perfurações concêntricas, desaparecem e ressurgem no ritmo do virar
das páginas” (Dias, 2009: 275). Os furos vão se multiplicando, como em um jogo ou
131
brincadeira do olhar. Podemos pensar em escritas silenciosas, formando narrativas visuais. O
suporte é feito de um papel mais consistente, permitindo o jogo das perfurações.
Figura 81: Schendel, s/ título, série Cadernos, anos 1971. Letraset sobre papel vegetal.
Figura 82: Schendel, s/ título, série Cadernos, 1971. Letraset sobre papel vegetal, capa de papelão plastificado
com parafuso de metal.
132
Nessas produções há uma forte presença das linhas e de letras emergindo e submergindo no
espaço vazio, conforme são folheados; sendo o resultado de suas pesquisas sobre as questões
tempo-espaço e transparência. A artista tinha pouco interesse na cor, dando maior importância
às variações de densidade. O movimento é orbital, ou seja, volta-se constantemente para si
próprio reinventando a noção de velocidade em forma de livro. O aspecto cinético é
acentuado ao serem folheados, fazendo com que letras e formas se movimentassem.
Figura 83: Schendel, s/ título, série Cadernos, 1970. Letraset e técnica mista sobre papel.
Figura 84: Schendel, s/ título, série Cadernos, 1971. Letraset sobre papel encadernado de acrílico.
133
Sinais alfabéticos se juntaram às letras, com diferentes tamanhos e formatos, onde a artista
usou nanquim, decalque, colagens. Nesses trabalhos ocorria a
Além da encadernação tradicional (dois ou três furos), outra forma escolhida para os
Cadernos era um pino ou parafuso com um furo; permitindo o movimento em torno de um
eixo circular e gerando um jogo visual ao ser manuseado. Circularidade, com uma leitura
contínua, sem começo, nem fim.
Borges considera que a encadernação tradicional leva a uma leitura linear, partindo da capa ao
final da publicação, já a maneira original com um único furo, permite uma leitura visual fora
da “segmentação linear – seja do texto, seja do tempo” (2011: 153). Tratando a escrita e os
espaços vazios do suporte em um mesmo nível de interação dinâmica. Mais uma vez,
Schendel não trata o texto como o elemento central ou mais importante da obra.
Figura 85: Schendel, s/ título, série Cadernos, 1971. Letraset sobre papel.
Figura 86: Schendel, s/ título, série Cadernos, 1970. Letraset sobre papel.
Figura 87: Schendel, s/ título, série Cadernos, 1971. Letraset e grafite sobre papel.
Para trabalhar suas questões filosóficas e existenciais, Schendel buscou através da palavra
escrita, um meio ao mesmo tempo concreto e poético, em direção à universalidade da
linguagem. Em sua obra, a palavra se transforma em imagem, e a imagem é palavra. A leitura
de seus Cadernos é infinita e experimental; onde pesquisou circularidade, movimento,
profundidade, transparência, materiais e encadernações diversas, espaços em branco da
página. A maneira como tratou a palavra em suas criações, com valor plástico, permitiu uma
abertura visual de letras e signos ao tratá-los como imagens.
135
Em suas produções, destaca-se a importância visual dada ao espaço branco da página,
permitindo que figura e fundo dialogassem. O respiro, a pausa, o silêncio, enfim, o uso do
branco do papel como espaço compositivo, conceitos que também são importantes na Poesia
Concreta. “A poesia concreta começa por tomar conhecimento do espaço gráfico como agente
estrutural. Espaço qualificado: estrutura espaço-temporal” (Campos; Pignatari; Campos,
2006: 215). Assim como Mallarmé que explorou o caráter plástico das letras, pensando-as
como figuras desenhadas no suporte.
Haroldo de Campos considerava Mira Schendel como uma artista pensadora, e diferentemente
dos artistas concretos que refletiam em termos racionais sobre a arte, tinha um pensamento
filosófico que se relacionava com o místico, “com certa mística voltada para a essência”
(1977, apud Marques, 2011: 31); realizando assim uma arte impregnada de inquietações
metafísicas de diferentes matrizes.
A artista nos faz refletir sobre a palavra em seus Livros de Artista. Neles, palavra e imagem
dialogam em suas páginas, as letras são tratadas como signos, mas não negadas como
fonemas, porque permanece a possibilidade de leitura, embora suas letras e palavras sejam
muito mais visuais que legíveis.
Finalizo com um trecho do poema feito pelo poeta Haroldo de Campos 14 que traduz a relação
entre palavra e visualidade na obra de Schendel:
14
Texto publicado no catálogo Mira Schendel, Rio de Janeiro, MAM Rio de Janeiro, maio de 1966, apud:
SALZSTEIN, Sônia (org.). No vazio do mundo – Mira Schendel. São Paulo: Marca D’Agua, 1996, p. 260.
136
CAPÍTULO 3: A IMAGEM DA PALAVRA
137
3.1 Poeta inventor: Ronaldo Azeredo
O poeta Ronaldo Azeredo (1937-2006) transitou entre a palavra e a imagem usando riqueza
de materiais, formas e experimentações; trabalhando com poemas concretos, poemas-livros,
poemas-objetos, objetos tridimensionais. Por isso, a escolha de suas obras para exemplificar a
quantidade de relações entre verbal e visual. Ao romper com o verso, passou a explorar uma
série de linguagens durante seu percurso criativo, o que lhe possibilitou encontrar um
caminho único, realizando uma trajetória bastante diferenciada.
Segundo a teoria formulada pelos poetas concretistas, concebida por Augusto de Campos,
Décio Pignatari e Haroldo de Campos, além de Ronaldo Azeredo e José Lino Grünewald
(década de 1950), a ideia era trabalhar de forma integrada a sonoridade, a visualidade e o
sentido das palavras, propondo novas maneiras de fazer poesia. A expressão verbivocovisual
(termo cunhado pelo escritor James Joyce), que sintetiza a “exploração das dimensões
semântica, sonora e visual do poema” (Bandeira; Barros, 2008: 9), permaneceu no horizonte
da produção desses poetas, e se desdobrou em suportes e meios técnicos diversos, como livro,
jornal, objeto, cartaz, videotexto, holografia, vídeo, internet.
A partir da base da Poesia Concreta, Azeredo realizou uma obra marcada pela criatividade,
deixando uma rica contribuição à literatura brasileira. Visava uma arte geral da palavra. Desde
o começo de sua produção, teve ligação com a música contemporânea, com as artes visuais e
o design gráfico de linhagem construtivista, havendo em seus poemas, elementos dessas
linguagens.
Azeredo teve trinta e um poemas e trabalhos publicados ao longo de sua carreira, além dos
cinco textos em prosa (Siqueira Leite, 2011: 12), entre eles o Monstro Moonzebur e O driz da
feia (1954), pequenas fábulas baseada em leituras de Finnegans Wake, do escritor James
Joyce (1882-1941). Realizou edições seriais e muito limitadas de poemas visuais, objetos,
esculturas, instalações, uma vez que havia restrições técnicas e materiais para reprodução de
suas obras.
138
Figura 88: Amor, poema de Oswald de Andrade publicado em seu livro Primeiro Caderno do Aluno de Poesia,
1927.
Como referências literárias para sua formação, é necessário destacar sua admiração pela obra
de Oswald de Andrade e por Patrícia Galvão, a Pagu, dois ícones do Modernismo brasileiro:
Oswald foi meu primeiro pai intelectual. Para mim, foi uma explosão. Saber
da vida dele, do poeta que foi, o primeiro a fazer teatro moderno, e tudo, até
as mulheres que ele teve. Sou fã da Pagu. Fiz um trabalho, o da pirâmide, em
que coloquei a Pagu. Oswald foi importante na minha vida. Me levou à
“raiva”, à crítica, à devoração antropofágica das coisas. A primeira prosa
violenta que comecei a fazer, eu devo ao Oswald, uma prosa, como diz o
Augusto, cheia de “erros e urros”. Tenho uma admiração muito grande por
ele (Azeredo, apud Bandeira; Barros, 2008: 145 e 147).
Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos foram seus grandes mestres. Augusto, o fez
nascer poeticamente e a convivência com Haroldo e Décio lhe trouxe conteúdo intelectual,
informação. O contato com os trabalhos desses poetas abriram novos caminhos para ele,
refletindo em sua produção.
Azeredo nasceu 1937, no Rio de Janeiro. É por meio de suas irmãs Lygia Azeredo (esposa do
poeta Augusto de Campos) e Ecila Azeredo (ex-namorada de Décio Pignatari), que entra em
contato com as obras dos poetas do Concretismo brasileiro. Em 1954, aos dezessete anos,
surpreende seu cunhado Augusto de Campos, com o seu primeiro poema: ro.
139
Foi o mais jovem dos concretistas. O único poeta concreto que não escreveu versos. Realizou
obras marcantes para o período, como ruasol, lesteoeste e velocidade; até chegar a uma poesia
não-verbal, voltada para a visualidade, constituindo exemplo dos vários procedimentos
empregados na construção poética pelos concretistas. Muitos de seus poemas não têm título,
nem contêm palavras.
A primeira revista saiu em 1952, mesma data em que se aproximaram dos artistas do grupo
Ruptura (São Paulo). Adotaram como referências para suas experimentações de linguagem: a
técnica de construção poética de Stéphanne Mallarmé, com o poema Un Coup de Dés,
(organização do pensamento em subdivisões prismáticas da ideia e a espacialização visual do
poema sobre a página); Ezra Pound e The Cantos, poema épico iniciado em torno de 1917,
onde Pound emprega seu método ideogrâmico, permitindo agrupar fragmentos de realidades
diversas; James Joyce, com Ulisses e Finnegans Wake, com a técnica de palimpsesto,
narração simultânea através de associações sonoras, amálgama de palavras, apresentação
verbivocovisual; e.e. cummings, que “desintegra as palavras para criar, com suas articulações,
uma dialética de olho e fôlego, em contato direto com a experiência que inspirou o poema”
(Campos apud Campos; Pignatari; Campos, 2006: 56), resultando na Poesia Concreta.
No Brasil, elegeram como referências João Cabral de Melo Neto, que possuía rigor
construtivo, consciência plena da linguagem e racionalismo no fazer poético, e Oswald de
Andrade, que devido ao seu “caráter experimental e inovador, poder de síntese, rupturas
sintáticas e fragmentações” (Siqueira Leite, 2011: 38), tornou-se uma grande referência para o
grupo e um dos autores mais apreciados por Azeredo.
De acordo com Khouri (2006: 22), a Poesia Concreta revolucionou o mundo da Poesia, sendo
um divisor de águas no Brasil:
140
Haroldo de Campos afirma que pela primeira vez a poesia brasileira é totalmente
contemporânea, pois participou da formulação de um movimento poético de vanguarda em
termos nacionais e internacionais:
Já integrando o grupo Noigandres, Azeredo participou com o poema mínimo múltiplo comum:
ro, a e z, da I Exposição Nacional de Arte Concreta, no Museu de Arte Moderna (São Paulo),
em 1956. Onde ocorreu o lançamento oficial da Poesia Concreta, e participou também da
Exposição de Arte Concreta, no Rio de Janeiro (1957), juntamente com poetas, artistas,
designers, escultores com pensamentos e obras de linhagem construtivista.
Apesar da diversidade dos integrantes dessa exposição, havia entre eles, interesses em
comum. “A aliança conteúdo-forma, a indiferenciação entre suporte/página e pintura/texto; o
jogo entre figura e fundo, criando ambiguidades; o interesse pela geometrização, precisão
matemática e repetição” (Siqueira Leite, 2011: 48). A exploração dos efeitos visuais na busca
de equilíbrio e harmonia uniu artistas e poetas.
Ronaldo Azeredo trabalhou muito bem dentro desse espírito de coletividade, uma vez que
para realizar suas produções, precisava da colaboração de profissionais de diversas áreas,
integrando diferentes linguagens, como artes, design, poesia, fotografia, gráficos.
Seu poema mínimo múltiplo comum foi publicado na revista Noigandres 3 poesia concreta
(1956), que foi lançada na ocasião da I Exposição Nacional de Arte Concreta. O poema a,
marca o momento em que iniciava suas experimentações, e foi quando passou a explorar a
141
fragmentação e o espaço da página de maneira não convencional, fazendo o uso da página
como elemento poético.
Ainda, na revista Noigandres 3 aparecem artigos teóricos, que discutiam as bases do trabalho
do grupo, como A obra de arte aberta, de Haroldo de Campos e Nova poesia: concreta, de
Décio Pignatari. “Os três poetas passam a colaborar com o Suplemento Dominical do Jornal
do Brasil, então em fase de renovação, o que ajuda a ampliar a repercussão do movimento
concreto, tanto na poesia como nas artes visuais” (Bandeira; Barros, 2008: 24).
142
Figura 90: capas das revistas Noigandres 3 (1956); Noigandres 4 (1958) e Antologia Noigandres 5 (1962).
Começa sua parceria com o pintor Hermelindo Fiaminghi, para a elaboração gráfica de seus
poemas, a primeira de muitas com artistas plásticos. Fiaminghi foi responsável pela produção
dos cartazes dos poemas de Azeredo, para a I Exposição Nacional de Arte Concreta.
Em 1957, muda-se para São Paulo, onde conhece Amedea Pomelli, posteriormente casam-se.
Essa foi a época do Grupo do Cambuci, onde mantém amizade com Orlando Marcucci e
Florivaldo Menezes, e mais tarde com o pintor Alfredo Volpi.
Figura 91: Fiaminghi, Círculos concêntricos e alternado, 1956. Esmalte sobre eucatex.
143
Seus poemas-cartazes ruasol, lesteoeste e velocidade, foram publicados na revista Noigandres
4 (1958); que teve o artista Fiaminghi responsável por todo design gráfico da revista e da
capa. Essa edição, tinha um formato maior que os números anteriores, e integravam doze
lâminas ou poemas-cartazes, o poema-sequência Life, de Décio Pignatari. Além do plano-
piloto para a poesia concreta, anunciando o momento de maturidade do grupo, que “inclui a
revivescência da utopia construtivista na concepção de uma arte geral da palavra, poesia como
design de linguagem” (Bandeira; Barros, 2008: 30). Azeredo, apesar de ser integrante do
grupo desde a Noigandres 3, não assina o manifesto, justificando:
Azeredo era avesso à exposição, e dentre os integrantes do grupo Noigandres, foi o menos
envolvido com a teoria do movimento, embora concordasse com as ideias de Augusto,
Haroldo e Décio, considerando-os os intelectuais que fundaram a Poesia Concreta.
Nos poemas-cartazes, houve o uso exclusivo da letra Futura Bold (sem serifa), sugerindo a
reprodutibilidade industrial e sua difusão na cidade; que coincidia com o momento histórico
do Brasil. Os anos progressistas de Juscelino Kubitschek, com o projeto de um país moderno
e a construção de Brasília. Segundo Haroldo de Campos, a ideia era criar poemas como
“experiências de linguagem, protótipos verbivocovisuais que explorem formas de
sensibilidade no ambiente urbano-industrial de uma nova sociedade” (apud Bandeira; Barros,
2008: 30).
144
Figura 92: Azeredo, poema ruasol, 1957.
Marcado pela visualidade, com estrutura dinâmica que move por si própria e isomorfismo
espaço-tempo, simulação de movimento. Para Watanabe, a “velocidade não se encontra
representada somente de modo figurativo, característica do Futurismo, mas também se realiza
na dinâmica da mente do leitor” (2009: 98). Conforme a leitura, a velocidade vai se formando,
ficando cada vez mais rápida. Velocidade que sugere aceleração, movimento, deslocamento.
Velocidade que se encontra no processo total de seu desdobramento.
145
Noigandres 5, orelha), e a imagem da capa foi baseada na obra do artista. Volpi era autodidata
nas artes e participou do Grupo Santa Helena, nos anos 1940.
Volpi era muito admirado pelos concretistas. A cor, em suas obras, vai se purificando à
medida que a arquitetura visual de suas casas vai se confundindo com a do próprio quadro. E
com a variação de poucos elementos, como janelas ou portas, provoca movimento, gerando
uma estrutura visualmente dinâmica. Segundo Pignatari, sua educação e cultura visual e sua
capacidade de rigor na organização de formas fazem de Volpi “um dos artistas mais
conscientes e consequentes na evolução formal da própria obra” (Campos; Pignatari; Campos,
2006: 92).
No final dos anos 1960, cresce a divulgação da produção dos poetas concretos, ampliando
ainda mais essa rede de relações internacionais, após o encontro entre o poeta Eugen
Gomringer (1954, na Alemanha) e Décio Pignatari; o primeiro publicou, como extratexto da
revista Spirale, na Suíça, uma Kleine Antologie Konkreter Poesie (Pequena Antologia de
Poesia Concreta), reunindo dezesseis poetas, de várias nacionalidades, dentre eles os
brasileiros Ronaldo Azeredo, Augusto e Haroldo de Campos, Grünewald, Pignatari, Wladimir
Dias Pino, Ferreira Gullar; tem seus poemas incluídos em Poesia Concreta (1962), antologia
organizada em Lisboa, além da transcrição do Plano-Piloto.
146
A equipe Invenção foi formada pelos poetas do grupo Noigandres, a qual se uniram: José
Lino Grünewald, Edgard Braga e Pedro Xisto, além de Cassiano Ricardo e Mário Chamie,
posteriormente desligam-se do grupo. Além da revista Invenção, que teve cinco números,
publicados entre 1962 e 1967, a equipe começou a editar uma página semanal no jornal O
Correio Paulistano, de 1960 a 1961.
O projeto gráfico da página Invenção, foi desenvolvido pelo artista e designer Alexandre
Wollner, que se vinculou ao Grupo Ruptura, em 1953, uma vez que estava interessado no
Movimento Concretista; e apresentou suas obras na 2ª Bienal Internacional de São Paulo.
Nessa página divulgavam seus poemas, textos sobre poesia e arte, e músicas de vanguarda.
No poema labor torpor, as palavras aparecem apenas como “chave léxica para a interpretação
de formas geométricas articuladas, estabelecendo a sintaxe como passagem entre universo da
palavra e um pensamento não-verbal” (Bandeira; Barros, 2008: 40); ocorrendo um
deslocamento do olhar em busca de significados, onde as figuras geométricas substituem as
palavras. Nesse poema sem palavras, vemos a luta entre o trabalho e o cansaço no campo de
batalha, o tabuleiro de xadrez: trabalho x ócio. O geometrismo explora a ambiguidade entre
figura e fundo, branco e preto.
147
Figura 96: Azeredo, poema labor torpor, 1964.
Nesse período, os concretistas entram em contato com a obra do filósofo e matemático norte-
americano Charles Sanders Peirce, e sua teoria geral dos signos ou Semiótica, que propõe um
olhar triádico sobre o signo15. Considerando-se linguagem qualquer conjunto de signos, na
perspectiva peirceana, o signo compreende múltiplas linguagens, além da verbal; sendo
importante para a leitura dos poemas concretos, que extrapolam os limites da palavra.
Azeredo passou a frequentar o ateliê do pintor Alfredo Volpi, em 1968, uma de suas
principais referências nas artes visuais, cuja amizade lhe rendeu diversas colaborações e
parceiras, entre elas o poema Céu Mar, de 1978.
Durante esse contato, amplia seu campo de experimentações, desenvolvendo uma série de
poemas, no limite do código verbal. Publicados em edições com pequenas tiragens com
diferentes técnicas e soluções gráficas, esmaecendo as fronteiras entre poesia e artes,
produzindo obras em forma de cartaz, quebra-cabeça, instalações ou livros. A palavra vai
sumindo, surgindo a imagem, como nas obras mulher de pérolas, panagens, labirintexto e
armar.
15
Signo é toda coisa que substitui outra para o desencadeamento de um mesmo conjunto de reações. O signo,
em relação ao referente ou objeto a que se refere, pode ser classificado em índex (diretamente ligado ao
referente), ícone (possui alguma analogia com o referente) e símbolo (a relação signo-referente é arbitrária,
convencional) (PINTO e PIGNATARI apud CAMPOS; PIGNATARI; CAMPOS, 2006: 219-220).
148
Figura 97: Augusto de Campos, olho por olho, 1964.
149
3.2 Experimentações visuais
Aqui começo a reunir as experimentações visuais de Azeredo ligadas à palavra, pensando na
relação entre palavra e imagem que ocorre nessas produções.
A partir de 1970, seus trabalhos se distanciam ainda mais da palavra e se aproximam muito
das artes visuais. Começa a desenvolver diversos poemas visuais: poemas-mapa, poemas-
desenho, poemas-partitura, poemas-quebra-cabeça, livros-poema, adquirindo grande
familiaridade com as linguagens não-verbais. Experimentou várias linguagens, usando
diversos suportes, materiais e técnicas, e para realizar seus projetos, transitou em diferentes
áreas, como artes, design, fotografia, cinema, instalação.
Figura 98: Azeredo, Mulher de pérolas, 1971. Edições Invenção, São Paulo. Realizado por Fiaminghi /
Patrocinado por Volpi.
150
é dificílimo predizer o destino disso... é um poema-livro, célula-pedra-poesia. Azeredo
explora a ideia do olhar, que se surpreende com algo fora do normal, em imagens que vão da
célula cancerígena ao tumor calcificado. Vida, ciência e arte são aproximadas pela anomalia.
“A textura molecular em metástase de poros e retículas da célula pedra prediz que o destino
disso talvez seja mesmo pela via anormal” (Adriano, 2005 apud Bandeira; Barros, 2008: 141).
Figura 99: Azeredo, imagem final e texto do autor, em livro sem título, referido como poema da célula, 1972. 20
páginas, impressas sobre papel preto.
151
Pensamento impresso era constituído por pranchas para alternar ao acaso. Nessa obra recebeu
a colaboração do músico Gilberto Mendes para realizar uma partitura, e a serigrafia foi feita
por Fiaminghi. Considerado um dos mais belos trabalhos do poeta, dedicado a Mallarmé, tem
ideogramas japoneses de flores em folhas transparentes, que se desdobram em um arco-íris.
Figura 101: Azeredo, prancha de pensamento impresso, no original em cor branca sobre papel vegetal, 1974.
Azeredo começa a pesquisar diversos tipos de suporte para seus poemas, como em Panagens,
poema-livro ou poema-objeto, constituído por pranchas com aplicações em tecido com
imagens e textos caligráficos. Palavra e imagens dialogam, em um poema costurado com
formas, cores e texturas: planeta, pulmão, borboleta, ar, asa e arfar, todos feitos em dez
pranchas-fotogramas. O layout e a arte-final foram feitos por sua esposa, Amedea Azeredo.
152
O poema-cartaz labirintexto, é um biomapa ou biopoema do poeta, assinalado com os lugares
por onde passou desde criança, unindo as cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, incluindo
alguns espaços significativos de sua história, como Vila Isabel, Cambuci, Perdizes.
Figura 103: Azeredo, Labirintexto, 1976. Poema-cartaz. São Paulo, edição do autor. Impressão em preto azul e
laranja; papel couché.
153
Talvez o mais comunicativo dentre esses “poemas” seja o labirintexto de
1976, uma “geografia sentimental”, como notou Antonio Risério. Dedicado
pelo poeta ao seu “grandioso matriarcado” (mãe, irmãs, mulher e filha), esse
biomapa embaralha as ruas vivenciais do carioca paulista, partindo da
vilaisabelina Teodoro da Silva para, por vários descaminhos entre as
Perdizes e o Cambuci, vir aportar na Rua Homem de Melo, que a cartografia
afetiva de Ronaldo retrojeta no copacabânico Oceano Atlântico (Campos,
2011)16.
Armar é um poema quebra-cabeça para montar, um poema lúdico que incita o leitor à
participação. Quebra-cabeça formado por dois nomes: Maria e José, onde Azeredo novamente
trabalha a questão da dualidade, feminino e masculino, poeta e leitor: amar, armar.
Céu Mar, último trabalho patrocinado por Volpi e foi produzido em parceria com Hermelindo
Fiaminghi. Era uma obra que estava no limite entre a poesia e a visualidade. Azeredo sempre
testou essas fronteiras, mas nunca abandonou a poesia, apenas alargou seus limites,
experimentando linguagens e explorando suas potencialidades.
A forma que o título Céu Mar foi colocado faz com que haja um movimento circular de
leitura. O movimento de circularidade já havia aparecido em seus poemas concretos, como
velocidade e ruasol, e antes mesmo em ro, a e a água. Outros poetas concretistas, como
Haroldo de Campos (nascemorre), Augusto de Campos (rever) e José Lino Grünewald (vai e
vem) também usaram este mesmo recurso em suas obras.
16
Originalmente publicado na Revista Código 11, Salvador, 1986, e À Margem da Margem: Augusto de Campos,
Cia. das Letras, São Paulo, 1989.
154
Os tons de azul usados formam dois planos, um claro e outro mais escuro, havendo entre
esses planos uma linha separando céu e mar. No centro de cada plano, uma mancha, que
conforme o lado que o cartaz é lido pode ser uma nuvem ou uma onda. Azeredo cria uma
ambiguidade entre céu e mar. Nessa obra, palavra e imagem, compõem o todo poético,
gerando o poema visual. Segundo Siqueira Leite “no poema, o signo verbal e o visual partem
da mesma motivação: o jogo de similaridades e diferenças que caracterizam uma e outra arte”
(2011: 103), assim percebemos que as duas linguagens, palavra e imagem, trabalham uma
reforçando a outra, em parceria. Da mesma maneira que o poeta e o artista juntaram-se para
criar uma única obra.
155
Em 1980, Azeredo começou a produzir arranjos poéticos usando letras, palavras, símbolos,
imagens, fotos, onde mesclava diversos códigos. Nesse momento, afastou-se totalmente da
escrita verbal, para estruturar signos semióticos, gerando pensamentos plásticos, como
ocorreu na mini-instalação casa de boneca, no poema-cartaz sonhos-dourados e na obra
enquanto durou. Casa de boneca foi uma obra feita em homenagem a Marcel Duchamp,
misturando elementos de Alice, de Lewis Carroll, com as obras de Duchamp, Apolinère
Enameled e Étant donnés, “onde noivas são desnudadas pelo olho voyeur da vida” (Campos,
2011). A mini-instalação era acompanhada por um texto:
Figura 107: Azeredo, casa de boneca, 1980. Idealizada por Azeredo e executada por Mentore Pomelli e Amedea
Azeredo. Objeto, cenografia.
156
enquanto durou era um biopoema efêmero, que se referia à passagem ou fugacidade do
tempo. “Trilha do olho pelo rastro de um ciclo de flores que cobrem a frase até que sequem e
façam aflorar outro sentido” (Adriano apud Bandeira; Barros, 2008: 141).
O trabalho era composto por três páginas ou pranchas, com a expressão enquanto durou feita
em letra manuscrita por Amedea, em tons de terra, e sobre as letras, flores, fotografadas em
dois momentos diferentes (frescas e murchas), e entre estas páginas, uma toda preta,
sinalizando a passagem de tempo. Azeredo faz uso do verbal de maneira experimental, unindo
palavra e imagem de forma poética, registrando o momento da criação, o efêmero e o tempo.
Assim, como a obra enquanto durou, o poeta também trabalha a temática do tempo nessa
obra, que reúne três momentos de seu percurso poético. Homenageou os integrantes do grupo
e à revista Noigandres, a Patrícia Galvão (Pagu) “uma das principais mulheres da vida de
Oswald de Andrade” (Azeredo, 1991) e a Alfredo Volpi. Homenagens essas, que ficam claras,
no texto que escreveu para complementar essa obra:
157
noite
noite
noite
três noites que passei fora da Terra
e que representam este tempo arte:
1952 1989
[...] as três cores desse universo são uma homenagem ao meu grande mestre e
amigo A. Volpi que me ensinou bondosamente a pensar transformando essa
pirâmide em bandeirinha poema
A. Volpi pintou essa bandeirinha
R. Azeredo pintou este poema
(Ronaldo Azeredo, 1991)17
Figura 109: Azeredo, 1991. Texto explicativo que acompanha a obra noitenoitenoite.
O poema-objeto tem o formato de uma pirâmide, onde cada face tem uma cor lisa e pura,
amarelo, vermelho e azul, referência à Arte Concreta (pureza das cores e das formas) e
homenagem à Volpi. Em cada face, uma leitura, uma dedicatória, uma noite.
Na face verde, primeira noite, aparece com letra manuscrita misturadas as palavras noi e gin,
noi = grupo e revista noigandres e gin = pseudônimo usado por Patrícia Galvão (poeta,
escritora e ilustradora), em sua coluna no jornal A tribuna, de Santos. Azeredo faz uma
homenagem a Pagu e a todas as mulheres que passaram em sua vida e apareceram em sua
obra.
17
Informações retiradas da exposição Ronaldo Azeredo, Casa das Rosas, 2013.
158
t1 = gin final da primeira noite. está embaralhada dentro da palavra
noigandres
pseudônimo de Patrícia Galvão, na sua coluna no jornal “A Tribuna” de
Santos – no ano de sua morte 62.
(Ronaldo Azeredo, 1991).
Face vermelha, segunda noite, podemos ver as letras A e Z (em caixa alta), se refere aos seus
primeiros poemas concretos a e z, que compõem o mínimo múltiplo comum, à parte do seu
sobrenome e lembram as bandeirinhas de Volpi.
Face azul, representando a última noite, vemos um círculo cortado ao meio, formando duas
meias luas, noite azul e fria, onde segundo Siqueira Leite (2011: 115) “o tempo da criação
artística seria balizado por esse pêndulo lunar (há de se ressaltar, inclusive, que a lua, com
suas fases, é, por si só, um marcador temporal)”. Nessa face o poeta finaliza suas explicações
de seu poema-objeto:
159
t3 = última noite de lua cheia
a parte de cima (metade) é móvel e bate com as extremidades
na outra metade fixa. formando um movimento de pêndulo que
marca o tempo e faz um som de madeira oca que ressoa no
espaço azul.
(Ronaldo Azeredo, 1991).
Para completar essa obra, ainda temos o prefácio, escrito pelo poeta M. A. Amaral Rezende.
O texto explicativo era uma prática muito comum na Arte Conceitual (anos 1960 a 1970),
Marcel Duchamp era tido como representante dessa arte. Azeredo recebeu influência desse
artista desde os anos 1980, onde o questionamento sobre a arte era um ponto importante, e em
noitenoitenoite o aspecto conceitual e também experimental fica visível.
160
3.3 Lá bis os dois
O livro-poema Lá bis os dois, de 2002, foi seu último trabalho publicado. Espécie de Livro de
Artista, Azeredo escreve sobre a maneira de se apreender sua poesia como um todo. Na
primeira página, escrito à mão, há uma sugestão da leitura da obra, que deveria ser feita
usando o tato, ou seja, manuseando a obra:
É um livro sem palavras. Constituído apenas de imagens feitas com texturas diversas, relevos
em folhas brancas de dupla face, que se destacam da página. Ao deslizar as mãos pelo livro,
surgem dobras, dunas, lábios, olho, vulva, lua, íris. Desde a obra panagens, onde as imagens
aplicadas em tecido sugerem o toque, Azeredo começou a trabalhar com essa linguagem. A
palavra surge no título, na sua chave dialéxica, onde Ronaldo explorou a sonoridade própria
da poesia, e também na narrativa verbal que fazemos ao ler cada imagem. O poeta usou
signos, não-verbais, formando uma linguagem visual, permitindo novas possibilidades de
leitura.
Importante destacar o uso da letra manuscrita pelo poeta, recurso já utilizado no biopoema
enquanto durou. De acordo com Siqueira Leite, ao longo da história “a caligrafia foi tratada
como recurso criativo e artístico” (2011: 107). Podemos pensar na importância que tiveram os
manuscritos medievais, considerados uma arte maior. Caligrafia que era feita apenas por
poucos iniciados, os monges copistas. Pois, dentro das abadias e mosteiros, haviam as
161
oficinas de escrita, onde textos sagrados eram copiados. Observamos que, a letra manuscrita
ainda permanece como uma forma de buscar o inusitado, na criação poética.
Lá bis os dois: poesia para o tato, Livro de Artista? Azeredo vai da palavra para a visualidade
com grande desenvoltura. A linguagem, a palavra, a sonoridade são recursos usuais, contudo
162
tenta não fazer da palavra uma obrigatoriedade, e sim uma possibilidade poética. A
sonoridade aparece primeiro no título, Lá bis os dois se transmutam em lábios dois,
ambiguidade que também vemos nas imagens do livro: lábio entreaberto (na horizontal) e
vulva (na vertical).
No começo do livro o poeta escreve um método de leitura; assim como fez Lygia Pape para
ensinar a manusear seu Livro de criação. Participação da obra pelo leitor, tema caro aos
Neoconcretistas, e que também entra no universo dos Livros de Artista, experimentação,
circularidade, sentir a obra com todos os sentidos, nesse caso, o toque, o tato. Os relevos e
baixo-relevos formando imagens ou nervuras, provocando olhares e leituras fora do
convencional. Lua envolta de textura ou dunas que remetem a diversas imagens. A narrativa
desse livro é visual, onde cada leitor cria sua própria história.
Azeredo produziu de biopoemas, mapeamentos de vida, a obras que recusam a palavra, porém
não chegam à pintura. Com uma trajetória rica, abriu novos campos para a poesia visual.
Transitou entre a palavra e a imagem de maneira única; realizando uma poesia sem restrições
verbais, dialogando o tempo todo com a visualidade; onde para ele, a palavra era uma
possibilidade dentre tantos recursos. Ver seus poemas concretos, sua espacialização, formas,
fontes, nos leva a entender um pouco como ocorreu o começo da mudança estabelecida pelos
concretistas, tanto visualmente como verbalmente.
163
“A poesia de Ronaldo não admite restrições letradas, sendo antes uma espécie de radar
semiótico registrando sensivelmente sinais de um momento histórico” (Risério, 1977 apud
Campos, 2011).
Em sua obra, narrativa plástica e literária completam-se e interagem, havendo ritmo entre
palavras, sonoridade, espaço e imagens. Palavras e imagens se relacionam de diferentes
maneiras, sempre criando novos sentidos, novas possibilidades de significados, leituras e
caminhos.
164
CAPÍTULO 4: CAIXAS DE POESIAS DE LYGIA PAPE
165
4.1 Abrindo as caixas
A artista trabalhou com diversas técnicas e materialidades, como gravura, poema, pintura,
objeto, sensorial, cinema, lugares coletivos, fotografia, vídeo, performance. Não se prendeu
aos mesmos suportes ou procedimento. Seu trabalho é sempre inovador; tendo assim, uma
obra pautada pela liberdade com que experimenta e manipula diversas linguagens e formatos.
E também por incorporar o espectador como participante. Sua criatividade aparece em seus
trabalhos com sensibilidade e humor. Produziu obras para serem vivenciadas com calma e
reflexão. Durante o período Concreto e Neoconcreto, envolveu-se intensamente com a poesia
visual. O crítico inglês Guy Brett (2000: 309) fala sobre sua riqueza de experiências:
O seu ludismo e sua liberdade particulares podiam ser vistos pelo modo com
que ela estava disposta, desde o início, a experimentar, com uma ampla gama
de linguagens e formatos – desde o balé até o livro! Ela flutuava acima dos
limites das disciplinas institucionalizadas, fazendo suas próprias
recombinações.
Em sua obra não houve fases. A artista criava em círculos concêntricos, retornando em
algumas questões, no entanto com uma nova perspectiva. Para entender sua trajetória, é
importante conhecer o contexto artístico e político do Brasil em 1950. Nosso país passava por
um processo de modernização e ocorriam inovações na literatura, arquitetura, urbanismo e
arte, o que levou à abertura de museus como o MAM (Museu de Arte Moderna) em São Paulo
e no Rio de Janeiro (1948), além do início da Bienal de São Paulo (1951).
Pape teve plena participação nesse processo de modernização da arte, tendo contato com
correntes não figurativas. Participou do Grupo Frente (Rio de Janeiro), que defendia a
linguagem geométrica como um campo aberto à experimentação, e também, na fundação do
Neoconcretismo, que propiciava uma participação cada vez mais ativa do espectador na obra,
dando início à integração da arte com a vida.
166
Dentro desse momento de transformações na Arte brasileira, em 1952, foi lançado o Grupo
Ruptura, em São Paulo, que possuía entre seus integrantes Geraldo de Barros, Luiz Sacilotto e
Waldemar Cordeiro. Em 1953, formou-se o Grupo Frente, composto por Ferreira Gullar,
Helio Oiticica, Lygia Pape, Lygia Clark, e outros. Esses grupos, no entanto, possuíam
distintos ideais, conforme cita Cocchiarale (1994):
Como Pape era da mesma geração artística, e possuía ideias estéticas similares a Lygia Clark
e Hélio Oiticica, seus ideais levaram-na a participar com eles, do Grupo Frente, começando
sua carreira alinhada com os pensamentos concretistas. Esses artistas estavam no centro da
vanguarda inventiva, com inquietações e experimentações que refletiriam em toda Arte
Contemporânea brasileira. Brett em seu artigo A lógica da Teia (1994), discute um pouco
sobre esse momento:
Nas artes e na cultura, a ideia de uma América Latina vista como um continente mágico,
primitivo e natural começou a ser superada. Fortaleceu-se a concepção de uma América
Latina como um grande mercado e fonte inesgotável de talentos; onde se destacavam artistas
como Jesús Soto, Carlos Cruz-Diez ou Gego. Os artistas, não ignoravam o que ocorria na
Europa e Estados Unidos, entretanto, estavam mais interessados na Abstração Geométrica
Europeia do que no Expressionismo Abstrato.
167
Uma conquista importante dos artistas brasileiros como Pape foi o fato de
tomar a abstração europeia como ponto de partida, mas sem fazer desta uma
mera versão; enfrentaram-na com uma atitude de rebeldia e respeito, e
18
aproveitaram a situação local para realizar um discurso internacional .
Nesse momento, artistas, antes desconhecidos, como Clark, Oiticica ou Mira Schendel,
passaram a ser referência de muitas exposições na política institucional (Borja-Villel &
Velázquez, 2012: 13).
Grupo Frente
Seus primeiros trabalhos são investigações, marcadas por uma reflexão geométrico-
construtiva. Começa com telas produzidas na linha da abstração, de tendência orgânica,
depois passa à Abstração Geométrica, com uma série de pinturas e relevos. Feitos quando já
integrava o Grupo Frente, em 1954. As pinturas, denominadas Jogos Vectorais, apresentavam
um jogo dinâmico entre linhas e quadrados, e, os relevos Jogos Matemáticos, eram baseados
na repetição de formas regulares e brincavam com o negativo e o positivo, cor e profundidade.
18
Lygia Pape, espaço imantado. Disponível em: http://www.pinacoteca.org.br/pinacoteca-pt/default.aspx?c=expo
sicoes&idexp=1145&mn=537&friendly=Exposicao-Lygia-Pape---Espaco-Imantado. Acesso em: 19 de out. 2012.
168
Figura 114: Jogos Matemáticos: Relevo em vermelho e azul, 1955-1956.
A artista faz sua vivência com xilogravuras (gravura feita em matriz de madeira), iniciando
uma série de obras abstrato-geométricas, conhecidas como Tecelares, com formas
simplificadas (onde explorou a textura e os veios característicos da madeira), sendo uma
alternativa à pintura abstrata de caráter industrial. Tecelares, era um conjunto excepcional,
com o qual inicia a sua fase madura, evoluindo em complexidade espacial e técnica. Essas
obras foram apresentadas, nas quatro exposições, realizadas pelo Grupo Frente entre 1954 e
1956, e também, na Exposição Nacional de Arte Concreta, que ocorreu, primeiro no MAM de
São Paulo (1956), e depois, no MAM do Rio de Janeiro (1957).
169
Pape, considerava a gravura como forma de conhecimento, e a utilizava para resolver
questões de natureza gráfica, ligadas ao pensamento do espaço, construindo formas, que
interagiam com o espaço circundante. Em Tecelares, a repetição alternada, das formas
geométricas efetua um ritmo contínuo, lançando o olhar da gravura para o espaço:
Tecelares é dos ares, não das paredes, pois as formas, dada a transparência
do papel, também se vêem no verso, não no reverso, pois, frente do mesmo
verso. A qualidade do papel, a porosidade da madeira, a espessura dos cortes
articulam-se em Lygia, que impede o acaso (Kossovitch & Laudanna, 2000:
20).
A xilogravura permite que Pape tenha controle do material, das técnicas, da forma. Em um
primeiro momento, predominam os Tecelares claros, realizados pela incisão de sutis linhas na
madeira, contudo, com o passar do tempo vão escurecendo, por meio, da utilização de
superfícies pretas mais amplas, que deixam entrever as características do material. Para a
artista, a série representa a primeira tentativa satisfatória, de distinção entre fundo e forma,
aspecto determinante na criação de um espaço ambivalente.
Foi por meio dessa série, que Pape pôde refletir sobre as diferenças entre o Concretismo
rígido e a geometria dura do Grupo frente, e as sutilezas subjetivas (liberdade da forma) que
começavam a se esboçar, e que, acabaram por se conformar no Neoconcretismo. Segundo
Herkenhoff (2012: 26), seus últimos Tecelares, produzidos entre 1957 a 1959, anteciparam e
consolidaram a poética neoconcretista pautada na fenomenologia da percepção.
O espaço, como elemento visual e semântico, tem sua prolongação nos Desenhos (1957-
1959), onde a trama, às vezes, se interrompe para projetar formas geométricas ligeiramente
170
deslocadas ou em negativo. Realizados em sua maioria em tinta sobre papel japonês, a artista
consegue uma leveza que remete às gravuras japonesas.
Outro elemento importante, tanto em Desenhos, como em Tecelares, é o fluxo da luz. Que
depois, também aparece nos Ballets, Poemas, Livro da Criação e Tteias, linguagem e língua
perdem sua pureza léxica, são desconstruídas no fluxo da luz.
Neoconcretismo
Durante a fase neoconcreta realizou uma investigação sobre o dualismo entre matéria e forma,
com obras, como Ballet Neoconcreto e Tecelares. Aos poucos, a aproximação de sua obra
com a vida levou-a a inserção da temporalidade e a uma transformação constante dos meios.
Em 1959, devido às divergências poéticas com os concretistas de São Paulo, junto com Hélio
Oiticica e Lygia Clark, abandona o Grupo Frente. Iniciam um dos movimentos mais
significativos da arte brasileira, o Neoconcreto, que lhes permitem desenvolver obras de arte
incluídas na vida cotidiana. Esse grupo lançar-se-ia em experiências, que fariam a obra dividir
o mesmo espaço que o espectador; dando um passo decisivo na integração da arte com a vida.
A herança deixada à Arte Contemporânea brasileira, por este grupo, relaciona-se, sobretudo
com os aspectos metodológicos, como a valorização dos processos experimentais, a
originalidade das criações, a busca pela integração do espaço da obra com o espaço real.
O Manifesto Neoconcreto, assinado em 1959, por Amilcar de Castro, Lygia Clark, Ferreira
Gullar, Reynaldo Jardim, Cláudio Mello e Souza, Theon Spanudis, Franz Weismann e Lygia
Pape, denunciava a Poesia Concreta como excessivamente mecanicista. Esses artistas
acreditavam que “o espaço e o tempo não eram meras relações externas entre as palavras e os
objetos” (Borja-Villel & Velázquez, 2012: 15).
Clark passou das Superfícies Moduladas para os Contra-Relevos, para depois, construir os
Bichos (1959); não-objetos, feitos de chapas de metal, articuladas por dobradiças, cujas
formas só se revelam por meio da manipulação do espectador. Oiticica teve percurso
semelhante, rompeu o quadro e construiu diretamente no espaço, com Relevos Espaciais
(1959-1960).
171
Ferreira Gullar (1977: 85) desenvolveu a Teoria do não-objeto, onde conceitua o objeto
neoconcreto, argumentando em torno da negação:
172
Figura 119: Hélio Oiticica: relevos Espaciais, 1959.
Pape, idealizou com o poeta Reynaldo Jardim e o bailarino Gilberto Motta, em 1958, o Ballet
Neoconcreto I, performance, em que atores/dançarinos manipulam formas geométricas
tridimensionais, por dentro destas. Ocorreu desse modo, uma experiência pioneira, onde o
corpo é utilizado como motor, para que formas e cores se desloquem no espaço. Traduzia,
visual e musicalmente, com o movimento das formas geométricas, o poema feito por
Reynaldo Jardim, Olho alvo. A ideia deles era fazer um ballet não convencional, onde o corpo
era o motor, embora, não estando presente visualmente, estava presente como movimento e
expressão dentro do palco. A artista construiu quatro cilindros e quatro paralelepípedos, com
rodinhas, para poderem se deslocar, e os bailarinos entravam dentro dessas formas executando
a coreografia, pensada para esta proposta.
173
Já, o Ballet Neoconcreto II, de 1959, traçava o percurso frontal de dois planos, que se
aproximavam e distanciavam na escuridão, até atingir a máxima ambivalência entre fundo e
figura; não tinha o poema como base, então a construção da coreografia foi totalmente livre.
Os Ballets de Pape dialogavam com o Ballet Triádico (1922), de Oskar Schlemmer, tanto
visualmente, como nas cores e formas, onde, havia o entrosamento entre diversos elementos,
como: corpo, movimento, forma e luz. Ballet Triádico, foi um dos primeiros espetáculos
totalmente abstrato da história.
Sua produção Neoconcreta, como as xilogravuras Tecelares, Balés Neoconcretos e Livros, foi
baseada, na ampliação dos suportes convencionais, passando a contar narrativas, exigir
manuseio do espectador ou propondo desdobramentos no espaço.
174
4.2 Palavra e imagem
Lygia Pape, foi muito inovadora, ao aplicar o mesmo princípio artístico à sua criação poética:
a participação do leitor na construção de sua obra. Como em seus livros, que através do
“manuseio de páginas, explorava recortes, cores e a disposição de algumas poucas palavras e
expressava, além de verbalmente, de forma visual o poema” (Machado, 2008: 29).
Vimos, anteriormente, que os poetas concretos (anos 1950 e 1960) foram além da linguagem
verbal, usando procedimentos do campo das artes, entretanto, os artistas também começaram
a realizar pesquisas, usando a palavra, realizando experiências, onde as linguagens verbais e
visuais se encontravam, e aqui podemos incluímos Lygia Pape. O próprio movimento
Neoconcreto pregava o rompimento com os procedimentos tradicionais, buscando a criação
de novas formas de criação.
A artista resume sua prática artística em uma declaração: “quero trabalhar intensamente em
um estado poético. Estou em busca do poema19”. Nos Livros-Poemas, trabalhou essa
linguagem até suprimir a palavra, desenvolvendo uma linguagem visual que correspondia à
narrativa verbal.
Seus poemas ultrapassavam sua dimensão gráfica, alcançando uma espacialização do tempo
verbal. “É pausa, silêncio e tempo” (Borja-Villel & Velázquez, 2012: 15). Assim como seus
Ballets Neoconcretos, também poemas no tempo e no espaço, conceitos sempre presentes em
suas representações artísticas, seja qual for o suporte utilizado.
Poemas luz, realizados entre 1956 e 1957, inicialmente foram feitos sobre placas de vidro e
depois sobre acrílico, pintados com cores quentes e vibrantes e com palavras sobrepostas. As
placas ficavam presas por fios de nylon, assim o olhar do observador poderia oscilar entre a
vibração dos campos de cor e a concretude da palavra. Uso da transparência, sobreposição,
vazio, cor e palavras como: em vão, sono e sendo, similares, à maneira como a artista Mira
Schendel trabalhou em algumas obras.
19
Espaço imantado. Disponível em: http://www.pinacoteca.org.br/pinacoteca-pt/default.aspx?c=exposicoes&
idexp=1145&mn=537&friendly=Exposicao-Lygia-Pape---Espaco-Imantado. Acesso em: 19 de out. de 2012.
175
Figura 121: Poema luz Em vão, 1956-1957.
Essa seria a primeira vez, que apareceriam as palavras na obra de Pape, e que se tornaria uma
constante em sua criação, a relação poética entre palavra e imagem seria recorrente em sua
trajetória. Assim como, seus pares do Movimento Neoconcreto Clark e Oiticica, a artista
mostrou-se extremamente “interessada na escritura como elemento poético complementar, no
seu caso, como uma instância preliminar e fundamental de materialização de ideias” (Osorio,
2012: 103).
Foi uma grande leitora de poesia, literatura e filosofia, inclusive, enveredando-se pelo
caminho acadêmico como professora e realizando um mestrado em filosofia. Sua relação
entre pensamento, palavra e visualidade desenvolveu-se em várias direções; o que permitiu
sua experimentação entre, diferentes suportes e materialidades, em busca do que fosse mais
apropriado para, sua realização poética e plástica. Começa sua busca por “formas híbridas e
experimentais de articulação e disseminação poética” (Osorio, 2012: 103), assim como
176
ocorria com outros artistas do Neoconcretismo, que começaram a questionar a especificidade
dos meios expressivos.
Eram poemas em que a presença do leitor/fruidor da obra é imprescindível para ela ocorrer.
Havendo a manipulação das páginas, como em rompe, ou girando o círculo, que cobre as
palavras, como no Poema Objeto em vão, ou abrindo e fechando a parte do círculo, que cobre
a palavra vem, em outro Poema. Ao esconder as palavras nesses Poemas Objeto, a artista
também trabalha a ampliação da noção de tempo.
177
Figura 124: Poema objeto, 1957. Papel cartão e texto.
Livro: Poemas - Xilogravuras é um livro formado por gravuras e poemas concretos, sendo
que, cada parte tem sua independência expressiva, cada imagem surge do poema
correspondente, não como uma ilustração. Imagens e palavras podem ser contempladas
separadamente, e posteriormente, relacionam-se como uma unidade nova de representação.
Conforme Kossovitch & Laudanna (2000: 20) afirma: “o espaço interrogado é o do próprio
livro: em folha dupla, o poema, impresso em uma delas e a xilo na outra, é feito de imagens
pensadas como contíguas, a formar uma única imagem que nada ilustra”. O verbal instala-se
178
nas imagens, como uma nova expressividade, o poema alimenta a gravura de novas
significações.
No Livro poema em quebra revela, o leitor, podia quebrar um quadrado ao meio ao abrir o
livro para a direita ou para a esquerda, surgindo assim o poema; palavras e imagens
complementam-se na parte interna do livro. Além da manipulação das superfícies expressivas,
criando espaços ambivalentes, o Neoconcretismo, também propunha a exploração do uso do
tempo como elemento expressivo.
179
4.3 Poemas visuais
Lygia Pape denominou diversas experiências como poemas visuais. Tem-se as caixas,
conhecidas como Caixas de Humor Negro, caixas-poemas que, tinham intenção aberta de
experiência, e pertenceram ao ciclo de embate entre artista e instituição (em tempos de
repressão política e artística impostos pela ditadura de 1964). Os artistas começaram a criar
nesse momento, novas estratégias e novos espaços, para poderem comunicar-se com o
público, desenvolvendo formas de comunicação ambíguas, que pudessem ler lidas pelo
público e não pela censura.
Caixa das Baratas, mostrava uma espécie de coleção de baratas mortas dispostas em fileiras,
em uma caixa de acrílico com fundo espelhado, que refletia os rostos das pessoas. “Pela
aversão, conduzia uma crítica à instrumentalização das produções de arte pelas instituições”
(Machado, 2008: 39). Insetos organizados como uma unidade militar, crítica ao momento de
repressão ditatorial, e também uma crítica ao sangue de barata demonstrado no cotidiano
brasileiro, diante dos sérios problemas que estavam ocorrendo. Pape (2012: 243) afirma que,
“a primeira leitura que o trabalho provocava era no sentido da crítica à arte morta dos
museus”, e isso era passado pela aversão que o trabalho provocava no observador.
180
As Caixas de Humor Negro foram feitas com objetos recolhidos do cotidiano, contudo com
cargas semânticas específicas. Segundo Machado (2008: 39), na Caixa de Formigas, Pape
trabalhou uma dimensão mais erótica, de devoração da carne. Por sua materialidade, podemos
traçar relações entre esta obra e o Livro de carne, de Artur Barrio (1978).
A caixa continha saúvas vivas, que se agrupavam em torno de um pedaço de carne crua, sobre
fundo espelhado, em uma série de círculos, com as palavras a gula ou a luxúria. Essa mesma
frase foi usada depois no filme Eat me (1975), nas instalações Eat me: a gula ou a luxúria?
(1976), e nos cilindros da instalação Livros, de 2001.
Essas produções foram apresentadas juntas, uma representava as obras mortas dos museus, e a
outra, representava o contrário, a imprevisibilidade das coisas vivas, uma vez que as formigas
escapavam da caixa, e andavam por obras de outros artistas. Suas ideias eram passadas de
forma sensorial, e não pelo discurso formal.
181
Figura 129: Poema visual: Caixa Brasil, 1968.
Além, das Caixas de Humor Negro, também produziu os poemas-luz e outros poemas visuais,
como Tes - Ouro (1995), Nido (1995) e Isto não é uma nuvem (1997).
182
4.4 Livros
O final de 1950 e início de 1960, ficou marcado por um intenso movimento de reavaliação e
transformação do livro dentro da Arte Brasileira. Artistas e poetas, cada um dentro de suas
especificidades, começaram a recriar o livro. “Não só o objeto, mas sua escrita, sua estrutura,
seu conteúdo, sua relação com o leitor; o mito livro e seu lugar na cultura” (Venancio Filho,
2012: 217). Procuravam novas concepções para, desfazer os limites entre as linguagens
artísticas, e o livro foi usado para este fim.
O livro tradicional, no formato que o conhecemos desaparecia, e seus elementos como a capa,
as página, o texto ou título eram transformados. Ficaram irreconhecíveis. Adquiriram
tridimensionalidade. A palavra praticamente sumia; a narrativa tradicional e a paginação
deixavam de existir. O livro começava a transformar-se em um objeto novo, que precisava de
uma nova forma de ler. Leitura aberta, lúdica, visual, tátil, sonora. Livro que se construía
durante a leitura e manuseio pelo leitor.
Segundo Venancio Filho (2012: 218), além da pesquisa dos poetas concretos com a
experiência da recriação do livro, Lygia Pape teve papel primordial nesse momento histórico,
sendo uma das artistas de grande destaque nessa área.
183
finalizando no espaço público. Seus livros operam fusões entre o livro de história narrativo e
as composições não-verbais concretas, gerando narrativas de explorações tridimensionais
coloridas, em cada página.
O Livro da criação (1959-60) propõe uma linguagem nova, onde formas e cores estão
impregnadas de referências. O visual gera signos verbais, metáforas e narrativas. Obra,
totalmente experimental, onde a artista trabalha com diversas linguagens, realizando a
proposta de um livro que produz sentidos originais.
Livro da criação pode ser pensado como um Livro de Artista, uma vez que é um livro
plástico, sem palavras, e a narrativa ocorre pela leitura das imagens e formas. São esculturas,
que se desdobram no espaço, formando verdadeiros origamis poéticos.
184
A história é elaborada conforme o leitor manipula suas páginas, criando suas próprias
narrativas, conforme suas referências, ressignificando essas formas. A abstração de suas
páginas permite ser um livro aberto, com uma multiplicidade de significados, onde cada
página propõe leituras ambíguas.
Isso fica muito claro quando a própria artista escreve Chave do livro, onde ensina a ler um
livro que é diferente dos tradicionais. Que “é para ser lido de algum modo” (Pape, 2012: 209),
explicando, que cada página é uma página em si mesma, que se “trança e cruza uma com as
outras em direção de um trabalho em progress” (idem), e que as pessoas, devem antes de
tudo, ver, ver muito e sentir. E finaliza:
o livro é agora uma teia onde o leitor vai-se embaraçar nos fios que ligam as
propostas, criando o que eu chamo Espaço Imantado – uma espécie de
vontade interna, impulso de um desejo que foge à pura racionalidade e
transfere aos sentidos as pulsações da armadilha. Vocês têm nas mãos agora
– uma imantação (ibidem).
Carrión, em sua obra A nova arte de fazer livros (2011), também reafirma essa condição do
Livro de Artista, quando explicita que, na nova arte cada página é diferente, cada página é um
elemento individual de uma estrutura (o livro) e que, tem uma função particular a cumprir.
Fortalecendo a ideia de ver o Livro de criação como um Livro de Artista. Carrión explora
bastante o uso do espaço e da linguagem, de forma não tradicional.
Pape desenvolveu a proposta desse livro, tendo como referência a Bíblia, com o texto da
Gênesis, propondo a reinvenção do tempo inaugural da criação, narrando o começo do tempo
e da vida. Segundo ela, a obra permite duas leituras possíveis:
Pra mim ele é o livro da criação do mundo, mas para outras pessoas pode ser
o livro da criação. Através de suas próprias vivências, um processo de
estrutura aberta onde cada estrutura armada desencadeia uma leitura
própria. Esse livro foi uma invenção original, onde a linguagem não verbal
determinava uma narrativa verbal (Pape apud Venancio Filho, 2012: 220).
Segue-se uma breve descrição das páginas do livro, onde a questão da criação fica bem
explícita, com palavras orientadoras, que indicam episódios da aventura do homem no
mundo: No começo era tudo água, primeira página (quadrado) representada em azul anil e
com recortes menores, diminuindo o azul, onde simboliza as águas baixando; então surge o
tempo (disco, que ao ser rodado, ia aparecendo a cor laranja: O homem começou a marcar o
185
tempo), o fogo (quadrado vermelho que se abre no espaço em dobras e pontas: O homem
descobriu o fogo), a terra (quadrado vermelho, com um círculo vazado no centro, apontando
quatro setas perfuradas, saindo das laterais: O homem era nômade e caçador), a floresta (Na
floresta: cartão verde, que poderia ser encaixado atrás do anterior – homem nômade, homem
poderia encontrar seus alimentos na floresta), o cultivo (quadrado branco, com perfurações
regulares, como uma plantação recém semeada: O homem era gregário e semeou a terra), a
colheita (E a terra floresceu: listras amarelas, laranja, lilás e verde surgem como um campo
pronto para a colheita), a roda (O homem inventou a roda: papel branco com diversas dobras,
dando a ideia da roda), os planetas (O homem descobriu o sistema planetário: círculos
vazados coloridos representavam a órbita dos planetas, girando em torno de um sol amarelo),
a Terra (A terra era redonda e girava sobre seu próprio eixo), a Palafita (base sobre dobras
triangulares, com a cor azul em baixo), as viagens (Quilha navegando o tempo: triângulo
vermelho dobrado ao meio), o submarino (Submarino – o vazado é o cheio dentro d'água,
recorte triangular no cartão azul, sinalizando água), e finalmente “a luz, que é a informação
plena” (Osorio, 2012: 107): página Luz, amarela com um pequeno recorte quadrado ao
centro20.
20
Descrições das páginas do Livro de criação retiradas da dissertação Lygia Pape: espaços de ruptura, realizada
por Vanessa Rosa Machado. São Carlos: USP, 2008.
186
De acordo com Doctors (2012: 374), a artista procurou nos Livros poema (1957) o lugar da
palavra, e, no Livro de criação, o da imagem. Estava semantizando a forma, buscando sua
abstração e sua síntese formal.
Figura 133: Livro da criação: As águas foram baixando e O homem começou a marcar o tempo. 1959-1960.
Pape, posteriormente realiza um ensaio fotográfico. Onde leva as páginas de seu livro, em
deslocamento pelo mundo, nas praias, ruas, parques da cidade. As páginas ganham vida
própria, interagindo com o espaço ao seu redor, “assumindo uma autonomia que dá ao
fragmento uma realidade em si” (Osorio, 2012: 107).
Livro da arquitetura fala sobre o espaço da vivência humana. Formado por doze unidades,
feitas com recortes, dobras e cores no cartão, com títulos, que fazem alusão poética aos estilos
arquitetônicos. Começou com o Paleolítico (desenhos que lembravam pinturas rupestres),
Neolítico, Oásis (cartão coberto por serragem e apenas um pequeno cubo verde), Pirâmide
(três peças triangulares), Jardim japonês, Casa japonesa (homenagem à Mondrian), Grego,
Romano, Gótico, Barroco, Árabe e finalizou com o Lance Livre de Concreto, da época
Contemporânea, sempre ressaltando algum elemento para os estilos serem identificados.
Sua proposta era recriar as experiências históricas do espaço humano, ou seja, “a dinâmica
espacial de cada uma dessas experiências: a superfície, a linha curva, a sinuosidade, a
repetição, a curva, o ângulo agudo, etc” (Venancio Filho, 2012: 221). Nesse livro, o tempo
também se faz presente, tanto no ato de manusear, abrir suas páginas esculturas, assim como,
em sua possível sequência temporal, doze unidades, doze meses, um ano, quase marcando um
tempo mítico.
187
As unidades/páginas tornam-se permanentemente tridimensionais, pois, uma vez montadas,
não podem ser desmontadas, como ocorre no Livro de Criação. Nesse livro, também não
havia palavras ou indicação do nome das páginas, sendo que a narrativa dessas diferentes
arquiteturas deveria ser feita a partir da leitura visual e da manipulação do leitor.
188
Figura 137: Lance livre de concreto, 1959-1960.
Livro do tempo rompe os limites estruturais, ele fica disposto diretamente no espaço,
formando uma grande tela disposta na parede. Composto por 365 objetos (16 cm por 16 cm)
com diferentes formas geométricas, de madeira pintada. Diversas relações cromáticas e
espaciais são geradas nessas formas, com planos e espessuras variadas. É muito mais que um
livro, são objetos, em que cada página é uma peça que representa os dias, cada dia uma cor,
um sentimento, uma forma. Trata da experiência do tempo com as pessoas, para refletir e
pensar sobre o cotidiano e vivência de cada um.
Cores fortes, formas dinâmicas, novas possibilidades, todos estão em exposição, onde cada
dia é diferente do outro. A obra convida o público a participar dela, no entanto, com uma
leitura mais contemplativa, diferentemente do que ocorria com o Livro da criação e do Livro
da arquitetura, onde a proposta era a plena participação do leitor.
189
Existe um ritmo cromático nessa obra, dos quadrados pintados e reorganizados sobre uma
unidade/página. Seu conjunto gera um movimento, cada unidade se relaciona com o todo,
ocorrendo uma leitura em ritmo constante e rápido, o olhar vai percorrendo cada página sem
parar, capturando assim o livro todo.
Livro da luz e Livro dos caminhos são livros-objeto cujas pranchas são diagramas cromáticos,
formais e espaciais da criação; do fluxo do tempo e da historicidade dos espaços construídos
pelo homem. Livro da luz ou Noite/Dia foi feito com grande rigor construtivo, enfatizava a
forte relação da artista com a Poesia Visual e a Arte Concreta. Relacionavam-se com filmes,
pensando seus cortes e montagens.
Livro dos caminhos: poema visual, construção modular composta por estruturas que,
lembram os edifícios de São Paulo, como se fosse um retrato da cidade.
190
Livro das nuvens, composição formada por doze caixas brancas de madeira, de vários
tamanhos, fixados na parede, no alto, quase atingindo o teto. Metáfora do livro usado para
nomear a sequência de caixas brancas.
Pape deixou apenas o projeto do Livro dos sentidos, pois nesse desenho inicial pode ser visto
uma articulação entre os Tecelares do começo dos anos 1950 e as Tteias, série de instalações
feitas com fios de cobre iluminados, que eram dispostos no espaço, formando volumes
(começaram a ser produzidas em 1977) e atingiu diversos desdobramentos até o final de sua
trajetória. “As linhas se movimentam no plano e já sugerem um deslocamento para o espaço”
(Osorio, 2012: 109).
“Livro, ao longo do tempo virou uma denominação muito plástica, flexível, para Lygia”
(Machado, 2008: 78), tanto que, Pape usou esse termo para denominar um ambiente de uma
exposição no Centro de Arte Hélio Oiticica em 2001, onde cilindros, esferas e planos serviam
como suporte para frases e palavras.
191
Pape redefiniu o que se entende por livro, segundo seus princípios e pesquisas formais.
Quando nomeava uma obra como Livro, era porque acreditava na capacidade expressiva da
forma, que poderia ocorrer uma narrativa, mesmo sem o uso de palavras.
Machado (2008: 88) afirma que os Livros desenvolvidos pela artista revelam uma intensa
“pesquisa de linguagem e suporte ao envolver o leitor no ato de folhear (e manusear) páginas
que revelam formatos inéditos de narração e articulação da forma (poética) visual”.
Ocorrendo assim o entrelaçamento entre a forma livro e a montagem de imagens, entre poesia
e artes plásticas. Demonstrando um comportamento de grande liberdade em relação às
linguagens, evidenciando a “imprecisão na definição da linguagem, características das
propostas neoconcretas” (idem).
Seu trabalho com a palavra, ou seja, a relação poética entre palavra e imagem, e com a
sucessão de imagens, “produzidas tanto pela sequência de páginas dos livros, quanto pela
sequência de movimentos nos balés neoconcretos” (Machado, 2008: 85), foram constantes
em sua trajetória, revelando coerência em sua produção. Nessa pesquisa pude observar que na
sua obra, a integração de linguagens foi uma constante, em Ballets, dialogavam música, dança
e poesia, e nos Livros, a linguagem da poesia e da arte estavam entrelaçadas, reafirmando a
ideia que, a fronteira entre as linguagens foram se desconstruindo na produção de Livros de
Artista.
192
CAPÍTULO 5: AMARRANDO LINHAS COM EDITH DERDYK
193
Meu interesse pela obra de Edith Derdyk veio de sua forte relação com a palavra e a imagem,
e sua pesquisa dentro do universo do Livro de Artista. Produz, cria, risca, rabisca, rascunha,
escreve, tece, textualiza e assim nasce uma nova arte, um novo objeto, um novo livro. Artista
brasileira contemporânea, com uma obra reconhecida no Brasil e no exterior. Recebeu
prêmios diversos, além de possuir Livros de Artista selecionados para fazerem parte do
acervo do Museu de Arte Contemporânea de São Paulo.
O primeiro contato com Derdyk e o Livro de Artista ocorreu em 1997, na oficina O corpo da
linha; onde foram desenvolvidas criações a partir do poema A Maçã, de Clarice Lispector.
Conversas, trocas, poesia, processo criativo, imagens, páginas; técnicas diversas, desenhos,
aquarela, colagem, xerox, arte digital. As páginas foram surgindo, crescendo, inter-
relacionando-se, virando livro; com capas feitas da embalagem da fruta e caixa de madeira
protegendo a obra, selando o objeto Livro. A semente foi jogada e o interesse por Livros de
Artista ficou adormecido, retornando em forma de vontade de pesquisar, entender, enredar,
enfim, penetrar nesse universo de criação.
Para melhor entendimento de sua obra e seu caminhar, aconteceram diversos encontros com a
artista. O primeiro ocorreu no Centro da Cultura Judaica, onde realizava uma residência
artística, em 2013; sua proposta era pensar e continuar seus questionamentos sobre a forma
tradicional da escrita. (Re)apresentar a palavra no espaço, convidando o público a
experimentá-la em seu estado poético. Produziu a instalação Notações coreográficas e um
Livro de Artista. Neste mesmo ano, houve uma roda de conversas com os autores do livro
organizado por Derdyk, Entre ser um e ser mil: o objeto livro e suas poéticas. Conversa
produtiva, centrada nos textos escritos sob diversas perspectivas do Livro de Artista no Brasil;
abrindo novas possibilidades de investigação do objeto livro. Outro encontro foi Conversas
sobre Livros de Artista: entre o ateliê e a sala de aula, com Edith Derdyk, Luise Weiss e
Ulysses de Paula, em 2014, na Casa Contemporânea; onde discutiram as origens da pesquisa
desenvolvida por cada artista e qual o papel do Livro de Artista em suas produções.
Em 2015, no Centro Cultural de São Paulo, novas conversas sobre a investigação da origem
da palavra e possíveis desdobramentos desses questionamentos, que resultaram em obras
como instalações e Livros de Artista.
194
5.1 Desfolhando a artista
Derdyk vive e trabalha em São Paulo. Artista, ilustradora, educadora e escritora. Realiza
exposições, coletivas e individuais, desde 1981, no Brasil e no exterior. A palavra é sempre
muito presente em sua obra, presente como texto, em seu trabalho. Gosta muito do objeto de
leitura Livro, por isso, a recorrência desse suporte em suas criações.
Edith Derdyk declara-se uma costureira, tal a importância da linha em sua obra. Tanto que,
afirma: “tenho a linha costurada em minhas mãos”21. Faz uso da linha bidimensional no
desenho, tridimensional na costura e nas instalações onde estica as linhas no ar, finalizando
com, a escrita na quarta dimensão, o tempo. Costura artisticamente, como procedimento
artístico e estético. Costura pensamentos, coisas, assuntos.
21
Linha de costura, 2010. Livro sem numeração de páginas.
195
Podemos pensar a linha em sua obra, tanto no desenho pictórico, como na linha escultórica.
Para Edith, a natureza da linha é muito ambígua, por um lado é traço, expressão da matéria do
corpo, do sensível, do digital, e por outro lado é conceitual, mental, abstrata.
Como o papel não estava abarcando seus registros passou a trabalhar em outras superfícies,
para sua pesquisa do desenho. Usando o pano como base de seu trabalho, pesquisou
espessuras, recortes, até chegar à costura. Novamente, a ação do desenho de ir e vir, a ação
poética e construtiva, no ato de costurar. Pano, tecido, que também é uma trama, cheia de
linhas, tem um desenho próprio de acordo com sua textura. Continuando sua exploração de
matérias possíveis para entender a linha, encontrou o plástico. A costura da linha sobre este
material mole, frágil era sem controle, tornando o percurso do desenho quase autônomo, ele
fazia-se em caminhos próprios; a linha e plástico queriam tomar corpo, quase virando um
objeto. Nesse caminho, para entender como a linha tem um corpo, também trabalhou com
papel de seda, e assim foi descobrindo a característica de cada suporte, suas resistências e
vontades.
O papel se rompe, então usa colagens, sobreposições, criando volumes. Nesse momento sua
obra dialoga com as Droguinhas de Mira Schendel (que usou papel japonês retorcido),
formando objetos tridimensionais, invadindo o espaço. Derdyk percebe que, o papel deixou
de ser suporte, para ser espaço, e descobre a delicadeza do papel e a independência da linha.
Suas costuras foram criando corpo, aglomeração, acúmulo de linha sobre linha.
22
Vídeo Museu Vivo: Edith Derdyk. Documenta Vídeo Brasil / Sesc TV. Direção: Cacá Vicalvi. Ano de Produção:
2010. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=SYP3gacfIM8. Acesso em: 15 nov. 2013.
196
Seu desenho, que começou como percurso da linha no papel, começa a fazer o percurso da
linha no espaço, surgindo, por volta de 1997, suas primeiras instalações; quando começou a
construir as linhas no espaço com fios, usando seu corpo como o instrumento para desenhar
no ar. Para, conseguir visualizar, o traçado da linha no espaço, desenhava seus projetos e
passou a construir maquetes. Em nossas conversas, percebi que a artista tem muita clareza de
sua pesquisa, de sua poética, de suas experimentações. A artista explora a linha no espaço em
várias situações e lugares, expandindo ao máximo suas pesquisas, seja suspendendo matérias,
seja construindo espaços no ar.
Alice Ruiz traduz sua obra na poesia Sem Palavras (apud Derdyk, 2007):
sumiê de fios, de folhas, sem tinta e sem pincel, onde o espaço faz papel de
papel, o fio faz o efeito da escrita, os livros, fios em branco, são lidos pelo
avesso, de lado, de outro, de soslaio, os fios das folhas em ritmo, ora gráfico,
ora elétrico, escrevem rimas ricas, linhas em todas as direções devolvem,
resolvem nosso emaranhado enquanto flutua a dura madeira, nua carne,
árvore madura suspensa, susto que pensa, presente, arrepio de pêlos que
nascem, atravessam passam, morrem no pálido da pele onde ainda persiste
um nada que se move na força dos fios e revela sua leveza e eleva o peso do
espaço com todas as palavras não ditas
197
5.2 Livros experimentais
Derdyk, sempre, utilizou Cadernos para desenhar, escrever suas ideias, realizar registros de
pensamentos em diferentes linguagens. Acredita que, sua aproximação com o Livro de Artista
surgiu, do convívio com os Cadernos, que eram verdadeiros diários poéticos, além do diálogo
com suas próprias experimentações artísticas.
De acordo com Silveira (2008: 112), Cadernos pressupõem registros, de ideias, textos
autônomos ou simplesmente sequência de imagens; além de experiências pessoais através do
desenho, como o fez Carlos Scliar, em O caderno de guerra de Carlos Scliar (1969), ou
apresenta o trabalho como um híbrido entre o confessional e a peça de divulgação, como em
CadernosLivros (1978), de Artur Barrio.
Figura 144: Ibiscos e rabiscos, Edições Terra à vista, 1982. Impressão com serigrafia. Tiragem: 300
exemplares.
198
Seu trabalho é marcado pelo desenho, pela linha, por papéis e livros. A artista explora muitas
possibilidades, na relação com o objeto livro, evidenciando a natureza dos materiais. O livro
como tema plástico e a exploração da plasticidade de seus componentes físicos, como o papel,
páginas, linhas, tornou-se um tema recorrente em sua obra.
Derdyk pensa o Livro de Artista como uma mídia, suporte poético, abordando e congregando
a convivência das diferenças. Agrega verbal e visual, procedimentos de construção artesanais
e tecnológicos e uma diversidade de conhecimentos, como narrativa, texto autoral,
manuscrito, imagem, gravura, reprodução, tipografia. “É a palavra que se diz imagem e a
imagem que se diz palavra” (In Neves, 2009: 162).
Linha de Costura é um livro de poemas, que, foi feito a partir de seus escritos em cadernos de
anotações. Aqui, o tempo é pensado como texto respirável, e o texto virou uma costura no
espaço do papel, sendo contínuo, nada fragmentário. Texto, que tece as palavras, formando
199
tramas, tessitura. O espaçamento irregular usado na diagramação dos textos, assemelha-se
visualmente, ao rastro da linha deixada no avesso da costura. “A costura traduz um
movimento circular, se repete exaustivamente”23. Edith Derdyk, pensou o branco do papel
como um elemento de pausa, respiro, ou seja, como componentes visuais e expressivos, que
dão ritmo à leitura. Texto e espaço estão conversando o tempo todo, havendo um diálogo com
Mallarmé. A artista não o considera um Livro de Artista, todavia, fica evidente, que sua
proposta vai além da literatura, uma vez que a organização visual do texto propõe uma
experiência, que explore graficamente os espaços em branco, respiros e pausas, quase
seguindo uma partitura visual.
Vão são escritos sobre um livro de uma linha só, onde a artista trabalhou com a ideia da linha
única. Ao virar a página, o olho faz um percurso para a leitura, formando uma linha circular.
Esta obra dialoga com os Cadernos de Mira Schendel, que também, possui movimento e
circularidade. Nas produções de Derdyk é percebida a importância do ato de manusear o livro.
A obra deve concretizar-se com a participação do leitor, a narrativa verbal completa-se com o
movimento visual de suas páginas. A palavra, a escrita se tornam signos, linhas, e o leitor é
desafiado a criar sua própria leitura visual da obra.
Figura 146: Vão, Edições A, 1999. Impressão digital. Tiragem: 100 exemplares.
23
Linha de costura, 2010. Livro sem numeração de páginas.
200
A proposta do Livro de Artista O que fica do que escapa era, conferir tatilidade às imagens
da página, incorporar textos a essas imagens (como se um fosse parte do outro), por isso, o
uso de papel vegetal (o que permitiu certa transparência), unindo palavras e imagem.
Conforme viramos as páginas, a imagem da montanha vai caminhando pelas bordas, podendo
localizar-se em cima, em baixo ou nas laterais da página.
Figura 147: O que fica do que escapa, Edições A, 2001. Impressão digital. Tiragem: 100 exemplares numerados
e assinados.
Suas instalações, desenhos feitos com linhas que transpõem o espaço, são trabalhos efêmeros.
Por isso, a artista começou a fotografar, diferentes situações dessas linhas, construídas no
espaço, como seu ir e vir, o fazer e o desfazer, a linha tensa e a linha solta. Percebeu que as
imagens geradas não eram apenas registros, mas sim um novo trabalho, nova poética,
surgindo uma série de Livros de Artista, onde ela poderia percorrer e experienciar outras
narrativas.
201
Como Rasuras, Livro de Artista, com dois metros e meio de comprimento, costurado ao meio
em cima de uma mesa, também chamado de Livro-Mesa. A proposta era que, as imagens
poderiam ser articuladas entre elas, as pessoas poderiam manipular esse livro, reconstruindo
uma narrativa e a relação de tempo e espaço. Havendo um jogo combinatório, e,
possibilitando que o mesmo virasse um livro sem fim. A partir da manipulação e da
brincadeira, haveria sempre a criação de novas formas, como ocorre em Bichos, de Lygia
Clark e nos livros manipuláveis, de Lygia Pape.
Figura 148: Rasuras, Edições A, 2002. Impressão digital - Takano. Bolsa Vitae. Tiragem única.
202
Fiação, obra feita a partir de fotografias de fiação elétrica e pedaços de parede, do atelier da
artista, ocorrendo uma sucessão de imagens, rastros, justaposições. A artista começou a
fotografar as linhas do mundo, as fiações elétricas. No livro trabalhou essas conexões e
desconexões, continuidades e descontinuidades das linhas, que percorrem a geografia das
cidades. Foi construindo a relação entre as linhas e as imagens, gerou uma continuidade
espaço-tempo. Relacionou interior e exterior, atelier e cidade. Esse livro pode ser manipulado,
recriando relações, leituras e narrativas, imaginando combinações infinitas.
Derdyk possui um olhar sensível às linhas que estão no nosso entorno. Ás que estão na
cidade, nas fiações, aquelas que passam segredos, mensagens, informações, gerando
encontros e desencontros, e também às internas, do seu trabalho, do seu espaço. Para a artista,
esse livro concretiza-se quando é aberto pelo fruidor, o ato de manusear a obra inaugura o
203
tempo. Assim como ocorria nas obras de Lygia Pape, Livro do Tempo e Livro da Arquitetura,
essas concretizavam-se com a manipulação do leitor.
A linha para a artista é o encontro entre as coisas, o espaço gerado entre uma página e outra,
entre um papel e outro. Suas imagens criam um grafismo, uma continuidade do que está
dentro do volume e de fora, das capas ou laterais do livro. Pensa o espaço em branco, a
respiração da obra, assim como fez Mallarmé no poema Un coup de dés. Espaços que dão
novos significados para a visualidade de sua página. O Livro Partitura também nos remete à
ideia da leitura em voz alta, da sonoridade. Mais uma vez, a importância da presença do leitor
construindo sua narrativa plástica.
204
Livro Cego é um livro tátil, livro-objeto que invade o espaço, objeto tridimensional. Objetos
que foram prensados, empilhados e perfurados. Ao ser vedado, parafusado, o livro entra em
contradição com sua condição de fonte de conhecimento, gerando uma não leitura. Narrativas
que não podem ser vistas, escritas ocultas, páginas vedadas, o ritmo não se desenvolve.
Trilhos, continuidade de linhas, na linha do trem, metáfora visual e verbal. Cada pedaço da
linha do trem é registrado, formando uma circularidade sem fim. Sobre algumas imagens,
podemos ver marcas de ferrugem, sinalizando a passagem do tempo, a passagem do trem.
Mais uma vez a artista usa o parafuso para vedar seu livro, havendo uma relação com a
materialidade (metal) dos trilhos.
205
Figura 152: Trilhos, Edições A, 2007. Tiragem única.
A obra Desenhos consiste nos registros de projetos de Derdyk, fotos, escritos e pensamentos.
Suas reflexões e observações transformaram-se na matéria para essa obra; onde trabalhou o
diálogo entre suporte e conteúdo.
Figura 153: Desenhos, Edições A, 2007. Impressão Gráfica Águia - offset. Tiragem: 100 exemplares.
No livro de parede Se o mar inteiro sob o leito de um rio, a artista trabalhou procedimentos
de repetição, criando linhas imaginárias que, se deslocam na folha de papel em branco. Versos
atravessam o pensamento e inscrevem-se, sobre o papel, formando uma massa gráfica escura.
Linguagem fluida, transformadora, onde substantivos, adjetivos e advérbios relacionados com
a água, formam uma poesia visual. Busca pela justaposição de versos e pensamentos.
206
O suporte é a linguagem, porque não só é a base do texto, mas também, um volume plástico, a
própria obra. Fazendo com que a artista tivesse nessa obra, uma aproximação maior do
conceito de livro-objeto, ocupando o espaço, como em uma instalação.
A metáfora do movimento do mar se realiza, o tempo inteiro, indo e vindo, falando e não
falando, a onda do mar em um movimento de, vai e vem. As palavras cruzam o livro todo,
vazando ou comprimindo, em momentos diferentes.
O texto também não é só texto, mas imagem. Suas palavras perdem o sentido semântico,
tornam-se signos visuais, livres de seus conteúdos verbais. Assim como, na obra de Mira
Schendel, que trabalhava com a materialidade das palavras.
Em deslize, foi um Livro de Artista, formado a partir dos registros de partes de sua instalação
Manhã, exposta no Paço das Artes (2005), formada por diversos tipos de empilhamento de
207
papéis. A artista passou a observar que, os espaços entre um papel e outro, formavam linhas.
Também trabalhou a linha suspensa, a gravidade que pesa. O branco do papel era visto como
campo de representação do desenho. O vazio, entre os espaços, gerou novas imagens, frestas
entre os vazios, entre as folhas. Livro mole que, desliza sem controle, maleável.
Figura 155: Em deslize, Edições A, 2010. Tiragem sob demanda - primeira edição: 10 exemplares.
Para a artista, o espaço entre papéis são escrituras, caligrafias, formas de escritas, tal como a
escrita arcaica. Ela afirma que, a palavra está em tudo, mesmo na imagem; uma vez que ativa
as imagens mentais o tempo todo. O espaço, entre a palavra e a imagem é muito íntimo,
deixando-as interligadas. Derdyk busca a origem da palavra, gerando um Livro de Palavras,
contudo, sem palavras.
208
Quadrante tem o formato quadrado, todavia possui uma circularidade, conforme as páginas
são abertas, permitindo uma combinatória de cores. Em uma das páginas, aparece um texto
com diferentes definições da palavra quadrante: “qualquer das quatro partes em que se divide
uma circunferência; quadratura do círculo; superfície sobre a qual se desloca um ponteiro
indicador; razão insana cujo módulo se multiplica em progressão geométrica; rosa dos ventos;
instrumento óptico de reflexão...”.
Figura 156: Quadrante, Edições A., 2011. Tiragem sob demanda - primeira edição: 10 exemplares.
Avesso traduz o desejo de refletir sobre o espaço, páginas em branco. Dialoga com suas obras
Fresta e Em deslize, já que nelas também pensa, sobre o avesso, os vazios, pausas e respiros.
Avesso constrói uma continuidade, aludindo à possibilidade de leitura de um livro em aberto,
cujas páginas-imagens, de folhas de papel em branco, sugerem escrituras a serem decifradas.
As páginas desfolham-se em um tipo de articulação, que promove múltiplas possibilidades de
leitura, não necessariamente lineares.
209
Figura 157: Avesso, Edições Tijuana, 2012. Tiragem: 25 exemplares numerados e assinados.
Atilho e Metragem são Livros de Artista que, seguem a mesma proposta de Rasuras, pois, a
criação de imagens são geradas a partir do registro das montagens e desmontagens de suas
instalações. Atilho nasceu a partir da desmontagem de Arcada24. Em suas páginas podemos
ver a tensão das linhas atadas da obra, sendo desfeita pelas mãos da artista, em movimentos
suaves e silenciosos, ocorrendo o movimento contrário ao seu processo criativo. Atilho é
amarrilho (fita, barbante, palha ou coisa semelhante, que sirva para atar ou ligar), nas imagens
vemos o desfazer, desunir, soltar, relaxar, formando uma poesia da linha, que se completa em
cada página.
24
Exposição realizada em 2013, na Galeria Mário Schenberg, em São Paulo.
210
Figura 158: Atilho. Edições A, 2013. Tiragem sob demanda - primeira edição: 10 exemplares.
Metragem foi concebida a partir das imagens feitas em vídeo e fotografia, por Ruth Alvarez,
que documentou a montagem e desmontagem da instalação de mesmo nome, Metragem25. A
decomposição dos elementos, que compunham a obra final, acabou por revelar as partes de
um todo.
Figura 159: Metragem, Edições A, 2013. Tiragem sob demanda - primeira edição: 10 exemplares.
Continuando seu caminhar criativo, a artista começa a fatiar livros. Surgiu nova escritura,
escrita que sai de dentro dos livros, nascendo Cifrado. A definição da palavra Cifra seria
conjunto de caracteres, sinais ou palavras utilizados em uma linguagem secreta, ou sinal
gráfico, representado pelo zero, que não tem valor absoluto, e serve para conferir valores
relativos aos algarismos que, o acompanham.
Segundo Derdyk, esse Livro de Artista é uma obra que, se fechou em si, que precisa de um
código para sua leitura, uma decodificação para ser traduzido. Papel torna-se não apenas
25
Exposição Lições da linha, realizada em 2011, no Sesc Bom Retiro, em São Paulo.
211
matéria-prima, mas o próprio significado do trabalho. O uso de uma folha de papel em branco
ou diversas folhas empilhadas, transforma totalmente o significado poético da obra.
Ao, cortar livros ao meio, sua páginas-imagens capturam o avesso do livro, seu interior,
novamente, aparece a relação dentro e fora, interior e exterior, contradições e oposições. As
palavras estariam dentro dessa obra, de forma não tradicional, não legível, como um código.
Um parafuso enferrujado trava o livro, fecha a fonte de conhecimentos, do saber, ocorrendo
assim uma contradição visual. Um livro que, é fechado, vedado, tornando-se mudo, passando
a ideia de que é objeto escultórico (livro-objeto), transformando folhas em monolitos.
Figura 160: Cifrado, Edições A, 2014. Impressão offset - gráfica Águia. Tiragem: 100 exemplares numerados e
assinados.
Binário26 foi pensado, a partir de imagens impressas, cujas matrizes digitais são resultantes da
captura da passagem da luz, que percorre a tela de um scanner. Imagens, cujas características
foram codificadas, sob a forma de dados expressos no sistema binário – zero e um –, (base de
todo sistema operacional da computação eletrônica digital). O registro dessas imagens traduz
a imaterialidade do caminho da luz, no ar, em formas de linhas; que, foram desenhadas (sem
terem sido desenhadas) materialmente. Linhas de luz que existem no ar, desenhos do acaso,
transcritos, decodificados.
26
Livro de artista de mesa que fez parte da exposição Scanner, realizada em 2013, na Galeria Gravura Brasileira
(São Paulo). A artista também expôs Notações coreográficas e Bit_0_1 (série de impressões), e Bit 3D (objeto de
papel empilhado/instalação).
212
Figura 161: Binário, Edições Tijuana, 2014. Tiragem: 25 exemplares assinados e numerados.
Mais uma vez percebo a presença do ato de desenhar, característica tão marcante da artista em
seu processo criativo. O movimento das mãos desenha fendas, para que, feixes de luz sejam
varridos, pela superfície vazia do equipamento, formando linhas resultantes do gesto e da luz.
Ritmos surgem da leitura visual, e do manuseio de suas páginas, quase como uma partitura,
marcando seus tempos, espaços e escritas, por entre as linhas.
Seus Livros de Artista são marcados pela ideia do leitor participativo, leitor-autor. Leitor que,
percebe o livro como um território poético e experimental, criando narrativas próprias, suas
leituras, construindo suas relações. Edith Derdyk permite que, o leitor sinta o livro com todas
suas percepções, e que, novas temporalidades e espacialidades possam ser identificadas no
seu manuseio: “circulares, simultâneas, randômicas, rizomáticas, multidirecionais, sugerindo
diferentes formas de se articular o livro como tal” (Derdyk, 2012: 169).
Palavras e imagens são formuladas, pensadas, de maneira não tradicional. Em suas obras, o
espaço é pensado junto com a visualidade que propõe. Podemos sentir, usufuir, experenciar
diferentes técnicas da visualidade e da escrita, diferentes linguagens e procedimentos. São
sistemas abertos de leitura, onde diversas ações são possíveis.
213
5.3 Costurando o espaço
Edith Derdyk realiza instalações de peças, no espaço, construindo formas através da linha.
Fazendo seu corpo de instrumento de desenho. Desenhando no ar, costurando formas no
espaço. Usa centenas de grampos e muitos metros de linha, que se estendem no espaço,
criando novos planos. Continua sempre, seu processo marcante de repetição, sobreposição,
acumulação. Linhas negras, que costuram, tecem, criam. Alinhava o espaço com este
movimento de ir e vir. “Feixe negro imaterial ocupa volume-vazado” (Derdyk, 2007) 28.
Sua linha risca, cria limites, barreiras e fronteiras ao corpo, porém também une superfícies.
Linha estendida no espaço para ser a expressão de uma linguagem, e não apenas linha. A
artista deixa a linha guiar sua trajetória, respeitando seu caminhar, seu percurso, e assim vai
preenchendo esse espaço, fazendo o volume, construindo a obra. As linhas atravessam o
espaço do desenho, definindo entre si novos espaços.
Segundo Fieira (2015: 76), podemos perceber uma experimentação formal do espaço livro nas
obras de Derdyk, e “essas relações continuam quando o trabalho se expande para o espaço do
mundo”. Não ocorre apenas uma transposição do livro para outro espaço, na verdade o que
muda é a relação física com cada obra.
27
Linha de costura, 2010. Livro sem numeração de páginas.
28
Desenhos, 2007. Livro sem numeração de páginas.
214
Como já havia constatado, a artista tem uma forte relação com o desenho, a linha, o
movimento do desenhar, do traçar a linha em espaços, sejam em folhas ou no ar. Isso fica
muito forte quando a artista ocupa o espaço com suas instalações. Examinando alguns desses
trabalhos, posso entender alguns como grandes Livros de Artista, pois, a ocupação do espaço
de um ambiente ocorre como páginas de um livro. Verificando a instalação da exposição
Ângulos, ao ver as linhas pretas esticadas e tensionadas entre os dois suportes brancos,
podemos pensar em um grande livro aberto no espaço, e as linhas, as escritas que fugiram do
papel para o ar.
Figura 162: exposição Ângulos, 2004. Galeria Marília Razuk, São Paulo.
Em Onde Seca, com suas grandes páginas deslizando entre si, as folhas de papel vão
formando imagens fluídas, que se mostram como um livro aberto, desfolhando, em frente aos
leitores, grandes livros ocupando o octógono da Pinacoteca. Empilhamentos de folhas,
acúmulo; Derdyk ao dispor desses elementos no espaço criou agrupamentos, formando livros
escultóricos, instalações.
Ficando cada vez mais clara a ideia de que a artista relaciona-se em cada espaço, conforme
suas dimensões, e de acordo com a percepção que deseja atingir. Independente do suporte
trabalhado, todos são lugares potentes para expressar sua linguagem.
215
Figura 163: exposição Onda Seca, 2007. Pinacoteca do Estado de São Paulo.
Na instalação Metragem, a artista pretendia discutir a linha, tanto como vetor de força e
campo gráfico, aproximando o mundo têxtil (relação com o bairro Bom Retiro, como setor
têxtil) e o mundo do livro, ao buscar a origem da palavra texto. Segundo Derdyk29, as
atividades de tecer e escrever estão intimamente ligadas, uma vez que a palavra texto, do
verbo latino texere, significa tecer. A obra possui a mesma natureza fluida e tensa, que habita
a linha, seja ela, o fio que vai configurar tramas para os tecidos, ou a linha da escrita que
constrói palavras.
29
Depoimento a Angelica de Moraes, artigo A arte que nasce do papel (2012). Disponível em:
http://www.edithderdyk.com.br/portu/depo2.asp?flg_Lingua=1&cod_Depoimento=50. Acesso em: 8 out. 2015.
216
A linha de sua obra parece escapar do plano do papel para projetar-se no espaço. Novamente a
sensação de um grande livro aberto, com suas linhas desenhando ou tecendo o espaço. A
repetição da linha, também é presente nessa obra, acúmulo de linha sobre linha, linha tecida,
linha escrita, linha que se tridimensionaliza no espaço.
Figura 165: Metragem, 2011. Sesc Bom Retiro, exposição Lições da linha, curadoria de Jacopo Crivelli.
Vejo Tabuleiro como um Livro Instalação, que ocupa o espaço. A escrita acontece com o
movimento da dança, sobre a instalação, escrita corporal. Conforme, acontece o movimento
do corpo das bailarinas sobre as páginas em branco, da instalação, o desenho se forma. Livro
que compõe espaços e ambientes instalativos.
Derdyk constrói obras que dialogam com a exposição que realiza; quando o Livro é colocado
aberto, na parede, no chão, expondo em conjunto todas suas páginas mesmo tempo, em um
mesmo espaço, seria como se quisesse mostrar toda a memória desse livro. A artista adapta
sua obra ao espaço, considerando o livro um lugar.
217
Figura 166: exposição Tabuleiro: 2 ou + Pretextos Poéticos, 2014. Instalação coreográfica (relação da dança
com artes plásticas, música e vídeo). Sesc Pompeia.
218
5.4 Tábula: alinhavando escrituras
Em todos os processos criativos de Edith Derdyk a linha é um elemento que se destaca. Seja a
linha do lápis com que risca incessantemente o papel; a de costura, com que vai preenchendo
o espaço no qual inscreve novas linhas carregadas de sentido; a gráfica, que percorre as
páginas dos seus livros; a tridimensional, que constrói espaços no ar; ou a que surge da sua
escrita, no texto. Como observado antes, tecer está na origem de texto (em latim, a palavra
texto significa texo, texere, textum), costurando relações entre texto e tessitura, sendo esse
mais um desdobramento de seu trabalho.
Essas inquietações levaram-na a estudar a origem da palavra, onde tudo começou. Desde
2009, a artista vem realizando uma pesquisa, que teve como ponto de partida, a leitura de
Bereʼshit: a cena da origem (1993); tradução, que o poeta concreto Haroldo de Campos
realizou da Gênese e do Livro de Jó. Tanto a natureza imagética dos versos bíblicos, quanto a
transcriação feita por Campos, impulsionaram seu trabalho.
O Livro de Artista Cópia: Dia um (2010) é resultado dessas leituras. Derdyk criou imagens,
refletindo sobre o primeiro dia da criação. Dia Um, projeto sobre a primeira página da Bíblia,
que narra a criação do mundo. A artista vai buscar essa página em todas as línguas possíveis.
Dessacralizando o discurso da religião. Investigando o momento inaugural do uso da palavra,
na história da humanidade, onde o verbo começa a nomear e distinguir as coisas.
30
Vídeo Museu Vivo: Edith Derdyk. Documenta Vídeo Brasil / Sesc TV. Direção: Cacá Vicalvi. Ano de Produção:
2010. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=SYP3gacfIM8. Acesso em: 15 nov. 2013.
219
Figura 168: Cópia: Dia um, Edições A., 2010. Tiragem: 50 exemplares.
Derdyk aprofundou-se na busca da origem da palavra como poesia, e sua intersecção entre
escrita e desenho, linguagem verbal e visual. Em 2011, foi contemplada pelo Centro da
Cultura Judaica (São Paulo), para o programa de Residência Artística, onde passou seis
semanas em Jerusalém, buscando referências e experiências da palavra. Nessa viagem de
pesquisa, teve acesso a manuscritos em museus e bibliotecas, conversou com linguistas e
estudiosos, procurando os rastros da palavra criadora pela cidade:
Visitou museus da história do livro, onde a palavra estava em diversos suportes: na pedra,
palavra em forma de inscrições, incisões na argila (baixo relevo); no rolo (pergaminho) ou na
pele contínua (onde a história corre sobre o suporte, gerando experiências com a narrativa
circular); em páginas dobradas, até chegar ao códex, formato, que é conhecido até hoje
(caderno costurado). A escrita oriental é iconográfica, e a palavra se aproxima do significado;
enquanto a escrita da cultura ocidental é fonética, havendo uma dissociação entre o sujeito e o
objeto representado. Distanciando desse modo, o significado e o significante.
31
Das trevas à luz da palavra. Revista ARTE!Brasileiros, 2013. Disponível em:
http://brasileiros.com.br/2013/02/das-trevas-a-luz-da-palavra/?fb_action_ids=4741655216975&fb_action_types
=og.likes#.VGgIGvnF_aY. Acesso em: 16 nov. 2014.
220
Em 2012, residiu por dois meses na Biblioteca José e Guita Mindlin, do Centro da Cultura
Judaica. Durante essa estadia refletiu sobre a palavra e as escrituras sagradas, construindo
toda a base conceitual da obra Tábula, que surgiu a partir dos experimentos e estudos
realizados nessa residência. Desenvolveu e criou a instalação Notações Coreográficas, com
pilhas de bíblias perfuradas, unidas por metros e metros de fios, tecendo espaços.
Tábula (2012) é um desdobramento de sua leitura do livro Cena de Origem, em cuja tradução,
Haroldo de Campos baseou-se na escrita originária, direto do aramaico/hebreu arcaico.
Gênese é uma das primeiras narrativas arcaicas, em forma de poesia, que trata da mitologia da
criação na cultura ocidental; demonstrando, que a palavra em estado poético e imagético
nasce desses primeiros relatos da origem do mundo, cuja estrutura da língua é consonantal,
distante de nossa experiência de palavra que é calcada na linguagem fonética (sistema de
sinais para a representação dos sons).
Tábula remete a placa de argila ou madeira revestida de cera na qual os povos antigos
(assírios, sumerianos) faziam inscrições, permitindo que fosse escrita e reescrita, gerando um
conjunto de sobrescrições invisíveis. Nesse sentido, pode-se dizer, que Derdyk propõe uma
arqueologia ao contrário. Tábula rasa, superfície sobre a qual não há ainda nada escrito, como
a folha de papel em branco, que receberá as escrituras.
221
Figura 170: Tábula, 2012.
A artista fotografou a primeira página de diversas bíblias, com origens variadas (diferentes
versões, edições, idiomas, formatos, tipologias); realizou sobreposições dessas imagens e
textos no computador, fazendo interferências gráficas e visuais. A escrita foi perdendo seu
significado semântico, virando uma massa de texto sobre texto, tornando-se imagem. Letras e
palavras passam a ser lidas visualmente, e não como texto. Realizou intervenções sobre esses
escritos, como buracos, furos, rasgos, escritas e rabiscos, trabalhando a transparência e
sobreposições. Fotografou novamente, trabalhou a imagem digitalmente, imprimiu e voltou a
interferir com caneta, tinta ou outro material, e formaram-se as páginas do seu Livro de
Artista. Gerando, em torno de seiscentas imagens.
222
quase total. Imagens densas, quase ilegíveis, que geram manchas, texturas, que compõem um
espaço, fazendo referência à própria origem da palavra texto, que é tecer, textura. Aqui a
artista descreve como foi esse processo:
32
Das trevas à luz da palavra. Revista ARTE!Brasileiros, 2013. Disponível em: http://brasileiros.com.br/2013/02/
das-trevas-a-luz-da-palavra/?fb_action_ids=4741655216975&fb_action_types=og.likes#.VGgIGvnF_aY. Acesso
em: 16 nov. 2014.
33
Idem.
223
Figura 172: Tábula, 2013.
Nesse tempo, em contato com a artista, ficou muito claro em seu processo criativo que,
sempre revisita-se, percorrendo sua obra com novos olhares, buscando novas significações.
Derdyk retoma uma ideia, aprofundando-a, retrabalhando-a, gerando leituras, processos e
resultados igualmente novos. Isso ocorreu com sua procura da origem da palavra, onde a
artista sai pelo mundo em busca da palavra original, de onde tudo começou, e suas buscas,
estudos e pesquisas levaram-na a diversos procedimentos artísticos, um entrelaçando-se no
outro, sempre em continuidade. Vejo sua produção como um grande tecido, onde as partes
vão sendo, pouco a pouco, entrelaçadas, formando sua tessitura, completando-se e
resignificando-se, sempre.
224
Figura 173: Tábula, 2015. Livro contemplado pelo Edital Proac, em parceria com Edições Ikrek. Tiragem: 50
exemplares assinados e numerados.
Tábula foi premiado pelo edital ProacSP, resultando em 2015, na impressão do Livro de
Artista, gerando mais um desdobramento de sua pesquisa, que começou com a leitura de
Gênesis. Em sua transcriação poética, Campos usou um sistema combinatório da linguagem,
método de interpretação, criação e recriação, para reinterpretar o momento da criação do
mundo e dos homens. Linguagem aberta, possibilitando, que cada leitura realizada mudasse o
sentido da escrita. São palavras propulsoras de imagens.
A partir disso, Derdyk criou arqueologias da palavra, imagens infinitas. Começou a fazer
estudos sobre, que imagens essas palavras passavam, eram geradas, criando cerca de cem
imagens resultantes de múltiplas sobreposições de textos extraídos da primeira página de
bíblias diferentes. Imagens, que tornaram os textos quase ilegíveis, problematizando a relação
entre o texto originário, escrito em aramaico e o texto fonético ocidental. Nessas
sobreposições, o design de cada Bíblia se faz presente pelas marcas do tempo, pelas
capitulares e colunas, na maneira como cada página foi construída e também o espaço em
branco, gerado pelas camadas de textos.
225
Figura 174: Tábula, 2015.
Esse Livro permite caminhos não lineares a cada olhar. Foi desenvolvido com páginas
dobradas, possibilitando uma leitura combinatória, gerando um processo infinito de fruição. A
artista, sempre, pensa o leitor como coautor de sua obra ao reconstruir narrativas, na medida
em que, folheia os livros de formas múltiplas. O fruidor pode realizar mais de uma
interpretação, entre tantas, que houver ao longo dos séculos sobre esse texto originário.
Tábula foi elaborado a partir de montagens combinatórias, onde cada exemplar seria uma
obra única, já que as impressões de suas páginas foram montadas aleatoriamente, sem ordem
específica, possibilitando acasos e significados aleatórios.
226
CONSIDERAÇÕES FINAIS DESTA PESQUISA
No caminhar desta investigação, a proposta foi buscar o diálogo entre palavra e imagem, nas
produções de Livros de Artista do poeta Ronaldo Azeredo e dos artistas escolhidos, Mira
Schendel, Lygia Pape e Edith Derdyk, explicitando como ocorreu esse encontro e qual o
diálogo entre materialidades, suportes, procedimentos, investigando se, as fronteiras entre
linguagens permanecem fluidas, intercambiando-se.
Partindo da mesma premissa do autor Paulo Silveira (2008), que considera o Livro de Artista
como um projeto artístico inteiro, ou seja, uma obra de arte com forma direta ou
indiretamente inspirada nas conformações do livro, trazendo para as Artes Visuais a
possibilidade do uso múltiplo da palavra escrita, oferecendo novos universos discursivos,
emprestados da literatura, esta pesquisa delineou-se.
Na leitura dos Livros de Artista de Schendel e Azeredo, foi traçada relação entre seus
trabalhos, buscando o que essas obras têm em comum, além de suas especificidades. Cada um
percorreu um caminho: enquanto a artista usou a palavra desprovida de significados
semânticos, transformando-as em imagens, em matéria, Azeredo partiu da palavra na Poesia
Concreta, usando a visualidade da página em branco, para depois trabalhar esse código em
poemas visuais e objetos tridimensionais. Ambos trabalharam profundamente com a palavra,
em suas produções.
227
artistas plásticos passaram a resgatar a origem visual das palavras, incorporando elementos
verbais nas obras, letras, fragmentos de textos, escrita.
A escrita, tanto como elemento gráfico, quanto conceitual passou, assim, a participar da
construção de novos sentidos, nas obras de Arte. Essa percepção, dos artistas modernos, sobre
a relação da palavra com a imagem, reflete novas formas de relação do homem com o mundo:
Na obra de Ronaldo Azeredo, essa relação pode ser observada. O poeta testou profundamente,
os limites das fronteiras das linguagens, mesclando, gradualmente, palavra e imagem,
trabalhando ora com uma linguagem, ora com outra, associando ambas e construindo sua
poética. Suas produções transitam livremente dentro do verbal e do visual, em que a palavra
escrita foi trabalhada, dentro da visualidade, de maneiras múltiplas, criando assim novos
universos discursivos.
Schendel também estudou muito as potencialidades gráficas das letras por meio das muitas
explorações de suas formas; como a repetição de uma mesma letra, seu uso em tamanhos
variados, em formato maiúsculo ou minúsculo, manuscrito ou com os tipos transferíveis
(letraset). A artista nos permite visualizar uma partitura, com possibilidades infinitas de
composição, assim como acontecia com a Poesia Concreta, ocorrendo assim, mais um ponto
de encontro com Azeredo.
228
Mallarmé converge o visual e o verbal, diluindo as fronteiras entre o fazer do poeta e o fazer
do artista plástico. Azeredo rompe com o verso em sua Poesia Concreta, para depois trabalhar
a visualidade. Tanto seu trabalho como o de Schendel, nega a subordinação entre imagem e
texto, ou entre estes e o fundo, assim como também “negam atribuições linguísticas
funcionais únicas entre as palavras” (Borges, 2011: 92).
Analisando as obras de Mira Schendel, percebeu-se que havia muitos elementos em comum
com a Poesia Concreta, como sua estrutura dinâmica, o apelo à comunicação não-verbal. O
Poema Concreto comunica a própria estrutura, é um objeto em e por si mesmo, assim em sua
obra, que poderia ser considerado Poesia Visual. O uso da gestalt (figura e fundo), e
principalmente, a forma como a artista dispõe das letras na superfície de seu espaço de
criação. As letras formam imagens, e sua obra tem sonoridade, ritmo, movimento.
Schendel utilizou uma constelação de palavras, como é sugerido nas bases da Poesia
Concreta, em oposição ao uso da palavra alinhada ou versificada (Bandeira; Barros, 2008:
197).
Mallarmé potencializou a imagem de uma forma estrutural – de dentro para fora do poema –,
“criando constelações de palavras (cada conjunto de “estrelas”, com luz própria, significando
na mesma dimensão de seu conjunto e permitindo múltiplas combinações e leituras)” (Leite,
2011: 23).
Nas obras de Schendel, Azeredo e Derdyk, destaca-se a importância visual dada ao espaço
branco da página (figura e fundo dialogam). O respiro, a pausa, o silêncio, enfim, o uso do
branco do papel como espaço compositivo, conceitos que também são importantes na Poesia
Concreta. “A poesia concreta começa por tomar conhecimento do espaço gráfico como agente
estrutural. Espaço qualificado: estrutura espaço-temporal” (Campos; Pignatari; Campos,
2006: 215).
229
Palavra e imagem recebem um tratamento diferenciado dentro do espaço da página, onde
poeta e artistas brincam com os elementos sígnicos e visuais, explorando a relação entre eles e
entre o espaço que os circunda. Ocorre a valorização do suporte como componente sígnico.
Com o verso em crise, a página em branco passa a delimitar/ampliar esse vazio. “O branco –
silêncio verbal – entra na composição do ritmo, não mais impresso pela métrica tradicional e
pela tônica dos versos” (Leite, 2011: 30).
Concordando, com as tendências visuais, do design gráfico dos anos 1950 e 1960, os poetas
concretos usavam, geralmente, fontes sem serifa, como a Futura Bold, assim como o fez Mira
Schendel e Azeredo. Ao ampliar os conceitos artísticos, os Futuristas permitiram maior
aproximação entre as artes: poesia, pintura, escultura, música, dança, teatro, cinema. Além
dos futuristas, cubistas, dadaístas e construtivistas fizeram grande uso da tipografia em suas
criações, apropriando-se de diversas técnicas tipográficas. O uso experimental da tipografia
trouxe o princípio da materialidade, que produz significações.
Um livro que é uma forma híbrida, é livro, é arte, é texto, desenho, pintura,
escultura, instalação, fotografia, literatura, gravura, artes gráficas. É uma
nova linguagem com a ampla integração do verbal e do visual. [...]
Materializa ideias, pensamentos executados e gerados pelo artista, o qual
transporta ao objeto livro diferentes dimensões, novas configurações e
significados, propondo novas leituras (Silva, 2007: 69).
230
Diversos autores verificam que, a experimentação de técnicas e materiais é recorrente na
constituição do Livro de Artista. Além da apropriação de componentes formais, culturais,
gestuais, gráficos, simbólicos e comunicacionais, “além de registros sensíveis do livro que se
apresentam como possibilidades a serem experimentadas artisticamente no processo criativo”
(Neves, 2013: 65). É construído, deliberadamente, a partir de um suporte preexistente
(códex), que o artista enaltece ou critica. Após diversas pesquisas e possibilidades de
intervenções, a obra pode até alcançar o estatuto de escultura, abandonando a condição
objetiva de livro.
A sequencialidade das páginas é outra característica desse tipo de obra, onde o artista pode
optar pela continuidade ou pela fragmentação. Diálogos, narrativas, quebras, novos inícios.
Mais um ponto de encontro entre Cadernos (Schendel), o livro-poema Lá bis os dois
(Azeredo), Vão e Cópia: Dia Um, de Derdyk.
Para ler um Livro de Artista é preciso usar todos os sentidos. Explorar de maneira diversa,
com um olhar sem preconceitos, essa nova forma de expressão, diferente do livro apenas
verbal. Olhar, folhear, rever, explorar. Nos Livros de Artista pesquisados, fomos convidados a
tocar, sentir, usando todos os sentidos para isso. Azeredo e Pape chegam, inclusive, a elaborar
um roteiro indicando como apreciar sua obra, folhear sentindo de fato, permitindo que
narrativas criem-se, dando tempo para o surgimento de cada uma dessas narrativas.
O fruidor tem papel primordial para esse tipo de obra, onde sua participação permite que a
leitura se concretize. O Livro de Criação e o Livro da Arquitetura, de Lygia Pape, só adquire
real existência quando é manipulado, quando adquire o formato tridimensional, ocupando a
espacialidade. Derdyk estimula essa manipulação em livros que permitem diferentes
desdobramentos, possibilitando que cada leitor construa sua própria narrativa visual, como no
Livro de mesa ou em Tábula.
231
Há obras em que o verbal aparece como simples palavras, em outras, o verbal surge com a
narrativa que se cria ao folhear as páginas do livro, e o texto vai sendo construído por meio da
visualidade. Outras obras, em que as palavras desaparecem em meio a procedimentos
repetitivos, como camadas, acúmulos e sobreposições, perdendo seu sentido semântico,
virando signos visuais. Em outras, a palavra persiste como som, ritmo, articulação,
combinação, espaçamento, ritmo verbal e visual, gerando diálogos e narrativas.
232
BIBLIOGRAFIA
Nesta relação bibliográfica estão presentes os livros lidos e utilizados na redação dessa Tese, os
utilizados apenas como referência e aqueles que são importantes como referencial para futuras
pesquisas nessa área e que, de alguma forma, possam facilitar a busca de outros pesquisadores.
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BRINCANDO COM O LIVRO DE ARTISTA
Relato das experiências com a produção de livros de artista feita pelos alunos de 1º ano do
ensino médio na Escola Técnica Estadual São Paulo, em 2014.
Na ETESP foi realizado um projeto interdisciplinar entre Artes, Geografia e Meio Ambiente,
com os alunos do 1º ano do Ensino Médio, no 2º semestre de 2014. O projeto foi elaborado a
partir de uma viagem feita pelos alunos e professores aos parques ecológicos de Itu: Parque
do Varvito, Parque Rocha Moutonné, Memorial do Rio Tietê e Parque das Lavras. Após esta
viagem, os alunos realizaram, em grupo, a construção de um Livro de Artista. Cada grupo
tinha como objetivo trabalhar sua produção pensando sobre as temáticas de cada parque; e a
linguagem visual de cada livro deveria se referir a essas temáticas. Com as obras finalizadas,
os grupos fizeram apresentações, destacando o tema trabalhado e o processo artístico da
construção do objeto. Como fechamento do projeto, foi realizada uma exposição com todos os
Livros de Artista produzidos, onde cada grupo criou um título e fez uma descrição poética da
produção do seu trabalho.
239
1) Camadas criativas: 18 cm x 13 cm, um furo, encadernado com fita prata. Capa feita
com papel duro e tecido colado, miolo com oito páginas feitas de papel canson. Esse
Livro de Artista assemelha-se a um guia, possui ilustrações, fotos e texto descrevendo
cada região visitada. Houve cuidado no acabamento e as páginas seguem a forma
inicial da máquina fotográfica.
3) Livro de Artista Vestígios do tempo: 20,5 cm x 13 cm. Capas duras e cinco folhas,
dois furos e encadernação com barbante. Capa: representação das camadas
sedimentares da rocha do Varvito (barbantes colados formando as camadas, com cores
diferentes). Primeira página: foi feito um desenho, em caneta prateada, sobre papel
vegetal, representando o lago congelado. Segunda página: papel vegetal sobre papel
azul, o lago descongelado. Terceira página: base de papel marrom e sedimentos
colados (feitos com terra, café e folhas), o lodo que se tornará rocha. Quarta página:
base de papel azul e camadas feitas de cores diferentes de papel, em tons de marrom e
colagem de café, representando o sedimento caindo sobre o lago.
240
4) Livro de Artista As linhas do Varvito: 29,5 cm x 21 cm. São onze páginas e a estrutura
que serve de base para o livro. Foram feitos desenhos com lápis grafite, que continuam
a imagem das fotografias e diversas intervenções nessas imagens. Camadas, linhas,
molas. As linhas das fotos conversam com a escrita poética, e com desenhos, havendo
o diálogo entre palavra e imagem.
241
2) Caixa e Livro de Artista Moutonné. Caixa com relevo feito de papel machê, verde e
marrom. 25 cm x 21 cm x 3,5 cm. Livro: 20 cm x 23 cm (capa) e 16 cm x 20 cm
(miolo). Páginas encadernadas com barbante, dois furos, nove páginas feitas com
papel reciclado, envelhecido com café. Os alunos trouxeram folhas, gravetos e pedras
do local, o que deixou com aroma de mato e terra. Elaboraram o livro usando vários
sentidos: tátil, visual e olfativo.
242
4) Livro-objeto Escondidinho de pedras: 20 cm x 27 cm x 4,5 cm. Base: livro. Capa:
ilustração e colagens de papel colorido. Nome do parque em cores. Abertura: recortes
com pedras do parque, fundo verde. Livro-escultura. Abre e fecha, movimento.
1) Livro de Artista No meio do rio havia um lixo. Havia um lixo no meio do rio: 10 cm x
15 cm. Dois furos, encadernado com papel enrolado. Bordas queimadas, doze páginas
(frente e verso). Miolo feito com fotos PB, textos e colagens de materiais reciclados.
Título poético refere-se ao poema de Carlos Drummond de Andrade, No meio do
caminho tinha uma pedra / Tinha uma pedra no meio do caminho. O uso de papel fino
enrolado lembrou a obra Droguinhas, de Mira Schendel, onde o papel plano,
bidimensional ganha volume. Segundo os alunos, a proposta foi conscientizar as
pessoas a respeito, dos dejetos que o homem deixa no rio.
243
2) Livro de Artista Viagem pelas águas do tempo: 29,5 cm x 21 cm. Doze páginas. Capa:
recorte de papel brilhante, imitando as águas do rio, título em azul. Estudo do meio,
que aborda todos os temas ou parques. A) Parque do Varvito e seixos caídos (texto), a
imagem abre como um pop-up (desenho das camadas). Texto e fotos do tema,
diagramados. B) Rocha Moutonné: desenho do dinossauro (tema do parque) abre em
pop-up, texto e desenhos do local. C) Memorial Tietê: ponte pênsil abre em pop-up,
percorrendo a página (uso de barbante, fita adesiva vermelha, lápis de cor), com texto
abaixo da imagem. D) Parque de Lavras: texto explicativo, em uma página, e na outra
o desenho do rio, feito com lápis de cor. Sobre esse desenho, há duas camadas de
papel transparente, cada uma com camadas de lixo (algodão representando a espuma
suja do rio, latas de refrigerante desenhadas e outros lixos), conforme, você vira a
página, o rio vai sendo limpo. Em cada camada, há uma foto do rio cada vez mais
limpo. E) Foto da cidade e o desenho da santa padroeira do local, com desenho feito
com lápis de cor. Trabalho com o uso do espaço tridimensional, assim como ocorre
com Poemóbiles, de Julio Plaza e Augusto de Campos. Uso do movimento,
circularidade, participação do espectador para ler a obra.
244
3) Livro de Artista A luz do rio Tietê: sete páginas, formato 28 cm x 21 cm, uso de cores
diferentes. Livro enrolado, formato de volumen, dentro colocaram pedras, e quando
movimenta o trabalho ouve-se um som das águas. Cada página, um desenho, poesia,
colagem ou foto sobre o rio. O tema foi Rio Tietê, construção de grandes homens.
Finalizaram com o poema, de Mário de Andrade, Meditação sobre o rio Tietê.
4) Livro de Artista Tietê: a beleza por trás da degradação: 21 cm x 14,5 cm. Capa dura
trabalhada (massa) e colagens de imagens. Quatro furos, encadernação com fios de
cobre (azul), capas e dezessete páginas, com ilustrações feitas de aquarela, desenho
continuando a fotografia, poesia, imagem e texto. Este grupo também questionou os
problemas ambientais do rio e o mau uso de seus recursos, e retrataram no livro.
245
5) Livro de Artista Rio Tietê, mais que um rio, um sentimento. 16,5 cm x 16,5 cm.
Encadernação sem costura, apenas dobras, formando doze páginas. Capas feitas com
madeira MDF. Materiais usados pelos alunos: cortiça, plástico azul (celofane), lã
acrílica, fotos, materiais recicláveis (lixo) e texto. Livro tátil e sonoro. “O objetivo do
nosso trabalho é representar o estado de poluição atual do rio Tietê. Trabalhamos com
o tato e texturas, usando objetos simples do cotidiano, para demonstrar como não sujar
o rio, e escrevemos frases com sugestões para ajudar a despoluir o rio”.
6) Livro de Artista Rio de Folhas: capas (18 cm x 21 cm) e miolo com oito páginas
transparentes (14,5 cm x 18 cm). Formato: dobradura, o rio vai se abrindo. A ideia dos
alunos foi passar a transparência do rio para o material usado no suporte. Na capa, um
desenho, a lápis, imitando o movimento das águas. Poesias, desenhos sobrepostos nas
fotos (intervenções de lápis grafite sobre cada foto). O grupo falou que, devemos
cuidar do rio, e sua história deve ser passada de geração para geração, e como “um rio
de folhas é frágil e continua vivo, depois do fim”.
246
7) Livro de Artista Tietê: 16,2 cm x 20 cm. Dois furos. Capa: de um lado azul,
representando o rio limpo, e miolo, com fotos da nascente, e limpeza. Do outro lado,
colagens de aviso de perigo, tóxico, rio poluído, fotos da poluição. Fotos, frases e
desenhos. Assim como Azeredo, em Armar, trabalharam o positivo e o negativo, lado
bom e lado ruim.
8) Livro de Artista Rio Tietê: 42 cm x 30 cm. Capa dura: colagem de fotos PB, notícias
sobre água e rios, e desenhos de gotas, feitas com canetinha azul. Um furo
encadernado com uma corrente. Capa e cinco páginas internas, feitas com papel
canson. Uso das cores azul e preto: poluição e limpeza do rio.
9) Caixoeira: caixa e mini Livro de Artista, com seis páginas coloridas (9 cm x 10 cm,
um furo, barbante). Dentro, uma cachoeira feita de papel machê e representação de
lixo (recicláveis, algodão, papel amassado). Interativo, a pessoa pode tirar o lixo do
rio. No livro, houve a narrativa colaborativa da classe, onde cada um contou sua
experiência no local.
247
4. Parque das Lavras
Lavras, foi a segunda Usina Hidrelétrica construída no leito do rio Tietê, inserida no processo
de modernização, do Estado de São Paulo.
1) Livro de Artista Transparência de Lavras. 29,5 cm x 21 cm. Capa feita com papel
preto com foto PB do local. Encadernado com fita preta, um furo. Livro formado por
cinco folhas transparentes, de papel vegetal. Os desenhos foram feitos com canetinha
preta e texto escrito a lápis. O desenho se constrói conforme muda a página, dialoga
com os Cadernos, de Mira Schendel, circularidade e movimento.
2) Caixa e Poema Visual: A arte se constrói. Caixa feita de papel pedra (granito rosa),
formato: 6 cm x 6 cm x 3 cm. Poemas: duas fotografias para montar (doze quadrados
com 5 cm x 5 cm cada um): turbina e paisagem, um desenho (dez quadrados com 5 cm
x 5 cm) e a frase: Livro de artista, a arte se constrói (doze quadrados com 5 cm x 5
cm). Nessa obra, é necessária a participação do público para acontecer, não havendo
apenas contemplação. Foi baseado na obra Armar, de Ronaldo Azeredo.
4) Livro de Artista Vermelho: oito losangos (páginas) com 15 cm x 15 cm, feitos com
papel cartão vermelho e texto em tinta branca. Desenhos de lápis grafite sobre papel
sulfite branco. Um furo com corrente e dois furos com pinos. Base inicial: dois
losangos com um furo (em cima) unindo essas duas partes com uma corrente;
embaixo, um furo em cada, de onde saem mais três losangos (dois vermelhos com
texto e um branco com desenho) de cada um. A forma, em que esse livro foi
construído permite uma brincadeira, lendo e abrindo de diversas maneiras; dialogando
com Lygia Clark e seus Bichos, movimento e interação.
5) Livro de Artista Lâmpada: 22 cm x 16 cm. Capa: base de papel duro, papel color set e
papel prateado: livro com formato de uma lâmpada, traduzindo o tema; cinco furos,
encadernação com arame vermelho, em espiral. Seis páginas. Desenhos, fotos,
transparências, textos. Referência à hidrelétrica.
249
6) Livro de Artista Retalhos de viagem: 21 cm x 29 cm. Quatro furos, encadernado com
arame coberto com plástico preto, representando os cabos que passam energia. Capa
com foto e desenho, de lápis grafite, recortados na diagonal. Miolo, dez páginas de
papel sulfite, mesclando desenhos, fotografias e frases poéticas, que se referiam às
imagens usadas.
7) Livro de Artista Luz: livro em forma de dobradura, formato 10,5 cm x 10,5 cm. Capa:
placa de cobre com o desenho de uma lâmpada. Miolo: desenhos em lápis de cor,
colagens de frases e desenho. Conforme o livro é aberto, a frase vai se formando: De
onde / vem / a energia que / acende / o LED? / Da usina hidrelétrica / ao lado /
(desenho da hidrelétrica feito em lápis de cor). O livro tem uma pequena lâmpada, que
acende, suporte dialoga com o material usado na construção da obra.
250