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AnaSantos Dissertacao PDF

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MESTRADO EM ESTUDOS LITERÁRIOS, CULTURAIS E INTERARTES

RAMO DE ESTUDOS COMPARATISTAS E RELAÇÕES INTERCULTURAIS

«Para ser visto por uma lente»:


A imagem de Mário-Henrique Leiria

Ana Isabel Rocha Santos

M
2020
Ana Isabel Rocha Santos

«Para ser visto por uma lente»:


A imagem de Mário-Henrique Leiria

Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e


Interartes, Ramo de Estudos Comparatistas e Estudos Interculturais, sob orientação da
Professora Doutora Joana Matos Frias.

Faculdade de Letras da Universidade do Porto

setembro de 2020
«Para ser visto por uma lente»: a imagem de Mário-
Henrique Leiria

Ana Isabel Rocha Santos

Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e


Interartes, Ramo de Estudos Comparatistas e Estudos Interculturais, sob orientação da
Professora Doutora Joana Matos Frias.

Membros do Júri
Declaração de honra ..................................................................................................................... 7
Agradecimentos ............................................................................................................................ 8

Resumo.......................................................................................................................................... 9
Abstract ....................................................................................................................................... 10

Introdução ................................................................................................................................... 11

1. Preliminaridades ................................................................................................................. 16
1.1 Percursos da imagem surrealista ................................................................................ 16
1.2 Experimentalismo intermedial no contexto português .............................................. 27

2. «SÓ A IMAGINAÇÃO TRANSFORMA. SÓ A IMAGINAÇÃO TRANSTORNA» .......................... 38


2.1. Do Sobreporismo: o discurso crítico de Mário-Henrique Leiria .................................. 38
2.1. A engrenagem poética ................................................................................................ 52

3. Trajetórias pluridisciplinares ............................................................................................... 74


3.1. Materialidades ............................................................................................................ 74
3.2. Pas Pour les Parents: sobre o romance-colagem ........................................................ 90

«Até ao fim das coisas todas»: conclusão ................................................................................. 104

Bibliowebgrafia ......................................................................................................................... 109


Anexos ....................................................................................................................................... 119
Declaração de honra

Declaro que a presente dissertação é de minha autoria e não foi utilizada previamente noutro
curso ou unidade curricular, desta ou de outra instituição. As referências a outros autores
(afirmações, ideias, pensamentos) respeitam escrupulosamente as regras da atribuição, e
encontram-se devidamente indicadas no texto e nas referências bibliográficas, de acordo com
as normas de referenciação. Tenho consciência de que a prática de plágio e auto-plágio constitui
um ilícito académico.

Porto, 30 de Setembro de 2020

Ana Isabel Rocha Santos


Agradecimentos

Agradeço, antes de tudo, à Professora Doutora Joana Matos Frias, não apenas pela
importantíssima orientação durante o desenvolvimento do presente trabalho e a preciosa
partilha bibliográfica, mas por se destacar na minha jornada académica como uma das maiores
referências entre docentes e investigadores com os quais tive oportunidade de contactar.

Aos meus pais pelo apoio incondicional, por nunca me terem cortado as asas e impulsionarem
os meus projetos futuros.

A toda a minha família, em especial os meus avós, os meus maiores exemplos de resiliência e a
mais importante fonte de conhecimento e carinho de uma vida inteira.

Aos meus colegas, à Adriana, Julio, Plácida, Márcia pela partilha de experiências e interesses,
pelas palavras de motivação e auxílio nos momentos mais complicados, pelas horas de estudo
coletivo e devaneios sobre «surrealismos» sem hora marcada.

À Madalena, por estar aqui desde o primeiro dia e com quem aprendi que o verdadeiro valor da
tradição está na união e na amizade.

Ao Rui, pela paciência e por não arredar pé.

Em especial, fica um gigante agradecimento à Professora Doutora Tania Martuscelli, pela


partilha de notas relativas ao complexo personagem que é o Mário-Henrique Leiria, e por ter
dado o pontapé de saída na incursão pela obra deste artista plurifacetado e misterioso. A
cedência de material visual e plástico exclusivo e (ainda) inédito do Leiria revelou-se
imprescindível na compreensão das várias dimensões da sua produção e deu-me a valiosa
oportunidade de trabalhar com fontes maioritariamente desconhecidas e inexploradas pelo
público.
Resumo

O Surrealismo emerge no panorama estético-literário português do século XX enquanto


prática metadiscursiva que maior proeminência concedeu à multiplicidade de operações
transmediais que se podem estabelecer entre a literatura e as artes visuais. Ao abordarmos
especificamente a obra de Mário-Henrique Leiria, um dos poetas mais importantes na
sedimentação de um tipo de discurso manifestamente subversivo e contestatário na viragem
dos anos 40 para os anos 50, iremos analisar o modo como a poesia reage em constante tensão
com as outras artes, tendo por base um conjunto de conceitos operatórios inerentes ao
movimento surrealista, movido desde sempre pelo forte experimentalismo intermedial e
interartístico.

Palavras-chave: Surrealismo, transgressão, imagem, collage, experimentalismo,


intermedialidade.
Abstract

Surrealism emerges in the portuguese aesthetic-literary overview of the 20th century as a


metadiscursive practice that has given greater prominence to the multiplicity of transmedia
operations that can be established between literature and visual arts. By specifically addressing
the artistic work of Mário-Henrique Leiria, one of the most important poets in the sedimentation
of a manifestly subversive and contested type of discourse at the turn of the 40s to the 50s, we
will see how poetry reacts in constant tension with the other arts, based on a set of operative
concepts inherent to the surrealist movement, always moved by the strong intermediary and
interartistic experimentalism.

Keywords: Surrealism, transgression, image, collage, experimentalismo, intermediality.


Introdução

(…) a Arte, como obra humana e não divina, tem de


evoluir ou, pelo menos, modificar-se, adaptar-se ao
meio ambiente e aos desejos e ambições do homem.
Porque senão, ai de nós, ainda hoje estaríamos a fazer
pintura rupestre e a decorar cavernas ou, no mínimo, a
desenhar monos infantis e primitivos.

Mário-Henrique Leiria

A presente dissertação parte da possibilidade de estabelecer relações temáticas e


funcionais entre a poesia e as artes visuais, tendo por base o movimento surrealista como elo
vinculador de uma reflexão de base interatística e intermedial, imperativa na configuração de
um tipo de discurso contestatário e plural sobre o estado da arte em pleno século XX, e que nos
remete para a importância da era das vanguardas transgressivas na sedimentação de novas
linguagens de rutura e dissolução com visões estéticas do passado. O alargamento do fenómeno
surrealista, que se assume numa linguagem maioritariamente poética, a exercícios do âmbito
da visualidade e da plasticidade, permite ceder lugar a considerações de natureza diversa que
potenciam uma desestruturação dos discursos artísticos tradicionais e arquetípicos. O pós-
Primeira Guerra Mundial ditou um período de torpor e desarticulação socio-política, moral e
artística, e neste contexto o momento das vanguardas disruptivas permite repensar as relações
entre o ser humano, o mundo e as artes através da fomentação de novas expressões estéticas.
Sendo muito mais do que um episódio no panorama artístico europeu, estatuto ao qual chega a
ser reduzido pela crítica, o alcance gnosiológico do Surrealismo tinha em vista uma revolução de
pensamento e comportamentos, estreitando as relações entre a arte e a vida e lutando por uma
anulação das dicotomias que permeiam o quotidiano.

André Breton faz remontar a origem filosófica e literária do Surrealismo aos séculos
XVIII e XIX, a partir de autores como Hegel, Victor Hugo, Nerval e Baudelaire. Contudo, como
é sabido, o termo Surrealismo aparece, numa primeira fase, com Apollinaire, no prefácio do
seu drama Les Mamelles de Tirésias, de 1903. Apollinaire, inicialmente simpatizante de Dada1,
dele se separa, uma vez que o niilismo de Tzara se opunha ao plano filosófico, moral e estético

1
Sempre que possível, optar-se-á pelo termo «Dada», uma vez que os artistas que se identificavam com
os seus princípios eram contra a sua conversão em mais um «ismo».

11
que visionava para o novo movimento. De facto, apesar de herdar dos princípios dada uma
atitude de sublevação e radicalismo crítico na forma de uma prática artística de transgressão,
provocação e protesto relativamente à sociedade burguesa da época, o Surrealismo parte de
uma lógica de destruição e desconstrução de modelos arquetípicos da arte para estimular uma
nova visão expressiva onde impera o Amor e a Liberdade, e onde a poesia abre caminho para
uma consciência cósmica. É isto que aproxima o Surrealismo do Romantismo, na medida em
que ambos defendem uma manifestação metafísica que se reflete a partir da imaginação do
sujeito: o poeta não escreve, vive, é um sujeito hipertrofiado, com uma forma de estar que vai
além da razão e do social para atingir uma consciência transcendente, despindo as ideias
ocultas da realidade e suplantando a explicação racional do mundo ao descobrir um universo
povoado de imagens hipnagógicas, mas puras. Para os surrealistas, a lógica dá uma visão
redutora do hiper-real, sendo que, sob a orientação de Sigmund Freud, devemos encarar o
sonho como elemento estruturante do pensamento e da ação humanas, de modo a lutar pela
legitimação de uma realidade absoluta realizada na crença em formas artísticas e literárias
outrora negligenciadas.

No primeiro capítulo iremos convocar, de forma sucinta, uma sistematização de


noções e premissas elementares subjacentes à conceção de imagem surrealista (enquanto
objeto de estudo ao nível verbal e visual), partindo de mecanismos de montagem presentes
na poesia e nas artes plásticas, impulsionados pelos motores da comunhão e da subversão2,
em simultâneo. Daremos especial enfoque a um conjunto de considerações gerais relativas à
construção e comportamento da imagem poética, tendo por base os princípios basilares do
Manifesto do Surrealismo de 1924, de Breton, onde nos deparamos com uma apologia do
papel da descoberta, em detrimento de mecanismos de invenção e criação original até então
presentes na arte; o autor enfatiza o papel do automatismo e do acaso na criação do choque
imagético e na produção da «luz especial» a partir da fusão dos opostos e do modelo
lautreamoniano.

Ainda num enquadramento sobre o desiderato surrealista, serão tecidas


considerações sobre o panorama artístico português em constante tensão com as
contingências morais e socio-políticas do Portugal ditatorial – sem descurar o claro atraso3 face

2
PAZ, Octavio (1900), «Poèmes muets, objets parlants», in BRETON, André (1991), Je vois, j’imagine:
poèmes-objets, Milão, Gallimard, p.V.
3
Não tomaremos a distância temporal que marca os dois cenários de atuação surrealista enquanto uma
falha ou desvantagem para o panorama português, mas apenas enquanto tópico para uma
contextualização teórica. De facto, como explica Fernando Cabral Martins, a maior conquista do
Surrealismo assenta na sua «resistência a tornar-se história». Acrescenta: «(…) não se pode dizer que haja
atraso no surrealismo português. O surrealismo não é movimento, é um lugar (…). Irrompe na história,

12
ao movimento francês –, e atentando no experimentalismo visual e poético e num posterior
diálogo de continuidade e transgressão com a Poesia Experimental. De facto, existe uma
distinção, no seio do movimento português, entre artistas que produziram uma obra de teor
essencialmente plástico e visual – olhemos designadamente as fotografias de Fernando Lemos
–, face a outros que se dedicaram preferencialmente à componente escrita, e que abriram
espaço a um diálogo dinâmico com a vertente material, como é o caso de Alexandre O’Neill e
Mário-Henrique Leiria.

Partindo das ponderações apriorísticas, teóricas e abrangentes, que recaíram sobre


generalidades do contexto criativo e artístico do Surrealismo português e internacional, os
capítulos seguintes dedicar-se-ão a uma linha de abordagem mais empírica, nomeadamente a
análise da componente crítica, humorística e intertextual, mas sobretudo experimental da
obra de Mário-Henrique Leiria (1923-80), tendo em vista uma incursão mais profunda pelo
diálogo poesia-imagem na sua obra, aquando da sua integração no Grupo Dissidente em 1949.
O leitor é confrontado com uma atitude iconoclasta e um discurso indómito que desde cedo
marcou a atividade artística deste poeta, expressos em textos de crítica do establishment
social, artístico e académico, que serão examinados num primeiro momento de modo a
servirem de contextualização para aquela que é a posição assumida – no exercício
experimental – pelo poeta perante o espectro artístico em análise.

De facto, é aqui necessário salientar a insuficiência de estudos e reconhecimento da


vertente poética e plástica de Leiria, em comparação com a componente satírica e contística à
qual é geralmente associado, desde a publicação dos icónicos Contos do Gin-Tonic em 1973.
Leiria foi peça fundamental na coesão, estruturação e fortalecimento do discurso do
Surrealismo português através da participação nas Exposições d’Os Surrealistas, sendo que se
destaca por um discurso contestatário e insubmisso no contexto do Portugal asfixiado pela
engrenagem pidesca e censória, que tanto limitou a atuação destes artistas. É importante
ressaltar que a seleção do corpus poético e material da obra de Leiria foi possível e
especialmente enriquecida tanto pela consulta do espólio do poeta presente na Biblioteca
Nacional de Portugal e visita à biblioteca e Centro Português do Surrealismo da Fundação
Cupertino de Miranda, em Famalicão, como ainda pela leitura das antologias de poesia, ficção
e manifestos da autoria de Tania Martuscelli, que contemplam uma boa parte do repertório
artístico do poeta.

em diferentes momentos.» In A Ideia – revista de cultura libertária, 2ª série, vol. XXII, nº87/88/89, 2019,
p.12.

13
Transpondo a linha de pensamento abrangente do primeiro capítulo, onde é
inventariada a atuação da imagem surrealista ao nível teórico, técnico e intermedial, a segunda
parte desta dissertação pretende ainda localizar a especificidade da componente poética
leiriana, ou seja, o modo como é problematizada verbalmente a imagem, através de uma análise
dos mecanismos de enumeração caótica, escrita automática, polissemia da palavra,
deslocamentos sintático e visual e efeito de dépaysement (tanto em poemas de Climas
Ortopédicos, como mais significativamente em dispersos e inéditos) que continuarão presentes
na sua produção artística mesmo após a desagregação pessoal do movimento em 1952 – Tania
Martuscelli refere-se aqui a uma «maturação» da prática surrealista4. Atentemos, ainda, numa
forte voracidade antropofágica latente (espaço que partilha com a fotografia, de onde
destacamos a pouppé bellmeriana), de que vive o seu repertório poético, na natureza
tragicómica de alguns contos dispersos, e sobretudo no posicionamento metadiscursivo
assumido um pouco por toda a extensão da sua obra.

Finalmente, serão introduzidas no terceiro e último capítulo, inseridas no panorama


das relações interartísticas que permeiam a presente dissertação, as produções materiais
deste artista sui generis, partindo do desenho, da pintura e da prática do poema-objeto, dando
especial enfoque à collage e fotomontagem, que se assumem como uma forte celebração da
paródia, humor corrosivo, nonsense, pornografia, crítica política, entre outros; aqui iremos
olhar especificamente algum material pictórico e plástico compilado no catálogo d’O
Surrealismo em Portugal (1934-1952), de Perfecto E. Cuadrado e María Jesús Ávila, bem como
uma série de reproduções gentilmente cedidas pela professora Tania Martuscelli, muitas delas
ainda inéditas5. Será uma análise complementada com algumas notas sobre o diálogo
intermedial entre poesia e colagem, desde o modo como este concretiza as premissas
bretonianas de 1924 ao nível pictural e verbal, e a sua importância para o movimento nas
palavras de Aragon, em La Peinture au Défi, Dawn Ades, em Photomontage6, e nos estudos de
Rosalind Krauss sobre fotografia e colagem. Estes estudos servirão de base para uma
correlação intermedial entre Pas Pour les Parents, de Leiria, A Ampola Miraculosa, de O’Neill
e A Pintura em Pânico, do brasileiro Jorge de Lima, em conexão com os romances-colagem de
Max Ernst.

4
Cf. MARTUSCELLI, Tania A. (2006), A poesia portuguesa dos anos 30 aos anos 70: Mário-Henrique Leiria
inédito, Universidade de Massachusetts, p.163.
5
Todo o material facultado pela professora Tania Martuscelli, e que virá futuramente a ser editado num
quarto volume, estará anexado no final do presente trabalho, com a nota «no prelo».
6
Utilizaremos como a referência a tradução espanhola de Elena Llorens Pujol, de 2002, com o título
Fotomontaje.

14
A proposta de investigação aqui apresentada reside fundamentalmente numa análise
de elementos e processos constitutivos da produção verbal e material leiriana, tendo em vista
uma leitura global conciliadora de diferentes faces da imagem poética, desde a técnica de
montagem, o humor, a paródia, a sátira e a ironia – enquanto mecanismos poéticos de
resistência estudados por J. Cândido Martins e Linda Hutcheon7 –, desilusão e desencanto com
a pátria, relação pessoal com a arte, o desejo e o espírito surrealista, criação poética e prosaica
intertextual e, fundamentalmente, os diálogos que pelo meio se estabelecem entre texto e
imagem. Na esteira dos surrealistas fiéis às propriedades criativas engendradas pelo
inconsciente e a imaginação, iremos analisar o modo como a miscigenação transmedial de
propriedades verbais e materiais no conjunto de experimentalismos surrealistas selecionados
por Mário-Henrique influiu e contribuiu na solidificação de uma posição metadiscursiva e das
técnicas ligadas ao automatismo cursivo e visual dentro do panorama estético português sob
análise. Ao submetermos o comportamento da imagem na obra de Leiria à lente teórica dos
Estudos Literários e Interartísticos, apercebemo-nos do gritante extravasamento de fronteiras
entre as artes liderado por um dos mais relevantes acontecimentos histórico-literários em
território nacional, reflexo da fluidez das movimentações de vanguarda do século XX.

7
Cf. MARTINS, J. Cândido (1995), Teoria da Paródia Surrealista, Braga, APPACDM e HUTCHEON, Linda
(1985), A theory of parody: the teachings of twentieth-century art forms, Cambridge, Methuen.

15
1. Preliminaridades

De part et d’autre, c’est la même démarche d’une


pensée en rupture avec la pensée millénaire, d’une
pensée non plus réductive mais indéfiniment inductive
et extensive, dont l’objet, au lieu de se situer une fois
pour toutes en deça d’elle-même, se recrée à perte de
vue au-delá.

André Breton

1.1 Percursos da imagem surrealista

O século XX foi um período de grande volubilidade, permeado de instabilidades político-


sociais, urbanas e morais, de emancipação e impulsionamento de um conjunto de iniciativas
artísticas altamente prolíficas, críticas e exterminadoras de modelos tradicionais e arquetípicos
que se estendiam às mais diversas áreas do conhecimento. O mecanismo crítico que munia os
primeiros discursos vanguardistas, impulsionado pelo espírito de mudança dos românticos no
século XVIII, foi sendo lubrificado e fortalecido ao longo do tempo, até se transformar num
motor de cataclismos e dissoluções, utilizado para fazer frente a uma diversidade de obstáculos
impostos pelo establishment tipicamente burguês. Segundo Ernesto M. de Melo e Castro, o
caráter tenaz e eclético dos discursos das diferentes vanguardas significou uma tentativa de
rutura e combate fugaz contra o conservadorismo e academismo opressivo e restritivo,
fundamentada numa lógica basilar tripartida:

O novo, a marginalidade, a liberdade, que são formas ao fim e ao cabo do mesmo combate, da
mesma ideia projetada no futuro, que as define. O novo contrapõe-se ao velho, ao já conhecido;
a marginalidade contrapõe-se ao poder oficializado ou instituído; a liberdade contrapõe-se à
opressão, à repressão e à fossilização (…) Esses valores só têm razão de ser quando projetados
num combate com a realidade, numa praxis portanto.8

A praxis aqui referida por Melo e Castro caracteriza o espectro de atuação da ideologia
artística preconizada pelas várias vanguardas, fortalecida por um programa operacional que
pretende atuar no campo artístico, político e social através do discurso de cariz futurizante,

8
CASTRO, Ernesto M. de Melo e (1987), As Vanguardas na Poesia Portuguesa Contemporânea do Século
Vinte, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa/Ministério da Educação, p.22-23.

16
sabotador de convenções, que encontramos nos seus manifestos programáticos: «as
intervenções de Vanguarda revestem-se por isso de toda uma complexa orgânica de objetivos e
meios que ultrapassa em muito o literário e o artístico (…)»9. Enquanto gerações de combate10,
estas vanguardas rejeitam uma relação de homogeneidade com as gerações precedentes e
propõem, acima de tudo, uma renovação de determinadas premissas e valores morais, políticos
e estéticos, através de meios como a provocação, sublevação e rejeição do caráter estático e da
imutabilidade de certos modelos tradicionais11, ao mesmo tempo que enfrentam internamente
constantes desentendimentos com a própria realidade histórica em que se desenrolam, e que
lhes coloca múltiplos entraves, como adiante veremos. De facto, como afirma Ortega y Gasset,
o século XIX havia preconizado uma arte impura e exígua, ao submeter as expressões artísticas
ao denominador comum do realismo e do contrato com a realidade: «Compreende-se, pois, que
a arte do século XIX tenha sido tão popular: é feita para a massa indiferenciada na medida em
que não é arte, mas um extrato de vida»12. Com a Modernidade, a estética do belo deixa de
residir na esfera da lógica e submete-se ao conhecimento sensível, dependente do estado do
sujeito. Estamos aqui perante um homem emancipado, entregue a si próprio, o homem
romântico, do sentimento, valorizado enquanto matéria sensível, não idealizado, que vive no
trágico; contudo, só no século XX o mundo toma realmente consciência da sua precaridade, no
momento em que lhe é desvelada uma dialética não para com Deus, mas entre todos os homens.

Teremos inevitavelmente de destacar o forte experimentalismo da era das vanguardas


modernistas disruptivas e transgressivas, marcadas por um espectro poliédrico de
comportamentos e linguagens, essencial no combate a formas caducas e redutoras do passado;
além disso, promovem a experimentação e inovação técnica, temática e representativa,
possuem um «(…) agudo sentido de militância, louvor do não-conformismo, corajosa exploração
precursora e, num plano mais geral, confiança na vitória final do tempo e da imanência sobre as
tradições que tentam aparecer como eternas, imutáveis e transcendentalmente
determinadas»13. O primeiro grande exemplo apenso a esta lógica experimental e reivindicativa
é Dada: nova forma artística que surge em 1916, em Zurique (mais próxima de um estado de

9
Ibidem, 17
10
Cf. GASSET, José Ortega y (1966), El tema de nuestro tiempo, Madrid, Revista de Occidente [1923], p.10.
11
Ao mesmo tempo que atentamos na ação disruptiva das vanguardas no século XX, não podemos
esquecer que há um sentido tipológico que atravessa os vários tempos artísticos e transcende a
cronologia, na medida em que é comum a periodologia histórica estruturar a nossa visão do tempo e da
sucessão das expressões artísticas num esquema erradamente progressista; ao invés, estas expressões
evoluem por contaminação e diálogo com as que as antecedem.
12
Idem (2013), A desumanização da arte (e outros ensaios), trad. Miguel Serras Pereira, Coimbra,
Almedina p. 45.
13
CALINESCU, Matei (1999), As cinco faces da Modernidade: Modernismo, Vanguarda, Decadência, Kitsch,
Pós-Modernismo, trad. Jorge Teles de Menezes, Lisboa, Vega, p. 91.

17
espírito), «(…) emaranhado de contrários e de todas as contradições, de tudo o que é grotesco
e inconsequente (…)»14, erguido em tom de rejeição e protesto no contexto da I Grande Guerra,
que se particulariza por um discurso provocativo expresso na forma de uma anti-arte deletéria,
e que reivindica uma total liberdade expressiva e criativa assente no espírito da destruição. O
critério operacional inovador que podemos associar ao conjunto de exercícios trazidos pelos
dadaístas prende-se com o seu experimentalismo plástico, nomeadamente ao nível do culto de
uma nova prática – a colagem – que surge no seguimento do interesse pelos papiers collés e
pelo Cubismo; esta seria uma técnica totalmente inovadora e revolucionária no campo das artes,
que adiante iremos aprofundar. Contudo, o niilismo de Tzara e o desmantelamento de
convencionalismos sem nenhum princípio reconstrutivo começou gradualmente a ceder espaço
a uma reflexão que precisamente abrisse portas à transformação do ser humano e do universo,
partindo da premissa da destruição: apesar de ser impossível precisar a extinção do vírus dada
(apesar da dissolução formal em maio de 1922), podemos de facto delinear uma gradual
transição, em meados dos anos 20, para o Surrealismo, corroborando a premissa de Octavio Paz
de que «la modernidad es una suerte de autodestrucción creadora»15.

O texto literário é um composto de vários códigos de natureza estética: um romance


romântico e outro realista do século XIX são tutelados por um determinado hipercódigo que se
fixa sob a égide do real, aliado a uma «prática confortável da leitura», e que preconizam aquilo
que Roland Barthes apelida de texto de prazer16. Com base nesta lógica, podemos começar por
ver que um texto surrealista tem uma natureza estético-literária muito específica, sobretudo
porque na literatura dos últimos cento e cinquenta anos, particularmente no período dos
modernismos e vanguardas, os textos deixam de obedecer a programas, e estes dão lugar a um
conceito de criação pura, que destitui a intenção retórica da criação poética. Aqui encontramos
particularmente o texto de fruição, «aquele que põe em estado de perda, aquele que
desconforta (…) faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas do leitor, a consistência de
seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a
linguagem»17. Dentro desta lógica, os poetas surrealistas defendem a escrita automática, escrita
do inconsciente, prepóstera, sem interferência da razão, sendo que as incongruências que
surgem são o elemento contributivo para a consumação de criações como o cadáver esquisito,
onde o sujeito está ausente como entidade racional e onde não existe correspondência sémica.
Como explica Joaquim Simões, a escrita automática atua, em simultâneo, enquanto «uma

14
FORTINI, Franco (1965), O movimento surrealista, trad. António Ramos Rosa, Lisboa Editorial Presença,
p. 184.
15
PAZ, Octavio (1990), Los hijos del Limo, Barcelona, Biblioteca de Bolsillo, p. 20.
16
Cf. BARTHES, Roland (1987), O prazer do texto, São Paulo, Perspetiva [1973], p. 20.
17
Ibidem, 21.

18
metodologia e uma ferramenta de desbravamento do conhecimento vivencial orientado para o
plano em que estética e plenitude do ser se confundem»18: esta é uma abordagem própria da
Modernidade, que procura o texto impessoal e exalta a mudança, é o reconhecimento de que o
sentido do texto está contido no seu interior; perante a ausência de referências redutíveis à
razão, abrem-se possibilidades de sentido que não se oferecem a uma abordagem unívoca e
onde vemos que a arte exprime a sua resistência ao tempo. Contudo, o projeto vanguardista de
democratização da criação artística, enquanto uma praxis que permite conciliar propósitos
artísticos, morais e políticos, desde cedo viu-se condenado, nas palavras de Carlos Machado, por
um «impulso quimérico»19 aliado ao elitismo que caracterizava estas vanguardas. Este impulso
manifestou-se particularmente no caso do Surrealismo ao tentar combinar uma
«instrumentalização ideológica e política do objeto artístico» e «um pendor fundacional de cariz
esteticizante»20: a concretização da proposta utópica de fusão dos opostos, com vista à anulação
de uma diversidade de dicotomias que permeiam o quotidiano para fomentar o encontro com
a surrealidade, revelou-se uma tarefa difícil, marcada por fortes desentendimentos no seio do
movimento surrealista internacional, desde a expulsão de membros, a ligação de Breton ao
marxismo, e a complexidade do casamento entre a estética surrealista e a psicanálise de Freud.
O desiderato do projeto surrealista assentou desde logo numa crítica da artificialidade
das poéticas que o precederam, ou seja, entende que estas promoviam uma alteração
programática dos propósitos artísticos e técnicos sem assentarem numa verdadeira mudança
na vida do indivíduo. Os surrealistas defendem a experiência autêntica do amor e da liberdade,
destituída da adesão a modas e populismos, tal como entendiam acontecer com o discurso de
tom paternalista do Neorrealismo: uma elite cultural solidária para com o povo, mas que não
abandonava o seu estatuto superior e não possibilitava uma mudança orgânica. Para os
neorrealistas, a arte devia estar ao serviço da luta de classes, da justiça social, deve apelar à ação
e incitar ao desejo de mudança do leitor/espectador, pois

a partir do momento em que os elementos puramente estéticos se tornem predominantes e lhe


deixe de ser possível seguir bem a história de João e Maria, [o leitor/espectador] sente-se
desorientado e não sabe o que fazer perante a cena, o livro ou o quadro. É natural, não conhece
outra atitude perante os objetos que não seja a da prática, a que nos leva a apaixonarmo-nos e

18
In A Ideia – revista de cultura libertária, 2019, p.15.
19
MACHADO, Carlos (s/d), «O Surrealismo como metaciência: uma vanguarda fraturada entre Marxismo,
Psicanálise e Gnosticismo», SIMÕES, Maria João (coord.) (2015), Impressões surreais: o Surrealismo
português entre os Surrealismos europeus, Coimbra, Centro de Literatura Portuguesa, p. 33.
20
Ibidem.

19
a intervir sentimentalmente sobre eles. Uma obra que não o convide a essa intervenção deixa-o
sem papel.21

Deste modo, vemos que os surrealistas procuram uma expansão do conceito de


realidade, evidenciando uma complexidade superior que anula o pensamento dicotómico típico
da tradição ocidental, tendo por base um «projeto de revelação transcendente através da
poesia»22. Permitem aceder à verdadeira realidade, em relação à qual temos uma visão
deturpada porque fomos programados para ter um raciocínio polarizado em extremos
totalmente opostos, que desconsidera as nuances intermediárias e distorce a apreensão do
mundo tal como o observamos. É possível encarar a poética da imagem surrealista como a
prevalência de um discurso onde a imagem é uma epifania e onde é feita a apologia de uma
estética do símbolo23, por contaminação da herança romântica de afirmação do poder da palavra
poética, onde o poeta é o demiurgo capaz de tornar legível o princípio criador do universo.
Submetendo a nossa análise a um olhar escópico sobre determinadas especificidades
do fazer poético surrealista, vemos que o percurso poetológico instaurado por Breton passa pela
afirmação de uma nova realidade suprema engendrada pela imaginação (contrária ao processo
neorrealista de apreensão logicista do real), onde são geradas imagens puras, hipnagógicas,
poeticamente complexas e independentes, que permitem a criação de uma nova travessia que
liga o sensível à expressão material. Segundo afirma Guilhermo de Torre,

(…) a impressão mais vivida que ferirá a sensibilidade do sujeito experimentado, ou se sobreporá
a outras diferentes, há-de ser de natureza visual (…) em suma, a presença desse mundo estranho
muito mais penetrante através da imagem do que da palavra24.

De facto, as dinâmicas estéticas presentes no culto da visualidade pelos surrealistas


criam uma pluralidade interpretativa incomparável que advém da junção de elementos
totalmente desconexos num plano onde aparentemente jamais casariam, tal como havia
preconizado Isidore Ducasse, conde de Lautréamont, bandeira do movimento surrealista e
objeto de admiração e fanatismo25; a dificuldade interpretativa que então se gera está apensa à

21
GASSET, 2013, p. 43.
22
CAMPINO, Sara (2011), O Experimentalismo na obra de Alexandre O’Neill, Dissertação de Mestrado em
Estudos Portugueses, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, p. 7.
23
Cf. CASTRO, 1987, p. 68.
24
TORRE, Guilhermo de (1970), História das Literaturas de Vanguarda, vol. III, Lisboa, Editorial Presença,
p. 141.
25
Como afirma Breton, na sua obra de 1937, O Amor Louco, «Os ‘belo como’ de Lautréamont são o próprio
manifesto da poesia convulsiva (…) qualificativo da única beleza que, a meu ver, é digna de preito (…)», in
BRETON, (1987), O Amor Louco, trad. Luiza Neto Jorge, Lisboa, Estampa [1937], 13-14.

20
premissa da arbitrariedade e estranhamento defendidos por Breton, que negam os propósitos
da arte mimética.
O choque imagético proporcionado pela aproximação irracional de objetos sem
qualquer tipo de parentesco leva-nos a refletir sobre o papel da metáfora no conjunto das
práticas artísticas surrealistas que vivem do fluxo de imagens, quer falemos em poesia, cinema,
fotografia, etc. A interação de ideias criada pela metáfora permite visualizar uma dinâmica de
montagem, comparável a uma mola que constantemente atrai e repela duas imagens percetivas
que se chocam para criar uma terceira. A este diálogo intermedial entre diferentes formas de
expressão imagética podemos associar o conceito de fotogenia preconizado por Jean Epstein
(1897-1953), cineasta e poeta que constantemente transita entre as duas artes: este projeta na
sua definição de cinema as imagens fotogénicas em fluxo que ocorrem igualmente na poesia,
destacando pontos de contacto como o movimento, a pluralidade, a tensão e o ritmo. Epstein
tanto fala de fotogenia como de poesia metafórica onde as metáforas abundam, dado serem
duas artes da imagem em movimento e da composição rítmica, mas sobretudo da montagem
poética, que atinge uma dimensão inigualável no conjunto das práticas surrealistas em análise26.
A conceção de imagem poética surrealista, tal como nos é apresentada no Manifesto do
Surrealismo de 1924, tendo por fundamento a doutrina de Reverdy27, assenta precisamente no
desvelamento de conexões secretas entre objetos totalmente antagónicos, que permite
alcançar a verdadeira realidade onde deixam de prevalecer princípios miméticos. Esta atração
pelos opostos e pelo onírico faz-se corresponder à estruturação do aparelho psicanalítico
desenhado por Freud, ao fazer a apologia dos mecanismos do sonho e do inconsciente, mais
tarde recuperados por Breton na construção e sistematização da prática artística surrealista,
quando promove o traslado do inconsciente através do automatismo cursivo. Jacques Lacan,
nos seus emblemáticos Écrits, de1966, evidencia o parentesco que se pode estabelecer entre a
linguagem literária e o sonho ao destacar uma componente discursiva e onírica referente a
ambos, e completa a premissa freudiana supramencionada ao afirmar que

(…) le rêve a la structure d’une phrase, ou plutôt, à nous en tenir à sa lettre, d’un rébus, c’est-à-
dire d’une écriture (…) C’est à la version du texte que l’important commence, l’important dont
Freud nous dit qu’il est donné dans l’élaboration du rêve, c’est-à-dire dans sa rhétorique. Ellipse

26
Cf. EPSTEIN, Jean (1993), «On certain characteristics of photogenie», in French Film Theory and Criticism:
1907-1929, Princeton University Press, p. 314-318.
27
«A imagem é uma criação pura do espírito. Ela não pode nascer de uma comparação, mas da
aproximação de duas realidades mais ou menos distantes. Quanto mais as relações das duas realidades
aproximadas forem longínquas e corretas, mais a imagem será forte – mais poder emotivo e realidade
poética ela terá… etc.». In BRETON, André (2016), Manifestos do Surrealismo, Lisboa, Letra Livre [1924],
p. 31.

21
et pléonasme, hyperbate ou syllepse, régression, répétition, apposition, tels sont les
déplacements syntaxiques, métaphore, catachrèse, antonomase, allégorie, métonymie et
synecdoque, les condensations sémantiques, où Freud nous apprend à lire les intentions
ostentatoires ou démonstratives, dissimulatrices ou persuasives, rétorsives ou séductrices, dont
le sujet module son discours onirique.28

Através da escrita automática – e partimos aqui da recusa do caráter de facilidade


atribuído por Nuno Júdice a esta metodologia de criação artística29 – , Breton mostra que é
possível encontrar um ponto de fusão entre o sonho e a produção poética material, promovendo
uma desmitologização da racionalidade humana através da democratização da criação artística,
estando o automatismo acessível a qualquer indivíduo capaz de encontrar o seu ponto de
libertação da sensibilidade face às amarras da razão; para isso, «o homem (…) terá apenas de
cerrar os olhos para que se abram as portas das maravilhas»30, ou seja, para que o mesmo assista
ao surgimento do objeto artístico por meio de um processo de revelação:

In the early experiments with poetic solicitation, automatic writing, and accounts of dreams, real
or imaginary articles appeared to be endowed with a real life of their own. Every object was
reagrded as a disturbing and arbitrary “being” and was credited with having an existence entirely
independent of the experimenters’ activity. 31

Neste processo, o indivíduo é produto de uma diluição cósmica, de hipertrofia,


assumindo uma revolução e conquista pessoal não confinada a uma coletividade, porque a arte
é uma perceção sintética que questiona a construção da identidade social ao mesmo tempo que
encontra uma nova forma de vivência da sexualidade, pura e autêntica, através da expressão
automática e livre dos seus desejos recalcados. Tal como afirma Robert Benayoun em Erotique
du Surréalisme:

L’érotique du surréalisme, on le verra encore, tend à identifier la dictée du désir à celle de


l’inconscient, à faire de l’amour un équivalent de cette “métaphore onirique” qui est à l’origine
de toute création, et par là-même à transformer l’acte d’amour en acte démiurgique. L’érotisme
ne devient amour que lorsqu’il crée. L’aventure surréaliste a ceci de révolutionnaire (entre autres
choses) qu’elle a pour la première fois peut-être dans l’histoire doté le sexe d’un mode

28
LACAN, Jacques (1966), Écrits, Paris, Éditions du Seuil, p. 267-268.
29
In A ideia – Revista de Cultura Libertária, 2019, p.26.
30
FORTINI, 1965, p.149.
31
DALÍ, Salvador (1931), «The object as revealed in Surrealist experiment», in CHIPP, Herschel B. (1968),
Theories of Modern Art: a source book by artists and critics, Berkeley, University of California Press, p.418.
Originalmente publicado em Le Surréalisme au Service de la Révolution, n.3, 1931.

22
d’expression. Dans le surréalisme, l’érotisme s’exprime directement, il quitte le monde du
silence. Ce dépassement illimité de l’être, ce naufrage des références que procure l’extase, le
surréalisme l’a situe, puis exprimé en termes obsessionnels dans le vertige automatique32.

A «metáfora onírica» singular que o Surrealismo cria através do choque imagético


permite ao indivíduo aceder a uma verdadeira expressão do desejo e do prazer (enquanto
catalisadores estéticos) de forma insubmissa e totalmente espontânea, e onde o erotismo
permite a descoberta da surrealidade enquanto fator de transformação individual, assumindo,
por isso, uma dimensão performativa. É esta a função da arte: recusa da autonomia do estético,
da matematização tipicamente renascentista dos seus contornos, em função da experiência
autêntica e da integração da arte na vida, pelo que devemos mover-nos no sentido de fazer do
amor e do erotismo os fios condutores da poesia.

Um dos meios privilegiados do Surrealismo para fazer florescer a descoberta de novas


expressões eróticas precipitadas do inconsciente foi a fotografia, ao mesmo tempo que permitiu
a exploração «científica» dos campos do sonho, do maravilhoso e do onírico. A imagem moderna
trazida pela fotografia surrealista permite desfocalizar a lente direcionada para a realidade e o
absoluto, reconfigurando-a para uma alteração percetiva da realidade através da criação de um
universo visual de cariz alucinatório, ao mesmo tempo que metamorfoseia a perceção genérica
dos objetos e adota uma «postura ambivalente relativamente ao desenho dos contornos
humanos»33. O corpo feminino é-nos múltiplas vezes apresentado desfigurado, anamorfoseado
como expressão da libertação sexual e símbolo de transgressão do espaço artístico
representacional onde geralmente encontramos a mulher enquanto musa e símbolo da
perfeição em ambientes idílicos. Podemos ver, por exemplo, o caso de Raoul Ubac (1910-85),
fotógrafo surrealista que participou na revista Minotaure desde 1937, conhecido por criar
ambientes onde encontramos representações multiplicadas do nu feminino em situação de
guerra, como é o caso de Combat de Penthésilée (1937), fotografia integrada numa série
inspirada na mitologia grega onde reinam elementos como a violência, a morte e a loucura; tal
como afirma Xavière Gauthier, «La force du surréalisme, c’est d’avoir inscrit dans ses prémises
que l’art, comme la révolution, est une violence, un rapt et une métamorphose douloureuse du
corps»34. Através de técnicas como a solarização, a sobreimpressão, a montagem, o negativo, a
brûlage e a voilage, igualmente utilizadas por outros fotógrafos surrealistas como Man Ray,
temos acesso a todo um novo status da imagem fotográfica, assente agora na representação da

32
BENAYOUN, Robert (1965), Erotique du Surréalisme, Paris, Jean-Jacques Pauvert, p. 14-15.
33
MACHADO, Carlos (2007), «Quando Nenhuma Palavra está completa: Mário Cesariny e o Surrealismo
Português», in Diacrítica: Série Ciências da Literatura, p. 31.
34
GAUTHIER, Xavière (1971), Le Surréalisme et la Sexualité, Paris, Gallimard, p.67.

23
alucinação, de corpos amórficos. Contudo, talvez o exemplo mais fascinante no que toca à
transgressão sexual e erótica do corpo feminino aconteça com Hans Bellmer e o aparecimento
da sua Die Puppe em 1934, uma boneca desmembrada, cujas partes do corpo Bellmer
desconstrói e reconfigura ao longo do tempo nas mais diversas posições, por vezes eróticas,
reintegrando-a constantemente em diversos cenários do quotidiano, como um quarto ou um
jardim, e que posteriormente fotografa. A (re)montagem consecutiva a que a boneca (ou seja,
o seu «lado performativo»35) é submetida possui um vigor hedonista que estimula o prazer
através do polimorfismo, passando passa pela destruição, castração36 e mutação, categorias que
se integram no ritual prolificamente experimental que o Surrealismo fotográfico reclamou para
si. O trabalho de «bri-colagem experimental»37 de Bellmer joga, assim, com a configuração do
corpo humano e testa uma reversibilidade, com base numa quebra da lógica da reciprocidade,
da dialética usual entre os membros anatómicos:

La femme peut être facilement réduite par lui, bien ficelée, à un gigot. Mais c’est qu’elle est
considerée comme l’objet très cher, “extensible, rétrécible”, d’une série d’opérations de
déplacements imaginaires, détachable devant son désir qui volontairement se laisse obnubiler
par le détail. Fasciné par les articulations du corps et du langage, par la réversibilité des mots et
des mouvements («Le corps est comparable à une phrase qui vous inviterait à la désarticuler,
pour que se recomposent, à travers une série d’anagrammes sans fin, ses contenus véritables»),
Bellmer établit des géométries de sensations à partir d’une liaison fortuite entre deux élements
anatomiques, effectue de savantes translations à partir de l’axe sexe-épaule, ou sexe-aisselle:
«On se demande si le plaisir du bras de simuler la jambe n’équivaut pas au plaisir de la jambe de
jouer le rôle du bras, on se demande si la fausse identité établie entre bras et jambe, entre sexe
et aisselle, entre oeil et main, nez et talon, ne serait pas une réciprocité» 38.

A intenção transgressiva trazida pela fotografia surrealista ao dessacralizar o nu e ao


proceder à violação da forma do corpo humano tal como o conhecemos, reside
substancialmente na indefetibilidade e emancipação da vivência erótica inerente a todos os
indivíduos, principalmente porque no decurso da evolução moral e individual na História, o
homem foi sendo impelido a suprimir os seus desejos em função de um determinado modelo
de conduta e bom senso, transpondo a realização erótica individual para uma dimensão de
reserva e segredo. Segundo Bataille, «(…) o erotismo nos deixa na solidão. O erotismo é, pelo

35
CAMPINO, Sara Lacerda (s/d), «Colagem: considerações sobre o fragmento a partir da Ampola
Miraculosa de Alexandre O’Neill», in SIMÕES, 2015, p.119.
36
Como explica Rosalind Krauss, «the doll’s body, coded/ female/ but figuring forth the male organ within
a setting of dismemberment, carris with it the treat of castration. It is the doll as uncanny, the doll as
informe». KRAUSS, Rosalind E. (1996), The optical unconscious, Massachussets, MIT Press, p.172.
37
CAMPINO (s/d) in SIMÕES, 2015, p.119.
38
BELLMER, 1957 apud BENAYOUN, 1965, p. 156-157.

24
menos, aquilo sobre que é difícil falar. Por razões que não são meramente convencionais, o
erotismo é definido pelo segredo. Não pode ser público (…), a experiência erótica situa-se fora
da vida de todos os dias»39. Através da tiragem maquínica, o Surrealismo permite não apenas
libertar a sexualidade reprimida, como materializa determinadas parafilias que se mostram
altamente impactantes na construção da personalidade e que atuam como parte de uma
metáfora irracional através do poder subversivo do desejo.

A dualidade que existe entre os mecanismos da escrita (enquanto «ciência das fruições
da linguagem», nas palavras de Roland Barthes40) e da visão encaminha-nos a refletir sobre a
longevidade e complexidade de um outro paralelismo, enunciado por Rosalind Krauss em O
Fotográfico. Este dualismo diz respeito às conceções antagónicas que se fixam entre a mecânica
funcional da perceção e da representação. Como afirma a autora:

A perceção é tida como superior, mais autêntica por ser experiência imediata, enquanto que a
representação permanece sempre suspeita, pois não passa de uma cópia, uma recriação sob
outra forma, um conjunto de signos no lugar e vez da experiência. A perceção está diretamente
em contato com o real, enquanto a representação está separada dele por um fosso
intransponível, restituindo a presença da realidade apenas sob forma de substitutos, quer dizer,
por intermédio de signos. Dado este afastamento do real, pode-se suspeitar a representação de
falsificação41.

Esta fórmula dá-nos uma visão simplificada, ainda que redutora, do papel da perceção
e da representação, e da relação de alternância que entre elas ocorre no processo de criação
artística. De facto, no decurso da história da psicanálise, a sucessiva reaproximação que vários
analistas ao longo da Modernidade fizeram em direção a uma particularização da perceção
encaminha-nos para um retorno às ideias recalcadas, a um novo estudo do seu simbolismo e
papel na construção da personalidade. Esta premissa assenta no diálogo entre a perceção e o
inconsciente, tal como mostra Freud42, na medida em que os contornos e as ideias que
absorvemos diretamente do contacto com o objeto advêm de componentes visuais, sensoriais
e associativas importantes na estruturação do conteúdo do aparelho psíquico. Estas
experiências são particularmente alimentadas pelo influxo do desejo e residem exclusivamente
no universo mental, independentes de uma presumível fidelidade à realidade exterior, e
poderão confluir numa experiência de revelação, como exemplifica P. Adams Sitney na obra
Modernist Montage: the obscurity of vision in cinema and literature: «Modernist literary and

39
BATAILLE, 1988, p. 223.
40
Segundo Barthes, o processo criativo envolve todo um conjunto de mecanismos de sedução pela
linguagem. Cf. BARTHES, 1987, p. 10.
41
KRAUSS, Rosalind (2002), O Fotográfico, trad. Anne Marie Davee, Lisboa, Gustavo Gili, p. 111.
42
Cf. FREUD (1988), A interpretação dos sonhos, trad. Lubélia Magalhães, Pensamento.

25
cinematic works stress vision as a privileged mode of perception, even of revelation, while at
the same time cultivating opacity and questioning the primacy of the visible word»43. No caso
da representação, podemos afirmar que esta se rege por diretrizes de repetição ou imitação
pretensiosamente fiéis à perceção que sempre lhe antecede, mas que nunca o será, pois o
objeto percecionado é irrepresentável na sua totalidade, a sua reprodução exata será sempre
infrutífera na medida em que haverá sempre algo que permanece disfarçado e oculto nos
recônditos do inconsciente.

A perceção implica uma experiência ativa do sujeito com o objeto em tempo real por
meio da visão, enquanto que a representação se apodera dos signos para se auto-construir,
podendo estes dar-nos uma visão falaciosa e muito limitada do objeto. Ortega y Gasset reflete
também sobre esta artificialidade da representação na arte, nomeadamente na pintura, ao
mostrar que o retrato que o pintor faz de um objeto, seja qual for a sua natureza, será sempre
uma cópia limitada não apenas pela irrepresentabilidade exata das características que totalizam
o objeto, como pela ação deliberada de seleção dos traços que mais lhe convém reproduzir:

O pintor tradicional que faz um retrato pretende ter-se apoderado da realidade da pessoa
quando, na verdade e quando muito, deixou na tela uma seleção esquemática caprichosamente
decidida pela sua mente da infinitude que integra a pessoa real. (…) O expressionismo, o cubismo,
etc., foram em diversa medida tentativas de verificar essa resolução na direção radical da arte.
Passou-se de pintar as coisas a pintar as ideias: o artista cegou-se perante o mundo exterior e
virou a pupila para as paisagens interiores e subjetivas44.

A arte é um fenómeno, manifesta-se a uma consciência através da sensibilidade, uma


consciência que sente o objeto como arte, onde o artista é o agente de um circuito de
informações que compreende a sensação, a perceção, a impressão e a imaginação, faculdade
esta com poder de potenciar os dados disponíveis numa gama variável de sensações. Deste
modo, Breton encara a surrealidade como uma forma de superar este longo «dualismo da
perceção e representação»45 através da supremacia da escrita automática sobre o exercício de
uma visão meramente dicotómica, e do alcance de uma manifestação cósmica onde domina a
escrita involuntária e onde a imagem se submete à transcendência, já que «o desdobramento
cursivo da escrita ou do desenho automático é para ele, menos a representação de algo do que
uma manifestação ou um registro, semelhante às linhas traçadas no papel por um sismógrafo
ou um cardiógrafo»46. A substituição da realidade exterior por uma realidade puramente

43
SITNEY, P. Adams (1990), Modernist Montage: the obscurity of vision in cinema and literature, New York,
Columbia University Press, p. 2.
44
GASSET, 2003, p. 63.
45
BRETON, André (1967), «Océanie», in La clé des champs, Paris, Jean-Jacques Pauvert [1953], p. 278.
46
KRAUSS, 2002, p.112.

26
psíquica, destituída de quadros de referência oriundos da memória, aniquila as conceções
formais que possuímos dos contornos dos objetos tal como os percecionamos e representamos
no quotidiano, ao submete-los a uma lógica de intemporalidade e amorfia da espacialidade real,
diretrizes dominantes do inconsciente. Como acrescenta Rosalind Krauss, «o pensamento não é
representação. Ele é o que é absolutamente transparente para o espírito, imediato para a
experiência, preservado da distância e da exterioridade dos signos»47.

Tendo sido até aqui analisadas, de forma sucinta, as principais premissas do movimento
surrealista no seu campo de atuação mais genérico e abrangente, iremos agora restringir o
espectro de atuação destes princípios ao contexto português, sob a alçada das obras de Maria
de Fátima Marinho, O Surrealismo em Portugal (1987), e Adelaide Ginga Tchen, A aventura
surrealista: o movimento em Portugal – do casulo à transfiguração (2001), não descurando do
percurso evolutivo de um Surrealismo nacional. Iremos atentar igualmente no seu
experimentalismo visual e poético e no caráter transgressivo de um discurso manifestamente
plural: por um lado, tomado como agente de exploração da vertente plástica e visual, tal como
vemos em Fernando Lemos, entre outros; e, por outro, enquanto catalisador de uma
componente escrita (crítica e poética) imensamente fértil e provocadora (num segundo plano
transgressora das fronteiras entre a poesia e as artes visuais), como será o caso de Alexandre
O’Neill e Mário-Henrique Leiria.

1.2 Experimentalismo intermedial no contexto português

De forma a dar continuidade a uma reflexão em torno do comportamento e níveis de


atuação das premissas programáticas de Breton, adaptadas agora particularmente ao contexto
português, será aqui dispensável e irrelevante desenhar mais uma reconstrução histórica e
cronologicamente discriminada do percurso traçado pelo Surrealismo português, dado que para
isso existem já inúmeros estudos detalhados e bastante completos48. Contudo, a leitura dos
mesmos não nos permite ficar indiferentes a um conjunto de mutações e fatores decisivos
transversais que marcaram o trajeto do movimento nacional (cuja análise se estenderá até ao
próximo capítulo), que vão desde 1) o clima de censura que advinha das incompatibilidades com

47
Ibidem.
48
Cf. FRANCO, António C. (2012), Notas para a compreensão do Surrealismo em Portugal; MARINHO,
Maria de Fátima (1987), O Surrealismo em Portugal; TCHEN, Adelaide Ginga (2001), A aventura surrealista:
o movimento em Portugal – do casulo à transfiguração; MARTINHO, Fernando J. B. (2005), «A poesia
surrealista portuguesa», in Tendências dominantes da poesia portuguesa da década de 50; CUADRADO,
Perfecto E./ÁVILA, María Jesús (2001), O Surrealismo em Portugal (1933-1952).

27
o SPN de António Ferro, em pleno contexto ditatorial português 2) as divergências que
resultaram na cisão com a estética neorrealista 3) a ação de rutura executada no seio do Grupo
Surrealista de Lisboa devido a clivagens entre os seus membros (nomeadamente as antipatias
entre José-Augusto França e Cesariny), que levariam à criação de um novo Grupo Surrealista
Dissidente, e 4) o clima de discordância e fricção que se viria a estabelecer com o epicentro
francês.

De facto, é importante assinalar primeiramente a distância temporal que separa o


desenvolvimento de um Surrealismo português em relação à escola francesa – falamos aqui de
um intervalo de cerca de 20 anos, tempo no qual decorre a ação da engrenagem ditatorial que
criaria uma conjuntura desfavorável para o desenvolvimento de projetos artísticos adversos ao
clima de homogeneidade e contensão impostos pelo regime, ao mesmo tempo que o
movimento atravessa uma fase de «abrandamento da intransigência inicial»49 e multiplicação
um pouco por toda a Europa; durante este período, o Surrealismo de Breton vai gradualmente
abdicando das suas especificidades, consoante a aproximação a práticas tradicionais, típicas de
qualquer outro cânone artístico50, como, por exemplo, o reforço do discurso estético por meio
da realização de conferências e eventos culturais.

A sombra ideológica salazarista pairava sobre qualquer iniciativa ou atividade de índole


diversa, e o impulsionamento cultural prometido pela «Política do Espírito» de António Ferro
assentava precisamente na lubrificação da máquina propagandística do Estado Novo, que
colocava a arte ao serviço da nação e esperava aquiescência dos artistas, sendo por isso implícito
«(…) que a proteção concedida aos artistas e escritores pressupunha uma colaboração, isto é,
pretendia-se que estes fossem apoiados para criar frutos que valorizassem o Estado, não para
se autonomizarem»51. Na sede do Serviço da Propaganda Nacional (SPN), em fevereiro de 1935,

Perante a advertência dada por Salazar, António Ferro acrescentaria que os propósitos do SPN e
da sua Política do Espírito eram «fomentar o desenvolvimento da literatura, da arte e da ciência»,
combatendo «tudo o que é feio, grosseiro, bestial […] por simples volúpia ou satanismo!»,
«pinturas viciosas do vício» ou «literatura sádica», produtos de «escavações freudianas»
realizadas por «infatigáveis e doentios rebuscadores de contradições», verdadeiros «déspotas da
liberdade de pensamento», reclamados «intelectuais livres».52

49
FORTINI, 1965, 23-24.
50
Cf. Ibidem.
51
TCHEN, 2001, p.49.
52
Ibidem.

28
Contudo, o sistema de Ferro viria a entrar em falência no final dos anos 40, aquando do
seu afastamento do SNI-CPT e a redução do poder deste organismo, que se torna praticamente
ineficaz e torpe.

Em 1942 e 1943, junta-se um primeiro grupo proto-surrealista no café Herminius53,


espaço de convívio e debate, sendo que aqui se desenvolveram as primeiras experiências
paradadaístas54. Alguns dos seus participantes viriam mais tarde a manifestar-se contra a
posição política, artística e social preconizada pelo Neorrealismo55; enquanto visões
contemporâneas, de facto, surrealistas e neorrealistas captaram de maneiras diferentes de que
forma a literatura reage face a instabilidades políticas e sociais nos anos 40 e 50, trabalhando a
relação com o contexto socio-político que a acompanha em prol da revolução de mentalidades.
Estamos perante dois tipos de movimentações opostas que viriam a diferir na idealização da
sociedade e no tipo de revolução a ser feita para lá chegar: enquanto que para os neorrealistas,
de tendência marxista, a literatura deve ser entendida como elemento de caráter político e
transformação dinâmica da sociedade através de um sujeito coral (de fora para dentro), para os
surrealistas a transformação social é consequência da emancipação pessoal, é o homem que
transforma o mundo (de dentro para fora). Contudo, a poética neorrealista é esteticamente
limitada: perde este valor através da via da mobilização política e da redução a uma prática
mecanicista de reflexo da sociedade, assente nas instâncias da circunstancialidade de uma arte
interventiva com caráter de acessibilidade, comunicabilidade, verosimilhança e transparência,
que nega «o processo psicológico dialético do ato de criação»56:

E o que exatamente aconteceu foi que, levados pelas conclusões estéticas do Neo-Realismo, a
uma limitada obrigação de documentar a realidade social, tendo nela uma única intervenção
consciencializante por vias sentimentais, recalcando assim os aparentemente desviados símbolos
sensíveis que essa realidade despertava na sua imaginação poética, não satisfazendo portanto a
sua pessoal necessidade de exteriorização, alguns indivíduos se encontraram, em face dos seus
desejos de expressão, num beco onde o Surrealismo abria uma saída «atual» 57.

Os surrealistas portugueses sempre se mantiveram atentos a estas incompatibilidades,


sobretudo Cesariny, que em 1944, sob a pele do seu Nicolau Cansado, ridicularizou e criticou a

53
Local onde nasce um grupo inicial proto-surrealista, termo usado por Perfecto E. Cuadrado (1998) em
A única real tradição viva: antologia da poesia surrealista portuguesa, Lisboa, Assírio & Alvim, p.10.
54
O’NEILL, Quaderni Portoghesi, nº3 apud MARINHO, 1987, p.19.
55
Este confronto no contexto português assemelha-se ao mesmo que havia tido lugar em França,
nomeadamente a «repetição do dissídio (…) com os elementos do PCF, pela recusa deliberada de
instrumentalização ideológica da obra estética». MACHADO, Carlos, «O Surrealismo como metaciência:
uma vanguarda fraturada entre Marxismo, Psicanálise e Gnosticismo», in SIMÕES, 2015, p.8.
56
FRANÇA, José Augusto (1949), «Balanço das atividades surrealistas em Portugal», Colóquio/Artes, nº48,
1981, p.30.
57
Ibidem.

29
inutilidade da poesia neorrealista através de uma figura transitória entre ambos os movimentos
artísticos: Cansado é uma personagem paródica que almejava deixar de ser burguês, sem mudar
o estilo de vida, e por esta via marca o distanciamento crítico do próprio poeta relativamente
àqueles que viviam «comodamente longe do povo em nome de quem falavam nos poemas e
romances»58. Como explica Rosa Maria Martelo, «toda a construção da figura de Nicolau
Cansado acentua o populismo, o desfasamento em relação às necessidades reais da classe social
que a obra deste poeta tentaria consciencializar e resgatar da opressão»59. Para Cesariny e seus
conterrâneos, deve existir uma valorização dos metamorfismos do sujeito enquanto detentor
de uma identidade cósmica, e fusão da experiência poética com a experiência performativa, um
diálogo entre vida e obra que recusa a identidade social em função de uma identidade
sentimental; tomam a poesia como um conceito lato, não é de caráter estritamente textualista
nem escrito, mas significa uma vivência em liberdade e amor. Por este motivo, não podemos
deixar de assinalar a importância desta nova consciência estética no contexto do Portugal
salazarista:

(…) o Surrealismo foi o movimento que mais força mostrou na criação de contra-imagens acerca
do Portugal de meados do século XX e no levantamento de atitudes, gestos e discursos capazes
de se oporem às imagens forjadas pelo regime ditatorial, as quais estavam profundamente
encasquetadas nas mentalidades lusitanas de tanto serem repetidas ao longo de tão prolongado
tempo (…) Não se pense, porém, que se trata aqui apenas da subversão dos aspetos artísticos e
dos aspetos político-ideológicos, pois, na verdade, os discursos e performances surrealistas
atingem uma dimensão epistemológica e ontológica de longo alcance (…). 60

Com base na perspetiva idiossincrática de supressão das fronteiras disciplinares, o


Surrealismo concedeu igual estatuto expressivo a produções tanto de teor manifestamente
escrito, como as que se localizam na esfera da plasticidade. Podemos, de facto, observar
características notoriamente poéticas num quadro ou numa fotografia, da mesma forma que
um poema nos transporta para um universo imagético e visual altamente impactante:61

58
MARTELO, Rosa Maria (2018), «Mário Cesariny e a poética de Nicolau Cansado, um precursor às
avessas», in A mão mais inundada: ensaios sobre poesia portuguesa moderna e contemporânea, orgs.
Silvana Pessoa e Wagner Moreira, Rio de Janeiro, Oficina Raquel, p.61.
59
Ibidem.
60
SIMÕES, Maria João (s/d), «Surrealismo em Portugal – internacionalização do diálogo entre artistas e
artes», in SIMÕES, 2015, p.11.
61
Este princípio levaria-nos a abordar a discussão em torno da interpretação errónea do ut pictura poesis.
Torna-se pertinente atentar aqui para a reflexão introduzida por Joana Matos Frias, ao nível das
tresleituras da passagem horaciana: como equaciona a autora, até à «insurreição» conduzida por Lessing,
em 1766 (na mesma linha de Diderot, um decénio mais cedo), pintura e poesia foram erroneamente
confundidas, tendo o crítico alemão levantado a problemática de a primeira se tratar de uma «arte do
espaço» e a segunda de uma «arte do tempo», cujas imagens são imateriais, bem como de a qualidade
de um poeta não se poder medir «pelo grau maior ou menor da convertibilidade do seu texto em pintura».
Os erros de interpretação em torno da expressão, continuamente (e despropositadamente) descolada do

30
«processo poético e processo pictural são fundamentalmente idênticos»62, partilham um modus
operandi de ativação da imaginação e do universo onírico para revelar novas perspetivas de
emancipação da vida e da arte. Indubitavelmente a visão está no centro do conhecimento, pelo
que a poesia se apresenta simultaneamente enquanto uma arte espacial e temporal: não
precisamos de chegar à Poesia Concreta, um simples soneto (enquanto forma que se impôs a
partir de Petrarca) é um género muito plástico e dúctil. Numa conferência de 29 de março de
1935, em Praga, intitulada «Situação Surrealista do Objeto», André Breton afirma que

Não existe na hora atual qualquer diferença de ambição fundamental entre um poema de Paul
Éluard ou de Benjamin Péret e uma tela de Max Ernst, de Miró, de Tanguy. A pintura, libertada
da preocupação de reproduzir essencialmente formas tomadas do mundo exterior, tira por sua
vez partido do único elemento exterior sem o qual nenhuma arte pode passar, isto é, a
representação interior, a imagem presente do espírito (…) tenta então esse caminho supremo
que é o caminho poético por excelência: excluir (relativamente) o objeto exterior como tal e
considerar a natureza apenas na sua relação com o mundo interior da consciência. 63

E acrescenta, partindo dos exemplos de Jean Arp (1886-1966) e Salvador Dalí (1904-89):

A fusão das duas artes tende a operar-se tão estreitamente nos nossos dias, que se torna por
assim dizer indiferente a homens como Arp ou como Dalí exprimirem-se sob a forma poética ou
plástica, e se no primeiro estas duas formas de expressão podem indubitavelmente ser
consideradas muito necessariamente complementares, no segundo elas são tão perfeitamente
sobreponíveis uma à outra que a leitura de certos fragmentos dos seus poemas apenas consegue
animar um pouco mais cenas visuais a que os olhos se surpreendem a conferir o brilho
extraordinário dos seus quadros.64

Partindo desta indissolução entre pintura e poesia e da volubilidade das suas fronteiras
enquanto práticas congéneres, sem descurar nunca o «caráter totalitário do processo
surrealista»65, é agora pertinente ampliarmos este cenário histórico e teórico ao panorama
artístico português, que age em consonância ao gestar artistas de expressões plurifacetadas,
que trabalham na esteira dos diálogos diversos entre palavra-imagem, enquanto artistas de

contexto pela tradição crítico-literária, tratam-se de uma questão preocupante, cuja problematização
superficialmente referida na presente dissertação é abordada nas tresleituras assinaladas pela autora. Cf.
FRIAS, Joana Matos (2019), «A poesia não é como a pintura», in O murmúrio das imagens I: poéticas da
evidência, Porto, Afrontamento, p.39-51.
62
DUROZOI, Gérard/ LECHERBONNIER, Bernard (1972), O Surrealismo, trad. Eugénia Aguiar e Silva,
Coimbra, Almedina, p.250.
63
BRETON, André (1935), «Situação Surrealista do Objeto», in BRETON, 2016, p.306.
64
Ibidem.
65
DUROZOI, LECHERBONNIER, 1972, p.251.

31
ofício múltiplo66. Excluindo deste quadro conjetural Mário Cesariny, a maior referência do
Surrealismo português, por ser um caso equilibradamente híbrido acerca do qual existem já
inúmeros estudos que exploram minuciosamente as diversas facetas do seu repertório pictórico
e poético, localizemos outros exemplos de «vocações duplas»67: de um lado, artistas que se
expressam maioritariamente através de um discurso plástico e visual de suporte material, ao
nível da fotografia e da pintura, como vemos em Fernando Lemos; e do outro, autores que
priorizaram a componente escrita, onde encontramos Alexandre O’Neill e Mário-Henrique
Leiria. Em todos estes casos, os artistas transgrediram as fronteiras a que são vulgarmente
associados, e assumiram-se não apenas como transgressores dos discursos visual e textual, mas
como exemplos nítidos de fusão intermedial, criando padrões onde «de resto, a Poesia,
investida de especial dignidade, abrangia como se sabe, na poética surrealista, as múltiplas
intervenções criativas, quer as estritamente literárias quer as estritamente plásticas (…)»68.

Fernando Lemos (1926-2019) foi um pintor, poeta e fotógrafo luso-brasileiro que,


mesmo não tendo sido membro desde o início, foi «visitante assíduo»69 nas primeiras
manifestações artísticas do Grupo Surrealista de Lisboa. Tendo exposto junto com Vespeira e
Fernando Azevedo na Casa Jalco em 1952, vemos que o seu trabalho enquanto surrealista está
geralmente integrado na esfera da prática fotográfica, na qual identificamos duas vertentes: a
dos retratos e das composições de montagem. Como vimos no tópico antecedente, a fotografia
apresentou-se como um modo de transformação da realidade no contexto das práticas e da
metodologia surrealista de apropriação de mecanismos do sonho e da imaginação, reservando
para si um estatuto transgressivo (mas largamente fecundo) cuja tónica tanto se coloca ora no
objeto fotografado, ora na construção do ato fotográfico propriamente dito. O
experimentalismo criativo que a fotografia trouxe a partir de nomes como Man Ray, André
Kértesz, Bellmer, Oubac, entre outros, permitiu a abertura de portas a uma panóplia de técnicas
e formas de captação maquínica do onírico, entre outro tipo de representações, entre as quais

66
Ainda que Adelaide Ginga Tchen separe uma produção manifestamente plástica associada aos
trabalhos do Grupo Surrealista de Lisboa (TCHEN, 2001, p.106), de uma vertente preferencialmente
poética e escrita do Grupo Surrealista Dissidente (ibidem, p.110), não iremos aqui adotar esta visão
redutora dos factos. Existem, de facto, e individualmente, artistas que tiveram um repertório visual mais
significativo, face a outros poetas que privilegiaram a criação escrita, contudo ambos os grupos
combinaram trabalhos multifacetados que transitam entre estas duas ações.
67
Gunther, 1938 apud Guillén, 1985 apud Martinho, 1996, p.40.
68
Ibidem, 40-41.
69
FRANÇA, José Augusto (1980), A arte e a sociedade portuguesa no século XX, Lisboa, Horizonte, p.52.

32
destacamos a reprodução do corpo nu70, que ocupa um lugar matricial nas representações
eróticas do Surrealismo, como assevera Alain Fleig:

L’érotisme est la force majeure qui meut le Surréalisme. C’est la grande libération qu’il apporte.
Il sera bien entendu présent ouvertement ou voilé, toujours dérangeant dans la photo qui sen
réclamera ou qu’il annexera. La beauté est toujours érotique même si l’inverse n’est pas
forcément vrai. Beauté et érotisme se conjuguent alors exclusivement au féminin. C’est la femme
qui est célébré. La féminité qui traverse, évasive ou sensuelle, une part importante des clichés
de Man Ray à Lorelle ou d’Ubac à Bellmer.71

Seguindo esta linha de ação, partilhada por tantos outros fotógrafos surrealistas
internacionais, Lemos admite, em entrevista72, encarar a fotografia como uma forma de
libertação erótica através de uma experiência poético-pictórica, parte de uma travessia
hedonista que nasce com simples fetiches, geralmente elementos alusivos a parafilias ou
imperfeições físicas, e que se transformam em desejos que encara, ao mesmo tempo, como a
«verdadeira cura daquilo que nos falta», e como uma «cicatriz que fica connosco até ao fim da
vida» – tal como a fotografia, que afirma nascer para ser eterna. Confessa ainda o fascínio pela
transparência do corpo feminino, ao contrário do masculino, semelhante a uma pedra, e por
isso os seus nus são tratados com muita transparência: a pele é como um mapa do corpo, não
se sabe onde começa e onde acaba porque na fotografia ocorre uma transformação da matéria
através de sobreposições (Nu lento, 1949; Movimento, 1949; Colagem, 1949, Visita Estranha I e
II, 1949) e jogos de luz (Relance, 1949; Nudez Dança, 1949), que fazem do corpo uma espécie de
«superfície fantasmática»73, apelidada por Lemos de «coisa poética». Esta atração pelas formas
do corpo feminino revela uma «sensualidade amorosa e mortal (…) vendo o que quer ver ou o
que lhe acontece ver, na aventura da descoberta»74, ao que acrescenta Manuel Bandeira: «Os
nus são fascinantes, tal a inefável castidade em que se esvanecem, não que o artista os

70
Seguindo a prática da manipulação das formas humanas que os principais fotógrafos surrealistas
supramencionados haviam executado, em particular o caso de Bellmer e a sua boneca, vemos que
também Lemos incorpora na prática fotográfica o recurso ao manequim e o jogo de posições e
movimentações a que ele está sujeito na mão do artista, inserido numa multiplicidade de cenários.
Encontramos isso em Nu de Ensaio (1949), Cena Humana (1949), Hospital de Bonecas (1949) (o caso que
mais assemelha à boneca de Bellmer pelo desmembramento das partes anatómicas), Manequim de
Exposição (1949) e, o caso mais emblemático do seu repertório, Intimidade dos Armazéns do Chiado
(1952), onde além de um busto masculino, encontramos um conjunto de membros superiores presos por
ganchos, como se fossem peças de carne expostas num talho.
71
FLEIG, Alain (1997), Photographie et Surréalisme en France entre les deux guerres, Neuchâtel, Editions
Ides & Calendes, p.53.
72
Entrevista no âmbito da exposição Fernando Lemos e o Surrealismo, em novembro de 2005, Sintra.
73
FABRIS, Annateresa (2014), «Uma poética da estranheza: a fotografia de Fernando Lemos», Uberlândia,
ArtCultura, v.16, nº28, p.102.
74
FRANÇA, José Augusto (1973), «Vinte (e um) anos depois de dez dias de janeiro de 1952»,
Colóquio/Artes, nº12, p.17.

33
dessensualize, a sensualidade está presente, mas sublimada como transparece em certos poetas
(…)»75.

O repertório artístico de Lemos tem grande destaque na história do movimento em


Portugal, ainda que as suas 55 fotografias expostas (30 retratos e 25 construções) em 1952 na
Casa Jalco tivessem chocado e enfrentado a censura. Estas assumem-se, essencialmente,
enquanto uma fiel reprodução do princípio lautreamoniano de sobreposição semântica, técnica
prolífica no seio dos trabalhos surrealistas. Como explica Luís de Moura Sobral, o exercício
fotográfico de Lemos era feito com recurso a uma Flexaret que comprara aos 20 anos, não
automática, que permitia a utilização de um rolo de 12 módulos de 6x6 para reproduzir
combinações totalmente conscientes e cuidadas, posteriormente combinadas em dezenas de
sobreposições aleatórias, que finalmente resultariam numa unidade fotomontada:

Les photos utilisaient ainsi le hasard à des degrés divers, tout comme le faisaient ses peintures
de la même époque. La confrontation d’images diferentes créait des superpositions sémantiques
typiquement lautréamoniennes. 76

Ao que Margarida Acciaiuoli acrescenta, sobre as potencialidades da referida máquina:

Era uma espécie de brinquedo, cuja vantagem reconhecia estar no seu atraso técnico. Ou seja,
era preciso dar corda para o rolo avançar, como numa sanfona. Daí que tenha sido precisamente
esse defeito que lhe permitiu imprimir duas coisas sobrepostas ou, para usar as suas próprias
palavras, era assim que “pintava em cima das imagens”. 77

Estamos aqui perante um caso de criação artística manifestamente híbrida e


intermedial, dado que Lemos se desdobra enquanto fotógrafo, poeta e pintor. Ainda que o seu
nome seja correntemente associado ao trabalho fotográfico, observamos um tipo de discurso
plástico que é transversal entre estas três vertentes do seu repertório, dado estarmos diante
uma «insondável fondura da indiferenciação entre o pintor e o fotógrafo»78 aliada a uma «larga
capacidade poética»79 – nas palavras do próprio, «Sou uma caixa de vários lados/ com vários
cantos»80.

O segundo exemplo deste tipo de vocação merecedor de atenção, mantendo-nos


sempre na linha do auge da atividade do Surrealismo português, encaminha-nos agora para um

75
Excerto do texto de apresentação do catálogo da exposição de Fernando Lemos e Eduardo Anahory,
Fotografias de Arte de Fernando Lemos e Painéis Decorativos de Eduardo Anahory, no Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro, novembro de 1953.
76
SOBRAL, Luis de Moura (1984), Le Surréalisme portugais, Montréal, Galerie UQAM, p.84.
77
ACCIAIUOLI, Margarida (2005), Fernando Lemos: desenho e desígnio, Lisboa, Editorial Caminho, p.10.
78
Ibidem, p.8.
79
Ibidem, p.16.
80
LEMOS, Fernando (2019), «nos meus pensamentos sempre», in Poesia, p.57-60.

34
plano de reflexão deslocado relativamente a Lemos, enquadrado numa prática que, apesar de
abraçar uma vertente plástica e pictural, tem uma forma manifestamente poética e escrita.
Alexandre O’Neill (1924-86) integrou as atividades do Grupo Surrealista de Lisboa, tendo
participado na sua exposição de 1949, até vir a desistir em 1951, aquando da confissão de
incompatibilidades com o movimento no seu Tempo de Fantasmas81, por considerar que este
havia sido alvo de uma excessiva academização; contudo, «poucos são, com efeito, os textos de
Tempo de Fantasmas em que, de uma forma ou de outra, se não nota a presença de técnicas ou
procedimentos de óbvia proveniência surrealista»82.

Além do humor e da sátira, uma das técnicas alvo de preferência entre os surrealistas
portugueses que privilegiaram a expressão escrita, como O’Neill, Cesariny ou Leiria, foi o
inventário (ou enumeração caótica83): a enunciação sucessiva de várias frações sintáticas
totalmente desfamiliarizadas, que «(…) exibem, hipostasiada, a grotesca dimensão do lugar-
comum, com a qual se escreve aqui a caricatura do mundo»84. Para todos os efeitos, foi esta
«capacidade de subversão no interior da linguagem»85 que permitiu aos surrealistas levar
adiante um plano de insurreição que sobrevivesse e frutificasse no contexto do regime ditatorial
em que produziam. Segundo explica Fernando Martinho, este procedimento assemelha-se,
parcialmente, à técnica da colagem, também muito fecunda no seio dos trabalhos surrealistas,
por partilharem um exercício de recorte e montagem de fragmentos que viajam entre diferentes
realidades e contextos; contudo, enquanto na colagem esta transposição é feita a partir de um
princípio de transferência de elementos preexistentes, que têm uma origem prévia identificável,
no inventário observamos um tipo de enunciação original que, no caso de O’Neill, implica uma
«estilização de frases que poderiam ser surpreendidas ao telefone quando as linhas se
cruzam»86. Como parte deste processo de estilização da linguagem quotidiana encontramos a
rima, tal como vemos no poema «A central das frases»:

...já te disse que são os do primeiro...


...e afinal não pudemos telefonar...
...ai nem queira saber o engenheiro...
...se me dão licença eu vou contar...

81
Fasc.11, Cadernos de Poesia, 2ª série, 1951.
82
MARTINHO, 1988, p.36-37.
83
Cf. CUADRADO, 1998, p.48.
84
TAVARES, Maria Andresen de Sousa (2003), «O terrivelmente real. Acerca da poesia de Alexandre
O’Neill», Relâmpago, nº13, outubro, p.67-79.
85
CUADRADO, 1998, p.48.
86
MARTINHO, 1996, p.37.

35
...penses nisso era só o que faltava...
...não as outras duas é que são as tais...
...mas o senhor presidente autorizava...
...na avenida centenas de pardais...

...de facto muito inteligente...


...ó filha por aqui fazes favor...
...que veio ontem para falar com a gente...
...é mesmo lá ao fim do corredor...87

Para além da rima, que aqui se apresenta cruzada, «Inventário»88 (um dos três poemas
que partilham o mesmo título e método) possui uma panóplia de outros procedimentos
retóricos que partilham do propósito poeticizante dos discursos comuns, como a sinédoque
(«Um dente d’oiro a rir dos panfletos»), paradoxo («Um professor que não sabe quase nada»,
«Um homem que ri de tristeza», «Um amante perdido encontrado»), personificação («Um
revólver já desiludido»89, «Um cachimbo cantando a marselhesa»), e aliteração («Um conde que
cora ao ser condecorado»).

«O poema pouco original do medo»90 mostra-nos o que realmente significa escrever e


fazer arte livremente em tempo de ditadura, até que ponto o medo, ou a sombra do regime, se
propaga na sociedade portuguesa «cortejos», «conferências várias», «congressos muitos») e
atinge qualquer um, independentemente da classe social, idade, etc. («meninas exemplares»,
«costureiras reais e irreais», «operários», «escriturários», «intelectuais»), assumindo uma
«multiforme ubiquidade»91:

Vai ter olhos onde ninguém os veja

mãozinhas cautelosas

enredos quase inocentes

ouvidos não só nas paredes

mas também no chão

87
O’NEILL, Alexandre (2017), Poesias completas & dispersos, Porto, Assírio & Alvim, p.178.
88
Ibidem, p.83.
89
Processo e personagem repetem-se no poema «O revólver de trazer por casa» (ibidem, p.52), quando
afirma que se trata de «Um bom revólver domesticado».
90
Ibidem, p.129.
91
MARTINHO, 1996, p.37.

36
no tecto

no murmúrio dos esgotos

e talvez até (cautela!)

Ouvidos nos teus ouvidos

Esta asfixia do regime, que se reflete numa sociedade empedernida, está espelhada
ainda num poema que dirige a Nora Mitrani, «Um adeus português»92, aquando da sua vinda a
Portugal em 1950 para proferir a conferência «Do Romantismo ao Surrealismo»
(posteriormente intitulada «A razão ardente»)93. A surrealista francesa vem de um contexto
cultural e social totalmente diferente, uma «cidade aventureira» e vivaz, que em nada se
compara «a esta pequena dor à portuguesa/tão mansa quase vegetal». O poema chama-nos a
atenção para vários sinais da repressão a que o país é submetido nos anos 50, desde «o dia
burocrático/o dia-a-dia da miséria», o «medo perfilado», o «modo funcionário de viver», ou o
«dia sórdido/canino/policial», patrocinado pelo aparelho coercivo da censura.

Tal como referido anteriormente, a vertente plástica do repertório de O’Neill será


abordada na terceira parte da presente dissertação, dada a relevância da sua articulação com
outros casos de experimentalismo visual e poético, tanto aqueles nos quais se inspira ou com os
quais dialoga num plano de coetaneidade. De facto, de um modo geral, as manifestações
artísticas do Surrealismo português protagonizaram uma intervenção destruidora e
reconfiguradora de signos que operavam numa hegemonia literária com tendência para a
normalização da experiência artística, tendo em vista uma emancipação do sistema semiótico
coloquial, transgressão dos respetivos códigos e corrupção da capacidade perlocutiva da
mensagem artística, algo que havia sido levado ao extremo na poesia cesaryniana. Este é um
panorama que será seguidamente alargado ao poeta-alvo da presente tese, Mário-Henrique
Leiria, o qual trabalha num élan manifestamente poético, como O’Neill, escrupulosamente
crítico e excecionalmente plástico.

92
O’NEILL, 2017, p.42.
93
Segundo Luís de Moura Sobral, 1984, p.126, «Le passage de Nora Mitrani au Portugal restera cependant
signalé par un des plus beaux poèmes de O’Neill publié dans Unicórnio (…) et repris dans le recueil No
Reino da Dinamarca (1958): Un adieu portugais. Ici O’neill a su retrouver le ton pour décrire la nausée de
vivre dans une médiocrité douceâtre «à la portugaise», que le poème dénonce mais dont il ne semble pas
pouvoir ou vouloir se libérer. Le poème crée par conséquent une athmosphère qui nous paraît
admirablement ajustée à son temps (…)».

37
2. «SÓ A IMAGINAÇÃO TRANSFORMA. SÓ A IMAGINAÇÃO TRANSTORNA»

Sê insolente

Malcreado

E serás estimado.

Mário-Henrique Leiria

2.1. Do Sobreporismo: o discurso crítico de Mário-Henrique Leiria

A problemática de que nos ocuparemos de agora em diante incidirá numa análise da


componente crítica e satírica, poética e plástica da obra do poeta português Mário-Henrique
Leiria (1923-80), que integrou a atividade do Grupo Surrealista Dissidente entre 1949 e 1952. É
de ressalvar que iremos aqui utilizar como fonte ativa a produção poética, ensaística e dispersa
do artista recentemente compilada por Tania Martuscelli94 em três volumes, sendo que até
então apenas haviam sido tornados públicos alguns textos de ficção, como foi o caso dos seus
best-sellers Contos do Gin-Tonic (1973) e Novos Contos do Gin (1974), bem como alguns escritos
dispersos de natureza diversa, postumamente publicados em Depoimentos Escritos, Contos,
Poemas e Cartas de Amor (1997). O foco agora será, portanto, explorar a vertente poética e o
diálogo palavra-imagem subjacente à sua obra (António Gonçalves refere-se aqui a uma
expansão de temáticas do universo da escrita para o da visualidade95), os quais carecem ainda
de significativa análise. Contudo, é necessária uma reflexão preliminar onde será dada a
conhecer a componente crítica e humorística leiriana, fulcral para o fortalecimento dos
discursos político, moral e artístico do Surrealismo português. Estes últimos textos estão
apresentados não apenas na forma de ensaios com uma finalidade subversiva transparente, mas
também em correspondência que Leiria havia trocado com várias pessoas, algumas delas
companheiros do grupo dissidente. Curiosamente, não deixa de ser peculiar e relevante aqui
realçar que algumas das missivas podem ser lidas como peças de ficção que narram experiências

94
Tania Martuscelli é crítica de literatura e arte e professora de Estudos Luso-Brasileiros no Departamento
de Espanhol e Português da Universidade do Colorado, nos EUA. Doutorou-se em Filosofia em 2006, com
uma tese sobre a obra de Mário-Henrique Leiria, intitulada A Poesia Portuguesa dos Anos 30 aos anos 70:
Mário-Henrique Leiria inédito, a qual será utilizada como referência na presente dissertação.
95
Cf. GONÇALVES, António (2010), «Mário-Henrique Leiria: sentido da diversidade», in João Rodrigues,
António Maria Lisboa, Mário-Henrique Leiria, Antonio Paulo Tomaz, Famalicão, Centro de Estudos do
Surrealismo da Fundação Cupertino de Miranda, p.46.

38
supostamente vividas pelo poeta no hiato de tempo em que esteve exilado no Brasil, sendo que
algumas nunca terão, de facto, tido verdadeira ocorrência96.

Mário Henrique Batista Leiria nasceu em Lisboa em janeiro de 1923. Frequentou a Escola
Superior de Belas Artes, de onde acabaria por ser expulso por questões políticas97. De facto, a
forte aversão ao sistema ditatorial daria mais tarde origem à sua detenção, em fevereiro de
1948, por ter tomado parte na afixação de panfletos a favor da campanha do General Norton de
Matos; acabaria por ser libertado no mês seguinte, alegando não possuir qualquer
responsabilidade na autoria dos mesmos98. Contudo, quatro anos depois voltaria a ser detido,
dado terem sido encontrados em sua casa documentos, cartas, manifestos e outros textos que
o ligavam ao movimento surrealista99. Segundo consta no Arquivo Nacional da Torre do
Tombo100, neste mesmo ano de 1952 acaba por ser libertado. De facto, Leiria tivera desde cedo
uma ligação conturbada com o regime, tendo sido preso várias vezes ao longo da vida, tanto em
Portugal como posteriormente no Brasil, para onde autoexilou nos anos 60.

É pertinente aqui assinalar que, apesar de o corpus principal do presente trabalho residir
no período de criação artística correspondente ao auge da produção surrealista em Portugal,
verificamos que acontece com Leiria uma situação semelhante à que vimos em O’Neill: estamos
perante dois autores ecléticos que integraram as principais atividades dos dois núcleos
surrealistas portugueses e que em algum ponto deste percurso assumiram uma atitude de
discrepância e consequente desagregação do movimento. Contudo, encontramos resquícios de
uma estética surrealista que se mantiveram presentes no repertório artístico que produziram
posteriormente, pelo que não será correto «engavetar» a produção surrealista de Leiria
exclusivamente no período de 1949-52, como veremos, apesar de ter sido esta a sua fase de
produção mais abundante. Trata-se de uma obra que dialogará com as premissas programáticas
da estética bretoniana até ao fim da produção ativa do poeta.

96
Este aviso ao leitor é feito por Tania Martuscelli numa entrevista da RTP em 2017 («Mário-Henrique
Leiria: reencontrar a obra do autor surrealista»), onde a investigadora chama a atenção para a narração
de episódios de tortura, encontros com tribos indígenas, revolucionários e bailarinas russas, noites de
amor e orgias que, na verdade, nunca aconteceram. A entrevista pode ser visualizada em:
https://ensina.rtp.pt/artigo/mario-henrique-leiria-reencontrar-a-obra-do-autor-surrealista/
97
Carta a Isabel Alves da Silva («Isabelinha» ou «Beluska», advogada da sua ex-mulher no processo de
divórcio, com quem veio a desenvolver uma relação amorosa, como vemos através das múltiplas cartas
que lhe foram endereçadas), de 11 de Maio de 1964, onde afirma: «Não esqueças que fui “quase”
arquiteto antes de ser expulso (com o Zé Dias Coelho) da ESBA em 1942, por políticas, claro…(…)», in
LEIRIA, Mário-Henrique (2019), Obras Completas de Mário-Henrique Leiria: textos críticos e afins, Silveira,
E-Primatur, p.541.
98
Cf. TCHEN, 2001, p.193-195.
99
Cf. MARTUSCELLI, 2006, p.3.
100
Disponível em https://digitarq.arquivos.pt/viewer?id=4301149 (consultado a 16/05/2020).

39
Tendo muito brevemente tomado parte em algumas atividades do Grupo Surrealista de
Lisboa em 1948, Mário-Henrique Leiria redige um ano depois uma carta a Mário Cesariny101 onde
pede para aderir ao novo núcleo dissidente que havia sido criado naquele mesmo ano. O próprio
sintetiza a sua experiência com o movimento, desde o contacto com os Manifestos do
Surrealismo em 1942 e a Imaculada Conceição de Breton e Paul Éluard, bem como a relação que
estabeleceu com «alguns surrealizantes»102 em quem identificava um estilo capcioso e falso,
com os quais veio a desenvolver incompatibilidades103. Viria a participar nas duas exposições do
grupo dissidente, tanto na sala de projeções da Pathé-Baby em 1949, como na galeria da Livraria
A Bibliófila, um ano depois. A sua obra, como teremos possibilidade de ver, desdobra-se numa
panóplia heterogénea de discursos materiais e poéticos, como o próprio afirma:

Não sou pintor (…) objetos, colagens, escrita automática, desenhos em estado de libertação,
poemas, não-poemas, etc., são mais reais, muito mais absolutamente reais do que qualquer
forma exclusivamente plástica104.

A capacidade fortemente analítica de Leiria advém sobretudo, como afirma Martuscelli,


de uma constante necessidade do poeta em definir o seu papel como artista e como indivíduo105.
Não só teve contacto precoce com o Surrealismo francês, exposto na missiva mencionada, como
o próprio havia tomado a iniciativa de redigir, em 1945, um manifesto onde expõe a sua visão
da arte moderna, critica severamente os cânones que imperaram durante séculos, e sai em
defesa de uma «arte anárquica» que desumanizasse o belo e contrariasse o caráter
excessivamente academizado dos discursos artísticos: o Sobreporismo. Leia-se:

Na arte a conceção de estética tem obedecido sempre a cânones, digamos, a dogmas. A


diferenciação das várias escolas submete-se sempre a um certo conceito de estética, conceito
esse que pode ser mais ou menos livre, mais ou menos académico, mais ou menos dogmático,
mas sempre indestrutível e fixo. E isto dá como resultado a falta de liberdade criadora que, por
vezes, inutiliza as faculdades do artista. Ora, este conceito de estética tem de desaparecer. O

101
Carta a Mário Cesariny, 7 de maio de 1949, in LEIRIA, 2019, p.58-60.
102
Ibidem, p.59.
103
Mário-Henrique Leiria havia participado pouco ativamente nas atividades do Grupo Surrealista de
Lisboa, como afirma na missiva, mas ainda assim fora apelidado de «mau surrealista» por ex-
companheiros. Um deles foi José-Augusto França, que teria já tido discrepâncias com Cesariny aquando
do seu desvinculo do grupo, sobre o qual Leiria afirma que «nada tem a ver com o Movimento Surrealista
e que, se nele anda misturado, é por puro engano ou por mistificação de má fé, apenas à procura dum
êxito barato que lhe parece mais fácil» («Comunicado pelo surrealista Mário-Henrique Leiria», 1950,
ibidem, p.99). Para além de França, Leiria havia ainda assinado, junto com os restantes surrealistas
dissidentes, um manifesto com o título «Do capítulo da probidade», em 1951, como resposta direta, de
tom jocoso e efusivo, ao afastamento de O’Neill do movimento enunciado no prólogo de Tempo de
Fantasmas (cf. ibidem, p.124-126).
104
Ibidem, p.59.
105
Cf. MARTUSCELLI, 2006, p.19.

40
dogma ou o método não são precisos para nada em arte. Faça-se arte anárquica, arte absurda,
criem-se alucinações ou pesadelos, mas reproduza-se a sensibilidade e a criação cerebral. O
Sobreporismo tende para a destruição total dos métodos. (…)106

A proposta de uma estética (que, como qualquer movimento de vanguarda, se ancora


na redação de um manifesto) que valoriza a atividade inconsciente, privilegia o sonho e a
imaginação e procura a valorização da essencialidade do artista, em tudo se assemelha aos
princípios surrealistas que analisámos até agora, sendo que este texto antevê o conjunto de
alguns comportamentos e opções que viriam a ser postos em prática pelo Grupo Surrealista de
Lisboa dois anos mais tarde. Da mesma forma, o Sobreporismo reivindica um espírito autofágico
que, apesar de não se esgotar no niilismo tipicamente Dada, coloca a tónica na ação deletéria e
não na recriadora:

Então destrua-se, aniquile-se, mas crie-se algo de novo que valha a pena ser vivido, embora esse
algo de novo traga como resultado a loucura ou a auto-destruição. A estética do Sobreporismo
ama a arte pela violência destruidora e não pela fraqueza criadora 107.

Vemos que a violência será sempre o ponto de partida. O curriculum crítico de Leiria
debruça-se fundamentalmente sobre o papel do artista na sociedade, os seus deveres e funções
de acordo com as exigências da conjuntura histórica, moral e política onde atua. No texto «Para
uma melhor compreensão da chamada ‘Arte Moderna’» (1946)108, que de certo modo vem
complementar a defesa do novo projeto estético supracitado, Leiria rejeita fortemente a
atribuição tipicamente burguesa do adjetivo «moderna» exclusivamente à era contemporânea.
Segundo o próprio, um Miguel Ângelo, Fídias, Rodin ou até mesmo Picasso109 foram modernistas
(sinónimo para inovadores) dentro do seu tempo, precisamente porque tomaram as rédeas de
uma rutura da visão estereotipada da arte e do tipo de mentalidade que aí se praticava: tiveram
uma produção que «vibra dentro das necessidades atuais, porque é a vida e o sangue daqueles
artistas que sofrem profundamente a sua maldição de serem artistas e esmagam na tela ou no
gesso aquilo que não podem viver»110. Esta definição não é exclusiva da era moderna, mas,
segundo Leiria, trata-se de uma problemática transversal na história, respeitante a todo e
qualquer indivíduo que conseguiu a façanha hercúlea de fazer arte com base em tudo aquilo

106
«1º Manifesto do Sobreporismo» (1945), in LEIRIA, 2019, p.55-56.
107
Ibidem.
108
Ibidem, p.52-54.
109
É essencial fazer aqui referência a um texto (não datado) onde Leiria demonstra particular fascínio pela
obra de Picasso, o qual toma como um artista capaz de produzir as mais belas imagens do inconsciente,
não reguladas por modelos de fidelidade de representação do real: «Nada em Picasso nos faz lembrar a
fotografia colorida, simples reprodução exata do que o artista vê. (…) Temos expressões interiores,
deformações do exato para magníficas conceções do símbolo vivo» (ibidem, p.51).
110
Ibidem, p.53.

41
que a sociedade (burguesa) considerava obsceno, inútil e filistino. Estas são características não
só das sensações mais intrínsecas que permeiam os nossos desejos, mas também caracterizam
o tipo de imagens que estes artistas criavam tendo sobretudo por base a sua perceção
individual, os seus sentimentos e ânsias pessoais. «Porque é que o artista tem de estar amarrado
a conceitos que se estabeleceram como certos apenas porque são antigos? (…) O artista hoje
quer um pouco mais que isso porque a vida assim lhe pede»111. Assistimos, por isso, a um
constante ataque à absurda passividade e incompreensão que a sociedade mantinha em relação
a novas formas de expressão que desafiassem o status quo da época.

À medida que nos abeiramos dos textos que mais importância assumiram no seio da
estrutura programática dos surrealistas dissidentes, encontramos cada vez mais presente na
ensaística leiriana a menção a mecanismos surrealistas de criação artística, bem como uma
aproximação gradual a um tipo de discurso também programático e técnico, que sempre
mantém no epicentro temático as preocupações com o sujeito criador. Mais do que praticar a
arte, Leiria afirma que só lhe é fiel quem verdadeiramente a transpõe, quem é capaz de
arrebatar as fronteiras entre o desejo e a criação, seja ela que de tipo for:

O artista não pode ir diretamente ao que pretende quando faz arte. Só abandonando-a,
transpondo-a, poderá encontrar a satisfação do seu desejo. Aí já não se trata então de fazer arte,
mas sim de, por intermédio de processos todos pessoais e altamente maravilhosos, realizar o
objeto desejado, não se servindo já das sobras do inconsciente, mas atuando plenamente dentro
dele e transpondo-o para o real (pintura automática, tintura, colagem, «frottage», etc.) 112.

Aquele que vulgarmente apelidamos de «artista» é incapaz de concretizar isto, porque


nega o «poder carnívoro da realidade»113 e submete-se apenas àquilo que a sociedade vê,
conhece e aceita. Leiria distancia-se desta conceção de artista, na medida em que se auto-insere
num grupo totalmente díspar e único, capaz de «ver com os dedos, com os olhos, com o
sexo»114: os surrealistas. Esta transposição a que o poeta faz menção refere-se a um modo
extremo de exteriorização dos desejos através da espontaneidade e da pureza que métodos
como o automatismo cursivo ou o cadavre-exquis permitiam explorar, e que vão muito além da
simples representação de obstáculos que o poeta encontra no quotidiano, utilizando a arte
apenas enquanto meio de libertação das suas frustrações. Como afirma Tania Martuscelli, «não

111
Ibidem, p.54.
112
«A arte não é solução» (1949), ibidem, p.41.
113
Ibidem, p.42.
114
Ibidem.

42
se trata, portanto, de transpor para a arte a incapacidade do artista, ou a ‘frustração do homem’,
mas de dar liberdade à arte ‘de existir e de se devorar a si própria’»115.

Desde a sua génese que o Surrealismo teve como apanágio a crítica e rejeição da
catalogação temporal e rotular inerente aos diversos movimentos e estéticas, bem como um
combate ao propósito de instrumentalização da arte exclusivamente em função do poder
político, recusando-se a ser mais um ismo na história – «é bom e conveniente não confundir o
Surrealismo com qualquer catálogo de livreiro ou rol de livraria»116. O mesmo aconteceu no
contexto português, cujos artistas agiram em consonância ao assumirem uma consciencialização
do seu papel, como afirma Leiria: «Escolhemos o Surrealismo porque ele é para nós a única base
autêntica duma realização procurada e urgente, mas não nos empenhamos demasiado na força
mítica do rótulo»117. Além de se apoiar num discurso de defesa do movimento, Leiria e seus
contemporâneos estavam totalmente cientes do cenário ditatorial onde atuavam e das
dificuldades que enfrentavam ao tentar captar a atenção de um público intelectualmente
impreparado, dominado pela inércia e pelo medo, mas também pelo sucesso fácil e pela
conveniência118. Como o próprio poeta afirma, «debaixo de qualquer ditadura (fascista ou
stalinista) não é possível uma atuação surrealista organizada sem as respetivas consequências
de represálias policiais e, portanto, sem o aparecimento dos respetivos mártires e heróis»119:
isto acontece porque, no caso de países que estavam sob a alçada de regimes totalitários
fascistas e comunistas, prevalecia o domínio da instrumentalização da arte ao serviço da nação
e da imagem idílica de respeito pelas tradições nacionais. De facto, a atitude destes artistas face
ao contexto censório e restritivo, que limitava a atuação coletiva, afigura-se como uma batalha
constante pela sobrevivência da liberdade de expressão através da subversão de valores
inimputáveis, pelo que a vivência do verdadeiro amour fou confinava-se a uma simples
experiência individual, parte de uma travessia que cada indivíduo devia fazer sozinho120. Esta
problemática da condição do artista é novamente referida no «Manifesto of the Portuguese
Surrealists» (cuja intenção seria a de ter sido publicado na revista surrealista inglesa Free Unions

115
MARTUSCELLI, 2006, p.31.
116
«Para ser lido no JUBA em 27/5/49», in LEIRIA, 2019, p.77.
117
«Realidade Surrealista» (s/d), ibidem, p.71.
118
Importa aqui salientar, segundo afirma Adelaide Tchen, que apesar do impacto negativo que a política
isolacionista de Salazar teve no contexto criativo do Portugal dos anos 40 e 50 (interessa-nos o período
de atuação do movimento em questão), uma outra fulcral causa da derrota surrealista havia sido o infeliz
«desinteresse da intelectualidade portuguesa», consequente da «falta de tradição da sociedade
portuguesa na compreensão das vanguardas». (TCHEN, 2001, p.205).
119
«Por um deserto exaustivamente longo» (1950), LEIRIA, 2019, p.113.
120
Cf. Ibidem.

43
de Simon Watson Taylor), no momento em que o autor refere que, por culpa do contexto
ditatorial fascista, cada artista estaria limitado a uma produção sobretudo individual:

Action has to be envisaged within the framework of the prevailing situation, and it is for this
reason that we assert the impossibility, in Portugal, of developing a collective, overtly surrealist,
activity or open collective manifestations. We remain individual surrealists, acting sometimes
together as circumstances allow121.

Contudo, em dezembro de 1950, oito meses após a redação do manifesto e período no


qual o manifesto havia sido extraviado, Leiria escreve a Taylor pedindo que o mesmo não seja
publicado, não apenas por haver discordância sobre a natureza do mesmo entre os membros,
mas acima de tudo porque o grupo estaria a ser alvo de forte perseguição política:

A nossa correspondência tem sido sistematicamente violada e existem cópias de tudo o que
escrevemos nas mãos da polícia política. O próprio Manifesto lá está e eu fui chamado e avisado
de que não deveria publicá-lo sofrendo, se tal acontecesse, as respetivas consequências (…)
Como se vê o círculo vai-se apertando à nossa volta e de tal forma que começa a tornar-se
impossível fazer ou escrever qualquer coisa. 122

Perto do fim, Leiria manifesta a sua frustração pessoal pela impossibilidade de


concretização do projeto revolucionário surrealista que tanto visionava, tarefa ímproba que não
passa de uma quimera no contexto onde estes artistas tentam atuar, e admitindo a precaridade
da condição de artista em tempos análogos, uma vez que «é impossível e completamente inútil
qualquer atividade da nossa parte para dizer aos outros que existimos aqui em Portugal. Não,
aqui não existimos nem podemos existir. Só fora daqui»123.

Esta frustração de um «Surrealismo impossível»124 levaria Mário-Henrique Leiria, dois


anos mais tarde, a emitir um «Comunicado» onde informa publicamente o seu desvinculo do
movimento, face a incompatibilidades interpessoais com demais membros e simpatizantes:

Separo-me da palavra SURREALISTA que, por longos anos, me tem andado sinceramente ligada
à vida e aos atos. Da grande experiência surrealista que por todo mundo vive, existe em Portugal
uma amostra mistificadora exemplificada em exposições pseudo-revolucionárias na Travessa da
Trindade e na Casa Jalco, nas publicações socialístico-aventureiras de Apenas uma Narrativa, etc.
(…) Simplesmente encontrei o caminho atravancado e emporcalhado por quantos, dispostos a
aproveitar da aventura para usos pessoais e inconfessáveis (…) 125.

121
«Manifesto of the Portuguese Surrealists» (1950), ibidem, p.121.
122
«Caro amigo Taylor» (1950), ibidem, p.119-120.
123
Ibidem.
124
CUADRADO, 1998, p.42.
125
«Comunicado» (1952), LEIRIA, 2019, p.127.

44
O poeta viria ainda a criticar o desmembramento, apatia e fuga de alguns ex-
companheiros, além de dirigir parte da culpa para um entorpecimento do movimento
internacional, preconizado pelo «André Breton-Papa»/«André Breton-Ditador» (José-Augusto
França, o antagonizado, havia apontado uma «função messiânica»126), que

aceita convites e entrevistas tipo burguês-ó-barato, que escreve artigos puramente literários (e
maus) (…) Temos assim o Movimento Surrealista travado, representado por um só homem que
expulsa ou aceita conforme o seu bel-prazer e que, para impor a sua vontade, faz uma seleção
arbitrária dos valores por ele chamados surrealistas (…) 127.

Leiria apresentava uma lucidez muito crua e sofrida relativamente à situação do


movimento internacional e nacional, sendo que este último dependia de um contexto político
que dificultava a concretização do seu desejo revolucionário. Como afirma Tania Martuscelli, a
desilusão que o assolou face ao fracasso das suas movimentações enquanto poeta «delirante»
culminou numa evolução, nos anos 60 e 70, para uma poética de amadurecimento,
manifestamente «ideologizante», sem o compromisso a toda a mise-en-scéne inerente a uma
estética de vanguarda128. Por esta razão, a autora afirma que assistimos durante este período a
uma «maturação do que foi o mecanismo surrealista»129 na obra de Leiria, sendo que
pontualmente encontraremos ainda laivos desta produção delirante após a sua desagregação
do movimento, como é o caso do recurso ao humor e ironia tipicamente surrealistas. Este
amadurecimento bebeu da influência do momento de criação prolífica que se estabeleceu no
fim dos anos 40 e início dos anos 50, que preparou o autor para a passagem à fase seguinte da
sua produção, ou seja, «(…) o Leiria do gin tonic experimentou diversos outros drinks que lhe
serviram de ‘aperitivo’, num movimento de maturação do que o tornou conhecido como
contista rebelde, denunciador de barbaridades, forte, de humor ácido e embriagador»130 – para
todos os efeitos, esta sua posição mantém-se dominante e transversal a toda a sua obra, porque
o poeta não chega nunca a perder a fé naquilo que o Surrealismo havia significado na sua vida:
«a descoberta poética, a revolta contra a opressão, o verdadeiro caminho de sabermos quem
somos (…)»131. Inclusivamente, aquando do seu regresso do Brasil no início dos anos 70, Leiria
viria a manifestar interesse na exposição que estaria a ser preparada na ex-Pathé Baby, bem
como em desenterrar do esquecimento alguns dos trabalhos dos dissidentes132.

126
FRANÇA, José-Augusto (1950), «À volta da transição da actualidade», Seara Nova, março, p.85.
127
Carta dirigida a Carlos Eurico, «Carcavelos, 30-3-52», LEIRIA, 2019, p.129-130.
128
Cf. MARTUSCELLI, 2006, p.6.
129
Ibidem, p.163.
130
Ibidem, p.15.
131
LEIRIA, 2019, p.130.
132
Destacam-se a este propósito duas cartas endereçadas a Cesariny: a 14/10/71, Leiria afirma que
«continuo, no entanto, como no tempo antigo que é ainda ao meu de agora (…) Portanto, informo que,

45
A partir da leitura dos textos até aqui selecionados, podemos inferir que a obra crítica
de Leiria comporta vários níveis de atuação, que vão desde o papel do sujeito criador limitado
por um contexto político de miséria intelectual e artística, até à defesa de um projeto quimérico
de subversão de valores subjacente ao conjunto de práticas dos surrealistas. É por isso que,
segundo Marta Braga, encontramos, dentro do todo que é a produção poética, ensaística e
plástica leiriana, um «triplo aspeto funcional»133:

como diferentes estratégias discursivas para expressar uma perspetiva da vivência de uma
determinada contingência política e social; como meio de sublevação que se faz essencialmente
pela palavra; e, por fim, como via de acesso a um espaço único de liberdade, que é, afinal, o da
criação artística. 134

A componente crítica e subversiva dos textos em prosa de Leiria não se ficou apenas
pela seleção supramencionada, onde vimos a transversalidade do ataque bastante direto ao
establishment social, político e artístico. De facto, a vertente contística pela qual o poeta é
vulgarmente conhecido, e que não se esgota nos livros publicados (Casos de Direito Galáctico,
Contos e Novos Contos do Gin Tonic, O Mundo Inquietante de Josela - fragmentos) ainda em
vida, é também constituída por um sem-número de textos dispersos e inéditos, reunidos
recentemente nas Obras Completas de Mário-Henrique Leiria: Ficção, que nos transportam para
um novo espaço de contracultura e subversão mascarados pelo humor negro e a sátira. Ainda
que o seu histórico contístico édito e inédito valesse per se a redação de uma tese, não sendo
este o nosso propósito, também não podemos deixar de fazer aqui referência a alguns dos seus
microcontos pouco conhecidos da década de 70, visivelmente contaminados por um humor
ácido e corrosivo tipicamente surrealista, que sub-repticiamente esconde laivos de crítica social.

Apesar de se afigurar supérfluo para a presente dissertação traçar aquele que foi o
historial das técnicas do humor e da sátira na arte ao longo do tempo, passando por uma
produção teórica sobre o assunto, o facto é que a sua presença na literatura assumiu-se sempre
como um grito de insurreição no contexto de épocas historicamente conturbadas, pelo que o
mesmo «aparece como uma defesa perante esta ordem anormal das coisas em que o indivíduo
está prestes a ser sacrificado»135. Restringindo-nos ao conto, a presença deste género na obra

se a coisa acontecer, gostaria de participar razoavelmente». No dia 29 do mesmo mês, informa que teria
encontrado algum material dos tempos antigos: «Continuo a cheirar aqui pelo saco dos papéis e até
descobri uma série de cartas do Carlos Calvet da Costa e, ó pasmo, um postal muito peixe frito do O’Neill
em 48! Molhos de diálogos (textos) automáticos e alguns cadáveres esquisitos, com o Carlos Calvet,
também cá cantam» (MARINHO, 1987, p.673-675).
133
BRAGA, Marta (2012), Arte e Poder na obra de Mário-Henrique Leiria, Dissertação de Mestrado em
Estudos Portugueses, FCSH-UNL, s/p.
134
Ibidem, s/p.
135
DUROZOI e LECHERBONNIER, 1972, p.268.

46
de Leiria torna-se mais proeminente na década de 70, após o seu regresso do Brasil,
nomeadamente através de um processo de recuperação de histórias da tradição oral que
atravessam várias épocas. Exemplo disto são as crónicas publicadas no jornal O Coiso em 1975
– «O Capuchinho Vermelho», «O Lobo e o Cordeiro», «A menina branca e os sete anõezinhos»,
«A boa fada, a menina dos cabelos louros e o sapinho encantado» e «A Gata Borralheira», entre
outros – sempre narradas pelo mesmo «vovô Gazoza» que dava péssimos conselhos às crianças,
nos quais Leiria procede a uma perturbação do horizonte de expectativas subjacente aos títulos
e desestabilização dos valores morais e da mensagem subliminar implícitos às histórias originais,
de modo a satirizá-las e torná-las desconfortáveis no momento da leitura, de acordo com um
novo cenário envolvente de perversão, promiscuidade, tortura, morte, e um mundo de interesse
e egoísmo patrocinado pela mundividência moderna e capitalista. Lemos, por exemplo:

Capuchinho Vermelho meteu os cigarros no bolso do aventalinho bordado, colocou o cestinho


de flores no cão e fez umas cócegas no pirilau do Lobo Mau. O Lobo Mau deu três pulos, é óbvio.
Capuchinho Vermelho prosseguiu:

- Se bem que a avozinha esteja bastante seca, como sabes, deve no entanto chegar para dois.
Vem daí comigo.

O Lobo Mau foi logo, coitado.

À noite, na bonita casinha da avó, no outro lado da floresta, o Lobo mau roía o último fémur e a
menina, enquanto punha um pouco mais de banha na frigideira para fritar as iscas, explica ao
bicho voraz:

- Quanto a comeres-me, falamos disso mais logo.

E falaram.

Por isso, meus meninos, é que há agora por aí muitos Capuchinhos Vermelhos com um grande
rabo, dentes afiados e, ainda por cima, a pedir boleias.136

A moral e as temáticas satirizadas por Leiria, bem como a (re)caricaturização das


personagens, abrem portas para uma releitura dos contos originais, colocando o leitor numa
posição desconfortável de reflexão e redefinição dos limites da comicidade e da realidade,
porque acima de tudo a escrita de Leiria reflete uma certa impiedade face às tendências sociais,
políticas e literárias da sua época. Esta premissa aproxima-nos de um processo retórico-
estilístico produtor de comicidade bastante caro ao Surrealismo e que permite tecer uma

136
«O Capuchinho Vermelho», in LEIRIA (2017), Obras Completas de Mário-Henrique Leiria: Ficção, intro.,
org e notas de Tania Martuscelli, Silveira, E-Primatur, p.508.

47
reflexão em torno do nível de subversão discursiva a que poetas como Leiria submeteram boa
parte da tradição literária – a paródia:

A escrita poética surrealista, possuidora de uma boa memória literária, gera amiúde um tecido
intertextual onde dialogam, parodicamente, vozes ou textos plurais, podendo ser encarada como
um espaço de afirmação conflitual e agónica de novos escritores que se revelam «em competição
e em confronto com os detentores do poder no campo literário» (…)137.

Através da leitura dos microcontos supracitados, onde assistimos a uma recuperação e


desfiguração de histórias enraizadas na tradição oral, dá-se um processo de apropriação
literária, através do qual o autor produz um «jogo de supressões, substituições ou alterações de
um texto suficientemente conhecido para ser identificado»138. Na aceção mais imediata,
podemos tomar esta modalidade intertextual como «l’articulation d’une synthèse, d’une
incorporation d’un text parodié (d’arrière-plan) dans un texte parodiant, d’un enchâssement du
viex dans le neuf»139; contudo, é preciso ter em atenção todo o debate crítico em que está
envolvida ao longo do tempo.

Como explica Cândido Martins, a longa tradição teórica da paródia, consumada na


Modernidade como um «singular supra- ou meta-género literário»140, remonta a um conjunto
de reflexões que se iniciaram com as poéticas clássicas, que a haviam reduzido a um mero
processo retórico e lúdico gerador de efeito cómico; estas deram depois lugar às teorizações
formalistas que formaram a «primeira teoria moderna sobre a Paródia»141, na qual esta adquire
não só um caráter intertextual e interdiscursivo, mas assume as rédeas de um processo de
evolução formal, renovação e emancipação do sistema literário (nomeadamente o sistema dos
géneros); expõe ainda as considerações de pós-estruturalistas como Mikkail Bakhtine e Julia
Kristeva, que analisam o discurso paródico à luz de conceitos operatórios como o dialogismo e
a carnavalização, aborda a problemática contemporânea da intertextualidade, bem como a
conceção genettiana de hipertextualidade, partindo de Palimpsestes (1982), a qual, apesar de
ignorar a natureza interdiscursiva da paródia, assenta numa transmutação desde o hipotexto ao
hipertexto, que tem por base um processo de deformação lúdica de um texto breve.

Para além da tese de Cândido Martins, é pertinente aqui remeter a nossa atenção para
aquele que é o estudo mais significativo no âmbito da paródia, da autoria de Linda Hutcheon:

137
MARTINS, J. Cândido (1995), Teoria da Paródia Surrealista, Braga, APPACDM, p.72.
138
Ibidem, p.33.
139
HUTCHEON, Linda (1981), «Ironie, Satire, Parodie: une aproche pragmatique de l’ironie», Poetique:
Revue de Theorie et d’Analyse Litteraires, p.143.
140
MARTINS, 1995, p.61.
141
Ibidem, p.36.

48
Theory of Parody: the teachings of twentieth-century art forms. O estudo de Hutcheon parte de
uma análise semântico-pragmática e assenta sobre duas teses basilares: por um lado, a questão
da transtextualidade, e por outro o caráter de autorreflexividade da arte moderna através do
mecanismo da paródia enquanto tónica desconstrucionista dos discursos tradicionais e caducos,
assente num princípio imitativo por «inversão irónica»142 do hipotexto, como tivemos
oportunidade de ver nos contos de Leiria. No caso deste e tantos outros poetas e artistas (uma
vez que a paródia pode ser encarada como um processo transliterário que contamina outras
formas de expressão), à apropriação desta construção cómica e satírica pós-moderna subjaz um
desejo de diálogo e interação com o passado, quer estando a sua recuperação ligada a uma
intencionalidade ridicularizadora e crítica ou não: «Parody is a complex genre, in terms of both
its form and its ethos. It is one of the ways in which modern artists have managed to come to
terms with the weight of the past»143. No fundo, o processo desconstrucionista a que assistimos
no seio da produção contística e parodística leiriana assenta precisamente na «natureza
parasitária»144 deste processo retórico-lúdico, ou seja, numa lógica de invasão, imitação –
«imitation with critical ironic distance»145 –, sobreposição e manipulação textual que ocorre no
seio do texto parodiado e que é transposto para o alotexto: o objetivo será degradar as suas
propriedades originais e a intencionalidade moralizadora a que se encontra ligado, tendo
especificamente em conta, no caso de Leiria, os contos clássicos da literatura selecionados e
parodiados.

Num conto retirado dos Novos Contos do Gin, intitulado «Regressos»146, a mecânica de
apropriação discursiva prende-se com a recuperação indireta da principal figura política do
Estado Novo, remetendo para o leitor a competência de receção e interpretação da estratégia
intertextual. Após receber em sua casa um conjunto de personalidades históricas, entre elas
Alexandre Magno, Júlio César, Napoleão Bonaparte e Adolf Hitler, de forma totalmente
aleatória, uma situação bastante surreal e caricata, eis que a personagem principal, Lourival,
ouve irromper pela porta das traseiras da casa uma voz que imediatamente reconhece e, não
sendo sequer capaz de enfrentá-la, decide fugir, deixando os convidados para trás. O mecanismo
parodístico que encontramos neste conto prende-se com as frases proferidas pelo último
convidado, alusivas ao discurso ideológico de Salazar, o qual é passível de ser identificado pelo
leitor através da sua fala: «Temos de nos lembrar que somos um país de gente humilde.

142
HUTCHEON, Linda (1985), A Theory of Parody: the teachings of twentieth-century art forms, Cambridge,
Methuen, p.6.
143
Ibidem, p.29.
144
MARTINS, 1995, p.62.
145
HUTCHEON, 1985, p.37.
146
LEIRIA, 2017, p.217-222.

49
Devemos saber que a pátria nos obriga a viver com o arado numa das mãos e a espada na outra;
e com economia…»147. Leiria satiriza, assim, o poder político-ideológico do regime ditatorial
como forma de resistência.

Maria Manuel Krühler, na sua dissertação de mestrado intitulada Humor negro e


Surrealismo na obra de Mário-Henrique Leiria, destaca uma característica que permeia o
repertório contístico leiriano e que será aplicável, neste caso, aos contos que aqui selecionamos:
o acaso. Como a autora afirma,

o acaso tem ainda um papel importante em alguns destes contos em que, muitas vezes o
desfecho é inexplicável, absurdo, acabando por retirar ao narratário toda a sua segurança,
divertindo-o mas trazendo-lhe ao mesmo tempo a inquietação ou a dúvida, levando-o a
interrogar-se sobre os seus valores e vivências148.

Encontramos o princípio aqui enunciado no conto «A grande festa»149, onde assistimos


a uma rápida sucessão de acontecimentos totalmente absurdos, passíveis de terem nascido no
subconsciente, onde predominam fatores como a fantasia, alucinação, acaso e morte: desde
pessoas que «arrancaram as portas de entrada», outras que «comeram as lâmpadas encarnadas
e ofereceram os casquilhos para serem sorteados a favor das Irmãzinhas dos Pobres», que
«comiam furiosamente os chapéus» ou que «tiraram as calças e pintaram as pernas de
encarnado e amarelo», vemos um conjunto de personagens que executam ações inusitadas e
absurdas, até que uma delas, o «espectador mais velho», decide atear fogo ao teatro onde todas
se encontravam. De facto,

O humor negro produz, através do estabelecimento de relações inusitadas entre objetos comuns,
um efeito de estranhamento que busca com crueldade, amargura e às vezes desespero, revelar
o absurdo do cotidiano como uma resposta às agressões à liberdade humana, ao tentar quebrar
a rigidez e as convenções. Assim, o riso produzido pelo humor negro não é espontâneo, é
esporádico e incerto, funcionando como uma válvula de escape diante de algo que desorienta e
incomoda, mas que não impede a comicidade, justamente pelo caráter inusitado do que é
abordado150.

Para além do tipo de situações inusitadas que encontramos neste e outros contos, há
um outro fator subjacente que auxilia o cariz surrealizante, ou delirante, da ação: a linguagem.
Como afirma Maria Krühler, a comicidade e o absurdo das histórias de Leiria usufruem de um

147
Ibidem, p.221.
148
KRÜHLER, 1994, p.26.
149
LEIRIA, 2017, p.414-415.
150
PINTO, Paula P. (2007), Sessanta Racconti: aspetos do Surrealismo em contos de Dino Buzzati,
Dissertação de Mestrado em Língua e Literatura Italiana, São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, p.61-62.

50
«caráter simples, quase lacónico, da linguagem e da estrutura frásica»151, acentuando assim o
sentimento de insegurança, estranheza e desconforto. O facto de o leitor conseguir acompanhar
a história sem grandes complicações ao nível do discurso acentua não apenas o efeito catártico
que advém, num primeiro momento, do humor como forma de subversão linguística, mas
sobretudo do clímax da banalização da experiência de morte; permitirá, por fim, uma
suplantação dos preconceitos formados pela razão e o bom senso de modo a atingir a libertação
de desejos reprimidos e o alcance daquela que é a «razão da criança, do louco ou do
selvagem»152. Além de libertador, o humor assume-se, segundo André Breton, como o «triunfo
do narcisismo» sobre as imposições da realidade153. Esta premissa da quebra da logicidade
agressiva do real, bem como do humor enquanto mecanismo de desregramento sensorial, vai
ao encontro daquilo que Durozoi e Lecherbonnier consideram um novo «modo de pensar o
mundo»154 que subverte as nossas conceções binárias de real e imaginário, certo e errado, vida
e morte, tempo e espaço.

Com este breve desvio dos textos explicitamente ensaísticos para os contísticos155, no
qual notamos uma comum utilização do humor como mecanismo crítico, percebemos o alcance
do experimentalismo leiriano ao nível do texto prosaico, quer numa fase em que o mesmo se
assume como surrealista, como outra posterior onde há um amadurecimento da sua postura e
uma politização do discurso. Como conclui Tania Martuscelli,

Leiria, pode-se dizer em trocadilho, é um vanguardista no sentido literal da guarda-avançada. Um


poeta que encara, com humor – mas humor negro – tudo aquilo que repudia (o sistema político
e social), lutando, muitas vezes sozinho, em nome da liberdade artística e, sobretudo, humana. 156

A análise feita até aqui serve como reflexão preliminar que sustenta a leitura dos
poemas de Leiria, bem como o estudo da sua obra plástica. O constante combate e jogo de
provocações que o poeta travou, tanto individual como coletivamente, com o regime ditatorial
na viragem dos anos 40 para os anos 50 assume-se como uma das bases de suporte de uma
poética sofrida, por vezes nostálgica, assertiva, muitas vezes marcada pela deceção amorosa,
onde encontramos traços que conjugam uma herança da tradição literária popular portuguesa
com a vontade subversiva surrealista a que já nos habituámos. Deste modo, iremos agora

151
KRÜHLER, 1994, p.26.
152
CUADRADO, 1998, p.42.
153
Cf. BRETON, André (1997), Anthology of Black Humor, trad. Mark Polizzotti, San Francisco, City Lights
Books [1949], p.XVIII.
154
DUROZOI E LECHERBONNIER, 1972, p.270.
155
Estão a ser deixados aqui de parte composições de outra natureza, nomeadamente guiões para teatro
e cinema, e ainda uma novela, dado não ser este o foco do presente trabalho. Contudo, a sua leitura é
fundamental para o entendimento da vastidão e diversidade da obra leiriana.
156
MARTUSCELLI, 2006, p.172.

51
observar ao pormenor o caráter transgressor da poesia leiriana, ou seja, de que modo o poeta
problematiza verbalmente a imagem poética.

2.1. A engrenagem poética

No seu ensaio de 1918, intitulado «L’esprit Nouveau et les poètes»157, Guillaume


Apollinaire traça um esboço das principais características que permeiam a poesia
contemporânea e concetualiza um novo espírito baseado no bom senso e razão clássicos, mas
também na exaltação da vida do homem, traços próprios do Romantismo. O autor mostra que
a individualidade do poeta se funde com o meio, e este acaba por perder a estabilidade dos seus
referentes a partir do momento em que se entrega às forças da imaginação, onde a nossa ideia
de tempo e espaço se desvanece. Este é um traço próprio da poesia no Surrealismo, o qual vai
mais longe ao caminhar no sentido da desconstrução da imagem do poeta que persegue a mera
ideia investido de uma missão, devendo agora total fidelidade às imagens criadas pelo absurdo
imediato158. O predomínio das formas poéticas clássicas dá lugar à independência da
imaginação, a qual textualmente se materializa na livre pontuação que restringe visualmente o
ritmo. Perdem-se os fins lógicos das passagens porque o poeta passa a deambular entre ideias
justapostas, que deixam de participar numa lógica de sequência, dando lugar a uma tipografia
revolucionária e um novo lirismo visual: Apollinaire refere-se, neste caso, a novas possibilidades
tipográficas que fundem a poesia com as restantes expressões artísticas e dão a ver o poder de
visualização da linguagem verbal.

Os fatores da surpresa e inovação preconizados pelos momentos vanguardistas fizeram


do século XX a «época de más inventos en la técnica literária de toda la historia»159,
especialmente se atentarmos na tarefa profética de revelação através de imagens, a qual nos
leva a explorar não apenas um novo modo de pensar o poético como experiência transversal a
vários media, mas também uma síntese inédita entre vida e arte:

Typographical artifices worked out with great audacity have the advantage of bringing to life a
visual lyricism which was almost unknown before our age. These artifices can still go much further
and achieve the synthesis of the arts, of music, painting and literature160.

157
Utilizei como referência a tradução inglesa «The new Spirit and the Poets», in Selected writings of
Guillaume Apollinaire, trad. Roger Shattuck, New York, New Directions Books, 1971.
158
Cf. BRETON, 2016, p.34.
159
BOUSOÑO, Carlos (1976), Teoría de la expresión poética, Madrid, Gredos, p.504.
160
APOLLINAIRE, 1971, p.228.

52
No fundo, a proposta de Apollinaire traz à superfície uma das premissas exploradas pela
arte moderna – tendo nos surrealistas alcançado especial protagonismo –, e que se prende com
uma ideia que rejeita os procedimentos imitativos das teorizações clássicas: a criação enquanto
descoberta individual, ação cósmica, que extravasa o princípio da invenção na arte. Isto significa
que o indivíduo passa a estar imbuído de uma função profética que parte das entranhas da
imaginação e da originalidade, e a qual se manifesta na poesia:

(…) poetry and creation are one and the same; only that man can be called poet who invents,
who creates insofar as a man can create. The poet is he who discovers new joys, even if they are
hard to bear. One can be a poet in any field: it is enough that one be adventuresome and pursue
any new discovery161.

Debruçando-se sobre o texto de Apollinaire, Anna Balakian consolida esta premissa ao


afirmar:

(...) the traditional artist is a sieve of human experiences and, stimulated by the muse, he is a
facile interpreter of life; the new artist, like the scientist, plods from effort to effort in the process
of construction, unaided by divine inspiration, but possessing himself the grains of divinity. 162

Vários foram os mecanismos textuais utilizados pelos surrealistas para procederem a


uma transgressão das formas tradicionais através de práticas artísticas experimentais que não
só privilegiam a imaginação como a faculdade que gera e transmite imagens poéticas163, mas
também se assumem na «descontinuidade com a poética da inspiração romântica e em
confronto declarado com a multissecular poética da imitação clássica ou classicista»164. No
contexto português, e atendendo ao facto de que a arte reflete as condições sociais em que
surge, vemos que a obra de Mário-Henrique Leiria comporta vários níveis de transgressão no
que toca não apenas a um exercício plural e interartístico, mas também ao recurso a técnicas
que desestabilizam as configurações caducas de produção verbal, especialmente atentando
num novo exercício de leitura e contacto com o poema. Além destes mecanismos, os quais
podemos convictamente denominar surrealistas, a produção em verso de Leiria remete-nos
para uma panóplia temática de encontros e desencontros onde contemplamos, sinteticamente,
1) uma herança futurista e Dada, bem como a influência da própria tradição literária portuguesa
(poesia medieval, sobretudo as cantigas de escárnio e maldizer, Romantismo, Decadentismo,

161
Ibidem, p.234.
162
BALAKIAN, Anna (1970), Surrealism: the road to the absolute, New York, Dutton, p.87.
163
«The faculty which creates or transmits poetic images is the imagination; and I suppose there is no
mental faculty more difficult to define than this, none which has gathered round itself definitions so
various, so grandiose, so on the face of it discrepante», LEWIS, Cecil (1947), The Poetic Image, London,
The Clark Lectures, p.65.
164
MARTINS, 1995, p.219.

53
Presencismo, e ainda encontramos reminiscências estilísticas da ficção científica e do romance
policial), 2) um exercício metapoético que permite ao leitor aceder às suas convicções estéticas,
3) um tipo de discurso que dialoga com o background político e moral da época, e ainda se 4)
materializa num conjunto de poemas que remetem para as desventuras amorosas do poeta, e
que claramente contrariam o estilo iconoclasta e rebelde pelo qual é conhecido enquanto autor
best-seller.

Tomando como características do trabalho sui generis dos surrealistas o ímpeto


semioclasta e a transversalidade do recurso a um conjunto específico de instrumentos de
subversão linguística, alguns já mencionados, é-nos agora possível proceder a um
enquadramento da poética leiriana no contexto do experimentalismo textual que caracterizou
a produção literária portuguesa do século XX, com o objetivo de conceber uma reflexão quanto
ao modo como Mário-Henrique Leiria problematiza e constrói, nas palavras de Cecil Day Lewis,
«a picture made out of words»165.

Desde os primórdios da sua atividade (mais propriamente 1919, ano em que Breton e
Soupault redigem Les Champs Magnétiques, primeira obra literária assente na escrita
automática) que os surrealistas centraram as preocupações estéticas em torno da exploração
de diferentes graus de automatismo, que iam desde a narração de sonhos à indução de um
estado de abstração por meio de hipnose, com o objetivo de superar a nossa visão dicotómica
de universo real e imaginário e permitir a irrupção de elementos na arte que de outra forma
seriam renegados: «There is also a somatic aspect to psychic automatism that ties me to
emotions that otherwise might remain silent. It is a source and a medium that, at its best, at my
best, opens, magnetizes, and transforms»166. Neste âmbito, e deixando aqui de parte as
preocupações com a problemática da eficácia deste tipo de ditado167, as experiências com o
automatismo psíquico permitiram não apenas criar um vaso de autognose em direção a um
novo tipo de identidade cósmica, a par do estudo do funcionamento do inconsciente, mas
também abriram portas a uma panóplia de novos processos de produção estética onde
destacamos a poesia como terreno privilegiado de exploração espiritual, subversão textual e,
sobretudo, espaço de coincidentia oppositorum onde se consumam as «aproximações súbitas»

165
LEWIS, 1947, p.18.
166
In A Ideia – revista de cultura libertária, 2019, p.8.
167
Durozoi e Lecherbonnier chamam a atenção para a aparente simplicidade deste método, uma vez a
sua concretização é mais complexa do que se pensa. O sujeito deve destituir-se de qualquer «preocupação
lógica, preocupação moral, preocupação estética». Contudo, e no caso específico da escrita, «(…) se se
pode admitir que a primeira frase de um texto automático tem efetivamente a sua fonte no inconsciente
“puro”, a sua audição e a sua transcrição fazem-na imediatamente aceder à consciência, e a continuação
da sua emissão arrisca-se desde logo a ser condicionada pela sua significação». DUROZOI e
LECHERBONNIER, 1972, p.119-121.

54
e as «petrificantes coincidências»168. Tudo isto que extravasa os limites da linguagem como a
conhecemos:

(…) there must be destruction of logical language, which proves inadequate to express alienation
of sensations, the “élans” of instinct, the “souvenirs du futur”, which in short is incapable of
conveying the desired mystical disorder. This aspect of Surrealism is the most obvious, of course,
and the most strikingly unusual (…)169.

No contexto histórico-literário português em análise, encontramos alguns poetas, como


Leiria, Oom ou O’Neill, que privilegiaram o automatismo, mais especificamente na forma da
escrita automática, enquanto traslado do pensamento falado170, um ponto de fusão entre real
e imaginário; como viria a afirmar O’Neill no poema «Pela voz contrafeita da Poesia», «é tempo
de unir no mesmo gesto/ o real e o sonho/ é tempo de libertar as imagens as palavras/ das minas
do sonho a que descemos»171. Para além do ditado automático, a enumeração (caótica) surgiu
enquanto meio de fintar a censura do regime, desmistificar valores e conceitos, e satirizar as
mais importantes instituições políticas, morais e religiosas através da associação de termos que
não partilham o mesmo universo semântico; como melhor diria o próprio Leiria, «E tudo isto/ e
tudo aquilo/ e as coisas todas/ e tudo mais»172. Segundo Perfecto E. Cuadrado,

Essa capacidade de subversão no interior da linguagem explica a predileção dos surrealistas


portugueses, forçados a terem de disfarçar dessa forma o projeto de uma subversão real e
imediata bastante problemática no contexto político do Portugal salazarista. 173

Este propósito de desarticulação da racionalidade e da linguagem partindo do recurso à


enumeração foi trabalhada por Jack Goody no seu estudo The domestication of the savage mind,
onde este apresenta uma síntese dos diversos usos do inventário (tomado aqui como conceito
análogo) para mostrar como a sua construção gráfica facilita a estrutura do conhecimento e a
reflexão sobre a informação, além de possuir uma coadjuvante mnemónica inerente à intenção
desarticuladora da linguagem, que fomenta a abstração e a criatividade. Goody afirma que estas
«listas» se destacam pela

oposición a la continuidad, al flujo, a la conectividad de las formas usuales del habla, como son
la conversación, la oratória, etc., y las substituyen com un ordenamiento en el que los conceptos,

168
BRETON, André (1971), Nadja, trad. Ernesto Sampaio, Lisboa, Estampa [1928], p.16.
169
BALAKIAN, Anna (1967), Literary origins of Surrealism: a new mysticism in french poetry, Londres,
University of London Press, p.18.
170
Cf. BRETON, 2016, p.33.
171
Poema de Tempo de Fantasmas. In O’NEILL, 2017, p.15-20.
172
«a praia encantada», in LEIRIA, Mário-Henrique (2018), Obras completas de Mário-Henrique Leiria:
Poesia, intro., org. e notas de Tania Martuscelli, Silveira, E-Primatur, p.75-76.
173
CUADRADO, 1998, p.48.

55
elementos verbales, están separados no sólo del contexto más amplio en el cual el habla sempre,
o casi sempre, tiene lugar, sino que se separan también de outro (…). 174

Não obstante, Leo Spitzer, intelectual austríaco responsável pela denominação e estudo
deste recurso estilístico, recupera a premissa e designação que Detlev W. Schumann atribui a
um mecanismo lírico da obra de Walt Whitman (1819-92) – «enumeração heterogénea» ou
«stylistically heterogeneous series»175 – para acrescentar o caoticismo como a tónica
manifestamente moderna que Schumann falhou em explicitar 176. O estudioso alemão, por sua
vez, chama a atenção para um Whitman panteísta que abarca na sua poesia tudo quanto estiver
sob a alçada do Cosmos – «pratically everything under the sun and much above it»177 –, de modo
a explorar o domínio da inventariação interminável de objetos desfamiliarizados como pedra de
toque do estilo lírico deste poeta inglês. Para fazer uma leitura transversal de um conjunto de
autores que trabalharam o encadeamento enumerativo na lírica contemporânea, Spitzer parte
igualmente da obra whitmaniana pela capacidade de combinar os «catálogos del mundo
moderno» feitos de uma «polvareda de cosas heterogéneas»178: os mesmos seriam uma forma
de reconfiguração do mundo a partir da aceitação da desordem enquanto característica
primordial do universo e princípio base de criação poética; para Spitzer, este poeta nada mais
fez do que usar a enumeração caótica como «reflejo verbal de la civilización moderna, en que
cosas y palabras han conquistado derechos ‘democráticos’ extremos, capaces de llevar al
caos»179: esta é, no fundo, uma consequência da crise do racionalismo que caracterizou a época
moderna180.

De facto, a inventariação desordenada, tal como os surrealistas viriam a mostrar,


permite alcançar um novo processo de autoconhecimento e conhecimento do mundo através
de fragmentos desfamiliarizados, erguidos da descontinuidade da memória e do raciocínio, bem
como da superioridade das pulsões inconscientes do homem. Foi através do recurso à
enumeração caótica que os surrealistas portugueses conseguiram ludibriar a censura, exorcizar
clichés cristalizados na sociedade e contornar os obstáculos impostos pelo sistema; ainda assim,
é aqui pertinente apelar ao facto de que se medem diferentes níveis deste recurso em autores
distintos: há casos em que todo o poema se constrói com base neste princípio, contrariamente

174
GOODY, Jack (2008), La domesticación del pensamento salvaje, trad. Marco Virgilio García Quintela,
Madrid, Akal, p.96.
175
SCHUMANN, Detlev W. (1942), «Enumerative Style and its significance in Whitman, Rilke, Werfel»,
Modern Language Quaterly, nº3, p.183.
176
Cf. SPITZER, Leo (1968), «La enumeración caótica en la poesia moderna», in Linguística e Historia
Literaria, p.258.
177
SCHUMANN, 1942, p.171.
178
Ibidem.
179
Ibidem, p.288-289.
180
Cf. BOUSOÑO, 1976, p.503.

56
a outros onde a sua presença é secundária. Quando analisamos alguns textos dispersos e
automáticos de Leiria, como é o caso de «Contacto»181, deparamo-nos com um encadeamento
de ações a uma velocidade quase frenética que acompanha o ritmo de surgimento de imagens
desfamiliarizadas em estado de sono e que permitem visualizar a desintegração do real:

Conjunto mítico de observação improvável e mecânica indireta. Choque inverso e obscuro


seguido de ação; tudo quanto age e existe e também o 7 e outros que estão sobre as roldanas
são movimento. Projeta-se o momento oblongo dentro do ar que rodeia os celibatários. Violinos
são existências objetivas e nada mais. Provavelmente não é aquilo que todos cantamos e
sonhamos mas também agora já não sonhamos com as canções. Tanto faz agora ser a noite como
o facto e não é verdade que a existência se repita dentro do mito agnóstico.
Mesmo assim não acredito no verde…182

O mesmo se repete na poesia: em «operação cirúrgica»183, poema de 1971 que recupera


a forma do inventário tipicamente surrealista, encontramos uma construção desordenada na
qual é impossível identificar uma lógica vinculadora entre os versos, apesar de encontrarmos
laivos muito subtis de crítica política e social na referência à «pátria pautada e apresentada à
cobrança». Indubitavelmente, o mecanismo enumerativo possui um bom princípio rítmico
(visual e cinético, e não propriamente sonoro): no caso do sonho, este é desprovido de som, não
conseguimos de facto reconstituir sons, apenas imagens da memória que surgem a um ritmo
descompassado e frenético. Conquanto apresente uma conotação mais sentimental, mas sem
descurar da construção desordenada por entidades semanticamente distantes, lemos num
poema não datado:

Mulher fantasma

chapéu flor

corola pétala

Ventre oco

antro réptil

estrela sismo

forma irreal

181
LEIRIA, 2017, p.432.
182
Ibidem.
183
LEIRIA, 2018, p. 302.

57
Minha flor mulher

meu brinquedo infante

minha cadeira vento

meu cristal encanto.184

No poema «sodoma económica»185, Leiria traça o retrato da miséria moral e da


precaridade de Sodoma, através da enumeração de um conjunto de pecados que vão desde
parafilias sexuais («Velhos senis, sentados em arcadas, /têm nos joelhos cabeças de
pederastas») a casos de decadência moral e injustiça («Enquanto nascem meninos
vagabundos/(…) Em taças de topázio/Lavam-se os pobres e os sifílicos»). O nível de subversão
textual e automatismo que encontramos no poema prende-se com a intervenção do absurdo e
do nonsense, ao fazer o relato de «gases e veludos» que «dançam em pratos parabólicos» ou
«ascetas» que «pregam maldições alcoólicas». A sucessão deste tipo de imagens distópicas e
repulsivas leva-nos a refletir sobre o funcionamento daquele que é o super sentido da realidade,
onde o absurdo e um humor não procurado186 convergem de modo a infringir as bases sobre as
quais a comunidade moralmente se edifica: neste caso, assistimos à dessacralização de
elementos com os quais a sociedade portuguesa mantinha um compromisso de devoção e
crença através da perturbação da imagética religiosa e do tabu associados à passagem bíblica
da destruição da cidade de Sodoma por Deus.

No poema que dá título à presente dissertação – «Para ser visto por uma lente»187 –
encontramos uma aparente narratividade que se inicia com o encontro entre o sujeito poético
e uma segunda entidade. Sucessivamente vão-se juntando a eles um conjunto de substâncias –
uma proposta desonesta, um trapézio, uma bota, um pincel, um grande pargo, uma pescada,
sete marrecos, um sacristão e um ditador, etc. – totalmente desconexos entre si e que não
reclamam qualquer logicismo no contexto do poema. Estas entidades participam, junto com as
personagens, na «dança das laranjas», onde rodam, zunem, apitam, dando ao leitor uma
sensação de circularidade poemática que se assemelha quase a uma cantiga infantil, na qual
através da inventariação de objetos temos acesso a uma realidade totalmente desarticulada. A
confluência de entidades de natureza plural num espaço textual onde é impossível localizar
qualquer tipo de diálogo ou estabelecer qualquer analogia lógica remete-nos para um exercício

184
«Mulher fantasma», ibidem, p.213.
185
Ibidem, p. 496-497.
186
Cf. BALAKIAN, 1970, p.130.
187
Ibidem, p.77-79.

58
de deslocamento visual (ou dépaysement) que se tornará mais explícito quando adiante
observarmos ao pormenor a prática experimental da collage surrealista.

O nível de transgressão verbal intensifica-se em casos onde o experimentalismo


desvirtua diretamente a construção da palavra e dá lugar a um conjunto de possibilidades
linguísticas totalmente bizarras e estranhas que jogam com construções léxicas e fonéticas,
palavras homónimas e trocadilhos, etc. É o caso do poema «dejejum»188, onde encontramos
uma derivação experimental de tipo fonético no próprio título e na expressão central do poema
– «povos com resunto» –, uma operação metaplasmática de supressão e adjunção que ocorre
no seio da formação das palavras, exercida pela supressão e transferência do fonema p, em
presunto, para ovos; simultaneamente, dará origem ao paralelismo homónimo produzido pela
palavra «povos». Este processo de desconstrução e aglutinação semântica, que interfere na
perceção geral que possuímos sobre as palavras e a relação entre elas, coopera novamente com
a subversão da relação entre os objetos/entidades e as suas funcionalidades comuns (o sujeito
consome a sua «refeição» numa tabacaria e não num espaço de restauração), construção que
goza de um tom cómico e participa no caráter de «amoralidade»189 que permeia grande parte
da obra leiriana.

O longo repertório de experimentalismos a que os surrealistas submeteram o ato


poético, tal como era tradicionalmente encarado, passou também pelo recurso a uma forma
híbrida que transcende a conceção caduca de uma «poética fundada no valor ornamental da
palavra e nas suas combinações harmónicas, fixadas do interior (…)»190, e que ultrapassa o
caráter estritamente versificado e meramente conotativo da poesia clássica: o poema em prosa.
Em 1945, período em que ainda não teria oficializado a sua vinculação ao movimento mas teria
já uma visão potencialmente consistente sobre o mesmo (ano em que redige o seu «Manifesto
do Sobreporismo»), Leiria escreve dois poemas intitulados precisamente «Poema em Prosa»191,
sendo que, se ambos por um lado partilham a mesma construção em verso livre, diferem no tipo
de temática retratada: o primeiro é de teor manifestamente sentimental, onde conhecemos um
lado mais romântico do poeta, não muito comum, e que se consolidaria no período pós-
surrealista. O sujeito poético dirige um pedido de ajuda ao vento, suplicando-lhe que traga de
volta a mulher que ama e lhe leve para longe a dor de um amor não correspondido. Estamos
aqui perante um poema dominado pelo confessionalismo, o qual, à semelhança de tantos outros

188
Ibidem, p.293.
189
Cf. MARTUSCELLI, 2006, p.160.
190
RODRIGUES, Ângela Varela (1980), «O poema em prosa na literatura portuguesa», Colóquio/Letras,
nº56, p.23-34.
191
LEIRIA, 2018, p.548-549 e 550-551.

59
poemas em prosa, compensa a falta de metro através de determinados exercícios figurativos.
No caso específico deste poema é através de recursos como 1) o paralelismo anafórico («Vento
que vem de longe», «Vento azul que apagas pegadas solitárias», «Vento que me fazes sonhar»),
que confere ritmo e assonância musical ao poema, 2) o paradoxo («Sinto toda a minha
incompreensão e compreendo-a»), 3) a metáfora192 («Sinto amor a (…) enrolar-se em espirais
de fogo pelo meu sangue», «Dêem-me alma de vento») e 4) a apóstrofe ou invocação («Ó
vento!») que o leitor é capaz de conciliar o lirismo das dores do sujeito com a liberdade formal
que está na natureza do poema em prosa.

O segundo caso gira em torno da construção oximórica entre amor e ódio, onde o sujeito
poético, num ímpeto futurista, convida os seus irmãos a lutar contra o desprezo e a cobardia,
servindo uma «fogosidade destrutiva e empenhamento regenerador»193: «Odiemos essa
própria alma enquanto ela for cobarde e não gritar, e não se desfizer em ânsias de liberdade»194.
Tanto no primeiro poema como no segundo, ainda que este último tenha um tom politicamente
mais vincado, vemos que o discurso lírico tende para a supressão de coordenadas temporais,
uma vez que apenas lhe interessa o tempo da enunciação; ainda que possamos encontrar
pequenos laivos de narratividade aparente no poema em prosa, o facto é que em muitos casos
estes não passam de uma ameaça: os tempos verbais presentes em ambos os poemas situam a
ação num presente (no caso do primeiro poema) e futuro (no segundo poema) não-
cronológicos, contrariamente aos contos breves onde, em termos tipológicos, encontramos a
narratividade na sólida alternância de formas verbais, cruciais na estabilização de uma noção de
tempo.

Estamos, com isto, não só perante uma dissolução das noções de cronologia e
espacialidade, uma das características que permite delimitar as fronteiras entre o poema em
prosa e o conto, mas sobretudo perante uma superação dos constrangimentos anteriormente
colocados pelas poéticas clássicas que se traduz na pontual supressão de fronteiras
genológicas195. O exercício de composição ambígena do poema em prosa integrou o conjunto
de práticas que renunciariam ao estatuto literário estereotipado, já caduco, e abriu portas para

192
Apesar de podermos inserir o poema em prosa no conjunto das inovações experimentais que os
surrealistas trabalharam, o facto é que Breton privilegia o verso enquanto expressão da autonomia da
imaginação (e não a prosa); isto significa que o poeta deve «cavar resolutamente cada vez mais o fosso
que separa a poesia da prosa; dispõe para isso de uma ferramenta, e de uma só, capaz de perfurar cada
vez mais profundamente, que é a imagem e, entre todos os tipos de imagem, a metáfora. O nada poético
dos séculos chamados clássicos é consequência do recurso muito excecional e tímido a este instrumento
maravilhoso». BRETON, André (1935), «Situação Surrealista do Objeto», in BRETON, 2016, p.318.
193
MARTINS, 1995, p.24.
194
LEIRIA, 2018, p.551.
195
Cf. MARTINS, op.cit., p.146.

60
uma maior liberdade de exploração de possibilidades textuais, tão caras ao Surrealismo. Deste
modo, remete-nos Cuadrado para a

destruição da tradicional divisão por géneros e da gramática poética que caracterizavam o saber
literário institucional, introduzindo um híbrido textual genérico (ao que alguns chamariam,
talvez, prosa poética) e uma nova gramática ao que Natália Correia se referiria como cartografia
dos sonhos196.

Procedendo agora a uma ampliação analítica do objeto poético, passando da


observação escópica da estrutura textual para uma visão mais conteudística das temáticas
trabalhadas por Leiria, vemos que a sua predileção por cenários adstritos ao prazer da morte
(que pode ser revisitada em tópicos já aqui trabalhados anteriormente) prende-se com um
conjunto de parafilias que vão desde experiências necrófilas a episódios de canibalismo. No
poema datado de 1951, intitulado «antropofagia»197, é possível antever, a partir do título, os
acontecimentos do poema: a cada momento do dia (manhã, tarde e noite) corresponde a
ingestão de uma parte específica do corpo. Ao almoço come-se uma perna, ao lanche «apenas
os miúdos», como o fígado, ao jantar serão os braços e a outra perna, sendo que guarda o
melhor para si: «mas as orelhas/ ah as orelhas essas ninguém mas apanha/ guardei-as para
mim/ que logo à noite vão-me saber muito bem». Também em «confraternização»198 se
reproduz esta temática: assistimos à confeção e degustação de um cadáver, desde uma «anca
bem tostada» a um «olho/ com champignon/ ao natural». A subtileza da linguagem, que se
reveste de um tom burlesco, encaminha-nos para um processo duplo de provocação e
banalização deste tipo de comportamento desviante, e confronta o leitor com uma naturalidade
perturbadora que emana do discurso do sujeito, acentuando a sensação de desconforto e
aproximando-nos de uma das premissas de Julia Kristeva, ao abordar o conceito de abjeto
associado à ideia de cadáver, esfacelamento somático e perigo:

The corpse, seen without God and outside of science, is the utmost of abjection. It is death
infecting life. Abject. It is something rejected from which one does not part, from which one does
not protect oneself as from an object. Imaginary uncanniness and real threat, it beckons to us
and ends up engulfing us.199

Se nos detivermos numa leitura superficial dos poemas suprarreferidos, podemos


imediatamente classificar a presença desta voracidade antropofágica que pontualmente se

196
CUADRADO, 1998, p.44.
197
LEIRIA, 2018, 133.
198
Ibidem, p.228-229.
199
KRISTEVA, Julia (1982), Powers of Horror: and essay on Abjection, trad. Leon S. Roudiez, New York,
Columbia University Press [1941], p.4.

61
encontra na poesia leiriana como parte do conjunto de parafilias exploradas pelos surrealistas
no momento em que reequacionam aquela que seria a camada consciente do homem e as suas
pulsões inconscientes, tendo por base o método de observação clínica de manifestações de
loucura e histeria, e o levantamento de cenários alucinatórios até então reprimidos pela coibição
da libido. Para explicar o elo de ligação entre canibalismo e desejo, Bataille insere o cadáver
humano no conjunto de objetos sexuais que «são motivo duma contínua alternância de repulsa
e de atração, em consequência das proibições e do levantamento dessas mesmas proibições»200.
O autor explica que a experiência de atração pela devoração de um cadáver não reside no objeto
em si, mas sim no ato de proibição associado ao crime de profanação de um objeto considerado
sagrado, o que cria desde logo um paradoxo entre a influência da atração e a ideia de
transgressão associadas a práticas eróticas. Em A Literatura e o Mal, o autor acrescenta que
«apenas a transgressão da regra tem o irresistível atrativo que falta à felicidade duradoura»201.
Para o Surrealismo, como já vimos, esta questão viria a ser trabalhada e várias vezes recuperada
por artistas no âmbito da literatura, pintura, fotografia, etc., atentando, como equaciona R.
Benayoun, no direito de o indivíduo encarar a transgressão como a livre expressão da
sexualidade:

L’erotisme, selon lui, tend à délivrer l’homme de la tyrannie des interdits, et à restaurer l’activité
de plaisir. L’art, preuve de la définitive soumission de l’homme au principe de plaisir, a pour but
d’être un jeu (…) de nous révéler le contenu de l’inconscient et de surmonter le refoulement (…).
Ce role subversif, que la psychanalyse appelle sans y croire, le surréalisme va le jouer. (…) il va
(…) restituer à l’homme l’état d’innocence, c’est-à-dire de pleine jouissance ludique de son corps
(…).202

Contudo, à medida que completamos uma leitura transversal da obra de Leiria, vemos
que a referência a este padrão de comportamento desviante não está diretamente relacionada
com a expressão erótica de um desvio sexual reprimido, como encontramos, por exemplo, na
decomposição somática que Bellmer faz da sua boneca. O instrumento surrealista que
identificamos no caso de «antropofagia» e «confraternização» prende-se com um dos conceitos
operatórios do Surrealismo, já trabalhado previamente na produção constística leiriana, e que
surge novamente aqui enquanto mecanismo de subversão lírica a rasar o grotesco: o humor
negro. De facto, no enquadramento da tentativa de exorcização de práticas caducas da poesia,
a estratégia humorística assumiu-se enquanto «ação destruidora e transformadora no seio da
linguagem poética»203, no contexto das convenções artístico-culturais enraizadas na sociedade

200
BATAILLE, 1988, p.61.
201
Idem (2017), A Literatura e o Mal, trad. Manuel de Freitas, Lisboa, Letra Livre [1957], p.139.
202
BENAYOUN, 1965, p.37.
203
MARTINS, 1995, p.23.

62
do pós-guerra. Subjacente à leitura dos poemas de Leiria existe um efeito estético-fisiológico
latente, porque o cómico textual, mais do que uma experiência estética, produz um efeito
somático e corporal (o riso) concretizado no ato comunicativo por meio do ridículo que produz.
O objetivo de Leiria ao descrever a degustação de um cadáver como se estivesse, de facto, a ter
uma experiência gastronómica requintada, onde pode inclusivamente saborear «um olho com
champignon ao natural», intende propositadamente a desestabilizar a perceção do leitor, o
qual, por sua vez, através da receção, coopera na eficácia da intenção pré-determinada do
poeta, que passa por criar uma travessia que liga o absurdo situacional ao riso.

Leiria submete igualmente a palavra poética ao poder corrosivo do humor em poemas


onde precisamente joga com o cenário envolvente à ação e desconstrói o formato estereotipado
de vários acontecimentos da vida mundana, completando o retrato de um mundo às avessas. É
o caso do «poema nocturno», onde o sujeito poético descreve aquele que será um dia o seu
enterro, contrariando a conotação negativa e deprimente a que normalmente associamos uma
cerimónia fúnebre: «Quero paranóicos, mentecaptos/ e fêmeas delirantes (…) Quero que soem
bombos, fungagás,/ que hajam gaitas ocas e charangas/ tocadas por poetas socialistas/ vestindo
fatos anarquistas». O único elemento que eventualmente poderá contrastar com a alegria e
vivacidade do momento será «ao longe, envoltos em tristeza/ dois gatos solitários,/ miando a
“Portuguesa”…»204.

No contexto da produção humorística e satírica do Surrealismo português, o discurso


burlesco e desconstrucionista assumiu-se como a revolta superior da mente205, e manifesta-se
através do recurso aos mais diversos motivos macabros, como o canibalismo, o suicídio, a
loucura, o assassinato, a mutilação do corpo, entre outros, que se apresentam como o conjunto
de obsessões da poética de Leiria. Exemplo disto é o poema retirado dos Contos do Gin-Tonic,
«Casamento»206, onde se pode ler:

«Na riqueza e na pobreza, no melhor e no pior, até que a morte vos separe»

Perfeitamente.

Sempre cumpri o que assinei.

Portanto estrangulei-a e fui-me embora.

Para além do humor, outro dos conceitos operatórios do Surrealismo foi a paródia, que
ocupa na lírica leiriana lugar de relevo ao partilhar o mesmo espaço de insubordinação discursiva

204
LEIRIA, 2018, p.198-199.
205
BRETON, 1997, s/p.
206
LEIRIA, 2017, p.106.

63
com o conto. Como tivemos oportunidade de ver no tópico anterior do presente trabalho, a
génese da paródia reside num exercício metaliterário de textualização e intertextualização que
remete sempre para uma referência exterior ao próprio texto, através de manobras de
recuperação do hipotexto que passam pela ridicularização e/ou deformação desse mesmo
enunciado. No caso da obra lírica de Leiria, encontramos um conjunto de poemas que
precisamente transformam a perceção e a leitura que normalmente fazemos de determinados
textos (canónicos ou não), e que permanecem subjacentes nestes poemas através de estratégias
alusivas ou mais ou menos reconhecíveis. É o caso do poema «E a Europa»207 que nos remete
de imediato para o primeiro poema de Mensagem, «O dos Castelos», onde assistimos a uma
descrição do velho continente como uma figura feminina. Se atendermos à simbologia
subjacente, não descurando o distanciamento histórico-temporal que os separa, vemos que
Pessoa remete para uma Europa decadente, de olhar enigmático, que se ancora nas glórias do
passado (as suas origens gregas, as expansões romanas e o império colonial inglês). Lemos em
ambos:

A Europa jaz, posta nos cotovelos: E a Europa

depois de criar o mundo


De Oriente a Ocidente jaz, fitando,
deitou-se, lassa
E toldam-lhe românticos cabelos
e, deitada, repousou.
Olhos gregos, lembrando. E o rosto dela,

vertical, profundo,

fitando o mar distante e fatal,


O cotovelo esquerdo é recuado;
olhou a imensidão.
O direito é em ângulo disposto.
O olhar com que fita a solidão
Aquele diz Itália onde é pousado; é Portugal.

Este diz Inglaterra onde, afastado,

(Mário-Henrique Leiria)
A mão sustenta, em que se apoia o rosto.

Fita, com olhar esfíngico e fatal,

O Ocidente, futuro do passado.

O rosto com que fita é Portugal.

(Fernando Pessoa)

207
LEIRIA, 2018, p.320.

64
A referência ao rosto que fita tristemente o Ocidente, Portugal, remete-nos para este
povo messiânico como o único capaz de fazer renascer o velho continente através da
recuperação da sua potencialidade civilizadora. A crítica à Europa solitária e perdida repete-se
no poema de Leiria, através de uma estratégia alusiva que une ambos os textos e onde o fator
do cómico não se apresenta como condição sine qua non da paródia208; como afirma Cândido
Martins, estamos aqui perante uma «forma velada e indireta de homenagem (ethos positivo ou
respeitoso)»209. Por sua vez, tanto o poema épico-lírico de Pessoa como o poema do surrealista
português possuem um mecanismo parodístico que recupera a epopeia de Camões, Os Lusíadas,
e a exaltação do heroísmo humano no período das expansões portuguesas, bem como a
coragem e bravura presentes na narração de diversos feitos lendários levados a cabo pelos
portugueses, inseridos nas conjunturas que formaram a História de Portugal. O poema de Leiria
assume-se, assim, como espaço privilegiado de um desígnio polifónico onde se estabelece uma
construção en-abyme entre textos historicamente distantes, ao mesmo tempo que procede a
uma atualização do discurso camoniano como forma de criticar a passividade da nação
portuguesa face às adversidades do século XX.

Como antevimos nas notas introdutórias do presente subcapítulo, a tentativa de Leiria


em estabelecer um diálogo com a tradição literária portuguesa está presente em poemas onde
se assiste a uma paródia do Modernismo português, nomeadamente daquele mais vinculado ao
Orpheu, assente num princípio de ultrapassagem210. De facto, o estudo de Fernando J. B.
Martinho, Pessoa e os Surrealistas, assinala os principais diálogos que estes artistas
estabeleceram nomeadamente com Fernando Pessoa – que reconhecem na qualidade de
precursor – como é o caso da temática da diluição da personalidade211. Em alguns dos seus
poemas, Leiria procede a uma recuperação de temáticas tipicamente futuristas que
encontramos, por exemplo, na «Ode Triunfal» de Campos, a qual havia criado, nos primeiros
anos do século XX, um novo imaginário da máquina, da nova civilização mecânica que rejeita a
Natureza, da luz que deixa de ser natural, onde o sujeito poético entoa o presente, passado e
futuro, de modo a atingir uma experiência radical de sentir tudo de todas as maneiras: Campos
apresentou, assim, um super-projeto enquanto super-sujeito, cujo objetivo seria o de esgotar a
experiência humana, porque aí reside o progresso da Humanidade. A «Ode Triunfal» mostra a
aceitação de tudo, temos um indivíduo que erotiza a morte pela máquina, o que foi
tematicamente polémico: apesar de raro, o masoquismo está na essência humana porque dá

208
Linda Hutcheon corrobora a premissa genettiana, ao afirmar que «what is good about this definition is
its omission of the costumary clause about comic or ridiculing effect» (HUTCHEON, 1985, p.21).
209
MARTINS, 1995, p.64.
210
Cf. MARTUSCELLI, 2013, p.100.
211
Cf. MARTINHO, J. B. (1988), Pessoa e os Surrealistas, Lisboa, Hiena Editora, p.10.
65
prova de existência para chegar à confirmação da realidade e à superação de uma dor ontológica
de não-ser – uma espécie de dói, logo sou. Formalmente, apresentando-se como uma ode
maquínica e destrutiva que recicla e reestrutura o Futurismo em que Marinetti fracassara, a
destruição do corpo e a apologia da máquina de que o poema vive apontam para uma avaria e
desarticulação do discurso lógico, que se consuma no final através do aparecimento da
onomatopeia «Hup-lá!», gramaticalmente nula, apesar de ritmicamente forte; as onomatopeias
intensificam-se cada vez mais, sugerindo uma fusão entre o poeta e a própria máquina.

Aproveitando-se desta obsessão pela revolução tecnológica que encontramos nos


versos pessoanos, Leiria adota uma postura, por um lado de concordância, mas por outro um
tanto antagónica: a desilusão face ao mundo moderno que atinge o auge no período de
produção manifestamente surrealista iniciara-se poucos anos antes, em poemas onde o
arquétipo maquínico é usado como forma de expressar uma tristeza e desilusão perante a perda
da verdadeira autenticidade da vida e do esplendor do espírito. Em «apologia do som»212
encontramos uma clara oscilação entre um sentimento de adoração da máquina («Eu/ te saúdo
oh! Som brutal,/ dominador das coisas,/ estranho,/ ideal») e desilusão face ao império que esta
criou na terra e a supremacia sobre todos os aspetos da vida do homem («Em torno de nós
todos/ voltejas./(…) Só/ a tua magia nos domina./ Esfacelas, quebras/ a monotonia/ em ritmo/
que submete e que fascina.»). A sensação de desencanto eleva-se em «bucolismo híper-
moderno»213, onde o sujeito critica diretamente o conformismo e a inação humana perante o
domínio tecnológico («Homens mecânicos, sem alma, autómatos de si mesmos/ esperam em
vez de martelar»), e conclui, frustrado, que «Não há Alma, não há Espírito, não há NADA…».

Contudo, é no «poema para os anos do tio Abel» que identificamos de forma mais clara
o elo parodístico que Leiria estabelece com a ode pessoana, no momento em que, a par da
referência à lâmpada, ao avião supersónico, ao comboio elétrico e ao telégrafo, recupera a
construção onomatopaica do poema de Campos. Vejamos:

(…)

faço sempre um poema sempre um poema

um poema um poema

para comemorar a descoberta do homem por si mesmo

hurrah

212
LEIRIA, 2018, p.487.
213
Ibidem, p.488-489.
66
eia

Zut

Zut

Zut

Para aplaudir com o tractor

Para aplaudir com a hélice

Zum… zum

Zum… zum

Zum… zum

À semelhança também de «Zang Tumb Tumb» de Marinetti, o sujeito leiriano introduz


as interjeições que imitam os sons maquínicos não apenas para demonstrar a passagem do
tempo e o modo como a evolução tecnológica contaminou todos os aspetos do funcionamento
da sociedade, ao ponto de avariar a própria poesia, mas sobretudo com a intenção de
apresentar um contraste face à ação que ele próprio executa enquanto toda a confusão se
desenrola: «eu faço um poema» – aquela que é a verdadeira «descoberta do homem por si
mesmo». A dispersão do signo na página e o espaçamento em branco dentro do próprio verso
encaminha-nos no sentido do pensamento mallarmeano, no momento em que equaciona uma
reflexão sobre a potencialidade do espaço em branco no poema214. Ao privilegiar a forma de
expressão em detrimento do conteúdo, Mallarmé está mais concentrado nas propriedades
sonoras do signo do que nas rigorosamente gráficas; há uma preocupação superior que paira
sobre o próprio texto e não sobre o discurso (substitui-se uma prática discursiva da poesia por
outra que tem unidade no texto) e que afirma a essencialidade da organização gráfica: vemos
neste poema de Leiria que a iconicidade dos textos não se limita ao conteúdo, porque passa a
haver uma predisposição interartística que valoriza as potencialidades tipográficas e dá a ver o
poder de visualização da linguagem verbal (como vimos na reflexão apriorística de Apollinaire).
Encontramos esta conceção de Mallarmé não só no tipo de poemas futuristas nos quais Leiria
se inspira, mas também na própria poesia surrealista, que precisamente dita o aproveitamento
das potencialidades da página em branco sem desenhar um objeto em específico, expressando
uma libertação das palavras. Portanto, passa a haver uma potencialidade significativa da página

214
Cf. MALLARMÉ, Stéphane (1897), «Un coup de dés jamais n’abolira le hasard», Cosmopolis, p.417-427.
67
em branco, que deixa de ser um fundo, suporte ou repositório, e não mais se ignora a sua
proficiência estruturante, uma vez que passa a ter a mesma competência de significação que o
texto, com variadíssimas expressões.

Numa fase ainda precoce da sua vida literária, Leiria viria a escrever um «poema
épico»215 que precisamente se pode formular como um exercício subversivo protossurrealista,
novamente associado ao discurso paródico, uma vez que, à exceção do título e da subdivisão da
sua estrutura formal narrativa, nada no poema nos indica que se trata, de facto, da narração de
feitos imponentes ou bélicos por parte de um herói, pelos menos nos moldes a que vulgarmente
associamos a poesia épica; neste caso, o alvo parodiado é uma convenção literária e não uma
obra ou texto em particular. Para intensificar a oposição face ao conjunto de ações heroicas
típicas da epopeia, o poema (pouco) épico de Leiria narra a desventura de um homem em busca
daquele que seria o «animalão» que estaria a sobressaltar as gentes daquele lugar, o qual,
perante a situação potencialmente ameaçadora em que se encontra, depara-se então com um
importante dilema: «Ou tomar um Porto metido num café/ Ou comprar um bilhete e ir para um
cinema». Contudo, o indivíduo (ironicamente cognominado de «heróico»), dirige-se ao
epicentro da multidão e eis que descobre que a «fera horrenda» era, afinal, um pequeno gato.
Para agravar a disparidade que se estabelece com o tipo de formato característico das epopeias,
o homem acaba por morrer de medo diante do animal, um momento caricato desprovido de
glória que fica gravado no seu epitáfio: «O homem que aqui jaz era valentão/ Tão forte assim,
mais ninguém será/ Mas, coitado, morreu de aflição/ Ao ver um gatinho quase cego já». De
facto, a recuperação e reintegração de formas do passado na Modernidade prende-se, segundo
Linda Hutcheon, com uma das funcionalidades primárias da paródia: «Parody is a complex
genre, in terms of both its form and its ethos. It is one of the ways in which modern artists have
managed to come to terms with the weight of the past»216. Apesar de o poema estabelecer um
diálogo com o cânone literário tradicional através da crítica implícita e ridicularização da epopeia
enquanto género, o mesmo continua a funcionar enquanto produção autónoma e dotada de
certa individualidade, uma vez que «admittedly, as a form of criticism, parody has the advantage
of being both a re-creation and a creation, making criticism into a kind of active exploration of
form»217.

Em «rifoneiro do baú»218 encontramos a mesma construção mordaz e cómica que exige


do leitor uma capacidade de reconhecimento e recuperação, desta vez não de uma obra ou

215
Ibidem, p.450-452.
216
HUTCHEON, 1985, p.29.
217
Ibidem, p.51.
218
LEIRIA, 2018, p.289-290.
68
convenção literária em específico, mas de um conjunto de provérbios e ditos populares
portugueses que compõem na íntegra a estrutura do poema. Enunciados como «Chapéu com
boné se paga» (Amor com amor se paga), «Quem espanta, seu cu levanta» (Quem canta, seus
males espanta) e «Ao pepino e ao Cartaxo põe-se logo a mão por baixo» (Ao menino e ao
borracho põe Deus a mão por baixo) evidenciam um exercício de subversão do conteúdo e da
mensagem implícitos em cada um deles, despindo-os da moral a que geralmente estão
associados no contexto da tradição oral portuguesa. É fundamental da parte do leitor uma
competência cultural de reconstrução de elementos extratextuais que entram no exercício de
descodificação da linguagem, e que nos chamam a atenção para as premissas preconizadas pela
Estética da Receção, nomeadamente «o papel do leitor na receção do discurso paródico e para
os significados da concretização ou negação do seu horizonte de expectativas»219. Contudo, este
último poema desemboca numa problemática que se prende com o facto de Leiria recorrer à
estratégia subversiva da paródia no sentido intertextual para, no fundo, satirizar aquilo que o
provérbio representa culturalmente (um tipo de sabedoria popular). Isto significa que, apesar
de se tratarem de conceitos operatórios devidamente distantes220, é através do mecanismo
parodístico que depreendemos o sentido satírico implícito no poema, ou seja, após a leitura e a
interpretação do mesmo: no fundo, temos uma tentativa de ridicularização de comportamentos
humanos, que reporta a elementos de cariz social, moral e não literário que extravasam o
próprio texto. A intencionalidade prática de Leiria prende-se com a 1) estigmatização e
desconstrução de um conjunto de códigos e dogmas baseados no senso comum, na sabedoria
popular e na transmissão oral, ao mesmo tempo que procede a uma 2) desautomatização da
violência que a linguagem incute na sociedade, 3) critica um leque de enunciados
hipercodificados, 4) e satiriza a cristalização e imutabilidade de ditados partilhados por uma
memória coletiva e cultural, subvertendo as mensagens subliminares. Ainda assim, é
interessante ver que este exercício revolucionário e regenerador de expressões feitas não chega
nunca a eliminar definitivamente os traços que compõem as versões originais, uma vez que
continuam presentes os contornos primitivos que as permitem identificar, como a construção
frásica e a rima; segundo Cândido Martins, «seja qual for o tipo de renovação, ela nunca é tão

219
MARTINS, 1995, p.55.
220
Linda Hutcheon chama a atenção para o facto de a paródia ser um exercício intramural, que ocorre
dentro da lógica de apropriação intertextual, ao passo que a sátira é um fenómeno extramural, que joga
com motivos sociais, culturais, morais, etc. A sobreposição de ambos os conceitos gera um conjunto de
reflexões trabalhadas pela autora, em torno daquilo que seria a sátira paródica e a paródia satírica. Cf.
HUTCHEON, 1985, p.62.
69
total que impeça de reconhecer o cliché primitivo, reconstituí-lo e opô-lo à variante oferecida
pelo texto»221.

O mesmo teórico chama a atenção para o «roubo» total ou parcial de títulos de


produções bem conhecidas e a sua reinserção num novo contexto poético: à semelhança do
conto «O Prazer do Texto»222, que imediatamente nos remete para a obra barthesiana, também
na lírica leiriana ocorre este processo de apropriação paratextual, como é o caso de «eu/
guardador de cisnes»223 e «ode triunfal»224, construções que nos remetem para os poemas de
Caeiro e Álvaro de Campos, respetivamente, ou ainda o «d. quixote»225 de Cervantes. Este
exercício afigura-se como uma espécie de colagem:

O título aparece-nos provocatoriamente descontextualizado, chamando a atenção para a sua


inutilidade e, ao mesmo tempo, alertando para a necessidade de um trabalho de transformação
ou metamorfose da escrita poética em geral, a começar pelo discurso intitulante (…),
desmantelando parodicamente as funções que lhe eram conferidas pela tradição arquitextual 226.

O exercício de uma crítica satírica, cáustica e impiedosa é outro dos traços dominantes
do estilo de escrita de Leiria: em «diarreia após ler três horas de Dante e o seu Inferno»227, o
sujeito poético dirige um julgamento cortante ao estilo de escrita macarrónico e sibilino e à
dificuldade de leitura que caracterizam a Divina Comédia («Olha, velho, que canseira enorme,/
tenebrosa,/ ler-te e querer tentar compreender-te,/ que massada informe/ é saber que pior que
ler/ o que escreveste/ só mesmo ficar sedento e ter que beber/ água ignóbil, asquerosa»). Leiria
estende ainda o tom cómico-burlesco e a intenção desconstrutiva e reprovadora a um outro
poeta, também ele canónico, mas português: «Mas olha, Dante, consola/ a tristeza das tuas
solidões./ Há um quase tão chato como tu/ e que, como tu, muito nos amola…/ Dizem prá í que
é chamado de Camões»228.

O discurso de cariz político do poeta, fruto da adoção de uma posição negacionista face
à própria realidade histórica, que anteriormente observámos nos seus textos ensaísticos,
contaminou também a produção poética, fazendo desta uma arma ao serviço da liberdade de
pensamento. A imagética política abrange tanto poemas que vão desde a criação de nações

221
Ibidem, p.126.
222
LEIRIA, 2017, p.335-336.
223
Idem, 2018, p.109.
224
Ibidem, p.460-464.
225
Ibidem, p.193-194.
226
MARTINS, 1995, p.127-128.
227
LEIRIA, op.cit., p.283-286.
228
Ibidem.
70
alternativas e absurdas, mas livres (como Maya Gol229, a cidade da liberdade moral, individual,
etc., habitada por autómatos monstruosos e hipotenusas), como outros onde a crítica política é
mais direta e mordaz. Em «educação cívica»230, o poeta parte de uma construção anafórica para
caracterizar o clima de terror que se vivia em tempo de ditadura, procedendo a uma
enumeração das entidades de maior poder repressivo que impunham a ordem nos
comportamentos sociais dos indivíduos: o polícia, o ministro, o coronel, a nação, o chicote e a
prudência. Na segunda e última estrofe, conclui sobre a impossibilidade de o homem manifestar
a sua autenticidade perante um clima hostil de repressão, onde as liberdades e os direitos se
restringiam às normas de boa conduta moral: «como se pode saber/ perante esta obediência/
obedecer e ser homem/ em perfeita consciência?». O paralelismo repetitivo dos versos cria
novamente uma sensação de circularidade poemática que se associa ao tipo de relato vivencial
do sujeito, enfatizando a ideia de inação e limitação de pensamento/expressão. Este paralelismo
repete-se em «uma das liberdades»231, ainda que estejamos agora perante uma ação mais
dinâmica: o poema narra a fuga de um coelho que corre «com o desespero entre as pernas»,
enquanto tenta escapar do cão e do caçador. A simbologia que subjaz ao discurso alegórico do
poema permite-nos aproximar o coelho da personificação do poeta, o qual é perseguido pela
sombra da censura e do regime político, representados nas outras duas figuras. Enquanto a ação
se desenrola, a erva, uma espécie de personagem coral que personifica o povo inerte e
conformista, limita-se a crescer, depois passa, foge, espera e finalmente sorri no momento em
que o caçador comete a infelicidade de disparar sobre si mesmo, figurando a queda do sistema
ditatorial. Nesse momento, o coelho/poeta emancipa-se da conjetura política, passando a
movimentar-se «com a liberdade entre as pernas».

O recurso à prosopopeia como forma de mascarar a crítica política e social estende-se a


outros poemas, como é o caso da tríade das canções de embalar: na primeira232, temos a alegoria
do periquito preso na gaiola, tal como o indivíduo/artista, desprovido de liberdade, que aguarda
o momento certo para iniciar a revolução («cuidado com o periquito/ Está por aí a acontecer/
um pulo bem bonito…»); na segunda canção233, passamos para o cão, «esse coitado/ que, por
medo,/ se transformou num lacaio/ vil e amestrado», ou seja, o polícia que aplica e assegura o
cumprimento das leis do regime, eliminando aqueles que atentarem contra as instituições do

229
«MAYA GOL, a cidade errante», poema de Climas Ortopédicos (1940). In LEIRIA, 2018, p.29-30.
230
Ibidem, p.312.
231
Ibidem, p.313.
232
«1ª canção de embalar», ibidem, p.296-297.
233
«2ª canção de embalar», ibidem, p.298-299.
71
Estado; por fim, na última234, temos o gato, sempre atento e matreiro, que personificaria um
delator («Lá vai ele/ ouvindo a distância e o oculto som/ que só quem ouve/ é o gato»).

Como vimos até aqui, a poesia de Mário-Henrique Leiria assenta, em grande medida,
num trabalho de subversão das formas discursivas e expansão do conceito de real, no combate
às generalizações vazias da experiência humana através da dessacralização de instituições e
símbolos sociais, e na defesa da emancipação de convicções e desejos individuais, perante as
adversidades que o meio impinge. Através da imagética perturbadora e absurda, de corpos
desfigurados ou objetos inanimados que falam, a intencionalidade do poeta surrealista pode
resumir-se, segundo Cecil Day Lewis, da seguinte forma:

He is trying, with its help, to find his way about, emotionally and intelectually, in the confusion
of the modern world; and he is trying to make some impact upon a highly sophisticated reader.
Surrealist poetry is evidently the most violent form of shock treatment aimed at this latter end.
(...) we find a tendency towards the illogical, away from the old cause-and-effect sequence of
images within the poem.235

Ao investir nas potencialidades ad infinitum da imaginação e ao testar a elasticidade da


própria linguagem e o seu «inexhaustible reservoir»236, a poesia leiriana denuncia a crise do
espírito preconizada por Breton, e acima de tudo faz transparecer uma experiência antiliterária,
intensa e heteróclita da sexualidade, da violência, do humor, da repressão e da expressão de um
desejo de liberdade que não cessa nunca e que atravessa toda a sua existência. Deste modo,
vemos que a poesia se afigura como forma privilegiada de dar a conhecer a «casa de vidro»237
do poeta, uma espécie de vaso comunicante entre a transparência erótica e espiritual
providenciada pelo sonho e o desejo, e o meio de expressão poética e verbal que deixa esse
momento «gravado a diamante»238. Contudo, em poemas como «Independência» e «Nada de
Poesia», de Leiria, vemos que a poesia se apresenta também enquanto espaço de contestação
ao nível do próprio processo de criação, mas sobretudo como exercício metapoético, reflexo
direto da engrenagem na qual assenta o discurso plurifacetado do poeta, bem como da
consciencialização que desde cedo apresenta relativamente ao seu papel de artista (como vimos
nos seus textos-manifestos): «Desejo/ divagar/ por tudo o que me atrai./ Não quero enjaular/
ondas de beleza/ em métodos/ arcaicos,/ prosaicos./ Para quê/ arrumar curvas/ vagabundas/
no soneto/ ou acorrentá-las/ à quadra/ ou ao terceto?»239. A criação poética enquanto

234
«3ª canção de embalar», ibidem, p.298-299.
235
LEWIS, 1947, p.114.
236
BALAKIAN, 1970, p.167.
237
BRETON, 1971, p.15.
238
Ibidem.
239
«Independência», in MARTUSCELLI, 2013, p.205.
72
manifestação cósmica e prova da hipertrofia do poeta no momento em que é destituído da
função autoral consciente surge ainda em «se é um poema, não é um poema»: «Todos os
conhecimentos que eu tenho/ não são meus. Se são meus, não os tenho/ se os tenho, não são
meus. (…) Eu sei que existo dentro deste poema/ e, no entanto, eu não sei a existência deste
poema»240.

Em verdade, estamos gradualmente a aproximar-nos de um tipo de exercício poético-


pictórico bastante prolífico no trabalho dos surrealistas, que se destaca por uma visualidade e
uma plasticidade poética excecionais: atentemos, daqui em diante, numa práxis intermedial na
qual o artista cruza a poesia com a imagem de suporte material – desenho, pintura, colagem e
fotografia.

240
«se é um poema, não é um poema», in LEIRIA, 2018, p.102.
73
3. Trajetórias pluridisciplinares

Esquece e cola depressa: é o antro das atrações. Protege,


encoraja, justifica. Está dito. A admiração não tem lugar
aqui, há as afinidades, os sextos sentidos, as
complementaridades, os paralelos. Há a mulher, a loucura,
a homossexualidade, a imaginação; a política e a poesia
como perversões que mascaram o desejo de comunhão.

Joëlle Ghazarian

3.1. Materialidades

Como vimos, o signo verbal apresenta-se geralmente como o elemento definidor da


poesia enquanto arte da linguagem, mas não é exclusivo: há uma série de elementos não-
linguísticos, suprassegmentais, que extravasam a linguagem puramente verbal dos quais a
poesia se apropria de forma muito particular e que o uso quotidiano não contempla. Ainda que
as coordenadas visuais da poesia, em contexto português, tenham apenas atingido a plenitude
da sua emancipação e autonomia com o radicalismo de pesquisa da Poesia Experimental na
década de 60 – sem descurar as experiências barrocas do século XVII241 ou o caso modernista do
Almada Negreiros242 –, o facto é que a revolução preconizada por Apollinaire e Mallarmé ao nível
do exercício de uma nova gramática experimental, que abandona a lógica analítico-discursiva da
tradição ocidental, havia já sido pontapé de saída para as experiências modernistas e
vanguardistas; destas se destaca nomeadamente o Surrealismo, com o qual partilha os mesmos
«mecanismos de desestabilização linguística»243. De facto, no que concerne às neovanguardas
como a Poesia Experimental, assistimos a um período onde há uma vontade de mudança e
experimentação que reata um entendimento da literatura e das artes do ponto de vista da
experimentação metadiscursiva, e retoma os movimentos das primeiras vanguardas do século
XX; encontramos, assim, um conjunto de autores com uma dimensão teórica muito forte, que
repensam a arte num momento em que é importante a teoria da informação, da semiótica, da

241
Ana Hatherly, em A Experiência do Prodígio: bases teóricas e antologia de textos-visuais portuguesas
dos séculos XVII e XVIII, reúne alguns textos visuais da época, entre os quais encontramos «Labirintos de
Letras», «Labirintos Cúbicos», «Labirintos de versos», «Acrósticos», «Anagramas e Cronogramas», entre
outros.
242
Vide SANTOS, Mariana Pinto dos (2017), José de Almada Negreiros: uma maneira de ser moderno,
Lisboa, Museu Calouste Gulbenkian/Documenta.
243
PRETO, António (2006), «Palavra que se fez coisa: poesia experimental portuguesa», Arte Teoria,
Lisboa, nº8, p.22.
74
linguística, e para quem acresce a necessidade de dominar uma metalinguagem rigorosa. Para
todos os efeitos, segundo António Preto

a focagem sobre a materialidade substancial dos significantes, processo que, de modo geral, se
apresenta como um dos vetores fundamentais dos programas das vanguardas poéticas de todo
o século XX, determina a recusa do modelo aristotélico – transcendental e expressivo: lógico-
discursivo (…).244

Nas palavras de Ernesto M. de Melo e Castro, não havendo em Portugal um conjunto de


poetas concretos formalmente estruturado, encontramos em movimentos como o Surrealismo
alguns poetas que investiram, a certa altura, no lado construtivo da poesia (que edifica um
trabalho de leitura de teor preponderantemente visual), bem como no «alargamento da sua
pesquisa morfosemântica»245 através da criação de poemas híbridos com uma orientação
manifestamente gráfica e que remetem ao mesmo tempo para a exploração da organização
iconográfica da palavra na página em branco – seria o caso da intervenção plástica nos poemas-
objeto surrealistas, entre os quais encontramos a colagem. Vemos, assim, que a poesia vive
também da configuração plástica que as palavras adquirem, de forma a equilibrar um mesmo
nível de protagonismo entre literatura e artes visuais no processo de leitura. Apesar de somente
nos anos 60 se ter consolidado, de facto, a proposta de uma materialidade poética muito
específica e revolucionária (na mesma linha de uma concetualização sistemática e performativa
Dada que os surrealistas haviam interpretado de maneira totalmente oposta), a mesma grafia
visual já explorada em Portugal nos anos 40 e 50 visava, por sua vez, uma instrumentalização da
linguagem «em função de algo que a transcende, mas que só através dela é realizável»246:
linguagem ao serviço de uma investigação simbólica das imagens, liberta da funcionalidade
retórica e nuclear das teorias da representação mimética, e que viria a dar posteriormente lugar
a novas travessias estéticas. Para André Breton,

il apparaît de plus en plus que l’élément générateur par excellence de ce monde qu‘à la place de
l’ancien nous entendons faire nôtre n’est autre chose que ce que les poètes appellent l’image.
(…) Les modes d’expression littéraires les mieux choisis, toujours plus ou moins conventionnels,
imposent à l’esprit une discipline à laquelle je suis convaineu qu’il se prête mal. Seule l’image, en
ce qu’elle a d’imprévu et de soudain, me donne la mesure de la libération possible et cette

244
Ibidem, p.21.
245
CASTRO, Ernesto M. (1987), As vanguardas na poesia portuguesa do século XX, Lisboa, Biblioteca Breve,
p.80.
246
PRETO, 2006, p.22.
75
libération est si complete qu’elle m’effraye. C’est par la force des images que, par la suite des
temps, pourraient bien s’accomplir les vraies révolutions.247

De facto, um dos maiores triunfos do trabalho dos surrealistas foi precisamente a


abertura de possibilidades a um novo olhar sobre o funcionamento da linguagem, como explica
Breton na conferência de 1953, «Do Surrealismo em suas obras vivas»: «Para o Surrealismo,
tudo estava em convencer-se de que se lançara mão da «matéria-prima» (no sentido alquimista)
da linguagem: sabia-se, a partir daí, onde ir buscá-la (…)»248. Como vimos no capítulo anterior, o
tópico da coisificação do poema no (a)caso do Surrealismo remete para uma apropriação das
ideias de Mallarmé ao concetualizar uma renovação tipográfica das palavras e uma nova forma
de lirismo visual, bases metodológicas que viriam a unir surrealistas e experimentalistas. Para
todos os efeitos, o diálogo que Leiria estabelece entre a componente visual e puramente verbal
sofre oscilações, nomeadamente quando nos aproximamos de produções onde há uma variação
na relação entre palavras e imagens. W.J.T. Mitchell, no seu livro Picture Theory: essays on verbal
and visual representation (1994), faz uma incursão pela complexidade dos paradoxos entre estes
dois meios de representação, sendo que parte de uma lógica tripartida que se distribui em ações
de rutura («image/texto»), síntese («imagetext») e relação («image-text») para explicar o tipo
de fenómenos que integram aquilo que o autor denomina de «pictorial turn»249. De facto, na
obra de Leiria a expressão visual (e verbal) sofre mutações consoante a preferência dada a
elementos visuais e/ou escritos e o tipo de interação que ocorre entre eles, seja ela de oposição,
composição e interdependência ou complementaridade, como acontece nos casos que veremos
em seguida.

Os poemas de Leiria concretizam o jogo da visualidade – da «force des images» – que


mora algures entre a palavra e o intervalo da página: em «Escadaria»250, o sujeito poético
encontra-se a subir os degraus que o conduzirão a algum tipo de ascensão na vida, enquanto
reflete sobre a degradação física daqueles degraus «angulosos, viscosos, quebrados», o que
desde logo cria uma interação entre vida e obra. Graficamente, o exercício visual que o poema
desenha prende-se com uma travessia sinuosa feita de várias curvas semelhante à configuração
de uma escada, cujos degraus mudam aleatoriamente de direção no momento em que o sujeito
poético para e descansa nos seus vários patamares. Ao observarmos a transformação do poema
enquanto metáfora do percurso de vida do sujeito, vemos que o próprio disfarça

247
BRETON, André (1925), «Le Maître de L’image», in Les Nouvelles littéraires, artistiques et scientifiques:
hebdomadaire d’information, de critique et de bibliographie, Paris, 9 de maio, p.5. Disponível em:
https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k6450316f/f5.item.r=il%20appara%C3%AEt
248
Idem, 2016, p.353.
249
MITCHELL, W.J.T., 1994, p.89.
250
LEIRIA, 2018, p.503.
76
simultaneamente uma certa ironia que reside na contraposição entre a direção graficamente
descendente do texto (que reflete o caminho da desilusão e a derrota) com a construção
particular do penúltimo verso, onde o verbo «subir» se liberta da frase e desloca em sentido
ascendente. A espacialização gráfica dos versos sustenta, no fundo, um processo de leitura que
parte da construção icónica; por outro lado, ecfrasticamente a imagem é fruto de uma
articulação descritiva e narrativa, ou seja, esta decorre da relação hermenêutica que estabelece
com o signo verbal.

Num poema de 1948, intitulado «No centro/ da cidade incendiada»251, assistimos à


destruição de uma cidade consumida pelo fogo, sem registo de sobreviventes. O sujeito poético
concentra a atenção na descrição da figura feminina alvo do seu desejo, nomeadamente no
desmembramento físico da mesma, cujas partes do corpo adquirem vida própria numa espécie
de espetáculo dos horrores: «Os teus seios/ andam perdidos pelas sombras/ da cidade
incendiada/ fazendo AMOR/ com todas as ruínas». De facto, este tratamento da figura da
mulher da parte do sujeito poético participa no tipo de relação instável que os surrealistas desde
cedo estabeleceram com a mesma, tomada como objeto de desejo enquanto é dominada pelas
pulsões sádicas e comportamentos perversos do artista. Encontramos neste poema um tipo de
coerência intersemiótica que reside no vínculo criado entre a linguagem verbal e a expressão
visual, no momento em que o sujeito se refere ao «grande letreiro» da cidade imediatamente
antes de o representar visualmente através do desenho de um retângulo com a palavra
«DESEJO»: atentamos aqui, mais uma vez, na superioridade que o poeta surrealista concede à
emancipação, restabelecimento e submissão a uma atividade de prazer252 como principal fonte
da vida humana, representada no facto de o mesmo sinal se manter erguido perante a
destruição da cidade. Através da recriação do anúncio publicitário, captamos a aspiração icónica
do verso, onde a construção semântica corresponde à sua disposição gráfica no texto, ou seja,
há um isomorfismo, uma equivalência de formas do sentido e da expressão ao nível da escrita e
da espacialidade. O poema procede a uma anulação dicotómica entre prazer e violência, no
momento em que o sujeito afirma: «a tua bôca/ carnívora e/ sangrenta/ grita o júbilo/ do
COLOSSAL ASSASSINATO»; esta elimina qualquer inibição e pudor que geralmente advêm da
imagem de morte, sobretudo porque nos encaminha para uma ideia de despossessão subjetiva
e individual através da violação do corpo.

Encaminhamo-nos para aquela que é talvez a obra visual mais conhecida de Leiria, e que
problematiza de forma mais sistemática determinadas considerações que podem ser feitas ao

251
Ibidem, p.69.
252
Cf. BENAYOUN, 1965, p.37.
77
nível de diálogos intermediais: Imagem devolvida: poema-mito, obra de 1950, que permanecera
protegida da censura – «edição-única-original-toma-lá-guarda» 253 – e inédita até início dos anos
70, aquando do regresso do poeta a Portugal. A relevância e a fama que arrecadou com a
publicação em 1974, passadas mais de duas décadas, provam que o movimento se inscreve
naquilo que Tania Martuscelli apelida de linhagem254, ou seja, uma lógica adversa a qualquer
tipo de balizamento temporal e cronológico que restrinja o fenómeno surrealista enquanto
experiência, sendo que esta, na verdade, se atualiza e renova até ao fim dos tempos255. Imagem
devolvida trata-se de um exercício de absoluto automatismo, sob a alçada do que O’Neill
apelidaria de abandono vigiado em 1960, que explora o poder evocativo do verso e da imagem
sem se desprender dos mecanismos que o inserem no espectro subversivo em análise. Ao
fazermos uma leitura superficial deste «poema-mito», e deixando aqui de parte a intervenção
dos emblemáticos desenhos de Cruzeiro Seixas, o elemento que mais se destaca ao olhar do
leitor trata-se do claro aproveitamento tipográfico dos versos na página, bem como um conjunto
de jogos de linguagem que vão desde divertimentos morfológicos («CADIZ a escada que cai/ ou
talvez DIZER CÁ») a pontuais associações entre palavras e figuras geométricas. Relativamente a
este último exercício em particular, como explica Carlos Felipe Moisés, o diálogo que Leiria cria
entre as palavras e estas figuras reside numa relação de paridade e equivalência e não de síntese,
uma vez que se apresentam enquanto «dados estranhos, aderências de fora para dentro»256,
que «não chegam a ser exigidos pelo texto»257: ou seja, os intervenientes gráficos não participam
do processo de significação textual, mas de uma experiência recreativa da linguagem.

A estrutura de Imagem Devolvida desenvolve-se ao longo daquilo que o poeta apelida


de «duas experiências» e uma «síntese» inseridas dentro dos trâmites surrealistas, entre os
quais encontramos a desarticulação linguística, fragmentação de imagens, a expressão de uma
sexualidade reprimida, automatismo de escrita e caos enumerativo que dão origem ao
florescimento de uma suprarrealidade hostil e ameaçadora, agravada pela impossibilidade de

253
Carta a Mário Cesariny, de 29/10/71, in MARINHO, 1987, p.673.
254
Cf. MARTUSCELLI, Tania (2013), Mário-Henrique Leiria inédito e a Linhagem do Surrealismo em
Portugal, Lisboa, Colibri.
255
Dentro da lógica de linhagem, a autora explica que o artista não deixa nunca de estabelecer, à
semelhança dos surrealistas congéneres, um diálogo com as raízes literárias portuguesas, a partir de um
exercício de contaminação (ou absorção): lírica trovadoresca, Simbolismo e Decadentismo, Orpheu,
Saudosismo e até mesmo o Neorrealismo destacaram-se como «contribuidores genéticos» do movimento
surrealista em contexto nacional. Ibidem, p.192.
256
MOISÉS, Carlos Felipe (1975), «Recensão crítica a ‘Imagem devolvida’, de Mário Henrique Leiria»,
Colóquio/Letras, nº24, março, p.63.
257
Ibidem.
78
assegurar uma sequencialidade poética face ao deslizamento de imagens, palavras, letras,
versos e estrofes que se soltam livremente na página.

Por sua vez, o desenho desenvolve-se no repertório leiriano enquanto materialização de


uma linguagem visual totalmente fascinante, dominada por images introuvables, como
reivindicava Breton, ou seja, «provenientes da associação imprevista das formas e do encontro
de vários motivos de inspiração (…)»258; como resultado, temos então figuras híbridas, com
múltiplas ramificações (fig.1), vários olhos, aspeto bestial e zoomórfico, algumas a meio caminho
entre o humano e o extraterrestre: figuras andróginas onde há uma destituição de formas e uma
supressão da linearidade distintiva entre corpos e géneros. Para a contracapa do catálogo da 1ª
Exposição dos Surrealistas em 1949, Leiria produziu um conjunto de poemas visuais disformes –
aos quais atribui polemicamente a designação de Poemas – que cruzam as práticas do desenho
e da escrita, os quais se traduzem num jogo de alternância entre coordenadas verbais e visuais
que partilham o mesmo espaço no papel; destacam-se dois desenhos diferentes onde insere os
mesmos versos: «Quando o tempo das uvas é o tempo das uvas/ todas as serpentes
cantam…»259. Como explica María Jesús Ávila, os desenhos de Leiria funcionam por associação,
ou seja, advêm da coexistência de desenhos de contornos simples e desprovidos de
referencialidade, com textos pré-existentes, reaproveitados de jogos automáticos: «a imagem
existe e o texto é-lhe acoplado como poema que mantém a sua ordenação linear tradicional ou
adquire espacialidade»260.

Uma das figuras reproduzidas neste catálogo atravessará várias produções do poeta até
meados dos anos 70, nomeadamente em «Almoço nas ervas» (fig.2), «Marechal de campo»
(fig.3), «Manobras de Outono» (fig.4), ou «Dois generais dando à costa» (fig.5), de 1971:
personagem bizarra de contornos híbridos entre o humano e o alienígena, reproduzida nas mais
diversas posições e situações, por vezes até coletivamente, enquanto retrato do quotidiano de
uma população totalmente exótica e antropomórfica, habitantes por excelência dos seus
emblemáticos contos. Vemos, assim, que a gestualidade da mão, tanto no caso do desenho
automático como da escrita, auxilia na procura da identidade cósmica e espiritual configurada
pelos surrealistas, na medida em que «o ato de desenhar ou de pintar é não só um modo de ver

258
ALEXANDRIAN, Sarane (1973), O Surrealismo, trad. Adelaide Penha e Costa, Lisboa, Verbo, p.55.
259
LEIRIA, 2018, p.103-104. É de salientar que o poeta frequentemente reescrevia e revisitava vários
materiais antigos da sua autoria, reproduzindo-os em novos contextos e projetos editoriais, pelo que
múltiplas vezes é possível não só encontrar títulos ou versos de poemas diversos que se repetem, como
formas, imagens e personagens que atravessam vários poemas e desenhos e que não reivindicam uma
unidade lógica.
260
ÁVILA/CUADRADO, 2001, p.89.
79
mas também um modo de encontrar, porque o que vemos vem ao nosso encontro sob a forma
de um gesto»261.

Como vimos anteriormente, o repertório artístico de Mário-Henrique Leiria bebe da


influência de várias escolas e movimentos, num exercício de articulação onde por vezes
identificamos laivos de contaminação entre as várias vertentes e estilos do seu trabalho visual.
Através da fragmentação de uma universal conceção de arte que assenta em compromissos
miméticos, Leiria serve-se do desenho e da pintura enquanto experiências dotadas de um poder
de subversão das formas humanas: no caso de um desenho a grafite e tinta-da-China não datado
(fig.6) do artista, assistimos a um processo de regressão e mutação desses mesmos traços ao
longo de quatro fases, onde passamos da representação de um corpo humano facilmente
identificável pelos seus contornos anatómicos e realistas, para uma figura abstrata, indefinida e
medonha, totalmente desfamiliarizada do ponto de onde partiu e que carece de pormenores
que permitam uma eficaz identificação das formas. No âmbito da pintura, igualmente em
«Elipoforme Lupúlico» (1948) (fig.7) vemos uma figura bizarra em tons escuros de contornos e
gestos animalescos e disformes, cuja reprodução se aproxima de uma pintura cubista: um
trabalho de geometrização das formas humanas adverso a princípios de verosimilhança, que
carece de perspetiva e se aproxima de uma espécie de pintura escultórica onde se multiplicam
os ângulos de visão. Contudo, as principais tónicas da pintura cubista assentam não só na
ausência de perspetiva, anamorfose, mas sobretudo na carência de profundidade e dificuldade
de distinção de planos, premissa esta da qual Leiria se aparta: conseguimos de facto visualizar
nesta pintura um contraste entre o plano figurativo da personagem e o fundo na qual a mesma
se insere, remetendo-nos para uma miscigenação de práticas artísticas e ausência de fidelidade
a uma escola, premissas que sustentam, no fundo, toda a sua produção. A distorção de escala e
a instabilidade expressiva e estilística leirianas dificultam, em determinadas situações, o
reconhecimento de uma identidade enquanto artista, ou seja, como explica Tania Martuscelli,
«pode-se inferir que Leiria mescla sua conceção da arte com teorias já existentes, de modo a
registrar sua obra no panorama internacional, além de afirmar sua posição de artista (moderno,
vanguardista, português)»262.

Foi no auge do Surrealismo português, no fim dos anos 40 e início dos anos 50, que a
incursão na prática objetual263, fecunda no seio do movimento francês, verificou uma grande

261
GUIMARÃES, Fernando (2003), Artes Plásticas e Literatura: do Romantismo ao Surrealismo, Porto,
Campo das Letras, p.23.
262
MARTUSCELLI, 2013, p.99.
263
ÁVILA, María Jesús (2011), «Encontrados perdidos: objetos surrealistas destruídos», Revista de História
da Arte, nº8, p.286.
80
adesão e prolificidade: como tivemos possibilidade de ver, o movimento português dividiu-se
em duas linhas de ação distintas mas complementares, ambas constituídas por artistas que
concederam especial protagonismo à produção verbal e outros que enveredaram de forma mais
assídua pela expressão de suporte material. Portanto, à semelhança de escritores como Oom ou
José Augusto-França, Mário-Henrique Leiria seguiu, a determinada altura, esta linha objetual,
de onde se destacam um conjunto de trabalhos nos quais assistimos a uma travessia feita de
deslocações, acasos e encontros inesperados por meio de um conceito operatório do
Surrealismo – a assemblage –, onde diferentes objetos do quotidiano se libertam do contexto
fixo onde atuam e adquirem uma dimensão metafórica, onírica e subversiva totalmente inédita,
assente numa instabilidade e perturbação do nosso universo de referências. A interpretação e
a perceção deste tipo de composições objetuais faz um apelo à sensibilidade do indivíduo, como
esclarece Breton no prefácio de Le Surréalisme et la Peinture (1928):

L’erreur commise fut de penser que le modèle ne pouvait être pris que dans le monde extérieur,
ou même seulement qu’il y pouvait être pris. Certes la sensibilité humaine peut conférer à l’objet
d’apparence la plus vulgaire une distinction tout à fait imprévue (…) 264

No fundo, a produção tridimensional surrealista reúne um conjunto de procedimentos


intermediais onde a deslocação e a disrupção entre estética e utilidade permite ao espectador
ampliar os limites do entendimento dos objetos do mundo e expandir os seus sentidos,
estabelecendo cadeias de associações contaminantes de sentido»265: significa isto que o efeito
de dépaysement subjacente a este tipo de exercício, mais do que uma a deslocação e
transposição de formas descoladas do contexto de origem num universo totalmente estranho,
potencia a criação de vínculos eróticos entre o homem e a nova objetualidade do século XX266.
A reflexão implícita a este tipo de produção em artistas como Leiria parte de uma atitude
manifestamente satírica, subversiva e de reprovação daquela que geralmente tomamos como a
funcionalidade-padrão dos objetos do quotidiano e do posicionamento que assumimos perante
os mesmos, sobretudo porque pretende «contestar a utilidade dos objetos domésticos e o valor
dos objetos de arte, opondo-lhes produtos da fantasia»267.

De facto, a tónica que atravessa os objetos leirianos não constitui novidade no seio das
preocupações estéticas dos surrealistas, inclusivamente porque nos leva a embarcar numa
espécie de simulacro das fantasias do homem: falamos aqui em particular do manequim,
símbolo mecânico da sexualidade e da objetualização do corpo, aluidor da realidade dos

264
BRETON, André (1965), Le Surréalisme et la Peinture, Paris, Gallimard [1928], p.4.
265
ÁVILA, 2011, p.287.
266
Cf. Ibidem, p.288.
267
ALEXANDRIAN, 1973, p.145.
81
contornos humanos, cujos antecedentes remetem para os quadros de De Chirico, de onde se
destaca o seu famoso Heitor e Andrómaca» (1917). A potencialidade polimórfica, fetichista e
híbrida deste objeto dotado de perturbadora passividade foi dissecada pelos surrealistas, por
meio de um conjunto de «operações de desmembramento, fragmentação, erotização,
profanação ou exaltação»268 que lhe conferem propriedades perturbadoras, monstruosas e
disformes, a meio caminho entre a estátua e o autómato. A manipulação iconográfica e a
transformação do manequim em objeto poético, que chega em certos casos a ocorrer através
da simbiose pontual com outros objetos do quotidiano, causa profundo desconforto no
espectador, tal como havia acontecido na Exposição Internacional Surrealista de 1938, na
Galeria de Belas-Artes em Paris, onde estiveram expostos em conjunto 16 manequins de artistas
como Dalí, Max Ernst, Marcel Duchamp, entre outros, e na qual este objeto atingiu o seu
exponente máximo. À semelhança deste evento, todas as exposições surrealistas viviam de uma
cuidada encenação, como explica Xavière Gauthier: «Toutes les expositions internationales du
surréalisme s’entourent d’une mise-en-scène, faite de décors, d’objets étranges, de bruits, et
destinée à faire sortir le spectateur de sa situation de contemplateur et de badaud»269.

Contudo, em contexto português, à semelhança dos manequins de Lemos, Vespeira e


Azevedo na exposição de 1952, as criações objetuais de Leiria não chegam a atingir o nível de
sublimação dos contornos humanos que domina na exposição parisiense; de facto, através do
procedimento de assemblage, criações como «Escada Paranóica» e «Poema-Objeto», ambos de
1949, apenas fazem uso parcial de um manequim assexuado, nomeadamente os braços, que
nos chama a atenção tanto para o processo de mutilação prévia do corpo, como para a carga de
violência que subjaz à manipulação deste objeto. «Escada Paranóica» (fig.8) trata-se de uma
construção à base de madeira, onde de uma placa preta de forma quadrangular se erguem dois
braços de manequim que seguram tiras de tecido. Já em «Poema-Objeto»270 temos também a
disposição de um braço artificial apoiado numa espécie de ferramenta agrícola, enquanto
representação do esfacelamento do corpo físico; contudo, neste último acresce ainda um olho
de vidro pousado sobre a mão, desterritorializado do corpo: elemento místico e canal de
revelação interior que liga à imaginação e ao inconsciente, o olho é recorrentemente
recuperado pelos surrealistas enquanto dispositivo que desestabiliza os conceitos de sujeito e
obra, na medida em que perturba a relação entre o espectador e o objeto artístico – este
observa-o, ao mesmo tempo que se sente observado.

268
ÁVILA, 2011, p.290.
269
GAUTHIER, 1971, p.61.
270
ÁVILA/CUADRADO, 2001, p.88.
82
Para além do lugar ocupado pelo manequim, o repertório leiriano especificamente
objetual envolve ainda outros tipos de assemblages assentes numa colisão de diversos objetos
inconciliáveis: é o caso de «Torre dialético-cefálica de Gilles de Rais»271 (1949), construção que,
ao reunir uma série de elementos do quotidiano numa maquete de cartão, parodia um
conhecido nome entre os surrealistas ligado ao crime, à aberração humana, necrofilia e
ocultismo. O parco conhecimento relativamente a este objeto, nomeadamente ligado ao seu
desaparecimento, prende-se com uma das premissas subjacentes ao artigo de María de Jesús
Ávila, que pretende ser uma chamada de atenção para a perda de várias construções objetuais
do Surrealismo português, bem como para a escassez de registos fotográficos, que
impossibilitam uma observação totalizadora e uma análise pormenorizada dos seus
componentes. De facto, o caráter tridimensional destas instalações, bem como a defetibilidade
dos materiais, constituíam condições adversas à sua preservação.

Ainda em 1949, Leiria apresenta outro «Poema-Objeto»272: constituído por um crânio


animal ossificado com duas lâmpadas no lugar dos olhos e outra no maxilar inferior, onde se
encontra pendurada uma corda com uma chave na extremidade, toda a instalação é sustentada
por um tripé. Neste caso, a perturbação reside no choque entre elementos tanto grotescos
como outros aos quais atribuímos determinada utilidade no quotidiano, e que é aqui totalmente
negada e distorcida, aumentando não só o grau de estranheza do espectador, bem como a
potencialidade dos seus «fantasmas eróticos»273. O tipo de comunicação visual facultada pela
montagem destes objetos, aliada a um funcionamento simbólico dos objetos do quotidiano,
proporciona, acima de tudo, uma leitura mais profunda daquelas que foram as preocupações
estéticas que assolaram os artistas portugueses na viragem dos anos 40 para os anos 50 (ainda
que a montagem objetual não tenha sido uma constante, comparativamente ao cenário
internacional), sobretudo no que toca a um tipo de linguagem que não só desestabiliza as
fronteiras entre real/imaginário, objetivo/subjetivo e animado/inanimado, como confronta o
espectador com um processo de descomunhão face a uma definição estável de «real» – que
aqui extravasa as nossas noções de perigo, prazer, e desconhecido para se submeter ao que
Breton considera ser a omnipotência do desejo274. Este tipo de perceções, tal como o próprio
explica na conferência «Situação Surrealista do Objeto», exigem uma reação do espectador,

271
Ibidem.
272
Ibidem.
273
ÁVILA, 2011, p.300.
274
BRETON, André (1934), «What is Surrealism?», in CHIPP, 1968, p.410-417.
83
uma vez que «(…) apresentam um caráter perturbador, revolucionário no sentido de clamarem
imperiosamente, na realidade exterior, por qualquer coisa que lhes responda»275.

Mantendo-nos numa linha de pensamento ligada à conceção plástica e à produção


intermedial de Leiria, encaminhamo-nos progressivamente para aquela que é talvez a
metodologia mais fecunda no seio da sua produção manifestamente surrealista, e que significa
uma ampliação do estudo sobre as relações entre poesia e artes visuais: a colagem, um dos mais
importantes condutores de expressão artística do século XX, impulsionado pelos papiers collés
cubistas de Picasso e Braque, que representa, no fundo, o desgaste de modelos miméticos,
estáticos e caducos da arte. O campo de experimentação desenvolvido por esta prática
contemporânea apresenta-se como um desafio à pintura tradicional, e sustenta a interseção de
uma variedade de discursos que anulam a compleição perlocutiva da mensagem artística, a qual
operava em contexto de uma hegemonia literária, ao mesmo tempo que revitaliza o poder
ontológico da arte e lidera uma emancipação do sistema semiótico e respetivos códigos. Acima
de tudo, a atitude assumida por estes artistas assentou numa rutura com um tipo de
representação figurativa estacionária e a rejeição dos processos de criação mimética (que
operavam numa tendência de normalização de pressupostos artísticos), através de processos
de montagem e sobreposição de materiais e elementos deslocados – distanciados – dos seus
contextos de origem, como objetos do quotidiano entretanto inutilizados. Como explica Thomas
P. Brockelman,

(…) in pasting materials from outside of the world of paiting onto a canvas, the artist apparently
tries to get around the basic painterly conventions of representation, conventions that distance
the painting from the immediate reality which we believe ourselves to inhabit. (…) the point is
that collage attempts to embody a kind of immediate presence beyond the necessity of
representation.276

Já em 1924, Breton legitimava a atribuição da designação «poema» ao resultado de


recortes de jornais, bem como à adição de objetos às palavras: os objetos não substituem as
palavras e as palavras não anulam os objetos, porque ambos se servem de mecanismos de
apropriação mútua que participam no processo de criação da imagem mental. De facto, o
poema-objeto surrealista dilui o conceito de texto ao permitir uma comunhão das palavras num
contexto tridimensional por meio daquilo que vimos ser a assemblage, contexto esse onde o
artista rejeita o caráter utilitário dos objetos e faz da obra um apelo ao tato por meio do seu

275
BRETON, 2016, p.332.
276
BROCKELMAN, Thomas P. (2001), The frame and the mirror: on collage and the postmodern, Illinois,
Northwestern University Press, p.1.

84
caráter visual e material, e onde literatura e artes plásticas partilham níveis de paridade
interpretativa. Como explica Aragon no emblemático texto de 1930, «La peinture au défi», a
collage277 providencia uma incursão pelo maravilhoso, o qual não pretende ser uma negação da
realidade, mas antes uma redefinição e criação de uma nova realidade, que coloca em causa
determinadas construções pré-concebidas da cultura contemporânea: «(…) le marveilleux est
toujours la matérialisation d’un symbole moral en opposition violente avec la morale du monde
au millieu duquel il surgit»278.

Através da prática do poema-colagem, Mário-Henrique Leiria destacou-se no seio da


curta, mas prolífica história do Surrealismo português ao ser um dos artistas que maior
protagonismo concedeu a este exercício interdiscursivo, no qual segmentos verbais são
retirados dos mais variados contextos e reagrupados na página com o propósito de lhes ser
concedida uma nova configuração significativa, visual e interpretativa, que transforma o poeta
numa espécie de prestidigitador. De facto, segundo Octavio Paz, a prática do poema-objeto
agencia uma interdependência entre fragmentos objetuais e verbais, portanto desprovida de
hierarquização: «Le poème-objet est une créature amphibie qui vit entre deux éléments: le signe
et l’image, l’art visuel et l’art verbal. Un poème-objet se contemple et, en même temps, il se
lit».279 Iremos analisar algumas das mais arrebatadoras colagens leirianas, as quais se dividem,
numa primeira fase, num conjunto de experiências textuais onde o signo verbal adquire
proeminência, e onde a existência de uma dualidade verbo-pictórica amplifica a carga
polissémica do poema; seguidamente, passamos para casos onde se verifica um processo de
desverbalização da palavra, que dá lugar a uma aglutinação essencialmente icónica, a mesma
que nos aproxima do processo de composição e manipulação fotográfica da fotomontagem.

Antes de avançarmos, é necessário perceber que a construção destas colagens não se


trata de um processo totalmente arbitrário, mas de abandono vigiado, na medida em que apesar
do elevado grau de ambiguidade semântica que advém da associação livre de ideias, o artista
mantém a lógica gramatical e a coesão sintática entre as frases e os elementos, tal como vemos
no seguinte poema: «Spoc despenhou-se de um tapete persa a grande altura causando a vida a
quatro pessoas e a um vendedor de produtos veterinários» (fig.9). De facto, algumas colagens

277
Nesta afirmação de Aragon fica patente a distinção entre colagem, enquanto termo genérico que
remete para a técnica de aplicação de materiais, por meio de cola, numa superfície, e collage (surrealista),
o exercício de uma nova sintaxe a partir da desfragmentação a sobreposição de elementos, processo
pioneirizado por Max Ernst e que se aproxima da própria poesia: «não é a cola que faz a collage, mas a
collage que faz uma nova superfície». In LIMA, Sérgio (2016), O rasgo absoluto, Coimbra, Debout Sur
L’Oeuf, p.31.
278
ARAGON, Louis (1965), «La peinture au défi», in Les Collages, Paris, Hermann, p.37.
279
PAZ, 1900, p.VI.
85
de Leiria possuem um cunho marcadamente jornalístico, sendo que muitas das suas criações se
assemelham a comunicados, títulos de notícias, slogans, avisos, ofertas de emprego ou
propaganda publicitária, de forma a satirizar e desestabilizar a solidez de um tipo de linguagem
comunicativa estereotipada, ao mesmo tempo que adota uma postura contestatária e
interventiva na crítica breve e mordaz à simbologia de formas enraizadas na cultura moderna.
O caráter aliciador que predomina na linguagem publicitária, e que caracteriza o
experimentalismo que os surrealistas congéneres de Leiria executaram no seio do próprio
discurso, pode também ser encontrada em textos automáticos do poeta, como é o caso de uma
carta não-datada endereçada a Cesariny280, construída inteiramente a partir de títulos de
notícias e anúncios publicitários de tom cómico e satírico inventados pelo escritor e que, no
contexto ditatorial onde atuavam, possibilitariam um despiste à máquina censória a partir de
uma arguta codificação textual.

Enquanto mecanismo de desestruturação de discursos artísticos tradicionais, a collage


surrealista trouxe consigo uma diluição das ideias arquetípicas de técnica e génio autoral, na
medida em que, segundo Aragon, este tipo de experimentação evoca a dita personalidade da
escolha281 e rompe, como tivemos possibilidade de ver, com propósitos tradicionais de
procriação282 artística. Tal como acontece nos objetos surrealistas, também na colagem Mário-
Henrique Leiria procedeu a uma aglutinação, no papel, de uma diversidade de imagens oriundas
de realidades colaterais: num conjunto de colagens não-datadas283 encontramos fragmentos de
jornais, recortes de fotografias e manchas de tinta, aos quais o artista juntou objetos arbitrários
do quotidiano, como folhas secas e maços de tabaco amassados; no final, todos estes
elementos, separados por vinhetas de tinta de vários tamanhos, participam do mesmo propósito
de ressemantização de recursos linguísticos e pictóricos, ao mesmo tempo que perseguem a
arbitrariedade da livre associação de ideias e cenários alucinatórios provenientes de um jogo de
despaisamento e fragmentações. O humor e a ironia são uma constante nestas composições
picto-poéticas, sobretudo se atendermos ao diálogo criado entre palavras e imagens, como é o
caso da ilustração de uma cadeira de rodas acompanhada da legenda «Carros para doentes» ou
o recorte de um título de jornal onde se lê um anúncio de sessões hipnóticas seguido de uma
fotografia na qual um homem está a ser, de facto, adormecido: nestes casos, «a imagem enfatiza
o significado das palavras, e as palavras explicitam o conteúdo da imagem»284. Neste tipo de

280
LEIRIA, 2019, p.351.
281
Cf. ARAGON, 1965, p.49.
282
Ibidem.
283
LEIRIA, 2019, p.160-163.
284
ROCHA, Michele Coutinho (2017), «’Dizer no todo’: Palavra e imagem na obra de Mário Cesariny»,
Visualidades, Goiânia, v.15, n.2, p.45.
86
criações, assistimos, segundo explica Perfecto E. Cuadrado, a uma «dupla operação poética»,
que reside na identificação e seleção prévia dos fragmentos, posteriormente reorganizados – o
autor designa este processo de acaso controlado, em comparação com a total aleatoriedade
que caracterizava a colagem de Tzara285. Tal como sublinha Emília Pinto de Almeida, o maior
atributo da collage surrealista reside no facto de colocar «a descoberto o caráter protésico e
compósito da feitura artística, que recupera e desapropria o que por aí haja, sem menosprezar
nem negligenciar nenhum dado ou detalhe»286.

Vimos até aqui que, para os surrealistas, qualquer produção artística que permita um
extravasamento e distorção das medidas convencionais do mundo como o conhecemos
transforma a obra de arte num símbolo cósmico que funde mistério e perplexidade e exige um
reenquadramento das nossas perceções e ideias. No contexto das colagens cubistas e futuristas
do século XX, encontramos já um conjunto de produções onde o desiderato reside não numa
lógica aglutinadora de sequências verbais e pictóricas, mas na coalescência de elementos
fotográficos retirados de diversos contextos, enquanto matéria-prima da composição estrutural
do quadro; a estes podem ser justapostos recursos picturais e recortes de imprensa, desenhos,
que se encontram desmembrados das suas origens e assumem um papel de provocação perante
o espectador. Como explica Dawn Ades na sua obra inteiramente dedicada ao estudo da
fotomontagem, a dimensão ética desta prática adquiriu protagonismo ao constituir-se como
atitude contestatária perante o realismo das Belas-Artes, bem como por significar a
desconstrução de um discurso tradicional que pendia totalmente para uma sobrevalorização da
pintura a óleo, tida como prática exclusiva, elitista e obsoleta por parte dos dadaístas
berlinenses; por outro lado, este tipo de montagem fotográfica nasce no universo tecnológico
moderno, pertence ao «mundo de la comunicación de masas y de la reprodución
fotomecânica»287 e apropria-se despudoradamente do caráter depositário do real inerente à
própria fotografia. Vários são até hoje os estudos que atribuem o pioneirismo deste tipo de
método combinado288 a Max Ernst, um dos primeiros artistas a combinar fragmentos
fotográficos no quadro e a conquistar uma representação material inédita do funcionamento
das pulsões inconscientes e do arbitrário, ao mesmo tempo que materializa o esfacelamento do
mundo moderno: como explica Werner Spies, «as foto-colagens da altura exprimem com

285
CUADRADO/ÁVILA, 2001, p.303.
286
ALMEIDA, Emília Pinto de (2016), «Novo velhíssimo encontrado perdido: notas para uma ideia de
colagem a partir de Mário Cesariny», in Elyra: Revista da Rede Internacional Lyracompoetics, nº7.
Disponível em: https://www.elyra.org/index.php/elyra/article/view/117, p.90.
287
ADES, Dawn (2002), «Lo maravilloso y lo cotidiano», in Fotomontage, trad. Elena Llorens, Pujol,
Barcelona, Gustavo Gili, p.13.
288
SPIES, Werner (1993), «A obra gráfica», in Max Ernst: obra gráfica e livros, p.14.
87
especial acuidade este mundo amputado, ferido»289. Em verdade, o próprio Ernst apresenta a
explicação prototípica e concisa deste tipo de exercício:

A ready-made reality, whose naive destination has the air of having been fixed, once and for all
(a canoe), finding itself in the presence of another and hardly less absurd reality (a vacuum
cleaner), in a place where both of them must feel displaced (a forest), will, by this very fact,
escape to its naive destination and to its identity; it will pass from its false absolute, through a
series of relative values, into a new absolute value, true and poetic: canoe and vacuum cleaner
will make love. The mechanism of collage, it seems to me, is revealed by this very simple exemple.
The complete transmutation, followed by a pure act, as that of love (…). 290

Esta transmutação nas colagens de Ernst vai ao encontro daquilo que os surrealistas
entendem ser o automatismo criativo e a associação livre de recursos díspares que, quando
reunidos, dão origem a uma metamorfose visível das imagens291; segundo Ades, este exercício
experimental e visionário «no es sino la transformación de los materiales, la yuxtaposición que
altera la naturaleza del objeto original fotografiado, lo que a menudo provoca una
desorientación que conduce a lo que los surrealistas denominan lo maravilloso»292.

Ao analisarmos algumas das mais emblemáticas fotomontagens de Mário-Henrique


Leiria de finais da década de 40 e início da década de 50, esporadicamente recuperadas em
estudos sobre a composição fotográfica por meio da colagem – e intercaladas aqui com alguns
casos praticamente desconhecidos do público –, vemos que é possível fazer um enquadramento
das mesmas no contexto da derivação surrealista da fotomontagem, assumida como vaso de
incomunicabilidade exterior de uma linguagem que se volta apenas para a subjetividade do
artista, contrariamente ao propósito inicial dos dadaístas, veiculado a desígnios
propagandísticos e de aproximação com o público. De facto, uma das composições mais
conhecidas do poeta e artista plástico português trata-se de «Origem dos Sonhos Esquecidos»
(fig.10), de 1949, uma montagem na qual encontramos centrada a figura de uma mulher
desnuda entre as colunas de um templo greco-romano como forma de sacralização feminina,
com um enorme olho no lugar do rosto. Este elemento volta a ganhar notoriedade em criações
como «Erotismo Mágico» (fig.11), na qual de um fundo negro surge parcialmente um rosto
feminino de olhar enigmático e sedutor que mira o espectador, causando desconforto. À
semelhança de pinturas como Le Faux Miroir (1928) ou Le Portrait (1935), de Magritte, ou as
colagens La Lumière déconcertante de E. L. T. Mesens e as fotomontagens do belga Albert

289
Ibidem.
290
ERNST, Max (1936), «What is the mechanism of Collage?», in CHIPP, 1968, p.427.
291
Cf. ADES, 2002, p.118.
292
Ibidem.
88
Valentin para a Variétés em 1929-30, entre tantos outros exemplos, vemos mais uma vez que o
olho ocupa lugar de destaque no repertório dos surrealistas, não só enquanto elemento místico
que reflete a personalidade e explora a dimensão cósmica do olhar humano – ao mesmo tempo
que potencia um apuramento da subjetividade –, mas sobretudo porque permite representar o
mistério e a sedução do olhar feminino, fonte de prazer e desconcerto do artista; como explica
Jean-Paul Clébert em Dictionnaire du Surréalisme, o olho apresenta-se na estética surrealista
enquanto «signe d’appel, de séduction ou de détresse. Balayant la banale image d’un ‘miroir de
l’âme’, il voit en eux non le reflet mais l’expression même de la personalité. L’oeil parle. Et
singulièrement celui de la femme»293.

As colagens de Leiria adquirem também um caráter desconcertante e provocador


através de mecanismos como a ironia, o escárnio e o nonsense, que extravasam a atuação
poética anteriormente analisada e permitem uma subversão de ditames sociais e um desafio do
sistema político através do efeito de dépaysement subjacente ao mecanismo de automatismo
pictórico da fotomontagem. Leiria passa rapidamente de trabalhos com uma tonalidade onírica
e enigmática, como acontece em «Sem título» (s.d.) (fig.12), no qual identificamos a
representação de uma floresta a partir da agregação de fragmentos de papel colorido com a
forma de folhas, pedaços de relva, troncos e lianas, ou ainda «Plataformas de acesso» (s.d.)
(fig.13) – uma montagem de quatro cenários de tonalidade sombria com uma palete de cores
escuras de conotação mística, na qual montanhas rochosas são atravessadas por sinuosos
passadiços de madeira erguidos algures na absurda profundidade da natureza – para exemplos
onde reconhecemos uma posição contestatária mais ativa: é o caso de «A Cidade Paranóica»294,
onde, sobreposto a um militar de expressão altiva e olhos esbugalhados que equilibra uma bala
no dedo, está um sujeito adormecido sobre uma cadeira, sobre o qual paradoxalmente se
destaca um olho grande e perturbador, que simboliza a atenção e a preocupação constantes
que o indivíduo é obrigado a manter no contexto de uma situação ditatorial e censória
altamente restritiva e perigosa. Numa escala mais reduzida, encontram-se dois homens que
rondam o sujeito adormecido, os quais localizam precisamente a ação no contexto de excessiva
vigilância policial no Portugal de finais dos anos 40. Igualmente «Sem título»295, de 1949, evoca
um cenário de guerra e revolução, onde duas figuras bizarras se elevam de colunas de fumo
numa batalha apocalíptica que destrói toda a cidade: a figura mais à esquerda enverga um
chapéu militar, enquanto que a outra está representada por um enorme mostrador de relógio,
remetendo para uma possível contagem decrescente em direção ao extermínio daquela cidade.

293
CLÉBERT, Jean-Paul (1996), Dictionnaire du Surréalisme, Paris, Seuil, p.424.
294
ÁVILA/CUADRADO, 2001, p.177.
295
Ibidem, p.178.
89
Este último objeto em particular volta a marcar presença em «Mecanismo da Revolução» (fig.14)
(1948), inserido num panorama de guerra bizarro concebível apenas em sonhos, como o próprio
título indica: o relógio, enquanto símbolo mecânico da transitoriedade e brevidade da vida
humana por meio de uma subjacente ideia de proximidade da morte, adquire particular
relevância ao ser sobreposto a um rosto de olhos invertidos que persegue um cavalo montado
por um candeeiro.

De facto, as opções iconográficas de Leiria estão enquadradas num tipo de discurso


ideológico e contestatário particularmente prolífico entre os surrealistas portugueses,
sobretudo porque materializam visualmente uma subversão de valores sociais, religiosos,
morais e políticos nos quais assenta a sociedade portuguesa do século XX. Integrado ainda no
campo experimental da collage e da montagem picto-poética, iremos em seguida analisar a
travessia de uma atividade que partiu das narrativas poético-visuais de Max Ernst entre 1929 e
1934, particularmente fecunda no seio dos trabalhos surrealistas, e adotada por Leiria ainda no
período em que oficialmente integrou o movimento português.

3.2. Pas Pour les Parents: sobre o romance-colagem

Como tivemos já possibilidade de analisar, à atividade da collage subjaz uma nova


sintaxe dada através da montagem enquanto sobreposição de imagens e planos. De facto, não
se trata de um exercício exclusivo do cinema, pelo que várias são as ramificações teóricas
construídas ao longo do tempo que permitem ligar esta técnica tanto às restantes artes visuais,
como à própria poesia296. Neste caso em particular, interessa-nos especificamente o
desempenho da montagem enquanto processo diretamente relacionado com um
comportamento muito particular da própria collage, e que permite pensar o estatuto da
fotomontagem partindo da lógica do fluxo de imagens comum à arte cinematográfica. Peter
Bürger, em Theory of the Avant-Garde, equaciona precisamente este processo de composição
fotográfica como estando localizada entre a montagem no cinema e na pintura297, sendo que

296
De facto, Mário-Henrique haveria iniciado preparativos para a produção de um filme, A metralhadora
fecundante, junto com Mário Cesariny e Carlos Eurico da Costa, mas infelizmente os registos
desapareceram. Contudo, na antologia de textos dispersos de Leiria, encontramos um guião de cinema,
datado de 1948, com o título «Projeto para um ‘Film’» (LEIRIA, 2017, p.731), onde predomina o mistério
e o fantástico.
297
O crítico explicita a diferença que separa ambos os casos: ao passo que no cinema a montagem se trata
de um processo técnico, determinado a priori pelo meio, na pintura conquista o estatuto de princípio
artístico. BÜRGER, 1984, p.73.
90
por vezes o ato de montar não é evidente (ou quer-se ocultado)298, de modo a ceder
protagonismo a uma realidade inédita e totalizadora, que esconde o próprio princípio da
fragmentação que a gerou em primeiro lugar.

Foi no âmbito da colagem que na volta dos anos 20 para os anos 30 Max Ernst procedeu
a uma alteração do nível de manipulação inerente ao exercício de recorte e aglutinação
iconográficos: falamos aqui do roman-collage, procedimento plástico no qual o artista
intervenciona ilustrações pré-existentes oriundas de revistas, catálogos, livros de fundamento
técnico e científico, etc., alterando o seu significado, e que está na base de três das suas criações
mais emblemáticas: La Femme 100 Têtes (1929), Rêve d’une petite fille qui voulut entrer au
Carmel (1930) e Une semaine de Bonté ou Les Sept elements capitaux (1934). Contrariamente
aos dois primeiros casos, nos quais o artista opta por uma articulação entre media textuais e
pictóricos, no último livro o observador conta fundamentalmente com fragmentos iconográficos
oitocentistas para descodificar a ação; em qualquer um dos casos assistimos a uma transgressão
do hipercódigo que tutela o género romanesco, tal como havia sido concebido e praticado pelos
escritores românticos e realistas, na medida em que há uma desestabilização de fronteiras entre
géneros, adiante vista em pormenor. Para além da experimentação plástica característica da
metodologia de montagem pictórica praticada por Ernst, a grande particularidade destes livros
prende-se com aquilo que Werner Spies denomina tensão narrativa299, ou seja, a par da
impenetrabilidade que caracteriza o desenvolvimento diegético de um conjunto de cenas
totalmente indecifráveis, o facto é que resiste, subjacente, uma sucessão de acontecimentos
que o observador não consegue reconstituir, mas cuja presença não pode ser negada; como
explica Spies, «as legendas apostas às representações destinam-se a sublinhar o contexto,
remetendo constantemente para o decurso de uma ocorrência»300, a qual é admissível
unicamente no espectro da construção paradoxal onde assenta o imaginário.

Através deste processo de construção fotomecânica, Ernst manifesta uma abordagem


crítica da sociedade burguesa do século XIX, nomeadamente ao conceder especial enfoque ao
panorama de consumismo desmedido e às consequências que enfrenta um mundo cada vez
mais mecanizado e tecnológico. Para além da crítica moral e social, subjaz ainda a estes
romances um conjunto de cenários, situações e personagens que remetem para a violência
sexual, bem como para aquilo que Annateresa Fabris qualifica como problemática do

298
Ibidem, p.76-77.
299
SPIES, 1993, p.25.
300
Ibidem.
91
monstruoso301, representada em figuras híbridas e bestiais que, à semelhança do Leão de Belfort
de Une semaine de Bonté, «configuram-se como fantasmas do inconsciente, a confrontarem o
espectador com a alteridade, a ambiguidade e a ambivalência das formas mentais, com desejos
e pensamentos recalcados, que se chocam com as normas de conduta estabelecidas pela
sociedade»302. A parca coesão narrativa deste romance-colagem em particular é configurada a
partir da associação comum de motivos e detalhes entre as páginas que participam ativamente
naquilo que Breton assinala como uma emancipação da visão303; a obra está, assim, repartida
ao longo dos sete dias da semana, aos quais corresponde uma cor, um símbolo e um elemento:
no primeiro dia, domingo, temos um conjunto de ações protagonizadas pelo Leão de Belfort,
figura antropomórfica entre o humano e a besta, que se envolve num conjunto de crimes pela
cidade. Como explica Fabris304, esta personagem representa a resistência da cidade de Belfort
durante a guerra franco-prussiana, na qual foi erguida a estátua do leão enquanto símbolo
patriótico; a distorção a que Ernst procede, no sentido de subverter o significado do leão como
criatura mítica, parte dos aspetos negativos associados a esta figura pela psicanálise, tida
duplamente enquanto símbolo soberano da razão, representando o papel de imperador num
primeiro momento, até que se deixa transformar pelo poder e se converte num tirano. É a partir
desta imagem que vemos uma personagem dominada pela violência, aproximando-se, junto das
restantes criaturas híbridas protagonistas das ações horrendas das restantes micronarrativas
iconográficas, das reflexões tecidas por Freud ao nível do Unheimliche (inquietante ou estranho),
ou seja, das assombrações e desejos inibidos do ser humano que se materializam em ações
terríveis que invadem a ficção e confrontam o leitor com os seus próprios recalcamentos. Isto
significa que o ato de leitura, materializado no encontro do sujeito com a obra, implica
paralelamente um novo confronto entre o mesmo e a posição que normalmente assume
perante um conjunto de experiências estranhas, ou, neste caso, de crueldade e terror, no
momento em que se apercebe do florescimento de apetências reprimidas:

Diante do vivenciado nos comportamos, em geral, de maneira uniformemente passiva,


sucumbindo à influência do que sucede. Mas em relação ao escritor somos particularmente
maleáveis; por meio do estado de ânimo em que nos coloca, das expectativas que em nós suscita,

301
FABRIS, Annateresa (2010), «Os folhetins perversos de Max Ernst», in Anuário de Literatura, vol.15,
n.1, p.164.
302
Ibidem.
303
Cf. BRETON, 1965, p.168.
304
Cf. FABRIS, 2010, p.165.
92
ele pode desviar nossos processos afetivos de uma direção e orientá-los para outra, e pode
frequentemente obter, do mesmo material, efeitos bem diversos.305

Neste texto de 1919, Freud explora a evolução linguística e as divagações terminológicas


em torno do conceito de inquietante (bem como descreve determinados cenários que
despertam no leitor esta sensação), nomeadamente quando associado a sentimentos de terror
e angústia, e enquanto correspondente direto de um conjunto de conceitos outrora renegados
pelos inflexíveis tratados estéticos, entre eles o Feio. À semelhança do Grotesco e do Sublime, o
inquietante participa na estética da multiplicidade e da alteridade do Feio, exprime a usura do
tempo e os comportamentos recalcados do homem ao ser confrontado com situações e
personagens amorfas, disformes, que negam a ordenação da matéria e a linearidade das
atitudes humanas; por vezes, essas situações têm ligação intrínseca a contextos já familiares e
conhecidos, no momento em que se apropriam das circunstâncias psicológicas e históricas do
leitor, entre elas memórias, experiências, códigos de gosto, etc. Uma das categorias
selecionadas por Freud, enquanto extensão teórica das considerações do psiquiatra alemão
Ernst A. Jentsch, diz respeito à incerteza intelectual «de que um ser aparentemente animado
esteja de facto vivo ou, inversamente, de que um objeto inanimado talvez esteja vivo»306,
coincidente com as considerações tecidas ao nível do manequim surrealista enquanto objeto
antropomórfico manualmente fabricado, que provoca no espectador «a suspeita de que
processos automáticos – mecânicos – podem se esconder por trás da imagem habitual que
temos do ser vivo»307.

Uma das premissas do ensaio freudiano que se relaciona com as personagens híbridas
do romance-colagem de Ernst, como vimos, prende-se exatamente com os momentos em que
o ser humano, dotado de tremenda passividade, é acometido pela loucura e deixa vir ao de cima
determinadas ações de extrema brutalidade, que vão desde cenas de tortura, a perseguições e
assassinatos (como vimos no caso do Leão de Belfort, encarnação da insanidade e da violência).
A estratégia de Ernst passa por engendrar uma expansão das bases do racionalismo e logicismo
do observador, remetendo-as para o universo da fantasia, dos sonhos e da ilusão308. Freud
explica que as fronteiras entre literatura/ficção e realidade se diluem na medida em que o leque
de situações que consideramos inquietantes, e que são geradas no âmbito da ficção literária,

305
FREUD, Sigmund (1919), «O Inquietante», in Sigmund Freud – Obras Completas: História de uma
neurose infantil (“O Homem dos Lobos”), Além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920), trad.
Paulo César de Souza, São Paulo, Companhia das Letras, 2010, p.374.
306
Ibidem, p.340.
307
Ibidem.
308
Cf. PRITZKER, Pamela (1975), Ernst, New York, Leon Amiel Publisher, s/p.

93
são substancialmente mais numerosas do que as que sucedem na realidade, e procedem não só
a uma contaminação do imaginário do leitor, como das perceções que o mesmo possui do
universo quotidiano; isto acontece sobretudo porque o procedimento de leitura implica um
conjunto de mecanismos intelectuais e imaginativos que atuam diretamente no choque de
ideias e nas metamorfoses que a obra produz, premissa que se enquadra no panorama dos
estudos sobre as teorias da receção literária da segunda metade do século XX. A partir daí, cabe
ao autor respeitar o horizonte de expectativas do leitor, segundo a terminologia de Hans R. Jauss,
ou, pelo contrário, distanciar-se o mais possível, aumentando a sensação de estranheza e do
inquietante, opção mais comum entre os surrealistas:

O inquietante da ficção – da fantasia, da literatura – merece, na verdade, uma discussão à parte.


Ele é, sobretudo, bem mais amplo que o inquietante das vivências, ele abrange todo este e ainda
outras coisas, que não sucedem nas condições do vivenciar (…). Entre as muitas liberdades do
criador literário está a de escolher a seu bel-prazer o mundo que apresenta, de modo que este
coincida com a realidade que nos é familiar ou dela se distancie de alguma forma. Nós o seguimos
em qualquer um dos casos. 309

Uma das principais características dos romances-colagem de Ernst, e que viria a


influenciar diretamente as diferentes variações deste exercício nas mãos de artistas como
Mário-Henrique Leiria, prende-se com a dificuldade em identificar as várias partes díspares que
integram a collage enquanto composto alquímico310, dada não apenas a sua forte
heterogeneidade formal, mas sobretudo a exímia ocultação das suturas entre as unidades
constituintes: esta é uma das grandes inovações que os surrealistas concederam à criação do
romance-colagem, contrariamente às colagens cubistas, onde facilmente se identificam os
limites entre os vários elementos da imagem. Deste modo, o espectador é confrontado com o
desdobramento da realidade em cenários totalmente anormais e subversivos, concebíveis no
universo dos sonhos, ao invés de focar a sua atenção na distinção entre os diversos materiais e
planos da composição plástica.

De facto, este diálogo intersemiótico pioneirizado por Ernst viria a inspirar vários artistas
modernistas e vanguardistas em pleno século XX, os quais se muniram da fotomontagem
enquanto prática artística desfasada, em certa medida, do panorama artístico e literário onde
atuam. Um dos exemplos a ser aqui mencionado, e que de facto inaugura um conjunto de
vínculos marcadamente estreitos relativamente aos trabalhos do artista alemão, trata-se do
poeta, romancista e artista plástico brasileiro Jorge de Lima (1893-1953), pioneiro na pesquisa

309
FREUD, 2010, p.371-372.
310
DUROZOI e LECHERBONNIER, 1972, p.244.
94
das possibilidades artísticas da fotomontagem no Brasil e autor de uma obra que segue o
modelo surrealista do romance-colagem – A Pintura em Pânico (1943). Enquadrada no conjunto
de experimentalismos fotomecânicos que Lima viria a fazer entre os anos 30 e 40311, esta obra
reúne 41 gravuras na qual cada imagem foi previamente desalojada do contexto,
intervencionada, e segue em articulação com uma legenda breve sem função descritiva,
conferindo uma legibilidade totalmente inédita ao conjunto, e pondo em evidência o trabalho
do artista-criador enquanto poeta-demiurgo312. Apesar de a introdução da fotomontagem no
seu repertório ter acontecido num curto espaço de tempo, e o poeta nunca ter formalizado a
adesão à estética surrealista (de certa forma, beneficia das conquistas das vanguardas
europeias), é certo que a mesma não se trata de um caso pontual a ser desvalorizado, na medida
em que esta «vincula-se à poética do fragmento e às imagens de estilhaçamento, mutilação e
ruína, presentes na lírica limiana, formando assim uma continuidade entre fotomontagem e
poesia»313. As imagens das quais o poeta se apropria, oriundas de gravuras e enciclopédias
antigas, jornais e revistas, perdem o seu valor informativo, representativo e/ou didático para
cederem espaço à livre interpretação do leitor, que tem ao seu dispor um infinito espectro de
narrativas e associações – esta será uma das premissas-base que aplicaremos daqui em diante.

Em Portugal, o romance-colagem teve adesão por parte de poucos artistas, com


destaque para aquela que é a grande referência no campo da experimentação plástica
surrealista de final dos anos 40: A Ampola Miraculosa, de Alexandre O’Neill. A obra é composta
por treze imagens ready-made retiradas de fontes de cariz científico e acompanhadas de
legendas314, sendo que, ainda que a sua estrutura tenha afinidades, em grande medida, com o
primeiro romance-colagem de Ernst315, La femme 100 têtes, esta fabrica um encadeamento

311
Priscila Sacchetin reconstituiu os primórdios do exercício da fotomontagem na obra do poeta alagoano
e aponta para 1937 como sendo o ano em que Lima executa «A poesia em pânico», originalmente, para
a capa do livro homónimo de Murilo Mendes. Cf. SACCHETIN, Priscila (2018), «A Pintura em Pânico:
fotomontagens de Jorge de Lima», Campinas, Tese de Doutoramento em História da Arte, UEC-IFCH, p.35.
312
Cf. Ibidem, p.17.
313
Ibidem, p.19.
314
Para além de engajar no campo experimental do romance em imagens, O’Neill viria mais tarde a
proceder a uma variação no âmbito da combinação picto-poética, com a apresentação do seu
«Divertimento com Sinais Ortográficos», publicado em Abandono Vigiado (1960): exercício experimental
onde o protagonismo visual é dado ao próprio signo ortográfico enquanto objeto artístico. Existe um
conjunto de afinidades formais estabelecidas com os romances de Ernst e A Ampola Miraculosa
localizadas não só na própria legendagem (aqui quem fala não é o narrador, mas os próprios sinais), como
na deslocação de elementos do contexto habitual que são apresentadas ao observador, neste caso, como
desempenhando uma função estética e não pragmática e lógica.
315
Sara Campino chama a atenção não apenas para o facto de as treze pranchas ilustrativas de O’Neill
corresponderem a um capítulo de La femme 100 têtes, como também para a analogia estabelecida entre
as duas obras, na medida em que tal como o livro de Ernst repete a primeira imagem no fim, também o
poeta português combina os mesmos elementos entre a primeira e a última ilustração, nomeadamente a
figura masculina, a ampola e a estrutura gradeada no fundo da imagem. CAMPINO, 2011, p.32-33.
95
icónico e poético que remete para uma espécie de relato onírico, bem como para a formatação
do fenómeno psíquico do sonho e as várias vertentes da força regeneradora e subversiva do
maravilhoso e da imaginação, por meio de operações plásticas de deslocamento: a
reconfiguração que o poeta português concede aos fragmentos dos quais se aproveita não passa
diretamente pelo processo de transmutação inerente à própria colagem, pelo que se limita a
executar ligeiras rotações que alteram o tipo de perceção inicial das imagens316. O procedimento
aqui aplicado, e que no fundo não deixa de se configurar enquanto prova das potencialidades
plásticas e poéticas da collage surrealista – «arma dirigida contra a banalidade quotidiana,
contra a arte escravizada ao espírito de seriedade»317 – atua não enquanto exercício de
transfiguração anatómica da imagem através da justaposição de fragmentos menores, mas
assenta na deslocação semântica nela aplicada, e que a desvincula do contexto que lhe deu
origem. O processo dialógico e interdependente entre produtos verbais e visuais do livro de
O’Neill dá origem a uma narrativa desmembrada e assistemática que não se esgota na
inexplicabilidade da situação descrita, precisamente porque potencia a incursão pelo imaginário
e o sonho através do fortalecimento semântico que as legendas conferem às próprias analogias
visuais, como explica Sara Campino:

No caso de A Ampola Miraculosa (1949), O’Neill desarticula a inteligibilidade da ilustração


científica através da manipulação da posição do observador ou da insuficiência explicativa das
imagens escolhidas, processos estes que mantêm a aparência de uma coesão visual unitária
própria de um ready-made, mas que necessitam de colocar a imagem e relação com outro
elemento, quer seja de natureza verbal ou visual, para alimentar o elo narrativo que motoriza o
enigma e dá corpo ao romance. 318

Enquadrada nas experiências plásticas da ilustração, colagem e do automatismo cursivo


que caracterizam a sua travessia pelos caminhos subversivos do Surrealismo entre 1948-52,
Mário-Henrique Leiria produz, em 1951, Pas Pour les Parents, romance-colagem que, à
semelhança da estrutura d’A Ampola Miraculosa, inaugura uma incursão pelo universo do sonho
e do imaginário ditada pelo diálogo intermedial entre fragmentos linguísticos e pictóricos. A
estrutura diegética fragmentária e a parca coesão semântica entre as imagens e as legendas que
as acompanham inviabilizam a potencialidade narrativa a que geralmente associamos o género
romanesco, sobretudo porque em ambos os casos os autores fazem questão de subintitular as
obras de romance, desconsiderando aquelas que são as suas características comuns de modo a
forçar uma desvirtuação genológica, ou seja, com o propósito de concretizar uma «formulação

316
Cf. Ibidem, p.32.
317
ALEXANDRIAN, 1972, p.96.
318
CAMPINO, 2011, p.33-34.
96
anti-modelo, transgredindo o romance que parodia, assim como o romance-colagem que
absorve»319. A desvirtuação de um pacto de leitura prévio aponta-nos para a problemática
genológica que ambos os textos adjudicam, onde percebemos que a própria denominação de
romance implica uma incompatibilidade intrínseca: desconsiderando aqui a vertente
marcadamente plástica, encontramos um conjunto de características que permitem, até certo
ponto, inserir as obras no âmbito da novela e que vão além da clara brevidade extensiva; é
possível identificar, de facto, a evolução de um acontecimento único no qual a génese diegética
está limitada à experiência univocal de um só narrador-personagem, bem como o facto de o
encadeamento aleatório de cenários e objetos se localizar na esfera do automatismo psíquico,
não estando diretamente relacionado com a profundidade ficcional a que geralmente
associamos o romance. A desestabilização dos modos discursivos na obra de Leiria encaminha-
nos para a perda de domínio do modo narrativo, uma vez que, por meio do automatismo
cursivo, as legendas encetam uma linguagem tendencialmente lírica, direcionada para a
subjetividade do indivíduo e as suas alucinações visuais. Adicionalmente, a própria miscigenação
de materiais poéticos e pictóricos participa nesta lógica de transgressão genológica, como
explica Tania Martuscelli:

Foi em nome da indistinção que artistas passaram a adotar um sem-número de materiais


inusitados às artes plásticas, além de estratégias retiradas de um mundo mais vasto, com especial
atenção para a não-utilização de procedimentos, matérias e tradições exclusivas das Belas-Artes.
O que se nota hoje em dia como diluição dos gêneros teve início entre os vanguardistas no início
do século, sendo que a linhagem, ou a herança (literário-artística) para a posteridade tenha
ficado por conta dos surrealistas.320

Desde logo, um dos aspetos que separa ambas as obras trata-se do tipo de
aproveitamento iconográfico que permeia estas narrativas aparentes: O’Neill faz uso de
gravuras provenientes de velhos almanaques, manuais de difusão científica e enciclopédias
populares antigas, acompanhadas de legendas datilografadas, ou seja, trata-se de um registo
oitocentista tematicamente restrito e delimitado; por outro lado, Pas Pour les Parents marca a
evolução estilística de Leiria ao fazer uma apropriação de fotografias de cariz mais
contemporâneo, de origens e tamanhos muito diversificados, acompanhadas de legendas
escritas à mão, sendo que a manipulação plástica das ilustrações passa não só por um exercício
de rotação das mesmas que, à semelhança da obra o’neilliana, adjudica uma desestabilização
da perceção do observador, como assenta, em alguns casos, numa adulteração no seio da

319
Ibidem, p.23.
320
MARTUSCELLI, 2013, p.202.
97
própria imagem através da justaposição de fragmentos menores, tal como La Femme 100 Têtes.
Encontramos exemplos deste tipo de preparação pictural prévia essencialmente em dois casos:
Leiria constrói uma imagem na qual posiciona o recorte da parte inferior do tronco de uma
criança sobre uma paisagem onde se distingue o mar e o céu, acompanhada da legenda «Só
umas pernas de creança…»321; no segundo caso, sobre um fundo homogéneo, dispõe o recorte
de uma cadeira na qual se encontra parte de um braço humano, onde se lê «Durante certo
tempo as nossas noites de amor foram alucinantemente verdadeiras…»322. Deste modo vemos
que não existe subjacente qualquer relação hierárquica entre imagem e texto, ou seja, a
impossibilidade de reconhecer um certo domínio de um modo sobre o outro significa que o
observador se vê obrigado a renunciar a uma estabilidade significativa na qual a legenda
apresentaria um esclarecimento racional sobre a imagem.

Pas Pour les Parents encaminha o leitor para o relato fragmentado de um sonho do
narrador, uma experiência interior povoada de situações estranhas, figuras obsessivas,
fantasmas, cenários impossíveis de decifrar cuja leitura se torna ainda mais opaca no momento
em que, como vimos anteriormente, o autor procede a uma manobra de rotação da imagem:
temos um caso onde a fotografia de um túnel se encontra invertida323, dificultando a
identificação das partes e ampliando o grau de distanciamento do leitor face à representação
do real através da distorção da perspetiva e a introdução de ângulos inverosímeis. A proposta
de textualização estabelecida entre as imagens e respetivas legendas apresenta, no fundo,
resquícios de uma história segmentada que se constrói na seletividade da memória e não deixa
nunca de exigir um constante treino do olhar em função do jogo de vários tipos de visão e
perspetiva que as imagens propõem, na medida em que se localizam em diferentes zonas da
realidade transfigurada pelos constantes desafios que as experiências plásticas de montagem
colocam: tanto a experiência poética como visual encontram-se, no romance-colagem, presas a
uma dinâmica narrativa liberta das contingências do dispositivo ocular, onde somos convidados
a ver a realidade de outras maneiras dentro de um diálogo interartístico poliédrico. Peter Bürger,
em Theory of the Avant-Garde, chama a atenção para o facto de a montagem ser o princípio
fundamental que sustenta qualquer trabalho de vanguarda – «the ‘fitted’ (montierte) work calls
attention to the fact that it is made up of reality fragments; it breaks through the appearence
(Schein) of totality»324. Indubitavelmente, percebemos aqui que a collage procede a uma
codificação do mundo enquanto exercício de montagem, dado que permite um

321
LEIRIA, 2019, p.272.
322
Ibidem, p.274.
323
Ibidem, p.270.
324
BÜRGER, 1984, p.72.
98
reequacionamento dos nossos estímulos e experiências, invertendo muitas vezes a ordem e a
disposição dos objetos. Este objetivo passa também por provocar o choque no observador, tanto
enquanto estímulo, deixando-o desconfortável perante a desarticulação do mundo, como
enquanto meio para reconsiderar a sua conduta de vida através da rutura com uma imanência
estética325.

De facto, além de se tratarem ambos de relatos fragmentados de um sonho, a obra de


Leiria imita algumas das premissas presentes n’A Ampola Miraculosa, das quais se destacam: 1)
a temática da transfiguração do real através da inserção de elementos do quotidiano no
universo onírico326, 2) o automatismo linguístico no qual assenta a configuração das legendas
das imagens 3) a perseguição totalmente inverosímil feita ao narrador por parte de criaturas
estranhas (no caso de O’Neill um «enorme inseto» e em Leiria um peixe de estranhos contornos,
«sinistro e solitário»327), e que apontam para a desestabilização e a desproporção dos objetos,
mecanismos típicos dos sonhos, 4) a partilha da vivência onírica, a determinada altura, com uma
companhia romântica feminina, que desde logo nos indica que não existe nos sonhos um
refreamento da libido.

Uma das grandes tónicas nas quais assenta o estilo iconoclasta e refratário de Mário-
Henrique Leiria relaciona-se, como vimos, com o uso do humor enquanto dispositivo retórico e
discursivo, que habita o ideário surrealista, e conceito operatório relacionado com o cómico
textual. No romance-colagem leiriano encontramos sublimes laivos deste mecanismo
precisamente na confluência entre determinadas imagens e as legendas que as acompanham,
tal como acontece no momento em que o poeta combina a fotografia de um indivíduo acamado
ligado a uma máquina ventiladora antiga com a descrição «Vivia, por essas alturas, sem grandes
preocupações»328. Neste caso em particular, a ironia, enquanto elemento transtemporal que
exprime sempre um julgamento crítico através da sua vertente menos moralizante e mais lúdica
(quando comparada com a sátira), dinamiza uma desconstrução da vida em sociedade através
da multiplicação de pontos de vista: é importante aqui a referência ao senso-comum, ou seja, o
exercício irónico feito em tom humorístico sobre aquilo que são as evidências dos lugares
comuns da linguagem e do texto e o que isso representa de crueldade; neste caso, a intenção

325
Ibidem, p.80.
326
Leiria insere uma inscrição final na obra na qual cita um excerto de Sigmund Freud, que atua no cômpito
geral enquanto consolidação da vertente onírica das situações narradas, prova de que mais do que uma
experiência de autoconhecimento, o sonho produz uma «satisfação alucinatória»: «Le rêve est un moyen
de supression d’excitations (psychiques) venant troubler le sommeil, cette supression s’effectuant à l’aide
de la satisfaction hallucinatoire». LEIRIA, 2019, p.297.
327
Ibidem, p.265.
328
Ibidem, p.276.
99
do poeta dirige-se ao ethos do leitor e prende-se com o estabelecimento de uma consciência
sobre a aproximação da morte enquanto processo degradante na vida do homem. Tanto neste
caso como em outros que veremos, apercebemo-nos de que o cómico mora em várias das
associações do romance, na medida que permite um momento lúdico que oscila entre a reflexão
e o riso: em dado momento o narrador informa que vai tomar uma bebida em pleno contexto
de guerra – «não muito forte»329 –, quando na verdade a imagem que acompanha a legenda
evidencia um conjunto de frascos de medicamentos de vários tamanhos. Por vezes, o dispositivo
humorístico é acionado em contextos mais sérios, ao sermos confrontados, por exemplo, em
escala muito reduzida, com um ajuntamento de corpos humanos empilhados, cenário
degradante e penoso que remete para um contexto de guerra, pobreza e crime, onde se lê: «Em
minha casa todos dormiam bem, é claro…»330. Há aqui um pacto de leitura complexo que parte
do ethos do poeta, temos de remeter o enunciado para o sujeito de enunciação de modo a
identificar a estratégia humorística. O exercício de montagem que Leiria cria através da
aleatoriedade dos segmentos icónicos e verbais estimula a apreensão dos factos por parte do
observador, sobretudo porque cada página encerra em si um conjunto de expectativas e
sentimentos obtidos através dos contrastes, da variação de planos, ou da sensação de perigo
eminente de momentos onde o indivíduo se encontra no alto de uma montanha331, para logo
de seguida intercalar com situações mais jocosas.

De um modo geral, Pas Pour les Parents concretiza algumas das especificidades técnicas
e temáticas transversais à obra de Leiria e que participam naquela que seria a conceptualização
de uma cosmovisão tipicamente surrealista: ilustrações que apelam ao desregramento lógico da
mente humana, invertem os processos mecânicos de representação artística, potenciam uma
incursão pelo universo do sonho e do imaginário, apelam à permutabilidade das formas
humanas, e concretizam materialmente reminiscências e processos do inconsciente, que vão
desde cenários oníricos, de desconcertante profundidade, a um conjunto de imagens
hipnagógicas que habitam o imaginário e permitem uma libertação dos desejos e ideias
reprimidos. As inscrições poéticas permitem uma ampliação do sentido das imagens332, ou seja,
não atuam enquanto justificação ou explicação direta das mesmas, mas potenciam até certo
ponto o efeito desconcertante de desambientação no leitor, agravado pela natureza

329
Ibidem, p.269.
330
Ibidem, p.278.
331
Ibidem, p.281.
332
Assistimos aqui a uma repetição da mesma estratégia utilizada por O’Neill relativamente ao tipo de
interação criada entre as ilustrações e as legendas, na medida em que, como explica Luís de Moura Sobral,
estas «prolongam ou desviam o sentido das imagens sem nunca lhes servirem de explicação». SOBRAL,
Luís de (1994), «Objectos, imagens e conceitos na arte portuguesa do surrealismo», in As tentações de
Bosch ou o Eterno Retorno, catálogo da exposição, Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga, p.280.
100
diversificada dos fragmentos pictóricos: aquilo a que assistimos apresenta-se no fundo como
uma sequencialização de planos através da colagem, (semelhante ao que acontece no cinema)
que cria uma narrativa não subordinada a um continuum diegético nem a propósitos
marcadamente estéticos, livre das relações de causa-efeito entre esses planos, tal como
acontece nos sonhos, onde a experiência do tempo e do espaço se desvanece e rompe o nexo
da narração orgânica. Trata-se, no fundo, de uma consciência anti-estilo vanguardista que
ultrapassa as premissas modernistas e onde se desenvolvem o conjunto de experimentalismos
líricos e plásticos surrealistas; devemos ter aqui em consideração que, segundo Matei Calinescu,
«a vanguarda toma praticamente todos os seus elementos da tradição moderna mas ao mesmo
tempo enche-os, exagera-os e coloca-os nos mais inesperados contextos, muitas vezes
tornando-os completamente irreconhecíveis»333.

Tanto nos romances em imagens de Ernst, O’Neill ou Leiria, vemos que a narrativa ilógica
rasa as temáticas do espectro onírico, as experiências recalcadas e o transcendentalismo do
espírito convertido em matéria de autoconhecimento e atuação poética. Contudo, não podemos
deixar aqui de visitar, ainda que de forma mais compassada, outra manifestação do romance-
colagem, no que respeita a um ato de desvirtuação das premissas supracitadas: é o caso de
Timothy McVeigh – O condenado à morte, de Mário Cesariny, experiência plástica próxima dos
trabalhos pioneiros de Ernst, onde o protagonismo não é concedido à experiência onírica e
espiritual do narrador, na qual a própria linguagem adquire propriedades devaneantes, mas
remete o leitor para um facto extratextual e específico: a execução do ex-soldado americano
Timothy James McVeigh, culpado pelo atentado de Oklahoma em 1995, a 11 de junho de 2001,
que dizimou cerca de 700 pessoas. O principal traço comum aos livros do artista alemão trata-
se da manipulação plástica de fragmentos diversos, sendo que, no caso de Cesariny, esta
apropriação abrange não só imagens fotográficas e fragmentos textuais oriundos de jornais,
relativos ao tema da pena de morte e ao caso do ex-soldado americano, mas acaba por convergir
com a pintura. Contrariamente aos exemplos analisados, Cesariny pretende estimular uma
consciencialização crítica sobre os direitos humanos, ou seja, a linguagem não atua enquanto
elemento simbólico e mecanismo de ligação ao inconsciente, mas alude a uma narrativa de
acontecimentos situados no tempo e no espaço. A escolha (e posterior intervenção dos
elementos pré-selecionados) não é de todo arbitrária mas, tendo em vista um propósito muito
específico, apela ao ethos do leitor e à sua sensibilização: num documentário de 2004334,
Cesariny apresenta o livro-objeto em questão, destacando várias vezes um recorte em particular

333
CALINESCU, 1999, p.92.
334
Autografia, de Miguel Gonçalves Mendes (2004).
101
que explica as três fases constituintes do processo da morte por injeção letal: «A injeção letal
são, na verdade, três: a primeira é um sedativo, a segunda um químico que rebenta os pulmões,
a terceira um veneno que para o coração. Quando tudo corre bem, a morte acontece ao fim de
sete minutos»335. As ilustrações que se seguem são dotadas de perturbadora visceralidade:
através de manchas de tinta, focalizam as três fases do processo, mais especificamente os
efeitos que internamente sucedem no corpo do indivíduo enquanto as drogas atuam.

Todos os exemplos mencionados, com destaque para a obra de Leiria, assumem uma
rutura com propostas artísticas clássicas assentes na totalidade representativa das formas e no
pacto que a arte assume com a realidade quotidiana, na medida em que, enquanto propostas
experimentais enquadradas nos trabalhos vanguardistas de meados do século XX, assentam em
procedimentos disjuntivos que ressemantizam fragmentos em novos contextos, dando origem
a obras inorgânicas336 através dos múltiplos encaixes semânticos que a colagem pressupõe.
Peter Bürger empreende uma reflexão em torno da dicotomia totalidade versus fragmento337,
partindo da premissa de que a proposta vanguardista de lidar com o estilhaçamento do mundo
e dos objetos através da montagem está diretamente relacionada não apenas com os conceitos
de subversão e desmistificação (de certas normas estéticas), mas sobretudo com a noção de
autonomia adquirida por essas mesmas partes:

The classicist produces work with the intent of giving a living picture of the totality. And the
classicist pursues this intention even while limiting the represented reality segment to the
rendition of an ephemeral mood. The avant-gardiste, on the other hand, joins fragments with
the intent of positing meaning (where the meaning may well be the message that meaning has
ceased to exist). The work is no longer created as an organic whole but put together from
fragments (…).338

E volta a acrescentar:

In the avant-gardist work, on the other hand, the individual elements have a much higher degree
of autonomy and can therefore also be read and interpreted individually or in groups without its
being necessary to grasp the work as a whole. In the case of the avant-gardiste work, it is possible
only to a limited extent to speak of the work as a whole as the perfect embodiment of the totality
of possible meaning.339

335
CESARINY, Mário (2006), Timothy McVeigh – O Condenado à Morte, Lisboa, Perve Global, p.3.
336
O crítico literário mostra que o vanguardista, contrariamente ao classicista, encara o material como
um «sinal vazio», desprovido de significados, cabendo ao artista a competência de preencher a cadeia de
sentidos através da sobreposição de fragmentos diversos e deslocados. Cf. BÜRGER, 1984, p.70.
337
Cf. Ibidem.
338
Ibidem, p.70.
339
Ibidem, p.72-73.
102
É esta a premissa revindicada pela natureza dos romances-colagem: uma narrativa
inconclusiva assente na destruição das relações diretas de sentido entre palavras e imagens, ao
mesmo tempo que se serve da sua aproximação tipográfica (o processo constitutivo da página)
para reivindicar uma submissão da lógica entre os fragmentos à própria convivência do material
e à nova interpretação que então é gerada. Um processo que implica como vimos, uma
perturbação na dinâmica da receção literária, a qual deixa de estar dependente de um modelo
de obra orgânica subjacente ao próprio romance, onde as partes constituem a interpretação do
todo. Isto é consequência, segundo o professor Vítor M. A. Silva, das dissimetrias que ocorrem
dentro da História Literária relativamente ao conjunto de «regras do jogo» inerentes a um
género literário específico, nomeadamente as «modificações históricas, socioculturais e
estéticas sobrevenientes à produção do texto e geradoras de novas modalidades de receção»340.

Da mesma maneira que vimos estarem presentes em Pas Pour les Parents, a liberdade
e o humor – com os quais Mário-Henrique Leiria encara a vida – transparecem em toda a sua
produção poética e plástica, tanto individual como coletiva, (esta última de onde se destacam a
série de inúmeros cadavres-exquis que fez com Carlos Calvet entre 1948-49). A atuação deste
poeta e artista remete-nos não apenas para um contexto sociocultural, político e histórico muito
particular da História de Portugal, do qual o poeta parte e pelo qual a sua obra é absorvida, mas
também para a necessidade de criticar e transgredir a institucionalidade da arte na sociedade
burguesa, pela defesa de um modelo que potencie a fusão entre categorias artísticas e praxis
vitalizadora.

340
SILVA, Vítor M. A. (2009), Teoria da Literatura, Coimbra, Almedina, p.385.
103
«Até ao fim das coisas todas»: conclusão

Há em cada um de nós uma vestimenta de convenções


que cobre a equivalência de todas as nudezas.

António Pedro

A vida parecia digna de ser vivida apenas quando se


dissolvia, em cada um, o limiar entre o sono e a vigília,
permitindo a passagem em massa de figuras ondulantes,
oscilantes, e a linguagem só parecia autêntica quando o
som e a imagem, a imagem e o som, se interpenetravam
com exatidão automática, de forma tão feliz que não
sobrava a mínima fresta para inserir a pequena moeda a
que chamamos «sentido».

Walter Benjamin

Partindo da análise dos mecanismos do sonho, por sua vez com base nos moldes
introduzidos por Freud, percebemos que este é governado por leis intrínsecas e independentes,
que negam a experiência do real quotidiano percecionado exclusivamente sob as leis do
conhecimento empírico e sensório-racional, precisamente porque parte do pressuposto de que
a experiência estético-literária (adjudicada pelo Surrealismo) dá ênfase a um conjunto de
projeções fantasmáticas do indivíduo, deformadas pelo desejo, que fazem parte de uma longa
travessia de auto- (e hetero-) conhecimento. A oportunidade de incursão pela poética da palavra
e da imagem surrealistas revela-se um desafio: o vasto experimentalismo plástico e poético
destes artistas assenta, como vimos, numa quebra das dualidades básicas da mundividência e
rege-se por uma batalha constante contra a uniformização de pressupostos artísticos, presente
no posicionamento metadiscursivo que poetas e artistas plásticos fizeram questão de vincar na
passagem dos anos 40 para os anos 50. Vimos, no presente estudo, que qualquer ação produzida
no âmbito da performance artística, e que se reflita na multiplicidade de abordagens
experimentais típicas do século XX, conflui no conceito de imagem, ou seja,

mais do que a consignação das contribuições trazidas ao movimento por artistas ou dos
antecedentes pictóricos, será a definição de imagem surrealista, válida tanto para a literatura
como para as artes plásticas, que possibilitará a unificação das diferentes artes. Com a definição
da imagem surrealista deixava-se aberta uma porta para um vasto campo de experimentação

104
em que artistas e escritores transbordarão as fronteiras dos meios que lhe são próprios para se
internarem noutras linguagens.341

O motor de cataclismos impulsionado pela visão disfórica que Mário-Henrique Leiria


apresenta face ao Portugal ditatorial aponta para uma constante preocupação com as
problemáticas da «perspetiva autonómica da arte»342 e da desumanização na política e na vida
em sociedade, redefinidas através da desaprendizagem dos discursos dominantes, o estímulo
das pulsões psíquicas programadas por Breton e a inversão do ato de leitura e observação
preconizados por um surrealismo anarquizante. A pertinência de olharmos o corpus poético,
ensaístico e material deste poeta acentua-se na convergência de discursos de combate e
autorreflexividade plasticamente e poeticamente definidos que evoluem, à revelia, no frente-a-
frente com a constante tentativa de serem silenciados. Deste modo, o movimento não é
redutível a um fenómeno episódico no panorama estético-literário português, como tantas
vezes tem acontecido ao longo dos tempos, sobretudo porque, apesar de se ter afirmado
enquanto intervenção, que radicou não apenas numa frustração coletiva entre os artistas face
ao conservadorismo e impreparação de todo um sistema social e político como em posteriores
linhas de ação e entusiasmo individuais de um pequeno conjunto, o projeto surrealista
configurou-se como determinante na desmontagem de discursos políticos e artísticos
transitórios e vazios. De facto, toda a mise-en-scéne configurada pelos nossos surrealistas tomou
parte de um combate contra a política artística nacional totalmente conservadora e deficiente
desde meados dos anos 20, bem como o cerceamento de liberdade expressiva e criativa,
agravadas pela falta de crítica, mercado e público.

A imagem poética, submetida à visão dos surrealistas, é uma imagem que conduz à
invisualidade, dificulta a perceção lógica do real, na medida em que este «já não é o valor
objetivo e indiscutível como o fizera crer a ficção de linhagem realista, mas algo movediço e
ambíguo que precisa ser redescoberto em suas faces ocultas ou fraudadas»343. O andamento
poético de Leiria, na esteira dos surrealistas pregadores do erotismo e da imaginação, investe
na incomunicabilidade e anti-pragmatismo da linguagem, contrapondo a superioridade da
«palavra-invenção» à desconfiança da «palavra-depoimento»344. Deste modo, a colagem, no
conjunto da sua obra – enquanto a linguagem da beleza convulsiva por excelência e agente

341
CUADRADO/ÁVILA, 2001, p.247.
342
MARTELO, 2018, p.77.
343
COELHO, Nelly Novaes (1973), «Linguagem e ambiguidade na ficção portuguesa contemporânea»,
Colóquio/Letras, nº12, p.69.
344
Ibidem.
105
fundamental da «combustão das imagens»345 – veio introduzir no meio uma poética da
descontinuidade cognitiva, que coloca em evidência ações de rutura entre o homem e o
racionalismo, potencia novas experiências da sexualidade e subverte os limites da
representação – «é transgressão do pictórico e do matérico»346, «o mais-além da pintura»347. A
imagem reveladora procurada por Leiria através da recodificação de fragmentos dispersos da
memória visual não se resume a um simples procedimento técnico e/ou automático de criação
artística, mas adquire relevância na qualidade de metáfora aproximativa (ou associação
metafórica348) que executa encaixes semânticos de elementos apartados que se intra-
relacionam simultaneamente; dentro do panorama em análise, trata-se de uma «imagem que,
graças ao excesso de luz da explosão que provoca, ofusca no momento exato em que dá a ver,
como se fosse um buraco negro devorando a luz das estrelas»349. Vimos isto tanto nos poemas
como nas experimentações plásticas com o desenho e a collage surrealista350 – de onde se
destaca o romance-colagem Pas Pour les Parents: uma linguagem de excessos que desconstrói
a ideia de narrativa e transcende a perceção acidiosa do quotidiano através do seu
dépaysement, que assim «expõe latências e relações outras que as do mundo racional»351. Trata-
se de um procedimento poético que, como vimos, apesar de poder ser integrado na esfera da
produção verbal surrealista – nomeadamente nos casos analisados de enumeração caótica –
exige ponderação na medida em se deve manter certo distanciamento entre ambos. Por um
lado, como explica Fernando Guimarães,

O poder evocativo, a aproximação de figuras que se tornam insólitas devido a essa aproximação,
a maneira de desinserir uma imagem do seu contexto são outros tantos processos que, de certo
modo, correspondem à própria figuração poética (…). Dir-se-ia que a própria experiência literária
do Surrealismo criava as melhores condições para que se cumprisse o encontro entre a literatura
e as artes visuais.352

Por outro lado, é necessário ter em consideração, como chama a atenção Perfecto E.
Cuadrado, a particularidade técnica da colagem, bem como o uso da cola que influencia a
própria materialidade textual e o caráter marcadamente visual criado por meio do exercício de

345
Sergio Lima considera que a descrição dos sonhos, a escrita automática e a collage foram as três
grandes conquistas nas quais assentou o movimento surrealista, e que originaram, fundidas, a dita
«combustão das imagens». In A Ideia – Revista de cultura libertária, 2019, p.29.
346
LIMA, 2016, p.10.
347
Ibidem.
348
Cf. CUADRADO/ÁVILA, 2001, p.262.
349
«Do símbolo simbolista à imagem surrealista», in FRIAS, 2018, p.112.
350
Emília Pinto de Almeida chama a atenção para o facto de a colagem revelar a «condição palimpséstica»
da própria poesia. In ALMEIDA, 2016, p.91.
351
LIMA, 2016, p.80.
352
GUIMARÃES, 2003, p.99-100.
106
montagem pictórica, e que devem estar colocados em contraposição às especificidades
inerentes da própria tradição poética (as suas imbricações de metro, ritmo, léxico, etc.)353.
Indubitavelmente, a maior conquista dos surrealistas, no que à expressão lírica concerne, deveu-
se às experiências com a escrita automática enquanto experiência de perda de vigilância
cognitiva, sem que isso se assuma como um prejuízo estético; nas palavras de Eugenio Castro,
«no somos nosotros los que liberamos a las palavras, sino las palabras que nos liberan a
nosotros»354.

Vimos também que, através da sobreposição não de fragmentos menores, mas de


objetos, Leiria configurou-se como um dos artistas interessados na construção objetual (ainda
que este tenha tido um caráter episódico na sua obra), criações que distorcem a natureza
funcional dos objetos do quotidiano e que adquirem misticismo por meio das propriedades
cinéticas então geradas, e que tiveram especial destaque, junto de outros nomes, nas
exposições d’Os Surrealistas. O princípio que unifica toda a concetualização de imagem, e que
subjaz tanto a este tipo de produção, como à colagem e poesia surrealistas, trata-se do exercício
de fragmentação e subtração de elementos da realidade para tomarem parte em processos de
montagem interartística e intermedial presentes na pintura, fotografia e desenho, exercícios
visuais de ocultação e desvelamento de tensões entre o homem e o universo, cujo motor será
sempre o próprio desejo. Em certa medida, todas estas linguagens possuem em comum aquilo
que vimos ser a principal especificidade do romance-colagem surrealista relativamente às
práticas cubistas de recorte e sobreposição, e que se trata de uma dissipação das fronteiras
entre os elementos, ou, como diria María Jesús Ávila, «a impressão de unidade contribui para o
questionamento da realidade e das suas aparências e para o efeito de estranheza»355.

A articulação de uma diversidade de suportes comunicativos (materiais ou não)


confronta cada vez mais a poesia com a abertura a novos protocolos de leitura, sustentados por
propriedades intrínsecas a outras disciplinas, e é a partir daqui que presenciamos o surgimento
de novas textualidades poéticas que extravasam a qualidade puramente lírica do poema. Esta
articulação está integrada, por sua vez, numa tentativa de ampliação do campo dos estudos
literários tendo em consideração ações de ruturas e continuidades dentro do espectro
vanguardista europeu do século XX, denominador comum de diferentes ismos, especificamente
aplicado, a partir da incursão na obra de Mário-Henrique, ao contexto português ditatorial, sem
descurar das contingências por este ditadas. Como o próprio poeta afirma numa entrevista

353
Cf. CUADRADO/ÁVILA, 2001, p.304.
354
A Ideia – revista de cultura libertária, 2019, p.13.
355
Ibidem, p.79.
107
conduzida por Mário Cesariny em 1951, «Acho que a única forma de poder existir, é transformar
a atual posição da literatura para uma situação de libertação do indivíduo»356, ou seja, o poeta
nunca deixou de encarar a criação artística como forma de conhecimento privilegiado da mente
humana e meio de libertação face às amarras da sociedade burguesa, dessolidarizando-se de
pressupostos de fruição estética para fazer da arte espaço de problematização, no qual o
indivíduo se dispõe a assimilar a experiência de leitura e a experiência da visualização de objetos
corpóreos em simultâneo, ainda que isso radique numa profunda frustração expectacional.

O recurso ao humor, enquanto conceito operatório do ideário surrealista português,


sobressai no repertório leiriano como uma alavanca de contestação que marca o afastamento
deste artista heterodoxo face ao contexto onde atua, por meio da qual o absurdo irrompe (na
forma de uma linguagem de excessos) de poemas breves, (micro)contos despudorados,
convulsíveis aforismos, lampejos de nonsense e outras movimentações insólitas que orbitam
fora daquele que era o registo literário convencional – até porque «escritor» era um status que
o próprio rejeitava. Por esta razão, é cada vez mais urgente uma releitura crítica dos
pressupostos artísticos do Surrealismo português, daquelas que foram as suas conquistas e
fracassos, projetos e ruturas, e de que modo dialoga, ainda nos dias de hoje, com as travessias
estéticas que se foram sucedendo.

356
LEIRIA, 2019, p.100.
108
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118
Anexos

Figura 1: [Sem Título] (s.d.) Fundação Cupertino de


Miranda, Vila Nova de Famalicão. In MARTUSCELLI, Tania
(ed.), Obras Completas de Mário-Henrique Leiria, vol.4,
Lisboa, E-Primatur (no prelo).

Figura 2: «Almoço nas ervas» (1971), guache e tinta-


da-China sobre papel. Col. Manuel de Brito. In
MARTUSCELLI, Tania (ed.), Obras Completas de Mário-
Henrique Leiria, vol.4, Lisboa, E-Primatur (no prelo).

119
Figura 3: «Marechal de Campo» (1971), guache e tinta-da-
China sobre papel. Coleção Manuel de Brito. In MARTUSCELLI,
Tania (ed.), Obras Completas de Mário-Henrique Leiria, vol.4,
Lisboa, E-Primatur (no prelo).

Figura 4: «Manobras de Outono», (1971), guache e


tinta-da China sobre papel. Fundação Cupertino de
Miranda, Vila Nova de Famalicão. In MARTUSCELLI,
Tania (ed.), Obras Completas de Mário-Henrique
Leiria, vol.4, Lisboa, E-Primatur (no prelo).

120
Figura 5: «Dois generais dando à costa», (1971), guache
e tinta-da-China. Col. Manuel de Brito. In MARTUSCELLI,
Tania (ed.), Obras Completas de Mário-Henrique Leiria,
vol.4, Lisboa, E-Primatur (no prelo).

Figura 6: [Sem Título] (s.d.), grafite e tinta-da-China


sobre papel. Col. Manuel de Brito. In MARTUSCELLI,
Tania (ed.), Obras Completas de Mário-Henrique Leiria,
vol.4, Lisboa, E-Primatur (no prelo).

121
Figura 7: «Elipoforme Lupúlico» (1948), óleo sobre
plátex. Fundação Cupertino de Miranda, Vila Nova de
Famalicão. In MARTUSCELLI, Tania (ed.), Obras Completas
de Mário-Henrique Leiria, vol.4, Lisboa, E-Primatur (no
prelo).

Figura 8: «Escada Paranóica», (1949), Braço de


manequim, tecido e colagem sobre madeira. Fundação
Cupertino de Miranda, Vila Nova de Famalicão. In
MARTUSCELLI, Tania (ed.), Obras Completas de Mário-
Henrique Leiria, vol.4, Lisboa, E-Primatur (no prelo).

122
Figura 9: «Spoc despenhou-se de um tapete persa…»,
colagem sobre papel (s.d.). Coleção Manuel de Brito. In
MARTUSCELLI, Tania (ed.), Obras Completas de Mário-
Henrique Leiria, vol.4, Lisboa, E-Primatur (no prelo).

Figura 10: «Origem dos Sonhos Esquecidos» (1949),


colagem sobre papel. Museu Calouste Gulbenkian –
Coleção Moderna. In MARTUSCELLI, Tania (ed.), Obras
Completas de Mário-Henrique Leiria, vol.4, Lisboa, E-
Primatur (no prelo).

123
Figura 11: «Erotismo Mágico» (s.d.), colagem sobre
papel. Col. Manuel de Brito. In MARTUSCELLI, Tania
(ed.), Obras Completas de Mário-Henrique Leiria, vol.4,
Lisboa, E-Primatur (no prelo).

Figura 12: [Sem Título] (s.d.), Col. Manuel de Brito. In


MARTUSCELLI, Tania (ed.), Obras Completas de Mário-
Henrique Leiria, vol.4, Lisboa, E-Primatur (no prelo).

124
Figura 13: «Plataformas de acesso», (s.d.), colagem e
pintura sobre papel. Col. Manuel de Brito. In MARTUSCELLI,
Tania (ed.), Obras Completas de Mário-Henrique Leiria,
vol.4, Lisboa, E-Primatur (no prelo).

Figura 14: «Mecanismo de Revolução», (1948),


colagem sobre papel. Col. Manuel de Brito. In
MARTUSCELLI, Tania (ed.), Obras Completas de
Mário-Henrique Leiria, vol.4, Lisboa, E-Primatur
(no prelo).

125

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