Flores Horizontais
Flores Horizontais
Flores Horizontais
DISSERTAÇÃO
2016
UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA - PPHR
Seropédica, RJ
2016
981
S586f Silva, Claudielle Pavão da, 1987-
T “Flores horizontais”: sociabilidade,
prostituição e travestilidade na zona do
mangue (1960-1970) / Claudielle Pavão da
Silva – 2016.
123 f.: il.
Aos amigos de longa data, que trago no peito desde a graduação, obrigada pelo
carinho e pelos convites que me permitiram distrair a mente em meio ao furacão da
dissertação: Juliana Drumond, Gabriel do Nascimento, Michel dos Santos, Nelson Marques e
Gabrielle Rolim.
As dificuldades encontradas no manuseio das primeiras fontes, como foi o caso dos
Boletins de Ocorrência, foram amenizadas pela afetuosidade da funcionária Elisângela que,
desde o primeiro momento, foi prestativa e receptiva à minha presença. O café, as conversas e
a amizade se estenderam para além do arquivo.
À todas as mulheres negras incríveis que conheci nas reuniões das Intelectuais Negras,
minha gratidão. As histórias, pesquisas, trajetórias e lutas compartilhadas a cada encontro
fortaleceram a minha identidade.
De todo o meu coração, com o amor que transpassa essa encarnação, eu quero
agradecer àqueles que se importaram com a minha educação desde meus anos iniciais na
escola. Todo o amor e gratidão aos meus pais Antônio Claudio e Dalva Pavão e ao meu irmão
Antônio Claudio Jr. Essa conquista também pertence a eles. Sem a vivência em família, o
apoio e o afeto dedicados mim, eu sinceramente não sei se teria chegado até o momento de
escrever esses agradecimentos.
Por fim, à espiritualidade que, atenta aos meus chamados, orienta e energiza minha
atuação neste plano material, guardando meus caminhos e trazendo prosperidade a esta
encarnação.
RESUMO
Para além da visão estereotipada das instituições do período, o objetivo foi apresentar
a agência dos sujeitos desse processo histórico a partir de perspectivas que considerassem as
relações de gênero, classe e raça, dentro de uma perspectiva interseccional.
This research analises the strategies and experiences built by prostitutes and
transvestites at the final years of Zona do Mangue, Known Rio de Janeiro area of prostitution,
between de sixties and seventies os twentieth century. This place was marked by a repressive
attitude from the government, especially the police, that used to watch it as place featured by
criminal activities and occupied by people that belongs to the so called “dangerous classes”.
Beyond this stereotyped version from de institutions of that period, the aim was to
present the agency of people who lived this historic process from perspectives that take into
account the gender, class and race relations, in an intersectional perspective.
This investigation achieved new perspectives of prostitution and the way of live of
people who lived at Zona do Mangue. The experiences lived by prostitutes and transvestites
were analyzed from the information taken at the police reports, litigations, news and literature
produced by the sheriff Armando Pereira, of the 6ª Police Station, that took care of that region
security.
Introdução..........................................................................................................12
Capítulo I
Confinando a “mazela social”: A Zona do Mangue.......................................27
- E depois?...Personagens do Mangue e seus rastros................................................................34
- Conclusão...............................................................................................................................50
Capítulo II
Vida rubra de bordel: prostituição na Zona do Mangue...............................53
- Domésticas..............................................................................................................................66
- Conclusão...............................................................................................................................86
Capítulo III
Flores da Vida: as travestis do Mangue..........................................................88
- Conclusão.............................................................................................................................109
Conclusão.........................................................................................................111
Bibliografia.......................................................................................................117
Fontes consultadas...........................................................................................123
Introdução
O objetivo deste trabalho é analisar as estratégias e experiências de sujeitos históricos,
principalmente prostitutas e travestis, que viveram ou passaram pela Zona do Mangue nos
seus anos finais, entre as décadas de 1960 e 1970, momento em que paralelamente ocorreu o
processo de remoção e desapropriação de pessoas e casas para a construção do metrô e do
Centro Administrativo São Sebastião, um complexo de prédios que comportaria diversos
setores da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro.
Apesar das repressões e tentativas de dar fim ao baixo meretrício, a Zona do Mangue
resistiu até os anos finais da década de 19601. Depois disso, as mulheres que lá se prostituíam
migraram para uma vila, próxima à Praça da Bandeira: a Vila Mimosa. Como a Zona do
Mangue não possuía o mesmo status e peso histórico que o Palácio Monroe tinha para a
sociedade carioca2, ela e as pessoas que viviam do meretrício desapareceram durante os “anos
de chumbo” sem qualquer tentativa de reaver esse cenário na cidade, ou manter viva sua
memória.
1
MORAES, Aparecida Fonseca. Mulheres da Vila – prostituição e identidade social. 1992. Dissertação
(Mestrado em Sociologia). Programa de Pós-graduação em Antropologia e Sociologia, Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro.
2
MOREIRA, Regina da Luz. O palácio que virou memória: o Monroe e a construção do metrô carioca, polêmica
em tempos de ditadura. In. GOMES, Angela de Castro (coord.). Direitos e cidadania: memória, política e
cultura. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007. p. 233-268.
3
SIMÕES, Soraya Silveira. Vila Mimosa: etnografia da cidade cenográfica da prostituição carioca. Niterói, RJ:
EdUFF, 2010.
12
feita para chegar até o objeto de pesquisa foi o porquê de chamarem o Centro Administrativo
São Sebastião de “Piranhão”. A resposta foi: Zona do Mangue.
4
LEITE, Juçara Luzia. República do Mangue: controle policial e prostituição no Rio de Janeiro (1954-1974).
São Caetano do Sul, SP: Yendis, 2005.
5
LEITE, Gabriela. Filha, mãe, avó e puta: a história de uma mulher que decidiu ser prostituta. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2009.
6
Disponível em: http://bndigital.bn.br/hemeroteca-digital/
13
simpósios como o Desfazendo Gênero7, possibilitou maior contato com pessoas
comprometidas com a militância e produção intelectual sobre transgeneridade, travestilidade e
prostituição. Esse contato provocou sensíveis observações ao longo do texto, de modo que as
análises produzidas estivessem de acordo com as conquistas sociais, sem a perda do olhar de
historiadora.
Ainda foram utilizadas como fontes literaturas sobre o tema, como os livros de
Armando Pereira8 – delegado de polícia que atuou na Zona do Mangue, Sérgio Serafim da
Silva9, Laura Restrepo10 e o já citado de Gabriela Leite.
7
“O Seminário Internacional Desfazendo Gênero foi criado após uma troca de ideais entre algumas pessoas
pesquisadoras e ativistas ligadas aos estudos queer no Brasil. Após detectarem a dificuldade de inserir suas
outras perspectivas teóricas, conceituais e metodológicas nos eventos já existentes no país, a proposta foi a de
criar um espaço de interlocução entre as pessoas que trabalham com os estudos queer, em sua interface com os
estudos das subalternidades e pós-colonialidades. Por isso, o Seminário recebeu o nome de um dos livros da
filósofa feminista Judith Butler”. Fragmento retirado da apresentação do site do evento. Disponível em:
http://www.desfazendogenero.ufba.br/ Acesso em: 10/10/2014.
8
PEREIRA, Armando. Sexo e prostituição. Rio de Janeiro: Gráfica Record Editora, 1968.
_______________. Prostituição uma visão global. 2ed. Rio de Janeiro: Pallas, 1976.
_______________. Mulheres deitadas. 4ed. Rio de Janeiro: Pallas, 1976.
_______________. Bandidos e favelas: uma contribuição ao estudo do meio marginal carioca. Rio de Janeiro:
Livraria Eu e Você, 1984.
9
SILVA, Sérgio Serafim da. Olho de vidro: aquele que tem olhos mas não vê, ingênuo. São Paulo: Scortecci,
2005.
10
RESTREPO, Laura. A noiva escura. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
14
documentações que auxiliariam na reconstrução do cenário do Mangue e apresentariam os
sujeitos presentes nesse espaço.
Outro autor que conduziu sua pesquisa a partir da prostituição foi Luís Carlos
12
Soares , apresentando as teses médicas do final do século XIX e início do XX que
sustentaram argumentos de juristas, médicos e policiais, que tinham como objetivo resolver o
“problema” da prostituição, discutida se era ou não um “mal necessário”.
Beatriz Kushnir13, por sua vez, abordou a condição feminina ao analisar as redes de
ajuda mútua existentes entre as polacas que se prostituíram no Rio de Janeiro, no início do
século XX, período marcado pela grande entrada de judias no território brasileiro, vindas
muitas vezes do leste europeu. O estudo tem como fio condutor os laços de solidariedade
criados entre as polacas, para garantir assistência no caso de doença ou morte, assegurando
um espaço para enterrar as mulheres que não eram recebidas em cemitérios judaicos por conta
da prostituição.
Margareth Rago14, em seus estudos sobre a prostituição de São Paulo, colaborou para
a compreensão do meio da prostituição a partir de análises sobre a sexualidade feminina e a
sua representação entre os anos de 1890 e 1930. Suas contribuições foram importantes para
11
MENEZES, Lená Medeiros. Os estrangeiros e o comércio do prazer nas ruas do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Arquivo Nacional, 1992.
12
SOARES, Luis Carlos. Rameiras, Ilhoas e Polacas: A Prostituição no Rio de Janeiro do século XIX, São
Paulo, Ática, 1992.
13
KUSHNIR, Beatriz. Baile de Máscaras: Mulheres Judias e Prostituição. As Polacas e suas
Associações de Ajuda Mútua. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
14
RAGO, Margareth, Os Prazeres da Noite: Prostituição e Códigos da sexualidade feminina em São Paulo
(1890-1930). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
15
pensar sobre a condição da mulher meretriz e as relações construídas a partir da moralidade
vigente do período. O olhar dicotômico sobre a mulher que se prostituía, como vítima ou
heroína, indicava os papéis sociais esperados para o gênero feminino15.
15
Ibidem, p.24
16
SCHETTINI, Cristiana. Que tenhas teu corpo: uma história social da prostituição no Rio de Janeiro das
primeiras décadas republicanas. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2006.
17
Ibidem, p. 50.
18
ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da
Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. 212p.
19
CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940).
Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2000.
20
CAULFIELD, Sueann. O nascimento do Mangue: raça, nação e o controle da prostituição no Rio de Janeiro,
1850-1942. Tempo, Rio de Janeiro, nº9, p.43-63. Disponível em:
http://www.historia.uff.br/tempo/artigos_dossie/artg9-4.pdf Acesso em 15/08/2012.
16
mulheres que por lá trabalhavam como prostitutas, assim como sinalizou a dinâmica das
relações entre a polícia, o Estado e a prostituição no que diz respeito a leis para a repressão
das meretrizes e de proxenetas.
Outro trabalho, desta vez mais próximo do recorte temporal desta dissertação, é o de
Juçara Leite21. A historiadora teve por tema a república do Mangue entre os anos de 1954 e
1974, quando as próprias meretrizes ficaram responsabilizadas pelo gerenciamento das casas
de prostituição da região para que não existisse mais a prática da exploração do sexo por
caftens e cafetinas. A polícia determinou a expulsão e prisão dos donos das casas de
prostituição e a administração desses locais ficou a cargo de uma prostituta eleita – que
durante seu “mandato” não exerceria a prostituição e receberia o dinheiro para pagar as contas
do estabelecimento.
21
LEITE, Juçara Luzia. Op. cit.
22
SIMÕES, Soraya Silveira. Op. cit.
23
MORAES, Aparecida Fonseca. Op cit.
17
um de seus artigos24, em que analisava a busca por direitos sexuais de prostitutas de Porto
Alegre, nos anos 2000, o antropólogo apresentou a necessidade de pensar a prostituição como
uma forma de trabalho. E essa maneira de trabalhar envolvia uma diversidade de
reorganizações a serem feitas nas relações presentes na prostituição e fora dela.
Definida pelo senso comum como a profissão mais antiga do mundo, a longevidade da
prostituição, muitas vezes, era confundida com a permanência de suas significações culturais,
sociais e econômicas. Todavia, os estudos mais recentes sobre o tema se opuseram a essa
perspectiva e trouxeram abordagens que procuravam apresentar a multiplicidade de
significados que a prostituição recebia, de acordo com o espaço e tempo histórico em que ela
acontecia.
Assim, o meretrício foi visto como uma ação do indivíduo que, em determinado
momento de suas vidas, foi levado a produzir suas condições materiais de existência a partir
dessa atividade. E como qualquer outra forma de prestação de serviços, a prostituição foi
apresentada como um trabalho, repleto de singularidades, dificuldades e exploração
financeira.
No entanto, o caráter sexual dessa atividade gerou uma série de implicações que
perpassaram a moralidade social e o controle dos corpos femininos, assim como a baixa
qualificação escolar e a pobreza de mulheres em condição de risco social. Os debates
produzidos ao longo do século XX, no Brasil, sobre a prostituição, tinham o propósito de
esconder ou acabar com o meretrício26.
26
RAGO, Margareth. Op. cit. p. 156
27
CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940).
Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2000. p. 34.
28
RAGO, Margareth. Op. Cit. p. 133.
19
longo do século XX por juristas, jornalistas, médicos sanitaristas e responsáveis pela
segurança pública colocavam as meretrizes na marginalidade social e espacial.
Dessa forma, a própria visão da prostituta sobre sua identidade era influenciada pelos
mecanismos sociais de controle. Ou seja, os discursos que as vitimizavam ou as percebiam
como indivíduos sem valor moral, afetivo e social eram aderidos pelas próprias meretrizes. Às
vezes por estratégia, outras pela reprodução dessa perspectiva sobre a própria condição.
Entretanto, a visão produzida por pessoas fora da prostituição não era capaz de dar conta da
diversidade de situações, relações e afetividades envolvidas na construção de ser prostituta.
Esse breve panorama dos estudos sobre prostituição e Zona do Mangue, nos faz
perceber que, para que seja possível uma melhor compreensão do cotidiano e das relações
existentes na região, ela não pode ser entendida tão somente através dos encontros para a
prática da prostituição feminina, como é lembrada pelos cariocas mais antigos e analisada
pela produção acadêmica investigada.
Logo, a prostituição feminina, em sua maneira mais ampla, será abordada ao longo da
dissertação, mas, para além disso, a análise das demais atividades econômicas existentes,
mesmo que sumárias, se constituiu em oportunidade ímpar de melhor dimensionar
solidariedades, conflitos e vínculos sociais tecidos na teia de relações que compunham a Zona
do Mangue.
Antes de dar início ao trabalho realizado com as fontes, foi interessante considerar
alguns aspectos teóricos que possibilitaram as formas pelas as quais as fontes foram
questionadas.
20
tinha como objetivo a produção de uma teoria29, parece conveniente, se não importante, partir
de seu ponto de vista para compreender os costumes construídos na Zona do Mangue.
Situações de conflito (o cliente que não pagava pelos serviços sexuais prestados30, as
brigas entre frequentadores, a busca por novas casas de meretrício para trabalhar devido as
constantes desapropriações provocadas pelas reformas urbanas) possuíam um código de
conduta, não escrito em lugar algum, mas criado pelos atores sociais que trabalhavam,
moravam ou frequentavam o Mangue. Os costumes estavam atrelados à convivência e à
experiência daqueles que faziam parte daquele espaço.
Para entender esse mesmo código, seguimos Thompson, que defende ser relevante
perceber o papel da oralidade na construção dos costumes, uma vez que eram repassados por
essa via, principalmente quando envolviam o aprendizado de ofícios que não faziam parte do
ensino formal31.
Muitas das pessoas que exerciam atividades no baixo meretrício não tinham educação
formal alguma. Aliás, algumas dessas atividades eram – e ainda são – consideradas
criminosas, e por serem assim consideradas, a forma comum de ensinar os procedimentos
cotidianos da atividade aos mais jovens era por meio do compartilhamento de experiências.
Mesmo que não fosse considerado crime, como era o caso da prostituição, o que havia
era a troca de experiência entre as pessoas que se prostituíam ou tinham alguma ligação com
essa ocupação.
29
THOMPSON, E. P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, pp. 203-266.
30
O jornal Última Hora divulgou uma nota no dia 9 de dezembro de 1963 que José Bispo Zetori foi cercado por
populares na Zona do Mangue e levado até ao 6º Distrito Policial após esfaquear o peito de Silvio Ferreira de
Amorim. A vítima trabalhava na rua Pinto de Azevedo como porteiro de um prostíbulo. O assassino estava no
Mangue para pagar por sexo. Sobre o ocorrido, o acusado justificou que havia sido perseguido após sair da casa
de prostituição sob a alegação de não ter pagado pelos serviços da meretriz que o recebera. Ao perceber que seria
agredido, sacou seu canivete e feriu o porteiro Silvio Amorim. Entretanto, José Bispo tentava justificar seu ato
afirmando não ter consumado a relação sexual com a meretriz. Pelo depoimento do entrevistado do jornal,
percebemos que apesar dele ter ido ao quarto de “Chiquita”, e lá permanecer em suas tentativas de consumar o
ato, José Bispo não conseguiu alcançar o prazer. Chiquita, obviamente, cobrou o valor combinado com José.
Biblioteca Nacional. Anormal morto no Mangue. Rio de Janeiro. Última Hora, p.2, 09 de dezembro de 1963.
31
THOMPSON, E. P. Op. cit. p.18.
21
A relação entre o baixo meretrício e a criminalidade foi incluída em nossos horizontes
de pesquisa por se tratar de uma região marginalizada pelas autoridades e pela sociedade
carioca.
Nos primeiros contatos com as fontes, percebi que o discurso ali presente não se
referia tão somente à prostituição feminina, mas também a outras formas vistas como ilícitas.
Suspeitei que essas outras atividades poderiam ser fonte de renda para um público mais
extenso, tornando-se parte da economia da Zona do Mangue e da prostituição que lá havia.
Pode-se dizer que, mesmo entre aqueles que viviam no mundo da transgressão à lei, existiam
normas socialmente estabelecidas.
Os policiais que tinham algum tipo de ligação com o Mangue (reprimindo, investindo
e facilitando as atividades locais), eram tão atores sociais desse espaço marginalizado pelo
Estado quanto as prostitutas, os traficantes, os apontadores de jogo do bicho e os
frequentadores dos bares e casas de prostituição. O que demonstra, novamente, a
complexidade das relações ali estabelecidas.
A perspectiva de observar a polícia como mais um ator social da zona não tem como
objetivo colocá-la como vilã ou mocinha da história, mas problematizar sua atuação e
observar que há uma multiplicidade de interesses e manifestações, presentes nas relações de
poder que integravam o cenário estudado.
32
Período iniciado a partir de 1954, quando o então secretário de polícia decidiu por expulsar cafetinas e
cafetões das casas de prostituição, para dar fim ao lenocínio. No entanto, a prostituição continuou, mas
gerenciada pelas próprias prostitutas que se revezavam na administração das casas.
33
LEITE, Juçara Luzia. República do Mangue: controle policial e prostituição no Rio de Janeiro (1954-1974).
São Caetano do Sul, SP: Yendis Editora, 2005.
34
CAULFIELD, Sueann. O nascimento do Mangue: raça, nação e o controle da prostituição no Rio de Janeiro,
1850-1942. Tempo, Rio de Janeiro, nº 9.
22
Os elementos da ponta do sistema, os policiais que conviviam com o dia-a-dia da
população, buscavam estabelecer um sistema de convivência possível com os
dirigentes que os empregavam e com os grupos sociais onde trabalhavam e, mais
que isso, viviam. De seu ponto de vista, questões como prostituição ou jogo não
deviam ser levadas tão a sério, sendo parte de um cotidiano classificado pelo menos
como um mal necessário. (...) Além disso, eram importantes ocasiões onde estes
pequenos funcionários públicos podiam demonstrar o seu poder, distribuindo justiça,
protegendo amigos, e criando teias de relações sociais nas quais teriam alguma
influência, ainda que bastante limitada – era o lugar da construção e afirmação das
pequenas autoridades locais.35
Sendo assim, a participação desses agentes do Estado nas atividades do Mangue podia
mostrar que os policiais, de alguma forma, representavam uma autoridade que poderia
legitimar um costume, justamente por conhecê-los e, em determinados momentos, exercê-los.
Conduzir até a delegacia uma prostituta que fazia escândalo em frente a um bar, deixar que
dois homens lutassem por uma dívida, cobrar das donas das casas um valor para não evitar
batidas policiais eram maneiras de reconhecer os costumes do Mangue e legitimá-los.
A prostituição nas ruas era caracterizada pelo risco de exposição a situações perigosas.
Por isso, ter alguém que garantisse alguma proteção, durante o exercício da função, era uma
maneira de garantir o recebimento pelos serviços prestados e/ou evitar violências físicas
35
BRETAS, Marcos Luiz. As empadas do confeiteiro imaginário. Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, p. 7-22,
jan./jun. 2002, p. 16.
36
Rufião é quem explora a prostituição a partir de uma relação afetiva com a prostituta. Na maioria das vezes o
rufião é o amásio ou marido da mulher, que “cuida” do dinheiro que ela recebe na prostituição. A ação do rufião
é entendida como crime de lenocínio, pois existe a exploração da prostituição.
23
perpetradas por clientes fixos e enciumados por saber que a prostituta recebia outros homens
em seu quarto, ou pelos apaixonados que desejavam materializar a letra de Odair José e
prometiam tirá-las “desse lugar”37.
O meretrício, nesta pesquisa, foi entendido como sexo obtido através da troca por
dinheiro, logo, um trabalho. Na prostituição há uma prestação de serviço em que se paga para
ter o prazer sexual. Todavia, não há como desconsiderar que as emoções e os sentimentos
estivessem entranhados naquele comércio.
(...) os eventos violentos estão diretamente ligados à história dos envolvidos e sua
teia de relações. Neste contexto, os acontecimentos violentos eram, em certas
circunstâncias, compreendidos e até legitimados, mesmo quando praticados pelos
trabalhadores policiais. A incompreensão e a atribuição do “motivo fútil” vinha de
cima, do discurso dos setores moralizadores da elite.38
Partindo desse ponto de vista, foi possível entender que as motivações para os delitos
eram intrínsecas aos costumes compartilhados pelos próprios sujeitos do Mangue. Os boletins
de ocorrência deixavam claro que algumas brigas aconteciam em momentos de forte emoção,
por vezes entre pessoas que já não se davam bem, após muitos copos de cerveja ou
envolvendo a disputa por mulheres ou clientes. Deste modo, os enfrentamentos tinham
motivos que, para os envolvidos, eram legítimos, pois se tratava de um embate acerca de
regras compartilhadas e reconhecidas pelas pessoas que conviveram na Zona do Mangue.
O fato da prostituição ter sido associada à mulher, não queria dizer que apenas as
mulheres se prostituíam. Em algumas fontes foi possível observar a presença de homens que
exerciam o papel feminino, o que apresentou ao estudo a ampliação do conceito de
prostituição.
37
LEITE, Gabriela. Filha, mãe, avó e puta: A história de uma mulher que decidiu ser prostituta. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2009, p. 85
38
BRETAS, Marcos, op. cit. p. 20.
39
Segundo a definição de Rafael França, “as travestis são, portanto, esses sujeitos que, pelas normas de sexo-
gênero deveriam atuar representando papéis sociais considerados masculinos, mas que recusaram para si essa
determinação social fundada no biológico (XY), e investiram na elaboração de uma feminilidade”. Ver:
SANTOS, Rafael França Gonçalves dos. As aparências enganam?: a arte do fazer-se travesti. Curitiba: Appris,
2015. P. 51.
24
e de experiências, principalmente no que tange a prostituição – foi importante para sugerir
novas formas de debater e pensar o meretrício, pois a historiografia se direcionava somente às
mulheres prostitutas.
Portanto, foi uma escolha política usar o termo travestilidade ao invés de travestismo,
assim como homossexualidade e não homossexualismo porque o uso do sufixo “ismo” indica
patologia. Sendo assim, essa pesquisa entende que as diferentes formas de viver a sexualidade
e a identidade de gênero não são patologias, mas sim uma característica da constituição dos
indivíduos.
Assim como a seleção do artigo feminino para tratar das travestis, uma vez que ser
travesti é uma das diferentes formas de viver a mulheridade40. Além disso, abdicar o uso do
artigo masculino é ler e reconhecer de forma respeitosa a identidade de gênero das travestis
que fazem uso de nome social.
De todo modo, esse estudo considera as múltiplas formas pelas quais as pessoas
pertencentes a essa minoria se denominavam e entendiam que essas variações ficavam
restritas aos indivíduos com vivências de opressões devido ao gênero e à sexualidade, pois
dentro desses grupos a maneira de se chamarem ou os adjetivos entendidos como
preconceituosos ou pejorativos são ressignificados.
40
O conceito de mulheridade compreende todos os aspectos em torno das diferentes formas de experienciar o ser
mulher, no que tange ao gênero, excluindo assim, as restrições determinadas para o sexo biológico. Dessa forma,
a mulheridade evoca a construção social do feminino.
25
No primeiro capítulo, observaremos como a Zona do Mangue se constituiu em um
baixo meretrício, os impactos das políticas públicas mais repressivas aos grupos presentes e
sua resistência enquanto um espaço marginalizado durante todo o século XX. Além disso,
foram analisadas trajetórias de personagens de modo que compreendêssemos que perfil e que
atividades estavam presentes no Mangue.
A construção das narrativas, bem como a análise das fontes que baseiam tanto o
segundo quanto o terceiro capítulos foram influenciadas pelo trabalho de Natalie Zemon
Davis41. Dessa forma, entendemos que a reconstrução das trajetórias dos atores do mangue
têm um tom ficcional ancorada, porém, em uma extensa lista bibliográfica e de fontes
históricas que procuraram entender e nos informar sobre o cotidiano dos atores dessa região.
A proximidade do recorte temporal desta pesquisa com o tempo presente nos levou a
preservar a identidade dos indivíduos apresentados nas fontes. Dessa forma, será mantido
apenas o primeiro nome dos personagens, salvo os casos de nomes de fácil identificação, que
serão trocados.
Boa leitura!
41
DAVIS, Natalie Zemon. O retorno de Martin Guerre. Rio de Janeir: Paz e Terra, 1987.
26
Capítulo I
Sobre a diferenciação entre estes locais, todos indicados pelas autoridades como
destinados a encontros sexuais por um determinado tempo, Cristiana Schettini enfatiza que
O motivo para as expulsões das mulheres desses locais concentrava-se na alegação que
as ruas eram muito movimentadas, uma vez que faziam parte do trajeto do bonde45.
42
CAUFIELD, Sueann. O Nascimento do Mangue: nação e controle da prostituição no Rio de Janeiro, 1850-
1942. Tempo, nº 9, 2000. p. 48.
43
SCHETTINI, Cristiana. “Que tenhas teu corpo”: uma história social da prostituição no Rio de Janeiro das
primeiras décadas republicanas. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2006. p. 70
44
Ibidem, p. 71
45
Ibidem, p. 79
27
Indivíduos incautos, com suas esposas e filhas não formavam um público compatível com a
presença das meretrizes nas janelas.
Inicialmente, a presença das mulheres na Cidade Nova foi vista pela população em
geral como uma consequência da ação do Estado para a “higienização” do centro do Rio. As
famílias da região imaginaram que seria algo temporário46. No entanto, as mulheres foram
ficando e outras mais chegando, espalhando suas presenças nas ruas, bordéis e bares.
46
Ibidem, p. 79
47
RAGO, Margareth. Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo (1890-
1930). 2ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008. p. 50.
28
A historiadora Lená Medeiros expôs, em seu trabalho48, a preocupação do governo
brasileiro em gerar processos de deportação de estrangeiros que atuavam como caftens no
Brasil, incentivada pelo tratado internacional antitráfico de escravas brancas de 1904, fruto da
pressão dos países de origem destas mulheres.
Com o Mangue afastado das ruas centrais do Rio, o contingente de prostitutas cresceu
e formou uma espécie de área própria para a atividade já nos anos 1920. A “higienização da
cidade” fez com que essa região abrigasse muitas mulheres, entre elas as estrangeiras que
marcaram a Belle Époque.
Instruída para “limpar” as áreas por onde sua alteza iria excursionar, a polícia fechou
o cerco e manteve presas as prostitutas de classes baixas, sob alegação de vadiagem,
até o final da visita real, amontoando-as depois nos bordéis das nove ruas
entrecruzadas do Mangue.50
48
MENEZES, Lená Medeiros. Os estrangeiros e o comércio do prazer nas ruas do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Arquivo Nacional, 1992.
49
CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação do Rio de Janeiro (1918-1940).
Campinas, SP: Editora da Unicamp, 200. p. 111
50
CAULFIELD, Sueann. O Nascimento do Mangue: nação e controle da prostituição no Rio de Janeiro, 1850-
1942. Tempo, nº 9, 2000. p. 44.
29
O encaminhamento das meretrizes para a Cidade Nova, por policiais, foi influenciada
pelas teorias regulamentaristas51 que marcaram o início do século XX. Essas teorias
defendiam a existência de locais próprios para a prostituição, uma vez que esse “mal
necessário” à sociedade não seria extinto.
Mesmo com a ação da polícia baseada nas teorias regulamentaristas, o governo não se
posicionava sobre a prostituição. Chefes de polícia exigiram a elaboração de leis que
legitimassem suas atuações. Com isso, as brechas da legislação deram liberdade para o poder
policial agir com autoridade, além de permitir que as prostitutas criassem formas de driblar o
controle a que estavam submetidas. Para Sueann Caulfied,
51
Segundo estudiosos do tema, como Amando Pereira, Cristiane Schettini e outros, a teoria regulamentarista
seria uma forma de observar a prostituição e criar ações para dar conta dessa questão. De acordo com os
regulamentaristas, a prostituição era um “mal necessário”, e por isso não poderia ser proibida. Entretanto, as
prostitutas tinham que ficar confinadas nas chamadas “casas de tolerâncias” onde a prostituição era aceita. Esse
tipo de visão sobre a prostituição foi questionada pelos chamados abolicionistas, grupo que considerava errado
esse confinamento das prostitutas, e usavam o argumento que isso aumentava a proliferação de doenças, como
sífilis, por manter as mulheres em ambientes fechados.
52
Prostituição pelas ruas e calçadas.
53
CAULFIELD, Sueann. O nascimento..., op. cit., p.53.
30
Margareth Rago, ao analisar os estudos de Evaristo de Moraes, apresentou a posição
anti-regulamentarista do jurista, que atentava para o fato de
Dessa forma, ficava evidente aos defensores dessa vertente que, além da exposição a
doenças venéreas, as moças tinham a saúde bastante debilitada em função do alcoolismo. Ou
seja, as prostitutas que trabalhavam em suas próprias casas ou com rendez-vous55 tinham
maior liberdade na escolha dos seus clientes, além de não serem obrigadas a consumir álcool
para aumentar a lucratividade dos prostíbulos.
Outra questão apontada por esses médicos dizia respeito à injustiça que recaía sobre os
ombros das moças de vida fácil, apresentadas à sociedade como culpadas pela disseminação
de doenças pelas cidades. Se a prostituição acontecia a partir do consentimento de duas partes,
uma que pagava pelo serviço e outra que o prestava, parecia-lhes injusto que as mulheres
fossem as únicas responsáveis pelas mazelas decorrentes das relações sexuais indecentes. O
jurista Evaristo de Moraes afirmava que:
a prostituição não poderia ser considerada crime, e que as meretrizes, portanto, não
poderiam ser vistas como “desclassificadas”, ou “vagabundas”, pois sua ação era
“bilateral” e não “unipessoal.56
Como falado anteriormente, tal discussão perpassou décadas, sendo recriada, com
novas roupagens, em momentos cujo tema prostituição tornava-se um problema público,
54
RAGO, Margareth, Op. Cit, p.153.
55
Encontro marcado com clientes.
56
SCHETTINI, Cristiana. Que tenhas teu corpo... op. cit. p.154
31
noticiado na mídia, forçando um posicionamento do Estado. Vemos tal situação em vários
momentos na história da prostituição na Zona do Mangue.
No entanto, Armando Pereira enfatizou que, apesar da ideia dos abolicionistas frente a
dos regulamentaristas lhe parecer generosa, urgia encontrar uma maneira ideal para adequar a
condição da prostituição ao meio social. Era necessário encontrar um equilíbrio entre a
liberdade do exercício do meretrício e a ordem social. Esta ordem só seria possível com o
controle policial dessas regiões.
Dessa maneira, eram os policiais quem decidiam se uma prostituta deveria ser presa, e
essa decisão perpassava as condições criadas a partir dos acordos que envolviam meretrizes,
comerciantes, policiais e até delegados. Todavia, para que essas negociações favorecessem a
prostituição, elas dependiam dos contextos políticos.
Passada a ditadura de Vargas, os bairros da Zona Sul estavam com diversos hotéis e
apartamentos destinados a encontros com prostitutas, como ressaltou a pesquisa de Sueann
Caulfield sobre a migração das prostitutas principalmente para Copacabana61.
Com esse breve histórico da Zona do Mangue, pudemos perceber sua formação
enquanto um espaço plural, habitado, preferencialmente, pelas classes populares. Passando
por uma série de intervenções por parte das autoridades, a prostituição sobreviveu e se firmou
naquela região, tornando-a conhecida e atraindo frequentadores. Compre agora olharmos mais
atentamente para as pessoas ligadas a essa localidade e para a dinâmica das relações por elas
estabelecidas.
60
PEREIRA, Armando. Op. cit. p. 66
61
CAULFIELD, Sueann. O Nascimento do Mangue: nação e controle da prostituição no Rio de Janeiro, 1850-
1942. Tempo, nº 9, 2000.
62
PEREIRA, Armando. Op. cit. p. 137
63
Ibidem, p. 138
33
E depois? ...Personagens do Mangue e seus rastros
A observação dos personagens que davam vida à Zona do Mangue foi possível,
primeiramente, a partir da análise dos boletins de ocorrência da 6ª Delegacia de Polícia,
responsável pela região da atual Cidade Nova. Esses boletins foram encontrados no Setor de
Microfilmagem da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, localizado no prédio onde,
anteriormente, funcionava o Instituto Médico Legal, na Rua do Lavradio. Neste setor existem
microfilmes que armazenam boletins de ocorrência de diversas delegacias do estado do Rio de
Janeiro, assim como livro tombo e outros registros administrativos.
Devido aos limites de tempo da pesquisa, foi necessário que a análise se concentrasse
apenas nos boletins de ocorrências que, por sua vez, foram analisados a partir de uma
amostragem: a pesquisa focou os anos 1969, 1971, 1973, 1975 e 1977. Destes, foram
transcritos os boletins dos meses de maio a setembro.
34
No entanto, a Zona do Mangue não foi descrita da maneira imaginada. Poucas vezes
os termos “Zona do Mangue”, “baixo meretrício”, “prostituta” ou “meretriz” foram
encontrados nas ocorrências. Foi necessário recorrer a outros recursos como mapas das ruas e
subjetividades do discurso policial para identificar elementos importantes para a construção
da pesquisa.
De qualquer maneira, nos concentramos nas entradas “lesão corporal dolosa”, que
tinha especificado o tipo de agressão ou elemento usado para tal, e “vadiagem em flagrante”,
que surpreendeu pela constância nos boletins nos anos e meses analisados. Com menor
regularidade, também foi possível analisar os “furtos”, “remoção de cadáver” e um caso de
“adultério”.
Mostrada parte do percurso que seguimos, vamos às minhas questões. Afinal, quais
personagens zanzavam na Zona do Mangue entre as décadas de 1950 e 1970, quando a
prostituição foi expulsa da região? Quais seus ofícios e interesses naquelas ruas? Que
comércios poderíamos encontrar lá? De que maneira as pessoas lidavam com a repressão? De
que forma a repressão atuava sobre suas vidas? Que histórias nos contam aqueles indivíduos?
Na busca por respostas, analisei diversos casos ocorridos no baixo meretrício e registrados em
boletins policiais, ou noticiados em jornais.
35
Essa relação entre as detenções por vadiagem e o meretrício ficou mais clara quando
levamos em consideração o motivo pelo qual a meretriz se encaixava no perfil da vadia: a
dificuldade em se identificar como alguém que desempenhava uma função que, se não era
proibida, também não contava com a anuência das autoridades, por conta da reprovação moral
que pesava sobre o exercício de tal atividade.
Segundo, pois a população que habitava aquela região compunha o perfil tido pela
polícia como os potenciais suspeitos. Nesse ponto, é importante fazermos um breve histórico
sobre esse tipo de contravenção.
A vadiagem já era assunto nos códigos criminais do século XIX, e percorreu boa parte
do século XX como forma de deter indivíduos que “ameaçavam” a integridade da sociedade.
Qualificados como “classes perigosas”64, os vadios eram detidos pelos policiais e conduzidos
à delegacia quando não portavam algum documento que comprovasse qualquer vínculo
empregatício, ou residência fixa. A justificativa para a repressão da vadiagem era que
significava “o ato preparatório do crime”65.
Essa repressão, segundo Sidney Chalhoub, foi desencadeada a partir da libertação dos
escravos, que passaram a circular pelas cidades como libertos. A fim de garantir a proteção
das propriedades privadas e apresentar um novo olhar sobre o trabalho – que na sociedade
escravagista era mal visto – discursos sobre a importância do trabalho para honrar os
indivíduos passaram a ser proferidos durante a República66. No Código Penal de 1890,
art.399, a contravenção do vadio e do capoeira era descrita como o ato de
Deixar de exercitar profissão, ofício, ou qualquer mister em que ganhe a vida, não
possuindo meios de subsistência e domicílio certo em que habite; prover a
64
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle
Époque. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2008. p. 76.
65
Ibidem, p.75
66
Ibdem, p.68.
36
subsistência por meio de ocupação proibida por lei, ou manifestamente ofensiva da
moral e dos bons costumes67.
Não trabalhar dentro das condições e formas reconhecidas pelo Estado é permanecer
à margem do exercício da cidadania e, portanto, à margem da convivência social.
Além disso, a ausência de trabalho traz de volta a pobreza, agora sinônimo de
inferioridade porque resultado de uma opção pelo ócio (...).69
Se o trabalho é um dever social, todo aquele que não trabalha é um doente, porque é
um antissocial.70
O início das obras para a construção da avenida que ligaria o Centro até a Zona Norte
da cidade também corroboraram para que os bordéis fossem fechados, uma vez que a Avenida
Presidente Vargas passava pela Zona do Mangue. Em 1942, uma nota no jornal Diário de
67
SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. A prisão dos ébrios, capoeiras e vagabundos no início da Era republicana.
TOPOI, v. 5, n. 8, jan.- jun. 2004, pp. 138-169.
68
GOMES, Angela de Castro. Ideologia e trabalho no Estado Novo. In. PANDOLFI, Dulce (org.). Repensando
o Estado Novo. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getulio Vargas, 1999. p. 53-72.
69
DUARTE, Adriano Luiz. Cidadania e exclusão: Brasil 1937-1945. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1999. p. 104.
70
Ibidem, p.105.
71
PEREIRA, Armando. Op. cit.
37
Notícias afirmava que uma portaria do tenente-coronel Alcides Gonçalves Etchegoyen, chefe
de Polícia, faria uma campanha enérgica contra o lenocínio, prendendo todos os exploradores
e
Ali por 1945, voltou o regime de tolerância. A polícia fechava os olhos, as casas
velhas voltavam a se encher de cortinas.73
72
Biblioteca Nacional. Periódicos. Enérgica campanha contra os exploradores do lenocínio. Diário de Notícias,
Rio de Janeiro, p. 9, 8 de novembro de 1942.
73
PEREIRA, Armando. Op. cit. p.66.
74
Ibidem, p. 137
75
Ibidem, p. 138
76
BRASIL. Decreto nº 46.981, de 8 de outubro de 1959. Promulga, com o respectivo Protocolo Final, a
Convenção para a repressão do tráfico de pessoas e do lenocínio, concluída em Lake Success Nova York, em 21
de março de 1950, e assinada pelo Brasil em 5 de outubro de 1951. Diário Oficial, Brasília, DF, 4 de setembro de
1959. Disponível em: http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=112661 Acesso em:
20/12/2015.
38
passou a ser abolicionista com relação à prostituição e a polícia. Teoricamente, deveria ter um
posicionamento menos agressivo em relação às prostitutas.
A partir da década de 1960, após o golpe que instaurou uma ditadura civil-militar no
Brasil, a repressão policial foi intensificada. A maioria dos estudos históricos sobre esse
período observou com maior afinco a coibição pela violência somente a grupos políticos,
como estudantes, intelectuais e políticos. Todavia a pobreza, a negritude, a prostituição e a
homossexualidade também eram subversivos, sendo tratados como tais pela polícia. A
diferença foi que o primeiro grupo deixou de ser torturado após a redemocratização77.
O delito de vadiagem foi amplamente utilizado para retirar das ruas, assim como
torturar, punir e encarcerar pobres, prostitutas, negros, homossexuais e travestis. Em uma
reportagem publicada pelo jornal O Globo, prostitutas perseguidas pelas forças armadas
exigiam reparação econômica e anistia após sofrerem com torturas e prisões durante a
ditadura78.
O agravante para esse período foi o conjunto de obras que reformou toda a Cidade
Nova, com as obras do metrô e a construção do Centro Administrativo São Sebastião, um
complexo destinado à administração pública da Prefeitura da Cidade de Rio. Curiosamente,
com o fim da Zona do Mangue após as obras, o prédio foi homenageado pela memória afetiva
dos cariocas com a alcunha de “piranhão”.
Dessa forma, o pretexto para as prisões se tornou uma maneira de identificar o perfil
das pessoas que, apesar de não terem envolvimento com grupos políticos contrários ao
governo ditatorial, eram perseguidas, torturadas e estupradas por agentes do Estado79.
77
O historiador Luciano Oliveira, em sua publicação sobre tortura no Brasil, observou a dinâmica presente na
categoria “torturáveis”, uma vez que existiram grupos que só eram passíveis de tortura em determinados
contextos políticos, diferentemente das classes mais pobres. Ver: OLIVEIRA, Luciano. Do nunca mais ao eterno
retorno: uma reflexão sobre a tortura. São Paulo: Brasiliense, 2009.
78
ÉBOLI, Evandro. Prostitutas vítimas de perseguição na ditadura reivindicam anistia, Jornal O Globo, Rio de
Janeiro, 21 de setembro de 2013. Disponível em: http://oglobo.globo.com/brasil/prostitutas-vitimas-de-
perseguicao-na-ditadura-reivindicam-anistia-10082257 Acesso em: 28/09/2013.
79
VIEIRA, Helena. Onde estavam as travestis durante a ditadura?, Revista Forum, 05 de abril de 2015.
Disponível em: http://www.revistaforum.com.br/osentendidos/2015/04/05/onde-estavam-travestis-durante-
ditadura/ Acesso em: 15/04/2015.
39
Nos meses analisados dos anos de 1969, 1971 e 1973, as prisões por vadiagem se
mostraram bastante recorrentes. Nos anos de 1975 e 1977, essas ocorrências não se repetiram
com tanta frequência. A vadiagem está na Lei das Contravenções Penais, de 1941, e faz parte
do Capítulo VI das Contravenções Relativas à Polícia de Costumes. Por se tratar de uma
contravenção, a penalidade era leve. A prisão simples, neste caso, podia variar de quinze dias
a três meses. No art. 59 é possível ler a definição da vadiagem:
No caso de Angela Maria, presa em 1973, natural de Minas Gerais, solteira, 19 anos,
sem residência ou profissão, constava que ela foi detida em uma esquina da Rua Machado
Coelho às 15 horas82. No mesmo ano, José dos Santos, pardo, 18 anos, sem qualquer
informação sobre residência ou ocupação, foi levado por policiais às 15h, momento em que
caminhava na Rua Pereira Franco83. Dias depois da prisão de José, o baiano Antônio Barbosa,
preto, de 23 anos, sem profissão, residente em Queimados, foi detido por policiais às 16h30
na rua Carmo Neto84.
80
BRASIL, decreto-lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941. Lei das Contravenções Penais, Art. 59. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3688.htm Acesso em: 20/03/2014.
81
SCHETTINI, Cristiana. Op. cit. pp. 57-63.
82
Arquivo da Polícia Civil, Setor de microfilmagem, Boletim de ocorrência da 6ª Delegacia policial:
06/08/1973, rolo ano 1973.
83
Arquivo da Polícia Civil, Setor de microfilmagem, Boletim de ocorrência da 6ª Delegacia policial:
10/07/1973, rolo ano 1973.
84
Arquivo da Polícia Civil, Setor de microfilmagem, Boletim de ocorrência da 6ª Delegacia policial:
12/07/1973, rolo ano 1973.
40
não se mostrou o suficiente quando percebemos as características comuns entre os presos por
vadiagem que investigamos. Não foi possível observar se a argumentação de desemprego era
utilizada pelos advogados dos supostos vadios ou vadias.
O que ficou evidente foi que a prisão em flagrante precisava ser registrada em um
horário que as pessoas estariam em seus trabalhos, para justificar a vadiagem. Contudo, a
ausência de documentos que comprovassem vínculo empregatício não aparece como a única
justificativa para indiciar as pessoas por contravenção. Os locais em que foram efetuadas as
detenções, a cor da pele, o sexo, o gênero e as residências – quando apresentadas – parecem
indicar que questões raciais, sociais e de gênero estão intrínsecas às relações entre os atores
sociais da Zona do Mangue, dos quais uma parcela é parte da Polícia.
Logo, a prisão por vadiagem, em si, não tinha somente o objetivo de penalizar quem
não trabalhava e praticava o ócio, mas também para garantir a segurança das demais pessoas,
pois quem aparentemente não tinha meios legais de obter renda era perigoso para a sociedade.
A partir dessa ideia, foi interessante pensar em como a polícia traçou estratégias para
lidar com alguns criminosos ou suspeitos. A prisão por vadiagem, em alguns momentos, se
mostrou como um caminho seguido pela polícia para prender pessoas sem mandato, mas que
eram suspeitas de participar de algum crime. Pode-se entender como uma estratégia policial
para lidar com alguns indivíduos da Zona do Mangue.
85
Lélia Gonzales, intelectual e professora da PUC-RJ, ao escrever sobre a força de trabalho negra no Brasil, no
final da ditadura civil-militar, já sentia o racismo dentro dessas relações e, com isso, afirmou que “a indiferença e
o cinismo continuam sendo a tônica em face desse racismo institucionalizado que tem passado intacto pelos
diversos regimes políticos que existiram neste país. Indiferença por parte daqueles que reduzem a questão racial
a uma questão de classe pura e simples, reforçando indiretamente o mito da democracia racial na cabeça dos
mais ingênuos. Cinismo, por parte daqueles que negam a existência da discriminação racial pelo fato de nunca
terem ouvido falar nela.”
GONZALES, Lélia. Para as minorias, tudo como dantes. Lua Nova, São Paulo , v. 1, n. 4, p. 32-33, mar. 1985 .
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
4451985000100011&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 20/10/2014.
41
É importante considerar que a polícia também compunha o cenário multifacetado do
baixo meretrício carioca e, assim, conhecia as personagens e suas movimentações nas ruas do
Mangue. Isso não quer dizer que eles não intercediam de maneira arbitrária durante as prisões,
mas sim que muitas vezes encontravam-se tão ligados aos problemas do baixo meretrício
quanto os demais atores sociais. Entretanto, seus pequenos poderes enquanto representantes
do Estado faziam diferença86.
86
BRETAS, Marcos Luiz. As empadas do confeiteiro imaginário: a pesquisa nos arquivos da justiça criminal e a
história da violência no Rio de Janeiro. In: Acervo. v. 15. n. 1. Rio de Janeiro, 2002.
87
DAMASCENO, Caetana Maria. Segredos da boa aparência: da “cor” à “boa aparência” no mundo do
trabalho carioca, 1930-1950. Seropédica: Ed. da UFRRJ, 2010, p.57.
42
trabalho formal era uma transgressão, uma contravenção às leis do Estado. Nas prisões por
vadiagem, os indivíduos eram conduzidos pelos policiais até o Instituto Médico Legal, para
que lá fosse atestada sua saúde e condição para o trabalho e, assim, através do atestado
médico indiciá-lo por vadiagem.
Outra contravenção também presente nas ruas do baixo meretrício era a aposta no
Jogo do Bicho. Em 1969, o senhor Otaviano Freire foi surpreendido por policiais quando
realizava apostas em uma travessa, próxima a Rua Júlio do Carmo88. Anos mais tarde, Jorge
Pires e Ezino dos Santos, apontadores do mesmo jogo, foram conduzidos à 6ª Delegacia
quando recolhiam as apostas na Rua Machado Coelho89.
Os casos envolvendo o Jogo do Bicho não eram tão frequentes quanto os de vadiagem.
Uma das hipóteses é que a prisão de apontadores e o recolhimento do material necessário para
realizar as apostas implicavam na exposição de indivíduos com grande influência na política e
na polícia. No início da década de 1960, alguns jornais fizeram diversas denúncias acerca da
proximidade de relação entre os chamados “banqueiros do jogo do bicho”, também
responsáveis pelo lenocínio na Zona do Mangue, com políticos e autoridades de segurança90.
88
Arquivo da Polícia Civil, Setor de microfilmagem, Boletim de ocorrência da 6ª Delegacia policial: lesão
corporal dolosa, 26/07/1969, rolo ano 1969.
89
Arquivo da Polícia Civil, Setor de microfilmagem, Boletim de ocorrência da 6ª Delegacia policial: lesão
corporal dolosa, 22/05/1975, rolo ano 1975.
90
Conferir: Diário Carioca, 29 de dezembro de 1960, p.10. “O ódio”. Biblioteca Nacional; Última Hora, 15 de
junho de 1961, p.10, “Delegado vai processar governador por calúnia”. Biblioteca Nacional; Correio da Manhã,
22 de junho de 1961, p. 5, “Ex-delegado da DCD não compreendeu campanha do governo”. Biblioteca Nacional.
91
Arquivo da Polícia Civil, Setor de microfilmagem, Boletim de ocorrência da 6ª Delegacia policial: lesão
corporal dolosa, 02/05/1975, rolo ano 1975.
43
Outro caso ocorreu com um militar que, em 23 de maio de 1975, comunicou ter sido
agredido, às 16h30, em frente ao edifício onde morava na Rua General Caldwell, 276. Luiz
dos Santos, solteiro, com 40 anos de idade, apontou como seu agressor José Roberto da Silva
Ferreira, morador do mesmo prédio. Apesar de parecer um conflito entre vizinhos, ele ocorreu
nas proximidades do Mangue92.
Nas palavras do escrivão: “mas não é crível, pois são 4 ferimentos a bala, o que
diminuiria bastante sua capacidade motora”. Posteriormente a vítima foi encaminhada ao
Hospital do Andaraí93.
Talvez o tenente tivesse criado um álibi, para justificar os tiros que recebeu em outro
local, mais próximo do Hospital de Bonsucesso. O importante foi perceber a interferência, no
texto, do ponto de vista do escrivão, que não apenas descreveu o crime, mas também pontuou
se a história era crível ou não.
Em 1971, um policial militar se viu envolvido em uma briga que resultou em lesão
corporal dolosa, com agressão a soco. O eletricista Ary da Silva, preto, desquitado, 41 anos,
que trabalhava na Secretaria de Educação e Cultura, lotado na Biblioteca Estadual situada à
Av. Presidente Vargas foi apresentado à 6ª DP junto ao servente da Secretaria de Educação e
Cultura, lotado no Instituto de Belas Artes, Jorge de Souza e Silva, pardo, solteiro, 36 anos e a
92
Arquivo da Polícia Civil, Setor de microfilmagem, Boletim de ocorrência da 6ª Delegacia policial: lesão
corporal dolosa, 23/05/1975, rolo ano 1975.
93
Arquivo da Polícia Civil, Setor de microfilmagem, Boletim de ocorrência da 6ª Delegacia policial: roubo,
25/05/1975, rolo ano 1975.
44
Otacílio Jorge de Oliveira, preto, solteiro, 36 anos, almoxarife do Serviço de Segurança
Pública do Estado da Guanabara. Os três foram acusados de agredir a socos o policial militar
Jorge Carlos de Carvalho, na Rua Pinto de Azevedo, próximo a Av. Presidente Vargas94.
O boletim não trazia mais informações além dos envolvidos na briga, mas apresentam
características interessantes sobre quais categorias de trabalhadores frequentavam o Mangue,
sua cor, seu estado civil e idade. Informou também que, nem sempre, a condição de policial
militar inibia rusgas e agressões, inclusive aos próprios membros da corporação.
Em 1973, havia uma nota de jornal sobre um crime ocorrido na praia da Barra da
Tijuca em que o mesmo Jorge Otacílio de Oliveira com o mesmo endereço fornecido pelo
boletim de ocorrência de 1971, foi encontrado morto, com sinais de espancamento após
participar de uma pescaria com sete amigos e se envolver com algumas garotas que estavam
na praia acompanhadas de quatro rapazes96. Caso seja o mesmo Otacílio, foi possível perceber
em sua trajetória um histórico de sucessivos conflitos em momentos que seriam destinados ao
lazer.
94
Arquivo da Polícia Civil, Setor de microfilmagem, Boletim de ocorrência da 6ª Delegacia policial: lesão
corporal dolosa, 11/06/1971, rolo ano 1971.
95
Biblioteca Nacional, Periódicos, Diário de Notícias, Rio de Janeiro, p.5, 10 de agosto de 1971.
96
Biblioteca Nacional, Periódicos. Diário de notícias, Rio de Janeiro, p. 18, 09 de janeiro de 1973.
45
Rocha, solteiro, pardo, 34 anos, vendedor, natural do Estado que carregava em seu nome, que
havia conhecido Ana Lúcia momentos antes da perseguição, na Zona do Mangue97.
José e Ana Lúcia tinham acertado a saída a um hotel pelo valor de vinte cruzeiros, mas
na esquina da Rua Pinto de Azevedo, dois ou três assaltantes o abordaram e o imobilizaram
com uma gravata para que os seus bens fossem retirados de seus bolsos. Depois disso, os
assaltantes fugiram em direção à Av. Presidente Vargas, momento em que José passou a
correr atrás deles. Quando conseguiu alcançar os assaltantes, José foi empurrado por eles para
dentro do Canal do Mangue e, nesse momento, Gelson e Milton interviram agarrando o menor
e a prostituta.
O jornal Diário de Notícias noticiou o caso98, e manteve a história de que Ana Lúcia
não tinha nenhum envolvimento com os indivíduos que assaltaram José Pernambuco.
Segundo Ana, eles estavam apenas bebendo e conversando, e o assalto ocorreu quando
seguiam para a Praça da Bandeira. O jornal cita que o responsável por empurrar o vendedor
era o menor de idade.
É importante considerar que este relato sobre o fato foi feito por Ana Lúcia, que
afirmou ter corrido junto de José atrás dos assaltantes, negando qualquer participação no
roubo. O menor José Luiz confirmou as declarações de Ana Lúcia e confessou ser o
responsável por aplicar a gravata na vítima, acrescentando ainda que seu comparsa era
conhecido como “Pelanca”, revelando que não eram 3 elementos, mas dois os envolvidos no
roubo. Além disso, afirmou ser amigo de Ana Lúcia e que ela nada sabia sobre o assalto. O
caso terminou de forma trágica, visto que só às 13h40 do dia seguinte fora encontrado no
Canal do Mangue o cadáver de José Pernambuco.
Esse caso trouxe diversos elementos que possibilitaram a apuração das identidades que
compunham o cenário do baixo meretrício. Um ponto importante a ser considerado é a relação
próxima entre a prostituta e o menor que comete o assalto, pois na declaração de José Luiz ele
afirma desconhecer que Ana Lúcia acompanhava José Pernambuco. Era possível que
existissem acordos sobre quais pessoas poderiam ser assaltadas ou furtadas, justamente
porque essas ações implicariam na situação da prostituta que acompanhava o cliente. Ou
então, a mulher poderia estar envolvida no assalto e confirmar a história dela era importante
97
Arquivo da Polícia Civil, Setor de microfilmagem, Boletim de ocorrência da 6ª Delegacia policial: roubo
seguido de morte, fato anti-social, 05/07/1975, rolo ano 1975.
98
Biblioteca Nacional, Periódicos. Assaltado e atirado no Canal do mangue. Diário de Notícias, Rio de janeiro,
09 de julho de 1975.
46
para a garantia de sobrevivência nesse espaço. Não se trata de uma busca pela verdade dos
fatos, mas sim de apuração de códigos de conduta inerentes aos sujeitos que habitavam e/ou
trabalhavam no Mangue.
Ainda sobre esse caso, José Pernambuco da Rocha foi o mesmo nome encontrado
entre os detidos por vadiagem no ano de 1973. Nesse registro, sua idade é de 32 anos,
residência na Rua Noronha Santos, nº37, pardo, e sua prisão realizada na Rua Marquês de
Pombal com Júlio do Carmo99. A idade, a cor e o nome coincidiram com a fornecida no
boletim de ocorrência e na notícia sobre sua morte após o assalto. Esse cruzamento de
informações forneceu diversas possibilidades para imaginar a trajetória de José Pernambuco.
A mais coerente foi que ele era, de certa maneira, conhecido e conhecedor da Zona do
Mangue.
Sobre a interferência do soldado e do estudante, ela pode indicar que a presença deles
naquele espaço de socialização era comum uma vez que se tratavam de homens jovens, que
tinham como forma de lazer frequentar e se divertir em bares com bebida barata e mulheres
livres para negociar algumas horas da noite.
Em janeiro de 1975, uma nota no jornal afirmava que “a zona de baixo meretrício viu,
na madrugada de ontem, uma verdadeira cena de bang-bang”100. Tratava-se de um tiroteio
envolvendo vários indivíduos, entre eles um servente, o dono de um bar da região e um
policial militar, além de um homem que fugiu após efetuar disparos com uma arma de fogo.
O “bang-bang” aconteceu entre as ruas Pinto de Azevedo e Pereira Franco, depois que
dois homens se desentenderam. Segundo o Diário de Notícias, muitas prostitutas correram em
busca de abrigo durante a troca de tiros, confirmando a relação existente entre o Mangue e a
prostituição. Além disso, o foragido, que teria acertado e matado o servente, além de balear o
99
Arquivo da Polícia Civil, Setor de microfilmagem, Boletim de ocorrência da 6ª Delegacia policial: Vadiagem
flagrante, 26/06/1973, rolo ano 1973.
100
Biblioteca Nacional, Periódicos. Matou um, baleou servente e comerciante. Diário de Notícias, Rio de
Janeiro, 12 de janeiro de 1975.
47
PM e o comerciante, era frequentemente visto na região e suspeitava-se que fosse um
explorador de prostitutas.
Por se tratar de um baixo meretrício, parecia estranho que cafetões fossem meros
desconhecidos, ou passassem despercebidos por entre os frequentadores da região. O mais
provável era que o silêncio sobre a identidade do fugitivo ocorria por conta do poder local que
ele representava naquela região. Seja por medo ou por empatia, quem assistiu ao tiroteio e o
viu matar o servente não quis relatar ao jornal ou aos policiais que apuravam o homicídio,
quem era o desconhecido. As conseqüências de uma delação poderiam ser dolorosas.
A presença de policiais militares nas ruas da Zona do Mangue não se restringia apenas
à solução de problemas com frequentadores e moradores. Muitos soldados, sargentos e cabos
mantinham relações estreitas com os comerciantes da região, que poderiam ser donos das
casas de prostituição ou de bares. Aproximar-se de algum membro da corporação poderia
resultar em privilégios, como por exemplo a tranquilidade para administrar negócios ilícitos,
sem as batidas policiais que afastavam a freguesia.
Existem muitos trabalhos sobre prostituição que observam a relação entre prostitutas e
policiais, ressaltando a arbitrariedade dispensada no tratamento às mulheres, haja vista a falta
de clareza quanto a abordagem por lenocínio. Apesar de ocuparem posições aparentemente
opostas, policiais e prostitutas conviviam na mesma região e isso resultava na criação de redes
de sociabilidades. O que não significava, de modo algum, que não havia repressão policial,
espancamento de mulheres e abuso de poder nas prisões de prostitutas.
48
arbitrárias.101 O habeas corpus era uma delas, uma vez que por diversas vezes as prostitutas
eram impedidas de transitarem pela cidade ou – no período analisado pela autora, entre os
séculos XIX e XX – se mostrarem nas janelas e portas das casas de prostituição102.
101
SCHETTINI, Cristiana. Op.cit. p.81.
102
Ibidem, p. 32
49
Conclusão
O foco desse primeiro capítulo foi apresentar as diversas nuances que contribuíram
para a formação da Zona do Mangue, assim como compreender a maneira pela qual as
políticas públicas interviram na dinâmica da prostituição e das demais atividades atreladas a
ela. Para tanto, após mostrar os diferentes contextos históricos pelos quais o baixo meretrício
resistiu, foram analisadas algumas das identidades presentes nesse espaço a partir da
construção e desconstrução das relações sociais.
Na década de 1950, uma nova forma de observar a prostituição foi implementada pelo
Comissário Navarro: a República do Mangue. Em um contexto de debates e conferências
internacionais para discutir o lenocínio e tráfico de pessoas, o baixo meretrício passou a ter
suas casas administradas pelas próprias prostitutas, sem a cafetinagem para lucrar sobre o
trabalho das mulheres.
Com os nomes das ruas onde os conflitos aconteciam, tínhamos o endereço dos locais
de concentração de bares e casas de prostituição. Além disso, foi possível identificar que
trabalhadores frequentavam o Mangue e, em alguns casos, saber o motivo da briga que
poderia ser assalto, quebra de acordo entre prostituta e cliente, suspeita de furto ou acerto de
contas.
Dessa forma, as análises construídas a partir dos boletins e dos jornais foram
indispensáveis para observar a maneira como os atores sociais do baixo meretrício
estabeleciam suas relações pessoais e profissionais, em meio aos conflitos que muitas vezes
tinham desfechos violentos e trágicos.
51
Feita esta apresentação dos atores e costumes do Mangue, passemos a analisar, nos
próximos capítulos, a dinâmica existente na atividade que era a marca da Zona do Mangue, a
prostituição.
52
Capítulo II
Como acontecia todos os dias, Nina esperou o cair da tarde para tomar seu banho,
perfumar o corpo e pôr as roupas de trabalho. Era uma quinta-feira e, para esse dia, ela
escolheu um vestido azul, um azul turquesa de cetim, presente de um namorado. O vestido era
bastante usado, revelava as condições da vida de quem batalhava no Mangue. Lembrou-se da
primeira vez que o usara, era comprido demais, então pediu que uma colega fizesse a bainha.
O decote suave e a bainha feita bem antes do joelho a deixavam bonita. Quando estava pronta
para sair de casa, ao se olhar no espelho, lamentou as vestes tão maltrapilhas103.
Tia Rosita era uma senhora que vivia sozinha há alguns anos em um sobrado na rua
Presidente Barroso. De origem polonesa, seu nome verdadeiro não constava como Rosita, mas
era assim que a conheciam na zona. Disso Nina não sabia. O que sabia era que ela havia sido
dona de uma das casas de prostituição da República do Mangue104, demolida tempos depois, e
onde vivera quando ainda criança, trazida para trabalhar como doméstica105.
Nina chegou bem nova à cidade do Rio, tanto que mal se recordava dos pais. Morou
na Zona Norte do Rio no primeiro ano que chegou de Santos, e depois foi trabalhar com uma
estrangeira que alugava quartos no Mangue, limpando os cômodos onde os clientes se
encontravam com as prostitutas. Assim que começou a “botar corpo” (seios desenvolvidos,
menstruação e pelos pubianos) e a atrair a atenção dos homens que frequentavam a casa,
Rosita tratou de iniciar a jovem no meretrício.
103
Arquivo do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro. Serviço de Gestão de Arquivos Permanentes
(SEGAP). Processo Criminal, nº 4081/69, 26ª Vara Criminal, homicídio.
104
Ibidem, “Dados Pessoais e Antecedentes”, folha 24.
105
Ibidem, “Termos de Declaração”, folha 8, verso.
53
demolida. Rosita foi viver junto a uma irmã muito doente, fora do Mangue, mas os cuidados
que ela necessitava não estavam a seu alcance financeiro e físico. Então, a irmã foi para uma
clínica de repouso, e Rosita se viu só.
Aos 82 anos, D. Rosita chamou uma das meninas que agenciava para viver em sua
casa, mas o quarto seria alugado. O objetivo não se restringia apenas a aumentar a renda com
o aluguel do cômodo. A idosa também estava em busca da companhia de alguém que fosse
conhecido. Por ser uma mulher sozinha e vivida, sabia das rasteiras que poderia levar, ainda
mais na idade em que estava.
Antes a polonesa convidara Grey, seu cuteleiro e grande amigo, para dividir a casa.
Eles se conheciam havia cerca de 20 anos, e em todo esse tempo Grey nunca tinha visto D.
Rosita receber visitas de amigos e parentes106. Ela não recebia ninguém além dele em sua
casa. Mulheres como ela costumavam envelhecer sozinhas, só recebiam amparo no pós-
morte, no momento da divisão da herança. Mas Grey recusou o convite de sua amiga. Ele
tinha sua própria vida, mesmo que simples, mas à sua maneira107.
Meses depois soube por Tia Rosita que ela arranjara alguém para ficar com o quarto.
Era Nina sua nova companhia. Segundo a polonesa, tratava-se de uma moça muito gentil que
sempre a agradava com os cuidados da casa. Além disso, a conhecia desde menina, quando
ajudava as faxineiras a esfregar o chão da casa no Mangue.
Apesar de viver da prostituição havia muitos anos, Nina não se sentia à vontade com o
que fazia. Em vários momentos era tomada por crises de ansiedade. Imaginava a reação de
seus pais, que a tinham enviado ao Rio para ter uma vida melhor aos 11 anos, ao saber que ela
se deitava com vários homens em uma noite para garantir o sustento. Tinham dias que depois
106
Ibidem, “Termos de Declarações”, folha 9.
107
Idem.
54
de muitos copos de cerveja, chorava e se arrependia da vida em que estava. Mas não saía do
Mangue. Continuava a passar pelas ruas, se debruçar nas janelas e conduzir seus clientes para
os quartos da casa.
Nina encontrou alguns namorados que prometeram tirá-la daquele lugar, mas no fim
eles acabavam nos braços de outras fazendo as mesmas promessas e partindo seu coração.
Então ela esbravejava contra a vida, contra todos que a colocaram nessa condição de vítima,
vítima das escolhas dos outros e das suas108.
A convivência com Tia Rosita foi se tornando cada vez mais difícil, à medida em que
os interesses das duas se chocavam. A polonesa sabia dos ganhos nas ruas e exigia um valor
maior pelo quarto. Nina considerava injusta a mudança dos valores e se sentia explorada. Em
muitas madrugadas ela chegava bêbada em casa e, irritada com a cobrança da Tia Rosita, se
negava a pagar além do combinado. A dona da casa insistia que Nina fosse para o Mangue
todos os dias e a prostituta se cansava de ser explorada109. A rixa entre elas tornava-se cada
vez mais frequente110.
Certa vez, na mesa de um dos bares onde os homens costumavam beber antes de
saírem para seus encontros amorosos, Nina confidenciou a um namorado que sabia da
existência de um cofre guardado no quarto de Rosita. Ela achava que lá havia uma alta
quantia em dinheiro guardada. Magoada, disse com convicção que boa parte lhe pertencia,
pois era fruto de seu trabalho no Mangue. Nessa noite, sentiu-se furiosa e enganada pela
mulher que a tinha colocado na casa só para enriquecer às suas custas. Compartilhou umas
três garrafas de cerveja bem gelada, e já sentindo-se embriagada, resolveu voltar para seu
quarto na casa da polonesa111.
Às 3h30 da manhã, a polícia que fazia ronda recebeu um chamado para comparecer a
rua Presidente Barroso. Tinha ocorrido um assassinato em um sobrado, no quarto ao lado do
de Nina. Era o corpo de Tia Rosita sobre sua própria cama, vestido com uma camisola de
cetim. Em meio à colcha bordada que cobria sua cama, seu sangue cobria seus cabelos, rosto e
fronha. Os policiais procuraram a arma do crime e não encontraram. Não suspeitaram de
latrocínio. A casa tinha diversos bens e nada tinha sido mexido. A porta não estava
arrombada. Logo levantaram a hipótese que o assassino era alguém conhecido da falecida.
108
Ibidem, folha 25, “Dados Pessoais e Antecedentes” folha 25.
109
Ibidem, “Laudo de Exame de Sanidade Mental”, folha 70.
110
Ibidem, “Das Investigações Preliminares”, folha 37.
111
Ibidem, Termo de declarações”, folha 33.
55
Nina precisou depor na delegacia, foi ela quem encontrou o corpo. Em seu primeiro
depoimento apontou Grey como o assassino. Ele era manicure de Rosita, poderia estar
interessado no dinheiro que ela guardava. Enquanto depunha, jornalistas avisados do caso
procuravam saber com os policiais o enredo da história, na esperança de garantir uma nota.
A tensão provocada pela atitude da polícia perturbou o discurso de Nina e fez com que
ela decidisse levar os policiais até o sobrado para lhes mostrar como matou Tube. O delegado
conseguiu a confissão. Ao ser questionada sobre a mentira contada aos policiais, ela
respondeu que teve medo que as pessoas soubessem de sua vida como prostituta, de
associarem sua imagem a do meretrício. Ao longo do depoimento disse que preferia a prisão a
voltar para as ruas do Mangue. Seria de fato repulsa pela prostituição?
Esse caso se destacou frente aos demais processos devido à história das personagens
se cruzarem com a história do próprio Mangue. A década de 1920 foi o momento em que o
baixo meretrício recebeu um grande número de mulheres para ocupar as casas de prostituição.
Dentre elas, como nos apresentaram os estudos de Cristiana Schettini, predominavam as
negras e as polacas, diferente de outros locais onde a prostituição atendia indivíduos mais
abastados:
56
(...) a Lapa, o Catete e a Glória passaram a ser considerados pontos de concentração
de uma prostituição chic e moderna, de francesas e mulatas com clientela de nível,
enquanto o Mangue abrigaria as polacas, russas e brasileiras negras112.
Dessa forma, as brasileiras negras se prostituíam por valores abaixo dos cobrados
pelas mulatas, além de oferecerem seus serviços em baixos meretrícios. Já as mulatas,
ocupavam a Lapa e cobravam um valor mais elevado. Ou seja, quanto mais claro o tom da
pele, mais caro podia se cobrar pelos serviços, assim como havia a possibilidade de transitar
em espaços considerados mais nobres, ou elitizados. Segundo Caulfield
Apesar de a documentação não citar o ano de entrada de Tube no Brasil, nem informar
se ela passou por outros países logo depois de sair da Romênia, sabemos que há pelo menos
112
SCHETTINI, Cristiana. Que tenhas teu corpo: uma história social da prostituição no Rio de Janeiro das
primeiras décadas republicanas. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2006.p. 84.
113
RAGO, Margareth. O caminho de Buenos Aires. In _____. Os prazeres da noite: prostituição e códigos de
sexualidade feminina em São Paulo (1890-1930). 2ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008.
114
CAUFIELD, Sueann. O Nascimento do Mangue: nação e controle da prostituição no Rio de Janeiro, 1850-
1942. Tempo, nº 9, 2000.
115
Ibidem, p.48
57
20 anos trabalhava na república do Mangue – tempo que Grey, seu cuteleiro, afirmou ser seu
amigo e trabalhar para ela no Mangue116. Além disso, Nina teria entrado na prostituição
através de Tia Rosita (pseudônimo de Tube), assim que saiu da infância e foi presa aos 36
anos117. Sendo assim, podemos inferir que a idosa assassinada trabalhou no Mangue como
prostituta e cafetina, tendo mantido uma casa na República do Mangue.
Apenas em meados de 1968, Nina foi morar com a cafetina. A razão disso foi que a
irmã doente de Tube, Golda, também conhecida como Olga, foi levada para uma clínica de
repouso. Dessa forma, Tube pode acomodar Nina no quarto que antes era de sua irmã.
Segundo Nina, ela não era apenas inquilina do sobrado. Tia Rosita a pressionava para
que todos os dias fosse até o Mangue se prostituir e, assim, repassar parte do dinheiro para
ela. Então, para a meretriz, ela também tinha um papel de cafetina.
O cuteleiro ainda afirmou que a meretriz chegava à casa de Rosita embriagada, irritada
e a tratava mal. Um comportamento diferente daquele que ela tinha assim que passou a ocupar
o quarto que era de Olga. Visto que a senhoria já tinha sido cafetina de Nina em uma das
casas do Mangue, não foi difícil imaginar que ela tenha de fato a pressionado para que
faturasse mais e pudesse, assim, ficar com uma maior quantia dos programas.
116
Arquivo do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro. Serviço de Gestão de Arquivos Permanentes
(SEGAP). Processo Criminal, nº 4081/69, 26ª Vara Criminal, homicídio, “Termos de declarações”, folha 9,
verso.
117
Ibidem, folha 7, verso.
118
LEITE, Gabriela. Filha, mãe, avó e puta: a história de uma mulher que decidiu ser prostituta. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2009, P. 64.
58
quando as mulheres se encontravam vulneráveis, inexperientes e necessitadas de um lugar
para morar e trabalho para se manter. Nessas situações, em sua maioria iniciais, a cafetina
apresentava uma imagem próxima à maternal, o que foi bem analisado por Don Kulick
quando investigou a prostituição de travestis em Salvador119.
No entanto, essa relação entre as donas das casas e as prostitutas também era marcada
por conflitos e diferença de interesses. Principalmente quando considerado o fato de a cafetina
tirar seu lucro a partir do trabalho de outra pessoa. Em muitas casas, era repassado às
cafetinas uma parte referente a cada encontro com o cliente. O que seria condizente com a
tarifa para uso das dependências do prostíbulo. Dependendo da quantia repassada e do valor
do programa, a prostituta recebia bem menos do que havia cobrado aos clientes. O que podia
ser entendido como exploração.
119
KULICK, Don. Travesti: prostituição, sexo, gênero, e cultura no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz,
2008. Esse trabalho será melhor explorado no próximo capítulo.
120
O Observatório da Prostituição é um projeto de extensão do Laboratório de Etnografia Metropolitana-
LeMetro/IFCS-UFRJ, que tem como objetivo fazer circular sentidos variados da prostituição e promover o pleno
reconhecimento dos direitos das prostitutas à cidade e ao trabalho sexual. Ver:
http://www.observatoriodaprostituicao.ifcs.ufrj.br/quem-somos/
121
PISCITELLI, Adriana. Exploração sexual, trabalho sexual: noções e limites. In. SILVA, Daniele Andrade da
[et al] (orgs.). Feminilidades: corpos e sexualidades em debate. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013. p.147 – 164.
122
Ibidem, p. 157, 158, 159. Nesse artigo, Piscitelli exemplifica essa situação a partir da fala de uma das
prostitutas que se sentia explorada porque não podia utilizar o próprio celular para pedir a própria comida, uma
vez que era a gerente quem fazia esses pedidos e a entrevistava considerava os preços bastante elevados. Além
disso, a pesquisa problematizou os diferentes sentidos dados à exploração na prostituição. Esses sentidos mudam
de acordo com o lugar onde havia a fala sobre o assunto. Segundo os abolicionistas, aqueles que se
posicionavam a favor do fim da prostituição livre, a prostituição era exploração sexual porque é através dela se
obtém prazer por meio da sexualidade de outra pessoa. Para OIT (Organização Internacional do Trabalho), em
um relatório global de 2005, a exploração sexual ocorre quando crianças ou adolescentes exercem atividades
relacionadas a prostituição ou quando pessoas adultas, mulheres ou homens, entram na prostituição de maneira
involuntária ou ingressam por vontade própria mas não podem sair. A autora ainda complementou explicando
que o termo prostituição forçada tem sido utilizado para marcar a diferença com as pessoas que entraram na
prostituição voluntariamente, definindo a situação da trabalhadora que tem sua liberdade cerceada. E por último,
as mulheres que reivindicam para si a condição de trabalhadoras observam que os problemas referentes ao seu
trabalho como prostituta tem a ver com a exploração econômica.
59
De qualquer maneira, a representação da dona da casa era de uma mulher experiente
na prostituição, conhecedora tanto dos artifícios e meios de garantir o retorno dos bons
clientes, quanto dos caminhos para um bom investimento do que ganhara como meretriz.
Muitas cafetinas foram prostitutas no passado e, por isso, entendiam do ofício, sabiam dos
problemas a serem enfrentados e dos prazeres desfrutados.
Por isso, muitas prostitutas exerciam sua atividade a partir do trottoir. Traduzida ao pé
da letra como “caminhar”, o trottoir era o tipo de prostituição que acontecia nas ruas,
calçadas. As mulheres ocupavam trechos de ruas e lá ofereciam seus serviços aos homens que
passassem a pé ou de carro. Depois de definido os valores e o que aconteceria, os clientes
eram conduzidos à um quarto ou um local vazio onde o encontro seria consumado. O que
poderia ser dentro do carro também.
Essa prática foi bastante reprimida pela polícia, principalmente porque as autoridades
entendiam que a prostituição estava invadindo um espaço que não era próprio para essa
atividade. Por conta disso, homens passaram a cuidar de determinadas ruas, tal como um
segurança das prostitutas, a fim de garantir que os policiais não importunassem as mulheres
enquanto trabalhavam. Além de zelarem pelas mulheres, também asseguravam o pagamento
do programa. Havia cliente que não pagava pelo serviço prestado. A ele o rufião cobrava caro.
O nome dado a esses homens que prestavam o serviço de segurança às prostitutas era
rufião. Todavia, sabe-se que muitas prostitutas tinham uma relação um tanto conturbada com
123
LEITE, Gabriela. Op. cit. p. 66.
60
esses “seguranças” que muitas das vezes as exploravam, forçando essas mulheres a terem
mais clientes do que elas desejam ou suportam124.
(...) são uma espécie de empresários, que por vezes também funcionam como
amantes (menos do que geralmente se crê) e como guarda costas da prostituta. 125
A cafetina não podia ser compreendida somente como uma liderança das mulheres que
se prostituíam, assim como não cabia apenas o título de empresária. A prostituição, assim
como qualquer trabalho, guardava suas singularidades. Havia particularidades desde a forma
como as mulheres chegavam a esse ofício até a maneira que iriam desempenhá-lo.
Portanto, não cabia entender a prostituição a partir de perspectivas que não abrangiam
o modo como o exercício do meretrício acontecia. As regras e costumes criados, recriados,
ressignificados e desconstruídos dentro de espaços onde a prostituição era a principal
atividade condiziam com as experiências vividas e aprendidas no meretrício. Logo, o objetivo
era reconhecer que cada categoria de trabalho tinha suas especificidades126, inclusive a
prostituição.
Nem todas as mulheres se sentiam seguras procurando por clientes nas ruas, como no
trottoir. E tantas outras não queriam ter que pagar por sua segurança a um homem, como
rufião ou cafetão, além daquelas que precisavam manter o anonimato. Por isso, as casas de
prostituição gerenciadas por cafetinas eram para algumas mulheres um lugar de maior
acolhimento127.
124
PEREIRA, Armando. Prostituição uma visão global. 2ed. Rio de Janeiro: Pallas, 1976.
125
JUNIOR, Otavio de Freitas. Histórico e causas da prostituição. In: A prostituição é necessária? Rio de
Janeiro: Editora Civilização Brasieira, 1966. p.67
126
OLIVIAR, José Miguel Nieto. Devir puta: políticas da prostituição de rua na experiência de quatro mulheres
militantes. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013. p.34
127
LEITE, Gabriela. Op cit. 64
61
a prostituição foi introduzido na Zona do Mangue com o objetivo de acabar com o lenocínio
mantendo a prostituição128.
Os valores recolhidos pelas gerentes das casas eram repassados para a conservação do
lugar e pagamento do salário dos funcionários de apoio, que poderiam ser copeiros,
domésticas, seguranças ou cozinheiros. Entretanto, tiveram casos de gerentes que diante das
elevadas quantias, decidiram fugir. Ou que repassavam o dinheiro para as antigas cafetinas,
que as usavam como fachada131.
128
PEREIRA, Armando. Op cit. 137
129
O delegado Armando Pereira relatou em seu livro Prostituição uma visão global os problemas gerados no
judiciário por conta do nome dado a quem iria gerenciar a casa, de modo que não fossem entendidas como novas
cafetinas, mas sim alguém que estava trabalhando de acordo com as premissas para a constituição da república
do Mangue.
130
PEREIRA, Armando. Op. cit. p.139.
131
Idem.
132
Idem.
62
Aos 20 anos, uma gravidez indesejada a obrigou a partir para Santa Catarina, onde
teve o filho. No entanto, a criança teria nascido morta e, por isso, ela retornou ao Rio133. Não
havia relatos sobre a existência de familiares de Nina no Sul. O seu nome e de seus pais
davam a entender que seus familiares tinham origem estrangeira, alemães talvez. Mas em sua
memória trazia a lembrança de ter vindo, ainda criança, da cidade de Santos, em São Paulo,
sem qualquer registro de convívio com os pais.
A questão era que a trajetória de uma mulher que veio de outra cidade para ter um
trabalho no Rio de Janeiro se apresentou bastante comum, uma vez que boletins de ocorrência
e processos envolvendo mulheres, possivelmente prostitutas, tinham suas naturalidades
diferentes do Estado da Guanabara.
O processo ainda falava sobre sua relação com as drogas. Ela seria alcoólatra e viciada
em psicotrópicos não especificados. Era provável que a relação com todas as drogas tenha se
iniciado assim que começou a trabalhar com a prostituição, o que também a vinculava à vida
no Mangue para além da necessidade financeira. Pode ser também que sua fala inicial para a
polícia tenha sido uma tentativa de se vitimar diante da autoria do assassinato, justificando seu
feito por conta da vida que levava, sem se orgulhar dela135.
Em seu depoimento, Nina afirmava para o delegado que não compreendia o motivo de
seu ato. Pouco se lembrava do que tinha acontecido assim que chegou à casa de Tia Rosita, e
133
Arquivo do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro. Serviço de Gestão de Arquivos Permanentes
(SEGAP). Processo Criminal, nº 4081/69, 26ª Vara Criminal, homicídio, “Situação Familiar”, folha 25.
134
Idem.
135
Ibidem, “Termo de Declarações”, folha 33.
63
ficou bastante nervosa e triste pela morte dela. Tendo em mente esse panorama, podia ser que
a ação das drogas, aliada aos conflitos que vivia, tenha gerado um surto psicótico. Essa
hipótese ficou mais forte quando levamos em consideração os relatórios ambulatoriais e
psiquiátricos realizados ao longo de sua passagem pela cadeia (cerca de 15 anos), que
apontaram um distanciamento da ré em relação à realidade136.
Levantar as motivações para as ações dos atores envolvidos nesta trama, bem como o
desenrolar dos fatos, foi importante não para descrever a realidade passada tal como ocorrera.
O objetivo foi o de suscitar hipóteses que facilitassem o entendimento acerca das
possibilidades de ação dentro do baixo meretrício para, assim, nos aproximarmos da
compreensão sobre as relações de sociabilidade construídas e desconstruídas na Zona de
Mangue.
O fato de Tube ser estrangeira, provavelmente, lhe rendeu ganhos superiores aos das
mulheres brasileiras que dividiam o Mangue com ela. Essa hipótese veio da diferenciação na
ocupação de espaços no caso das mulatas e “francesas” da Lapa. Apesar de estar em um baixo
meretrício, onde as mulheres eram conhecidas por ter menos atrativos e cobrar preços mais
baixos, o fato de ser estrangeira provavelmente lhe rendia um diferencial frente às brasileiras.
136
Ibidem, “Laudo de Exame de Sanidade Mental”, pp.67-79.
64
Fazer uso do nome Rosita também poderia ser uma estratégia para provocar o imaginário dos
clientes, ou seja, junto com o codinome, havia uma outra personalidade, uma personagem.
65
Domésticas
Irene era mais uma das muitas prostitutas do Mangue e podemos imaginar que tinha
um cafetão a explorá-la. Em uma das brigas entre eles, seguindo este raciocínio, o cafetão
socou seu rosto e atingiu o olho. Com raiva, ela seguiu até a delegacia para prestar queixa. Lá,
137
Arquivo da Polícia Civil, Setor de Microfilmagem, Boletim de Ocorrência da 6ª Delegacia Policial: Lesão
Corporal, 26/08/71, rolo ano 1971.
66
se deu conta que seu agressor conhecia os policiais, inclusive o escrivão que a ouviu e redigiu
o boletim e, com medo da retaliação, decidiu ocultar o nome de seu agressor.
Confirmar passagens pelo baixo meretrício não se assimilava a negar que as mulheres
fossem domésticas. Foi necessário considerar que em algum momento de suas vidas elas
trabalharam em casas de família, ou casas de prostituição (como aconteceu na trajetória de
Nina) varrendo, espanando e arrumando. Além disso, tinha a possibilidade de usarem o termo
doméstica com o objetivo de se afastarem da marginalidade, pois assim poderiam legitimar
suas falas ou evitar constrangimentos.
Leila só compareceu à delegacia para prestar queixa contra seus agressores depois de
10 dias em coma no Hospital Souza Aguiar. Antes do ocorrido, ela havia discutido com Enir
por conta de um dinheiro que lhe devia. Horas depois da discussão, um carro a perseguiu e,
quando a alcançou, a atropelou, passando diversas vezes sobre seu corpo. Era Niltinho quem
conduzia o carro, companheiro de Enir, que ocupava o banco do carona. Antes de
perseguirem Leila, ameaçaram agredi-la caso não conseguisse pagar a dívida. Sem dinheiro
para pagar sua credora, ela fugiu e o carro a seguiu.
Leila foi até a polícia acusar Enir e seu companheiro pela tentativa de homicídio. O
carro usado por Niltinho era da empresa em que ele trabalhava. Esse reconhecimento, mesmo
que restrito, sugere que o motorista trabalhava pela região do Mangue. A vítima o conhecia há
algum tempo, sabia qual carro ele usava para trabalhar. Além disso, o uso de grande violência
para cobrar Leila, demonstra que ele sabia como assustar ou dar fim a uma devedora ou
devedor. Pode ser que, além de amásio de Enir, ele fosse seu cafetão e a cobrança dessa
dívida também lhe dizia respeito. O atropelamento proposital sofrido por Leila não parece ter
ocorrido apenas com o intuito de fazê-la pagar, como também de impor respeito e “dar o
exemplo” na região.
A questão era que essas mulheres com formação escolar rudimentar, pobres e negras,
estavam preenchendo a ocupação com uma atividade com menor estigma que a prostituição.
A opção por se apresentar como doméstica configurava uma estratégia dessas mulheres de
serem ouvidas pelas autoridades de segurança, ou resguardadas de abusos e violências
cometidas pelas instituições do Estado.
Além disso, desde meninas essas mulheres pobres esfregavam chão, tiravam poeira e
recebiam muito pouco pelo trabalho exaustivo e o abuso do patrão e da patroa. Eram
resquícios da sociedade brasileira escravagista138. Dessa forma, o que muitas dessas mulheres
reconheciam como trabalho a ser declarado era o primeiro que a maioria teve contato: o
doméstico.
138
O artigo de Flávia Fernandes, presente no livro Mulheres Negras no Brasil escravista e do pós-emancipação,
evidenciou que o trabalho doméstico realizado no período pós-abolição era predominantemente feito por
mulheres negras ou pardas. Segundo a autora, “a inserção dessas mulheres no universo do trabalho, por
intermédio da realização de atividades domésticas remuneradas, pode ser explicada pela análise de diferentes
fatores, entre os quais se destacam as relações entre a escravidão – já que como foi discutido, muitas escravas
foram alocadas como “criadas de servir” – e os arranjos de trabalho que envolviam a “locação de serviços
domésticos” após a conquista da liberdade”. SOUZA, Flávia Fernandes de. Escravas do lar: as mulheres negras e
o trabalho doméstico na corte imperial. In. XAVIER, Giovana, FARIAS, Juliana Barreto, GOMES, Flávio
(orgs.). Mulheres Negras no Brasil escravista e do pós-emancipação. São Paulo: Selo Negro, 2012. P. 244-
260.
139
Arquivo do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro. Serviço de Gestão de Arquivos Permanentes
(SEGAP) Processo Criminal, nº4573/71, ano 1971, 24ª Vara Criminal, folha 2, verso.
140
Ibidem, folha16.
141
Ibidem, “Folha de Antecedentes”, folha 19.
68
Assim, o juiz entendeu que a ré não tinha como comprovar que a ação dos policiais foi errada.
O nome de Sônia foi jogado no rol dos culpados142.
Em outro caso, Elizabeth e Walquíria iniciaram uma briga na frente de uma das casas
da rua Pinto de Azevedo. Com uma tesoura na mão, Walquíria partiu para cima e disferiu
diversos golpes nos braços e na barriga de Elizabeth que tentava, sem sucesso, conter sua
agressora. Com as mãos ensanguentadas, Walquíria fugiu, deixando sua vítima aos cuidados
dos passantes que logo a conduziram para o Hospital Souza Aguiar. Elizabeth vivia no
Mangue, as duas apareceram nos registros policiais como domésticas143.
Essa ausência de recursos desfez visões romantizadas sobre o baixo meretrício, assim
como permitiu que a pesquisa enxergasse as mulheres retratadas como agentes de suas
trajetórias.
Assumir-se prostituta era ver se desfazer boa parte das relações pessoais e parentais
que a mulher construíra ao longo de sua vida. Então, a ocultação da vida no meretrício não
142
Ibidem, “Cópia do Termo de Audiência”, folha 21, verso.
143
Arquivo da Polícia Civil, Setor de microfilmagem, Boletim de ocorrência da 6ª Delegacia policial: agressão
corporal (agressão a tesoura), 10/06/1975, rolo ano 1975.
144
Arquivo da Polícia Civil, Setor de microfilmagem, Boletim de ocorrência da 6ª Delegacia policial: Homicídio
qualificado, 14/06/1975, rolo ano 1975.
69
estava relacionada necessariamente a não gostar da prostituição. E sim às consequências de se
afirmar como meretriz do Mangue.
Porém nem todas as mulheres do Mangue escondiam sua vida de meretriz, ou viam
somente o trabalho doméstico como profissão. Neusa, quando perguntada se era vadia, disse
que não, pois vivia da venda do próprio corpo145. Apesar de ainda dizer que trabalhou um
tempo como doméstica, declarou trabalhar como prostituta, no momento de sua detenção.
Se comparado o valor mensal recebido por Maria (que ela dizia ser de NCR$ 60,00) à
média da diária obtida por Nina como meretriz (NCR$40,00147), foi possível observar a
discrepância de ganhos entre o trabalho doméstico e a prostituição. Não foi difícil imaginar
por que a vida nas ruas, ou nas casas de prostituição, chamava a atenção dessas mulheres.
Foi importante colocar em questão esses valores uma vez que esse era um dos maiores
motivos para a escolha pela prostituição no Mangue. O delegado Armando Pereira, em uma
de suas entrevistas concedidas à historiadora Beatriz Kushnir, falou sobre a dificuldade que
assistentes sociais tinham de entender a escolha pela prostituição, mesmo depois de terem
aprendido alguma outra profissão148. Ele chegou a acusar as assistentes sociais de romantizar
a vida no baixo meretrício, pois na visão dele, elas achavam que com outra oportunidade em
mãos as mulheres deixariam a prostituição.
145
Arquivo do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro. Serviço de Gestão de Arquivos Permanentes
(SEGAP). Processo Criminal, nº5919/69, “Auto de Prisão em Flagrante”, folha 15.
146
Ibidem, “Interrogatório do Acusado”, folha18.
147
Arquivo do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro. Serviço de Gestão de Arquivos Permanentes
(SEGAP). Processo Criminal, nº4081/69, “Situação Individual”, folha 24.
148
PEREIRA, Armando. Armando Pereira: depoimento [Maio, 1993]. Entrevistadora: Beatriz Kushnir. Rio de
Janeiro, ano, Arquivo da Cidade.
70
Muitas domésticas sobreviviam com pouco dinheiro. Em muitos casos, as domésticas
viviam na casa dos patrões, o que achatava seus salários uma vez que, na visão de seus
empregadores, elas já recebiam comida, teto e proteção.
O objetivo dessas considerações foi pensar as condições nas quais essas mulheres
faziam suas escolhas. O leque de opções de trabalho era restrito. E mais, mesmo que a
reivindicação de posse do próprio corpo e do prazer se traduzisse na escolha pelo meretrício,
para essas mulheres, a prostituição era um trabalho, não um divertimento. Mesmo que a
diversão fizesse parte do trabalho. Logo, não era apenas a busca pelo sexo que atravessava a
predileção pela prostituição. O quanto se ganhava era determinante para que muitas mulheres
escolhessem atuar no trottoir ou nos bordéis.
Foi importante lembrar que estas pessoas, em sua maioria, tinham gênero, cor,
condição socioeconômica, grau de instrução e ofício bem definidos eram mulheres, negras,
pobres, analfabetas e trabalharam como domésticas. A partir desses marcadores, pudemos
perceber o que a historiadora Juçara Leite afirmou em sua pesquisa, através da análise das
fichas de prostitutas que trabalhavam no Mangue:
É importante lembrar que não havia legislação alguma que protegesse a empregada
doméstica, ficando esta sujeita a qualquer remuneração e ao desemprego repentino.
Neste último caso, como a maioria residia no local de trabalho, ao perder o emprego,
perdia também a morada. Compreende-se a busca da “zona” como abrigo.150
149
PEÇANHA, Natália Batista. “Regras de civilidade”: tecendo a masculinidade do smart nas páginas d’O Rio
Nu (1898-1916). 2013. 162p. Dissertação (Mestrado em História). Instituto de Ciências Humanas e sociais,
Departamento de História, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, RJ, 2013
150
LEITE, Juçara Luzia. Op. cit. p.77.
71
contemporaneidade. A frequente chegada de crianças ou recém adolescentes às casas da
classe média para trabalhar em serviços domésticos foi uma das formas pelas quais essas
relações se estabeleceram. Por conta da idade e do serviço prestado, elas viviam nas casas de
seus patrões, o que contribuía para que se estabelecesse uma relação para além da existente
entre o empregador e o empregado151.
Vejamos mais casos que nos mostram outras circunstâncias da vida das prostitutas.
Apesar de espaços como bares e casas de prostituição terem sido criados para
proporcionar momentos de diversão a adultos, não era raro presenciar brigas entre seus
frequentadores, que poderiam ser pelos mais variados motivos, desde rusgas antigas a
desentendimentos momentâneos.152.
Algumas brigas aconteciam entre as mulheres, como o caso da agressão mútua entre
Clea e Amaria que usaram cacos de garrafa para desferir golpes uma na outra154. A briga
aconteceu entre as ruas Júlio do Carmo e Machado Coelho, região de baixo meretrício.
151
Para um debate mais aprofundado sobre essa temática, ver: SANTANA, Munich e DIMENSTEIN, Magda.
Trabalho doméstico de adolescentes e reprodução das desiguais relações de gênero. Psico-USF (Impr.) [online].
2005, vol.10, n.1, pp. 93-102. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/pusf/v10n1/v10n1a12.pdf Acesso em:
10/11/2014.
152
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle
Époque. 2ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001. p.301.
153
Arquivo da Polícia Civil, Setor de microfilmagem, Boletim de ocorrência da 6ª Delegacia policial: Agressão à
navalha, 28/06/1975, rolo ano 1975.
154
Arquivo da Polícia Civil, Setor de microfilmagem, Boletim de ocorrência da 6ª Delegacia policial: Lesão
corporal dolosa, 05/07/1973, rolo ano 1973.
155
Arquivo da Polícia Civil, Setor de microfilmagem, Boletim de ocorrência da 6ª Delegacia policial: Lesões
corporais dolosas (faca), 05/07/71, rolo ano 1971.
72
As agressões e rixas também envolviam mais de duas pessoas, como ocorreu quando
Maria, doméstica com 18 anos, foi agredida a socos por Alzira de tal, companheira do
senhorio da residência na qual ela e seu amásio, Henrique residiam. Segundo Henrique, o
senhorio Edgar o agrediu com uma barra de ferro em seu quarto, na rua Souza Neves, e sua
companheira, que assistia a agressão a Henrique, passou a ser agredida pela companheira de
Edgar.
Mais tarde, Maria foi encontrada em outro boletim, porém sob o codinome “Hippie”.
Nessa ocorrência, ela, sua colega “Gaúcha” e seu companheiro Henrique, tentaram socorrer
Lígia que falecera antes de receber ajuda médica, tendo dado entrada no Hospital Souza
Aguiar na noite de uma sexta-feira.
“Gaúcha”, identificada como Suzana, disse aos policiais que Lígia era viciada em
drogas e quando passou mal, parecia ter feito uso de algum tóxico por conta do
comportamento apresentado na ocasião. Ela sugeriu ainda que Lígia não tinha bebido nada
alcóolico, pois seu hálito não cheirava a bebida156.
No Café e Leiteria Belinha Ltda, situado na Rua Frei Caneca, nº 154, Francisco, preto,
solteiro, 47 anos, pintor de paredes, entrou em uma luta corporal com José, branco, casado, 37
anos, comerciante com loja na Rua Benedito Hipólito, morador de Duque de Caxias, por
motivos que o responsável por redigir o texto da ocorrência classificou como “fúteis”.
Garrafas foram arremessadas, o que pode indicar que o consumo de bebida alcoólica tenha
acirrado os ânimos. Com o calor da briga, segundo o boletim, Eurídice, parda, solteira, 36
anos, doméstica, acabou sendo ferida em sua mão esquerda.
Não havia nenhum outro detalhe que pudesse indicar se Eurídice fora motivo da briga
entre os dois senhores. Como testemunhas se apresentaram o motorista profissional Isac,
pardo, casado, 33 anos, morador de Bonsucesso e presente no Café durante a confusão, assim
como Ivanir, parda, solteira, 25 anos, doméstica, residente na Rua Benedito Hipólito, nº233.
Dessa forma, podemos inferir a faixa etária das pessoas que frequentavam esses
estabelecimentos e o tipo de profissão por elas desempenhado, no caso uma doméstica e um
motorista.
156
Arquivo da Polícia Civil, Setor de microfilmagem, Boletim de ocorrência da 6ª Delegacia policial: Fato a
apurar, 20/06/1975, rolo ano 1975.
73
Em mais um caso de lesões corporais, a doméstica Vilma foi levada ao Hospital Souza
Aguiar às 18h35 de um domingo, apresentando escoriações nos braços e corte no rosto. Junto
com ela, estava Fabiana, sua bebê de 3 anos, residente no mesmo endereço, apresentando
contusão no braço esquerdo. As duas foram agredidas pelo ex-amante de Vilma, Abel157.
Dilma foi presa por porte de maconha e, inicialmente, sua documentação constava que
ela era desempregada. Mas em outros autos de qualificação do mesmo processo, sua ocupação
estava “doméstica”158. Provavelmente, a modificação apareceu em fichas posteriores por dois
motivos: Dilma alegou ter sido espancada pelos policiais para assinar o boletim que a
incriminava por porte de maconha, o que ela negou. Segundo, por ser ré primária e ter
apanhado dos policiais, ficaria melhor às vistas do juiz que a acusada tivesse uma ocupação.
Em nenhum momento Dilma foi apontada como meretriz. Isso podia indicar que as
mulheres não tinham seus papéis restritos ao trabalho doméstico ou à prostituição. Mesmo
que o silêncio das fontes sobre o meretrício não fosse uma negação do envolvimento dela
nessa atividade, mas sim um indicativo de que as mulheres também participavam da venda de
drogas ilícitas.
157
Arquivo da Polícia Civil, Setor de microfilmagem, Boletim de ocorrência da 6ª Delegacia policial: Lesões
corporais, agressão, 27/07/1975, rolo ano 1975.
158
Arquivo do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro. Serviço de Gestão de Arquivos Permanentes
(SEGAP). Processo nº 2330/71, ano 1971, 21ª Vara Criminal.
74
Assim como o caso de Claudemira, 38 anos, preta, solteira, doméstica e residente em
Parada de Lucas, subúrbio do Rio, foi detida pela ronda policial na Rua Benedito Hipólito,
esquina com a Rua Comandante Maurity por portar um embrulho com pacotinhos de
maconha159.
Quando foi conduzida a prestar esclarecimentos à polícia, ela informou que obteve os
pacotinhos de maconha em troca de 30 cruzeiros, valor pago a Ilza, brasileira, parda, solteira,
28 anos, residente na Rua Benedito Hipólito, 205 e também doméstica. Ilza, por sua vez,
confirmou toda história e ainda acrescentou que a maconha foi deixada em seu poder por
Cícero, residente em um sobrado no Mangue, à Rua Benedito Hipólito, 214.
A rede de sociabilidade que Claudemira apresentou a partir de sua prisão, era formada
por pessoas de seu convívio no Mangue. Tanto Ilza quanto Cícero viviam na mesma rua, a
poucas casas de distância. Os dois repassavam maconha a partir da venda, e isso pode
significar que a detida pelos policiais vendia maconha para os clientes ou prostitutas do
Mangue, uma vez que ela soube apontar as pessoas que repassaram as drogas e suas
residências.
Esses casos também demonstraram que não havia dicotomia nos papéis realizados
pelas mulheres do Mangue, em que seriam apenas prostitutas ou domésticas. Elas também
atuavam no tráfico local e venda de entorpecentes, assim como outras atividades que não
foram registradas pela documentação policial analisada.
159
Arquivo da Polícia Civil, Setor de microfilmagem, Boletim de ocorrência da 6ª Delegacia policial:
entorpecentes, data ilegível, ano 1971, rolo ano 1971.
160
Arquivo do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro. Serviço de Gestão de Arquivos Permanentes
(SEGAP). Processo nº 2330/71, ano 1971, p.30
75
estavam inseridas não poderiam produzir, inicialmente, outra visão que não fosse a dos
diversos problemas existentes à vida no baixo meretrício. A situação de vulnerabilidade à
violência, praticada por policiais, por clientes, parceiros ou colegas de trabalho, foi o que
contextualizou grande parte da documentação produzida sobre essas mulheres.
Existiam complexidades nas escolhas feitas pelas pessoas que iam além da lógica
mercadológica. Havia a sensação de pertencimento ao Mangue, apesar das mazelas comuns a
espaços marginalizados, onde a forma como o Estado se fazia presente era através da polícia.
De todo modo, foi válido também considerar que a Zona do Mangue, por ser um local
próximo da região central da cidade e também da zona Sul, era um lugar onde muitas
mulheres decidiram residir para chegarem com maior comodidade às casas de seus
empregadores. Além disso, o termo doméstica poderia abranger outras funções que eram
desempenhadas em hotéis, tais como: camareira, copeira, arrumadeira, lavadeira entre outras.
Portanto, poderia sim haver mulheres que viviam no baixo meretrício, mas exerciam
outra atividade que não a prostituição. E a prostituição seria uma complementação da renda.
Justamente nesses casos que as mulheres ficavam mais apreensivas com a possibilidade de
serem reconhecidas. E esse era um fator que levava essas mulheres a negarem a vivência no
meretrício. Até porque, se esse era a complementação da renda, a perda do outro emprego
poderia significar uma queda brusca no padrão de vida, além de dificultar o surgimento de
novas oportunidades fora da prostituição.
Essa relação prostituta versus doméstica trouxe à tona o quanto a moralidade estava
entranhada nas questões econômicas. Receber uma remuneração maior não colocava as
prostitutas em uma condição moral melhor que as domésticas, mesmo que os rendimentos
mais elevados significassem uma melhoria de vida, permitindo condições mais propícias de
manter a própria família.
O objetivo não é sensibilizar para vitimar as mulheres fichadas pela polícia. E sim,
novamente, exercitar a observação sobre quem está sendo colocada como objeto. Há
particularidades nas situações de todas as domésticas e meretrizes narradas, mas há também
pontos de convergências das histórias que merecem ser expostos e problematizados.
A prostituição, no caso das mulheres pobres, foi uma escolha feita a partir de um leque
restrito de opções. No Mangue não existia o mesmo glamour das prostitutas que atendiam
políticos e grandes empresários em hotéis de luxo. Tanto que a duplicidade de suas vidas não
se dava com atividades comuns à classe média, como modelo e atriz, e sim com o trabalho de
doméstica.
Ter uma ocupação de acordo com os bons costumes, em uma das mangas, era comum.
Fosse para prestar contas à família, ou à justiça. O meretrício, para muitas mulheres, era parte
de uma vida oculta, um segredo. Só que esse segredo era compartilhado dentro de um espaço
onde essa identidade podia ser assumida, pois lá as prostitutas eram as protagonistas.
161
PEREIRA, Armando. Mulheres Deitadas. 4ed. Rio de Janeiro: Pallas, 1976. p.69.
77
No início dos anos 1970, foi realizada uma pesquisa para saber quantas das mulheres
que trabalhavam no Mangue eram analfabetas. A pesquisa concluiu que a esmagadora maioria
mal sabia escrever o próprio nome. Então, Armando Pereira decidiu que teria uma escola do
Mobral dentro do Mangue para alfabetizar as prostitutas e, assim, fazê-las deslumbrar uma
nova oportunidade. Cerca de 200 mulheres concluíram o curso e receberam o diploma na 6ª
delegacia. Essas prostitutas retornaram para as ruas do Mangue alfabetizadas162. Ao contrário
do que supunha o senso comum, elas não deixaram o meretrício e foram em busca de
empregos socialmente aceitos. Elas se mantiveram na prostituição, mas agora sabendo ler e
escrever.
Apesar dos discursos salvacionistas em torno das meretrizes, para muitas delas não
havia do que ser salva. Ou melhor, o que as “salvaria” era ganhar mais do que tiravam no seu
trabalho. O problema não era somente não ter qualificação, ou ser analfabeta, e sim ganhar
valores abaixo do que precisava para se manter, ou manter a família.
Era possível que as prostitutas fizessem um salário suficiente o bastante para lhes
garantir a sobrevivência, e as de seus filhos. Os valores de um baixo meretrício eram
pequenos, mas todos os dias elas estavam com dinheiro em mãos. Não era preciso esperar
pelo salário até o final do mês. E isso possibilitava a sensação de ter dinheiro todos os dias,
diferente dos empregos formais. Então, era como se elas “fizessem seus salários”. O número
de clientes que tivessem em um dia determinaria o quanto seria sua diária. O que permitia que
elas escolhessem seus clientes163.
Portanto, deixar de ser prostituta para trabalhar de maneira formal em um emprego que
mal pagava suas contas não era o propósito dessas mulheres. Se a renda obtida no Mangue
pesava em suas escolhas, as especificidades do trabalho no meretrício poderiam se afinar com
suas vidas e serem mais vantajosas que as de outras ocupações.
162
Biblioteca Nacional. Setor de Periódicos. Mobral diploma mulheres do Mangue que alfabetizou. Diário de
Notícias, Rio de Janeiro, p.9, 22 de junho de 1971.
163
LEITE, Juçara. Op. cit. p.43.
164
LEITE, Gabriela. Op. cit. 119
78
rapazes poderiam lhes pagar uma bebida. Assim, entre goles, em clima de paquera, o encontro
era acertado.
As mulheres tinham suas escolhas, principalmente no que tangia a clientela. Não era
porque se tratava de um baixo meretrício que todos os clientes tinham que necessariamente
ser imundos e doentes. Nem porque estavam numa zona de prostituição que as relações de
sociabilidade não teriam regras estabelecidas.
Num final de semana, Maria acertou o preço do encontro com o paraibano João.
Depois de ter pagado pelo serviço antecipadamente, João perguntou se Maria apresentava
alguma doença que pudesse contagiá-lo. Na dúvida, ele decidiu voltar atrás e não mais ter
relações com a prostituta168. O problema se agravou pois a prostituta se negou a devolver o
dinheiro e, então, João partiu para cima dela com um guarda-chuva, a atingindo com bastante
força nas vistas. Maria precisou ser socorrida e levada ao hospital.
165
RAGO, Margareth. Op. cit. p. 154
166
PEREIRA, Armando. Armando Pereira: depoimento [Maio, 1993]. Entrevistadora: Beatriz Kushnir. Rio de
Janeiro, 1993, Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro.
167
Idem.
168
Arquivo da Polícia Civil, Setor de microfilmagem, Boletim de ocorrência da 6ª Delegacia policial: Lesão
corporal, 28/08/71, rolo ano 1971.
79
Vejamos o caso de Bento. O que ficava combinado antes de ir para o quarto era o que
deveria ser feito. O combinado não sairia caro e, talvez, Bento não tivesse se atentado para
esse conhecido ditado. Uma das meretrizes do Mangue feriu suas nádegas com um espeto de
churrasco, e ele precisou ser levado ao Hospital Souza Aguiar para conter o sangramento e
fazer curativo169.
O início da primavera de 1969, por exemplo, teve uma situação com desfecho
inusitado. Celma, meretriz conhecida no Mangue, mandou chamar a turma da ronda quando
Geraldo, bêbado, a ameaçou e maltratou na frente de todos que estavam no bar170. Quando o
policial se dirigiu a Geraldo pedindo-lhe os documentos, ele apresentou a letra de um samba e
ainda perguntou se servia. O homem embriagado, ao ser contido por policiais, falou alto e em
bom tom para todos que ele era um juiz de direito. Logo, o superior hierárquico dos soldados
ali presentes.
Lana ficou surpresa e apreensiva quando percebeu que policiais batiam à porta de seu
quarto. Assim que ela abriu a porta, os homens disseram ter recebido uma denúncia e
passaram a revistar todo o cômodo. Embaixo de sua cama foram encontrados nove embrulhos
em papel de jornal. Dentro deles havia maconha. O quarto ficava na Zona do mangue, em
169
Arquivo da Polícia Civil, Setor de microfilmagem, Boletim de ocorrência da 6ª Delegacia policial: Lesão
corporal dolosa, 06/07/1973, rolo ano 1973.
170
Arquivo da Polícia Civil, Setor de microfilmagem, Boletim de ocorrência da 6ª Delegacia policial:
23/09/1969, rolo ano 1969.
80
uma habitação coletiva. Lana saiu do quarto, observada pelos vizinhos, para prestar
esclarecimentos ao delegado171.
Maria Teresa foi presa em flagrante, em 1971, por vadiagem na rua Machado
Coelho172. Em seu boletim, o escrivão destacou que ela estava em atitude suspeita. O que
poderia dizer muita coisa, ou nada, visto que existiam perfis também considerados
“suspeitos”. Bastava ter as características que ela possuía para ser um criminoso em potencial
para a polícia: tratava-se de uma mulher negra e jovem em um baixo meretrício,
171
Arquivo da Polícia Civil, Setor de microfilmagem, Boletim de ocorrência da 6ª Delegacia policial:
19/09/1969, rolo 1969-1970.
172
Arquivo da Polícia Civil, Setor de microfilmagem, Boletim de ocorrência da 6ª Delegacia policial:
10/08/1971, rolo 1970-1971.
173
O município de Duque de Caxias pertence ao Grande Rio, região metropolitana do estado do Rio de Janeiro.
174
Arquivo do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro. Serviço de Gestão de Arquivos Permanentes
(SEGAP). Processo 14441/ 1974, Comarca de Duque de Caxias, 1ª Vara Criminal.
175
Ibidem, Auto de prisão em flagrante, folha 3.
81
peça e, para confirmar, tentou mostrar a ausência da mesma sob a blusa, quando um pacote
caiu de sua miniblusa.
Dentro do pacote havia dois embrulhos, um contendo maconha e outro com sete
pequenos envelopes com cocaína. Acusada de portar drogas, Maria Tereza disse que o pacote
era de João, que havia pedido que ela o guardasse assim que os policiais se aproximaram do
círculo176.
Além disso, as duas mulheres negaram conhecer João. Segundo Maria Tereza, eles
começaram a conversar quando estavam dentro de um ônibus que vinha de São João de
Meriti, momento em que João teria cobrado de Eni 30 cruzeiros que havia lhe dado, o que foi
apresentado como fato gerador de toda a confusão logo após descerem da condução.
Pelo fato dos policiais terem as identificado como mulheres de trottoir, era possível
que a região onde ocorreu a prisão fosse um espaço destinado à prostituição. E a declaração
de Eni quando falou sobre a abordagem policial remeteu a forma como agiam ao prender
suspeito de vadiagem:
a declarante e a acusada quando foram presas não estavam discutindo e nem fazendo
nada de mais e que os policiais estavam pedindo documentos que como não
possuísse trouxeram-nas presas180.
176
Ibidem, Interrogatório, folha 21 verso.
177
Arquivo do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro. Serviço de Gestão de Arquivos Permanentes
(SEGAP). Processo 14441/ 1974, Auto de prisão em flagrante, folha 3
178
Ibidem, Interrogatório, folha 21
179
Ibidem, Interrogatório, folha 24
180
Idem.
82
A ausência de João nos autos do processo permitiu que fosse levantada a hipótese dele
ser um cafetão. Principalmente porque ele não foi citado nem na documentação da polícia. As
mulheres negaram conhecê-lo; a briga envolvia dinheiro e foi Maria Tereza quem guardou o
embrulho com as drogas.
Os cafetão era quem recebia uma parte do que foi pago pela prostituta por prestar
determinados serviços. Dentre esses serviços, podemos citar que eles garantiam que as
prostitutas recebessem os valores cobrados do cliente, que elas pudessem circular em
determinadas ruas sem serem importunadas por policiais ou outros cafetões e, no caso de
serem presas, eram os cafetões quem resolviam a situação delas na delegacia181.
As prostitutas poderiam ser presas, mas os cafetões, assim como os rufiões, não. Eram
eles quem pagavam a propina para os policiais fazerem vista grossa à presença de meretrizes.
Assim como à venda de drogas que também poderia ser feita por elas. Essa podia ser uma
justificativa para os policiais não terem prendido João, nem requisitado seu testemunho.
Mas se ele era o cafetão delas, por que as duas insistiram que as drogas eram dele?
Elas sabiam que uma pena por tráfico de drogas era muito pior que por vadiagem. Além disso,
podiam confiar que ele não seria pego devido à relação que ele podia ter com os policiais, o
que foi assinalado pelo caminhar desse processo. Ao menos em relação aos embrulhos de
maconha e cocaína caídos da miniblusa de Maria Tereza, João não foi implicado.
Se não era cafetão, João poderia ser um cliente que se arrependeu da transação que fez
e queria o dinheiro de volta. No entanto, não havia devolução de dinheiro, mesmo que o
serviço nem tenha sido prestado. Pagava-se pelo tempo, e não pelo sexo na prostituição.
Esse processo nos permitiu pensar também nas relações entre tráfico e prostituição. As
drogas estavam presentes nesses espaços e podiam ser fornecidas pelas próprias prostitutas
aos seus clientes. Ou eram consumidas pelas prostitutas para aguentarem o ritmo acelerado de
trabalho. Como eram sete pequenos embrulhos de cocaína nesse caso, há maior possibilidade
de ser para venda que para uso próprio.
Talvez João realmente fosse um traficante, e não cafetão. E pediu que a prostituta
guardasse as drogas porque não imaginava que os policiais fossem revistá-la. E ela
provavelmente aceitou guardar porque achou que não iriam pegar dela o pacote com as
181
PEREIRA, Armando. Sexo e... Op. cit. p. 127.
83
drogas. Pode ser que a discussão fosse a respeito do valor das drogas que uma delas iria
adquirir.
Diante disso, Armando desistiu do apartamento e pediu o dinheiro de volta, sendo que
a acusada não o entregou na data marcada. Nem as chaves, nem o dinheiro que ele havia
pagado183. O alfaiate, dono de uma das lojas localizada no prédio onde ficava o apartamento
alvo do litígio e a corretora que Benedita dizia trabalhar, disse que Benedita utilizava o
apartamento onde morava para encontro de casais184, além de ser conhecida cafetina no
Mangue.
Quando foi encontrada pela polícia, dois anos depois da queixa de Armando, Benedita
disse que não era proprietária do apartamento, apenas morava lá com Édino, indivíduo com
quem dividia o apartamento e responsável pelas transações imobiliárias185. Ela ainda disse que
não sabia quem era o verdadeiro proprietário do apartamento que seria alugado para
Armando, visto que Benedita e Édino pagavam aluguel.
Édino, em seu interrogatório, disse que conheceu Benedita na época em que morava
na rua Afonso Cavalcante, período em que a mesma trabalhava como gerente de uma das
casas do baixo meretrício. Ele negou que tivesse participado de qualquer transação
envolvendo o apartamento e que “não sabe a que ponto Benedita quer chegar”186.
Outra testemunha surgiu para ser ouvida, Cordélia, que alugava uma vaga no
apartamento onde viviam Benedita e Édino. Ela testemunhou que nada sabia, principalmente
porque saia de casa muito cedo e retornava tarde. Depois de um tempo o delegado exigiu que
182
Arquivo do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro. Serviço de Gestão de Arquivos Permanentes
(SEGAP). Processo 5757, ano 1968, 5ª Vara Criminal
183
Ibidem, folha 5
184
Ibidem, Assentada, testemunha Álvaro Curtis Peixoto, folha 15 verso
185
Ibidem, Auto de qualificação, folha 33 verso
186
Ibidem, Termo de declarações, folha 34
84
Cordélia comparecesse novamente à delegacia, mas a mesma não foi encontrada. Nessa
documentação sobre as diligencias feitas pela delegacia, constava que Benedita tinha ido
morar no Mangue, na travessa Oliveira, 10.
85
Conclusão
Nesse capítulo pudemos conhecer o caso de Nina e, através dele, as variadas nuances
presentes na prostituição. A sua chegada ao Mangue ainda menina foi uma maneira de
entender de que forma muitas meninas, de diferentes regiões, chegaram à capital, com a
missão de mulher adulta de se manter. A infância pobre marcada pelo trabalho doméstico nos
apresentou um dos motivos de tantas mulheres do Mangue terem vivido como domésticas,
assim como o fato de serem analfabetas.
Uma das formas de compreender a vida no baixo meretrício foi através do olhar do
delegado de polícia e também estudioso sobre prostituição, Armando Pereira. Foi através de
sua análise que entendemos as formas como a prostituição acontecia e quem eram os agentes
que davam suporte a essa atividade. As meretrizes podiam trabalhar nas casas de prostituição,
da maneira como Nina trabalhou para Tia Rosita na República do Mangue. Parte do que
recebiam dos clientes era passado para as cafetinas que lhes garantiam os quartos e proteção.
Também foi possível observar que nem todas as mulheres do Mangue trabalhavam em
casas. Tinham aquelas que preferiam as ruas, o trottoir. E nessa forma era necessário contar
com o serviço de seguranças que as protegeriam de clientes caloteiros, roubos ou policiais.
Todavia, muitas vezes o rufião assumia posição de explorador que exigia cada vez mais
quantias das prostitutas, principalmente quando havia envolvimento afetivo ou status de
marido ou amásio. Bem como os cafetões que agenciavam mulheres de trottoir e delimitavam
os espaços onde elas deveriam trabalhar, também se responsabilizando pelos acordos com
policiais e pela segurança das mulheres.
Além das bebidas alcóolicas, o uso de substâncias ilegais, como maconha e cocaína
também era comum. Por se tratar de uma região marginalizada, o tráfico dessas drogas era
habitual, apesar da presença policial. Assim, pudemos perceber que as mulheres também
traficavam e vendiam drogas ilícitas para todos que quisessem usufruir dos efeitos de
substâncias entorpecentes. Ou seja, a atuação das mulheres do Mangue não se restringia à
prostituição e ao trabalho doméstico.
Diante de todos esses processos e questões levantadas, ficou óbvio que a história a
partir de documentos policiais apresentou o lado negativo da prostituição, permeado por
violências, repressão e exclusão social. As narrativas contadas que chegavam até boletins de
ocorrência, notas de jornais ou processos criminais traziam trajetórias marcadas pela pobreza.
No entanto, através de um olhar mais aguçado podemos ver para além das prisões,
espancamentos, brigas e homicídios. O Mangue também era um espaço de construção de
laços de afetividade, solidariedade. Assim como um espaço marcado pelo rompimento. Havia
tempos de acolhimentos e de abandonos.
Benedita, que dera o golpe em um português, não fora delatada para os policiais por
seu ex-amásio. Grey não disse a polícia que sua velha amiga, Tia Rosita, era cafetina. Maria
Tereza e Eni não incriminaram uma a outra no interrogatório sobre os dólares de maconha.
Portanto, apesar das dificuldades, da repressão e do estigma da prostituição, as mulheres
foram sujeitos históricos imprescindíveis para a manutenção da Zona do Mangue até o final
da década de 1970.
87
Capítulo III
O relógio já marcava uma hora da manhã quando Cristino passava pela rua Machado
Coelho. De longe ele avistou uma bela moça e decidiu se aproximar dela187. A rua em que
estava fazia parte da Zona do Mangue, e diversos prostíbulos ainda atendiam seus clientes.
Muitos homens que por lá caminhavam abordavam as mulheres que lhes chamassem a
atenção, e Cristino era mais um entre tantos com o mesmo objetivo: garantir um encontro
antes que amanhecesse.
Quando chegou mais perto da moça, Cristino teve uma surpresa. Aquela que ele
pensava ser uma mulher, ele identificara como homem. Ou, em suas palavras, um “viado”.
Em sua justificativa – comum a muitos homens no tempo histórico abordado, assim como
atualmente – a travestilidade era uma enganação, era passar gato por lebre. Se enganar ofende,
portanto, Cristino sentiu-se no direito de ofender Nadir e gritar para que todos ouvissem: “não
gosto de viado!”188. Era a necessidade de afirmar sua masculinidade, para ele ferida, porque
abordara um homem vestido de mulher. Nadir, por sua vez, respondeu ao xingamento e à
violência da fala do rapaz com outros tantos palavrões e golpes de uma lâmina de barbear,
chamada gilete189.
Essa foi a versão de Cristino exposta no processo contra Nadir. Ele ficou bastante
ferido e foi necessário que guardas segurassem a travesti para que não prosseguisse com as
“giletadas”. Cristino foi conduzido ao hospital e, de lá, seguiu para a delegacia, onde fez um
boletim de ocorrência de lesão corporal190.
Apesar da versão contada por Cristino o colocar como iniciador da briga, ele seguiu
até a delegacia e prestou queixa contra Nadir, seguro de que sua postura foi correta. Essa
segurança expressa por ele pode ser considerada fruto da forma pela qual as relações de
gênero estavam – e estão – estruturadas na sociedade. A homossexualidade e a negação da
187
Arquivo do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro. Serviço de Gestão de Arquivos Permanentes
(SEGAP), Processo 1235, ano 1971, 17ª Vara Criminal.
188
Ibidem, folha 4. “Auto de prisão em flagrante”.
189
O termo gilete, usado para designar lâminas de barbear, é o nome da empresa criadora de tal produto.
190
Arquivo da Polícia Civil, Setor de microfilmagem, Boletim de ocorrência da 6ª Delegacia policial, rolo do
ano 1971.
88
performance masculina estava passível de punição e segregação violentas, fosse física ou
psicológica.
Nadir contou para o delegado outra história191. A abordagem de Cristino foi com uma
puxada de cabelo que fez com que a peruca de Nadir saísse de sua cabeça. A situação
constrangedora provocou um sentimento de ódio que a fez sacar a gilete e cortá-lo por
diversas vezes. Nadir e Cristino se conheciam, ambos residiam na Afonso Cavalcante, e
eventualmente brigavam quando se viam.
Em seu interrogatório, Nadir contou que essas brigas aconteciam porque Cristino
exigia que ela lhe desse o dinheiro que conseguia com a venda de comida no Mangue. Mas
ela se recusava a entregar seus rendimentos192. Em um desses momentos, Cristino e mais
alguns colegas agarraram Nadir e lhe deram uma coronhada que lhe custou três dentes. Outros
dois ainda ficaram quebrados. Era comum homens abordarem travestis exigindo que elas
dessem seu dinheiro. E até agiam com violência caso recebessem uma negativa193.
Nadir não prestou queixa à polícia. Aguardou para cuidar da situação no momento
mais oportuno e de sua própria maneira, uma vez que o lugar social em que estava a colocava
em uma condição desprivilegiada em relação à polícia, por conta dos constantes abusos
cometidos pelas autoridades responsáveis pela segurança, e ao judiciário, por causa da
parcialidade demonstrada na resolução dos conflitos nos tribunais. Abusos e parcialidades já
presentes entre os pobres desde, pelo menos, o início do século XX194.
191
Arquivo do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro. Serviço de Gestão de Arquivos Permanentes
(SEGAP), Processo 1235, ano 1971, 17ª Vara Criminal, “Auto de prisão em flagrante”, folha 5.
192
Ibidem, “Interrogatório de acusado”, folha 25.
193
Ver: KULICK, Don. Travesti: prostituição, sexo, gênero e cultura no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz,
2008.
194
Como bem explicitou o autor: “(...) devido à atitude de descrença dos populares em relação à possibilidade de
as autoridades policiais e judiciárias agirem no sentido de arbitrar seus conflitos – descrença essa nutrida por
uma experiência cotidiana de arbitrariedades e violências das ditas autoridades- restava aos populares apenas
(...) a resolução de acordo com regras de comportamento próprias do grupo sociocultural em questão.”. Ver:
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores da belle époque. Campinas, SP:
Editora da Unicamp, 2008. p.303.
195
Nome dado por Kimberlé Crenshaw a um conceito largamente usado pelo feminismo negro na década de
1980 que tinha como objetivo ser uma ferramenta teórico-metodológica para analisar as relações de poder e
subordinação a partir de diferentes marcadores que compõe um indivíduo, tais como: raça, gênero, classe, cultura
de maneira coletiva ou particular a cada pessoa. No Brasil, essa articulação entre gênero e raça foi feita pela
antropóloga e feminista negra Lélia Gonzalez, na década de 1980. Ver: CRENSHAW, Kimberlé. Documento
para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Rev. Estud. Fem., Jan
89
heterossexual, mesmo que pobre e transitando em atividades criminalizadas, permitia-o gozar
de privilégios perante a polícia e a justiça, algo que jamais uma travesti teria. Ainda mais se
carregasse consigo a cor preta na pele. No caso de Nadir, identificada como parda.
Cristino sentiu-se à vontade para prestar queixa, o que não ocorreu com Nadir. É
relevante dizer que no caso do uso da gilete, um guarda estava por perto e conduziu a
agressora até a delegacia. Não é possível saber se havia alguma autoridade próxima quando as
coronhadas doeram e lhe arrancaram o sorriso. O que ficou registrado foi que ela optou por
não ir à polícia.
Escolher andar com uma gilete e usá-la quando teve a peruca arrancada foi a estratégia
de Nadir contra as diversas violências que sofrera desde que saiu de São Paulo em direção ao
Rio de Janeiro, aos 17 anos196. As escolhas feitas por ela tinham de considerar sua situação
financeira, sua condição sexual e sua cor. Havia espaços onde não era seguro estar,
principalmente porque a ausência de trabalho a transformava em candidata preferencial da
repressão policial à vadiagem.
Por mais que o Mangue fosse uma região consagrada pela fama de violenta, era esse o
espaço onde as experiências de abuso de autoridade eram compartilhadas, além da
possibilidade de, ali, trabalhar sem podar sua travestilidade e morar em um lugar no qual sua
condição sexual não era apontada como uma aberração197.
Apesar de só Nadir ter sido qualificada como “homossexual” pelo jornal, o texto dizia
que Cristino era seu companheiro, o que não foi mencionado na narrativa contada aos
policiais assim que o agredido saiu do hospital. O suposto motivo da agressão a Cristino foi a
sua recusa de ir até a casa de Nadir por medo de ser vítima de um “suadouro”. Segundo a nota
do jornal
A curta narrativa apresentada no jornal divergia das histórias contadas pela vítima e
pela agressora nos autos. Muitos periódicos apresentavam notícias com elementos que
contradiziam as informações presentes nos processos. Sidney Chalhoub, ao trabalhar a
história de Zé Galego201, chamou a atenção para a forma como muitos jornais construíam as
notícias. Mesmo que o trabalho citado de Chalhoub analisasse os jornais do início do século
XX, sua pesquisa possibilitou que compreendêssemos, através de suas observações, que o
sensacionalismo tinha como objetivo atrair o maior número de leitores. Objetivo, esse,
superior ao de informar com fidelidade os fatos. Além disso, a forma pela qual as histórias
eram construídas demonstrava o caráter moralizador dos periódicos.
198
Biblioteca Nacional, Periódicos. Tentou escapar do suadouro mas foi cortado a gilete. Diário de Notícias,
Rio de Janeiro, p. 13, 13 de maio de 1971.
199
Suadouro era um tipo de golpe praticado contra uma pessoa atraída a um local para ter relações sexuais. Após
despir-se completamente, tinha seus pertences roubados dos bolsos. Essa prática muitas vezes era executada por
prostitutas e travestis que tinham por objetivo ampliar seus ganhos.
200
Biblioteca Nacional, Periódicos. Tentou escapar do suadouro mas foi cortado a gilete. Diário de Notícias,
Rio de Janeiro, p. 13, 13 de maio de 1971.
201
CHALHOUB, Sidney. Op. cit. p.27
91
Don Kulick, antropólogo e um dos principais teóricos queer202, atualmente professor
de Antropologia na Universidade de Uppsala, na Suécia, pesquisou as travestis de Salvador na
década de 1990203.
92
No jornal, a informação que o objeto usado na agressão era uma gilete tinha por
objetivo insinuar ao leitor que um dos envolvidos era uma travesti. E isso se deu porque são
diversos os relatos sobre o uso da gilete como maneira de se proteger e sobreviver nas ruas.
Esta relação entre travestis e o uso da gilete, no entanto, era mais uma forma de reforçar
estereótipos.
A história de que a travesti anda com giletes escondidas na boca para se defender
dos perigos da noite é uma lenda que perpassa o grupo e a polícia. Em épocas mais
repressivas, ao serem presas, as travestis se cortavam, procurando ser soltas ou
levadas para um pronto-socorro.(...)206
Essa estratégia de andar com uma gilete escondida era uma maneira de evitar prisões,
assim como as conhecidas torturas praticadas por policiais207. Quando as travestis se
cortavam, os policiais necessariamente tinham que prestar esclarecimentos sobre a condição
da suspeita e conduzi-la até um hospital. O que demandaria tempo demais.
Dessa forma, os policias temiam que isso lhes provocasse problemas maiores e, por
conta dos cortes, permitiam que elas seguissem seus caminhos. Don Kulick também falou
sobre a automutilação e agressão policial:
206
PELÚCIO, Larissa. Na noite nem todos os gatos são pardos: notas sobre a prostituição travesti. Cad. Pagu
[online]. 2005, n.25, p. 229. http://www.scielo.br/pdf/cpa/n25/26528.pdf Acesso em: 20/08/2014.
207
No programa de rádio Lado BI, Nº 93, “Travestis envelhecem”, transmitido em 09/04/2015 as travestis Lili
Vargas e Taís Azevedo relataram suas experiências sofridas na década de 1970, período conhecido no Brasil
como “anos de chumbo”, em que elas e outras colegas sofreram todas as vezes que foram abordadas pela polícia.
Em alguns relatos, as agressões ocorreram de maneira tão cruel, que travestis não voltaram com vida após serem
torturadas. Essa prática ainda ocorre, no entanto, a organização de movimentos sociais protagonizados por
travestis, assim como a facilidade de fazer denúncias, tem mostrado cada vez mais esse lado obscuro dos agentes
de segurança contra essas pessoas.
208
KULICK, Don. Op. cit. p.50
93
A preferência por fazer sangrar a própria carne a seguir em uma viatura policial se
apresentou como um dado importante para considerar a agência de sujeitos que transgrediam
em suas performances de gênero. Ou seja, a existência de travestis em espaços públicos já era,
por si só, uma resistência.
Apesar dessas ações policiais descritas por Guido terem acontecido em São Paulo, as
experiências da travestilidade carioca foram marcadas por sofrimentos gerados, em grande
parte, pelos abusos de autoridade e prisões arbitrárias tanto quanto a experiência paulista.
Quando as travestis não conseguiam fugir da polícia, as prisões arbitrárias eram menos
agressivas fisicamente quando comparadas às sessões de tortura a que eram submetidas. Nas
entrevistas com as travestis mais velhas que encontrou em Salvador, Kulick citou casos em
que a policia militar as obrigavam a lutarem nuas entre si sob a luz dos faróis do camburão, as
espancavam e as ameaçavam de morte211.
Outro caso nos ajudará a melhor perceber o cotidiano da prostituição das travestis na
Zona do Mangue. Margarete circulava pelas ruas do Mangue com um vestido quando um
português se sentiu atraído e logo foi abordá-la212. Depois da conversa habitual, trataram os
valores e o português Vitor, junto da mulher que desejara, seguiu para uma das casas do
Mangue, lugar para a consumação do encontro. Ainda despido, assim que foi colocar suas
roupas, Vítor deu falta de seus pertences, percebeu que era um golpe e saiu atrás de
209
GREEN, John. Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Editora
UNESP, 2000. p. 404.
210
Ibidem, p.405
211
KULICK, Don. Op. cit. p. 49
212
Biblioteca Nacional, Periódicos. Assaltos e prisões: luso 2 vezes enganado com o golpe do travesti. Diário de
Notícias, Rio de Janeiro, p. 13, 07 de abril de 1971.
94
Margarete. Enquanto ela o distraíra, seus comparsas levaram todo o dinheiro que estava em
seus bolsos.
Os gritos da vítima chamaram a atenção dos policiais que faziam a ronda na região e
logo a quadrilha, que contava com a participação de Margarete, foi presa. No dia seguinte, a
foto dela e dos demais acusados estampou uma das páginas do Diário de Notícias sob o
seguinte título “Assaltos e prisões: luso 2 vezes enganado com o golpe do travesti”. De acordo
com o texto do jornal
Para o jornal, a travesti enganou quando se vestiu e se portou como uma figura
feminina. Então, Vítor foi ludibriado pois ele não iria até o quarto onde ocorreu o encontro se
soubesse que Margarete era travesti. Essa maneira de adjetivar os homens que saiam com as
travestis de “enganados” chamou a atenção na pesquisa pela forma como a masculinidade era
apresentada naquele momento. Nessa idealização sobre a figura do homem, uma relação
homossexual só aconteceria por engano. Como no caso das travestis que, ao “representarem”
mulheres, levariam os homens ao “erro”. Percebeu-se, mais uma vez, a polarização entre
algoz e vítima, lugares ocupados, respectivamente por travestis e homens.
No entanto, essa ideia do primeiro engano gerou desconforto, porque andar pelas ruas
quentes da cidade não era comum aos desavisados. Dentro de um baixo meretrício onde o
golpe do suadouro era recorrente213 - assunto de carta de leitores, notícia em jornais – e
realizado tanto por travestis quanto por prostitutas, o que pareceu de fato golpe foi limpar os
bolsos do português enquanto estava nu junto a Margarete.
213
Biblioteca Nacional, Periódicos. Gerico. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, p. 7, 11 de julho de 1970.
214
GREEN, James. Op. cit.
95
Sendo assim, se havia um consentimento social para que as bichas circulassem em
determinados espaços por determinados momentos, quando elas apareciam fora desse
“momento”, em espaços não reconhecidos socialmente para homossexuais, havia conflito.
Além de agressão e prisão. Green demonstrou isso em sua pesquisa ao sinalizar que
As travestis abordadas nesse capítulo não viviam nas mesmas condições que um
homossexual da classe média. Novamente, o exercício da interseccionalidade se fez
necessário, uma vez que as prisões em massa aconteciam mais frequentemente em
determinados endereços, assim como havia um perfil de homossexual que sofria mais com
essas prisões.
Na primeira prisão por vadiagem, em 1967, já era a quinta vez que Felisberto não
conseguia comprovar que ganhava a vida de maneira honesta. Quando foi abordado na Rua
Pinto de Azevedo por policiais, ele não tinha qualquer documento que comprovasse ter um
emprego. Quando perguntado sobre a profissão, respondeu ser copeiro. Os policiais não
acreditaram. Mas como comprovar um ofício para o qual patrões e patroas mantinham
vínculos próximos à ideia de criadagem? Na tentativa de sensibilizar o juiz do caso, um
estagiário de direito enviou a ele um pedido de justiça:
215
GREEN, James. Op. cit. p. 396.
216
Arquivo do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro. Serviço de Gestão de Arquivos Permanentes
(SEGAP), Processo nº3183/69, ano 1969, 17ª Vara Criminal, “Folha de Antecedentes Criminais”, folha 18.
217
Ibidem, “Auto de prisão em flagrante”, folha 2.
218
Arquivo do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro. Serviço de Gestão de Arquivos Permanentes
(SEGAP), Processo nº4523/67, ano 1967, 18ª Vara Criminal, “Interrogatório do acusado”, folha 15.
96
Está trabalhando como copeiro, não sendo portanto vadio.
Em 23-05-67219
Como foi demonstrado na última citação, as cafetinas não tinham interesse em tirar
seus empregados da cadeia, se isso pudesse lhe render alguma investigação ou prisão. Sendo
assim, era possível que Felisberto tivesse um trabalho, que estivesse dizendo a verdade no
interrogatório. Mas sua patroa, dona Tânia, talvez não quisesse se comprometer indo à
delegacia comprovar que se tratava de um de seus empregados.
Em 1969, Felisberto foi preso novamente, sob a mesma alegação: vadiagem. Desta vez
foi no subúrbio do Rio, no Jardim do Meier. Após a voz de prisão por ausência de
documentação, ele foi conduzido à delegacia e ao delegado respondeu não ser vadio, e sim
cozinheiro na rua Rodrigues dos Santos, Estácio221.
Quando interrogado, afirmou novamente que “ (..) na sua profissão é difícil o patrão
assinar documentos”222. Ele havia se deparado com o mesmo problema de antes, e respondia
da mesma maneira, o que provavelmente pode ter acontecido repetidas vezes ao longo de sua
vida.
Segundo o acusado, apesar de ter entregado desta vez uma declaração feita por seu
patrão confirmando seu vínculo de trabalho, os policiais entenderam que não era o ideal e
rasgaram-na, espancando-o em seguida223. Felisberto declarou, em 1967, que se sentia
219
Ibidem, folha 16.
220
Ibidem, “Auto de prisão em flagrante”, folha 2, verso.
221
Arquivo do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro. Serviço de Gestão de Arquivos Permanentes
(SEGAP), Processo nº3183/69, ano 1969, 17ª Vara Criminal, “Auto de prisão em flagrante”, folha 2, verso.
222
Ibidem, “Interrogatório do acusado”, folha 24.
223
Arquivo do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro. Serviço de Gestão de Arquivos Permanentes
(SEGAP), Processo nº3183/69, ano 1969, 17ª Vara Criminal, “Interrogatório do acusado”, folha 24.
97
perseguido pelos policiais em um dos seus depoimentos224. O processo de 1969 foi resultado
de sua 11ª prisão por vadiagem. O que ele tinha que chamava a atenção dos policiais? Cara de
vadio?
224
Arquivo do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro. Serviço de Gestão de Arquivos Permanentes
(SEGAP), Processo nº4523/67, ano 1967, 18ª Vara Criminal, Auto de prisão em flagrante, folha 2, verso.
98
Divisão racial das prisões por vadiagem
Divisão racial das prisões por vadiagem
40
35
30
25
20
36
15 29
24
10
16
5
0
Não informado Preto Pardo Branco
Em nenhum dos dois processos citados havia qualquer indício que Felisberto era
travesti. Os policiais não declararam as vestes do acusado, como minissaias, blusas decotadas,
perucas ou nomes femininos. Visto que era uma prisão por vadiagem, a descrição das vestes
não era tão importante, como em um caso de perturbação da ordem ou atentado ao pudor.
99
trabalhos domésticos. Todavia, com o passar dos anos a vivência no meretrício enquanto
prostituta ficou mais evidente. Armando Pereira afirmou em um de seus estudos que:
Ao prestar declarações sobre a queixa, Cantora revelou ter vendido a peruca para uma
senhora conhecida no Mangue como “Tia Bené”, Benedita Araújo. Tia Bené, por sua vez,
disse que recebeu a peruca como pagamento de uma dívida que Cantora tinha com ela.
Assim como Cantora, Carmem também tinha sua história marcada por prisões por
vadiagem. Nos processos, Carmem, ou Carminha, era José Celestino. Em 1970, Carmem foi
presa por perturbação da ordem quando caminhava pela Av. Vieira Souto227. Segundo os
policiais, estava vestida como travesti228. Ela usava minissaia e peruca e estava na companhia
de colegas, quando os policiais a prenderam por atentar contra a tranquilidade das famílias.
Nesse processo não havia qualquer referência à prostituição.
Novamente Carmem foi presa, em 1971229. Segundo o testemunho dos dois policiais
que a conduziram até a delegacia, a acusada percorria a orla de Ipanema convidando os
225
PEREIRA, Armando. Bandidos e favelas: uma contribuição ao estudo do meio marginal carioca. Rio de
Janeiro: Eu e Você, 1984. p. 104
226
Arquivo da Polícia Civil, Setor de microfilmagem, Boletim de ocorrência da 6ª Delegacia policial: roubo, 14
de maio de 1971. Rolo 1970-1971.
227
Arquivo do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro. Serviço de Gestão de Arquivos Permanentes
(SEGAP), Processo nº61741/70, ano 1970, 18ª Vara Criminal, “Auto de Prisão em Flagrante”, folha 2.
228
Idem.
229
Arquivo do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro. Serviço de Gestão de Arquivos Permanentes
(SEGAP), Processo nº473/71, ano 1971, 34ª Vara Criminal.
100
passantes para um encontro libidinoso em troca de dinheiro. Ou seja, Carmem estaria fazendo
trottoir na zona sul.
Os policiais descreveram seus trajes assim como o fizeram em 1970. Ela vestia um
vestido de alcinha, cor de rosa, todo estampado, bem acima dos joelhos230. E também usava
uma peruca de cabelos castanhos curtos. Talvez fosse a peruca que Cantora furtou cerca de
um mês depois dessa prisão. Além disso, os policiais disseram que ela, aos gritos, proferiu
palavras de baixo calão assim que a viatura chegou para controlar o escândalo e acabar com a
perturbação da tranquilidade231.
Na audiência, Carmem disse que era pederasta e ainda negou que estivesse fazendo
trottoir, uma vez que seus rendimentos provinham de seu trabalho como doméstica232. E
complementou sua fala ao juiz, dizendo que os policiais que a prenderam em Ipanema, foram
os mesmos que a conduziram à delegacia em outras ocasiões. O que se aproximou bastante do
que Felisberto declarou em sua audiência sobre a perseguição dos policiais233.
Apesar do desgaste físico e emocional que uma prisão desse tipo podia provocar, a
alegação dos policiais foi considerada improcedente, pois não havia denúncia dos moradores
da região contra ela234. Assim, o juiz determinou o arquivamento desse processo:
Não há prova de que qualquer pessoa tenha sido molestada pela atividade do menor
nem se qual queixaram nos autos. O que está acontecendo é que os policiais
fecharam-se dentro da presunção da legitimidade e dela estão abusando. Por tais
julgamentos, julgo improcedente a investigação determinando seu arquivamento
bem como a entrega do menor ao responsável aqui presente.235
230
Arquivo do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro. Serviço de Gestão de Arquivos Permanentes
(SEGAP), Processo nº473/71, ano 1971, 34ª Vara Criminal, “Auto de apresentação e Apreensão”, folha 2.
231
Ibidem, “Auto de Prisão em Flagrante”, folha 3, verso.
232
Ibidem, folha 5.
233
Arquivo do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro. Serviço de Gestão de Arquivos Permanentes
(SEGAP), Processo nº3183/69, ano 1969, 17ª Vara Criminal, “Interrogatório do acusado”, folha 24.
234
Arquivo do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro. Serviço de Gestão de Arquivos Permanentes
(SEGAP), Processo nº473/71, ano 1971, 34ª Vara Criminal, “Audiência de Apresentação do Menor”, folha 12.
1971.
235
Idem.
236
Ibidem, folha 5.
101
os prazeres da noite, também sendo entendido como boêmio, o que pode ter corroborado para
o desquite.
A mãe sabia da condição do filho de pederasta. Carmem, inclusive, já estava com seus
seios em formação. Constava nos autos também que não houve movimentação da família para
um tratamento conveniente.
No texto do documento não estava claro se o tratamento conveniente seria para acabar
com sua condição homossexual, ou um acompanhamento psicológico devido às agressões,
prisões e à dificuldade de ser homossexual em uma sociedade que não aceitava a sexualidade
que se distanciasse da heteronormatividade237. Carmem disse em audiência que se sentia bem
como era, e que seu principal problema eram as provocações e humilhações que sofria por ser
travesti.
Mesmo que a pesquisa tenha ocorrido em meados da década de 1990, havia relatos de
travestis com cerca de 40 anos que tinham ingerido hormônios aos 15. Dessa forma, esse
estudo sobre as travestis de Salvador corroborou para melhor apreciação do caso de Carmem.
237
A heteronormatividade é um termo usado para definir as normas compartilhadas pela heterossexualidade.
238
HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século xx: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras,
1995. Revolução Cultural, pp. 314-336.
102
As primeiras pílulas anticoncepcionais tinham elevada taxa hormonal e sua presença
foi bastante discutida na imprensa que ora abordava seus prós, ora os contras239. Médicos
ginecologistas indicavam para as suas pacientes o uso da pílula anticoncepcional, e por essas
informações foi possível deduzir a classe social das mulheres que tinham maior acesso a essas
pílulas240: aquelas que tinham dinheiro suficiente para consumir uma novidade farmacológica
e faziam acompanhamento regular com ginecologistas. Ou mesmo as mulheres que tinham
acesso a revistas que traziam matérias abordando o assunto.
Entretanto, não eram apenas as mulheres que iam até a farmácia em busca dos
anticoncepcionais. Travestis também os compravam, mas com objetivos diferentes. Para
Carmem, as pílulas com hormônios femininos eram um caminho para viver em um corpo
marcado pela feminilidade. Ao fazer uso desse medicamento, travestis ingeriam progesterona
e estrogênio e, assim, estimulavam o crescimento de seios e o aumento dos quadris:
A ingestão de hormônios pelas travestis estava muito ligada à prostituição, uma vez
que ter uma aparência mais feminina interferia em um aumento considerável da lucratividade.
Ter um corpo de mulher não era o propósito de todos que viviam a homossexualidade,
todavia, era uma maneira de atrair mais clientes.
Dessa forma, é importante compreender que a escolha por ser travesti podia estar
diretamente relacionada à necessidade de sobrevivência. Ainda mais, se considerarmos que
muitos jovens eram expulsos de suas casas ainda crianças, ou entrando na puberdade, e a
prostituição era a escolha que gerava mais lucro para eles conseguirem pagar as próprias
contas.
239
PEDRO, Joana Maria. A experiência com contraceptivos no Brasil: uma questão de geração. Rev. Bras. Hist.
[online]. 2003, vol.23, n.45, pp. 239-260. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882003000100010 Acesso em: 13/07/2015.
240
Ibidem, p.243.
241
KULICK, Don. Op. cit. p. 83.
103
No caso de Carmem, que nascera do sexo masculino e, por isso, deveria performar a
masculinidade a partir de conceitos heteronormativos, o reconhecimento de sua
homossexualidade provavelmente foi um dos motivos para as dificuldades de relacionamento
com seus familiares. Não expressar a masculinidade, quando possuidor de um órgão sexual
masculino, era considerada uma desonra, motivo para escárnio, vergonha para a família.
Diante disso, era comum que rapazes homossexuais abandonassem seus lares ou
fossem expulsos dos mesmos. E, precisando sobreviver nas ruas, eles descobriam que a
prostituição era um caminho para receber dinheiro de maneira mais rápida. A transição, em
muitos casos, não ocorria por uma questão de não lidar com o corpo masculinizado, e sim
porque permitia maiores ganhos na prostituição242. Vestir-se, portar-se e ter um nome
feminino era uma estratégia, no caso de algumas travestis, para receber mais nos encontros e
ampliar a rede de clientes.
Era julho de 1970, quando Cassiano decidiu partir de Belém do Pará, com destino ao
Estado da Guanabara, ele tinha como objetivo recomeçar a sua vida243. Ao entrar no ônibus,
sentou-se ao lado de Zenira, com quem logo fez amizade. A longa viagem de cerca de dois
dias foi encurtada pelas conversas que teve com sua vizinha de assento.
Algumas horas antes deles desembarcarem, Cassiano disse que não tinha para onde ir
quando saísse da rodoviária244. Zenira ficou preocupada, e decidiu convidá-lo para passar
alguns dias em sua casa, até que ele encontrasse um lugar para ficar245. Nesse período, ela
242
SANTOS, Rafael França Gonçalves dos. As aparências enganam? A arte do fazer-se travesti. Curitiba:
Appris, 2015.
243
Arquivo do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro. Serviço de Gestão de Arquivos Permanentes
(SEGAP). Processo nº4264/73, ano 1973, 20ª Vara Criminal, “Auto de Qualificação”, folha 12, verso.
244
Idem.
245
Idem.
104
procuraria um emprego como copeiro246. Cassiano já havia trabalhado como taifeiro na
Marinha, logo, conhecia bem a rotina de trabalho das cozinhas.
Quando Zenira retornou para seu apartamento, percebeu que a porta estava aberta e se
deu conta da ausência de alguns objetos de valor247. Ela, então, seguiu para a delegacia e
prestou queixa.
Dois dias depois, a vítima retornou à delegacia para acrescentar novos objetos que
desapareceram de seu apartamento, tais como: isqueiro, rádios de pilha, despertador, vários
brincos, vidros de perfume, óculos248. Zenira não sabia avaliar a quantia dos objetos e indicou
um suspeito. Ela suspeitou de Cassiano e avisou a polícia.
Meses depois, em 1971, o acusado foi detido e confessou o roubo249. Cassiano disse
aos policiais que tinha vivido alguns dias com Zenira, e que o emprego que ela havia lhe
arranjado não durou muito. Ainda falou que em dezembro retornou a casa dela para pedir
ajuda. O acusado revelou que já havia matado um homem a navalhadas em uma briga, e esse
foi o real motivo que o levou a seguir viagem para o Estado da Guanabara.
Além disso, Cassiano disse ser conhecido como Martinha. O uso de um nome
feminino, e o reconhecimento do mesmo pelo grupo de amigos ao qual pertencia foi um dos
elementos para identificação da travestilidade dos indivíduos apresentados nesse trabalho.
Alguns processos não identificavam o gênero dos acusados ou das acusadas. Principalmente
aqueles sobre flagrante de vadiagem, a não ser pelo acréscimo de outro nome feminino.
246
Arquivo do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro. Serviço de Gestão de Arquivos Permanentes
(SEGAP). Processo nº4264/73, ano 1973, 20ª Vara Criminal, “Auto de Qualificação”, folha 12.
247
Ibidem, “Furto-Comunicação”, folha 2.
248
Ibidem, “Aditamento”, folha 3.
249
Ibidem, “Aditamento”, folha 4.
105
ele conhecer a vítima, e tê-la como uma pessoa que o ajudava, possibilitou a interpretação de
que ele agiu de má fé, tendo construído uma relação de confiança para depois roubá-la.
Também podia ser o caso do acusado considerar que sua amiga entenderia a situação,
por saber de todas as dificuldades que ele enfrentava. Eles se conheciam desde julho, tempo
suficiente para construir uma amizade, visto que diversas vezes ficou na casa dela. Assim
como também foi tempo suficiente para saber que bens ela guardava no apartamento. Algo
bem próximo ao caso de Cantora, quando decidiu pegar a peruca de Carmem para pagar sua
dívida com tia Bené.
Ou ainda terem se desentendido e, por isso, entender que a outra pessoa tinha a
obrigação de lhe ajudar, mas não o fez. Portanto, tanto Martinha quanto Cantora, decidiram
resolver suas dificuldades através do roubo a quem tinham como amigas.
Esse último caso, assim como o roubo da peruca, expôs crimes cometidos por
travestis, o que na visão de delegados e jornalistas confirmavam seus estereótipos. Todavia,
diante da ausência de trabalhos e da própria dificuldade na prostituição, o roubo se constituía
numa possibilidade de amenizar os problemas do cotidiano, ou estratégia diretamente
relacionada à falta de renda.
As casas que, porventura, conseguem estruturar, não podem subsistir porque anti-
econômicas. A prostituição comercial se baseia na prestação do ato sexual mediante
paga. Ora, aqui raramente, ou porcas vezes, o cliente paga o invertido. O que ocorre
é quase sempre o oposto – o invertido pagando ao seu cliente251
Essa percepção de que o homossexual era o pagante do sexo, mesmo que em posição
de prestador de serviço, foi muito bem analisada por Kulick através das narrativas de suas
entrevistadas. Só a partir do uso de hormônios, segundo seu estudo, que as travestis passaram
250
PEREIRA, Armando. Sexo e prostituição. Rio de Janeiro: Gráfica Record Editora, 1968. p. 107.
251
Ibidem, p. 109
106
a cobrar pelo sexo, tais quais as prostitutas252. A construção do corpo, do comportamento e de
uma identidade relacionada ao feminino foi um meio das travestis se tornarem atraentes aos
homens, e consequentemente, aos clientes.
Além dessas questões, havia as prisões. Algo que já foi debatido anteriormente.
Durante a ditadura militar, as submissões à tortura e humilhações se estendiam a todos os
indivíduos marginalizados, principalmente travestis. A resistência delas, que permaneciam
nas ruas, mesmo após todo tipo de agressão, foi muito bem descrita pelo antropólogo.
Mesmo que não se vestissem totalmente como mulheres – em alguns casos, apenas
usavam determinados elementos associados ao feminino, o que podia caracterizar certa
androgenia, havia o chamado “trejeito” que fazia com que socialmente fosse entendido como
bicha. E, assim, era comum que tomassem para si, ou recebessem indicação para fazer
serviços comumente desenvolvidos por mulheres.
252
KULICK, Don. Op. cit. p. 159.
253
Ibidem, p.159
254
Arquivo do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro. Serviço de Gestão de Arquivos Permanentes
(SEGAP). Processo Criminal, nº 4081/69, homicídio, 26ª Vara Criminal, “Termos de Declarações”, folha 9.
107
travestilidade. Embora entendessem o meretrício como um espaço em que toda a expressão da
sexualidade fosse compreendida, homossexuais e travestis encontravam resistências,
preconceitos e discriminações.
A visão construída sobre a travesti tinha relação com o que estava abaixo da
prostituição feminina, o que tinha em si uma referência à crença da desonra de um homem
que se submetia a ter relações com outro homem ocupando o papel passivo, destinado às
mulheres.
Com isso, foi possível observar a interseccionalidade de ser uma mulher prostituta e
ser uma travesti prostituta. Existia uma diferença inequívoca que não estava somente ligada
ao sexo biológico, mas também às diversas construções culturais e sociais sobre as posições e
papeis definidos para cada gênero. Portanto, não havia a negação das travestis, e sim a
definição de um papel subalterno ao da mulher que se prostituía. No Mangue, existia uma
hierarquia de gênero.
255
PEREIRA, Armando. Sexo e prostituição. Rio de Janeiro: Gráfica Record Editora, 1968. p. 110.
108
Conclusão
Nesse capítulo pudemos observar que a Zona do Mangue era um baixo meretrício
constituído de pluralidades de gênero e sexualidade, inclusive na atuação da principal
atividade. Ou seja, as travestis estavam presentes no Mangue e parte delas vivia da
prostituição.
Dessa maneira, essa escolha dizia mais sobre sobrevivência que necessidade de ser
lida pela sociedade como mulher256. A maior lucratividade da prostituição influenciou a forma
pela qual os homossexuais do baixo meretrício vivenciaram a travestilidade. Também
influenciaram na vivência da travestilidade, as diversas mudanças históricas que se
desencadearam no país, e uma delas foi a chegada da pílula anticoncepcional no Brasil da
década de 1960. Os hormônios contidos nas pílulas possibilitaram que as mulheres vivessem
sua sexualidade livremente, assim como permitiu que as travestis pudessem iniciar
transformações em seus corpos que os aproximassem de um corpo feminino.
256
Essa conclusão só foi possível após ouvir relatos e análises de mulheres trans sobre a prostituição e vivência
de travestis nas ruas.
109
Mesmo que tenham protagonizado experiências dolorosas, relacionadas diretamente
com contextos políticos e sociais, elas ainda foram colocadas na clandestinidade das notas de
rodapé. E isso sendo sujeitos históricos atuantes e transformadores da própria realidade,
formadores de estratégias de sobrevivência diante das perseguições e violências, físicas e
simbólicas.
110
Conclusão
As flores horizontais deste trabalho tiveram suas trajetórias expostas e analisadas para
além da sexualidade transgressora. A chegada e a permanência de prostitutas e travestis na
Zona do Mangue, ao longo do século XX, foi marcada por constante repressão. Todavia, a
prostituição não era o único foco da ação de policiais. Todos os aspectos que envolviam a
marginalidade no baixo meretrício eram entendidos como elementos a serem eliminados,
encarcerados e perseguidos pelo Estado.
O recorte temporal desta pesquisa coincidiu com o período em que o Brasil esteve sob
o governo de uma ditadura civil militar. Muitas análises sobre esse momento histórico se
concentraram na atuação de camadas intelectualizadas, envolvidas na vida política do país.
No entanto, este trabalho propôs a análise das experiências de prostitutas, travestis e
indivíduos que participaram da Zona do Mangue, um baixo meretrício que, independente de
111
ideologias políticas e governos, atravessava a História imerso na categoria “torturáveis”257,
segundo Luciano Oliveira.
Além dessas análises, o capítulo buscou compreender quais indivíduos atuavam nas
ruas do Mangue e que atividades estavam presentes no cotidiano desse espaço. Posto isto,
pudemos afirmar, a partir das fontes, que a prostituição não era atividade exclusiva. Nas
mesmas ruas dos bordéis, existiam bares e cafés que atendiam passantes, clientes, prostitutas e
moradores. E como não era um espaço destinado somente para lojas, as ruas também eram
compostas de casas, sobrados e prédios, alguns deles de habitações coletivas.
A prisão por vadiagem era uma das formas do poder público retirar das ruas aqueles
indivíduos indesejáveis do ponto de vista moral: prostitutas, travestis, pobres e negros. Era
uma maneira de “limpar” a cidade. Logo, esses dados foram importantes porque apresentaram
257
OLIVEIRA, Luciano. Do nunca mais ao eterno retorno: Uma reflexão sobre a prostituição. São Paulo:
Brasiliense, 2009.
112
as categorias que eram entendidas como “perigosas” e, mais do que isso, subversivas à moral
e aos bons costumes.
O caso de Nina, exposto no segundo capítulo, narrou a história de uma prostituta que
assassinou a pancadas com uma barra de ferro, uma senhora que havia sido sua cafetina na
Zona do Mangue. Na noite do crime, Nina teria ingerido cerveja, o que pode ter a ajudado a
materializar o que desejava fazer com Tia Rosita.
A tensão entre essas mulheres, em uma relação que explicitava questões históricas,
como a presença de prostitutas estrangeiras na Zona do Mangue, o fato dessas mulheres se
tornarem cafetinas e a interação conflituosa entre prostitutas e cafetinas demonstrou o quanto
uma análise limitada à ótica mercadológica excluiria diversas questões embutidas nessa
relação.
Uma delas era a condição que muitas mulheres se encontravam quando batiam à porta
de bordéis em busca de uma vaga. A falta de trabalho, ou o cansaço devido a baixa
remuneração no trabalho doméstico, despertava o interesse pela prostituição, vista como uma
oportunidade de receber o suficiente para se sustentar ou manter a família. Uma vez que
muitas prostitutas recebiam as primeiras orientações sobre o ofício de suas cafetinas, ou até
mesmo conselhos de quem já tinha vivido experiências próximas às que elas relatavam, a
relação não existia apenas para a manutenção do lucro. Havia a aproximação pela experiência
compartilhada. Cafetinas eram as prostitutas que envelheceram.
113
O segundo capítulo também teve como objetivo problematizar a escolha pela
prostituição. A prostituta era uma trabalhadora, e a partir dessa perspectiva entendemos que a
prostituição foi uma consequência do conjunto de experiências e escolhas das mulheres
observadas. Todavia, foi importante considerarmos que a decisão pela prostituição no baixo
meretrício foi tomada a partir de um leque de possibilidades bastante restrito.
Por conta dos estereótipos, muitas prostitutas esconderam sua ocupação das
autoridades, optando por se dizerem domésticas. Essa era uma estratégia dessas mulheres que
pretendiam se esquivar da arbitrariedade de policiais, delegados e juízes. No entanto, Dilma,
uma das prostitutas apresentadas nesse capítulo, diante de uma prisão por vadiagem, afirmou
ser meretriz. Essa fala chamou a atenção durante a pesquisa, uma vez que ela negava a
condição de vadia, declarando-se prostituta e, com isso, trabalhadora. Ou seja, nesse
momento, se afirmar enquanto prostituta também foi uma estratégia para lidar com as
autoridades.
Entendendo que a prostituição era a principal atividade na Zona do Mangue, mas não a
única a ser realizada pelas mulheres, também vimos que a venda de drogas ilegais era um dos
meios delas adquirirem renda ou reforçar o orçamento. Da mesma forma como a aplicação de
golpes, no caso do suadouro e da venda do apartamento feita por Benedita.
Sobre as relações de gênero, o rufianismo era uma das formas de interação entre
homens e mulheres. Apesar de se tratar de uma relação desigual, haviam interesses mútuos
entre meretrizes e rufiões. Se as prostitutas precisavam de proteção para atuar nas ruas, os
rufiões faziam a segurança dessas mulheres para obter dinheiro. Eram eles os responsáveis
por cobrar dos clientes caloteiros, ou ir até a delegacia soltar as mulheres quando eram presas.
114
No entanto, os aspectos desiguais podiam ser percebidos devido as mulheres sofrerem
com os abusos e exploração dos homens que tinham por objetivo protegê-las. Principalmente
quando eram os rufiões quem agenciavam as prostitutas, tal qual um cafetão. Há de se
considerar que as mulheres ficavam mais expostas à exploração quando, além das
negociações profissionais, o rufião desempenhava um papel importante em seu círculo
afetivo, sendo o amásio, marido ou namorado da prostituta.
Dessa forma, ficou evidenciado parte dos papeis que eram desempanhados pelos
homens dentro da Zona do Mangue. Entretanto, Assim como as mulheres desenvolviam
diferentes papéis, os homens também não se limitavam a serem clientes ou rufiões. Eles
também eram comerciantes, donos de bares, apontadores de jogo do bicho, traficantes de
drogas ilícitas, seguranças, exerciam trabalho doméstico, copeiros, cozinheiros e até
cuteleiros.
Alguns desses homens que transitavam pelas ruas da Zona do Mangue eram
homossexuais, como acompanhamos no terceiro capítulo que teve como objeto de análise as
travestis. Os homossexuais trabalhavam nas casas de prostituição em diversas ocupações,
principalmente àquelas compreendidas como essencialmente femininas, no caso de cuteleiros
ou domésticos. Mas atuavam também como seguranças, cozinheiros e copeiros de bares e
bordéis, construindo relações estreitas com a prostituição.
115
do Estado, instigaram à construção de estratégias e grupos para defesa dos direitos dos
homossexuais258.
Nas trajetórias das travestis, também foi necessária a construção de estratégias para
que sobrevivessem às adversidades e violências. Dentre as diversas formas encontradas para
se manterem vivas, ou longe das cadeias, estava o uso da lâmina de barbear. Essas lâminas
serviam como armas contra o ataque de agressores. Entretanto, uma das principais utilidades
dessas lâminas era provocar ferimentos sobre o próprio corpo para que os policiais deixassem
de conduzi-las até às delegacias, onde elas seriam torturadas e presas.
A própria constituição da travesti era uma estratégia de sobrevivência, uma vez que o
uso de nomes femininos, assim como comportamento, roupa, mudanças corporais e acessórios
eram elementos importantes para que se destacassem nas ruas e conquistassem mais clientes.
A prostituição era uma oportunidade, e a construção de uma identidade feminina era um meio
de garantir maior lucratividade.
A partir das observações feitas, pudemos afirmar que a Zona do Mangue era um
espaço em que a prostituição feminina não era restrita à presença de mulheres cisgêneros259,
uma vez que travestis também estavam presentes nesse baixo meretrício. Além disso, a
prostituição não era a única atividade que movimentada a economia, visto a circulação de
traficantes de drogas, assim como o desempenho de outras ocupações que podiam ter uma
relação direta ou indireta com a prostituição.
258
A partir de 1978, a liberdade sexual ganhou mais notoriedade no Brasil, com o Movimento de Liberação
Homossexual, em que militantes homossexuais começaram a se organizar para lutar por seus direitos. Ver:
ARAÚJO, Paulo César. Eu não sou cachorro, não: Música popular cafona e ditadura militar. Rio de Janeiro:
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259
A cisgeneridade consiste na consonância do sexo biológico com a identidade de gênero.
116
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Fontes consultadas
Periódicos
Diário de Notícias, Rio de Janeiro
Correio da manhã, Rio de Janeiro
Última Hora, Rio de Janeiro
Meses e anos consultados: Dezembro de 1960, Junho de 1961, Julho de 1970, Abril a Agosto
de 1971, Janeiro de 1973, Janeiro e Julho de 1975.
Todos compõem o acervo da Biblioteca Nacional
Processos Criminais
Processo nº4523/67, ano 1967, 18ª Vara Criminal.
Processo nº 5757/68, ano 1968, 5ª Vara Criminal.
Processo nº3183/69, ano 1969, 17ª Vara Criminal.
Processo nº 4081/69, ano 1969, 26ª Vara Criminal.
Processo nº61741/70, ano 1970, 18ª Vara Criminal.
Processo nº4573/71, ano 1971, 24ª Vara Criminal.
Processo nº 2330/71, ano 1971, 21ª Vara Criminal.
Processo 1235/71, ano 1971, 17ª Vara Criminal.
Processo nº473/71, ano 1971, 34ª Vara Criminal.
Processo nº4264/73, ano 1973, 20ª Vara Criminal.
Processo 14441/74, ano 1974, Comarca de Duque de Caxias, 1ª Vara Criminal.
Entrevista
123
Decretos
Livros
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carioca. Rio de Janeiro: Livraria Eu e Você, 1984.
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