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Livro Da Infancia - Francisca Julia

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Francisea Julia da Silva

livro h jafancia
COM UM PREFACIO
DO

gr. Jaltü %8av da j5tha

São Paulo
TYPOQRAPHIA DO « DIÁRIO OFFICIAL »
1899
(Sto sr. dr. ^João Qsdapfôsfa c/e £//lef/o

Em signal de amizade, consi-


deração e respeito

OFPBEECB

a —Auetora
PREFACIO

0 presente livro é destinado ás creanças que já tenham


feito seu curso elementar de leitura e se achem habilitadas
a iniciar estudos menos fáceis. Este livro é um repouso em
que ellas venham descançar o espirito, é uma obra agradável
© duplamente apreciável que, ao mesmo tempo que lhes en-
sina vocábulos sonoros e do aso menos vulgar, lhes desperta
o gosto para leituras mais litterarias, para delicadezas de
-conceppao o subtilezas de estylo.
Bm geral, as obras deste gênero, destinadas á educação
da infância, que correm mundo adoptadas em diversas escho-
las, sao, com rarissimas excepções, incorrectas na fôrma e na
linguagem, e nas quaes, ao lado da frieza da narrapao, da
infantilidade dos assumptos, da imperfeição dos versos e mol-
leza na factura dos períodos, se encontram vicios, solecismos
e defeitos de toda a espécie. Outros livros ha, e poucos, que
sao mais ou menos perfeitos na correcção da linguagem ;
mas, ou porque seus auctores tenham apenas em vista distra-
hir os estudantes com a grapa e leve moralidade dos seus
VI LIVRO DA INFÂNCIA

contos e novellas, ou porque, e 6 o quo parece mais natural,


tenham pouco cultivo littorario, não accordam no espirito in-
fantil certa elevação de sentimentos, que é oxaetamente o
alvo que collima o presente trabalho.
Do mérito littorario da auetora não 6 aqui o logar de
falar: sabem-n'o sobejamente todos aquelles que têm acom-
panhado o extraordinário movimento litterario quo se iniciou
cm nossa pátria de uns annos a esta parte. Os contos e
versos de que se compõe o LIVRO DA INFÂNCIA são simples
na forma, fluentes na narração e escriptos no melhor verná-
culo. Em baixo de cada pagina vem a explicação dos vocá-
bulos menos conhecidos; nesse pequeno diecionario, que acom-
panha cada conto ou poesia, a auetora não dá ás palavras
todas as intelligoncias léxicas, mas só aquellas em que são
vulgarmente conhecidas.
Estas explicações são feitas de um modo fácil e com-
prehensivel.
Emflm, o LIVRO DA INFÂNCIA ahi está; outros que o
julguem também. Eu pelo menos julgo-o o melhor que pôde
haver no gênero.

S. Paulo, Março, 1899.

JÚLIO CÉSAR DA SILVA.


Lhrro da Maneia
ANACREONTE

Em Téos, na Grécia antiga, havia um poeta


que Be chamava Anacreonte.
Era velho, tinha os cabellos inteiramente
brancos e as barbas anneladas1 e longas, que lhe
cobriam o peito e lhe davam um aspecto sympa-
thico e venerando 2.
Era o homem mais feliz que havia. Como
todos o amavam e o distinguiam com uma admi-
ração sem limites, nada lhe faltava.
Sua habitação ficava á beira do mar, cujas
ondas, na enchente, vinham até á sua porta,
quebrando-se em espumas alvas.
Pela manhan, mal a aurora tinha nascido, as
camponezas de Téos vinham em grupo trazer ao
poeta o sustento do dia. Uma trazia um cântaro3
âe barro cheio de leite gordo, outra um púea-
ro * de saboroso vinho espumante e fructas de todas
as qualidades; outra
5
ainda um vaso de água pura
para as abluções matinaes do poeta. Depois un-
ctavam-lhe6 as barbas e cabellos com óleos aroma-
1 Anneladas, em feitio de anneis; enroladas.
2 Venerando, que se deve venerar; digno de respeito.
3 Cântaro, bilha, vaso de barro de bocca larga.
4 rwa.ro, vaso por onde se bebe agaa.
5 Ablução, acto de lavar-se; lavagem.
6 Unciar, esfregar.
10 LIVRO DA IXK.ANCIA

ticos, perfumavam-lhe os pés com myrrha


dalo -, e esperavam, sentadas no chão, os agradeci-
mentos do velho.
Anacreonte ficava em pé, magestoso na sua
inspiração poética, e, com largos gestos e voz
grave, ia cantando as odes 3 que tinha composto
durante a noite, fazendo-se acompanhar a uma
lyra de prata, cujas cordas desferiam os mais me-
lodiosos accordes.
As raparigas sabiam em seguida e atraves-
savam o campo em direcção ás suas casas, can-
tando as odes do poeta com suas vozes juvenis.
Os camponezes, que não podiam ir fazer ao velho
a visita matinal, porque os impedia o trabalho da
lavoura, a creação das ovelhas e o fabrico do
vinho, contentavam-se com vir ao encontro das
moças, para ouvir dos seus lábios as ultimas com-
posições de Anacreonte.
Assim vivia elle, absolutamente feliz, que-
rido e admirado por todos, preoccupando-se ape-
nas com seus .versos, indhferente a outros affa-
zeres.
Polycrato, porém, tyranno 4 de Samos, curioso
por conhecer o poeta, ouvir-lhe dos próprios lá-
bios a poesia das suas odes, mandou chamal-o.
Anacreonte, uma bella manhan, sobraçando 5
a sua lyra de prata encordoada de novo, com
sua túnica 6 de púrpura 7 presa aos hombros, uma
1 Myrrha, planta e gomina aromatiea.
2 ,s'í?/írfa/«, arvore de madeira perfumosa.
S Ode, composição poética.
4 Tyranno, príncipe cruel.
••> Bobraçar, levar debaixo do braço.
(i Túnica, vestidura talar.
1 Púrjmra, marisco de q.ue se tira a côr vermelha: vestidura da mesma côr.
LIVRO DA INFÂNCIA 11

coroa de pâmpanos1 e 3heras2 em torno afronte,


embarcou numa galera , e partiu mar fora.
Polycrato tinha ordenado que se preparasse
um banquete real para festejar-lhe a recepção.
Anacreonte appareceu.
Todos os que estavam ao redor da mesa,
onde se ostentavam4 as mais extraordinárias igua-
rias, levantaram-se com as taças transbordantes e
gritaranr:
— Evohé! — que era o grito de satisfa-
cção dos gregos.
Anacreonte, então, em pé no meio dos con-
vivas, admirável na sua roupagem de purpura,
empunhou5 o instrumento sonoro, arrancou um
accorde e começou a entoar um hymno de lou-
vor a Polycrato. Seus versos eram tão bellos,
tão inspirados, sua voz tão clara, que todos esta-
vam suspensos de admiração, embriagados de
poesia. Polycrato approximou-se do poeta, cur-
vou-se em signal de admiração ao seu gênio, deu-
lhe uma bolsa cheia de moedas de ouro, e disse-lhe:
— Toma esta bolsa ; é tua ; contém uma
fortuna. Quero que sejas o homem mais pode-
roso de Samos. Amanhan cantar-me-ás uma ode
egual a essa.
Anacreonte agradeceu. A' noite, quando se
retirou para os seus aposentos, começou a pensar
na fortuna que lhe pertencia, nas terras que ha-
via de comprar á beira mar, plantadas de vinha,

1 Pâmpano, ramo de vide vestido de follia.


2 Hera, arbusto conhecido.
3 Galera, navio de três mastros.
4 Ostentar-se, mostrar-se com orgulho.
5 Empunhar, tomar pelo punho; segurar.
12 LIVRO DA INFÂNCIA

nas ovelhas brancas pastando pelos outeiros \ no


cortejo2 de escravos que havia de ter, na felici-
dade, emfim, que lhe dariam aquellas pesadas moe-
das de ouro. E não poude dormir, tal era a sa-
tisfacção de que se achava possuído.
Pela manhan tinha um aspecto doentio, os
olhos amortecidos.
Procurou Polycrato e disse:
— Senhor! aqui está a vossa bolsa e o ouro
que ella contém. Não a quero. Desde que a
poesia bafejou minh'alma, ainda se não passou
uma noite em que não compuzesse uma ode;
hontem, porém, a riqueza que me destes preoccu-
pou tanto minha imaginação, que não consegui
dormir nem compor a ode que me pedistes.
Adeus. Quero partir para Téos, pobre como
vim, porém feliz na minha pobreza. Para que
servem fortunas ? Nada me falta: tenho o bom
leite, o excellente vinho, a água fresca para as
minhas abluções e a amizade dos meus vizinhos.
Esta é a minha riqueza. Adeus.

1 Outeiro, coluna, monte pequeno.


2 Cortejo, comitiva, acompanhamento.
REI PHANTASMA
(BALLADA ALLEMAN)

Quem é que cavalga 1 a esta hora, na escuri-


dão da noite, sob a chuva que cai e o vento
que uiva ? As arvores agitam a folhagem des-
cabellada, arrepiadas do terror da noite.
O velho passa apressadamente, apertando nos
braços o filhinho amado, fazendo-lhe com o rosto
ecom as mãos um carinhoso abrigo.
— Occulta-me o rosto, pae.
— Para que queres que te occulte o rosto,
filho ?
— Não vês o rei envolvido em seu manto
de purpura, brandindo o sceptro2 como um louco ?
— Não tenhas medo, filho, é uma nuvem e
mais nada ; é uma nuvem que estremeceu á fúria
do vento e se desfez em água.
« Linda creança, vem commigo ! vamos gosar
as riquezas do meu reino, embriagar a vista no

1 Cavalgar, montar, andar a cavallo.


2 Sceptro, insignia real..
14 LIVKO DA INFÂNCIA

esplendor do meu ouro, correr os meus campos


onde ha flores perfumadas e arvores vergando
ao peso dos fructos».
— Pae, pae ! não ouves o que o rei me
promette em voz baixa ?
— Não é nada, meu filho; é o vento brando
que mumura1 nas ramas e que resvala nas folhas,
e mais nada. Filho, não tenhas medo.
« Creança linda, queres vir commigo ? As
minhas filhas são claras como a neve e têm ca-
bellos louros como o sol; ellas te conduzirão á
dança nocturna em companhia das fadas do bos-
que ; ellas te ensinarão brinquedos nunca vistos
e te farão passear numa barquinha azul sobre as
águas do lago. E tu has de adormecer ao seu
canto e sonhar sob seus afagos».
— Pae, pae ! Não vês as filhas do rei dan-
çando lá em baixo na planície 2, vestidas de bran-
co, com os rostos escondidos nos cabellos ?
— Meu filho, meu filho, eu vejo bem: são
os salgueiros3 distantes, embranquecidos de neve,
que o vento agita e balança, e mais nada.
«Amo-te, bella creança; gosto do teu rosto
pallido, dos teus olhos azues como o céu e dos
teus cabellos negros como a noite ; 4vem! quero
levar-te commigo para deslumbrar-te nas rique-
zas do meu reino. Si tentas resistir, arranco-te
dos braços do teu pae».

1 Murmurar, falar em voz baixa.


2 Planície, terreno plano.
3 Salgueiro, arvore.
4 Deslumbrar, cegar a vista cora muita luz.
LIVRO DA INFÂNCIA 15

— Pae, pae! o rei me leva, o rei me arran-


ca, o rei me mata. Livra-me, pae ! elle é tão
máu, elle é tão grande, elle é tão feio !
O pobre pae treme; fustiga o cavallo ; atra-
vessa a escuridão da noite sob a chuva que cai e
o vento que uiva ; aperta tanto o filho contra o
peito que o suffoca.. Muito tempo depois, quando
entrou em casa, tinha nos braços a creança morta.
l
AGUARELLA

Cheio de folhas, humido de orvalho,


Fresco, á beira de um córrego 2 crescia
Joven pé de roseira em cujo galho
Uma rosa sorria.
O orvalho matinal, que o beija e molha,
Desce de cima em brancas nevoas finas.
E todo o pé salpica 3, folha a folha,
De gottas pequeninas.
Beija-o o perfumeo 4 zephyro
6
5
que passa,
O grupo de phalenas que anda á tôa,
A borboleta clara que esvoaça
E o pássaro que vôa.
Uma moça gentil sentiu anceio
De possuir a rosa e teve magua
De não poder colhel-a, com receio
De molhar os pés n'agua.

1 Águaretta, gênero de pintura feita com tintas delidas n'agua.


2 Córrego, corrente, rio pequeno.
3 Salpicar, molhar espalhando gottas.
4 Perfumeo, perfumoso, cheiroso.
5 Zephyro, Vento brando, aura.
6 Phalenas, gênero de borboletas noctnrnas.
LIVRO DA INFÂNCIA 17

A roseira agitou a coma1 opíma2,


Estremeceu, embriagada e douda,
Sob os raios do sol que lá de cima
A üluminavam toda.
A moça foi-sé; o ar estava
3
morno ;
Mansamente o crepúsculo descia ;
Uma abelha zumbiu4 da rosa em torno;
Lento, expirava o dia...
Porém n'ess'hora a ventania brava
•Que veiu do alto impetuosamente B,
Arranca a flor do ramo em que se achava
E joga-a na corrente.
E a flor cahiu no meio do riacho;
Do vento rijo foi soffrendo^o,açoite6,
E escorregando em prantos, água, abaixo,
Na tristeza da noite.
Nenhuma flor poude salvar-lhe a vida;
A' água desceram, entretanto, algumas;
E a flor morreu aos poucos, envolvida
Num circulo de espumas.

1 Coma, ollnas, folhas.


2 Opima, abundante.
8 Crepúsculo, tempo médio entre dia e noite.
i Zumbir* zunir, fazer sussurro como as abelhas.
6 Impetuosamente, com força, com violência.
•ü Açoite, látego, chicote.
O AÇUDE1

Viviam duas velhinhas em duas 2 cabanas vizi-


nhas, construídas num campo extenso e cobertas
de um colmo 3 tão verde que, de longe, se confun-
diam na côr geral da vegetação.
Alli passavam ellas sua existência humilde,
longe de toda a convivência importuna,, preoccu-
pando-se apenas com o cultivo da sua horta e com
o trato'dos seus bacorinhos4.
A' tarde sentavam-se juntas á soleira da porta,
com o fuso na mão para distrahkem-se, e con-
versavam horas inteiras sobre a sua vida passada,
rememorando episódios antigos, velhas recordações
da mocidade.
Eram felizes na sua miséria; não lhes falta-
vam hervas para a alimentação do corpo e orações
para a purificação da alma.
Uma dellas. porém, a que parecia mais moça,
tinha um defeito —a preguiça. Abandonava-se du-
rante o dia á preguiça, dormindo pelos cantos,
esquecida do trabalho, de modo que muitas vezes
era a sua vizinha quem lhe trazia o sustento.

1 Açude, obra de pedra para represar, prender a água.


2 Cabana, choça, choupana.
3 (%lmo, canna, palha de centeio, com que se faz telhado
4 Bacorinlw, leitãosinho.
LIVRO DA INFÂNCIA 19

Suas casas tinham sido feitas por ellas mesmas


numa planície rasa, muito plana, por onde os ven-
tos passavam livremente, refrescando a atmosphera.
Do lado do poentex havia uma coluna de certa
elevação, regada por um arroio fresco e límpido,
que nascia no alto e escorregava pelo dorso da
collina em pequenas catadupas.
Do lado opposto, um rico proprietário tinha
construído um grande açude, onde se accumula-
vam2 as águas de um rio próximo, cercado por
uma represa3 de pedras. Essas águas serviam nas
sêccas do |stio para a rega das plantações.
Um diaiim caminhante que atravessava a cam-
pina veiu abrigar-se dos ardores do sol numa das-ca-
banas onde as^uas velhas estavam reunidas, a fiar.
E elle disse-lhes:
—Mihhas velhinhas, é urgente que mudeis
vossas habitações para o alto daquella collina, por-
que o açude está-se esbaroandò4 aos poucos, pode
partir-se a represa e a água inundar este campo,
matando-vos. .Fugi daqui, velhinhas.
A mais'velha,, que .era.solicita 5 e prudente,
respondeu :
—Amanhan me mudarei.
A outra, que era, preguiçosa, contentou-se com
sacudir os hombros, incrédula, e disse:*
—Veremos.
De- factb, no dia seguinte, mal a manhan tinha
despontado, já a velhinha estava tratando da sua
*
1 Poente, occidente; logar onde o sol desapparece.
2 Accunmlar-se, amontoar-se; ajuntar-so em monte.
3 Sejrresa, detenção que se faz á água: dique.
4 üsboroar, pulverizar, desterroar; fazer em pó. M
5 Solicifa, cuidosa, diligente.
20 LIVRO DA INFÂNCIA

mudança, arrancando os batentes * das portas, a


palha do telhado, e pouco a pouco ia levantando,
não sem pequeno esforço, sua nova habitação so-
bre a collina.
Depois de collocado tudo em seus logares,
feita a cerca grosseira que prendia as suas aves e
bacorinhos, installou-se descançadamente, livre de
todo o perigo.
A outra, apesar das instâncias 2 da primeira,
deixou-se ficar em baixo, e, preguiçosa como era,
ia adiando a mudança.
Uma tarde, quando o crepúsculo descia e es-
palhava um aspecto de tristeza religiosa sobre a
verdura dos campos, a velhinha, que estava sen-
tada na soleira3 da sua casa, no alto da collina,
viu com espanto a represa de pedeãs que segu-
rava as águas do açude romper-se com estrondo,
cahir, dando passagem a uma enorme massa d'a-
gua. A água cahíu. desceu e veiu galopando pelo
campo, espumando e roncando, com uma força
e impeto 4 a que nada poderia resistir. Tudo que
encontrava na frente ia torcendo e' arrancando.
A velhinha preguiçosa deitou a correr, os
cabellos soltos, gritando de desespero. Coitada!
A água alcançou-a logo, envolveu-a com a sua
espuma, arrastou-a nas ondas e levou-a, morta
já, até á outra extremidade do campo.
Sua companheira, que tinha ficado ao abrigo
do perigo, por ser cuidadosa e prudente-, elevou
as mãos ao céu num resignado gesto de supplica.
1 Batente, peça em que bate a porta ou janella.
2 Instância, pedido insistente.
3 Soleira, limiar; pedra debaixo do portal.
4 ímpeto, impulso, violência.
OS DOIS MENDIGOS

Caminhava pela estrada real um moço de as-


pecto nobre, feições agradáveis, e trajava de ma-
neira modesta, porém distincta.
Tinha os cabellos enrolados em anneis que
lhe cobriam o pescoço, e um ar sympathico que
condiziax bem com a graça natural da sua pessoa.
Seu principal encanto estava com certeza nos
olhos claros, de uma expressão infantil, penetra-
dos2 da mais encantadora doçura'.
Caminhava distothidamente, os olhos fixos no
chão.
Em sentido contrario vinham dois mendigos
maltrapilhos3, as roupas esburacadas, animados
aos bordões, a cabeça cahida para a frente, como
vergados ao peso dos annos. A edade e os sof-
frimentos tinham-lhes arrancado os cabellos, cava-
do grandes rugas na face e enfraquecido todos os
músculos.
Como tivessem caminhado muito, tinham os
pés inchados e humedecidos do sangue que ver-

1 Condiser, ter proporção, ter similhança.


2 Penetrado, embebido.
3 Maltrapilho, esfarrapado; mal vestido.
22 LIVRO DA INFÂNCIA

tiam ; sentiam fome; estavam extremamente palia-


dos, os passos trópegos \ os lábios trêmulos, de
modo2 que nem podiam falar, mas apenas balbu-
ciar como as creanças.
O vento impiedoso impellia-os#3 para a frente,
forçando-os a andar depressa e fazendo-os trope-
çar nos ealháus4 da estrada.
Quando se approximaram do moço, cahiram
de joelhos, mais por cançaço do que por desejo
de implorar5 a piedade, e gemeram ao mesmo
tempo :
— Uma esmola, senhor.
O moço sentiu as lagrimas empannar-lhee a
vista e, penetrado de compaixão, apalpou os bol-
sos ; mas, como encontrasse apenas uma moeda, e
a justiça divina manda que se distribua a esmola
em partes eguães, disse com malícia :
— Perdoae-me, pobres velhos, a v.ossa miséria
sensibilizou 7 minh'alma e accordou goluços em
meu peito ; porém não tenho um real para con-
solar , vossos soffrimentos.
, Os velhos levantaram-se.
O primeiro olhou o rapaz com mal contido
rancor, os olhos intumescidos 8 de cólera 9, e gri-
tou brandindo o bastão com a pouca de forças que
lhe restavam :

1 Tropégo, que mal pôde andar ou mover-se.


2 Balbuciar, gaguejar; dizer mal as palavras.
3 Impellir, empurrar.
4 Calháus, pedras, seixos grandes.
5 Implorar, rogar, pedir.
6 Empannar, embaraçar, escurecer.
7 Sensibilizar, tornar sensível.
8 Intumescião, inchado.
9 Cólera, raiva.
LIVRO DA INFÂNCIA 23

— Maldito sejas tu e malditos todos os teus;


que o fogo devore1 a tua propriedade; que as águas
engulam a náu em que embarcares; que teus
affectos pereçam2 e que3 um vento de desgraça
passe sobre a desolação da tua existência 1
E partiu.
O outro velho fitou com ternura a face do
joven, e falou-lhe :
— Sè feliz, mancebo, que as minhas mãos
tremulas possam tirar de sobre tua fronte as pra-
gas do meu companheiro ; que a tua propriedade
seja firme, que as águas sejam mansas na tua via-
gem e que a bençam do Senhor esteja sempre sus-
pensa sobre tua cabeça.
Então o moço tirou do bolso a moeda de
ouro e deu-a ao mendigo.
Assim devemos praticar sempre: nunca de-
vemos dar esmola, 4principalmente quando o nosso
dinheiro é escasso , sem observar si_ a pessoa
que nos pede é merecedora da nossa piedade.

1 A"<Í!f, embarcação
2 Perecer, acabar, flnar-se, morrer.
'3 Desolação, min», estrago.
4 Escasso, curto, pouco, limitado.
EM FERIAS

Passeio os campos, ufano ] ;


Rio-me das coisas serias;
Não ha melhor tempo no anno
Do que as ferias.

Adeus a estudos da classe I


Ao sino, que ás aulas chama!
De manhan, ,mal o sol nasce,
Deixo a cama.

O rosto lavo, contente ;


Por todo o quintal galopo ;
De gordo leite excellente
Bebo um copo.

Caminho campos em fora;


Mal despertos, em seus ninhos,
Vou surprehender n'ess'hora
Passarinhos.

1 Ufano, altivo, arrogante.


LIVRO DA INFÂNCIA 25

Alguns têm medo do orvalho;


Outros andam no ar, em bando;
Outros mais, de galho em galho,
Passeando.

Colho das cercas as rosas;


Enfeito-me de violetas;
Persigo no ar as formosas
Borboletas.

Os cães, que passam por perto,


Monto de um salto, ligeiro,
E viajo, como esperto
Cavalleiro.

Eu as ferias aproveito
Sem me lembrar das leituras;
Pratico a torto e a direito
Diabruras.

Passeio por tudo, ufano ;


Rio-me das coisas serias;
Não ha melhor tempo no anno
Do que as ferias.
AS DUAS MOÇAS

Duas moças viviam em casa dos seus pães,


numa aldeia quasi deserta onde todos eram egual-
mente pobres. Cada um era proprietário do seu
próprio terreno donde tirava o sustento para a
sua família.
Os habitantes, ignorantes na sua simplicidade,
não conheciam a riqueza nem a miséria. Si lhes
falavam em palácios de architectura custosa \ em
luxo, carruagens e apparatos 2 de riqueza, elles
riam-se, como si de facto estivessem ouvindo contos
de fada ou novellas do outro mundo ; quando lhes
falavam em miséria, em horrores de fome, sor-
riam também, e diziam que não ha geira 3 cie terra
sem couve e couve que não alimente.
Este povo era tão simples, que dormia com
as portas abertas, sem receio aos ladrões e mal-
feitores, porque não acreditava na existência
desta gente.

1 Custosa, sumptuosa, rica.


2 Apparato, pompa, ostentação, luxo.
3 tíeira, medida de terra.
LIVRO DA INFÂNCIA 27

Estas duas moças é que estavam incumbidas


do trabalho da casa, plantiol das hortaliças,
creação das aves, porque seus pães já eram ve-
lhos e inaptos 2 para qualquer serviço.
Uma dellas, Rosa, quando toda a familia
estava reunida ao redor da mesa, conversando
sobre assumptos domésticos, como as próximas
chuvas, a surribação 3 da terra, a peste das gal-
linhas, ergueu-se e falou assim :
— Meus velhos pães e minha boa irman, vou
deixal-os por algum tempo; estou cançada desta
vida monótona, sem futuro, desta pobreza geral,
em que cada qual tem de trabalhar para comer;
eu nasci para uma existência mais luxuosa e de
mais conforto *, onde tenho carruagens para exhi-
bir 5 a minha formosura, palácios para mostrar
minha elegância e leitos de seda e purpura para
afogar minha preguiça. —Adeus.
Todos começaram a chorar, as faces es-
condidas nas mãos, suffocados pelos soluços.
O velho falou com amargura:
— Ingrata filha, vai; sê feliz; que os teus
desejos se cumpram e que a fortuna espalhe ri-
quezas pelo teu caminho, como um semeador lan-
çando grãos sobre um terreno fértil; porém que
as saudades de teus velhos pães, que abando-
naste, e da pobre aldeia, em que nasceste, ar-
ranquem lagrimas aos teus olhos, suspiros ao teu
peito e offegos6 ao teu coração.
1 Plantio, plantação; acto de plantar.
2 Inapto, que não tem aptidão; incapaz.
3 Burribação, surriba; acção de preparar a terra ao redor das arvores.
4 Conforto, conchego; commodo na vida.
5 Ediibir, apresentar, mostrar.
6 Otfcyo, respiração custosa.
28 LIVRO DA INFÂNCIA

Então a boa filha, que tinha ficado, de-


pois de abraçar os pães, prometteu-lhes com amor
que nunca havia de abandonal-os, que havia de
ficar sempre na companhia delles, como um con-
solo á sua velhice.
Os tempos passaram. Um dia um rico la-
vrador, moço ainda e extremamente bello, pas-
sou por essa aldeia, enamorou-se desta pobre ra-
pariga e pediu-a em casamento.
Os velhos consentiram. Era a felicidade es-
perada por tanto tempo, que lhes entrava em
casa. Enriqueceram.
E Rosa, que fora tentar fortuna, voltou mais
pobre ainda, coberta de andrajos l, os pés des-
calços.
Os pães, quando a viram, abraçaram-na cho-
rando, sensibilizados pelo aspecto humilde das
suas roupas e da sua physionomia.
E perguutaram-lhe :
—Onde está tua riqueza, Rosa?
—Na experiência, meus bons pães, na mi-
séria que soffri, na fome que me devorou as
entranhas. Si eu soubesse dos soffrimentos por
que havia de passar, não vos abandonaria e dei-
xava-me ficar comvosco. Os meus soffrimentos
datam da minha partida: a riqueza das donzellas
está no carinho dos seus pães.

Andrajos, farrapos, trapos; roupas de mendigos.


A BORBOLETA

Na talisca 1 de um velho muro coberto de limo


e vegetações bravas, estava occulto o casulo 2 de
uma lagarta.
Todos os que passavam por alli paravam a
contemplar as ruínas do muro, o viço das plantas
que cresciam em cima delle, colhiam ás vezes al-
guma flor silvestre3, vermelha ou4 azul, muito
fresca de mocidade que, vicejando sobre a ve-
lhice das pedras, tinha o aspecto de um sorriso
de alegria no rosto enrugado de um velho.
E ninguém descobria o pequeno casulo escuro,
escondido numa fenda, ao abrigo das vistas do
passeante e das violências do tempo.
Elle alli estava ha muitos dias, immovel, sus-
penso a uma folha sêcca, servindo de habitação á
chrysalida 5.
Uma manhan, emquanto as primeiras manchas
de sol iam dourando a brancura das nuvens e os

1 Talisca, greta, fenda.; abertura nos muros ou nas pedras.


2 Casulo, noveílo; bolsinha que envolve a lagarta.
3 Silvestre, do matto.
4 Vicejar, estar viçosa a planta; crear viço.
5 Chrysalida, lagarta no casulo, antes de sahir borboleta.
30 LIVRO DA INFÂNCIA

passarinhos cantavam nas ramas, o casulo rompeu-


se. Pela abertura a borboleta enfiou a cabecinha,
olhou em torno, com receio da luz, e escondeu-
se de novo. Em seguida appareceu, extendeu as
delgadas l perninhas para fora do casulo, sahiu,
sacudiu as azas ainda entorpecidas 2 de somno,
respirou o ar puro, e voou.
Era uma grande borboleta de azas brancas,
ornadas 3 de traços azulados.
A pricipio, como não estava habituada aos
movimentos do vôo, andou se batendo pelas pa-
redes, embriagada de luz.
Voava de flor em flor, pousava de folha
em folha, numa impaciência de correr, atraves-
sar os ares e conhecer todas as difficuldades
do vôo.
Coitadinha! mal podia suster-se 4 nas pernas !
Mas o sol, que já tinha apparecido de todo,
e inundado o campo de luz, seccou-lhe as azas.
Ella sentiu-se melhor; abriu as azas, tentou o
vôo e rompeu o ar com uma rapidez de setta: cor-
reu o campo inteiro em todos os sentidos, rodeou
todos os arbustos õ, aspirou 6 o perfume de todas as
plantas e veiu de novo, equilibrando-se no ar, em
movimentos vagarosos, um pouco fatigada pelo
esforço.

1 Delgada, franzina, delleada.


2 Entorpecida, adormecida; sem movimento.
3 Ornada, enfeitada.
4 Suster-se, sustentar-se. equilibrar-se.
5 Arbusto, planta; arvore pequena.
6 Aspirar, sorver o ar com a' bocca. .
LIVRO DA INFÂNCIA 31

, Pousou em cima do velho muro, e a todos que


passavam provocava com seus movimentos ligeiros,
muito vaidosa da sua belleza, abrindo e fechando
as grandes azas como um leque de plumas, ou
voava de novo a uma grande altura e ficava sus-
pensa no ar, illuminada de sol.
E á tarde, quando o crepúsculo veiu descendo,
ella teve medo da noite, e andou tonta, voando
na corrente das brizas, em procura da luz.
O GRILLO E A BORBOLETA

Perto do seu abrigo,


—Um pequeno covil1 recôndito2 e isolado—
Sobre um raminho de herva, em cócoras pousado,
Raminho que3 se dobra ao peso seu, tranquillo,
Ergue tiples subtis um pequenino grillo.
Um broto, um grão de trigo
Talvez, é quanto basta
Para satisfazer-lhe a fome; é bem ditoso.
A sua habitação parece-lhe uma vasta
Câmara4 que lhe serve, á noite, de repouso.
Mas uma borboleta
Que por alli passeia, 6aligera 5 e inquieta
Satisfeita, a expandir seu humor vagabundo,
Diz-lhe:
«Que alegre estais, meu amiguinho esperto !
O Deus vos fez, de certo,
O insecto mais feliz dos insectos do mundo !
Vossa vida é rizonha ?

1 Covil, toca; buraco onde vivem bichos


2 Recôndito, occulto, escondido.
S Tiples, trillos; vozinha dos insectos.
4 Câmara, alcova, quarto, aposento.
5 Aligera, ligeira, lépida.
6 Expandir, extender, dilatar.
LIVRO DA INFÂNCIA 33

Cantais. .Emtanto creio e affirmo, convencida,.


Que invejoso não sois, embora a vossa vida
Seja um pouco enfadonha.
Vede: eu que vivo á tôa, em liberdade infinda *,
Livremente voando,
De flor em flor sugando
O delicioso mel que os lábios meus adoça,
Procuro o goso em vão; não encontrei ainda
Felicidade assim que se compare á vossa».

« Amiga, diz o grillo ao lindo insecto louco,


Não está no prazer nem nos vossos adejos2
A ventura dourada :
Contentar-se com pouco,
Moderar os desejos,
Para se ser feliz não se requer mais nada».

1 Infinda, sem flnt; infinita; que não se acaba.


2 Adejos, movimento de azas para voar.
A INVEJA

Havia um homem, extremamente invejoso, que


não tinha conseguido ainda arranjar fortuna, ape-
sar dos esforços que fazia, do trabalho diário e
das economias.
Este homem, desde que ficou só no mundo,
sem o amparo x de seus pães, que tinham morrido,
entregou-se ao trabalho ; mas como nunca foi ho-
nesto e emprehendia23 tudo com má fé e malicia,
não poude prosperar , de modo que todos, que de-
viam auxilial-o, evitavam-n'o e negavam-lhe apoio.
Seu principal defeito era a inveja.
Invejava a felicidade de todos, e a todos de-
sejava mal. Si o seu amigo prosperava, cercava-o
de pequenas intrigas, maculava-lhe 4 a reputação
até vel-o empobrecer.
Um dia, cançado dos soffrimentos e humilha-
ções por que tinha passado até então, 5revoltado
contra a sorte que lhe era tão adversa , mudou

1 Amparo, arrimo, protecçâo, abrigo.


2 Emprehender, começar uma cousa.
3 Prosperar, enriquecer.
4 Macular, manchar.
5 Adversa, contraria, opposta.
LIVRO DA INFÂNCIA 35

de terra para recomeçar a vida. Empregou-se na


casa de um rico moleiro.
Sua occupação era pastorear1 as ovelhas,
tomar conta do selleiro á noite, evitando a vora-
cidade dos ratos que tudo destruíam. Trabalho
suave esse, que lhe rendia algum dinheiro e um
tratamento relativamente bom, porque o seu pa-
trão era generoso. Assim viveu elle por muitos
dias, feliz, alimentando-se bem e fazendo as eco-
nomias a que estava habituado.
A inveja, porém, começou a dominai-o de
novo, a envenenar-lhe a alma, obrigando-o a revol-
tar-se contra a crescente prosperidade do seu amo.
A' noite, fechado em seu quarto, estorcia-se - no3
leito, espumava de raiva, phantasiava altercações
com o moleiro, dirigia-lhe impropérios 4 e a inveja
ia-o tornando máu cada vez mais.
Dahi em deante, já se não importava com o
trato das ovelhas, deixando que se desgarrassem 5
do rebanho ou que morressem de peste por falta
de cuidados. Agitava a água da azenha,6 tor-
nando-a suja. Abria a porta do selleiro para dar
estrada aos ratos.
Tudo isso elle fazia no intuito 7 de empo-
brecer o moleiro, fazendo-lhe esses males, cau-
sanclo-lhe prejuízos diários. Mas o proprietário,
que já tinha percebido os maus sentimentos do

1 Pastorear, tomar conta do gado no pasto.


2 Estoraer-se, torcer-se.
3 Al/ercação, disputa, questão; briga de palavras.
4 Impropério, injuria, insulto.
5 Desgarrar-se, fugir ou afastar-se do rebanho.
6 Asenlta, moinho d'agua.
1 Intuito, intento.
36 LILRO DA INFÂNCIA

seu empregado, e observado a sua inveja, cha-


mou-o á sua presença e falou-lhe duramente :
—Tu és um máu homem; a principio con-
Beguiste illudir-me com tua falsa solicitude *, com
teu fingido amor ao trabalho; agora te conheço
melhor, porque de uns tempos a esta parte tenho
observado a baixeza de tua alma e a inveja de
que está penetrada. De hoje em deante ficas dis-
pensado do serviço da minha casa. Vai com
Deus.
E despediu-o, depois de lhe haver pago o
que lhe devia, dado alguma roupa e conselhos
úteis de moral.
O nosso homem sahiu, de cabeça baixa, co-
berto de vergonha e humilhação.
E jurou vingar-se.
A noite tinha cahido de todo. Não 2
havia
uma estrella no céu. Tudo era propicio para a
realziação dos seus desígnios 3 criminosos.
Armou-se de um punhal e encaminhou-se para
a casa do moleiro.
Tudo, porém, estava fechado, e elle receava
acordar os cães, que eram bravos.
Então, mudando de estratégia 4, resolveu vin-
gar-se de outro modo: quebrar a roda do moi-
nho.
E partiu, pé ante pé, de cócoras, para con-
fundir-se com o matto e approximou-se do moi-

1 Solicitude, diligencia em fazer qualquer coisa.


2 Propicio, favorável, benigno.
3 Desígnio, tenção.
4 Estratégia, art6, malícia de fazer qualquer cousa.
LIVRO DA INFÂNCIA 37

nho para quebrar-lhe a roda. Como era dotado


de muita força, agarrou num dos raios, suspen-
deu-se, e, com o auxilio dos pés, pensou quebrar
um por um todos os raios; estava nesta posição
quando um grosso jacto x d'agua se desprende de
cima, apanha a roda, fal-a virar impetuosamente,
e mata o desgraçado sem lhe dar tempo de gri-
tar por soccorro.
No outro dia, quando o moleiro soube do
occorrido2, ergueu os mãos ao céu e rogou a
Deus repouso para a alma daquelle infeliz.

1 Jacto, arremesso.
2 Occorrido, acontecimento.
CALMA NO MAR

O céu está todo azul, de uma transparência


de espelho ; apenas uns farrapos' de nuvens bran-
cas maculam de 3
longe em longe a limpidez2 do
céu e ondulam soltas, como bandeiras.
O mar, em baixo, tem movimentos vagaro-
sos e regulares.
O navio, soltas as velas ás auras4 marinhas
vai resvalando de manso a flor das águas.
Os marinheiros, no topo6 dos mastros, olhan-
do a terra que se afasta aos poucos e se vai su-
mindo á proporção que a náu caminha, cantam
em coro, alegremente, suas rudes e melancólicas
bailadas repassadas da mais dorida saudade

1 Farrapos, andrajo, trapo.


2 Limpides, pureza.
3 Ondular, ondear, fazer ondas: mover-se como ellas.
4 Atira, zephyro, vento brando.
5 Topo, ponta.
INVERNO

Inverno. A neve fluctua 1,


Cai sobre tudo e se espalha
Como uma branca toalha
Sobre a estrada immensa e nua.
O vento causa arrepio
Aos medrosos passarinhos,
Que se encolhem em seus ninhos
Desesperados de frio.
O vento assovia e chora;
Ha como um coro de maguas
No borborinho 2 das águas
Que descem campina fora.
Mata a neve cada arbusto,
Rola dos ares, desfolha
As arvores, folha a folha,
Que se arrepiam de susto.

1 Fluctaur. vagar; andar á tona.


2 Borborinho, murmúiio, barulho, sussurro.
40 LIVRO DA INFÂNCIA

No céu ha nuvens sombrias 1;


As roseiras das estradas
Estão todas desgalhadas
A' fúria das ventanias.
O inverno é feio e inclemente 2;
Um velho mastim 3 vadio
Todo transido 4 de frio
Uiva ao céu sinistramente 5-
Não ha calor nem conforto ;
Não ha rumor nem gorgeio;
Tudo parece tão feio !
Parece que tudo é morto !
De neve tudo coberto;
Os ventos correm, ás doudas 6;
Das quatro estações, de todas,
O inverno é a peor, de certo.
A neve desce, fluctua,
Cai sobre tudo e se espalha
Como uma branca toalha
Sobre a estrada immensa e nua.

1 Sombria, escura, carrancuda.


2 Inclemente, que não tem clemência; impiedoso.
3 Mastim, cão grande; molosso.
4 Transido, esmorecido.
5 Sinistramente, de modo sinistro; que causa medo.
6 A's doudas, doudamente, furiosamente.
A ESPERANÇA

A crença mj thologica 1 nos conta que os povos


antigamente eram felizes, viviam na maior har-
monia, sem guerras nem disputas. O mundo era
composto de uma só familia, onde todos se ama-
vam egualmente e estavam unidos por um affecto
fraternal.
Não havia a pobreza, porque a terra, como
uma mãe carinhosa, produzia fructos para o au-
mento de todos. Não se conheciam os ardores do
verão, os rigores do inverno, nem a ameaça das
tempestades; uma primavera continua refrescava
os ares, animava a verdura dos campos e fazia
nascer os fructos. Qs animaes viviam2 da mesma
fôrma; os pássaros com os reptis . as ovelhas
com as feras.
Desta maneira todos se sentiam absolutamente
ditosos.
Júpiter3, porém, possuia uma boceta, que
estava fechada, e que continha todos os males que
a humanidade soffre actualmente.

1 Mgtholoi/ica, da mythologia, religião dos povos antígos.


2 Réptil, cobra.
3 Júpiter, pae dos deuses antigos.
42 LIVRO DA INFÂNCIA

Nellaestavam occultas a amargura, a guerra,


a peste, a fome, o assassinio, a ingratidão e todo
o gênero de soffrimentos a que o homem está
sujeito.
Um dia, Júpiter, tendo de descer do Olym-
po x com o fim de visitar a terra, como não qui-
zesse abandonar a boceta á curiosidade dos ou-
tros deuses, chamou Pandora e falou-lhe assim:
—Toma esta boceta. EUa contém toda a es-
pécie de males creados pelas forças infernaes; si
a abrires, a humanidade ha-de soffrer eternamente.
E' porisso que t'a confio, na certeza de que sabe-
rás guardai-a com o maior cuidado, não só pelo
respeito que deves ás minhas ordens, como pela
piedade que te inspira a fraqueza humana.
E entregou-a a Pandora.
Esta deusa guardou a boceta durante muito
tempo; mas como era excessivamente curiosa,
resolveu abril-a.
Abriu-a.
A principio escapou a guerra: logo os ho-
mens começaram a inventar os punhaes envene-
nados, couraças 2, lanças, settas e toda a varie-
dade de armas de defesa, para, quando fosse oc-
casião, marchar para o campo da batalha e escra-
vizar os povos vencidos.
A peste abateu os soldados ; as lagrimas hu-
medeceram os olhos das mulheres; o falso amigo
escondeu no seio o punhal assassino; o filho ri-

1 Oli/mpo, habitação dos deuses da mythologia.


2 Couraça, armadura com que SÍ vestiam os soldados para proteger
o peito. * x o
LIVRO DA INFÂNCIA 43

dicularizou a velhice dos pães ; e assim por deante


os males foram sahindo da boceta encantada, es-
palhando-se pelo mundo, accordaudo sentimentos
maus nos corações e derramanáo por toda a parte
a desolação e o lucto.
Pandora sentiu remorsos nesse instante e fe-
chou a boceta.
Todos os males, porém, já tinham sahido
excepto um: a esperança.
A esperança ficou no fundo, escondida, para
consolar as maguas e animar o mundo; de mo-
do que, por mais infelizes que nos julguemos,
sempre nos resta a esperança de alcançarmos
uma felicidade futura, um suave descanço para
as nossas tristezas e um consolo para as nossas
afflicções.
O TROVADOR
(BALLADA SCANDINAVA)

—Que é que ouves á porta, ó pagem louro?


—Rei, é um velho de barbas brancas e ca-
bellos longos, que empunha um instrumento de
cordas, de que tira celestes harmonias e musicas
sonoras.
—Faze-o entrar, lindo pagem, e dize-lhe que
venha cantar xsob meu throno, na presença dos
meus vassalos , as melancolias de sua alma.
«Viva, poderoso rei! em tuas mãos está o
sceptro2 d'ouro deante do qual se curvam oscor-
tezãos e todos os validos 3 do reino ; ao teu man-
do os exércitos se movem, como servos submis-
sos, obedientes, aos caprichos do teu desejo.
Saúde, nobres senhores! em vossos peitos
se ostentam condecorações de honra e medalhas
de valor, adquiridas no serviço do rei ou ganhas
nos campos da batalha. Urrah, formosas damas!

1 Vassalo, subdito do soberano.


2 Cortessão, palaciano; homem da corte.
3 Valido, poderoso, robusto.
LIVRO DA INFÂNCIA 45

vós inflammais1 os peitos dos jovens e desper-2


tais em suas almas as mais extranhas aspirações
de gloria.
Eu sou um pobre velho, curvo ao peso doa
annos, experimentado nas lides 3 da miséria, que
anda pelo mundo despertando nos corações alheios
as amarguras adormecidas».
—Canta, trovador.
O velho fechou os olhos e entoou um canto
triste, arrancado ao fundo de sua alma. Os ho-
mens abaixaram a cabeça para esconder as lagri-
mas que lhes subiram aos olhos ; as moças tre-
meram á vibração do instrumento e choraram ao
echo das suas notas.
O.rei, a quem o canto era dirigido, levou
aos olhos a ponta do manto, enxugou uma lagrima
sentida e disse:
—Velho, desde que subi ao throno sobre o
qual se sentaram meus antepassados illustres4,
acostumei-me a assistir ás dores de outrem de
olhos enxutos e coração fechado. Na guerra vi
meus amigos e companheiros de infância cahir cri-
vados de balas ou rasgados pelas lanças. A fonte
do meu pranto está sêcca. Mas tú, velho, após
tantos annos de odiosa indifferença, conseguiste,
com as harmonias do teu canto, humedecer a
rugosidade das minhas palpebras com algumas
gottas de saudosa lagrima. Toma esta barra 8 de

1 Infiammar, accender o fogo; atear.


2 Aspiração, desejo ancioso; vontade elevada.
3 Lide, combate, disputa.
4 Antepassados, avós.
6 Barra, pedaço de ouro.
46 LIVRO DA INFÂNCIA

ouro; é mais pesada que o bastão a que te


animas 1.
—Obrigado, bom rei! Agradeço o teu ouro.
.Quero apenas um pouco de alimento para matar2
a minha fome e um copo de água fresca para
lenir a minha sede.
—Servos, dae ao velho o resto do meu
banquete.
O trovador sacia-se nas iguarias reaes.
—Obrigado, bom rei! Que a lagrima que
derramaste te faça lembrar do trovador humilde.
Dá-me agora a liberdade ; quero sahir, para con-
tinuar no silencio da noite, sob o fulgor das es-
trellas, minhas tristezas interrompidas.

1 Arrimar-se, encostar-se.
2 Lenir, aliviar, abrandar.
OS DOIS VIAJANTES
(FÁBULA DE FLORIAN)

O João e o José, em franca intimidade,


Encaminham-se, a pé, á próxima cidade.
Por acaso, José, a andar de vagarinho,
Acha uma bolsa de ouro á beira do caminho.
Mas antes que José com o dinheiro se muna,
Diz João : «Para nós a próspera x fortuna!»
«Não, responde José, essa escola não sigo:
Para nós. não senhor; mas para mim, amigo.»
João nada mais diz. Mas nesse mesmo instante,
O compadre José vê, com terror, deante
De si, muitos ladrões ferozes, destemidos 2 ;
Ao vel-os, diz: «João, nós estamos perdidos»!
Ora, emquanto um ladrão, se vai chegando, quasi
A empolgar 3 o José, João, plagiando 4 a phrase
Do companheiro, cliz. «Essa escola não sigo :
Vos, não senhor; mas tu perdido estás, amigo.»

1 Prospera, feliz, venturosa.


2 Destemido, forte; que não teme.
3 Empolgar, agarrar nas unhas, tomar com força.
4 Plagiar, imitar, arremedar.
48 LIVRO DA INFÂNCIA

Acto continuo \ foge. O avaro 2 companheiro


Vê-se obrigado a dar aos ladrões o dinheiro,
E maldiz de João a cômica chalaça 3.
Quem só trata de si, quando a fortuna é boa,
Jamais encontrará quem de si se condôa 4,
Quando vier a desgraça.

1 Acto continuo, no mesmo instante; immecliatamènte


2 Avaro, avarento, mesquinho.
8 Chalaça, dito grosseiro.
4 • Condoer-se, doer-se, ter pena, sentir dó.
O ABYSMO
(PARÁBOLA)

Certo velho mostrava ao filho uma pequena


medalha de bronze que tinha suspensa ao peito
e que guardava, ha muitos annos, com religioso
carinho.
E disse :
—Esta medalha que vês, meu filho, de as-
pecto insignificante, feita de metal tão commum,
não a daria eu por uma bolsa de ouro nem pelas
glorias terrenas a que a vaidade aspiral tanto. Amo
este objecto como a um filho dedicado e á noite,
beijo-o com fervoroso2 carinho.
—Mas porque é que amas esta medalha, meu
Pae ? Ella é tão feia!
—Não sei si ella é feia; sei apenas que ella
é um symbolo 3 que constitue para mim a mais
cara recordação da minha vida. Ha tempos, o
único amigo que tive, único companheiro da mi-

1 Dedicado, que tem dedicação; affectuoso.


2 Fervoroso, férvido, activo.
•3 Symbolo, signal hieroglyphico que dá a conhecer alguma cousa.
50 LIVRO DA INFÂNCIA

nha miséria, deu-m'a no leito de morte, depois


de a ter beijado, e morreu. Ao expirar, agar-
rou-me as mãos, abriu muito os olhosl e parece
que soltou por elles todo o extremoso amor com
que me amava. Meu primeiro e derradeiro amigo !
Quem me dera tel-o ao meu lado, hoje que a
fortuna entrou em meu lar !
—Comprehendo agora, meu Pae, porque esta
medalha te é tão cara. Eu, porém, fosse qual
fosse a recordação que ella me trouxesse ou o
symbolo que representasse, não a amaria nunca.
—Porque, rapaz?
—Por ser muito feia e eu só gosto das coi-
sas formosas que agradem á vista.
Então o pae falou:
« Nunca devemos amar as coisas ou pessoas
só pelo aspecto externo que as reveste 2 : devemos
penetrar-lhes no fundo, estudar-lhes o intimo 3 a
ver si essas pessoas têm qualidades nobres ou
essas coisas qualidades que as valorizem 4. Mui-
tas vezes um bello homem, trajado como um fi-
dalgo, apparentando os mais elevados sentimentos,
occulta uma alma ruim, carcomida 5 de vicios e
envenenada cie remorsos; outras vezes encontrarás
num homem humilde, coberto de andrajos, mos-
trando toda a pobreza em que vive, um coração

1 Extremoso, excessivo, desvelado, carinhoso.


2 Revestir, vestir, cobrir.
3 Intimo, interno, fundo.
4 Valorisar, dar valor, apreço.
5 Carcomida, roida, apodrecida.
LIVRO DA INFÂNCIA 51

nobre, cheio das mais santas delicadezas de sen-


timentos.
Vou-te contar, pois, uma pequena histo-
ria de que poderás tirar algum proveito mais
tarde.
Dois amigos seguiam por uma estrada, a
passo, muito satisfeitos com sua existência. Che-
garam a um logar onde a estrada se dividia ; de
um lado ficava um sinuoso l atalho 2 e do outro
uma entrada de bosque sombreado de arvores
floridas.
—Eu, disse o primeiro, sigo pelo atalho, que
é descoberto ; poderei prever qualquer perigo.
—Eu, respondeu o segundo, vou pelo bosque
gosar a frescura das folhagens e o aroma das
relvas.
Separaram-se.
O primeiro caminhou adeante sem embaraço
nem perigo.
O segundo entrou no bosque. O solo era
todo coberto de 3uma grama verde e fresca e por
cima a galharia das arvores trançava-se fazendo
um tecto meio escuro, por onde a luz se coava
brandamente. Deu alguns passos avante; mas,
quando foi pisar a relva, o solo faltou-lhe e o
desgraçado rolou e desappareceu num abysmo
que se abriu.

1 Sinuoso, tortuoso ; que faz voltas.


2 Atalho, caminho estreito.
3 Galharia, porção de galhos.
52 LIVRO DA INFÂNCIA

Eis a minha historia, meu caro filho.


Nunca te deixes arrastar só pelo aspecto das
coisas; os abysmos e os despenhadeiros * são
sempre cercados de flores e vegetações formosas ;
mas si te approximares dellas para gosar de perto
a frescura perfumosa das flores, encontrarás a
morte adeante e nem tempo terás para o arre-
pendimento dos peecados.

1 Despenhadeiro, precipioio.
NAUFRÁGIO

Nuvens grossas, negras, vão-se accumulando*


no céu escurecendo-o todo.
O mar está agitado ; as ondas levantam-
se a uma grande altura, dobram sobre si mes-
mas e caem pesadamente com um ruido me-
donho ; ,á tona apparece um lençol de espumas
brancas.
O vento, humido e cortante, passa em uivos,
em arrancos, revolvendo as águas, agitando-as
cada vez mais.
O navio segue; as velas palpitam intumesci-
das ' ; a cordoaíha * embaraça-se. O terror está
pintado no rosto de todos os tripulantes * Ha
um desespero geral; supplicas interrompidas, gri-
tos de medo e gestos de revolta.
A tempestade desencadeia-se.s

1 Accumular-se, juntar-se em monte; amontoar-se.


2 Intumescida, inchada.
3 Cordoaíha, as cordas que prendem as velas e petrechos do navio.
4 Tripulantes, passageiros de uma embarcação.
5 Desencadear-se, soltar-se com fúria.
54 LIVRO DA INFÂNCIA

Uma onda, alta como uma montanha, que


vem correndo impetuosamente, apanha o navio,
envolve-o todo e abate sobre elle com todo o seu
peso.
Embarcações e tripulantes desappareceram;
x
apenas, de longe em longe, fragmentos
2
de ma-
deira boiando e alguns náufragos que surgem á
flor d'agua no desespero da morte.

1 Fragmentos, pedaços.
2 Xaufrayos, pessoas que perecem no naufrágio.
DE VOLTA DA GUERRA

Aqui me vou... Quanta afflicção me invade I


Andando a passo, vagarosamente...
Que angustiosa, que intima saudade
Da minha gente!
O céu é negro, o passaredo * mudo,
O ambiente2 que me envolve é tão pesado!
Como tudo está triste, como tudo
Tão transformado!
Esta estrada que sigo é longa e recta,
Pedregosa, sem fim e sem abrigo;
E eu caminho por ella, de muleta,
Como um mendigo.
Quando fui para a guerra, ó sol nascia ;
Fiquei com os olhos humidos de pranto ;
Minha esposa, meus filhos nesse dia
Choraram tanto !

1 Passaredo, passarada; bando de passarinhos.


2 Ambiente, ar que se respira.
56 LIVRO DA INFÂNCIA

Abandonei a minha pobre terra;


E marchei, sem descanço e sem repouso;
Mas sentindo-me então, antes da guerra,
Victorioso,
Desci montanhas e galguei * encostas,1
Andei á margem dos despenhadeiros,
Avante sempre, de espingarda ás costas,
Com os companheiros.
Tive amarguras fundas e pezares,
Em companhia dos fieis soldados,
Sobre terras extranhas, sobre mares
Eneapellados 3.
E parti para a guerra; mas a sorte
Pródiga 4 e incerta, má e vacillante5,
Poupou a minha vida expondo-a á morte
A todo instante.
A guerra durou annos ; foi renhida 6,
Longa, tão longa, que a julguei eterna;
Uma bala, afinal passou, perdida
Partiu-me a perna.
E aqui me vou por esta estrada recta,
Recta e longa, sem fim e sem abrigo,
Esfarrapado, fraco, de muleta,
Como um mendigo.
1 Salgar, correr, saltar sobre alguma cousa, transpor.
2 Encosta, ladeira, declive de um monte.
3 Encapellado, revolto; diz-se do mar quando está agitado.
4 Pródiga, generosa.
•5 Vacillante, que vacilla; incerta,
p Renhida, disputada.
VAIDADE

Estavam reunidas cinco meninas no campo, a


conversar, abrigadas á sombra de uma velha ar-
vore, onde as cigarras cantavam.
Todo o resto da campina estava inundado de
sol. Fazia um calor estivai l .
Como eram meninas ricas, e a vaidade é para
a maior parte dellas a preccupação constante, fala-
vam a respeito da belleza de cada uma.
Dizia a primeira:
—Eu sou a mais bella de vós todas, porque
tenho os cabellos claros e quando o sol os illumina
dá-lhes um reflexo dourado. E para mostral-os,
ficou em pé de encontro ao sol, cujos raios for-
maram uma auréola2 de ouro em torno á sua
cabeça.
A segunda disse:
—Não sou menos bella que tu; tenho a cu-
tis 3 fina e rosada como a polpa de um pecego 4.
—Eu tenho as mãos encantadoras.

1 Estivai, de estio, de verão.


2 Auréola, circulo luminoso.
3 Cutis, pelle do rosto.
4 Polpa, a parte mais carnosa (do animal, da fructa).
LIVRO DA INFÂNCIA

E assim cada qual enumerava seus encantos,


fazendo-os sobresahir do melhor modo possível,
em vez de occultal-os ou disfarçal-os como man-
da a boa educação e a modéstia.
Minhas meninas, nunca vos blazoneisx de
vossos encantos physicos e do vosso aspecto ex-
terno, por mais notáveis que vos pareçam, porque
a belleza com que a natureza vos dotou desap-
parece facilmente com as moléstias que se adqui-
rem, com os innumeros accidentes - da vida e com
a edade.
Deveis ser modestas, educar o vosso espirito
nas boas leituras, nos exemplos bons, nos actos
nobres, que sereis mais bellas ainda e a sympa-
thia, que decorre da elevação do espirito, dará
um imperecivel realce 3 aos vossos encantos.

1 Mazonar-se, orgulhar-se, jactar-se.


3 Acciiente, acontecimento, acaso.
2 Realce, côr que realça; mais luzimento, mais luz.
O FUGITIVO
(JOGO INFATIL)

(Reune-se um certo numero de creanças,


que se prendem umas ás outras pelas mãos, fa-
zendo uma roda. Começam a virar, vagarosa-
mente, da esquerda para a direita, cantando).

Coro

Numa tarde amena e fresca


O rei ordenou marchar
Toda a sua soldadesca /^ '/
Nas-aiw*& praias do mar. v 0'\ &Àod } J
E sob a tarde tranquilla,
Rente ás espumas cio mar,
Soldados todos em fila
Começaram a marchar.
Vão marchando em linha£ rectas y^j -AJ
Numa ordem militar
Ao barulho das cometas,
Dos tambores ao ruflar.
60 LIVRO DA INFÂNCIA

E quando chegam em frente


Do rei que os estava a olhar,
Fazem respeitosamente
Continência militar.
O Rei
Que seja preso em corcente,
Lançado ás ondas do mar
Aquelle que em minha frente
Não me saudou ao passar.
(Uma das creanças, que ficou incumbida de fa-
zer o papel de fugitivo, desprende-se da roda, foge
e esconde-se).
Coro
Que seja preso o soldado
Que o rei manda acorrentar.
Para depois ser lançado
A's fúrias bravas do mar.
(Saem todos apressadamente em procura do
fugitivo, agarram-n'o e collocam-n'o no meio da
roda).
Coro
Eis aqui o fugitivo
Que o rei se dignou mandar
Trazer em ferros, captivo,
Para ser lançado ao mar.
(E expulsam da roda o fugitivo).
A PRIMAVERA

Desponta clara a manhan;


Os passarinhos em bando
Cortam os ares, cantando
Numa alegria louçan *.
A primavera derrama
Uma agradável frescura
Sobre a nascente verdura;
Dá côr ás flores na rama.
O ar festivo do arrebol2
Dá-nos as belias primicias
Das esplendidas caricias
Dos dias claros de sol.
Nasce a rosa; brota a espiga;
O boi vai para o trabalho;
A abelha, de galho em galho,
De grão em grão, a formiga.

1 Louçan graciosa, viçosa, que será bem trajada.


2 Arrebol, côr vermelha das nuvens feridas pelos raios do soL
62 LIVRO DA INFÂNCIA

A linda e fresca estação


Vai afugentando em cima
A nuvem que se approxima
Como densa cerração.
De pé em meio á pastagem,
O zagal 1 saúda a aurora
Com a harmonia sonora
Da sua flauta selvagem.
Vaccas que estão a pastar,
Em grupos, pelas campinas,
Respiram pelas narinas
A doce frescura do ar.
Camponios, mal nasce o dia,
Com as enxadas ás costas
Lá vêm descendo as encostas
Para as labutas - do dia.
Já despontou a manhan ;
Os passarinhos em bando
Cortam os ares, cantando
Numa alegria louçan.

1 Zagal, pastor.
2 Labuta, lida; trabalho laborioso.
O CÃO

Alfredinho possuía um cão que se chamava


Lobo. Era grande como os maiores da sua raça, o
pello crespo, inteiramente negro e dotado de uma
coragem e força que o faziam temido por todos.
A' noite, quando o soltavam no quintal. Lo-
ho escondia-se na sombra dos muros, e ahi ficava,
immovel e alerta, á espera dos ladrões. Mas es-
tes, que lhe temiam a ferocidade, não se arrisca-
vam a galgar o muro.
Emtanto este cão, apesar do seu aspecto fe-
roz, dos seus olhos sangüíneos e duros, que fitavam
tudo com aspereza, e da sua bocca rasgada, guar-
necida x de dentes afiados, era manso como um
cordeiro para o seu pequeno'amo, que lhe alizava
o pello e lhe dava beijos no focinho.
Viam-n'os sempre juntos, Alfredinho e Lobo,
amigos inseparáveis,—aquelle, mal sustentando-se
nas pernmhas fracas, este, ostentando sua corpu-
lencia de fera. A's vezes iam passear juntos até
ao campo, e Lobo acompanhava o seu amiguinho,
seguindo-lhe todos os movimentos, obedecendo a

1 Guarnctida, enfeitada, adcreçada.


64 LIVRO DA INFÂNCIA

todos os seus gestos, num desejo de adivinhar


os seus mais Ínfimos * pensamentos.
Alfredinho, com ser uma creança de cinco
annos apenas, comprehendia esta dedicação e re-
tribuía 2 ao seu amigo do mesmo modo, tratando-o
com o maior carinho, zangando-se com os creados
si lhe davam uma ração pequena ou si lh'a davam
com grosseria.
Certa vez, um homem rico, muito amante de
cães, dirigiu-se ao pae de Alfredinho e offereceu-
lhe uma somma avultada para a compra de Lobo.
O pae recusou-se a vendel-o, dizendo :
— Este cão é o melhor amigo do meu filho,
acompanha-o por toda a parte. Si algum dia este
digno animal perecer, meu filho não poderá sobre-
viver-lhe 3, tal será o desgosto que ha-de sentir.
O homem foi-se embora, não sem ter lançado
de soslaio 4 um olhar invejoso sobre o cão.
De facto, não havia ninguém que não admiras-
se Lobo, o seu corpo volumoso ornado de um pello
crespo e macio, as suas patas enormes armadas de
unhas pontudas e curvas, como as de um leopardo 5,
e o seu peito largo e forte como uma couraça.
Alfredinho, quando tinha trez annos, era um
menino doente, extremamente débil6
Seu pae, que o amava muito, fazia-lhe todas
as vontades, satisfazia-lhe todos os desejos, com
medo de contrarial-o ou aborrecel-o. Alfredinho,

1 ínfimo, que não tem valor; insignificante.


2 Retribuir, dar a recompensa merecida.
3 Sobreviver, viver após a morte de outrem.
4 De soslaio, atravez; de esguelha.
5 Leopardo, animal feroz.
6 Débil, delicado, franzino, fraco.
LÍVR0 DA INFÂNCIA 65

porém, dotado de sentimentos generoEOS e boa alnp,


nunca abusou, como fazem geralmente as ereanças
da sua edade, das delicadezas de que era cercado.
Nessa época, num dia de muita chuva, em que
o vento passava impetuosamente em uivos prolon-
gados, Alfredinho, tremulo de susto, ouviu um gemi-
do triste que vinha da rua. Mandou ver o que era.
— Era um cão muito magro, disseram, e
coberto de lepra.
Alfredinho. piedoso como era, pediu ao pae
com os olhos cheios de lagrimas que recolhessem
o pobre cão, que lhe dessem agasalho,.
O cão entrou, encharcado da água da chuva,
tremendo de frio. Seu aspecto era repugnante :
magrissimo, as costellas salientes, immundo e co-
berto de tinha \
Todos recusar?m-se a recebei-o.
O menino tanto insistiu, chorou e bateu2 o
pé, que o pae resolveu, não sem escrúpulo e
nojo, ficar com o cão.
Deram-lhe o nome de Lobo pelo ar selvagem
que tinha.
Pouco a pouco, alimentando-se bem, sujei-
tando-se ao tratamento da lepra que lhe cobria o
pello, o cão foi engordando, e em pouco tempo
tornou-se um animal lindo e afagado por todos.
Durante o dia seguia Alfredinho aos passeios,
sacudindo a cauda, fazendo-o rir com suas graças; á
noite soltavam-n'o no quintal para3 defender as galli-
nhas e as hortaliças do assalto dos malfeitores.
1 Tinha, espécie de lepra na cabeça.
2 Escrúpulo, duvida, receio.
3 Assalto, ataque violento, arremettida súbita.
66 LIVRO DA INFÂNCIA

O seu pequeno amo, uma manhan, depois de


haver pedido licença ao pae, convidou-o a um
passeio ao campo, para caçar borboletas e cigarras.
O cão acompanhou-o.
Alfredinho corria pelos atalhos, escondia-se nas
touças x de verdura, tentando illudir a vigilância
de Lobo.
Cançado, porém, de tanto brircar, deitou-se
na relva e adormeceu.
O cão deitou-se também, alerta sempre con-
tra qualquer perigo, disposto, si fosse preciso, a
defender o seu querido amiguinho.
Nesse instante uma cobra traiçoeira, arrastan-
do-se por entre as folhas, approximou-se do logar
em que estavam, prompta 2 para picar a creança e
matal-a com sua peçonha mortal.
Lobo, que a tinha presentido 3 , voltou-se de
repente e atacou-a em botes furiosos.
Matou-a. Emquanto a serpente estava estre-
buchando no chão, crivada de dentadas, o cão,
que tinha sido picado, gemia, penetrado de do-
res lancinantes 4.
Pobre e fiel animal!
Minutos após, Lobo, rojando-se5 no chão, exgot-
tado de forças, chegou até onde estava o seu ami-
guinho, lambeu-lhe as mãos carinhosamente e
morreu num doloroso gemido.

1 Touça, touceira
2 Peçonha, veneno.
3 Presentir, sentir qualquer cousa antes que ella succeda.
4 Lancinante, dolorida.
5 Rojar-se, andar de rojo, arrastando-se pelo chão.
A YARA '
(BALLADA TUPY)

Rio abaixo descia a veloz ygara2 impellida


pelo remo. Um moço tapuio, bello como os mais
bellos da sua tribu3, robusto e valente, cantava á
proa, a meia voz, uma canção melancólica, em
que dizia os combates que ferira contra as tribus
inimigas, as maguas que soffrera longe dos seus,
nas perigosas caçadas pelo sertão bravio.
A ygara corria. As águas espumavam em
torno.
A tarde ia descendo. Uma tristeza crepuscu-
lar 4 invadia as várzeas. Pássaros selvagens reco-
lhiam-se em bando, vagarosamente, as azas abertas,
cortando o ar em longos e reguláres giros.
O sol ha muito tinha cahido. A lua, do alto,
espiava, destacando-se5 na transparência do azul
como uma mancha luminosa.
1
Vara, gênio máu que tem a forma de uma mulher, segundo a crença
dos indios
2
3
Vgara, embarcação tosca dos indios.
Tribu, porção de indios reunidos.
* Crepuscular, de crepúsculo.
5
Destacar-se, sobresahir.
68 LIVRO DA INFÂNCIA

« Tapuyo , tapuyo ! volta a tua canoa, corta


a correnteza das águas, foge e entra na taba 2 dos
teus pães antes que a noite chegue.
Durante a noite, sob a claridade pallida da
lua, a Yara apparece á flor d'agua. Ella tem os
cabellos louros como as barbas do milho; os den-
tes brancos como o granizo 3 que cai com as gran-
des tempestades; os olhos azues como o céu nas
madrugadas do estio 4
Não te approximes delia, tapuyo! Em seu
palácio encontrarás a morte.
Foge, tapuyo, foge !»
A Yara, á tona do rio, o corpo envolvido na
onda dos cabellos de ouro, a cabeça airosa 5 apoi-
ada numa das mãos, tem os olhos fixos no céu,
embevecida 6 na contemplação dos astros.
Ha um grande silencio. As folhagens estão
mudas ; a viração que passa é tão Jeve, tão
branda, que as roça apenas sem as agitar.
A ygara continua a correr, rio abaixo, im-
pellida pelo remo.
A Yara canta:
« Nunca olhos humanos fitaram belleza egual
á minha. Minha bocca é perfumosa como a flor
do valle rociada 7 da neblina matinal.
Todas as noites, á flor d'agua, accórdo o si-
lencio da matta com as sonoridades do meu canto.

1 Tapuyo, gentio, selvagem.


2 Taba, habitação de selvagem,
3 Granizo, saraiva.
4 Estio, verão; a estação mais quente do anno.
5 Airosa, graciosa.
6 Embevecida, enlevada, suspensa.
7 Rociada, molhada de rocio, orvalhada.
LIVRO DA INFÂNCIA ^69

E quando o somno me vence e me vai obrigando


a fechar as palpebras, desço ao meu f alacio de
ouro, que fulgura no fundo do rio, onde seaccu-
mulam os maiores encantos da terra.
O tapuyo appareceu.
Approximou-se cada
J
vez mais, os olhos presos
na Yara, fascinados de admiração e espanto,
deslumbrados 2 de encantamento.
Prevendo o perigo a que se expunha e a morte
horrível, tentou, com um movimento rápido do
remo, voltar a proa da ygara e fugir. Era tar-
de. Seus músculos estavam frouxos, seus braços
pendiam amollecidos de cançaço. E a Yara foi-se
chegando a elle, resvalando de onda em onda..
O tapuyo resiste. Ella agarra-o, envolve-lhe
o corpo na túnica longa dos cabellos, e leva-o
para o fundo do rio. As águas abriram-se, es-
pumaram, fecharam-se sobre os dois e foram es-
corregando pelas várzeas em flor.

1 Fascinado, encantado.
2 Deslumbrado, allucinado.
PRECE

Santa Maria, illuminae


A estrada asperrima' que trilho 2 :
Ah ! por amor de vosso Filho!
Ah ! por amor de vosso Pae !

Aos marinheiros que, no mar,


Temem as syrtes 3 e os escolhos *,
Dae-lhes a uncção dos vossos olhos,
Dae-lhes a uncção 3 do vosso olhar.
Não peço glorias nem trophéos G
Que as amarguras não compensam:
Apenas quero a vossa bençam,
Só, muito embora, ó Mãe de Deus,

O camponez não queira o buz 7


Dos vossos olhos e nem vol-o

1
2
Asperrima, muito áspera.
a
Trilhar, andar caminhar.
4
Syrtes, bancos de areia no mar.muito perigosos.
6
Escolhos, penhascos: pedras debaixo da água.
Uncção, acto de ungir.
«7 Trophéo, victoria. insígnia militar.
Buz, osculo, beijo : signal de reverencia.
LIVRO DA INFÂNCIA 71

Peça, mas peça um ferragoulq'


Para cobrir os hombros nús.
Ao miserável que cahir,
Ao roto, dae-lhes uma tira
Do vosso manto de saphyra2
Para as feridas encobrir;
A's noivas pobres, enxovaes ;
Ao peccador, ao moribundo,
Dae-lhes o goso do outro mundo
Longe das chammas infernaes.
Dae-nos do vosso olhar a uncção!
E que sejais sempre
3
bemdita
Lá nessa abobada infinita,
O' immaculada4 Conceição !
Santa Maria, illuminae
A estrada asperrima que trilho!
Ah! por amor de vosso Filho !
Ah! por amor de vosso Pae!

1 Ferragoulo, espécie de casaco ; gibão.


2 Saphyra, pedra preciosa azul.
3• Abobada, tecto redondo; flguradamente o ceu.
4 Immaculada, que não tem mancha; limpa, pura.
O ALEIJADINHO

De quando em quando, nos dias de missa


ou de festejos religiosos, emquanto o povo es-
tava agglomerado ' em torno da egreja, o alei-
jadinho appareeia, arrimado a uma muleta, e ia
implorando esmolas com o chapéusinho no ar.
Todos o conheciam e davam-lhe pequenas
esmolas, uma moeda, um pedaço de pão, gulo-
dices, a que elle com sua vozinha sympathica
agradecia, dizendo :
—Deus lhe pague.
O aleijadinho morava no meio de uma floresta
numa velha choupana coberta de telhas de zinco'
com seu pae, que ha muitos annos gemia no fundo
do leito, entrevado • pela enfermidade.
O filho era o seu único amparo; levava-lhe
a comida á bocca, dava-lhe água, os medica-
mentos que lhe aconselhavam para suavizar-lhe
as dores; e quando o sustento escasseava8, laia
a pobre creança para a povoação, arrastando-se
pelas estradas.
* Agglomerado, junto, amontoado.
íf/Td0'
s Escassear, }°^iá0 tornar
faltar; . d o s m e mescasso
° ™ * : ou
semminguado
poder fazer movimentos.
"•"»*««•
LIVRO DA INFÂNCIA 73

Pedia esmola aos passeantes e tudo que lhe


davam guardava numa saccola.
Entrava pelas casas de famílias e desde a
entrada ia gritando:
—O aleijadinho!
As creanças corriam a recebel-o, davam-lhe
roupas novas, doces, e muitas invejavam a sua
existência humilde, a coragem que tinha de ca-
minhar pela floresta em noites escuras, sem medo
aos lobos nem ás feras.
Perguntavam-lhe si havia almas do outro
mundo na escuridão da matta; a tudo o pobresi*
nho respondia sorrindo, e contava historias curiosas
de passarinhos, das tempestades do invern%' e,
iníelligente como era, inventava novellas de fadas,
castellos encantados, para illudir a miséria da
sua vida.
Tirava dos bolsos ovos de passarinhos, ni-
nhos, pedras de varias cores, distribuía tudo en-
tre as creanças, contando historias muito bonitas
a respeito de cada objecto.
Ia-se embora apressadamente, para que a noite
o não surprehendesse em caminho, e, quando en-
trava na choupana, começava a mostrar ao pae,
muito alegre, as esmolas que havia recebido.
E assim ia vivendo a miserável creança, de
soffrimento em soffrimento, ignorante dos gosos
da fortuna, mas tão resignada ' sempre, que nunca
se lhe viu uma lagrima nos olhos nem um gesto
de revolta na candura do seu rostinho.

Resignaía, conformada; que tem resignação.


74 LIVRO DA INFÂNCIA

Passado algum tempo, como o pobresinho não


apparecia mais na aldeia, todos começaram a
pensar que as feras decerto o tinham devorado e
ao seu velho pae, em alguma noite escura, no
silencio da floresta.
Houve nos corações das creanças um enterne-
cimento geral.
Todos o choraram, lhe lastimaram * a sorte,
e muitas mãosinhas se ergueram ao céu, suppli-
cantes, rogando a Deus repouso para a sua alma.

Lastimar, deplorar, compadecer-se, dar mostras de dor.


O CURANDEIRO

Christo andava passeando em companhia de


São José pelas ruas de uma aldeia, parando deante
de cada porta a observar o trabalho de cada um.
Viu um ferreiro que dirigia imprecações ' con-
tra o céu, porque o fogo da forja não era bastante
forte para abrandar o ferro ; um mercador sen-
tado em uma pedra a contar o dinheiro ganho
com usura 2 ; um ladrão que passava, de ar hu-
milde de mendigo do templo, esfarrapado e im-
mundo, occultando sob os andrajos o producto do
seu roubo ; viu com horror alguns garotos ape-
drejando um velho estropeado3; cães sem dono,
magrissimos, uivaudo de fome pelas ruas, e laza-
rentos raspando as chagas com cacos de telha.
—Que gente impia i! disse Jesus ao seu com-
panheiro.

1 Imprecação, maUlição.prag»/
2 lisura, muita economia; avareza.
3 Estropeado, aleijado.
4 ímpia, que não teín piedade nem religião.
LIVRO DA INFÂNCIA

São José abaixou o rosto, sem dizer nada,


como si se sentisse envergonhado deante de tanta
impiedade *
E foram caminhando, de vagar, pelas tortuo-
sas ruas cia aldeia.
—Cada homem destes, falou Christo, tocado
de compaixão, si é rico, é perverso e cruel; si
é pobre, é um revoltado da sorte, que vive a
maldizer a pobreza. Parece que um gênio máu
ou que a cólera divina derramou sobre esta mi-
serável terra a alluvião * de todos os peccados.
Pobre gente !
—Bem difficil seria arrastal-a ao bom cami-
nho.
—Impossível quasi, murmurou Jesus ; mas,
emfim, para que se não diga que a nossa visita
foi inútil e sem proveito, vamos ensinar a virtude
com o bom exemplo ao primeiro que apparecer.
Nesse instante elles tinham passado deante
de uma porta onde um curandeiro se annunciava
com grandes gritos, dizendo«-se milagroso.
Pararam.
—Christo ouviu o seu pregão 3 e preguntou-
Ihe:
—Em que consistem as vossas curas milagro-
sas, e porque é que vos apregoais* como o pri-
meiro curandeiro do mundo ? Que virtudes têm
os vossos remédios e a vossa sciencia? Que ma-

1 Impiedade, falta de religião; crueldade.


2 Alluvião, enchente; crescimento das águas.
3 Pregão, annuncio; palavras com que se apregoa.
4 Apregoar, fazer pregão.
LIVRO DA INFÂNCIA 77

gico vos ensinou tanta sabedoria ? Mostrae^me


vossas virtudes todas, para que eu vos acredite.
O homem começou a enumerar, com orgu-
lho, as curas que praticara :
—Com óleo de oliva, a que misturei umas
preparações, de que eu só guardo o segredo, cu-
rei um leproso em poucos dias ; concertei a perna
a um estropeado ; dei vista a um cego e voz a
um mudo; uma pobre mulher, que ha muitos
annos gemia no fundo do leito, ergueu-se e está
hoje san com os remédios que lhe dei. Tenho
balsamos * para as feridas, óleos para as quei-,
maduras, allivio para as dores, pós para as lepras
e collyrios s para todas as doenças de olhos.
—Sois, na verdade, muito sábio ; porém, por
mais prodigiosas3 que sejam as vossas curas, nunca
vos esqueçaes de que o mundo é grande e nelle
devem haver homens de sabedoria egual ou su-
perior á vossa.
—Egual, talvez; mas superior, não, affirmou
com a natural soberba.
—Vejamos, pois, disse Christo. Aqui está um
homem (e apontou para o seu- companheiro) que,
desde a infância, tem uma enorme chaga que lhe
cobriu a4 perna inteira e o faz estorcer-se de
atrozes dores. Vede si podeis curai-o.
São José, que já estava prevenido ou tinha
adivinhado a intenção do Mestre, ergueu a ponta
do manto que o cobria e mostrou a perna, muito

1 Balsamo, planta medicinal com que se curam feridas.


2 Collyrio, remédio para doença dos olhos.
3 Prodigioso, maravilhoso.
4 Atroz, bárbaro, cruel.
78 LIVRO DA INFÂNCIA

inchada e toda coberta de chagas vermelhas e


roxas.
O curandeiro olhou com repugnância * e un-
ctou a perna de S. José com uns óleos frescos e
perfumosos.
O Santo começou a gemer de dor, e grossas
lagrimas lhe molharam as barbas.
O homem falou :
—Impossível cural-o. Essas feridas são tão
velhas que se radificaram 2 por todo o corpo. Po-
deis seguir o vosso caminho, infeliz peregino %
que não encontrareis cura em parte alguma.
Christo, então, disse-lhe:
—Vós nunca soubestes curar. O que não pu-
deram fazer os vossos óleos, faço eu com um
gesto.
Passou a mão de manso sobre as feridas de
São José, e curou-as immediatamente.
O curandeiro cahiu de joelhos, assombrado.
—Quem sois vós,4 sonhor, que sabeis obrar
tão grandes prodígios e milagres como estes?
—Um pobre peregrino, respondeu Christo, com
sua evangélica modéstia e religiosa humildade,
que anda pelo mundo a alliviar as dores e soffri-
mentos humanos.
E seguiu com São José seu passeio interrom-
pido.

1 Repugnância, nojo.
2 Raãificar, crear raizes.
3 Peregrino, romeiro; que anda em romaria.
4 Prodígio, cousa rara, maravilha, milagre.
A UMA CREANÇA
(IMITAÇÃO DE HUGO)

Choras, creança, mas chorar não deves ;


Entre a velhice e as tuas horas leves
E' pequena a distancia ;
Choras debalde ; choras
Porque não sabes, flor, quanto são breves
Da humana vida as horas,
Porque não sabes quanto é bella a infância!
Tu, cuja vida é um suave paraiso
Adornado de flores,
Da nossa vida misera * de dores
2
Amargas e revezes
3
,
Nunca invejes o júbilo indeciso,
Porque teu pranto é menos triste, ás vezes,
Do que o nosso SOITÍSO.
Os teus dias são rosas
Que vicejam, alegres e radiosas * ,

1 Mísera, mesquinha, miserável.


2 Reveses, infortúnios, desgraças.
3 Júbilo, alegria, contentamento.
4 Radiosa, que lança raios do luz.
80 LIVRO DA INFÂNCIA

Nessas tuas manhans de eternas galas '.


Nunca as desfolhee, gárrula s creança ;
Deixa-as em paz, deecança,
Deixa que o tempo venha desfolhal-as.

1 Galas, luxos, pompas, magniflcencias.


2 Gárrula, faladora; que fala muito.
O MONGE

Uns mercadores, com suas malas ás costas,


caminhavam em direcção á cidade, para vender
suas mercadorias. Mas a viagem tinha sido longa
e elles estavam cançados.
Tinham atravessado campos, galgado mon-
tanhas e sentiam já tanta fadiga, que resolveram
sentar-se sobre a relva para descançar. Mas o
sol estava muito ardente e elles seguiram adean-
te. Entraram num bosque onde a sombra era
fresca e em cuja entrada havia uma gruta de
pedras brutas, üluminada de alvas estalactites *.
Penetraram, não sem algum receio, cautelo-
sos, porque podia ser um covil de malfeitores.
Tudo estava ás escuras. Mas, logo que se
habituaram ás trevas s da gruta, viram um monge
de joelhos,' as mãos postas, a fronte erguida,
absorvido8 nas suas preces.
—Monge, disee um delles ; perdoa-nos ter-te
interrompido nas tuas meditações. Entrámos em

1 EstalacWes, concreç5e3 vitreas; pedras brancas e luminosas que estio


•suspensas no tecto das grutas.
2 Trevas, escuridão.
3 Absorvido, embebido, mergulhado.
82 LIVRO DA INFÂNCIA

tua habitação para te pedir abrigo contra os ar-


dores do sol.
—Entrae, viajantes, respondeu o monge mal
desperto das suas contemplações mysticas 1 Todos
os peregrinos terão aqui seguro abrigo contra as
inclemencias 2 do sol e contra as tempestades da
noite.
Os mercadores agradeceram, e, como sentis-
sem fome e sede, falaram :
—Na nossa longa e perigosa jornada * a fome
devorou nossas entranhas e a sede seccou nossas
gargantas ; mas tu deves estar tão acostumado
ao jejum, que em tua habitação nada pôde haver.
—Nada ha, de facto, pobres viajantes ; mas
o poder de Deus é infinito e a sua misericórdia
é sem limites. Então, de um gesto, fez jorrar 4 de
uma fenda cia rocha um grosso fio de água clara,
onde elles beberam até á saciedade 5; e, arran-
cando do chão uns calháus que se tranformaram
em pães, entregou-os aos peregrinos, dizendo:
—Tomae ; cumpriu-se a divina vontade.
Os mercadores, homens materiaes 8 e rudes,
tremeram de susto, receando algum sortilegio 7
diabólico ; mas, ao mesmo tempo, deante da re-
ligiosa bondade e aspecto humilde do monge,
comeram.
E um delles falou :

1 Mystico, em que ha mysterio.


2 Inclemencia, crueldade.
3 Jornada, viagem, longa caminhada.
4 Jorrar, rebentar com força.
5 Saciedade, fartura; satisfacção do desejo.
fi Jlateriaes, do matéria, estúpidos.
7 Sortilegio, malefício, feitiçaria.
LIVRO DA INFÂNCIA 83

—Monge, si tu estás revestido de tanto po-


der e podes, com um gesto apenas, fazer brotar a
água e transformar em pães os calháus brutos,
porque não fabricas também o ouro para gosares
as delicias da riqueza ? E porque vives occulto nas
trevas desta gruta, como uma fera, emmagrecido
pelos jejuns e cilicios ' ?
—Que errada e falsa comprehensão tendes da
vida, meus amigos! Sabei que o ouro serve so-
mente para corromper 2 os sentimentos, envenenar
a alma, e não poderá dar-me os gosos a que eu
aspiro. Ao menos, na pobreza em que vivo e
que desprezais, sem as preoccupações que acar-
reta 3 a fortuna e os peccados que ella desperta,
posso mergulhar-me inteiramente em minhas pre-
ces e na contemplação da divindade.
Os viajantes agradeceram ao monge o gene-
roso acolhimento *, beijaram-lhe respeitosamente as
mãos e partiram.

1 Cilicio, tecido de arame com puas, que usam os religiosos para


mortiflcar-se.
2 Corromper, perverter, apodrecer.
3 Acarretar, occasionar, guiar.
4 Acolhimento, agasalho, recebimento.
NOITE DE INVERNO

Nunca vi noite como esta agora:


Ai! como é negra, como é sombria.
Fechae as portas á ventania
Que vem de fora.
Passa a rajada ' cortante e fria ;
Correm de brumas compridas levas ' ;
Que noite escura ! brumas e trevas..
Ave, Maria !
Inquiro 3 as sombras, o ouvido aguço,
E ouço, medrosa, de quando em quando,
Um como choro, tremulo e brando
Como um soluço.
Ai! que pungente k pensar que um bando
De pobresinhas creanças nuas,
Corre nesfhora ruas e ruas,
Choramigandos

1 Rajada, refrega de vento.


2 Levas, multidões, bandos.
3 Inquirir, indagar, tomar informações.
4 Pungente, picante, agudo, doído.
5 Choramigar, chorar a miúdo e por pouca cousa.
LIVRO DA INFÂNCIA 85

Passa a rajada cortante e fria ;


Correm de brumas compridas levas ;
Que noite escura! brumas e trevas..
Ave, Maria!
E eu tenho leitos, boas flanellas,
Fogão acceso, carne em tressalhos1:
Ai ! si eu pudesse dar agasalhos
A todas ellas!
E tenho sustos; o frio corta;
Quero as janellas muito fechadas ;
Vejo phantasmas, ouço pancadas
Ferindo a porta.
Gênios 2 nocturnos, em negro bando
Calmos e tristes sob as rajadas,
Andam, de certo, pelas estradas
Somnambulando3.
Nunca vi noite como esta agora:
Ai! como é negrat como é sombria.
Fechae as portas á ventania
Que vem de fora.

1 Tressalhos, pedaços, fatias.


2 Gênios, espíritos errantes.
3 Somnambular, andar sonhando.
A OVELHA
( F A Bü L A )

A ovelha, um dia, muito triste por não ter


forças para luctar com os cães que a mordiam,
1
ou
armas de defesa contra a ferocidade dos lobos,
dirigiu-se a Júpiter e expoz-lhe2 suas queixas :
—Pae, todos os animaes que vivem sobre a
terra, desde o inseeto ao pachyderme,3 têm meios
de defender-se contra os ataques; e coragem para
provocar as luctas. Eu, perém, sou tímida e inde-
fesa4: tudo me causa medo. Queria, pois, que
me desseis uma arma qualquer.
Júpiter, tocado 5 de piedade, perguntou-lhe :
—Queres um veneno occulto nos dentes, para
dar a morte aos que te fizerem mal ?
—Oh! não ! respondeu a ovelha. Os animaes
venenosos são nojentos e causam medo a todos.
—Queres ter na bocca duas fileiras de den-
tes afiados, como os leões e os lobos?
1 Ferocidade, braveza.
'2 Expor, explicar, dizei
3 Pachyderme, animal grande, como o elephante, o lyppopótamo
4 Indefesa, fraca; que não tem força pari defeflder-se. V ^m°'
Tocado, ferido, sensibilizado.
o Tocado. fpnfln_ KPH«Í1IÍT1V<»^^
LIVRO DA INFÂNCIA 87

—Oh ! não ! Os animaes carnívoros ' são tão


odiosos e antipathicos!
—Queres saber arremetter2, como os touros,
com duas pontas na cabeça ?
—Oh ! não ! Eu causaria terror aos outros
animaes, e não seria acariciada pelos pastores.
—Que queres, pois ? gritou Júpiter, impa-
ciente.
—Nada, senhor, nada quero. Prefiro viver
assim, tímida e fraca, porém estimada e afagada
por todos.

1 Uarniooros, animaes que se alimentam de carne, como os lobos e leões.


2 Arremetter, investir, atacar.
o MANÍACO1

Viam-n'o sempre por montes e valles', exposto'


á chuva que lhe encharcava as roupas, ou ao sol que
lhe queimava a pelle, curvado, com os olhos fixos
no chão, como quem procura umobjecto perdido.
Na primavera, quando os rosaes da cerca es-
tavam floridos, os campos verdes e os passarinhos
alegres, cruzando-se no ar numa revoada* feliz,
o pobre rapaz passava, atravessava as campinas,
• Bubia 8as montanhas, indifferente á belleza da pai-
zagem , os cabellos voando ao vento.
Quando se sentia muito fatigado, sentava-se
na ponta de uma pedra e adormecia.
Alimentava-se de fructas silvestres, bebia água
á nascente dos ribeiros6, e, á noite, abrigava-se
debaixo de uma arvore ou no fundo de uma gru-
ta, como um animal selvagem.
Um camponez, que o conhecia, chamou-o um
dia e perguntou- lhe com curiosidade:

1 Maníaco, louco ; indivíduo que tem mania.


2 Valle, planície junto a um monte.
3 Exposto, patente, que se mostra.
4 Revoada, volta da ave que vem voando.
5 Paisagem, vista de terras e arvoredos.
Ç Ribeiro, arrolo, rio pequeno.
LIVRO DA INFÂNCIA 89

—O' rapaz 1 que é que andas fazendo pelos


campos e bosques, todos os dias, exposto ao sol
e á chuva ?
—Procurando thesouros.
—E tens alguma esperança de achai-os ?
—Sim, affirmou o moço com convicção', cor-
rendo os olhos pela extensãos das campinas.
—E' melhor, disse o camponio em tom de
conselho, que mudes de vida; tu, nesta faina* de
procurar thesouros, tornas-te um homem comple-
tamente inútil, inapto para o trabalho. E' me-
lhor, pois, que te esqueças dos thesouros, que os
não ha, e procures outro gênero de vida em que
aproveites a tua intelligencia e o teu trabalho.
—Não, disse o maniaco, si ha muitos annos
dediquei4 minha existência á procura de thesou-
ros, é porque tenho certeza de encontral-os.
—Mas como ?
—Uma noite, era eu pequeno ainda, estando
adormecido em meu leito, appareceu-me uma fada
em sonho, que me falou mais ou menos assim :
« Tu estás destinado pela sorte a ser o homem
mais rico do mundo, e cuja fortuna te facilitará
os meios de vencer os maiores soberanos da ter-
ra, de conquistar * reinos e mares e dominar9 sobre
tudo com o poder do teu sceptro. Legiões intei-
ras de soldados, vestidos de couraças e armados
de lanças, te acompanharão nas conquistas; sobre

1 Convicção, prova, persuasão.


2 Extensão, comprimento.
3 Faina, trabalho.
4 Dedicar, consagrar, destinar.
5 Conquistar, acção de conquistar, de adquirir pelas armas.
6 Legião, esquadrão de tropas, multidão.
90 LIVRO DA INFÂNCIA

1
os mares 2terás navios embandeirados, infindáveis3
dominios em terra, e um exercito de lacaios, ri-
camente vestidos, que se hão de curvar, submissos 4,
á voz do teu mando. Para isso, porém, é necessá-
rio que, logo que fiques homem, vás por campos e
montanhas, planícies e valles, sem medo ás tem-
pestades nem ás noites, em procura de um incalcu-
lável 5 thesouro que a sorte destinou para enriquecer-
te». Assim me disse a boa fada, com uma voz firme
e segura, inspirada pela fatalidade do Destino.
Hoje sou um homem ; cumpre-me obedecer-
lhe ; e, em quanto não encontrar a fortuna que se
accumulou para o meu goso, irei caminhando sem-
pre, mundo fora, os olhos no chão, as roupas
apodrecidas de uso, como um mendigo de estrada.
Dito isto, levantou-se, passeou a vista em tor-
no, curvou a cabeça e partiu.
A noite tinha cabido. A lua, muito clara,
appareceu entre as nuvens e inundou os campos
com sua luz argentea6.
O maniaco foi seguindo.
« Infeliz rapaz! pensou piedoso o camponez,
acompanhando-o com os olhos. Quantos também
não ha no mundo que atravessam uma existência
inútil, tão inútil talvez como esta, incapazes de
trabalhar, esperando que a felicidade os venha
procurar no sonho, como este louco que pensa en-
contral-a no solo 7
1 Infindável, que não se finda, que não acaba.
2 Dominios, propriedades, riquezas.
3 Lacaios, servos, creados.
4 Submisso, que se submette, que se abaixa ás ordens de alguém.
5 Incalculável, que se não pode calcular.
6 Arr/enfea. de prata; branca.
1 Solo, chão.
A SERPENTE

Um formoso passarinho,
{•tefege-am.-gafe^ sem receio,
Solfeja1 um doce gorgeio 2 ,
Empoleirado no ninho.
Auras3 que passam, serenas,
Num sopro suave e brando,
Vão as folhagens roçando,
Arrepiando-lhe as pennas.
E no ninho, agasalhado,
O filhote, implume e lindo.
Em silencio está dormindo
Sob o materno cuidado.
Mas em baixo, traiçoeira,
Inspirando4 horror e nojo,
Uma serpente, de rojo 8,
Por entre a relva se esgueira'
JSolfejar, cantar.
fíorgear, cantar como passarinho.
Auras, brizas, ventos brandos.
Inspirar, infundir.
De rojo, acto de arrastar-se pelo cMo, como as cobras.
Esgueirar-se, desviar-se sorrateiramente sem ser sentido.
92 LIVRO DA INFÂNCIA

O pássaro canta em cima


Perto do filho, contente.
Em baixo, a feia serpente
Pouco a pouco se approxima.
Olha-o em cima do ninho;
Avança aos poucos, afasta
A relva, entre a qual se arrasta
Caminhando de mansinho.
A ave de cantar não cança
Sua harmoniosa toada *,
Emquanto a serpea, enrolada
Ao tronco, aos poucos avança.
O pássaro ouve um ruido,
Sacode as azas com custo
E tenta fugir de susto,
Soltando um triste gemido.
Mas a serpente, medonha,
Num movimento ligeiro
Envolve-lhe o corpo inteiro
Com sua mortal peçonha 3,
E emquanto no ar, de mansinho
O vento perpassa*, brando,
A serpe vai devorando s
O ârrraose passarinho/
1 Toada, som, musica.
2 Serpe, serpente, cobra.
3 Peçonha, veneno que a cobra guarda nos dentes.
4 Perpassar, ir andando; passar adeante.
5 Devorar, tragar; comer depressa.
O S I N O QUE ANDA
(Imitação de Goethe)

Era um dia uma creança tão inquieta e tra-


vessa, tão amiga dos brinquedos e da ociosidade,
que não tinha paciência de estar por muito tem-
po ajoelhada na egreja, aspirando o perfume do
incenso, sob a luz dos altares.
Quando chegava o domingo, á hora de ir
fazer suas orações, achava sempre um pretexto t
para correr até ao campo, á procura das borbo-
letas e de ovos de passarinhos.
Disse-lhe a mãe um dia:
—O sino chama-te, meu filho, o sino toca, o
sino fala-te, o sino prescreve-te2 os deveres da
religião e obriga-te a assistir ás missas ; e si con-
tinuares a fugir para o campo, um dia o sino
ha-de descer da altura em que está e correr
atraz de ti.
Mas a creança pensou :
«O sino está tão alto, badalando lá em cima,
preso nas paredes da torre !...»
1 Pretexto, motivo que se Inventa para fazer ou não uma cousa.
2 Prescrever, determinar; ordenar o que se hade fazer.
94 LIVRO DA INFÂNCIA

E seguiu adeante, correndo pelos atalhos e


devezas 1, ávido 2 de ar e de liberdade.
Mas que medo, meu Deus! que terror lhe
arrepia os cabellos e lhe empallidece o rosto.
Numa curva do caminho o sino appareee, andan-
do como si tivesse pernas, a ralhar como si ti-
vesse bocca. A pobre creança, desesperada, corre
de um lado para outro, tropeçando nas pedras,
rasgando-se nos espinhos.
E o sino cai. O pobresinho corre, corre sem-
pre, toma a direcção da egreja e entra, mal
accordado do susto. Desde esse dia, quando
chega o domingo, ou algum dia de festa, elle é
o primeiro a ir á egreja, obedecendo ao primeiro
toque do sino, sem ser preciso que ninguém o
convide.

1 Devezas, mattos, selvas.


2 Ávido, desejoso; que sente muito desejo.
IZABEL

Izabel era uma menina de dez annos mais


ou menos.
Desde a mais tenra a infância já mostrava o
seu caracter vaidoso, um desejo de apparecer, de
realçar 2 , sobresahir 3 entre as demais. 4
Nessa edade tinham-se aguçado tanto as
suas más qualidades e se accentuado a sua ten-,
dencia para o apparato, que toda a vez que lhe
faltava um enfeite ao seu5 vestido ou uma fita ao
seu chapéu, revoltava-se , batia o pé, e, apesar
de bonita, graciosa mesmo, e de um aspecto agra-
dável, nesses momentos de cólera parecia feia e
só inspirava repulsão 6 e antipathia.
Sua mãe, mulher de costumes Bimples e de
boa alma, educada na eschola do carinho e da
religião, tinha um grande desgosto com isso, e
muitas vezes surprehendiam-n'a 7 com o rosto entre
os joelhos, chorando, afogada em soluços.
1 Tenra, branda, molle, nraito delicada.
2 Realçar, ter maior lustre.
3 Sorbesahir. realçar.
4 Ai/uçar, aliar, avivar.
5 Revoltar-se, ficar irritado, zangado.
6 Repulsão, acto de repellir.
% Surprehcnder, apanhar alguém descuidado.
96 LIVRO DA INFÂNCIA

Chamava a filha para junto de si, sentava-a


no collo, anediava-lhe 03 cabellos, num gesto bom
de maternal ternura; dava-lhe bons exemplos, en-
sinava-lhe o xcaminho do bem, com uma paciência
e resignação2 de que só são capazes as mães
extremosas
Certo dia, Izabel approximou-se de sua mãe
e disse-lhe:
—Mamãe, ha já alguns dias que resolvi
3
aban-
donar todas as minhas amigas actuaes , porque
ellas me parecem tão insignificantes4!
—Fazes mal, minha filha, falou a mãe com
tristeza. Entre as tuas amigas e companheiras
ha algumas de bons costumes e dignas da tua
amizade. Não as abandones.
—Vou deixal-as, sim. Conheço uma menina
que é melhor que todas ellas. Chama-se Marieta.
E' elegante como nenhuma, graciosa, espirituosa,
veste-se á ultima moda, e é o alvo da inveja no
circulo das minhas collegas. Quero andar em
companhia delia, para que todo o seu encanto
reflicta * sobre mim e eu seja invejada também.
A' mãe humideceram-se-lhe os olhos de la-
grimas. Envolveu a filha com um olhar de cen-
sura 6 e, antes que uma reprehenBão violenta lhe
sahisse da bocca, chamou a menina para junto
de si e falou-lhe com brandura :

1 Resignação, submissão.
2 Extremosa, affectuosa; que ama em excesso.
3 Aetual, presente; da épocha presente.
4 Insignificante, que não tem valor; ínfimo.
5 Refiectir, fazer reflexo sobre alguma coisa.
6 Censura, acto de dizer a alguém palavras que o corrijam.
LIVRO DA INFÂNCIA 97

—Certa vez uma semente de arbusto, na ap-


proximaçâo da primavera, ainda estava solta so-
bre a terra, sem coragem de ahi x deitar suas rai-
zes, receando crescer ao relento ou sob os ar-
dores do sol. Então deixou-se rolar ao vento, e
foi indo, foi indo, até chegar-se ao pé de uma
pequena arvore, que ostentava sua galharia verde
e exuberante 2 á margem de uma cisterna 3
Debaixo de sua folhagem havia uma sombra
fresca onde crescia um viçoso musgo que se es-
palhava em feitio de velludoso 4 e macio tapete.
Foi ahi o logar em que a semente resolveu
plantar-se.
Plantou-se, creou raizeB e cresceu.
Foi crescendo pouco a, pouco. Dia a dia iam-
lhe-rebentando novas folhas, novos brotos, novos
galhos,5 até que, quando a primavera veiu, e in-
vadiu a campina 6 inteira, encontrou o arbusto
numa florescência bonita, sorrindo numa radia-
ção 7 de mocidade.
O arbusto, como era muito débil e não tinha
forças para luctar contra a violência da ventania,
foi extendendo os braços e agarrou-se ao tronco
da arvoresinha, que lhe servia de arrimo.
Aconteceu, porém, que numa noite de tem-
pestade e de trovões, um raio maligno 8 cahiu

1 Relento, humidade do ar.


2 Exuberante, superabundante, em grande abundância.
3 Cis'erna, poço; buraco onde se deposita a água da chuva.
4 Velludoso, de velludo; macio como velludo.
5 Invadir, entrar.
6 Florescência, acto da florescer.
1 Radiação, muito brilho.
8 Maligno, de máu caracter; mau.
98 LIVRO DA INFÂNCIA

com grande estrondo e cortou a arvore. O ar-


busto encolheu-se de medo, mas salvou-se.
No outro dia rompeu o sol, e o seu calor era
tão intenso * que crestou 2 as folhinhas da pobre3
planta, lhe queimou o tronco, lhe seccou a seiva
e a matou.
—Ahi está a minha historia, minha filhinha ;
ella servirá de exemplo para te corrigires. Nunca
procures ter o valor que te emprestam 4 os grandes,
porque si elles morrem ou decaem do poder
e da grandeza, tu cahirás também como o peque-
no arbusto, humilhada pelo desprezo de todos.
Será melhor, pois, que tenhas o valor que te dão
as tuas próprias qualidades, tuas próprias virtudes,
e faças por sobresahir por teu próprio esforço.
Dahi em deante Isabel corrigiu-se e hoje é
uma excellente menina, querida e sympathisada
por todos.

1 Intenso, activo, forte.


2 Crestar, tostar, queimar na superfície.
3 Seiva, sueco dos vegetaes.
4 Decahir, declinar do que era dantes.
O VADIO

Mario era um rapazola


Feio, falador, sem brio,
O mais brigão e vadio
Dos estudantes da eschola.
Era castigado e preso
Por praticar desatinos V
O professor e os meninos
Tratavam-n'o com desprezo.
A licção ficava mudo ; 2
Buliçoso, mau e arteiro ,
Sempre entornava o tinteiro
Em sua mesa de estudo.
Tinha gagueiras 3 na fala ;
Trazia a cara e as mãos sujas;
Desenhava garatujas 4
Pelas paredes da sala.

1 Desatinos, actos de louco.


2 Arteiro, que faz travessuras.
3 Gagueira, dificuldade na fala.
4 Garatujas, figuras mal feitas.
100 LIVRO DA INFÂNCIA

Tinha a arrogância * travessa


De entrar na eschola cantando,
O olhar altivo, fumando,
E de chapéu na cabeça.
Narrava 2, ao entrar, com sua
Voz, que fazia severa,
As disputas que tivera
Com os garotos da rua.
Fazia-se mau, irado,
O mais valente da troça,
Mostrando a bengala, grossa
Como um bastão de aleijado.
Com maus modos e vaidade,
Cerrava os lábios, num momo *-,.
E ao mestre saudava, como
A um rapaz da sua edade.
Vivia BÓ, sem amigos,
E, por fazer travessuras,
Só merecia censuras,
Reprehensões e castigos.
Hoje, como é inda aquelle
Que sempre foi desde a infância,.
E' um homem sem importância t
Todo o mundo foge delle.

1 Arrogância, altivez, insolencia.


2 Narrar, contar, dizer um caso.
3 Momo, tregeitos que se fazem com os lábios.
PATRIOTISMO

Eram poucos já os soldados que defendiam a


fortaleza \ ultimo reducto 2 aonde se foram abri-
gar para fugir á morte.
Eram os derradeiros homens que restavam.
O exercito, que tinha ficado em terra, foi
barbaramente destruído pelo ímpeto 3 inesperado *
do inimigo, superior em numero e em armas.
Os destacamentoss todos foram atacados feroz-
mente e aprisionados os míseros6 soldados. Alguns,
passados pelas armas; outros, mais maliciosos, con-
seguiram fugir sob a chuva das balas ; muitos ca-
hiram na fuga, mortos, ou arrastavam-se, feridos.
Um vaso de guerra, apesar de sua couraça
de aço e que todos julgavam
8
inexpugnável7 re-
cebeu em pleno costado uma bala e desappare-
ceu nas ondas.

1 Fortaleza, construcção de pedra em que se defende a entrada da


uma cidade.
2 Reducto, pequena fortaleza.
3 ímpeto, impulso, violência.
4 Inesperado, que se não espera.
5 Destacamento, corpo de tropas destacado do exercito.
<$ Misero, miserável, infeliz.
7 Inexpugnável, que se não pode tomar á força de armas ; invencível.
€ Costado, dorso do navio.
102 LIVRO DA INFÂNCIA

Nada mais restava, pois, de toda a força ar-


mada, para resistir ao embate ' do inimigo, que
aquelle punhado de soldados heróicos, s embria-
gados de pólvora e de cólera, que, por traz das
muralhas s da fortaleza, se abrigavam da fuzila-
ria * inimiga.
A muralha era alta, toda de pedra e cal. As
balas que vinham raspavam pelas pedras, arran-
cando-lhes estilhaços5.
Os soldados encolhiam-se por traz do muro.
Si algum, imprudente ou curioso, erguia a cabeça,,
para ver o movimento e a approximaçâo dos na-
vios, cahia immediatamente crivado de balas.
A situação era .angustiosa 6 e desoladora.
Mas no centro da fortaleza, erguida no topo
do mastro, dominando o mar, ainda se ostentava a
bandeira, tremulando ' ao vento, como ultimo so-
luço da 8 pátria. Em torno delia gemiam os mori-
bundos , choravam os desesperados e estorciam-
se os feridos.
Houve um momento em que uma bala certeira
cortou a corda a que a bandeira estava suspensa ;
esta soltou-se, equilibrou-se no ar, desdobrou-se
ondulando 9 ao vento, e foi cahindo aos poucos.
O capitão agarrou-a, beijou-a repetidas vezes,
enxugou com ella o pranto que corria dos seus

1 Embate, choque de um corpo no outro.


2 Heróico, valente, corajoso.
3 Muralha, muro forte.
4 Fuzilaria, tiros de armas de fogo.
5 Estilhaços, lascas de pedras.
6 Angustiosa, dolorosa.
7 Tremular, tremer, oscillar.
8 Moribundo, o que está prestes a morrer.
9 Ondular, fazer ondas; ter o movimento das ondas.
LIVRO DA INFÂNCIA 103

olhos e o sangue que vertia das suas feridas, e di-


rigindo-se aos seus companheiros de infortúnio ',
disse :
—Qual de vós, caros irmãos de armas e va-
lentes camaradas; qual de vós terá a coragem de
subir áquelle mastro, para prender de novo esta
amada bandeira, symbolo da nossa pátria ?
Todos gritaram ao mesmo tempo, anciosos por
arriscar a vida, e desejosos de praticar esse tão
nobre e perigoso acto.
O capitão tirou á sorte. Coube a um menino
a horrível missão2
A pobre creança á primeira impressão em-
pallideceu ; mas, depois, sorriu, ergueu os olhos
ao céu e chegou á presença do capitão.
O capitão entregou-lhe a bandeira.
Elle tomou-a, prendeu-a á corda e subiu o
mastro, heroicamente3
As balas zuniam-lhe aos ouvidos. As grana-
das * atiravam-lhe estilhaços... Amarrou de novo
a bandeira no alto, soltou-a ao vento e —cahiu
morto.

1 Infortúnio, infelicidade, desgraça.


2 Missão, o acto de enviar.
3 Heroicamente, de modo heróico ; corajosamente.
4 Granada, projéctil de canhão.
O AVARENTO

Compareceu perante o juiz um avarento e


queixou-se, com expressões de lastima, de que um
homem, ha muitos annos, lhe devia luma certa
somma da qual só tinha pago os juros
—Vai ehamal-o, disse o juiz, traze-o á minha
presença. Quero saber porque é que elle te não
pagou ainda, e não posso condemnal-o sem ouvil-o.
O avarento sahiu e, logo depois, trouxe o
devedor pelo braço, insultando-o e maltratando-o
com crueldade.
—Eil-o aqui, senhor juiz. E'um mau homem,
um péssimo visinho, que não tem nenhuma com-
prehensão do dever, que não respeita as leis e que
não me pagou ainda o dinheiro que lhe emprestei
generosamente.
—Fala agora tu, devedor, ordenou o juiz.
Porque é que não pagaste a este homem o que
lhe devias?
—Senhor! balbuciou o homem humildemente,
eu devia-lhe cem sequins2 que elle me emprestou.

1 Juros, lucros por dinheiro emprestado.


2 Sequim, moeda de ouro.
LIVRO DA INFÂNCIA 105

Paguei-lhe a metade. Depois, como não lhe pu-


desse pagar o resto, elle cobrou-se por suas pró-
prias mãos, apropriando-se das minhas terras,
vendendo os meus fructos, roubando o meu ca-
melo e despojando-me x das minhas roupas. Hoje
nada mais tenho sinão estes andrajos que cobrem
o meu corpo e estas mãos para pedir esmolas.
Então o juiz, compadecido pela miséria daquel-
le pobre homem e revoltado contra a avareza do
credor, voltou-se para este e perguntou-lhe;
—Que mais queres deste homem? Já o redu-
ziste 2 á mais negra miséria. Sê um pouco pie-
doso, desperta na noite de tua alma algum sen-
timento generoso. Deixa-o ir em paz.
—Não, senhor juiz.
—Mas de que modo queres que elle te pague ?
—Quero que elle venha para minha casa,
para servir-me como escravo, até pagar os juros
que me deve.

1 Despojar, privar, despir.


2 Reduzir, resumir, diminuir.
O RIBEIRINHO

0 arroio fresco, em remanso ',


De curva em curva, em marulhos %
Num leito de pedregulhos
Escorregava de manso
Em quedas lentas e bolhas
Sob a arqueada 3 galeria *
Da folhagem, que o cobria
Com um tecto verde de folhas.
E bocejava de somno
Entre a douda garridice *
Dos roseiraes da planice,
Num descançado abandono.
Valle abaixo, sem esforço,
Folhas levava e raizes,
Como embarcações felizes
Que lhe singravam 6 o dorso.
1 Remanso, água com pouco movimento ; descanço.
2 Marulho, barulho de ondas.
3 Arqueada, feita em fôrma de arco ; abobadada.
4 Galeria, lanço de edifício coberto e espaçoso.
5 Garridice. galanteria, peraltice.
6 Singrar, navegar.
LIVRO DA INFÂNCIA 107

A' tarde, em vôo ligeiro


Vinham, as azas ruflando *,
Os passarinhos em bando
Beber d'agua do ribeiro.
Assim vivia o riacho *,
Dando de beber ás aves,
Descendo em giros suaves
Campos e valles abaixo.
Mas chorava a todo instante,
Tinha desgostos e maguas
Por não possuir tantas águas
Como um affluente 3 gigante.
Queria ser como os rios
De grossas águas redondas,
Que podem erguer nas ondas
Embarcações e navios ;
Ser um rio soberano
Que terras alaga, invade,
E em noites de tempestade
Tem vagalhões * de oceano.
E penetrado de dor,
Soltando queixas e maguas,
Vai levando suas águas
Pelas campinas em flor.

1 Rufiar, florear no tambor; rufar.


2 Riacho, ribeiro, rio pequeno.
3 Affluente, rio que deságua em outro.
4 Vagalhões, ondas grandes que se levantam no mar.
O SENHOR CURA

O senhor cura era o homem mais caritativo *


e generoso que havia na aldeia.
Velho já, os cabellos brancos como a neve,
quando o viam atravessar as ruas, a cabeça tre-
mula, o passo incerto, a velha batina de panno
grosseiro cheia de rasgões e remendos, os aldeões
aeompanhavam-n'o com olhar respeitoso e cum-
primentavam-n'o, sorrindo.
As creanças corriam a tomar-lhe a bençam.
Elle afagava-as, alizando-lhes os cabellos; per-
guntava pela saúde dos pães e dava-lhes moedas
em cobre. Todos o amavam.
Quando uma rapariga se ia casar, partia o
cura a visital-a, a dar-lhe bons conselhos, como
si fosse pae. Si a moça era pobre, o cura ia de
casa em casa angariando * esmolas e presenteava-a
com o enxoval e objectos úteis.
A' cabeceira do doente, era, ao mesmo tem-
po, medico e enfermeiro : —preparava as tisanas s
e applicava-as. No leito do agonizante era con-

1 Caritativo, caridoso ; que faz caridade.


2 Angariar, pedir, attrahir com boas palavras.
3 Tizanas, bebidas medicinaes.
LIVRO DA INFÂNCIA 109

fessor e amigo : —aconselhava ao arrependimento,


ensinando o caminho do céu, e chorava aos pri-
meiros anceios da agonia.
Nas horas vagas, depois de haver rezado e
feito as suas obras de caridade, ensinava ás crean-
ças a doutrina christan e dava-lhes gulodices.
A' noite, quer nas chuvas do estio ou no frio
do inverno, ia visitar a miséria da aldeia. A este
dava o azeite para a lamparina, áquelle um pe-
daço de pão, e a todos, em geral, bençams, con-
selhos e carinhos.
E no emtanto, quanta vez a velha creada que
o servia não o ia encontrar sentado á beira da
estrada, morto de fadiga e quasi moribundo de
fome! Ralhava-lhe então com palavras affectuo-
sas e amargas :
— Isto já não tem geito ! Viver por ahi a
soccorrer a pobreza, a pedir esmolas para dar
aos outros e não se lembrar de que é pobre tam-
bém, que está com a batina em trapos, o calçado
roto e que em casa não ha nem uma côdea1 de
pão para a nossa bocca ! E' de mais ! Vamos,
saia dahi, apoie-se em meu braço e vamos para
casa ! Até parece que Deus vira seu santíssimo
rosto!
E lá iam os dois, estrada fora, de braços
dados, como dois mendigos.
Era assim o pobre cura — bom até á dedica-
ção, caridoso até ao sacrifício.
Houve um dia em que uma febre contagiosa *
e mortal atacou os habitantes do logar.
1 Côdea, pedaço rijo do pão.
2 Contagiosa, que tem ou produz contagio.
110 LIVRO DA INFÂNCIA

Os ricos fugiram ; alguns abandonaram suas


casas; muitos, porém, preferindo morrer da febre
a soffrer miséria em terra extranha, ou, talvez,
na esperança de ser protegidos pela providencia,
deixaram-se ficar na aldeia, a trabalhar.
Quem passava pela rua ouvia no interior das
casas gemidos de dor e gritos de desespero.
O cura, então, sahiu, foi de casa em casa
em soccorro dos doentes, consolando os afflictos,
confessando os agonizantes ', sempre solícito, sem-
pre carinhoso, sem se importar com o cançaço
que lhe invadia o corpo e nem com a fome que
lhe devorava as entranhas.
Houve um instante em que, não podendo
mais soffrer o cançaço e a fome, se deixou cahir
no chão, e, tirando do bolso um pedaço de pão
duro, dispoz^se1 a comer.
Um mendigo, que passava, pediu-lhe a ben-
çam e disse-lhe:
— Senhor cura, estou quasi morto de fome
e mal posso sustentar-me nas pernas. Soccorrei-me.
— Toma, pobre homem, este pedaço de pão.
E' o único que me resta, mas a» minha fome está
satisfeita. —Toma.
O mendigo comeu e partiu.
Minutos depois o velho cura tinha morrido.

1 Agonizante, que está em vésperas de morrer.


2 Dispôr-se, resolver-se, preparar-se.
O SABIÁ DOENTE

Era pequeno ainda o sabiá, quasi implume x,


quando cahiu do ninho onde nasceu. Curioso, in-
vejando o vôo de outros passarinhos menores que
elle, tentou também voar :—abriu as azas mal em-
pennadas, fez um esforço e cahiu. Ao cahir, foi
resvalando pelos galhos, pelas folhas da arvore,
de modo que a queda foi pequena e não o maguou.
Quando cahiu na gramma, começou a ensaiar
o vôo para subir de novo até ao ninho, arrepen-
dido de o ter deixado, piando, piando de medo.
Um homem, que passou, levou-o comsigo.
O passarinho cresceu preso na gaiola.
A' tarde, quando os outros pássaros corta-
vam o ar em busca do repouso, elle sonhava com
a tepidez 2 do ninho escondido num galho, per-
dido no meio do bosque. Léguas em redor tudo
era verde, coberto de folhagens que o vento agi-
tava.
Além, escorregava entre fileiras de murtas,
limpido 3 e fresco, um arroio sobre um leito de
1 Implume, que não tem pennas ainda.
2 Tepidez, estado de tépido, de morno.
3 Limpido, limpo, puro.
112 LIVRO DA INFÂNCIA

seixos J O ar livre do campo, a frescura 2das ma-


nhans, o marulho das folhas, tudo accudia ao seu
espirito, o fazia sonhar por muito tempo, arran-
cando-lhe da sonora garganta as mais angustio-
sas 3 queixas.
E com a cabecinha no ar, os olhos cerrados,
os nervos agitados de commoção, traduzindo a
tristeza que o invandia, cantava, cantava horas
inteiras, ás vezes triste, alegre ás vezes, execu-
tando 4 escalas e gorgeios ou prolongando numa
nota toda a amargura de sua alma.
Os que lhe ouviam o canto, paravam a escu-
tal-o, encantados.
Assim viveu o sabiá por muitos annos, sem-
pre preso, sem conhecer a liberdade de que go-
sam os outros pássaros que elle via atravez da
grade, a uma vertiginosa 5 altura, espalhados pelo
azul.
Voar ! Quem lhe dera também um dia em que
a porta da prisão amanhecesse aberta, fugir, e, de
azas extendidas, voar, voar, ir muito alto, muito
alto, e gosar, até á embriaguez6, da vertigem7
de íuz que deve haver lá em cima!.
E o pobre pássaro sentia no eorpo estreme-
ções 8 de anciã,, agitações 9 de desejo, e abria as
azas ; mas a illusão desfazia-se e elle fechava-as
1 Seixos, calhaus, pedras.
2 Acudir, vir ao chamamento de alguém.
3 Angustiosa, que causa angustia ; dolorosa.
4 Executar, exercer, põr em execução.
5 Vertiginosa, que causa vertigem, desmaio.
6 Embriaguez, acto de embriagar-se, estado de atordoamento.
7 Vertigem, desmaio.
8 Estremeção, movimento de quem treme; tremores.
9 Agitações, inquietações.
LIVRO DA INFÂNCIA líé

de novo, recolhendo-se á sua tristeza de encarce-


rado *
Então pensava que, quando ficasse velho e
sua voz se tornasse rouca, haviam de apiedar-se2
delle e dar-lhe a tão desejada liberdade. Vivia
dessa esperança.
Envelheceu. Sua vista foi-se escurecendo aos
poucos. O sabiá estava cego.
Uma manhan, passeando pelo chão da gaiola,
approximou-se da porta, como de costume, a sen-
tir si estava aberta.
Estava aberta a porta.
Poz a cabecinha de fora, aspirou o ar, agitou
o corpo, sacudiu as azas entorpecidas pela velhice
e quiz voar. Mas, como já estava cego, teve
receio de bater-se contra a parede, no Ímpeto do
vôo, em vez de tomar a direcção do campo ; então
recolheu-se de novo e chorou abundantemente 3.
Dahi em deante nunca mais da sua sonora
garganta sahiram os gorgeios de outróra.

1 Encarcerado, que está preso num cárcere.


2 Apiedar-se, ter piedade ou dó de alguém.
3 Abundantemente, com abundância; em grande quantidade.
±2srr>iOE

PAGS.
Prefacio 5
Anacreonte . . . 9
Rei phantasma 13
Aguarella . 16
O açude. . 18
Os dois mendigos . 21
Em ferias . . 24
As duas moças. 26
A borboleta. . 29
O grillo e a borboleta. 32
A inveja. . 34
Calma no mar 38
Inverno . . . 39
A esperança. . 41
O trovador . 44
Os dois viajantes . 47
O abysmo 49
O naufrágio. 53
De volta da guerra 55
Vaidade 57
O fugitivo 59
A primavera. 61
116 ÍNDICE

O cão 63
A Yara. 67
Prece . 70
O aleijadinho 72
O curandeiro 75
A uma creança 79
O monge BI
Noite de inverno 84
A ovelha 86
O maníaco. 88
A serpente. 91
O sino que anda 93.
Izabel 95
O vadio 99
Patriotismo. 101
O avarento 104
O ribeirinho 106
O senhor cura . 108
O sabiá doente 111






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