01 - E Foram Felizes para Sempre
01 - E Foram Felizes para Sempre
01 - E Foram Felizes para Sempre
Angela M. S. Valore
Conta-se à criança uma dessas histórias que terminam com o “foram felizes para sempre”.
“Como?” ela pergunta. E diante da estranheza, junta: “Como é que eles foram felizes para sempre?”
Sabendo que tudo o que ela quer é que a história não termine, fechamos o livro e mandamos que ela
durma. Entretanto, é preciso dizer, a ela ocorre, sem contudo socorrer, algo que a nós deveria
intrigar. Como é que se faz para que a história não acabe? E o que há não é propriamente uma
receita. É mais um sortilégio, talvez, no sentido que emprestem ao termo as crenças místicas. Ou
seja, algo cuja vigência é temporária e subordinada ao cumprimento de certos imperativos e
condições. Se o preço não se paga, o sortilégio não funciona. O encantamento se quebra.
O que prescreve, afinal, essa fórmula mágica, cuja promessa se expressa pelo que é, no
mínimo, um contra-senso? É o que se recupera se, seguindo as próprias inclinações que nomeiam a
psicanálise, desdobrarmos, operarmos essa lise na cadeia. Foram indica, sem dúvida, um passado.
Foram Felizes, ação que se desenrola no passado. Não um que está em andamento, mas, todo o
contrário, que teve lugar e se completou num tempo que já foi. Para sempre nos remete, não a um
futuro qualquer, mas a todo futuro possível, pára além de qualquer cronologia, uma espécie de
infinito bem nossa conhecida. Como, portanto, é possível que algo que se deu no pretérito, logo,
que já não está em curso, afirme-se como vigente, ainda sendo e por vir a ser?
É justamente aí que nos encontramos com isso que tem de paradoxal o mito da felicidade
imorredoura. E não pelo impasse lógico em que ele nos coloca, mas pela medida em que esse
representa um outro impasse. Concordamos, creio, em que se trata de um mito. Palavra empregada
com certo rigor, para referir aquilo que fala na impossibilidade de se inserir numa definição da
verdade, que não se pode suportar senão de si mesma, e cuja constituição coincide com o avanço da
palavra.1 O que a palavra exprime ela o faz, aqui também, de um modo mítico, enquanto concretiza
o inapreensível e quer fazer falar numa única voz o próprio equívoco. Para calá-lo.
De uma ventura passada, tecida de desejos, de anseios marcados pela presença descontínua e
finalmente extintos na saciedade absoluta, espera-se, milagrosamente, que sobreviva. E que seja
eterna. Não fala a canção de um coração que bate feliz e de uns olhos que, pelas ruas, seguem
alguém que mesmo assim foge? Mas que, justo no pleno gozo da paixão o que pedem à amada é
que venha matá-la? Entretanto, não é o que se pretende do laço conjugal que aí se funda, nesta
morte, que troque a paixão pelo amor e, ao mesmo tempo, que a mantenha? E ainda que dure para
sempre.
sabemos, não é uma relação de mim e você. É uma relação de mim a mim. 3 Operacão dominada
pelo narcisismo, já que só nos enamoramos de nossa própria imagem, ainda que para suportá-la
tenha que estar numa pessoa de sexo diferente.4 Porém, se a injunção paterna em questão é que de
dois se faça Um, como manter essa alteridade que asseguraria a sobrevivência do outro, o outro
sexo? O sexo diferente, enquanto que é estrutural que o sexo, o gozo sexual “não se mantenha senão
sob a condição de que este real testemunhe sua autonomia, sua independência?”5
impossibilidade a qualquer preço.6 Preço que, bem comumente e mais do que se pensa, implica a
consagrarão ao amor e a renúncia ao desejo, ou a sua derivação para fora do domicílio conjugal.
Para obedecer ao seu dever, o homem procura a mulher no campo do Outro, mas ao
conduzí-la ao doce lar conjugal, convida-a a servir o Um, ou seja, a conjugar com ele os esforços
para fundar uma união perfeita. Ali deporão suas queixas e depressa se dedicarão a elas. Tudo, tudo
se dirão, nada escondendo um do outro, até se tornarem tão familiares, tão conhecidos, tão
semelhantes a si mesmos, como se fossem um só. Relação “bem sucedida” que começa a se tornar
insuportável quando tal identificação se faz mortífera. Cadê os sujeitos daqui? O Um comeu.
Assim é preciso “entrincheirar-se” no lar, e tudo que vem de fora, assim como o próprio
desejo, que corre o risco de apontar algo fora da união revelando uma brecha ainda não recoberta, é
ameaça. Encerrados em sua fortaleza, não poderão mais deixar de temer tudo que corresponde à
categoria do Outro.7 Terão finalmente encontrado o que se opõe e substitui o gozo da paixão
perdida: O gozo sem faltas da continuidade, do sempre igual.
Enquanto o poeta clama que seja infinito só enquanto dure, o matrimônio aceita que não seja
chama, conquanto que imortal.
Lei da indissolubilidade que impõe a “necessidade de não deixar o lugar onde se joga uma
partida da qual é impossível se esquivar”. Impossibilidade de sustentar a confrontação com o fim do
amor narcísico.8
A observação clínica, tanto quanto a literatura ao longo dos tempos, têm testemunhado
diferentes tipos de oposição a essa problemática. Um que as heroínas de Tolstói tão bem encarnam,
como a pequena Natasha do grande “Guerra e Paz”, que se preservava como objeto causa do desejo
ao se recusar a entrar no registro de uma inscrição conjugal, ao qual a pobre Masha de “A
Felicidade Conjugal” não pode escapar e a qual se vê ir murchando entre as páginas, à medida que a
novela se torna mais e mais exemplar.
Já a mãe amantíssima do “Livro de uma Sogra” na sua infinita sabedoria, embora atuando
um pouco como ao-menos-um, assegura à sua única filha que, embora se permitindo inscrever no
registro conjugal, o que lhe garantiria a necessária legitimidade para o amor sexual, pudesse
preservá-la do desgaste pela familiaridade, exigindo que os esposos não habitassem a mesma casa e
se encontrassem para a conjunção carnal apenas como amantes.
Impedidos porém de lançar mão de tal meio, os casais de carne e osso, nem por isso menos
fictícios, às vezes, têm como último recurso diante do impasse conjugal, tentar manter um pouco a
alteridade fazendo uso, que pode em certas condições ser um bom uso, da disputa.9 No desacordo se
insinua o desarmônico, não tão mortífero, um pouco menos UM. E se insinua também a suspeita de
haver uma face oculta, ainda não desvendada, que resgataria a alteridade, logo, o desejo. Isso tudo
para que, ao final, sua aventura a dois não se conjugue na desventurada travessia da “Floresta do
Alheamento”, com a qual escolhi encerrar estas reflexões:
“... vivíamos horas impossíveis, cheias de sermos nós... E isto porque sabíamos, com toda a
carne de nossa carne, que não éramos uma realidade...
Éramos impessoais, ocos de nós, outra coisa qualquer... Éramos aquela paisagem... E assim
como ela era duas – de realidade que era, e ilusão – assim éramos nós obscuramente dois, nenhum
de nós sabendo bem se o outro não era ele próprio, se o incerto outro vivera.
... E assim nós morremos a nossa vida, tão atentos separadamente em morrê-la que não
reparamos que éramos um só, que cada um de nós era uma ilusão do outro, e cada um, dentro de si,
o mero eco do seu próprio ser...
... Nosso quarto? Nosso de quê dois, se eu estou sozinho? Não sei, tudo se funde...
... A manhã rompeu... Acabaram de arder, meu amor, na lareira da nossa vida, as achas dos
nossos sonhos... Não choremos, não odiemos, não desejemos. Cubramos... com um lençol de linho
1 LACAN, Jacques. O mito individual do neurótico. Lisboa: Assírio e Alvim, 1987, 2ª edição.
9 Cf. ref. 7.
10 PESSOA, F. – O Eu Profundo e Os Outros Eus. Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro – 1980, 9ª
edição.